A desconstrução narrativa do discurso do poder em Os sertões1 Ronaldes de Melo e Souza - UFRJ A estrutura pressupositiva do conhecimento resulta da finitude radical da existência humana. Não se pode saber sem pressupor. A investigação de qualquer fenômeno pressupõe um contexto histórico-social previamente revelado, um ponto de vista prévio, capaz de regular os passos e trâmites da interpretação dos dados, e um esquema conceptual prévio, sem o qual impossível se torna traduzir em linguagem inteligível o sentido do fenômeno investigado. Não tem razão, portanto, o ditame positivista do conhecimento destituído de preconceitos. Nada se conhece sem preconceito, o próprio positivismo é um preconceito teórico que se desconhece. Compete ao pensador criticamente educado discernir entre os preconceitos legítimos e ilegítimos. O discernimento crítico do narrador de Os sertões desautoriza os estudos euclidianos que apontam os supostos erros positivistas de Euclides da Cunha. Os alegados deslizes euclidianos são projeções dos preconceitos dos intérpretes que se limitam a uma única perspectiva de interpretação, ignorando o estatuto multiperspectivado do narrador do drama dos canudenses. No final da "Nota Preliminar" à segunda edição de Os sertões, Euclides confessa que pretende permanecer fiel "ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero, que encara a história como ela o merece": ...il s´irrite contre les demis-vérités qui sont des demifaussetés , contre les auteurs qui n´altèrent ni une date, ni une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événements et en changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l´âme: il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et, parmi les anciens, en ancien (14) Berthold Zilly, na excelente análise comparada entre o Facundo de Sarmiento e Os sertões de Euclides, observa que a identificação do historiador Euclides com o historiador Taine não se realiza sem reservas. A passagem sofre significativo corte, 1 Texto apresentado no Seminário intitulado "Literatura e poder", promovido pela UFF em 2004 sinalizado por reticências, antes de ser transcrita. Zilly traduz a seqüência que contextualiza a transcrição euclidiana e interpreta o motivo da omissão da parte referente à verdade absoluta da ciência: Estimem o historiador que trate a história como ela o merece, isto é, como ciência (...). Pois ele só aprecia o verdadeiro absoluto, ele se irrita contra as semi-verdades, que são semi-falsidades, contra os autores que guardam o desenho dos acontecimentos e modificam a sua cor, que copiam os fatos e desfiguram a alma: ele quer se sentir como bárbaro entre os bárbaros, e entre os antigos como antigo" (H. Taine, Essai sur Tite-Live. Paris, Hachette, 1888, p. 30). É significativo a citação de Euclides só começar com "il s´irrite", ficando, portanto, fora a reivindicação de que a história seja uma "science" e uma busca do "vrai absolu". Em vez disso, Euclides acentua a necessidade da empatia que em Taine está mais bem ao serviço da neutralidade, da proximidade sempre igual do historiador com todos os seus protagonistas e portanto da imparcialidade. Não surpreende Sarmiento começar o seu livro, na introdução, com um nome que vai na direção euclidiana (...). A empatia, uma certa pluriparcialidade é programática nos dois autores, mas em Sarmiento ela fica, principalmente em relação ao povo e aos inimigos, bastante subliminar, devido ao seu temperamento egocêntrico, partidário, pragmático. Em Euclides, ela é mais generalizada, justa, equitativa, menos partidária, pois a sua compaixão é suprapartidária, estendendo-se a homens de todas as condições, plantas, animais, pedras, a todos os seres sofridos e martirizados (Zilly, 2001, 300, 68n.) Desde a identificação reticente com o historiador postulado por Taine, o historiador euclidiano se revela irônico. A ironia se manifesta inteiramente quando o narrador sincero de Euclides se reveste de três máscaras narrativas. Por um lado, o historiador que se diz sincero assume a máscara narrativa do partidário veraz da história, que está disposto a reconhecer a verdade para além da falsa consciência da opinião pública dominante. Por outro lado, a ironia se fortalece quando se percebe que o narrador sincero da guerra de Canudos "encara a história como ela o merece". Como a guerra movida pelo poder central contra os sertanejos rebeldes depõe contra o governo, o país terá de ouvir a voz incômoda da segunda máscara narrativa do narrador sincero, que se nos apresenta como justiceiro que defende, perante o tribunal da história, os marginais oprimidos. Finalmente, o narrador sincero se despega da visão ideologicamente distorcida dos senhores do poder e se equipara aos humilhados e ofendidos, não mais ironicamente, mas com a força da empatia da terceira máscara narrativa, representada pelo historiador participante, que narra a história do ponto de vista dos vencidos, emocionalmente sintonizado com os canudenses. Em relação à 2 verdade oficial correspondente ao discurso do poder, que mobilizou o país e motivou a intervenção militar, a máscara, a persona, a atuação funcional do historiador participante se revela radicalmente irônica. Paladino dos alegados ideais republicanos, autor de dois artigos que denunciam a rebelião de Canudos como a Vendéia brasileira, o engenheiro militar e tenente reformado Euclides da Cunha segue para Canudos para desempenhar a função de repórter do jornal republicano O Estado de São Paulo. Em Canudos, é nomeado adido ao Estado-Maior do Exército Brasileiro, com direito à ordenança, para a cobertura da guerra. Enquanto historiador de Os sertões, Euclides se revela insincero com o patriotismo farfalhudo da oligarquia travestida de república, precisamente porque se comporta como advogado de defesa dos supostos monarquistas sertanejos. O historiador sincero não se credencia pelo tom neutro e imparcial do cientista louvado por Taine. Pelo contrário, a militância participativa do historiador euclidiano se traduz na dissonância irônica da voz que interpela os vencedores e na consonância trágica da voz que se compadece dos vencidos. Na verdade, o narrador euclidiano submete o discurso do poder vigente no Brasil de então a uma desconstrução narrativa genuinamente irônica. O historiador sincero ironiza toda a campanha de Canudos. Ao relatar a chegada da primeira expedição regular ao vilarejo de Monte Santo, nota que "as autoridades receberam os lutadores em triunfo, antes da batalha" (216). Acrescenta que oficiais e praças engalanaram o arraial e realizaram uma festa. Percebe que muitos sertanejos acorrem ao arraial, atraídos pelos festejos. Imagina a reação dos vaqueiros que contemplam a cena festiva e traduz as suas emoções através da técnica especificamente ficcional de representação da experiência de um outro eu. Assume o estatuto peculiar do narrador de ficção ao ter acesso à interioridade dos personagens: E aqueles titãs enrijados pelos climas duros, estremeciam dentro das armaduras de couro considerando as armas portentosas da civilização (217) Aperta mais o foco, aproxima-se dos espectadores e, valendo-se da dialética da ficção narrativa, que se distingue como diálogo do narrador e do refletor, o historiador reflete os eventos na reação mental e emocional dos personagens: 3 Outros ali ficavam, encapotados, contemplando tudo aquilo com ironia cruel, certos do prelúdio hilariante de um drama doloroso. O profeta não podia errar: a sua vitória era fatal (217). No texto supracitado, o narrador se ficcionaliza ainda mais ao adotar o estilo indireto livre, particularmente expresso no segundo período como verdadeiro monólogo narrado: "O profeta não podia errar: a sua vitória era fatal". A voz não pertence ao narrador, mas aos sertanejos convertidos em refletores. A dialética especificamente narrativa, em que o narrador se limita a narrar o monólogo do personagem, constitui o suporte ficcional, a que se reporta a narrativa essencialmente irônica de Os sertões. Na cena da festa, por notável exemplo, depois de servido o banquete, "preparado na melhor vivenda", e acompanhado de discursos grandiloqüentes, o narrador ironiza a eloqüência militar, "feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando" em que "as palavras mágicas - Pátria, Glória e Liberdade - ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes" (217). A fim de traduzir a concepção dos militares acerca dos inimigos, o narrador ironicamente se desdobra no mediador ficcional e focaliza, na perspectiva interna dos soldados transformados em refletores, o destino que aguarda os rebeldes de Canudos: Os rebeldes seriam destruídos a ferro e fogo... Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos tabuleiros vastos, deixariam sulcos sanguinolentos. Era preciso um grande exemplo e uma lição. Os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições, requeriam corretivo enérgico. Era preciso que saíssem afinal da barbaria em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização a dentro, a pranchadas (217-8). O leitor desavisado da convenção ficcional da dupla mediação narrativa do narrador e do refletor costuma atribuir a Euclides uma visão preconceituosa acerca dos sertanejos rebeldes. Até mesmo críticos experientes cometem o erro de apontar em Euclides deslizes conceptuais que não pertencem nem mesmo ao narrador euclidiano. Na seqüência supracitada, os traços negativos dos "criminosos retardatários" não decorrem da visão do narrador, mas do refletor coletivo, representado pelo soldados do governo. A ironia do narrador vinculado ao refletor coletivo se patenteia na comparação poética das rodas dos canhões Krupp com as imagens altiloqüentes das 4 rodas dos carros de Shiva, o deus dos guerreiros védicos. O narrador, reticente e irônico, arremata a narrativa da cena festiva dos soldados que alardeiam vitória antes da batalha com o registro da realização imprudente de uma festa inoportuna, "na véspera dos combates, a dous passos do sertão referto de emboscadas..." (218). Além de interagir ironicamente com personagens refletores, o narrador euclidiano assume a máscara do investigador dialético com o deliberado propósito de propor e argumentar a tese de que a complexidade do problema etnológico e religioso no Brasil constitui o suporte a que se reporta o enigma histórico de Canudos. A peculiaridade do ponto de vista do investigador dialético revela um estado de confusão que requer elucidação. Na demanda processual da investigação, não se tem a certeza de algo passível de reconhecimento adequado. O cogito cartesiano revela a sua insuficiência teórica, exigindo a sua substituição por um cogito discursivo, capaz de manter um diálogo intertextual com outros discursos, precisamente aqueles que demarcaram historicamente o sentido do fenômeno investigado. O estado de indeterminação do investigador dialético não consiste em ter ou não ter saber, mas em ter não se sabe bem o quê. Na perspectiva do narrador que se põe a caminho para adquirir o conhecimento, ver não significa projetar o esquema conceptual de um ponto de vista prefixado, mas ser afetado pela complexidade do que se vê. Na presunção de que o estado de confusão resulta da circunscrição de um ponto de vista que não se tematiza nem se investiga a si mesmo, o investigador dialético pressente a possibilidade de um enfoque mais esclarecido e condizente com a significação excessiva da transcendência de um eventual sentido a haver. Na ampliação e desdobramento das perspectivas que permitam focalizar, numa angulação múltipla, o fenômeno extraordinariamente complexo da formação do homem brasileiro e do sentido histórico da comunidade de Canudos, o narrador euclidiano mobiliza o ponto de vista leibniziano. O próprio Euclides se confessa de acordo com a amplitude do multiperspectivismo de Leibniz, sobretudo quando se trata de definir a natureza deveniente do homem: Como o átomo na química ou o infinitamente pequeno na matemática, o homem, em sociologia, tem a existência subjetiva de um tipo abstrato. (...) 5 Aí, como o dx de Leibniz, ele exprime uma abstração imensa; é uma construção lógica e as suas propriedades características não são as que hoje tem, mas as que terá após um aperfeiçoamento excessivamente remoto (Cunha, 1966, 563). O investigador que se associa ao narrador é dialético, porque adota uma visão multiperspectivada, que lhe permite toda sorte de expediente discursivo, inclusive o que reivindica o direito à contradição. Na ampla discussão com outras visões discursivas, descarta a seqüência dedutiva do raciocínio formalizado ao utilizar argumentos que se contradizem. Não obedece ao processo indutivo de argumentação, pois avança induções de variada natureza. As possibilidades lógicas de argumentação científica, a da validade dedutiva e a da força indutiva, são suplantadas pelo saber em constituição, que transcende o saber alcançado e estabelecido. Em todos os passos e trâmites exegéticos, o investigador dialético não se restringe à exposição dos resultados obtidos pelo conhecimento científico nos diferentes ramos do saber acumulado em torno da questão relativa à formação do povo brasileiro. O que ele sempre expõe são os meandros da investigação em marcha. No lento tatear do trabalho de pesquisa, o procedimento dialético se legitima como única via real do pensamento que se reconhece numa situação aporética, não porque lhe falte vigor cognitivo, mas porque, já de si, o objeto se impõe como aporia, desafio à resolução, enigma a ser decifrado. No exame prévio das dificuldades suscitadas pelos intérpretes que o antecederam na avaliação do entrecruzamento étnico no Brasil, o investigador dialético se prepara para uma resolução mais compreensiva da realidade nacional. Na audição das várias vozes que se pronunciaram sobre o problema em foco, ele pondera todos os argumentos em conflito, como se fossem partes em juízo. Ao trazer ao debate dialético as opiniões dos predecessores, utilizando-as como momentos da argumentação do contraditório, o narrador euclidiano se arma para melhor julgar o tema em litígio. O início da segunda parte de Os Sertões, intitulada O Homem, constitui o preâmbulo anunciador de um longo debate dialético, que desempenha função equivalente à do prólogo dramático com que se inicia a primeira parte, denominada A Terra, na medida em que antecipa o tema do mestiço, o motivo de seu comportamento 6 e o tom polêmico da narrativa que relata o drama da formação do homem brasileiro. O estatuto artisticamente calculado da narrativa se evidencia na correlação estabelecida pelo narrador entre a formação da terra e a formação do homem. Na terra do homem e no homem da terra, o ser somente é enquanto devém. Não surpreende, portanto, que o narrador se nos apresente em devir, mobilizado no ritmo de transe da mutação vertiginosa de perspectivas discursivas: Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos. Está apenas delineado (Cunha, 2000, 67). Em cinco páginas (67-71), o narrador apresenta o problema da antropogênese brasileira através do perspectivismo discursivo. À luz das investigações antropológicas brasileiras, compendiadas nos estudos sobre a pré-história indígena, o autoctonismo das raças americanas "parece definitivamente firmado, contravindo ao pensar dos caprichosos construtores da ponte Alêutica". Elencam-se os autores que defendem o caráter autóctone do homo americanus: Wilhelm Lund, Morton, Frederico Hartt, Meyer, Trajando de Moura, Nott e Gliddon. Ao acrescentar os dois outros elementos formadores, o homo afer, filho das paragens africanas, e o português, vinculado "à vibrátil estrutura intelectual do celta", o narrador se apressa em reconhecer que "pouco nos temos avantajado" no considerar "todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares": Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intrincada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas a incógnitas (68). Confutando a tipologia binária da "lei antropológica de Broca" com o argumento de que a combinação ternária do índio, do branco e do preto determina, no caso brasileiro, três outras combinações binárias, numa "mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mameluco ou curiboca, e o cafuz", o investigador dialético adverte que o brasileiro, "tipo abstrato que se procura (...) só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo" (69). Ao considerar a "intrusão - pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias -", o narrador se comporta como mediador crítico das disparidades de vistas dos 7 antropólogos. As pesquisas antropológicas se lhe afiguram incompatíveis com a complexidade da etnogonia brasileira, não só porque privilegiam um determinado tipo étnico no processo da fusão racial, exagerando, por exemplo, a influência preponderante do índio ou do preto, mas também porque negligenciam "os materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica" (70). Em contraposição ao escopo das investigações que se reduzem "à pesquisa de um tipo étnico único", o narrador euclidiano reconhece a contextura multirracial do brasileiro: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca (71). Na análise da fusão dos estádios emocionais distintos como índice da vida de três povos, o investigador dialético se desloca de uma perspectiva analítica para outra a fim de se haver com o sentido complexo do sincretismo religioso brasileiro. Na tentativa de elucidar a mestiçagem de crenças, o narrador aciona o dispositivo dialético da interdiscursividade generalizada, assumindo máscaras exegéticas diversas. No curto espaço de cinco páginas (124-128), realiza uma mutação vertiginosa de perspectivas analíticas, modificando várias vezes o enfoque hermenêutico. O ponto de vista euclidiano do narrador mutante se modifica a cada página. Inicialmente se argumenta que o insulamento do sertanejo no interior do país "remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico", deixando-o submetido ao regime de fascinação "de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano". Ainda de acordo com esta ordem de raciocínio, "as superstições mais absurdas" são agravadas pela mutualidade dos influxos inerentes à vida de três povos. Enumeram-se (124-5) as "lendas arrepiadoras" do caapora, dos sacis, dos lobisomens e mulas-sem-cabeça, "todas as tentações do maldito ou do diabo - esse trágico emissário dos rancores celestes em comissão na terra", as rezas dirigidas a S. Campeiro, as benzeduras cabalísticas, as aparições fantásticas, "as profecias estrúxulas de messias insanos", as romarias piedosas, as missões, as penitências, tudo, enfim, que indicia "uma mestiçagem de crenças": Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização. 8 Este último é um caso notável de atavismo, na História (125). Assumindo uma perspectiva através dos séculos pretéritos, o narrador euclidiano nota a similitude entre as agitações religiosas do sertão e as convulsões religiosas do povo português que, "após Alcácer-Quibir, em plena 'caquexia nacional', segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas" (125). "Mas não antecipemos", adverte o investigador dialético imediatamente depois da comparação entre os evangelizadores messiânicos do sertão e os profetas peninsulares de outrora, como "o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras" (125-6). Esclarecido pela perspectiva através dos séculos, que lhe permite visualizar o Quadro das Instituições Primitivas, de Oliveira Martins, o narrador euclidiano maliciosamente sugere que o fanatismo religioso não se limita ao barbarismo mestiço, mas compreende o vasto âmbito da civilização ocidental, exemplarmente expresso no sebastianismo português. O reconhecimento da indistinção entre barbárie e civilização, que constitui um dos motivos recorrentes da narrativa euclidiana da disputa dos exércitos em luta, já se insinua na caracterização do sincretismo religioso. Desafogado pela ampla perspectiva, que descerra a amplitude universal dos acertos e desatinos humanos, o narrador crítico subitamente se transforma no observador comovido: Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registo paupérrimo, à meia-luz das candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, encanta-se (126). Impressionado com a pompa do culto dos mortos, em que o defunto figura como um bem-aventurado que se liberta do exílio na terra, o narrador sente-se atraído pelo ritual fúnebre do sertanejo que celebra o falecimento de uma criança como um dia de festa, mas, numa guinada repentina, tão característica do investigador dialético, manifesta repúdio pelos "traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou maculam" (127). Na justaposição descontínua dos "aspectos tão interessantes" e das "aberrações brutais", 9 traduz-se a dupla mediação da consciência crítica do narrador e da experiência emocional do observador. A mediação torna-se mais complexa quando se nota que o próprio observador se duplica na vivência dramática de duas emoções contrárias, uma de terna compaixão e outra de insuportável pavor. Este observador emocionalmente cindido constitui a confirmação de que o influxo do drama trágico na estrutura narrativa de Os Sertões é tão intenso, que comparece até mesmo nas seqüências analíticas de "O Homem". Como sublinha Eudoro de Sousa, na introdução à sua belíssima tradução da Poética de Aristóteles, as duas emoções trágicas por excelência, éleos e phobos ou compaixão e terror, provocam no observador o efeito trágico da tensão dramática dos sentimentos: A piedade, comiseração ou simpatia, é a tonalidade emocional de uma atração; o terror, medo ou angústia, é a tonalidade emocional de uma repulsão (Aristóteles, 1992, 100). A complexidade da mediação narrativa de Os Sertões, que a singulariza no contexto literário nacional e internacional, solicita do leitor uma atenção redobrada, sem a qual facilmente se comete o erro, secularmente repetido, e ainda dominante na bibliografia crítica euclidiana, de conceber uma das múltiplas perspectivas narrativas como se fosse a perspectiva geral do narrador euclidiano. Luiz Costa Lima, em livro recente, argumenta a tese da concepção totalista da ciência euclidiana (Lima, 1997). Nem mesmo o vigor teórico e o rigor metodológico do renomado crítico conseguem filiar Euclides a uma corrente epistemológica. Apesar da argumentação cerrada, a tese de Luiz Costa Lima permanece indemonstrada, porque pressupõe a indemonstrável mentalidade positiva e cientificista de Euclides. Análises positivistas ressoam em Os Sertões, mas muitas outras vozes se fazem ouvir. Na cena fundamental da narrativa euclidiana, o narrador atua como ator dramático, que não possui um caráter definido, mas assume caracteres para representar, em múltiplas perspectivas, a excessividade da Terra ignota. Nas "Notas à 2ª Edição" de Os Sertões, Euclides reage à objeção de um crítico que o recrimina pelo teor genérico de uma frase pinçada e abstraída do contexto dialético da exposição narrativa. Trata-se da frase em que o narrador se refere à sociedade de Canudos, chamando-a de uma "sociedade velha, uma sociedade morta, 10 galvanizada por um doudo". A reação de Euclides não deixa nenhuma dúvida acerca do caráter radicalmente dialético de seu narrador: Ao falar em sociedade morta, referi-me a uma situação excepcional da gente sertaneja corrompida por um núcleo de agitados (pág. 206). O mesmo paralelo feito na mesma página com estados idênticos de outros povos, delata-lhe o caráter excepcional. De modo algum enunciei uma proposição geral e permanente, senão transitória e especial, reduzida a um fragmento do espaço - Canudos - e a um intervalo de tempo - o ano de 1897 (Cunha, 2000, 507). O observado depende da instância do observador. O evento narrado é pendente do narrador. Em Euclides, narrar significa inserir a situação narrativa no horizonte radicalmente finito do espaço-tempo. Na espacialização temporal e na temporalização espacial, a perspectiva do narrador euclidiano se mantém na demanda processual do sentido que se revele capaz de assinalar a heterogeneidade radical do homem do sertão e a diversidade qualitativa do mundo do sertão. Não há um, mas diversos mundos. Por isso mesmo, o plural intitula o livro Os Sertões. Somente a formação cartesiana leva o sujeito à fé dogmática em uma instância única de observação. Euclides assume diversas instâncias de observação, numa investigação multidisciplinar e até mesmo transdisciplinar, ampliando o círculo da compreensão da realidade brasileira. Não acredita nos enunciados abstratos e genéricos da ciência físico-matemática. Na dialética narrativa de Os Sertões, o sentido do enunciado somente é consentido pela enunciação dramática. O real se representa poeticamente como realizável, e não cientificamente realizado. À assertiva de que "passou pelo sertão um frêmito de nevrose..." (127), o investigador dialético contrapõe o argumento de que "fatos igualmente impressionadores contrabatem tais aberrações", acrescentando que a alma de um matuto "pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento": Vimo-la, neste instante, desvairada pelo fanatismo. Vejamo-la transfigurada pela fé (128). O próprio narrador se caracteriza como investigador dialético ao convidar o leitor para o exercício complexo de uma visão dual, em que possível se torna focalizar os aspectos repulsivos e atraentes do fenômeno investigado. Para além da mirada monocular de quem contempla a realidade, classificando-a em compartimentos demarcados de uma vez para sempre em oposições irredutivelmente antagônicas, o 11 narrador euclidiano adota um ponto de vista mais abrangente, capaz de perceber a natureza ambivalente do homem em geral e do sertanejo em particular. Mais do que dual, a perspectiva requerida pelo investigador dialético se desdobra em múltiplos enfoques hermenêuticos. Não se imobiliza jamais numa conclusão efetiva e concludente: As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos sequer (127). A mutação vertiginosa de perspectivas discursivas se comprova copiosamente na seqüência composta de sessenta e oito parágrafos, em que o narrador muda de ponto de vista quase a cada parágrafo, e até mesmo no interior de um parágrafo, no denodado esforço de compreender a estranha personalidade de Antônio Conselheiro. A passagem, bastante longa, se transcreve com os cortes inevitáveis. A fim de facilitar a identificação, acrescenta-se a cada parágrafo o algarismo correspondente à ordem de paragrafação. Os saltos numéricos assinalam os parágrafos omitidos na transcrição. As reticências entre parênteses sinalizam cortes no interior do parágrafo: 0l) É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária Antônio Conselheiro... 02) A imagem é corretíssima. 03) Da mesma forma que o geólogo interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modadalidade qualquer de psicose progressiva. Mas posto em função do meio, assombra. É uma diátase, e é uma síntese. (...) Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais - vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade. 04) Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. (...) 05) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade... 06) Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda; acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos. 08) Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva. 11) Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista encontrá-lo-ia normal, marcando logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da 12 evolução. O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização - um anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro da nossa era, aspectos religiosos vulgares. Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em períodos angustiosos da vida portuguesa. 12) Poderíamos apontá-los em cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja, quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na última fase do mundo romano em que, precedendo o assalto dos Bárbaros, a literatura latina do Ocidente declinou, de súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio. 13) Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiólatras, os maniqueus bifrontes (...) forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E eram normais. (...) 14) A história repete-se. 15) Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco. 17) Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que patenteou, caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência intelectual, mas não o isolou - incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde - no meio em que agiu. 18) Ao contrário, este fortaleceu-o . Era o profeta, o emissário das alturas (...) tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. 19) A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia. 22) A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. 69) ... E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apóia o passo tardo dos peregrinos... (Cunha, 2000, 132-142). O investigador dialético aciona o dispositivo interdiscursivo na tentativa de decifrar o enigma de Antônio Conselheiro. A pergunta que se interroga pela natureza de sua personalidade se desdobra em diversas interrogações. Quem é Antônio Conselheiro? Depende da formação discursiva de quem pergunta. Todo discurso articula uma perspectiva teórica, condicionando a resposta compatível com o seu esquema de inteligibilidade. A função do narrador vinculado ao investigador dialético consiste em tornar perceptível a variação do sentido do personagem através das múltiplas perspectivas diligenciadas pelos discursos do geólogo, do historiador, do sociólogo, do psiquiatra, do antropólogo, do hermeneuta da religião, do psicólogo 13 social, do discurso dos canudenses. A representação do conhecimento fornecido pelo investigador dialético não obedece à distinção epistemológica entre conceitos e imagens. No parágrafo primeiro, o conceito geológico da anticlinal se converte em imagem, transformando-se, como bem assinala o geólogo e historiador José Carlos Barreto de Santana, em metáfora geológica: A anticlinal, uma dobra com a convexidade voltada para cima e os flancos para baixo, é um resultado de forças tectônicas compressivas sobre as rochas. Antônio Conselheiro, como a dobra, teria se originado das forças internas à sociedade sertaneja, dela se destacando apenas em função do rebaixamento do meio que o cercava, e se destinou à história como poderia ter seguido para o hospício (Santana, 1998, 127). A metáfora geológica prepara a visão, no terceiro parágrafo, do historiador revestido da argúcia do psicólogo social. Na teoria euclidiana do conhecimento, uma disciplina existe, porque coexiste com outra. Na análise psicológica vulgar, que isola o paciente como se o seu complexo fosse individual, o personagem "se perde na turba dos nevróticos vulgares". Historicamente analisado na perspectiva mais ampla da psicologia social, não parece desequilibrado. Na utilização metafórica do conceito médico de diátase com a significação de disposição moral mórbida, a sua estatura se eleva. Implicitamente se afirma que não se deve atribuir ao indivíduo o que pertence à sociedade em que vive. "É uma diátese, e é uma sintese" do meio social. Visto, nos parágrafos quarto e quinto, na ampla perspectiva através dos séculos, Antônio Conselheiro transcende o seu meio impregnado de crenças mestiças, adquire relevo histórico, irmanando-se, nos parágrafos l0-15, com antecessores ilustres, que remontam ao período helenístico-romano, como os "montanistas da Frígia, os adamitas infames, os maniqueus bifrontes". A ironia do narrador transparece na enunciação curta e incisiva: "E eram normais". O narrador questiona a insanidade do Conselheiro ao chamá-lo de "gnóstico bronco". No parágrafo oito, o profeta de Canudos se nos apresenta na inspecção superciliosa da clínica médica como paciente paranóico. Numa reversão dialética, o décimo-sétimo parágrafo se contrapõe ao oitavo: "Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro". Alega-se que o seu "temperamento vesânico" não o isolou "no meio em que agiu". No décimooitavo parágrafo, o narrador se intimiza com os canudenses ao representar Antônio 14 Conselheiro na perspectiva de seus discípulos: "Era o profeta, o emissário das alturas (...) tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação". No vigésimo-segundo parágrafo, inicia-se o amplo enfoque biográfico, que culmina no parágrafo sessenta e oito. As vicissitudes dramáticas da vida de Antônio Vicente Mendes Maciel são apresentadas como motivações possíveis da conversão religiosa que o tornou venerado como Antônio Conselheiro. Narram-se os dois acontecimentos que lhe marcaram a vida. O primeiro se refere à luta entre os Maciéis e os Araújos, que durou anos, causando muitas mortes entre as famílias em litígio. O segundo se relaciona com a sua mulher, que o abandona e foge com um sargento de polícia. No parágrafo sessenta e nove, o narrador se desvincula do investigador dialético e assume a máscara do poeta dramático. As várias definições discursivas são finalmente suplantadas pela visão trágica de Antônio Conselheiro. O narrador que se veste e se desveste de máscaras, assumindo várias perspectivas discursivas, mas não se fixando em nenhuma, frustra a expectativa do leitor habituado à inflexão inercial da mediação simples da narrativa, que apresenta sempre um ponto de vista retilíneo e uniforme. Até mesmo a tradição crítica de receptores especializados na arte literária euclidiana sente certo desconforto, porque persiste na tentativa malograda de atribuir ao narrador um perfil definido. Walnice Nogueira Galvão, autora da definição que mais se compatibiliza com o comportamento do investigador dialético, revela-se apreensiva, não porque o narrador não mantenha um único ponto de vista, mas porque ele não realiza uma síntese dialética dos vários enfoques exegéticos. A exímia estudiosa se preocupa em saber o motivo por que o narrador se furta ao desempenho hegeliano da superação dos contrários em disputa. Fica incomodada com a exposição euclidiana de uma dialética sem síntese. Mas define com exatidão admirável a complexidade do investigador dialético: O que temos aqui é um imenso diálogo a muitas vozes, mediadas pelo narrador. A massa de conhecimentos e de nomes de autoridades nesses conhecimentos com que Euclides enche as páginas de seu livro aparece em forma ou de citações ou, muito mais freqüentemente, de paráfrases. A paráfrases seguem paráfrases, quase sempre em desacordo total ou parcial. O andamento da narrativa, que procede por antíteses e não por sínteses, torna-se uma polifonia exasperada. Uma autoridade num dado saber disse algo a respeito de um assunto, e sua 15 paráfrase aparece devidamente na continuidade da narrativa, para em seguida outra autoridade, que disse algo que é diverso ou contrário à anterior, achar-se também parafraseada. (...) Tudo se passa sob as espécies de um simpósio cujos convivas estão ausentes mas suas idéias em entrechoque os substituem em presença viva nas páginas do livro. (...). A postura do narrador - esse narrador que, manejando a intertextualidade, finge a representação de um simpósio de sábios - é peculiar. Intromete-se naquilo que está narrando, em tom conspícuo, e com alguma freqüência apostrofa os autores e seus assuntos, sempre no plural majestático. O narrador reveste a persona de um tribuno, discursando para persuadir (Galvão, 1994, 626-7). O valor heurístico da definição é extraordinário, mas não abarca a totalidade das máscaras narrativas de Euclides da Cunha. Pelo menos três máscaras essencialmente poéticas ficam de fora: o observador itinerante, o pintor da natureza e o encenador teatral. O "imenso diálogo a muitas vozes, mediadas pelo narrador," aplica-se às seqüências analíticas, que se representam no perspectivismo interdiscursivo. Não inclui a perspectiva espacial e temporal do observador itinerante, nem o emolduramento narrativo em que se perspectivam as cenas dramáticas do pintor da natureza, nem o perspectivismo visual e pictórico do encenador teatral. A postura de simposiarca do narrador "que finge a representação de um simpósio de sábios" se distingue da "persona de um tribuno". Além do mais, convém observar que o narrador assume, na terceira parte da narrativa, uma outra máscara, a do ironista da campanha de Canudos. A narrativa euclidiana, na última parte, se apresenta como uma mascarada sublime, que atinge a culminância dramática de uma bufoneria transcendental, apesar da sublimidade trágica que a perpassa. Enquanto simposiarca, o narrador poderia ser caracterizado como investigador dialético no sentido originário da dialética da pergunta e da resposta do pensador Sócrates, na antigüidade, ou do historiador Collingwood, na modernidade. Filiada, no entanto, à concepção hegeliana e, sobretudo, marxista da dialética, Walnice Nogueira Galvão atribui ao fingidor de um simpósio de sábios uma incapacidade de síntese, supostamente motivada pela insuficiência do repertório cognitivo da intelectualidade brasileira em face do evento sinistro da destruição de Canudos: A síntese é impossível: a verdade do livro está em suas contradições. As idéias vão e voltam, o argumento que se expõe num dado passo é seguido de seu contrário, logo depois ou centenas de páginas adiante. Tudo isso representa, no seu movimento de vaivém, a impossibilidade da inteligência brasileira de entender o fenômeno e de 16 tomar um e um só partido. Essa dificuldade é de ontem e é de hoje. O livro narra o movimento da inteligência, que, no caso, é de seu autor, em demanda da síntese impossível reveladora da verdade (Galvão, 1994, 631). A verdade do livro não pode ser reduzida à perplexidade do narrador diante do ato nefando do genocídio. Não só porque várias máscaras representam outros eventos, mas também porque o narrador euclidiano assume a máscara resoluta do denunciador do crime de nacionalidade cometido pelos poderes pretensamente civilizados das tropas do governo. Não se deve igualar autor e narrador, sobretudo porque o autor dos artigos sobre "A nossa Vendéia" e de Canudos - Diário de uma Expedição não se legitima como escritor, mas apenas como repórter. A diferença entre escritor e repórter, no caso de Euclides, é que o primeiro traduz a opinião dominante, e o segundo introduz, não só a própria voz, mas também um concerto de vozes desconhecidas até então na literatura e na cultura brasileira em geral. Os Sertões não são um livro exclusivamente dedicado à guerra de Canudos. Aos olhos argutos de Euclides, Canudos era apenas o sintoma do drama maior, e ainda vigente, do divórcio do poder central e da sociedade periférica dos humilhados e ofendidos. Com respeito às alegadas contradições do narrador euclidiano, necessário se torna argumentar que as múltiplas enunciações da personalidade de Antônio Conselheiro não se contradizem, porque representam definições de vários enunciadores. Não correspondem à lógica da pergunta filosófica ou científica nem à dialética especulativa do conceito filosófico, mas à dialética da pergunta e da resposta. No enfoque dos vários pontos de vista, o narrador presta testemunho das visões dominantes no cenário nacional acerca do Conselheiro. Dialetiza todas no intercâmbio dialógico das réplicas. E arremata o simpósio de sábios com o emocionante quadro dramático em que se emoldura o caráter sublime e trágico do pregador rejeitado pela elite, mas venerado pelos canudenses. Em sua Autobiografia, Collingwood propõe, para além da lógica aristotélica e da dialética hegeliana, uma nova lógica, denominada lógica da pergunta e da resposta (Collingwood, 1939). A formação interdisciplinar, que o credencia a escrever uma série de livros que abarca diversos domínios do saber, induz Collingwood à conclusão de que o fato de ele ter afirmado, na Idéia da História, que a natureza não é histórica, e 17 sustentado, na Idéia da Natureza, que a natureza é histórica não constitui contradição, porque a afirmação e a negação ocorrem em situações diversas numa escala dialética de perguntas e respostas. Os enunciados afirmativos e negativos não se contradizem, porque não são respostas às mesmas perguntas, mas réplicas a perguntas diferentes. No escalonamento dialético do pensamento, a auto-contradição revela força argumentativa, e não inconsistência teórica. O pensador que se contradiz conscientemente transcende o limite restrito da lógica tradicional para alcançar a visão amplificada de um campo mais vasto do saber. De acordo com o projeto collingwoodiano de um conhecimento compatível com a historicidade radical da existência humana, nenhum fenômeno deve ser estudado por uma faculdade particular do espírito. A pesquisa envolve a participação total do pesquisador, e não a utilização parcial de uma faculdade isolada, seja estética, ética ou científica. A separação kantiana das faculdades se confuta com o argumento de que o homem concreto se manifesta historicamente mobilizado pela interpenetração dinâmica das valores cognitivos, afetivos e volitivos. Aos olhos do historiador lógico, a história aparece como mera sucessão de fatos mais ou menos concatenados. Na visão do historiador que não se abstrai do contexto intersubjetivo da ação social nem sobrevoa a historicidade vigente, a história comparece como o drama em que o desenvolvimento do enredo se modifica em consonância com as vicissitudes dramáticas de cada situação vivenciada (Collingwood, 1924). A resposta de Collingwood a Ryle, o pensador lógico que recrimina as contradições collingwoodianas, quadra tão bem ao desígnio do investigador dialético, que a transcrevemos do livro em que foi divulgada pela primeira vez. Trata-se do livro Collingwood e a Reforma da Metáfisica, de Lionel Rubinoff: Você me ridiculariza injustamente. Na página X, é verdade, eu caí na sua falácia, mas na página Y, eu a corrigi. Você deve compreender as minhas palavras como um todo, e interpretar X à luz de Y. Se assim procedesse, veria que o erro, na pior das hipóteses, era um descuido e, na melhor hipótese, tão-somente a exploração de um ponto de vista provisório (Rubinoff, 1970, 265-6). No perspectivismo interdiscursivo, em que se debatem várias definições de Antônio Conselheiro, o investigador dialético explora os múltiplos pontos de vista 18 com o intuito de representar a controvérsia histórica suscitada pelo missionário sertanejo. No intercâmbio polêmico das vozes, o narrador cumpre a função de delinear a história dos inúmeros preconceitos contra o líder de Canudos. A exploração das perspectivas que se alternam no intercâmbio dialético das réplicas constitui o procedimento característico do narrador associado ao investigador dialético. Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 3. ed., 1992. COLLINGWOOD, R. G. Speculum Mentis. Oxford: The Clarendon Press, 1924. COLLINGWOOD, R. G. An Autobiography. London: Oxford University Press, 1939. CUNHA, Euclides da. Obra completa, vol. 1. Organizada sob a direção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 2.ed., 2000. GALVÃO, Walnice Nogueira. ""Euclides da Cunha" . In: América Latina: palavra, literatura e cultura, volume 2. Campinas: Editora da Unicamp, p. 615-633, 1994. LIMA, Luiz Costa. Terra ignota. A construção de "Os sertões".. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. RUBINOFF, Lionel. Collingwood and the Reform of Metaphysics. A Study in the Philosophy of Mind. Toronto-Buffalo: University of Toronto Press, 1970. SANTANA, José Carlos Barreto de. Geologia e metáforas geológicas em "Os sertões". História, ciências, saúde, Manguinhos, volume V. Suplemento, julho, p. 117-131, 1998. ZILLY, Berthold. "A barbárie: antítese ou elemento da civilização? Do Facundo de Sarmiento a Os Sertões de Euclides da Cunha". In: ALMEIDA, Angela M. de, ZILLY, Berthold e LIMA, N. de.(Organizadores). De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio, FAPERJ-MAUAD, 2001. 19