Estudo Morfofuncional da Junção Veno-Atrial

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Arq Bras Cardiol
2001; 77: 229-31.
Cavalcanti
& Santos
Artigo Original
Junção veno-atrial esquerda em portador de hipertensão pulmonar
Estudo Morfofuncional da Junção Veno-Atrial Esquerda em
Portador de Hipertensão Pulmonar
Jennecy Sales Cavalcanti, Laura Patrícia Ferreira Santos
Recife, PE
Objetivo - Estudar o arranjo dos feixes miocárdicos ao
nível da junção veno-atrial esquerda em portadores de hipertensão pulmonar e discutir a importância fisiopatológica desse elemento na etiologia do edema pulmonar agudo.
Métodos - Foram utilizados 12 corações juntamente
com as extremidades das veias pulmonares, fixados em
formol a 10%, provenientes de necropsias realizadas em
cadáveres cujo diagnóstico anatomopatológico foi de
edema pulmonar agudo, sem que apresentassem alterações morfológicas cardíacas macroscopicamente visíveis.
Foi analisado o arranjo muscular presente nas junções
veno-atriais esquerdas. Esse material foi isolado, incluído
em parafina, submetido a cortes seriados de 50µm de espessura e corados pelo tricrômio de Azam.
Resultados - Observou-se que: a) os feixes miocárdicos, que se dirigem da parede atrial e envolvem os óstios
de desembocadura das veias pulmonares, são em menor
quantidade do que os observados em material normal; b)
os feixes miocárdicos, que se prolongam na parede das
veias pulmonares, são menos extensos do que os encontrados em material proveniente de indivíduos não portadores
de hipertensão pulmonar.
Conclusão - Alterações anatômicas, que resultem em
uma diminuição na quantidade de feixes miocárdicos na junção veno-atrial esquerda, isoladamente ou em associação a
outros fatores, podem ser a causa de perturbações na circulação pulmonar, resultando em aumento na pressão venosa
pulmonar, conseqüentemente, no edema agudo de pulmão.
Palavras-chave:
veias pulmonares, átrio esquerdo, hipertensão pulmonar
Universidade Federal de Pernambuco - Recife
Correspondência: Jennecy Sales Cavalcanti – Rua Félix de Brito Melo, 912/501 –
51020-260 – Recife, PE
Recebido para publicação em 13/7/00
Aceito em 20/9/00
A hipertensão pulmonar ocorre quando a pressão sistólica da artéria pulmonar aumenta acima de 30mmHg, dificultando a manutenção do débito cardíaco. Dentre os tipos
de hipertensão pulmonar, o de estase ou de refluxo (hipertensão venosa) é, freqüentemente, o mais envolvido, geralmente em conseqüência de doenças cardíacas que causam
impedimento à drenagem normal da pequena circulação. O
exemplo mais comum é o da insuficiência cardíaca esquerda
e da estenose mitral causando estase venosa pulmonar,
com conseqüente aumento da pressão nesse território 1,2.
Porém, existem outras causas, como processos patológicos
pulmonares (enfisema, fibrose, tromboembolismo pulmonar,
esquistossomose vásculo-pulmonar) que explicam a gênese da hipertensão pulmonar secundária. Contudo, a literatura mostra-nos que em cerca de 10% dos casos não existe
uma causa cardíaca ou pulmonar que poderia estar implicada na gênese dessa doença, sendo a mesma denominada hipertensão pulmonar primária ou idiopática. Esta última é um
raro distúrbio da circulação pulmonar, ocorrido geralmente
em mulheres jovens e de meia idade, com evolução rápida e
invariavelmente fatal 3. Stuart 4 refere que a doença pulmonar venoclusiva ocorre em menos de 10% dos pacientes
com hipertensão pulmonar primária, não se conhecendo,
entretanto, a causa etiológica básica dessa doença.
Por outro lado, vários autores têm referido que os feixes miocárdicos presentes nos óstios de desembocadura e
nas paredes das veias pulmonares, em diversos animais,
inclusive no homem, teriam uma função semelhante a de um
esfíncter, cuja ação seria a de prevenir o refluxo de sangue
do átrio para os pulmões durante a sístole atrial 5-9. Alguns
autores levantaram a hipótese de que a contração das veias
pulmonares, associada à atividade cardíaca, facilitaria o enchimento do átrio esquerdo durante sua diástole 6,10,11. Outros autores têm relatado que os feixes miocárdicos nas paredes das veias pulmonares exerceriam uma função na regulação da pressão venosa pulmonar e no fluxo sangüíneo
através de alterações no seu tônus, causados por vários estímulos fisiológicos e/ou farmacológicos 5,6,12,13. Esses autores têm sugerido a possibilidade de que a constrição das
veias pulmonares, ou alterações morfológicas nas junções
Arq Bras Cardiol, volume 77 (nº 3), 229-31, 2001
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Cavalcanti & Santos
Junção veno-atrial esquerda em portador de hipertensão pulmonar
Arq Bras Cardiol
2001; 77: 229-31.
veno-atriais esquerdas, podem ser a causa de edema pulmonar agudo, sem que haja falência cardíaca ventricular.
Diante das hipóteses levantadas por esses autores, de
que alterações na pressão venosa intrapulmonar poderiam
ser causadas por modificações nos elementos estruturais,
que constituem as junções atriovenosas esquerdas, resolvemos investigar a estratigrafia morfofuncional dessa região, em condições anormais, e discutir a possível importância fisiopatológica desses elementos na etiologia do edema
pulmonar agudo.
Métodos
O estudo foi realizado em 12 peças anatômicas, compostas de coração e pulmões, obtidas de necropsias feitas
no Departamento de Patologia do CCS da UFPE. Esse material era proveniente de cadáveres adultos de ambos os sexos, cujo diagnóstico anatomopatológico da causa mortis
tenha sido estabelecido como edema agudo pulmonar. É importante salientar que apenas peças sem alterações macroscopicamente visíveis foram incluídas neste estudo.
Os corações foram removidos com os vasos pulmonares e parte de parênquima pulmonar, sendo fixados em formalina a 10%. Em seguida, os átrios esquerdos, juntamente
com um segmento das veias pulmonares, foram separados
dos ventrículos correspondentes. Sob análise de lupa estereoscópica foram retirados restos de pericárdio e expostos
os feixes miocárdicos. Particular atenção foi dada à junção
veno-atrial e à extensão da musculatura cardíaca nas veias
pulmonares.
Uma vez isoladas as veias pulmonares com suas junções na parede atrial, procedemos a inclusão desse material
em parafina, o qual foi submetido a cortes panorganográficos seriados transversais, tangenciais, e longitudinais de
50µm de espessura e corados pelo tricrômio de Azan. Esse
material foi examinado sob epi e transiluminação, utilizandose microscópio e lupa estereomicroscópica com aumentos
variáveis de 5 a 50 vezes. Os resultados obtidos foram documentados e ilustrados através de desenhos esquemáticos e fotografias.
Resultados
Foi observardo que os feixes miocárdicos partem da parede atrial e envolvem os óstios de desembocadura das veias
pulmonares, constituindo uma espécie de esfíncter (fig. 1). Parte desses feixes continua na parede das veias em trajetórias
semicircular e oblíqua, em forma de espiral (fig. 2). Esse comportamento foi melhor evidenciado nas junções veno-atriais
superiores do que nas inferiores, nas quais a maior parte das
fibras se limita a circundar os óstios das veias pulmonares.
Em ambos os casos observamos que alguns feixes mais externos envolvem as veias, próximos às suas desembocaduras e
retornam à parede atrial, constituindo verdadeiras alças musculares. No entanto, a maior parte dos feixes termina na parede da veia, onde se fixam aos elementos fibrosos de sua adventícia Esses manguitos miocárdicos são restritos à túnica
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Fig. 1 – Corte transversal ao nível do óstio de desembocadura da veia pulmonar no
átrio esquerdo. Observe os feixes de fibras miocárdicas de trajetórias semicirculares que
circundam o óstio de desembocadura da veia pulmonar esquerda (seta). Azan, 45x.
Fig. 2 – Corte longitudinal ao nível da junção veno-atrial esquerda. Observe os feixes de fibras miocárdicas de trajetórias oblíquas que partem do átrio esquerdo e se
prolongam na parede da veia pulmonar (seta). Azan 45x.
adventícia e estendem-se, em média, 10mm nas veias pulmonares superiores e 3mm nas inferiores, restringindo-se a parte
intrapericárdica dos vasos.
Discussão
Vários autores têm proposto que a musculatura cardíaca que envolve os óstios de desembocadura das veias pulmonares exerceria uma função esfinctérica, que atuaria impedindo o refluxo sangüíneo durante a sístole atrial 5-8,14-16. Por
outro lado, contrações sistólicas das porções extrapulmonares das veias pulmonares têm sido demonstradas no rato e
no camundongo 9,11,17. Nesse sentido, Carrow e Calhoun 10,
em seus estudos experimentais, levantaram a hipótese de
que a condução do impulso elétrico, seguindo a trajetória
estabelecida pelo músculo cardíaco na parede das veias pulmonares, pode criar uma ação peristáltica ou de ordenhamento em direção ao coração, aumentando, dessa forma, o
retorno venoso e o enchimento atrial. Natham e Eliakin 6 referem que a presença de músculo estriado na túnica média
das veias pulmonares do rato tem levado à suposição de
que sua contração em associação com a atividade do músculo cardíaco facilita o enchimento do átrio durante a sua diástole. Nesse sentido, Almeida e cols.18 sugerem que o enfraquecimento ou a insuficiência mecânica da camada mio-
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Junção veno-atrial esquerda em portador de hipertensão pulmonar
cárdica na parede das veias pulmonares poderia ser um
agente na elevação da pressão nos capilares pulmonares, o
que favoreceria a estase e o edema pulmonar. Cavalcanti e
cols.17 admitem que a junção veno-atrial esquerda possui
um substrato morfológico capaz de desempenhar importante papel na circulação pulmonar, não só evitando o refluxo
venoso, como também controlando a pressão venosa intrapulmonar e o rendimento cardíaco.
Os feixes miocárdicos semicirculares que envolvem
os óstios de desembocadura das veias pulmonares observados neste estudo, são em menor quantidade, quando
comparados aos descritos por Cavalcanti e cols.18, quando
analisaram o material proveniente de indivíduos não portadores de hipertensão pulmonar. Do mesmo modo, a extensão do manguito de miocárdio presente na adventícia desses vasos é, em média, menor do que a relatada por Nathan e
Eliakin 6 e por Cavalcanti e cols. 8 em condições não patológicas, uma vez que em nenhum dos nossos casos os feixes
miocárdicos atingiram a reflexão pericárdica, levando-nos a
supor que a redução na quantidade de feixes miocárdicos
que envolvem os óstios de desembocadura das veias pulmonares pode prejudicar sua possível função esfinctérica,
relatada por vários autores 6-9,15-18, o que poderia causar refluxo sangüíneo durante a sístole atrial.
Por outro lado, podemos supor que um manguito de
miocárdio menos extenso na parede das veias pulmonares
enfraqueceria a provável função de ordenhamento desses
feixes, conforme vários autores 7,11,14, o que elevaria a pressão, causando estase sangüínea nesse território vascular.
É oportuno lembrar que um fator importante de limitação do presente trabalho é a não disponibilidade de dados
clínicos que comprovem a existência de hipertensão pulmonar em vida, nos pacientes estudados, bem como, os nossos resultados foram comparados de forma subjetiva
com os do grupo controle, formado por material proveniente de necropsia de pacientes adultos de ambos os sexos, de diferentes causa mortis, excluídas as de origem
cardiopulmonar 18.
Concluindo, alterações anatômicas que resultem em
uma diminuição na quantidade de feixes miocárdicos na junção veno-atrial esquerda, isoladamente, ou em associação a
outros fatores, podem ser a causa de perturbações na circulação pulmonar, resultando em aumento na pressão venosa
pulmonar, e conseqüentemente, no edema agudo de pulmão.
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