Governança para um sistema alimentar resiliente

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Textos para Discussão da Oxfam
Governança para um
sistema alimentar
resiliente
Alex Evans
Centro para Cooperação Internacional, Universidade de
Nova York
1º. de junho de 2011
Textos para Discussão da Oxfam
Os Textos para Discussão da Oxfam são escritos para contribuir para o debate público e
estimular um feedback sobre questões de políticas de desenvolvimento e humanitárias.
Eles são documentos que estão “em constante mudança”, e não necessariamente
constituem publicações finais ou refletem posições de política da Oxfam. As visões e
recomendações expressas são do autor e não necessariamente da Oxfam.
Para mais informações ou para comentar sobre este texto, envie um e-mail para
[email protected]
www.oxfam.org/grow
SUMÁRIO EXECUTIVO
Atualmente, o mundo produz o suficiente para alimentar todos os seus sete bilhões de
habitantes – mas quase um bilhão de pessoas já estão desprovidas. Este texto examina
por que este escândalo global continua, e o que pode ser feito para solucioná-lo. Seu
argumento central é que o acesso a alimentos é tão importante quanto a quantidade de
alimentos que é produzida – e isto em um mundo que enfrenta volatilidade do preço dos
alimentos, mudança climática e outros tipos de choques e estresses, o desafio de
desenvolver resiliência no sistema alimentar assume uma enorme importância.
A Seção Um do texto avalia o que precisa acontecer dentro dos países em
desenvolvimento, concentrando-se, em particular, em uma expansão massiva na
provisão de sistemas de proteção social que tenham como alvo às pessoas mais pobres
e vulneráveis. Nos últimos anos tem ocorrido um progresso extraordinário na provisão de
proteção social em várias economias emergentes, como por exemplo o Brasil, onde o
programa Fome Zero tem reduzido os índices de fome – mas ainda há muito a ser feito,
especialmente em países de baixa renda.
Esta seção do texto também discute o desafio mais geral para se reduzir a
vulnerabilidade frente à fome nos países em desenvolvimento e aumentar a resiliência.
Embora os sistemas de proteção social sejam uma parte central do quebra-cabeça,
outras áreas cruciais para ação incluem a adaptação climática, redução do risco de
desastre, construção da paz, governança de recursos naturais e, em particular, um forte
enfoque em emprego e meios de subsistência.
A Seção Dois do texto se volta para as ações que precisam ser tomadas
internacionalmente – acima de tudo para lidar com o aumento acentuado da volatilidade
dos preços dos alimentos nos últimos anos. A seção começa com uma discussão sobre
por que motivo os preços têm se tornado tão voláteis, contrapondo, de um lado, uma
oferta variável e os fundamentos da demanda e, de outro lado, as influências de um
“feedback positivo”, onde os comportamentos em resposta aos altos preços dos
alimentos têm o efeito de ampliar o problema.
Em seguida, a seção apresenta uma série de ações que são necessárias para reduzir a
volatilidade e proteger as pessoas pobres, inclusive reformas para aumentar o alcance e
efetividade da assistência humanitária; investimento na expansão das reservas de
alimentos, especialmente no âmbito regional; e controles mais rigorosos sobre
proibições e restrições de exportações. A Seção Dois também inclui uma discussão
sobre o papel da especulação financeira no aumento da volatilidade, e se é preciso
alguma ação para lidar com isto.
A Seção Três concentra-se em maneiras de se aliviar a limitação do equilíbrio global da
oferta e demanda de alimentos através de políticas para redução da demanda. Embora
os formuladores de políticas estejam certos em concentrar-se no aumento da produção
de alimentos, uma série de fatores – incluindo mudança climática, escassez de água,
competição por terra, questões sobre segurança energética e queda nas taxas de
crescimento das colheitas – sugere que isto pode não ser fácil.
Assim, é aconselhável que os formuladores de políticas concentrem-se também na
redução da demanda por alimentos, colheitas e terra quando possível. O texto identifica
quatro áreas para ação a este respeito: reduzir o desperdício de alimentos, repensar
regimes de apoio para biocombustíveis ineficientes, persuadir consumidores abastados
a adotar uma dieta mais eficiente em termos de recursos, e agir para abordar taxas
insustentáveis de crescimento populacional.
Finalmente, a Seção Quatro explora como esta agenda pode ser colocada em prática –
tanto em termos de onde as oportunidades políticas cruciais se encontram quanto em
termos de quais tipos de reformas institucionais internacionais são necessárias. Ela
começa demonstrando por que uma ação multilateral é tão crucial para a agenda de
justiça alimentar global, e propõe uma série de reformas essenciais no atual sistema
2
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
multilateral para aumentar sua efetividade no controle, tomada de decisões e
implementação.
A seção, então, conclui com uma discussão sobre onde provavelmente haverá
oportunidades políticas para se levar adiante as recomendações deste texto –
concentrando-se em particular na agenda do G20 deste ano, na liderança de economias
emergentes em contextos multilaterais e na oportunidade de se renovar a agenda global
de desenvolvimento válida até o prazo final de 2015 para os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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INTRODUÇÃO: FOME E RESILIÊNCIA
“Inanição é a característica de algumas pessoas não terem o suficiente para
comer. Não é a característica de não haver o suficiente para se comer.”
–Amartya Sen1
No início do século 21, a humanidade alcançou um feito surpreendente. Mesmo com a
população mundial tendo crescido exponencialmente – chegando próxima da marca de
sete bilhões de pessoas – ela conseguiu garantir que a produção de alimentos
acompanhasse o seu ritmo. Porém, este sucesso impressionante é marcado por um
fracasso igualmente surpreendente. Pois, mesmo havendo uma quantidade de alimentos
suficiente disponível para alimentar cada habitante do mundo de forma adequada e
saudável, a realidade é que atualmente, um em cada sete membros da raça humana–
925 milhões de pessoas no total – não possui acesso a uma quantidade de alimentos
suficiente. Em muitas partes do mundo, as mulheres especialmente são mais suscetíveis
a passar fome.
E o total de pessoas famintas está crescendo, e não diminuindo. Em 1995, havia cerca
de 790 milhões de pessoas sem ter o suficiente para comer.2 Durante o aumento
acentuado dos preços dos alimentos, que teve seu pico em 2008, o total chegou à marca
de um bilhão pela primeira vez. E embora este número tenha começado a cair
novamente quando a crise financeira global reduziu os preços das commodities a partir
de meados de 2008, o fato do Índice de Preço dos Alimentos da Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, no momento em que este texto foi
escrito em abril de 2011, estar ainda maior do que em 2008, sugere fortemente que a
queda no número de pessoas famintas era apenas temporária.3
Fig 1: O total da fome global
Fonte: Dados da FAO e Banco Mundiali
i
Tradução:
Eixo das ordenadas: Pessoas famintas no mundo (em milhões)
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Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
Mesmo em termos proporcionais, com o crescimento da produtividade agrícola
excedendo o crescimento populacional, nenhuma investida real tem sido realizada para
lidar com a fome mundial – e nós agora estamos correndo um sério risco de começar a
retroceder. Embora o percentual de pessoas subnutridas em países em desenvolvimento
teve uma queda, passando de mais de 30 por cento em 1969–71 para cerca de 16 por
cento em 2005–07, ele então começou a subir novamente em 2008.4
Estes números corretamente provocaram uma sensação de revolta na maioria das
pessoas – especialmente tendo em vista o impacto humano que se esconde por trás das
estatísticas. O legado da volatilidade do preço dos alimentos dos últimos anos é uma
geração de crianças que vive na pobreza e que agora ficará debilitada a vida inteira. As
deficiências nutricionais que elas estão enfrentando quando crianças também farão com
que elas tenham dificuldades de aprendizado, acabando com as chances da vida antes
delas terem tido uma chance de se desenvolver – e fazendo com que em muitos casos
seus filhos, também, comecem a vida nas armadilhas da pobreza.5
Este texto para discussão – produzido para contribuir para debate no lançamento da
campanha Grow (Crescer) da Oxfam – concentra-se nos motivos de tantas pessoas do
mundo ainda passarem fome, e o que pode ser feito a este respeito.
No centro do texto está o argumento de que o acesso a alimentos é tão importante
quanto a quantidade de alimentos que é produzida. Como os formuladores de políticas
perceberam a extensão da crise de alimentos global durante o aumento acentuado dos
preços dos alimentos de 2008, eles frequentemente tenderam a se concentrar quase
que exclusivamente na necessidade de se produzir mais alimentos – ignorando o ponto
crucial de que produzir alimentos suficientes para alimentar a todos garante que todos
irão, de fato, ser capazes de se alimentar.
Como os últimos anos têm mostrado constantemente, as pessoas pobres e os países
pobres são altamente vulneráveis a choques de início repentino (sejam eles as altas
acentuadas do preço dos alimentos, impactos climáticos extremos ou proibições de
exportações) e estresses de início mais lento, tais como preços inflacionados
gradualmente, disponibilidade de água declinante ou aumento das temperaturas médias
que podem reduzir as colheitas. Frequentemente, esta vulnerabilidade é mais aparente
na insegurança alimentar das pessoas pobres – tendo em vista, como era de se esperar,
que as famílias pobres tipicamente gastam cerca de 50–80 por cento de sua renda com
alimentos.6
A necessidade de se combater, em particular, a vulnerabilidade das pessoas pobres
frente a choques e estresses leva naturalmente à questão de como transformar a
vulnerabilidade em resiliência. Embora a definição técnica de resiliência refere-se à
capacidade de um sistema (um ecossistema, por exemplo) de “absorver o desequilíbrio
e se reorganizar enquanto estiver enfrentando mudança de modo a ainda manter
essencialmente a mesma função, estrutura, identidade e feedbacks”,7 no contexto de
desenvolvimento internacional, ela pode ser interpretada de forma mais geral para se
referir à habilidade das pessoas pobres de enfrentarem os choques e estresses dentro
de um contexto mais amplo de progresso em relação a objetivos de desenvolvimento
humano.
Isto implica uma visão de desenvolvimento que tem início a partir de um reconhecimento
perspicaz das ameaças muito reais às pessoas pobres e ao progresso alcançado nos
últimos anos que provém dos riscos que surgem, como a mudança climática e
instabilidade econômica global. Mas é também uma agenda de desenvolvimento que
examina além da necessidade de se defender o progresso existente em relação a tais
riscos, e insiste na necessidade de se fazer mais progresso apesar das condições de
desequilíbrio e turbulência global.
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Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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1 RESILIÊNCIA NOS PAÍSES EM
DESENVOLVIMENTO
Quase invariavelmente, as pessoas pobres são as mais expostas aos preços altos dos
alimentos – assim como à escassez de recursos, à mudança climática e a choques e
estresses de outros tipos.
Em parte, como já observado, isto ocorre porque as famílias pobres despendem uma
grande proporção de sua renda em bens básicos, como alimento e energia. Isto também
é resultado da alta dependência das pessoas pobres de bens naturais, como terra, água,
pesca e silvicultura. Três-quartos dos pobres do mundo vivem em áreas rurais – e
embora a maioria deles esteja envolvida na pequena produção rural, eles têm tendido a
perder com a alta dos preços dos alimentos em vez de se beneficiar com ela porque a
pequena produção por hectare significa que a maior parte deles ainda seja compradores
líquidos de alimentos.
Esta dependência de bens naturais aumenta a exposição das pessoas pobres a
choques ambientais como secas ou enchentes. Muito frequentemente, estes tipos de
choques levam a ciclos viciosos e armadilhas da pobreza crônica – como, por exemplo,
quando a seca força as famílias pobres a vender bens produtivos como gado, ou tirar os
filhos da escola, tornando assim mais difícil uma eventual recuperação. Estes tipos de
ciclo são frequentemente um dos principais motivos das pessoas pobres tornarem-se
pobres em primeiro lugar, e de ser tão difícil mais tarde escapar da pobreza.8
E é provável que estes tipos de choques e estresses intensifiquem-se no futuro. Os
impactos da mudança climática estão se tornando mais evidentes, mais frequentes e
mais intensos. A competição por terra e água está intensificando-se. Há um risco real de
que a inflação e a volatilidade dos preços continuarão a afetar os alimentos e outros
produtos básicos.
Então, o que precisa ser feito para transformar os altos níveis de vulnerabilidade das
pessoas pobres em resiliência e capacidade de adaptação?
Como sempre na área de desenvolvimento, não há uma abordagem única que sirva para
todas as situações. Em vez disto, um grande conjunto de abordagens está disponível
para encontrarmos maneiras de reduzir os riscos enfrentados pelas pessoas pobres em
um mundo inconstante marcado por uma escassez de recursos cada vez maior –
incluindo algumas das áreas mais estimulantes e inovadoras em desenvolvimento
internacional. Alguns dos elementos-chave desta agenda emergente são:

Um grande enfoque em emprego e meios de subsistência. Embora os sistemas
de proteção social (discutidos em detalhes abaixo) estejam corretamente recebendo
muita atenção entre doadores e organizações da sociedade civil igualmente, a
melhor forma de proteção social é um emprego ou meio de subsistência adequado.
Porém, a crise financeira e econômica global dos últimos anos tem tido um forte
impacto negativo sobre o emprego – e crises anteriores frequentemente tiveram um
grande atraso na recuperação do emprego. Além disto, com 45 milhões de novos
candidatos no mercado de trabalho global a cada ano, sendo a maioria mulheres e
homens jovens, serão necessários 300 milhões de novos empregos até 2015
simplesmente para manter o ritmo do crescimento da força de trabalho global.9 Os
governos têm um papel crucial para desempenhar no apoio à criação de empregos,
mantendo empresas, oferecendo treinamento e educação para qualificação e
promovendo a volta ao mercado de trabalho, entre outras áreas.

Uma abordagem para o desenvolvimento agrícola centrado em pequenos
produtores de alimentos. Três-quartos das pessoas pobres do mundo vivem em
áreas rurais, e das 3 bilhões de pessoas rurais nos países em desenvolvimento, 1,5
bilhão são de famílias de pequenos produtores.10 Atualmente, o fato da maioria dos
pequenos produtores rurais serem compradores líquidos de alimentos faz com que
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Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
os altos preços dos alimentos sejam algo maléfico em vez de benéfico, e os
pequenos produtores rurais estão também altamente expostos à mudança climática
e à variação climática. Mas quando os governos conseguem fazer com que
condições corretas estejam em vigor para que os pequenos produtores rurais
gerenciem riscos como por exemplo a variação climática e as flutuações do preço
dos insumos – como no Vietnã, que deixou de ser um país com déficit de alimentos
para ser um grande exportador de alimentos, em grande parte devido às melhorias
em pequenas propriedades rurais – a agricultura pode ter um papel especialmente
poderoso na redução da pobreza e desenvolvimento da resiliência.

Forte ênfase na Redução do Risco de Desastres (DRR), que tem sido o foco de
um acentuado aumento no interesse e no compromisso dos últimos anos. O caso do
Japão oferece uma ilustração clara do valor da redução do risco de desastres
efetiva: embora o tsunami de 2011 tenha sido devastador em seu impacto, o
terremoto que o acionou causou estragos diretos mínimos, graças à liderança e
experiência do Japão e experiência em DRR, desde seus códigos de construção
para aumentar a preparação em toda a sociedade. A Declaração de Hyogo de 2005
sobre DRR observou o compromisso de 168 governos dedicados a um programa de
dez anos de integrar DRR em suas estratégias de desenvolvimento nacional e o
trabalho de agências internacionais.

Governança resiliente e ênfase na construção da paz e outras abordagens para a
prevenção e resolução de conflito. Isto é particularmente importante na área de
governança de recursos naturais, pois a competição por terra e água intensifica-se e
as pessoas pobres encontram-se sob risco de terem acesso reduzido a bens
naturais devido a conflitos com outros agentes em razão destes bens, ou de serem
desalojadas – os riscos aumentam especialmente devido à tendência emergente em
direção às “apropriações de terra” (discutido posteriormente neste texto). Mais
amplamente, o papel do estado em si é crucial – inclusive a prestação de contas e
legitimidade do estado aos olhos de seus cidadãos e sua capacidade de gerenciar
choques e de atuar como agente possibilitador de outras fontes de resiliência.

Redes sociais. Por fim, é importante enfatizar que as próprias pessoas pobres
geram uma significativa resiliência – através de amigos, famílias e instituições locais
como organismos religiosos e grupos da comunidade. Pesquisa da Oxfam sobre
como a crise econômica global tem afetado os países em desenvolvimento tem
enfatizado como pessoas pobres do mundo todo têm resistido aos obstáculos dos
últimos anos através de “ajuda mútua para compartilhar alimento, dinheiro e
informações para se recuperar da perda de emprego ou redução de remessas”.11
Significativamente, existem conexões e sobreposições extensivas em todas estas áreas,
com temas semelhantes surgindo constantemente (O Quadro 1 resume cinco dos mais
importantes).
Quadro 1: O que desenvolve resiliência?12
Cinco temas aparecem consistentemente como importantes no desenvolvimento da
capacidade de adaptação de pessoas pobres e de países pobres:
- A importância dos ativos – que vão desde a terra até o gado, desde ferramentas para
meios de subsistência até educação;
- A centralidade das instituições e direitos – em particular como forma de garantir direitos
e acesso a ativos de recursos fundamentais;
- O papel-chave do conhecimento e informação – como, por exemplo, previsões de
tempo sazonais ou serviços de extensão agrícola no contexto rural;
- O valor da inovação – que, por sua vez, está relacionado a se os sistemas (sistemas de
governança, comunidades, ecossistemas e assim por diante) são capazes de se adaptar
e mudar;
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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- E finalmente, o significado de flexibilidade e previsão – frequentemente desafiadoras
quando governos ou indivíduos estão lutando para lidar com o presente, mas ainda assim
um componente crucial daquilo que torna os agentes resilientes a choques e estresses.
Assim, desenvolver a resiliência – seja em resposta a uma ameaça específica (como por
exemplo no caso de adaptação à mudança climática, que claramente aumentará o nível
geral de risco enfrentado pelas pessoas pobres) ou em termos mais gerais – não é
enfaticamente uma área de atividade separada e única. Em vez disto, ela diz respeito à
adoção de uma abordagem para o próprio desenvolvimento que esteja ciente dos riscos
e vulnerabilidades, e que busque gerenciá-los e reduzi-los ao mesmo tempo conforme
se avança no desenvolvimento.
Isto significa que investir em resiliência pode ter efeitos em cadeia, levando progresso
em várias agendas ao mesmo tempo. Nicholas Stern tem argumentado, por exemplo,
que a proteção social é uma parte-chave da adaptação climática, enquanto o Instituto
para o Desenvolvimento Externo do Reino Unido tem realizado uma pesquisa sobre as
conexões e sobreposições entre as abordagens de proteção social, adaptação climática,
redução do risco de desastres e meios de subsistência.13 A ONG International Alert que
trabalha pela paz, enquanto isto, tem argumentado que a “construção da paz e
adaptação [climática] são efetivamente o mesmo tipo de atividade, envolvendo os
mesmos tipos de métodos de diálogo e engajamento social, exigindo dos governos os
mesmos valores de inclusão e transparência”.14
O papel especial dos sistemas de proteção social
Uma das áreas mais cruciais onde um progresso pode ser feito para melhorar a
resiliência das pessoas pobres, particularmente em relação ao acesso a alimentos, é a
de investir em sistemas de proteção social.
Estes tipos de sistema já contribuíram para surpreendentes reduções da pobreza e
desigualdade em algumas das maiores economias emergentes do mundo e poderiam
agora começar a fazer o mesmo em países de baixa renda – se os governos dos países
em desenvolvimento derem início a um esforço sustentável, e se seus parceiros
internacionais puderem oferecer apoio suficiente, resistindo à tentação de micro
gerenciamento.
Definida como “ações públicas realizadas pelo estado ou privativamente que podem
permitir que as pessoas lidem de forma mais efetiva com o risco, com a vulnerabilidade
frente a crises ou mudança e que ajudem a combater a pobreza extrema e crônica”, a
proteção social assume várias formas.15 Entre elas, as mais relevantes para a segurança
alimentar são:

Transferências de dinheiro e produtos em espécie, como o Programa de Rede de
Segurança Produtiva da Etiópia, que transfere dinheiro e alimentos durante períodos
de insegurança de alimentos sazonais oferecendo às pessoas emprego em projetos
públicos de trabalho; ou o sistema Bolsa Família do Brasil (veja o Quadro 2);

Programas de garantia de emprego, como a Lei de Garantia de Emprego Rural
Nacional da Índia, que garantiu 100 dias de emprego por ano às pessoas pobres em
200 dos distritos rurais mais pobres da Índia – frequentemente em projetos que
contribuam para a agricultura sustentável e adaptação climática, como plantio de
árvores ou fortalecimento de medidas de segurança contra enchentes;

Sistemas de saúde e nutrição de mães e filhos ou programas de merenda escolar,
que estão se tornando cada vez mais importantes em vários países e que dão um
apoio fundamental ao programa Fome Zero do Brasil (novamente, veja o Quadro 2).
Sistemas de proteção social como estes têm vantagens cruciais como forma de proteção
das pessoas pobres durante períodos de preços de alimentos altos ou voláteis.
Tendo em vista que estes sistemas têm como alvo as pessoas mais pobres e
vulneráveis, eles são muito mais acessíveis aos países em desenvolvimento do que os
8
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Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
subsídios para a economia como um todo, que frequentemente contribuem para a alta
da inflação. Enquanto os controles de preço dos alimentos têm potencialmente o efeito
desastroso de reduzir os incentivos a produtores rurais para aumentar a produção de
alimentos, os sistemas de proteção social não geram tais problemas. E enquanto as
restrições às exportações de alimentos podem criar efeitos propagadores catastróficos
para países dependentes da importação de alimentos (veja a Seção 2), os sistemas de
proteção social evitam os efeitos dominó em outros locais do mundo.
Igualmente importante, os sistemas de proteção social podem ter um impacto
transformativo sobre as pessoas pobres ao oferecer a elas uma plataforma segura para
que desenvolvam meios de subsistência e libertem-se da dependência e ansiedade.
Até agora, porém, apenas uma fração das pessoas que precisam de acesso à proteção
social realmente o tem.
A Organização Internacional do Trabalho, por exemplo, estima que apenas 20 por cento
da população mundial têm acesso a proteção social adequada de algum tipo.16 Além
disto, uma proporção significativa deste total é contabilizada por sistemas de seguro
social como pensões sociais ou seguro de saúde, onde a Previdência Social é financiada
por contribuições baseadas no princípio da segurança de reunir recursos com outros
agentes. Eles tendem a se concentrar em países de renda média.
Se o enfoque limitar-se aos sistemas de assistência social – nos quais as ações públicas
são voltadas para as pessoas mais necessitadas, sem depender de contribuições – o
total é significativamente menor, com apenas cerca de 750 milhões de pessoas
usufruindo do acesso a alguma forma de assistência social.17
Mas, embora haja um grande desafio pela frente para se garantir o acesso a proteção
social para todos que precisem dela, nos últimos anos tem havido um progresso
extremamente animador, particularmente no acesso a assistência social. Alguns dos
maiores avanços têm ocorrido nas economias emergentes como China, Índia, México e
Brasil (veja os Quadros 2 e 3), onde os governos têm investido fortemente na construção
de seus programas de proteção social com resultados impressionantes – inclusive, em
alguns locais, reduções significativas nos níveis gerais de desigualdade.
Quadro 2: Programa Fome Zero do Brasil
O programa Fome Zero do Brasil foi lançado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva
em 2003, com o objetivo de erradicar a fome no Brasil até 2015. Um elemento crucial do
programa, a Bolsa Família, tem como meta direcionar ajuda financeira diretamente às
famílias mais pobres, e contribuiu para uma queda na taxa de pobreza, que passou de 22
por cento para 7 por cento da população entre 2003 e 2009, com a renda dos brasileiros
pobres crescendo sete vezes mais do que a renda dos brasileiros ricos durante o mesmo
período.
Mas o Fome Zero estende-se para muitas outras áreas também, inclusive restaurantes com
preço baixo, educação sobre alimentação saudável e uma refeição gratuita por dia a todas
as crianças de escolas públicas (duas refeições nas áreas mais pobres). Crucialmente, o
Fome Zero também oferece apoio extensivo a pequenos produtores rurais e a produtores
rurais familiares – em muitos casos, o programa compra seus alimentos diretamente para
uso em refeições ou cantinas escolares.
Assim, em vez de focalizar apenas a produção de alimentos ou o acesso a alimentos, a
abordagem integrada do Brasil enfrenta as duas questões simultaneamente – aumentar a
segurança alimentar de produtores rurais pobres e de consumidores pobres em áreas
urbanas ao mesmo tempo.
Em contrapartida, os locais em que há mais a ser feito são nos países de baixa renda, e
especialmente na África subsaariana. Aqui também, progresso tem sido feito mas, muito
frequentemente, a tendência é em direção a programas-piloto de pequena escala que
são fortemente orientados e micro-gerenciados por doadores. Quando programas de
proteção social na África deixaram de seguir este modelo e mudaram para níveis de
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abrangência mais gerais – como por exemplo na Etiópia ou África do Sul – isto tem
ocorrido porque um governo assertivo realmente assumiu o controle do processo.
Embora o entusiasmo dos doadores pela proteção social seja algo bem-vindo e
significativo, o progresso futuro dependerá deles lembrarem – e serem lembrados de –
duas lições importantes.18
A primeira é que em relação à proteção social, assim como em muitas outras áreas de
assistência ao desenvolvimento, não há uma abordagem que serve para todas as
situações. Como observado acima, a proteção social assume muitas formas: o que
funciona em um país pode ser totalmente inapropriado, ou impraticável em termos
políticos, em algum outro lugar. Mas alguns doadores – inclusive o Banco Mundial –
assumem muito rapidamente que as transferências de dinheiro serão sempre a
abordagem correta para todos os países.
A segunda lição-chave é que para a proteção social funcionar, ela tem de estar baseada
na política nacional, e não imposta de cima para baixo. Embora financiamento e
capacidade governamental sejam frequentemente questões que têm de ser abordadas
na ampliação da proteção social, a maior barreira para se desenvolver uma proteção
social em países pobres é frequentemente um contexto político difícil. Quando, por
exemplo, os formuladores de políticas e os debates públicos concentrarem-se no receio
de que a proteção social incentivará a dependência (uma preocupação não apoiada
pelas evidências, que mostram que as pessoas pobres na verdade tendem a usar as
transferências sociais como pequenos investimentos).19
Mas na melhor das hipóteses, a oferta de proteção social não pode apenas proteger as
pessoas pobres dos choques, mas também contribuir para a criação de um contrato
social entre o estado e seus cidadãos através de ação como parte de uma barganha
entre ambos os lados que leva a uma maior prestação de contas e responsabilidade do
estado. Os doadores, portanto, precisam investir na garantia de que eles realmente
compreendem a economia política dos países nos quais atuam – e então aproveitar
agentes de mudança favoráveis aos pobres em vez de suplantá-los ou contorná-los.
Uma maneira pela qual eles podem fazer isto, logicamente, é através de apoio financeiro
– onde a questão não é apenas oferecer fundos suficientes, mas também fazer isto de
forma correta. Em particular, isto significa ofertas de ajuda como apoio de orçamento
sempre que possível, dada a necessidade de apoiar escolhas políticas domésticas como
discutido acima; e fluxos de ajuda de mais longo prazo e mais previsíveis, dados os
comprometimentos financeiros envolvidos de vários anos.
Quadro 3: Exemplos de programas de assistência social existentes20
China
O Projeto de Subsídio para Condições Mínimas de Sobrevivência Di Bao paga às famílias
pobres a diferença entre sua renda mensal e o nível mínimo estabelecido pelos governos
municipais. Os benefícios são voltados para as pessoas com “3 sem”: sem habilidade para
trabalhar, sem renda e sem suporte de membros da família. Em 2007, o esquema abrangeu
22,7 milhões de famílias pobres da zona urbana; o número de beneficiários da zona rural
está agora crescendo rapidamente e o governo planeja abranger 1,3 bilhão de cidadãos até
2020. O projeto atualmente custa cerca de US$2 bilhões.
Índia
O Projeto de Garantia de Emprego Rural Nacional Maharashtra foi lançado em 1979 e agora
oferece 100 dias de trabalho por ano aos beneficiários. Em 2007, 33,7 milhões de famílias –
uma em cada quatro famílias da zona rural da Índia – receberam apoio. O projeto
representa 2,3 por cento dos gastos totais do governo central.
México
O programa Oportunidades abrange 5 milhões de famílias (3,5 milhões delas vivem em
áreas rurais). As famílias recebem dinheiro para alimentos, energia e educação, assim como
10
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
uma pensão para cidadãos idosos; em troca, aqueles que recebem o benefício
comprometem-se com a educação escolar e exames de saúde. O projeto custou US$3,6
bilhões em 2009, o que representa 0,32 por cento do PIB do México.
Brasil
O programa Bolsa Família alcançou 12,5 milhões de famílias beneficiárias em 2009. As
famílias mais pobres recebem um valor fixo e uma quantia adicional por criança; famílias
que vivem em pobreza moderada recebem uma pequena quantia por criança. Os benefícios
dependem das crianças frequentarem escola e exames regulares de saúde para mães e
crianças pequenas. O projeto custa cerca de 0,3 por cento do PIB do Brasil e reduziu a
desigualdade em cerca de 21 por cento.
Etiópia
O Programa da Rede de Segurança Produtiva oferece emprego em projetos públicos para
pessoas que sofram cronicamente com a insegurança alimentar, assim como apoio direto
àquelas pessoas impossibilitadas de trabalhar. Em 2009, o programa abrangeu 8,2 milhões
de pessoas (11 por cento da população) para 6 meses do ano – embora o fato de alguns
benefícios serem pagos em dinheiro em vez de alimentos tem feito com que a capacidade
do PSNP de oferecer segurança alimentar possa ser destruída pela alta crescente dos
preços dos alimentos. O projeto custa 2 por cento do PIB da Etiópia.
Os doadores também podem contribuir muito para criar a capacidade administrativa de
que os países pobres precisam para montar e implementar sistemas de proteção social.
Direcionar a proteção social às pessoas que mais necessitam dela é um trabalho
altamente intensivo e sofisticado, e exige estados eficientes para fazer isto.
Mas o desafio de desenvolver resiliência não se limita, em hipótese alguma, ao que
acontece dentro das fronteiras dos países em desenvolvimento. Pelo contrário, a enorme
dimensão da volatilidade que tem sido uma grande característica da globalização nos
últimos anos faz com que uma grande pressão para desenvolver a resiliência também
seja necessária no âmbito internacional. Este é o assunto da próxima seção.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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2 RESILIÊNCIA NO ÂMBITO GLOBAL
A globalização entrou em uma fase altamente volátil e instável – e os preços dos
alimentos têm sido aqueles das áreas onde a montanha russa tem sido mais acentuada.
Embora os preços altos dos alimentos têm por si só causado problemas para as
pessoas pobres, é a acentuada volatilidade dos preços nos últimos anos que tem sido a
questão mais prejudicial de tudo.
Então, por que os preços estão tão voláteis? Em parte isto ocorre simplesmente porque
os fundamentos da oferta e demanda de alimentos têm sido progressivamente mais
pressionados nos últimos anos. A demanda está crescendo porque a população mundial
está crescendo e devido a uma classe média global maior e mais próspera, mudando
para dietas “ocidentais” mais intensivas em termos de recursos.
Mas em relação à oferta, por outro lado, a produção tem lutado para acompanhar o
ritmo. Os ganhos de produtividade da “Revolução Verde” têm perdido o fôlego nos
últimos anos – passando de cerca de 2 por cento ao ano na década de 1970 e 1980
para 1,1 por cento ao ano na década de 1990 e primeira metade da última década, com
a taxa sendo projetada para manter a queda.21 A competição por terra e água também
está ajudando a limitar o crescimento da oferta, pressionando os preços dos alimentos
para cima no processo.
A convergência das economias de alimentos e energia do mundo também está surgindo
como um fator-chave na inflação e volatilidade do preço dos alimentos. A dependência
do combustível fóssil da agricultura moderna faz com que as altas dos preços do
petróleo exerçam uma pressão ascendente sobre os preços dos alimentos também, pois
os custos aumentam com o uso de energia na área rural, insumos como fertilizantes e
pesticidas, processamento e transporte. Ao mesmo tempo, os altos custos de energia
aumentam a atratividade de biocombustíveis como substituto de combustíveis fósseis no
processo, desviando as colheitas para máquinas em vez de pratos de comida e criando
uma outra fonte de competição por terra (veja a Seção 3 para uma discussão completa
sobre biocombustíveis).
E embora as temperaturas em média mais altas poderiam promover colheitas globais
maiores para as próximas décadas, há previsão de que um mundo mais quente reduza
as colheitas imediatamente em regiões de baixas latitudes (isto é, a maioria dos países
em desenvolvimento). Além disto, eventos climáticos extremos já estão tendo impacto
nas colheitas de muitos países (inclusive, por exemplo, secas na Rússia e China, e
enchentes na Austrália e África do Sul), e terão muito mais impacto no futuro.
Mas a inflação dos preços dos alimentos não é simplesmente o resultado de oferta e
demanda. Também é importante o fato de que como as cadeias de abastecimento de
alimentos têm se tornado mais globalizadas e eficientes, elas também têm se tornado no
processo mais frágeis e menos resilientes. A logística “just-in-time” pode reduzir a
margem de erro e criar riscos de interrupção de abastecimento em circunstâncias
extremas. Um dos motivos pelo aumento acentuado do preço dos alimentos de 2008 foi
que os estoques de alimentos dos países haviam caído para níveis baixos
historicamente: passando de mais de 110 dias antes de 2000 para apenas cerca de 60
dias em 2004.22
Acima de tudo, um sistema de alimentos mais globalizado significa um sistema mais
interdependente também – o que torna o sistema vulnerável a jogos de soma zero
quando governos ou outros agentes-chave sucumbem ao pânico ou comportamento de
manada.
Se, por exemplo, exportadores-chave de alimentos inesperadamente reduzirem ou
suspenderem suas exportações devido à instabilidade doméstica nos preços dos
alimentos – assim como mais de 30 países o fizeram no auge do aumento acentuado de
preços de 2008 – os países que dependem das suas importações enfrentam uma
situação de incerteza. Da mesma forma, se os países dependentes de importação
12
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
entram em pânico e começam a comprar no mercados de grãos internacionais para
tentar montar estoque e se prevenir da instabilidade dos preços dos alimentos – como
vários governos do Oriente Médio e do norte da África o fizeram no início de 2011 – isto
também tem o efeito de agravar o problema para todas as outras pessoas, pois os
preços são pressionados para cima ainda mais.
Então, o que pode ser feito para se reduzir a volatilidade dos preços dos alimentos? Esta
seção do texto apresenta duas áreas para ação.

Primeiramente, medidas para fazer os mercados funcionarem melhor em
períodos de oferta restrita e demanda aquecida, inclusive reservas de alimentos,
regulação mais efetiva de contratos futuros de commodities e maior transparência de
mercado.

Em segundo lugar, maneiras de reduzir o risco de jogos de soma zero sobre
alimentos, tais como compras por razões de pânico e proibições de exportações,
protecionismo no comércio agrícola e a necessidade de equilibrar o direito dos
países de decidir suas próprias políticas com suas responsabilidades internacionais
perante seus parceiros de comércio.
Fazer os mercados funcionarem melhor
O primeiro conjunto de ações exige centros de reconhecimento da vulnerabilidade dos
mercados de alimentos frente a choques de oferta e demanda. Como o especialista em
desenvolvimento Homi Kharas observa, “O que torna os mercados de alimentos distintos
são que as curvas de oferta e demanda são altamente inelásticas, o que significa que
nenhuma delas responde muito bem às mudanças de preço no curto prazo. Os
fundamentos econômicos mais básicos sustentam que pequenos choques na oferta ou
na demanda levarão, portanto, a grandes mudanças de preço.”23
Reservas de alimentos
Um conjunto óbvio de ações que pode ser adotado para desenvolver uma maior
resiliência a tais mudanças de preços é através do investimento em reservas de
alimentos. As reservas de alimentos podem ser de várias formas: desde reservas da
comunidade que reduzem o desperdício pós-colheita e oferecem aos pequenos
produtores rurais mais controle sobre quando vender suas colheitas; até reservas
estratégicas em nível nacional que são utilizadas para a estabilização de preços; e
reservas internacionais disponíveis para uso emergencial (que podem ser estoques
físicos ou reservas “virtuais” baseadas em premissas de fornecer alimentos caso isto
seja necessário).
Porém, as reservas de alimentos implicam custos e dilema em relação a custos e
benefícios. Organizar grandes estoques é algo caro e, consequentemente, ninguém
deseja pagar por ele a menos que seja obrigado: as empresas do setor privado não têm
incentivos para manter estoques além de suas próprias necessidades, enquanto que os
governos tendem a querer soluções baratas e simples. As reservas de alimentos
também são complicadas de se organizar e podem ter o efeito de distorcer preços
quando as reservas são liberadas, tendo como resultado a redução da capacidade dos
produtores rurais de lucrarem com períodos de preços altos.
Apesar destas questões, as reservas de alimentos desempenham um papel importante
para garantir a segurança alimentar. Por exemplo:

Elas podem servir na preparação para emergências alimentares, assumindo várias
formas que vão desde operações de alívio humanitário após desastres até garantia
de que um país possa ainda ter acesso a grãos, mesmo se mercados internacionais
em desequilíbrio se renderem às contrações das restrições das exportações (como
ocorreu no auge da alta acentuada dos preços dos alimentos em 2008).

“Reservas reguladoras” – aquelas utilizadas para estabilização de preço em vez de
apenas nas condições emergenciais – podem também ser usadas para proteger
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
13
contra a volatilidade excessiva dos preços, um importante fator tendo em vista a
inelasticidade da oferta e demanda de alimentos.

As reservas podem oferecer suporte a pequenos produtores rurais quando os grãos
utilizados para reservas forem fornecidos por eles. (Este é o princípio da iniciativa
“Compra para o Progresso do Programa Mundial de Alimentos, que compra
alimentos para operações emergenciais de pequenos produtores em países em
desenvolvimento em vez de produtores da OCDE – ajudando assim os pequenos
produtores e também os destinatários da assistência alimentar).
Entre as décadas de 1960 e 1980, as reservas de alimentos eram amplamente
utilizadas. Depois, porém, elas começaram a declinar pois programas de ajustes
estruturais nos países em desenvolvimento insistiram para que as reservas deixassem
de ser utilizadas gradualmente; o setor privado passou a operar em cadeias de
abastecimento “just-in-time”; e o excesso estrutural de oferta de alimentos, juntamente
com o alto custo de se manter reservas, começaram a torná-las aparentemente
desnecessárias. Mais recentemente, o aumento na liberalização comercial tem
aumentado a liquidez dos mercados globais para muitos alimentos (embora nem todos:
o mercado de arroz, por exemplo, permanece relativamente ilíquido), reduzindo ainda
mais a aparente necessidade dos países manterem seus próprios estoques.
Porém, a alta acentuada do preço dos alimentos que teve seu auge em 2008 trouxe de
volta ao debate muitos destes pressupostos e a questão das reservas de alimentos está
agora voltando para a agenda. Mas há ainda questões importantes sobre qual tipo de
abordagem faz mais sentido em quais circunstâncias. Em termos gerais, as principais
opções disponíveis são:

Reservas da comunidade, que atua comprando alimentos de produtores rurais
quando os preços estão baixos e mantendo-os até que os preços estejam altos o
suficiente para cobrir as despesas da compra e gerenciamento. Isto pode ser
utilizado como reserva durante o “intervalo da fome” sazonal ou ser utilizado como
garantia para crédito pré - ou pós - colheita. As reservas da comunidade
frequentemente também desempenham uma função social, fornecendo alimentos às
famílias mais pobres da comunidade.

Reservas no âmbito nacional. Após a alta acentuada nos preços dos alimentos de
2008, muitos governos – inclusive Burkina Faso, República Democrática do Congo,
Malauí, Zâmbia, Paquistão e Nicarágua – decidiram expandir suas reservas de
alimentos para uso emergencial. Mas o uso das reservas nacionais para
estabilização dos preços é muito mais controverso, devido aos riscos de corrupção,
o efeito desestimulante que os estoques reguladores têm sobre estoques privados, o
custo envolvido e outros fatores. Grandes governos exportadores também podem
usar os estoques para manipular preços.

Reservas no âmbito regional, que podem fazer com que os alimentos estejam no
local correto quando necessário, ao mesmo tempo reduzindo alguns dos riscos
associados às reservas nacionais. Uma série de governos está atualmente
considerando arranjos regionais conjuntos, inclusive o grupo ECOWAS dos países
do Oeste Africano e uma grande proposta para a nova reserva de arroz do sudeste
asiático envolvendo os dez estados-membros da ASEAN, China, Japão e Coreia do
Sul.

Reservas globais, onde uma proposta do Instituto Internacional de Pesquisa sobre
Políticas de Alimentação para uma reserva “virtual” tem recebido considerável
atenção nos últimos anos. Ela seria baseada em compromissos coordenados pelos
países participantes e também uma pequena reserva física para necessidades
humanitárias.
Até o momento, há pouco consenso sobre qual destas opções (ou conjunto delas) faz
mais sentido. Porém, é importante que os países tenham espaço para tentar abordagens
diferentes e também que os resultados destes experimentos sejam compartilhados de
modo a permitir que avanços sejam feitos no decorrer do tempo. O que está claro,
porém, é que os baixos níveis de estoque que antecederam a alta acentuada do preço
14
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
dos alimentos de 2008 contribuíram para uma maior vulnerabilidade geral frente à
volatilidade do preço dos alimentos e que um avanço em direção a estoques maiores
aumentaria a resiliência global.
Especulação financeira
Uma segunda questão-chave para fazer os mercados funcionarem melhor é a questão
do papel que a especulação financeira tem desempenhado no aumento da volatilidade
do preço dos alimentos.
Há um considerável desacordo sobre o papel que a especulação financeira tem
desempenhado na orientação da inflação e volatilidade do preço dos alimentos. Embora
esteja claro que volumes comercializados de contratos futuros de commodities agrícolas
têm aumentado significativamente nos últimos anos, como a Figura 2 ilustra, isto não
equivale a dizer que a atividade especulativa tem sido responsável por aumentar os preços
dos alimentos. De certo modo, a especulação pode ser vista como um “canário na mina de
carvão” no sentido de que os preços dos alimentos estão subindo e tornando-se mais
voláteis, por razões que estão em grande parte baseadas na economia mundial real.
Um outro desafio surge da dificuldade de se fazer a distinção na prática entre o uso de
contratos futuros financeiros para proteger contra a volatilidade dos preços – algo em
que muitos produtores rurais, empresas de alimentos e outros agentes se engajam – e o
uso de tais instrumentos puramente para fazer apostas sobre os preços futuros das
commodities. Na realidade, estas atividades aparentemente muito diferentes são os dois
lados da mesma moeda e fazer a distinção entre os dois lados nem sempre é possível.
Estes tipos de questões metodológicas fazem com que as discussões sobre o papel da
especulação das commodities tendam a assumir uma forma de estudos com redação
cuidadosamente ambígua. O Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas de
Alimentação, por exemplo, realizou uma detalhada revisão dos dados e concluiu que:
“Os resultados mostram que atividades especulativas podem ter sido influentes, mas as
evidências até agora estão longe de ser conclusivas.”24
Figura 2: Volumes comercializados mensalmente de contratos futuros, 2002–08ii
ii
Tradução:
Volumes comercializados mensalmente
Eixo das ordenadas: Índice de Volumes (primeiro trimestre de 2002 = 100)
Legenda: Trigo – Milho – Soja – Arroz paddy
Nota: o índice de volumen é una média móvel de 3 meses
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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Fonte: Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas de Alimentação
Além disto, políticas mal projetadas que visam lidar com os excessos identificados da
especulação podem por si só ter consequências negativas. Embora os resultados da
crise financeira global permitam que os comerciantes de commodities sejam vistos como
um atrativo vilão por políticos, ativistas e a mídia, a realidade é que novos investimentos
na agricultura são urgentemente necessários, inclusive do setor privado, tendo em vista
que parte do cenário da alta acentuada dos preços dos alimentos de 2008 foi a de um
longo período com poucos investimentos na agricultura.
Embora a discussão sobre o papel dos investidores tem sido frequentemente alvo de
exagero e estereótipos, porém, este é também o caso de que o envolvimento do setor
privado na agricultura pode causar problemas reais.
Primeiramente, a especulação pode não ser a principal causa da inflação do preço dos
alimentos, mas ela pode ainda assim ampliar a volatilidade na margem, particularmente
dados os volumes que agora estão sendo comercializados. A maioria dos investidores
buscando exposição a commodities não tem intenção de fazer a entrega física da
commodity em questão, o que significa que os mercados futuros não podem perder
inteiramente o contato com os fundamentos da oferta e demanda mundial real. Mas
durante períodos de alta volatilidade (tais como no auge da alta acentuada do preço dos
alimentos de 2008), os mercados futuros podem adicionar “espuma” aos preços e
acentuar o pico da alta acentuada de preços.
Em segundo lugar, grandes e influentes firmas de comércio de commodities podem ter
conflitos de interesse. A Glencore, por exemplo – uma importante empresa de comércio
de commodities global – publicou um boletim informativo no verão de 2010 apresentando
razões para a Rússia impor uma proibição de exportação de trigo, mas não divulgou até
um ano depois que ela havia feito naquele momento uma grande aposta especulativa de
que os preços do trigo subiriam. O governo russo de fato impôs uma proibição de
exportação logo após o boletim informativo da Glencore ter sido publicado – aumentando
de forma astronômica o preço do trigo e atuando como um estimulador importante do
aumento do preço dos alimentos, que ganhou impulso no decorrer do ano passado.
Em terceiro lugar, investidores do setor privado em terras cultiváveis podem causar um
grande impacto negativo sobre as pessoas que estão vivendo na pobreza se os acordos
não estiverem suficientemente afinados com a questão do desenvolvimento. Embora
sejam os governos e os Fundos de Riqueza Soberana os responsáveis pela maior parte
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Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
do fenômeno da apropriação de terra (veja abaixo), as empresas do setor privado podem
contribuir exatamente com os mesmos problemas da avaliação de impacto ambiental
ruim; desalojamento de pessoas que podem ter cultivado a terra em questão durante
décadas apesar de não possuírem um título de propriedade formal; criação de emprego
mínima; e escassos benefícios para o país anfitrião.
Quando os governos avaliam a necessidade de regulação adicional da atividade
financeira na agricultura, tendo em vista a diferente sensibilidade do setor, eles devem
começar adotando uma abordagem “sem arrependimento” gradual que opte por ganhos
iniciais modestos enquanto reúne mais dados sobre o que está acontecendo.
Um primeiro passo nesta direção poderia ser os governos demandarem exigências
adicionais de transparência nos contratos futuros de commodities de alimentos. No
momento, muitos contratos futuros de commodities são comercializados “diretamente”
(Over The Counter - OTC), isto é, negociados e comercializados privativamente entre as
partes sem o intermédio de uma bolsa de valores. Tais acordos estão sujeitos a
exigências mínimas de divulgação de informações, embora sejam responsáveis por
enormes quantidades de dinheiro: no total, os derivativos de commodities OTC
pendentes foram responsáveis por um total nacional de $2,9 trilhões em junho de 2010.25
Se estes contratos OTC em vez disto tivessem de ser compensados formalmente
através de uma bolsa de valores (como a Chicago Board of Trade), isto introduziria
novas e importantes exigências para se relatar, sem impedir a capacidade dos
produtores e compradores de alimentos de se proteger contra possíveis variações de
preço. Os governos poderiam também requerer que grandes agentes do setor privado,
como companhias globais de grãos, divulgassem suas reservas como forma de reduzir o
escopo para manipulação de mercado.
Ao mesmo tempo, os governos poderiam atuar bastante para colocar sua própria casa
em ordem em relação à transparência. Os governos, por exemplo, incluindo a China e a
Índia, vêem as informações sobre mercados de commodities agrícolas, especialmente
seus níveis de estoque, como altamente confidenciais. Este nível de escuridão, por sua
vez, aumenta a incerteza enfrentada pelos mercados e, com isto, o risco de volatilidade.
A agenda francesa do G20 de 2011 inclui propostas para abordar esta questão, mas
poderia também de forma útil fornecer dinheiro e recursos para a Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação aumentar sua própria vigilância de
mercados, inclusive fazer um maior uso de trabalho de campo e imagens por satélite, em
vez de depender tão fortemente dos dados do governo como ocorre agora.26
Reduzindo o risco de jogos globais de soma zero
A segunda área fundamental para ação para se combater a volatilidade do preço dos
alimentos é a de medidas para reduzir o risco de jogos globais de soma zero.
Como já observado, a perspectiva global sobre alimentos será fortemente influenciada
por balanço mais estrito entre as condições de oferta e demanda. Em tais condições,
existem riscos reais quando as ações dos governos são motivadas por interesses
estreitos, de curto prazo – ou por pânico manifesto – sem levar em conta o efeito-dominó
de suas ações.
A alta acentuada do preço dos alimentos que teve seu auge em 2008 serviu como um
alerta claro da necessidade dos governos pensarem holisticamente sobre como suas
ações podem afetar preços, e uns aos outros. Conforme os preços aumentaram, muitos
governos dependentes de importação começaram freneticamente a tentar reconstruir
seus estoques de alimentos escassos comprando grãos e outros alimentos nos
mercados internacionais – no processo, logicamente, elevaram os preços ainda mais. A
mesma dinâmica ficou evidente novamente em 2011, quando os governos do Oriente
Médio e norte da África atuaram com pânico na compra de trigo e outras commodities
para tentar ajudar a conter os conflitos políticos (catalisados, pelo menos em parte, pela
inflação do preço dos alimentos).
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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As preocupações dos países dependentes de importação para garantir sua segurança
alimentar estão também evidentes na recente – e enorme – tendência global em direção
a apropriações de terra, refletindo a disputa global cada vez mais intensa por petróleo e
recursos minerais. Os países do golfo e os países asiáticos como a Coreia do Sul, Índia,
China e Japão têm arrendado grandes extensões de terra em vários países em
desenvolvimento. Em muitos casos, isto tem sido feito com mínima transparência ou
avaliação de impacto ambiental, baixa criação de emprego, colheitas exportadas e – o
mais preocupante de tudo – mínima consulta ou envolvimento das pessoas locais, tendo
milhares delas ficado desalojadas da terra, tendo estas pessoas muitas vezes dependido
da terra durante décadas apesar de não terem um título formal de propriedade ou posse.
Os governos dependentes de importação não estão sozinhos nesta situação difícil.
Como já observado, durante a alta acentuada dos preços dos alimentos de 2008
observou-se que mais de 30 exportadores de alimentos impuseram restrições à
exportação ou proibições diretas como forma de tentar reduzir os preços dos alimentos
domesticamente e assim atenuar os conflitos urbanos relativos à inflação dos preços.
Esta tendência foi instrumental para elevar os preços dos alimentos ao seu auge,
particularmente os preços do arroz, onde os mercados internacionais relativamente
ilíquidos para o grão contribuíram para uma explosão inesperada de uma forte
volatilidade dos preços.
Em todos estes casos, um tema comum é que embora tais ações possam fazer sentido
até certo ponto para governos individuais, o efeito geral é o de aumentar as percepções
de escassez e o risco de mais “nacionalismo de recursos”. A compra em razão de
pânico e as proibições de exportações também têm o efeito de elevar os preços ainda
mais, agravando assim o problema que eles pretendiam abordar inicialmente. O
potencial para reações positivas (onde os efeitos de uma mudança intensificam a
mudança) é óbvio – assim como o risco de jogos de competição global de soma zero em
vez de cooperação.
Estes tipos de dinâmica representam uma grande mudança para o comércio
internacional. Até os preços começarem a subir após o ano 2000, os preços das
commodities – incluindo alimentos – estavam em queda há anos. As commodities eram
um mercado de compradores e não de vendedores; os tipos de questões que levaram a
disputas comerciais e casos da Organização Mundial de Comércio tendiam a se
concentrar fortemente em questões sobre acesso a mercado.
Mas com o surgimento da inflação e volatilidade dos alimentos, uma mudança em
direção ao mercado de vendedores está se tornando evidente, onde é tão provável que
as disputas comerciais sejam a respeito de segurança de fornecimento quanto a respeito
de acesso a mercado.
Crucialmente, estes tipos de disputas não são bem abrangidas pelas regras comerciais
internacionais existentes. O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e o Acordo
da OMC sobre Agricultura (AoA) realmente incluem regras contra as restrições às
exportação – mas importantes ressalvas aplicam-se, o que seriamente enfraquece a
efetividade destas regras.
Uma delas é que embora a maioria das restrições à exportação é proibida pelo GATT,
restrições temporárias são permitidas no caso específico dos alimentos. Uma outra
ressalva é que os países que estiverem suspendendo as exportações devem
presumivelmente levar em conta os efeitos sobre os importadores, notificar a OMC que
restrições foram implementadas e fornecer justificativa caso forem solicitados. Mas estas
exigências não servem para evitar que estes países proíbam exportações – e de
qualquer forma, mesmo estas modestas exigências aplicam-se apenas aos países
desenvolvidos, não se aplicando, assim, a exportadores-chave, como Argentina ou
Tailândia.
No longo prazo, os formuladores de políticas deveriam ter como objetivo definir em
acordo regras comerciais novas e mais rigorosas que evitem uma repetição do tipo de
volatilidade observado durante a última alta acentuada do preço dos alimentos e que
poderia emergir novamente agora. O respeito ao espaço das políticas dos países em
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Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
desenvolvimento deve continuar a ser um importante princípio do comércio internacional,
assim como a ênfase no “tratamento especial e diferencial” para os países em
desenvolvimento. Mas ao mesmo tempo, a extensão da interdependência no comércio
do século 21, juntamente com a perspectiva de dificuldade no cenário global dos
alimentos, fazem com que o espaço das políticas tenha de ser alinhado com
responsabilidade – e com regras obrigatórias caso os países recusem-se a apresentá-la.
Tendo em vista a situação da rodada comercial de Doha – ainda mantida artificialmente
após dez anos de negociações – isto é improvável que aconteça em breve. Enquanto
isto, então, os formuladores de políticas devem se concentrar em medidas mais
alcançáveis que ainda assim teriam um impacto concreto.
No alto de sua lista de tarefas, devem estar alguma forma de mecanismo global de
gestão emergencial que ofereça comunicação e coordenação entre os países em
condições de alta volatilidade. Isto poderia potencialmente ajudar a reduzir alguns dos
riscos de compra por motivo de pânico por parte de países dependentes de importação,
o que teria o efeito de elevar ainda mais os preços.
Um outro passo básico fundamental é relativo aos exportadores definirem em acordo
que os alimentos a serem utilizados como assistência humanitária devem sempre estar
isentos das proibições de exportação, de modo que o Programa Mundial de Alimentação
e outras agências de ajuda emergencial sejam capazes de fornecer alimentos quando
for necessário.
Em particular, embora as regras formais contra a imposição repentina de restrições à
exportação podem estar fora de alcance agora, poderia ser factível persuadir grandes
exportadores a pelo menos assumirem um compromisso político de não imporem
restrições repentinas à exportação. Propostas para um Código de Conduta do G20 em
relação a restrições à exportação de alimentos poderiam facilmente abranger tal
compromisso e poderiam ajudar a promover mais estabilidade nos mercados de
alimentos.
Finalmente, os formuladores de políticas devem ter clareza de que avançar com a
Rodada Comercial de Doha permanece sendo algo essencial para a segurança
alimentar global, por mais difícil que os avanços tenham sido – em particular, o
movimento sobre reforma das políticas de apoio às questões rurais da OCDE, que são
ainda mais problemáticas em condições de preços globais de alimentos altos e voláteis
(veja o Quadro 4).
Quadro 4: A reforma dos regimes de apoio à área rural da OCDE ainda é
importante?
A escala do apoio dos países ricos aos seus setores rurais é surpreendente. Em 2008,
países da OCDE forneceram US$265 bilhões em apoio aos seus produtores agrícolas – o
equivalente a 21 por cento da renda total dos produtores.
Durante anos, a Oxfam tem feito campanha pelo fim de políticas de apoio à área rural de
países ricos, argumentando que elas representam uma competição claramente injusta com
produtores rurais de países em desenvolvimento, que se encontram extremamente
prejudicados pelas exportações subsidiadas dos países ricos em casa, mesmo se as tarifas
e outras barreiras comerciais neguem a eles acesso aos próprios mercados dos países da
OCDE com suas exportações.
Como estas campanhas foram feitas durante um período de preços baixos e sustentáveis
de alimentos (e, na verdade, em queda durante vários anos no caso de muitas commodities
agrícolas), a questão inevitavelmente surge: a reforma de regimes de subsídio como a
Política Agrícola Comum da UE ainda faz sentido em um mundo muito diferente de altos
preços dos alimentos? Ou os altos níveis de produção de países da OCDE são na verdade
parte da solução para um mundo no qual os alimentos parecem estar tornando-se mais
escassos?
A resposta é que não apenas a reforma dos regimes de apoio rural dos países ricos
permanece essencial em um mundo onde os preços dos alimentos estão mais altos e mais
voláteis, como tornou-se até mesmo mais urgente.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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Isto ocorre porque ter uma certa capacidade de produção doméstica de alimentos pode ser
uma importante fonte de resiliência durante períodos de grave volatilidade nos mercados
globais de preço dos alimentos – tal capacidade doméstica, como já observado, estará
diretamente destruída se os países em desenvolvimento tiverem de competir com
importações que foram injustamente subsidiadas por exportadores mundiais ricos.
Embora a Rodada de Doha supostamente deveria incluir a eliminação de muitos subsídios
da OCDE (especialmente subsídios para exportação), várias brechas ainda estavam
permitindo que os EUA e a União Europeia continuassem a subsidiar seus setores rurais:
um boletim informativo da Oxfam de 2008 observou que a Rodada de Doha seria
“improvável de obrigar os EUA ou a UE a cortar um único dólar dos subsídios que eles
pagam a seus produtores rurais”.27
Enquanto isto, alguns subsídios da OCDE têm contribuído diretamente para o nível de
volatilidade dos preços dos alimentos dos últimos anos. Nos EUA, por exemplo, um apoio
generoso para a produção do etanol a partir do milho significa que este ano, cerca de até 40
por cento das colheitas de milho dos EUA serão destinadas a biocombustível em vez de
alimentos. O fato dos EUA serem também o maior produtor de milho do mundo faz com que
isto seja sentido imediatamente nos preços globais do milho, que recentemente tiveram
altas históricas.
A recente volatilidade dos preços dos alimentos faz com que seja mais importante do
que nunca que os países em desenvolvimento tenham espaço político para proteger
seus cidadãos (sejam eles produtores ou consumidores).
Os governos, por exemplo, precisam ter flexibilidade não apenas para serem capazes de
reduzir tarifas durantes períodos de preços altos mas também de adotá-las novamente
em caso dos preços posteriormente sofrerem uma queda. Embora a autossuficiência
total em alimentos raramente ou nunca faça sentido enquanto objetivo de política para
os países em desenvolvimento, conservar pelo menos parte da capacidade doméstica
de produção de alimentos pode ser uma fonte importante de resiliência para os países
em desenvolvimento – que, portanto, precisam ser capazes de proteger produtores
domésticos contra a volatilidade extrema dos preços ou contra ondas repentinas de
importações. Esta consideração está no centro dos debates da Rodada de Doha sobre o
“Mecanismo Especial de Salvaguarda”, que dá a alguns países o direito de impor altos
impostos sobre importações quando os volumes de importação aumentam acima de um
certo nível, ou se os preços caem abaixo de um certo nível.
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Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
3 ALTERANDO OS FUNDAMENTOS DA DEMANDA
Até agora, este texto concentrou-se em medidas para aumentar a resiliência do sistema
de alimentos – tanto nos países em desenvolvimento, através de emprego, pequenos
produtores rurais, proteção social e outras medidas, e internacionalmente através de
medidas para reduzir a volatilidade dos preços dos alimentos e a vulnerabilidade a
choques do comércio internacional.
Mas medidas para aumentar a resiliência apenas serão de utilidade limitada se os
fundamentos de oferta e demanda de alimentos continuarem a piorar – em grande parte
da mesma forma que a adaptação climática efetiva não substitui o combate às causas
subjacentes da mudança climática através da redução das emissões.
Como a questão da segurança alimentar global começou a aparecer no centro das
agendas de políticas dos governos a partir de 2007, muitos deles se apressaram para
concluir que sua tarefa mais importante era simplesmente aumentar a produção de
alimentos em linha com as projeções de demanda, tais como a previsão do Banco
Mundial de que seriam necessários mais 50 por cento de alimentos até 2030, e a
projeção da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação de que
seriam necessários mais 70 por cento de alimentos até 2050.28 (Esta ênfase na
produção era politicamente conveniente para muitos países da OCDE, pois ela permitia
que eles defendessem a continuação dos regimes de apoio ao setor rural.)
Aumentar a produção é certamente parte da solução para segurança alimentar global
para todos – embora como as seções anteriores já discutiram, certificar de que haja
alimento suficiente para todos não serve de garantia de que todos de fato serão
alimentados. Mas realisticamente, existem questões difíceis sobre se o equilíbrio atual
da margem estreita de oferta–demanda de alimentos será solucionado apenas pelo lado
da oferta.
Como observado, os ganhos da colheita da Revolução Verde do século 20 têm perdido o
fôlego nos últimos anos. A competição por terra está se intensificando. A escassez de
água já é grave em muitas regiões devido aos padrões insustentáveis de uso,
especialmente da água subterrânea, e se agravará em muitas outras regiões conforme a
mudança climática avançar. Outros impactos climáticos, particularmente eventos
climáticos extremos, provavelmente reduzirão as colheitas também. Os preços mais
altos de energia aumentarão o custo de muitos insumos que são essenciais para a
produção de alimentos nos modelos agrícolas atuais, incluindo fertilizante e combustível
para uso, processamento e distribuição de energia na área rural.
Por todas estas razões, é possível que a oferta não consiga acompanhar o crescimento
da demanda, mesmo supondo uma reversão imediata e em grande escala do baixo
investimento em pesquisa e desenvolvimento, e na agricultura em termos gerais, das
últimas décadas. Assim, conclui-se que se a redução da demanda puder ocorrer – em
relação a alimentos, colheitas que não sejam alimentos, terra, água e assim por diante –
isto então ajudará a superar o desafio da segurança alimentar global geral. Em
particular, quatro áreas-chave para ação em potencial se destacam:

Reduzir a proporção de alimentos que é desperdiçada;

Repensar políticas que apóiam os biocombustíveis mais ineficientes, principalmente
o etanol extraído do milho;

Persuadir a “classe média global” para adotar dietas mais eficientes em termos de
recursos;

Investir em áreas como educação de meninas, empoderamento das mulheres,
acesso a serviços de saúde reprodutivos e outras políticas que puderem ajudar a
estabilizar a população global em níveis estimados baixos – em vez de altos.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
21
Reduzindo a proporção de alimentos que são desperdiçados
Em termos gerais, o desperdício de alimentos ocorre em duas áreas da cadeia de oferta
de alimentos. Primeiramente, há desperdício associado a produção ineficiente –
principalmente em países em desenvolvimento, onde as perdas no pós-colheita
representam uma grande queda na produtividade de alimentos.
Em segundo lugar, porém, os alimentos também são desperdiçados no lado da demanda,
principalmente nos países desenvolvidos, onde uma quantidade surpreendente de
alimentos é desperdiçada. No Reino Unido, por exemplo, 8 por cento dos produtos de
laticínio são desperdiçados e poderiam ser evitados, assim como 10 por cento dos ovos,
13 por cento da carne e peixe, 17 por cento de cereais, 20 por cento de frutas, 24 por cento
de vegetais e 32 por cento de pão.29 Regulação mais rigorosa é necessária sobre
empresas de alimentos e supermercados para reduzir o desperdício de alimentos,
enquanto consumidores individuais também precisam assumir responsabilidade por reduzir
drasticamente a quantidade de alimentos que eles jogam fora.
Embora reduzir o desperdício de alimentos nos países da OCDE obviamente não
significa literalmente que os alimentos que teriam sido desperdiçados irão, em vez disto,
alcançar as pessoas pobres, o ponto fundamental é que um menor desperdício de
alimentos significa uma menor demanda – esta não é uma consideração trivial, com o
equilíbrio global da oferta–demanda de alimentos tão restrito como atualmente, e tendo
em vista que as 40 milhões de toneladas de desperdício de alimentos a cada ano por
famílias dos EUA, varejistas e empresas de serviço alimentar representam dinheiro
suficiente para atender as necessidades de todas as pessoas desnutridas do mundo
durante o mesmo período.30
Repensando as políticas de apoio ao biocombustível
A demanda por colheitas também poderia ser reduzida por uma reformulação das
políticas que apóiam os bicombustíveis – especialmente os mais ineficientes, e
principalmente o etanol extraído do milho.
Os biocombustíveis contribuem cada vez mais para a oferta global total de combustíveis
líquidos. Eles contribuíram com quase 75 por cento do aumento global líquido do
abastecimento de petróleo de países não pertencentes à OPEP em 2008 – um fato
altamente importante em termos políticos, pois os formuladores de políticas dos países
importadores de petróleo contemplam uma participação crescente da OPEP na
produção mundial de petróleo.31
E embora os biocombustíveis tenham contribuído apenas com 1.5 por cento do
abastecimento total do combustível líquido global em 2008, isto teve um enorme efeito
nos preços dos alimentos. O FMI observou que os biocombustíveis foram responsáveis
por quase metade do aumento do consumo de grandes produções de alimentos em
2006–7, principalmente devido ao etanol extraído do milho nos EUA. Em 2011, como
observado, cerca de 40 por cento da produção de milho dos Estados Unidos serão
destinadas a motores de carro em vez de cadeias de alimentos – um importante motivo
dos preços do milho terem atingido níveis históricos este ano.
Embora os EUA almejem uma posição de liderança global em alimentos –
particularmente através de sua iniciativa presidencial “Feed the Future “ [Alimente o
Futuro] – eles mantêm um silêncio deliberado sobre os efeitos que suas políticas do
etanol têm sobre os preços dos alimentos globais. Na verdade, a Administração de
Obama recentemente aumentou o apoio à indústria de etanol nos EUA ao alterar as
regulações da Agência de Proteção Ambiental para aumentar a quantidade de etanol
que pode ser adicionada à gasolina.
Isto é o oposto ao que os EUA deveriam estar fazendo se levassem à sério seu papel de
líder global em segurança alimentar. Em vez disto, eles deveriam anunciar uma
moratória no apoio ao etanol extraído do milho – uma forma altamente ineficiente de
biocombustível que se definharia caso o regime de apoio a esta política acabasse – e
outros regimes de apoio e subsídio nacional deveriam passar por uma revisão
22
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
independente para avaliar sua conformidade com os objetivos de segurança alimentar
global.
As políticas sobre biocombustível de outros países da OCDE são também seriamente
problemáticas. A União Europeia, por exemplo, tem em vigor uma política de obter 10
por cento de todos os combustíveis de transporte a partir de biocombustíveis até 2020.
Uma análise feita em 2010 pela ActionAid sugere que para alcançar esta meta, seriam
necessários cerca de até 17,5 milhões de hectares de terra de países em
desenvolvimento, mesmo antes de levar em conta a terra adicional que também seria
necessária para a produção de biocombustíveis em países desenvolvidos, e a produção
de alimentos que isto substituiria nos países em desenvolvimento.32 Mais recentemente,
o relatório do Conselho de Nuffield sobre Bioética concluiu que as políticas de apoio ao
biocombustível da UE e do Reino Unido haviam incentivado uma expansão
“insustentável” de biocombustíveis, e que políticas atuais deveriam ser substituídas por
uma abordagem “mais sofisticada” que leve em conta as consequências mais gerais da
produção de biocombustível.33
Incentivando dietas mais eficientes em termos de recursos
A “classe média global” está se expandindo e ficando mais próspera em um ritmo
surpreendente, em particular com as economias emergentes mantendo altas taxas de
crescimento econômico.
No processo, consumidores de classe média de economias emergentes estão
avançando em direção aos altos níveis de consumo de energia per capita dos
consumidores ocidentais – e também em direção a dietas “Ocidentais” ricas em carne,
laticínios e alimentos processados, sendo tudo isto muito mais intensivo de recursos em
termos de uso de grãos, intensidade de energia, uso de água, emissões de gases com
efeito estufa, e assim por diante.

Enquanto é preciso 500 litros de água para produzir um quilo de batatas e 1.900
litros para um quilo de arroz, por exemplo, são necessários 3.500 litros de água para
se produzir um quilo de aves – e 100.000 litros para um quilo de carne bovina cujo
gado é alimentado com grãos.34

O setor pecuário global é responsável por 18 por cento das emissões de gases
com efeito estufa em termos de CO2 – um percentual maior do que o setor de
transporte global.35

Os norte-americanos consomem aproximadamente 800 quilos de grãos per capita
por ano, sendo a maior parte consumida indiretamente como carne (apenas cerca
de 100 quilos são consumidos diretamente como pão, massa, cereais de café da
manhã e assim por diante). Na Índia, por sua vez, as pessoas consomem cerca de
200 quilos de grãos cada por ano, sendo quase tudo consumido diretamente para
satisfazer as necessidades básicas de energia.36
Se os consumidores da classe média global passassem para dietas mais eficientes em
termos de recursos, e em particular comessem menos carne, isto reduziria
significativamente a demanda por grãos para alimentar o gado e terra para pastagem, e
aliviaria uma ampla série de impactos ambientais, particularmente no cenário de
mudança climática.
Eles também seriam substancialmente mais saudáveis. Países desenvolvidos estão
enfrentando uma epidemia de excesso de peso e obesidade. Nos EUA, por exemplo, as
taxas de excesso de peso eram menos de 50 por cento durante a década de 1970, mas
estão cerca de 70 por cento atualmente e ainda estão crescendo acentuadamente. E
enquanto os Estados Unidos mostram a tendência mais claramente, taxas de sobrepeso,
obesidade e doenças associadas a elas estão crescendo constantemente em todos os
países da OCDE, onde os alimentos menos nutritivos tendem também a ser os mais
baratos.37 Economias emergentes estão rapidamente passando a seguir a mesma
trajetória.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
23
Neste sentido, a ocorrência na prática de uma projeção de demanda 50 por cento
superior daqui a duas décadas não é nem mesmo desejável, mesmo que isto fosse
possível, tendo em vista que uma grande proporção do aumento é responsável por uma
mudança para uma dieta menos saudável e mais intensiva de recursos. Consumidores
individuais podem, portanto, contribuir de maneira factível à justiça global e à
sustentabilidade ambiental ao fazer escolhas menos intensivas de alimentos e também
reduzindo a quantidade de alimentos que eles desperdiçam. Os governos precisam
tornar-se muito mais sérios em relação a refletir os custos ambientais e sociais de
diferentes tipos de alimentos através de reformas fiscais e medidas de persuasão para
os consumidores.
Níveis de população global
A questão dos níveis de população global é uma das mais cobradas e controversas na
agenda de segurança alimentar global.
Grande parte da controvérsia desta questão provém da bagagem histórica que data da
década de 1970. Em particular, o livro de Paul Ehrlich The Population Explosion [A
Explosão Populacional] apresenta uma história alarmista de crescimento populacional
exponencial e contribuiu para uma narrativa que pareceu atribuir a culpa às pessoas
pobres devido às taxas de crescimento populacional nos países em desenvolvimento –
em vez de atribuir a culpa a consumidores prósperos, com seus níveis de consumo per
capita muito superior.
Na verdade, o cenário global relativo à população atualmente está muito longe do
pesadelo malthusiano da imaginação popular. As taxas de crescimento da população
global tiveram seu auge em 1963, de 2,19 por cento ao ano, e agora esta taxa foi
reduzida para quase metade, chegando a 1.15 por cento ao ano. Se, conforme
projetado, as taxas de crescimento continuarem a declinar, a população mundial estaria
na verdade a caminho de se estabilizar no próximo século ou daqui a dois séculos.
Mas a questão da população ainda é importante para o desenvolvimento.
O crescimento populacional que resta estará altamente concentrado nos países em
desenvolvimento, muitos deles importadores líquidos de alimento com pouca dotação de
recursos, onde as tendências de escassez de recursos provavelmente terão um forte
impacto. Dadas as taxas de crescimento populacional maiores, estes países terão mais
a fazer para aumentar a produtividade da colheita ou importar mais alimentos. Em
termos mais gerais, Jeffrey Sachs argumenta que o crescimento populacional é
importante para o desenvolvimento porque:

As famílias não podem superar a pobreza extrema sem um declínio na taxa de
fertilidade;

Um país com rápido crescimento populacional enfrenta desafios fiscais intensos
apenas para manter a população, sem contar para alcançar o progresso econômico;

As consequências ecológicas e de renda (intimamente relacionadas) do rápido
crescimento populacional são devastadoras e

Altas taxas de crescimento populacional apresentam ameaças ao restante do mundo
ao aumentar a pressão para migração em massa e conflito local.38
Crucialmente, porém, há uma considerável incerteza nas projeções de crescimento
populacional porque muito depende de como as políticas futuras afetam as taxas de
fertilidade. Há muito mais incerteza sobre os níveis da população mundial futuros do que
o tão falado dado de aproximadamente 9 bilhões de pessoas até 2050 poderia sugerir:
embora a projeção média mais recente da ONU para 2050 ainda seja 9 bilhões, sua
variante baixa é inferior a 8 bilhões, enquanto sua variante alta para 2050 seja de cerca
de 10,5 bilhões.39
Estes níveis de incerteza fazem uma imensa diferença para países individuais, onde a
população será uma importante determinante da escala do desafio da segurança
alimentar de agora até 2050 (veja o Quadro 5).
24
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
Quadro 5: Como a população muda a escala do desafio: o caso da Etiópia
Na Etiópia, o desafio da segurança alimentar já é considerável, tendo em vista a alta
densidade populacional nas terras altas do país, produção agrícola plana, título de posse da
terra relativamente inseguro e oportunidades de emprego ruins fora da agricultura,
juntamente com a condição da Etiópia de importador líquido de alimentos sem saída para o
mar.
Embora todos estes fatores possam melhorar ou piorar substancialmente nas próximas
décadas, é a questão do crescimento populacional futuro que pode fazer a maior diferença.
Em 2005, a população da Etiópia era de 75 milhões, com uma taxa de crescimento
populacional de 2,61 por cento durante os cinco anos precedentes – um grande declínio
desde seu auge de 3.31 por cento entre 1990 e 1995, mas ainda alta em termos globais.
Olhando para frente para 2050, a ONU fez uma previsão de um cenário de variante média
de 174 milhões de pessoas na Etiópia, mesmo pressupondo uma taxa de crescimento
populacional que decline para 1,12 por cento entre 2045 e 2050. E tendo em vista o cenário
de variante alta, a população da Etiópia subiria para 196 milhões de pessoas em 2050.
Em um cenário de variante baixa, por outro lado, uma população de 153 milhões de
pessoas em 2050 continua significando um grande aumento nos níveis atuais, porém seria
um desafio muito mais fácil para a segurança alimentar do que ocorreria, em caso contrário.
Então, há um caso de desenvolvimento convincente para apoiar programas para reduzir
altas taxas de crescimento populacional. Crucialmente, porém, tais programas devem
estar baseados no princípio de garantir que as mulheres tenham o poder de fazer suas
próprias escolhas de planejamento familiar – uma tarefa que envolve não apenas
disponibilidade de contraceptivos e capacidade do sistema de saúde, mas também uma
agenda mais ampla de empoderamento das mulheres e (especialmente) educação para
as meninas.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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4 FAZENDO ACONTECER
Este texto apresenta uma estrutura para ação sobre acesso a alimentos e para aumentar
a resiliência do sistema de alimentação global. Mas uma questão crucial permanece:
como tudo isto será alcançado na prática? Esta seção final discute dois aspectos desta
questão: primeiramente, quais tipos de reforma multilateral podem ser necessários para
tornar as instituições internacionais mais efetivas ao lidar com questões de justiça
alimentar e, em segundo lugar, onde se encontram as oportunidades políticas cruciais
para se alcançar o progresso.
Em direção a um sistema multilateral que possa alcançar
resultados
Antes de avaliar quais tipos de reforma multilateral sobre segurança alimentar podem ser
necessários, é importante fazer uma pausa para avaliar quais funções precisam ser
realizadas em âmbito multilateral – em vez de serem deixadas a governos nacionais ou
na verdade a instituições de governança sub-nacional, comunidades ou famílias.
Quatro funções-chave para multilateralismo em segurança alimentar e a tarefa mais
geral de gerenciar os desafios de um mundo limitado em termos de recursos são:

Definição de agenda, realização de pesquisa, estabelecimento de padrões técnicos
e promoção da cooperação: o papel da ONU, por exemplo, em promover os
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, ou o trabalho de suas agências na
produção do relatório anual “State of Food Insecurity” [Estado de Insegurança
Alimentar].

Tomar decisões, barganhar e estabelecer regras: o papel do sistema multilateral em
promover todos os tipos de fóruns nos quais os governos reúnem-se para negociar
acordos sobre questões como financiamento do desenvolvimento, metas climáticas,
políticas comerciais e outras.

Fazer cumprir as regras e policiar os acordos: operando mecanismos de
acompanhamento para verificar se os estados-membros estão cumprindo seus
compromissos e, em alguns casos, gerenciar sistemas para forçar o cumprimento
através de mecanismos compulsórios.

Implementação direta: ação “na base” por agências internacionais em áreas de
assistência humanitária para programas de desenvolvimento de longo prazo e em
áreas de gasto de dinheiro para capacitação e oferecimento de assistência técnica.
Em cada uma destas áreas, porém, há a necessidade de uma reforma significativa do
sistema multilateral de como ele está configurado atualmente.
Definição de agenda e pesquisa: A necessidade-chave é de uma melhor integração
entre as diferentes agendas de políticas. No momento, o sistema multilateral está
fragmentado em numerosos “silos” de questões singulares: um grupo de agências lida
com alimentos e agricultura, outra com energia, outra com mudança climática e assim
por diante.
Na realidade, porém, estas questões coincidem em grande parte umas com as outras.
As políticas de alimentos e energia estão ligadas através dos biocombustíveis e a
intensidade de energia da produção de alimentos atual. A agricultura depende
fundamentalmente da disponibilidade de água. O acesso à água frequentemente
depende da disponibilidade de energia, como por exemplo para alimentar bombas
subterrâneas de água. A mudança climática afeta todas estas áreas.
Porém, apesar da importância crucial destes tipos de conexões, a questão dos silos
institucionais faz com que eles sejam frequentemente ignorados. Como exemplo, avalie
a questão da terra. A Agência Internacional de Energia quer ver a produção de
26
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
biocombustível global intensificada massivamente para reduzir a dependência do
petróleo da OPEP – o que exigiria grandes áreas de terra. Enquanto isto, o processo
climático da ONU está para expandir os incentivos para se evitar o desmatamento (e
potencialmente para o reflorestamento também) – que será uma outra grande fonte de
demanda por terra. Ao mesmo tempo, a Organização para Agricultura e Alimentação e
outras agências estão se concentrando na necessidade de produzir mais alimentos –
que provavelmente precisará de mais terra, além da maior produtividade por hectare.
Porém nenhuma agência tem o papel de “ligar os pontos” entre todas estas demandas
por terra potencialmente concorrentes – deixando o sistema multilateral sob risco de
promover agendas múltiplas que estão na verdade competindo umas com as outras.
Estas questões de “coerência de sistema” são inúmeras e várias soluções têm sido
propostas. Frequentemente, elas se concentram em “redesenhar o organograma” de
alguma maneira, como por exemplo criando novas agências ou fechando agências
antigas ou fundindo agências existentes ou ainda criando unidades conjuntas e assim
por diante. Porém, a longa experiência mostra que estes tipos de solução são
frequentemente difíceis de serem definidos em acordo e que eles não são
implementados integralmente mesmo quando há acordo (a Comissão da ONU para
Desenvolvimento Sustentável, visando unir os pontos nas áreas de desenvolvimento,
ambiental e outras áreas, tem sido vista em geral como uma Comissão que promove
discussões que nunca são colocadas em prática).
Em vez disto, talvez faça mais sentido ver o desafio como a melhoria da integração de
políticas em toda a arquitetura institucional que nós já possuímos através da criação de
mais incentivos para as agências trabalharem umas com as outras, gerando uma
conscientização compartilhada genuína, e no decorrer do tempo criando uma cultura de
“trabalho em conjunto”. Uma maneira de se fazer isto na prática seria os governos
utilizarem o encontro do G-20 ou do Rio 2012 para comissionar uma série de agências
internacionais para trabalharem juntas para produzir uma Previsão sobre Recursos
Mundiais que examinaria a questão dos alimentos, agricultura, energia, terra, água e
mudança climática. Esta proposta, endossada pelo Banco Mundial em seu Relatório de
Desenvolvimento Mundial de 2011, poderia potencialmente alcançar uma dupla vitória:
oferecer aos formuladores de políticas uma visão geral integrada que eles atualmente
não tenham, ao mesmo tempo forçando também agências internacionais diversas a
colaborarem para produzir um resultado compartilhado.
Tomar decisões, barganha e definição de regras: Está claro que há várias áreas em
que ação coletiva entre governos é necessária. Um acordo global para estabilizar o clima
é um pré-requisito para a segurança alimentar global. Uma rodada de comércio pródesenvolvimento é necessária, assim como ação para aumentar a resiliência do sistema
comercial durante os choques dos preços dos alimentos. São necessários muito mais
recursos financeiros para o desenvolvimento, tanto para a agricultura quanto para áreas
orientadas para resiliência discutidas na Seção 2 deste texto. Os governos precisarão
cooperar para levar adiante os sistemas de reservas de alimentos regionais ou globais.
Mas embora a necessidade de uma ação coletiva seja clara, a realidade é que as atuais
instituições multilaterais estão mal configuradas para apoiar e promover isto. Órgãos
tomadores de decisões que estão apenas focalizados em uma questão lutam para levar
em conta o cenário mais geral, frequentemente porque eles apenas engajam um tipo de
formulador de políticas (isto é, ministros do meio ambiente vão para encontros sobre
meio ambiente, ministros do comércio vão para encontros sobre comércio, ministros da
agricultura vão para encontros sobre agricultura e assim por diante). Consequentemente,
tem havido uma tendência nos últimos anos de transferir várias “questões difíceis” para o
nível de ministros de finanças e chefes de governo, especialmente através do G8 e mais
recentemente o G20. O sistema multilateral é particularmente fraco na área de gestão de
crise, onde frequentemente não está claro qual órgão de tomada de decisões deveria
coordenar: esta foi uma importante questão quando uma ação coletiva foi necessária em
2008 para interromper as proibições das exportações de alimentos, por exemplo.
Certamente, a falta de “faixas” multilaterais para lidar com questões globais complexas
como segurança alimentar, mudança climática e escassez de recursos não é a única
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
27
razão de não se estar alcançando progresso suficiente nestas agendas. A falta de
espaço político para soluções radicais, o fim da liderança de alto nível e em muitos
casos a falta de opções e soluções políticas que funcionem integralmente são todos
também grandes bloqueios. Mas mesmo se estas condições estivessem em vigor, a falta
de faixa multilateral ainda permaneceria um obstáculo crucial.
Assim como em relação à definição de agenda e pesquisa, a necessidade básica é de
uma conscientização e interoperabilidade muito mais compartilhada – algo que não será
alcançado da noite para o dia. Muito do progresso que é necessário terá de vir
inicialmente através de governos nacionais fazendo sua própria política tornar-se mais
coerente, tendo em vista que o sistema multilateral geralmente reflete o que acontece
em capitais nacionais.
Por fim, são necessários alguns tipos de órgãos legítimos tomadores de decisões sobre
questões econômicas internacionais, comparável ao Conselho de Segurança da ONU na
arena de conflito. O G20 não possui legitimidade para desempenhar este papel,
enquanto o Conselho Econômico e Social da ONU nunca se tornou o fórum que ele
visava ser. Mas no prazo mais imediato, existe – novamente – um risco real de que
energia política valiosa poderia ser desperdiçada tentando planejar um organograma
internacional racional, sem parar para perguntar qual ação coletiva precisa ser realizada.
Por enquanto, os governos devem trabalhar arduamente para tornar o Comitê sobre
Segurança Alimentar Mundial (CFS) da ONU um órgão efetivo tomador de decisões
sobre alimentos e questões agrícolas. Embora alguns sejam céticos sobre se o órgão
será efetivo – apontando, por exemplo, para a sua grande quantidade de participantes e
consequente dificuldade de ser gerenciado – ele recentemente foi reformado e poderia
potencialmente surgir como uma máquina para ação. O próximo passo deve ser para o
CFS concentrar-se em intermediar ação sobre um pequeno número de áreas específicas
e concretas e então acompanhá-las com equipes menores de ação de governos,
agências internacionais e outros agentes.
Fazendo cumprir as regras e policiando acordos: Está claro que os arranjos globais
atuais são lamentavelmente inadequados. Promessas financeiras são frequentemente
feitas e depois não cumpridas; ou descobre-se depois que o dinheiro nunca foi
realmente novo e adicional, para início de conversa, mas em vez disto, estas promessas
nada mais eram do que um “re-anúncio”. (Este foi um problema com muitas das
promessas nacionais feitas na área da agricultura e segurança alimentar no encontro de
cúpula do G8 de 2008 em L’Aquila, por exemplo, e tem sido um problema constante nas
discussões sobre finanças para adaptação climática).
Semelhantemente, acordos multilaterais sobre questões de desenvolvimento sustentável
e meio ambiente são desfeitos pela falta de mecanismos que obriguem seu cumprimento
em acordos de policiamento – em contraste radical com os poderes substanciais da
Organização Mundial de Comércio de fazer cumprir os acordos no contexto comercial.
O problema com estas falhas na implementação é duplo: não apenas as ações definidas
em acordo não são realizadas como também a confiança e boa vontade são também
destruídas para o futuro, prejudicando perspectivas de ação coletiva quando tal ação é
extremamente necessária. Como o prazo final dos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio de 2015 se aproxima, uma demanda fundamental deveria ser a de governos
concordarem com medidas de policiamento mais rigorosas para apoiar suas promessas
e compromissos: sem isto, o multilateralismo será constantemente arruinado.
Implementação direta: Muitas partes do sistema internacional precisam urgentemente
de reforma para que elas se tornem mais efetivas. Muitas agências individuais tem um
desempenho muito abaixo de sua capacidade: no contexto dos alimentos, a
Organização para Agricultura e Alimentação é um caso em questão, onde embora
algumas partes da organização sejam altamente efetivas, o órgão como um todo é
altamente burocrático e tem sofrido com uma fraca liderança nos últimos anos. Mas o
principal desafio é, novamente, de melhorar a coerência do sistema com um todo, tanto
em áreas especializadas (como assistência humanitária ) como também na questão de
desenvolvimento mais geral.
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Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
Reconhecidamente, alguns avanços modestos têm sido feitos nos últimos anos.
Algumas reformas foram feitas para a coordenação e financiamento humanitário na
época do Encontro Mundial da ONU em 2005. Mais recentemente, a abordagem de uma
“ONU Única” tem dado alguns pequenos passos em direção a aumentar a coerência das
agências da ONU na base. Mas a questão que realmente chama atenção é a coerência
do sistema internacional como um todo, e não apenas a ONU: instituições financeiras
internacionais como o Banco Mundial e o FMI, bancos de desenvolvimento regional e
todas as outras também precisam fazer parte da solução.
Uma área-chave onde progresso poderia ser potencialmente alcançado – ou onde,
contrariamente, problemas de incoerência poderiam se agravar bastante – é na grande
inovação institucional atualmente a caminho sobre mudança climática. Os recursos
financeiros para questões climáticas, tanto para reduzir as emissões quanto para a
adaptação, em breve deverão aumentar significativamente. Isto será especialmente
importante para a segurança alimentar e agricultura, tendo em vista sua importância
para a adaptação, assim como as próprias emissões substanciais da agricultura. É
extremamente importante que as finanças climáticas sejam expandidas, sejam unidas
efetivamente à assistência ao desenvolvimento já existente e baseadas nos princípios da
“boa doação” – algo que não irá acontecer sem um incentivo orquestrado.
Mapeando as oportunidades políticas
A agenda apresentada nas seções anteriores e na discussão sobre as instituições
internacionais imediatamente acima é bem ampla e pretensiosa e suscita a seguinte
questão: ela pode ser alcançada?
Examinando rapidamente o contexto político atual para segurança alimentar, escassez
de recursos e mudança climática, percebemos que ele não é encorajador. Como
acabamos de observar, as discussões atuais são prejudicadas pelo legado de um longo
histórico de promessas quebradas, falta de prestação de contas e acompanhamento
limitado. Processos intergovernamentais cruciais, tais como a Rodada de Doha e
conversas sobre um acordo climático sucessor a Kyoto, chegam perto de ser “zumbis
multilaterais” (cambaleando, nunca morrem realmente). Os 20 anos desde a realização
da ECO-92 (Cimeira da Terra) no Rio de Janeiro foram marcados pela não integração da
questão do desenvolvimento e meio ambiente, um problema que desafiará a segurança
alimentar ainda mais no futuro. Mesmo quando a necessidade de uma ação coletiva
entre governos torna-se cada vez mais urgente, as perspectivas disto acontecer
parecem estar se tornando mais limitadas.
Porém, mesmo neste contexto frequentemente desanimador, várias oportunidades
políticas importantes durante os próximos quatro anos já podem ser identificadas:

Primeiramente, vale a pena repetir que de maneira alguma todas as áreas-chave
para progresso dependem de cooperação internacional. Na verdade, grande parte
das ações ocorrerá individualmente dentro de países em desenvolvimento– seja na
expansão da agricultura, na expansão do acesso a emprego, proteção social ou
apoio a pequenos produtores rurais, ou na luta por divisões justas para todos de
recursos naturais como terra, água, pesca e florestas. Organizações da sociedade
civil têm um papel crucial para desempenhar na articulação das necessidades das
pessoas pobres nestas agendas políticas nacionais, assim como na direção do
apoio internacional de doadores e organizações de campanhas globais.

Em segundo lugar, o encontro do G20 de 2011 oferece uma grande oportunidade. O
governo francês tem tornado a questão da segurança alimentar um dos temas
principais de sua Presidência, e inclui as proibições das exportações e a
especulação financeira como áreas centrais em relação às quais ele deseja fazer
progressos. Embora é provável que se enfrente desafios para fazer com que os EUA
e as economias emergentes compartilhem destas agendas, existem contudo áreas
onde o progresso é possível – como por exemplo na melhoria dos mecanismos
internacionais para gestão de crises.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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
Em terceiro lugar, perspectivas para liderança econômica emergente em relação a
segurança alimentar e questões mais gerais sobre desenvolvimento sustentável
podem ser ampliadas pelo número de processos de reuniões de cúpula que eles
coordenarão durante os próximos 12 meses. A África do Sul sediará a Conferência
do Clima de dezembro de 2011 e o Presidente Zuma é também co-presidente do
atual Painel de Alto Nível da ONU sobre Sustentabilidade Global; O Brasil sediará a
Conferência Rio +20 sobre Desenvolvimento Sustentável em junho de 2012 e o
México presidirá o G20 durante 2012. Se estes governos forem capazes de
maximizar a coordenação entre estes encontros de cúpula, isto poderia aumentar
sua efetividade.

O prazo final de 2015 para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs)
oferece uma grande oportunidade para pressionar os países doadores a cumprir
suas promessas, ao mesmo tempo renovando e revitalizando a agenda de
desenvolvimento internacional. Isto oferecerá uma oportunidade especialmente
importante para abordar algumas das prioridades que foram pouco levadas em conta
(ou foram totalmente negligenciadas) nos ODMs – incluindo agricultura, emprego,
proteção social e população. Ao mesmo tempo, é também importante que a agenda
de desenvolvimento pós-2015 dê ênfase aos países de média - e também de baixa renda – tendo em vista que pesquisa recente sugere que três-quartos das pessoas
pobres vivem em países de renda média, e o fato de que as economias emergentes
são cada vez mais os modelos de desenvolvimento que os países de baixa renda
aspiram seguir.
Porém, embora estas possibilidades de oportunidade realmente ofereçam certo potencial
para progresso, elas não alteram o problema básico de que até agora, o espaço político
e liderança necessários para a agenda apresentados neste texto não estão ainda
abertos. O que, se é que isto é possível, alterará este obstáculo central?
A resposta-padrão a esta pergunta é que os choques e estresses agirão como
modificadores do jogo. Sem uma grande pressão global em relação à segurança
alimentar e desenvolvimento sustentável em termos mais gerais, a volatilidade – seja
dos preços dos alimentos, dos preços do petróleo, impactos climáticos ou outras áreas –
aumentará acentuadamente. Isto por fim forçará os formuladores de políticas a
engajarem-se mais seriamente e no processo criar o espaço político e liderança que
atualmente estão faltando.
Mas não há garantia que as políticas adotadas em tais condições seriam progressivas
ou em favor dos pobres. Pelo contrário, como o aumento acentuado do preço dos
alimentos mostrou, os choques podem apenas facilmente levar a adoção de
comportamento de soma zero entre os países, com os impactos sobre as pessoas
pobres raramente sendo considerados.
Parte da tarefa política para organizações como a Oxfam, então, é antecipar e estarem
prontas para as oportunidades políticas que surgem imediatamente após os choques,
quando as agendas políticas mudam e há inesperadamente o desejo entre formuladores
políticos e o público de “pensar o impensável”, mesmo que apenas por um breve período.
Isto exige um grande investimento em planejamento com antecedência – tanto em relação
a quais tipos de políticas devem ser defendidas quando as oportunidades surgirem quanto
em relação aos tipos de coalizões que serão necessárias para fazê-las acontecer.
Mas ao mesmo tempo, os defensores do desenvolvimento internacional não podem
simplesmente aguardar os choques e estresses para obter espaço político – porque todo
choque e todo estresse atingirão as pessoas mais pobres de maneira mais forte. Em
termos políticos, como as seções anteriores argumentaram, isto implica uma
necessidade de investir em resiliência e soluções de longo prazo sobre segurança
alimentar e escassez de recursos.
Mas em termos políticos, isto implica uma tarefa ainda maior: a de persuadir o público do
mundo inteiro sobre o imperativo moral de proteger as pessoas que vivem na pobreza
exatamente nos momentos em que as preocupações deste público são as de proteger
suas próprias famílias, comunidades e nações.
30
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
CONCLUSÃO
A alimentação tem sido sempre ao mesmo tempo uma necessidade humana básica e
um ponto de referência central na vida familiar, na sociedade e cultura. Agora, com a
humanidade enfrentando um importante período de transição global quando ela
confronta mudança climática, instabilidade econômica e limites ecológicos, a
alimentação estará na linha de frente do processo de mudança que já está se iniciando.
Existe grande possibilidade de que este processo pode ter uma conclusão bemsucedida, tendo em vista o espaço político, liderança de apoio, sistemas de governança
que funcionam e ideias visionárias. Até 2050, tendo em vista estas condições e com um
pouco de sorte, o mundo estará bem a caminho da estabilização climática, com a
economia de baixa emissão de carbono sendo uma realidade concreta constantemente.
A produção de seus alimentos será radicalmente diferente, sendo a agricultura um
mecanismo de sustentabilidade ecológica e restauração em vez de ser um conflito entre
eles. E a pobreza extrema pode ser não mais do que uma memória distante e ruim.
Mas se as próximas décadas realmente levarem a um resultado positivo, o processo
para se chegar lá provavelmente é instável, incerto e desconfortável. As pessoas pobres
e países pobres são mais prováveis de serem expostos aos choques e estresses de um
mundo em transição – frequentemente, através de impactos diretos em sua segurança
alimentar.
Assim, o desafio à frente é duplo. Primeiramente, garantir que conforme o mundo
começa a viver dentro de seus meios ecológicos, “espaço” ambiental suficiente é
salvaguardado para as necessidades do pobre – não apenas através de acesso a
alimentos, mas também acesso a terra, água, energia e outros recursos naturais
essenciais e serviços de ecossistema.
Em segundo lugar, garantir que as pessoas pobres estejam protegidas conforme o
mundo siga seu caminho para este novo estado – através de investimento real em
resiliência, dentro dos países e internacionalmente.
Nenhum destes desafios será fácil; ambos irão pressionar a engenhosidade humana até
o seu limite. Mas acima de tudo, este é um teste moral: um teste que pergunta, em um
momento em que a expansão da interdependência global nunca foi mais evidente, se a
humanidade está pronta para viver conforme suas grandes ideias em relação a quem
somos nós.
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
31
Notes
1
Sen A., Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and Deprivation, Clarendon Press (1981)
2
FAO /WFP, State of Food Insecurity in the World 2010
3
FAO Índice de Preço dos Alimentos: http://www.fao.org/worldfoodsituation/wfshome/foodpricesindex/en/
4
FAO / WFP, State of Food Insecurity in the World 2010
5
DFID, “Children and the Food Price Crisis”, Young Lives Policy Brief 5, setembro 2008
Evans A., The Feeding of the Nine Billion: Global Food Security in the 21st Century, Chatham
House, 2009
6
7
Walker B., Holling C.S., Carpenter S.R. e Kinzig A., “Resilience, Adaptability and Transformability
in Social-ecological Systems” em Ecology and Society, Volume 9, No. 2, Art 5, 2004
8
Heltberg, R. & Siegel, P.B. 2008. Climate Change: Challenges for Social Protection in Africa.
Texto para conferência sobre proteção social para os mais pobres na África. Washington DC,
Banco Mundial.
9
OIT, Recovering from the Crisis: A Global Jobs Pact, adotado na Conferência Internacional do
Trabalho, 98ª. Sessão, 19 de junho de 2009 – disponível em
http://www.ilo.org/public/libdoc/ilo/2009/109B09_192_engl.pdf
10
Banco Mundial, Agriculture for Development: World Development Report 2008
11 Green D., King R., Miller-Dawkins M., The Global Economic Crisis and Developing Countries,
Oxfam, 2010
12
Adaptado de Africa Climate Change Resilience Alliance, Consultation Document: the ACCRA
adaptive capacity framework, outubro de 2010.
13
Stern N., Key Elements of a Global deal on Climate Change, LSE, 2008; Jones L. et al,
Responding to a Changing Climate: Exploring how disaster risk reduction, social protection and
livelihoods approaches promote features of adaptive capacity, Overseas Development Institute,
2010
14
Smith D. e Vivekananda J., A Climate of Conflict: The Links Between Climate Change, Peace
and War, International Alert, 2007
15
DFID, Social Protection in Poor Countries. Social Protection Briefing Note no. 1., 2006
16
Organização Internacional de Trabalho: veja http://www.ilo.org/global/about-the-ilo/decent-workagenda/social-protection/lang--en/index.htm
17
Barrientos A. et al, Social Assistance in Developing Countries Database, Versão 5.0, Julho de
2010
18 Veja por exemplo o artigo conjunto do IDS / ODI / UEA / RHVP sobre Social Protection in Africa:
A Way Forward, 2010: http://www.odi.org.uk/resources/download/5010.pdf
19
Centro de Pesquisa sobre Pobreza Crônica, The Chronic Poverty Report 2008–09.
20
Exemplos extraídos de Barrientos et al, op. cit.
21 Trostle R., Global Agricultural Supply and Demand: Factors Contributing to the Recent Increase
in Food Commodity Prices, Serviço de Pesquisa Econômica do Departamento de Agricultura dos
EUA, 2008
22
Ibid.
23
Kharas H., Making Sense of Food Price Volatility, Brookings Institution, 2011
24 Robles M., Torero M. e von Braun J., When Speculation Matters, Instituto Internacional de
Pesquisa sobre Políticas de Alimentação, 2009
25
Dados do Bank of International Settlements: veja http://www.bis.org/statistics/otcder/dt1920a.pdf
32
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
26
Blas J., “Help ease food crisis by lifting export bans”, Financial Times, 7 de maio de 2011
27
Oxfam, The Time is Now: how world leaders should respond to the world food price crisis,
Briefing Note, 3 de junho de 2008
28
Banco Mundial, op. cit.; FAO, How to Feed the World in 2050, disponível em
http://www.fao.org/fileadmin/templates/wsfs/docs/expert_paper/How_to_Feed_the_World_in_2050.
pdf. Ambos os dados são de antes das demandas adicionais por colheitas para uso como
biocombustíveis serem consideradas.
29 Fonte: Departamento de Assuntos sobre Meio Ambiente, Alimentos e Rural do Reino Unido.
Citado em gráfico do Financial Times, 18-19 de setembro de 2010.
30
Stuart T., Waste: Uncovering the Global Food Scandal, 2009
31
Blas J., “Biofuel supplies set to surge, says IEA”, Financial Times, 11 de junho de 2008
32
ActionAid, Meals per Gallon: The impact of industrial biofuels on people and global hunger, 2010
33
Conselho de Nuffield sobre Bioética, Biofuels: Ethical Issues, 2011. Disponível em:
http://www.nuffieldbioethics.org/biofuels-0
34
Pimentel D., Livestock Production: Energy Inputs and the Environment, 1997; citado em
http://www.news.cornell.edu/releases/Aug97/livestock.hrs.html
35
FAO, Livestock’s Long Shadow: Environmental Issues and Options, 2006
36 Brown L., World on the Edge: How to Prevent Environmental and Economic Collapse, Earthscan,
2011
37
OCDE, Obesity and the Economics of Prevention: Fit not Fat, 2010
38
Sachs J., Common Wealth: Economics for a Crowded Planet, Penguin, 2008
39
Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, World Population Prospects: the
2010 Revision, em http://www.un.org/esa/population/unpop.htm
Governança para um sistema alimentar resiliente,
Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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Este texto foi escrito por Alex Evans, Centro sobre Cooperação Internacional, Universidade de
Nova York. A Oxfam agradece a assistência de Bruce Jones, David Steven e Emma Williams
em sua produção.
Esta publicação possui direitos autorais, mas o texto pode ser utilizado gratuitamente para fins
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Texto para Discussão da Oxfam, Junho de 2011
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