Desestruturação do trabalho e política social

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DESESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO E POLÍTICA SOCIAL1
Luiz Filgueiras2
Reinaldo Gonçalves3
Introdução
Este texto trata do processo que redefiniu, sob inspiração da ideologia e das políticas
neoliberais, o significado e a natureza tradicionais da política social. Essa política foi
transformada, total ou parcialmente, em uma política focalizada contra a pobreza,
principalmente nos países da periferia do capitalismo. Houve, portanto, a redução do escopo
desta política. E isto permitiu sua utilização ideológica e simbólica pelas classes dominantes
e seus governos no sentido de transformar o conflito entre capital e trabalho em uma
oposição formal entre “pobres” e “pseudo-ricos”.
Esse processo contou com a formulação decisiva das instituições multilaterais
(Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial) e necessitou de operação políticoideológica. Esta operação apartou, radicalmente, a “exclusão social” (a pobreza) do “mundo
do trabalho” (o emprego e a produção), considerando-a, implicitamente, um fenômeno
exógeno ao novo padrão de acumulação capitalista. Em consequência, a pobreza passou a
ser tratada de forma pontual, como resultado, fundamentalmente, de atributos individuais ou
familiares (idade e escolaridade, entre outros). Nessa perspectiva, a dinâmica econômicosocial geradora e reprodutora da pobreza - associada à concentração da propriedade, às
formas de exploração do trabalho, às características regressivas do sistema tributário e ao
modo de atuação do Estado - desaparece completamente.
O percurso desse processo histórico será aqui feito, do ponto vista lógico-teórico,
identificando, inicialmente, as grandes transformações ocorridas no capitalismo nas últimas
três décadas: os processos de reestruturação produtiva e de globalização, e a ascensão e a
hegemonia político-ideológica do neoliberalismo. Esses processos marcaram profundamente
1
Trabalho apresentado no Seminário “Política social, trabalho e democracia em questão”, organizado pelo
Programa de Pós-Graduação em Política Social, Departamento de Serviço Social, Instituto de Ciências
Humanas, Universidade de Brasília em 28-30 de abril de 2009.
2
Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
[email protected].
3
Professor Titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
[email protected].
2
a dinâmica das sociedades capitalistas, bem como as políticas econômicas e sociais
implementadas em quase todo o mundo nas últimas trinta anos.
Essas transformações, ao acirrarem a competição intercapitalista, radicalizaram
todas as tendências imanentes do capitalismo presentes desde a sua origem, quais sejam:
desenvolvimento das forças produtivas, exploração extensiva e intensiva da força de
trabalho, concentração e centralização de capital, ampliação do exército de reserva e de sua
parcela mais pauperizada, e o descolamento entre a esfera financeira e a órbita da produção
de bens e serviços. Uma das conseqüências é o aumento da probabilidade (e até mesmo a
necessidade) de crises, que, reiteradamente, reconstituem as condições e as bases materiais
de retomada da acumulação.
Todo esse processo, com a radicalização das tendências acima mencionadas, acabou
por dar origem a novas características e determinações ao movimento do capital, que
configuraram o que se convencionou chamar de regime ou modo de acumulação flexível
(HARVEY, 1992). Este regime afeta profundamente todas as esferas da vida social - para
muito além, portanto, da organização do sistema produtivo.
O elemento fundamental de estruturação desse novo modo de acumulação, a partir
do qual passaram a se organizar todas as dimensões e relações da vida em sociedade, é o
capital financeiro. A lógica de movimento do capital financeiro é caracterizada por
curtíssimo prazo, volatilidade, instabilidade e descartabilidade, e ela se impôs às outras
formas de capital, ao trabalho e, no limite, às demais relações econômico-sociais. A
dominação das finanças, convertida em hegemonia no plano mundial, passou a ditar a
dinâmica das diversas esferas da acumulação, em especial com impactos devastadores sobre
o “mundo do trabalho” e as condições de vida e trabalho das classes trabalhadoras.
Com a nova hegemonia neoliberal-financeira redefiniram-se a estrutura, a forma de
funcionamento e o conteúdo da intervenção do Estado, principalmente nos países da
periferia. As chamadas reformas estruturais (neoliberais) e as políticas macroeconômicas
ortodoxas ganharam o primeiro plano e se impuseram de modo generalizado. Neste novo
contexto, a política social foi redefinida, adaptada e ajustada à crescente necessidade da
dívida pública funcionar como elo crucial da valorização financeira (e fictícia) do capital e,
como consequência, à política de ajuste fiscal permanente – fiadora e viabilizadora dessa
valorização.
Em suma, a análise do novo regime de acumulação é condição necessária, embora
não suficiente, para a compreensão da mudança recente da natureza e do significado da
política social, em particular nos países periféricos. No Brasil todo esse processo se
3
constituiu nas últimas duas décadas e atingiu sua fase madura a partir dos últimos anos do
século XX e, principalmente, durante o segundo Governo FHC e os dois Governos Lula.
Além dessa Introdução, este texto está organizado em quatro seções. Na primeira,
são tratados, de forma sintética, os três processos marcantes da acumulação flexível: a
reestruturação produtiva, a globalização e o neoliberalismo. O objetivo é examinar os
impactos destes processos sobre o mundo do trabalho, nas suas diversas esferas e
dimensões, com destaque para o papel do Estado nesse processo. Na segunda seção
consideram-se as mudanças sofridas pela política social, no que se refere a sua natureza,
significado, escopo e implementação – todas condizentes com o novo modo de acumulação.
Na terceira seção, considera-se, de forma genérica, a política social no Brasil, como
exemplo da nova tendência assumida pela política social nos países periféricos. A quarta
seção apresenta a síntese das principais conclusões do trabalho.
1. Acumulação flexível, hegemonia financeira e impactos no mundo do trabalho
A crise econômica do início dos anos 1970, na Europa e nos EUA, teve como resposta
a redefinição estrutural no padrão de acumulação capitalista até então vigente. Isto implicou
profundas transformações tecnológicas, produtivas, comerciais e financeiras. Estas
transformações tiveram conseqüências dramáticas no mundo do trabalho – nos planos
econômico, social e político (FILGUEIRAS, 2000).
Os fenômenos denominados convencionalmente, na literatura recente, como
“reestruturação produtiva”, “globalização” e “neoliberalismo” enfeixam e sintetizam o
conjunto dessas transformações. Estes fenômenos deram origem a novo padrão de
acumulação, cuja característica fundamental, em contraponto ao padrão fordista anterior, é a
busca obsessiva pela flexibilidade. Esta última é entendida como a derrubada de toda e
qualquer barreira ao movimento dos capitais e à acumulação. A flexibilidade, vale enfatizar,
abarca as esferas econômica, social e política, bem como as relações entre elas.
O processo de reestruturação produtiva foi impulsionado fortemente pela lógica
financeira, que tomou conta do chamado capital produtivo. A financeirização redefiniu a
relação entre o capital produtivo e o capital financeiro, aproximando-os e, ao mesmo tempo,
subordinando a lógica do primeiro à lógica do segundo. A busca por resultados de curto
prazo, com a distribuição de lucros e dividendos aos acionistas, subordinou e redefiniu as
políticas corporativas.
A introdução de inovações tecnológicas e organizacionais – práticas e métodos do
chamado “modelo japonês” ou “toyotista” – (DRUCK, 1999) aprofundou a racionalização dos
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processos produtivos no espaço microeconômico. Em conseqüência houve enorme aumento
da produtividade do trabalho e acirramento da concorrência entre as empresas. No plano
macroeconômico, essa foi a condição necessária para o crescimento (inchaço) da acumulação
financeira fictícia que, embora não passe pela produção e se expanda de modo autônomo,
necessita sugar sistematicamente a riqueza gerada no processo produtivo. Adicionalmente,
esse processo impactou a estrutura produtiva das economias de variadas formas ao criar novos
setores, modernizar setores tradicionais e deslocar outros geograficamente.
A abertura comercial e financeira das economias aprofundou a tendência, inerente ao
capital, de internacionalização da acumulação. A queda das barreiras tarifárias e nãotarifárias, associada à diminuição dos custos de transação – que “acelerou o tempo” e “reduziu
a distâncias entre distintos espaços” – expandiu os fluxos comerciais e possibilitou a formação
de redes produtivas mundiais (DUPAS, 2000). Desse modo, a globalização do capital, com a
liberalização e articulação dos mercados nacionais, acelerou o movimento dos capitais, em
particular na sua forma financeira. Uma das conseqüências foi a redução do “espaço de
política”, ou seja, a menor capacidade dos países da periferia fazerem política econômica.
No fim dos anos 1970 e início dos 1980 a doutrina e ideologia neoliberal, alçadas à
política de governo a partir de Reagan nos EUA e Thatcher na Inglaterra, passaram a soldar
politicamente os processos de reestruturação produtiva e globalização, reforçando o objetivo
da flexibilização. Ao longo dos anos 1980 e 1990, esses processos, estimulando-se
mutuamente, se difundiram por todo mundo numa grande onda, que arrastou praticamente
todos os países, inclusive aqueles do chamado “socialismo real”. Livre mercado,
desregulamentação,
abertura,
privatização,
“responsabilidade
fiscal”,
liberalização,
flexibilização e competitividade passaram a sintetizar o ideário do capital.
A defesa da eficiência do livre mercado e de sua capacidade de auto-regulação, bem
como a crítica ao Estado de Bem-Estar Social e às políticas keynesianas – travestidas em
crítica à ineficiência do Estado em geral – apareceram como defesa da redução do tamanho e
da capacidade de intervenção do Estado. Na prática, contudo, assistiu-se efetivamente ao
movimento de reorientação e, muitas vezes, de fortalecimento, do Estado e de sua capacidade
de intervenção, mas em outra direção. A implementação das conhecidas reformas neoliberais,
assim como as suas políticas econômicas adotadas, necessitaram da “mão visível” e forte do
Estado. Estas reformas caracterizaram-se pela extinção de monopólios estatais, privatização
de empresas públicas, redução e flexibilização de direitos trabalhistas, privatização dos
sistemas previdenciários e dos serviços públicos de saúde, energia, telecomunicações, etc.
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O impacto dessas transformações, embora ocorrendo e afetando todas as regiões do
mundo, foi mais dramático nos países da periferia, tendo em vista a condição historicamente
dependente, financeira e tecnologicamente, desses países. Neles, a reestruturação produtiva, a
globalização e o neoliberalismo se defrontaram com sociedades já caracterizadas por enormes
desigualdades econômicas e sociais e com elevado grau de pobreza e informalidade. A
racionalização microeconômica, reforçada pela abertura comercial e financeira, a venda de
empresas públicas, reformas trabalhistas e dos sistemas previdenciários públicos, e políticas
econômicas ortodoxas tiveram impacto devastador no mercado de trabalho e nas condições
sociais de existência da população. Em países industrializados da periferia, como é o caso do
Brasil, esse processo atingiu em cheio o segmento de trabalhadores formais da indústria.
Além disso, o processo na periferia foi acompanhado por intensa desnacionalização
das economias, reprimarização absoluta ou relativa de suas respectivas estruturas produtivas e
pautas de exportações, crescimento acelerado das dívidas externa e pública, estagnação ou
baixo crescimento econômico e perda de soberania na condução da política econômica
(GONÇALVES, 1999). Tudo isso resultando no crescimento da vulnerabilidade externa
estrutural desses países (GONÇALVES ET AL, 2008), que se explicitou em sucessivas crises
cambiais: México (1994-95), países asiáticos (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) e Argentina
(2001).
Os impactos sobre o mundo do trabalho, em maior ou menor medida, se fizeram sentir
em todo o mundo e ocorreram em todas as dimensões. A questão central, que determinou
todas as outras é política: o processo que constituiu o padrão de acumulação flexível, sob
hegemonia financeira, mudou, fortemente, a correlação de forças entre capital e trabalho, com
a fragilização das organizações sindicais, movimentos sociais e partidos de base trabalhadora.
A reestruturação produtiva se abateu duramente sobre o emprego visto que postos de
trabalho na indústria foram extintos, as taxas de desemprego deram saltos sucessivos e as
condições de trabalho (garantias, rendimento, segurança, jornada, etc.) foram precarizadas. O
mercado de trabalho passou por intensa desestruturação e direitos sociais foram extintos,
reduzidos ou negociados. A informalidade apareceu com força nos países desenvolvidos e se
ampliou nos países da periferia. A desigualdade social e econômica cresceu entre países e no
interior de cada país. A situação de pobreza, até então associada principalmente à parcela
inativa da população (crianças, idosos e doentes) difundiu-se e ganhou importância no seu
segmento ativo, que participa do mercado de trabalho (ANTUNES, POCHMANN, 2007).
Em suma, em resposta à crise dos anos 1970, o capital voltou a revolucionar a base
produtiva e material em escala mundial, reconfigurando o mundo do trabalho. Houve
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aprofundamento da internacionalização da produção e dos fluxos de capitais, ampliando as
fronteiras e espaços da acumulação. Houve a imposição da ditadura dos mercados sobre a
sociedade, o que derrotou politicamente as forças sociais do trabalho. No âmbito da política
social, em particular nos países da periferia, emergiu um novo conceito de pobreza, que
passou a orientar a intervenção focada do Estado.
2. Acumulação flexível e política social
Historicamente, as políticas sociais estiveram associadas ao exercício do trabalho,
direta ou indiretamente. Desde o século XIX ficou evidente o caráter instável e cíclico das
economias capitalistas, o que implica enorme insegurança para quem vive do seu próprio
trabalho, vendendo a força de trabalho ou trabalhando por conta-própria. As políticas sociais
surgiram como o reconhecimento dessa realidade e, portanto, da necessidade da sociedade e,
portanto, da política se sobreporem à economia e sua dinâmica, através da ação do Estado.
Assim, as políticas sociais surgiram como condição de sobrevivência da grande
maioria da população destituída de meios de produção. As políticas sociais são fundamentais
especialmente em momentos críticos, ao propiciar uma renda mínima em situações de
desemprego e de incapacidade (ou redução de capacidade) de trabalho por idade ou invalidez.
Posteriormente, esse conceito se expandiu para abarcar outras dimensões da vida (moradia,
saúde, educação, etc.), associando-se a idéia de cidadania e direitos sociais a ela vinculados
(IVO, 2008a).
No pós 2ª Guerra, o pacto social-democrata e a constituição do Estado de Bem-Estar
Social consolidaram o escopo e os instrumentos das políticas sociais, bem como a fonte de
seus recursos – através de uma arrecadação tributária fortemente progressiva. Desse modo, as
políticas sociais, associadas aos direitos da cidadania, se universalizaram, ou seja, passaram a
abranger, indiscriminadamente, todos os cidadãos. Nos trinta anos que se seguiram à 2ª guerra
mundial, conhecido como o período fordista do capitalismo, assistiu-se a um círculo virtuoso
entre crescimento e distribuição, apoiado por políticas econômicas anticíclicas e políticas
sociais universais, que garantiram relativa estabilidade econômico-social nos países
desenvolvidos.
Nos países da periferia, esse mesmo processo foi muito diferenciado e, pode-se dizer,
bastante incompleto. No Brasil, por exemplo, os direitos e as políticas sociais remontam aos
anos 1930 (a chamada “Era Vargas”), no contexto da transição da economia agrário
exportadora para a economia industrial calcada no mercado interno, num momento crucial de
formação do mercado de trabalho assalariado no país (OLIVEIRA, 2004). Mas esse processo
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logrou constituir a cidadania, associada a seus direitos correspondentes, apenas para uma
parcela da população trabalhadora, qual seja, os assalariados formalizados. Ficaram de fora,
do pacto populista, os trabalhadores urbanos informais e, sobretudo, a imensa massa de
trabalhadores rurais, num arranjo político que não rompeu com o poder das oligarquias,
constituindo-se o que se chamou de modernização conservadora ou a via passiva da revolução
burguesa no Brasil (COUTINHO, 2006).
Com a crise do Fordismo nos anos 1970 e a ruptura do pacto social-democrata, o
Estado de Bem-Estar Social passou a ser fortemente questionado nos países desenvolvidos. A
redução das taxas de crescimento e a conseqüente redução dos lucros e da arrecadação
tributária conspiraram contra os direitos e as políticas sociais, num momento de grande
desemprego e inflexão da correlação de forças políticas, no sentido de enfraquecimento do
trabalho. Desde então, nos países desenvolvidos, os direitos trabalhistas foram reiteradamente
atacados, em maior ou menor grau, em nome do equilíbrio fiscal e da competitividade. Apesar
disso, a estrutura do Estado de Bem-Estar Social não desabou.
Nos países da periferia, durante os anos 1980 e 1990, a busca pela flexibilização
desses direitos se constituiu em política sistemática das empresas e dos governos. Tendo
como argumento a preservação e criação de empregos, essa política foi eleita como elemento
crucial para possibilitar a inserção mais competitiva das empresas e dos países no processo de
globalização. Coerente com a lógica da reestruturação produtiva e da globalização, os efeitos
dessa política no mundo do trabalho foram os mesmos das reformas neoliberais e suas demais
políticas, que podem ser sintetizados no binômio desemprego e precarização do trabalho.
Desse modo, o aumento e aprofundamento da pobreza nos países capitalistas periféricos, a
partir de uma realidade já previamente bastante precária, não foi surpresa. Mas, a partir de um
determinado momento, na virada dos anos 1990 para 2000, depois de duas décadas de
implementação de reformas e políticas neoliberais, a gravidade desse problema passou a
preocupar as instituições multilaterais controlas pelos países desenvolvidos, em particular o
Banco Mundial.
E foi justamente essa instituição que colocou em evidência a política social dos “novos
tempos” (Banco Mundial, 2006). O conceito de pobreza foi definido no sentido de possibilitar
a separação desse fenômeno da implantação e da dinâmica do novo padrão de acumulação
capitalista sob hegemonia do capital financeiro, bem como a adoção de políticas sociais
focalizadas, de caráter também flexível como exige a lógica financeira.
A política social focalizada, materializada em programas governamentais específicos,
e direcionada a determinado público-alvo eleito (os pobres), tem como característica
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primeira, que precede todas as demais, o fato de não ser uma política de Estado – que, por
definição, independe do governo de momento. Portanto, a sua marca maior é não se
constituir em um direito social, inscrito na Constituição e, assim, reconhecido política e
juridicamente. Por isso, torna-se um instrumento poderosíssimo de manipulação políticoeleitoral e clientelismo.4
A concepção hegemônica no atual debate acerca das desigualdades econômico-sociais
tem por objeto, entre outros, a distribuição (pessoal/familiar) de renda, a pobreza, os pobres e
as políticas sociais (focalizadas) de combate à pobreza. Esta concepção trás, consigo,
inúmeras “armadilhas” teóricas, conceituais e políticas. Essas “armadilhas” deslocam o
problema das desigualdades do âmbito da relação entre o capital e o trabalho – característica
essencial constitutiva da sociedade capitalista – para o âmbito exclusivo (interno) da classe
trabalhadora e suas diferenças. E isso é feito sem que essa escolha teórico-metodológica seja
explicitada de forma clara e transparente.
As principais características e a lógica dessa concepção hegemônica implicam
desconsiderar as razões e os mecanismos estruturais, mais profundos, que (re)produzem as
desigualdades. Portanto, são deixados de lado a estrutura concentrada de propriedade e
poder, característicos das sociedades periféricas, bem como a estrutura e dinâmica do modelo
particular de desenvolvimento capitalista atualmente vigentes e à política econômica a ele
associado (Modelo Liberal Periférico).5 Dessa maneira, transforma a pobreza numa variável
exógena aos mecanismos econômico-sociais que estruturam as relações entre as classes
sociais. Em contrapartida, remete sua explicação para o âmbito das famílias e dos indivíduos
e procura identificar os eventuais atributos que diferenciam as famílias (e os indivíduos)
pobres das famílias (e dos indivíduos) não-pobres.
Neste sentido, a concepção hegemônica destaca razões explicativas mais aparentes e
imediatas, como a distribuição desigual, entre os indivíduos e as famílias, do estoque de
“capital humano” existente (educação, saúde, instrução, escolaridade, qualificação), e os
distintos níveis de capacidades dos indivíduos e famílias em adquiri-lo. Portanto, a
desigualdade e a pobreza decorrem, fundamentalmente, do maior ou menor acesso, à
educação e à saúde. No limite, chega-se ao seguinte argumento tautológico: as famílias e
indivíduos pobres estão na situação de pobreza porque não têm “capital humano” e, como
4
5
A discussão do restante desta seção baseia-se em FILGUEIRAS E GONÇALVES (2007: 143-145).
A definição do Modelo Liberal Periférico é apresentada na próxima seção onde se discute a política social no
Brasil.
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nessa situação, não têm capacidade ou estímulo em investir na obtenção desse capital,
permanecerão na pobreza. Na verdade, para além da operação político-ideológica contida no
conceito (antigo) de “capital humano”, essa perspectiva teórica transforma uma correlação
estatística (baixa escolaridade versus pobreza) numa relação de causalidade, na qual, num
primeiro momento a escolaridade assume a condição de variável independente (explicativa) e
a pobreza a de variável dependente (explicada). Posteriormente, inverte-se a causalidade,
constituindo-se uma espécie de circulo vicioso da pobreza, que só poderá ser rompido através
das políticas focalizadas de transferência de renda, condicionadas a ações e iniciativas, por
parte das famílias beneficiadas, relacionadas à educação dos filhos e aos cuidados com a
saúde, entre outras.
A identificação das desigualdades, da pobreza absoluta e dos pobres se faz a partir de
informações sobre os indivíduos e as famílias que são fornecidos por pesquisas domiciliares.
Vale notar que estas pesquisas só obtêm, fundamentalmente, dados sobre os rendimentos do
trabalho e as transferências da previdência e da assistência social e, portanto, deixam de fora
os rendimentos do capital (principalmente aqueles derivados da esfera financeira). Com isso,
as análises da distribuição pessoal/familiar da renda dizem respeito, essencialmente, às
desigualdades existentes entre os trabalhadores, que passam a ser classificados como muito
pobres, pobres, não-pobres e ricos (privilegiados) segundo os seus níveis de renda pessoal ou
familiar.
Como conseqüência, com limitação da identificação das desigualdades ao âmbito dos
rendimentos do trabalho, a busca da menor desigualdade (através de políticas públicas) se
restringe à redução das disparidades salariais e outros rendimentos do trabalho. Então, deixase de fora qualquer iniciativa de reformas que afetem a distribuição da riqueza, inclusive a
propriedade fundiária (rural e urbana), e a estrutura e o funcionamento do sistema financeiro
vigentes. E, mais grave ainda, essa redução das desigualdades é sempre pensada a partir do
“nivelamento por baixo”, no qual os segmentos da chamada classe média – geralmente
definida através de medidas estatísticas frágeis – são identificados como ricos e taxados
como privilegiados.
As políticas públicas eleitas como sendo as mais adequadas, eficientes e equânimes –
tendo por alvo as famílias e os indivíduos que mais precisam – seriam os programas sociais
focalizados, dirigidos aos mais pobres entre os pobres. Estes, por sua vez, são identificados
através do estabelecimento de linhas de pobreza que subestimam as reais necessidades
mínimas de sobrevivência de uma família. Dessa forma, reduz-se o número real de famílias
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pobres e, consequentemente, o montante total dos valores a serem transferidos a cada família
e ao conjunto delas.
Na verdade, trata-se da substituição das políticas sociais universais (com a extinção
de direitos), que exige volume maior de recursos, por políticas sociais focalizadas, que
exigem montantes relativamente pequenos de recursos do orçamento. O objetivo, com essa
operação, é o de liberar mais recursos financeiros para a obtenção de superávits fiscais
primários e o pagamento da dívida pública. Portanto, as políticas sociais focalizadas, além de
assistencialistas – funcionalizando e reproduzindo o estado de pobreza e a condição de pobre
–, se constituem na contraface do permanente ajuste fiscal exigido pelo capital financeiro aos
países da periferia do capitalismo.
3. Política social no Brasil
O Brasil percorreu, inicialmente, trajetória um pouco distinta dos demais países da
periferia do capitalismo, em particular os da América Latina pois apenas a partir da década de
1990 vai-se assistir à ofensiva do capital contra os direitos sociais. A década de 1980, ao
contrário, se caracterizou pelo fortalecimento e ebulição da sociedade civil, antes mesmo do
término formal da ditadura militar em 1985. Os movimentos sociais e sindicais reapareceram
com força na cena política. Para ilustrar, foram criados o MST, a CUT, o PT e muitas outras
organizações populares na primeira metade dessa década, que passaram a influir na vida
política do país. As greves do ABC (o Novo Sindicalismo) ainda no final da década de 1970,
a campanha pela anistia dos presos políticos, o movimento pelas eleições diretas em 1984, a
Assembléia Constituinte de 1988 e a eleição direta para Presidente da República em 1989
foram expressões mais visíveis e importantes do novo momento político vivido país.
Como produto dessa nova realidade político-social ampliaram-se os direitos dos
trabalhadores. A Constituição de 1988 absorveu conquistas fundamentais que avançaram para
muito além dos limites da CLT, com a incorporação à seguridade social de segmentos de
trabalhadores (rurais e urbanos) historicamente excluídos da cidadania integral. Reconheceuse o caráter universal das políticas sociais e definiu-se um orçamento em separado para a
Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social), distinto do Orçamento Geral.
Porém, infelizmente por nunca ter sido implementado, até hoje se permite a equivocada e
proposital identificação da existência de déficit financeiro na Previdência Social.
O ponto de inflexão, que marca o início da implantação do projeto neoliberal no
Brasil, é o Governo Collor que, de fato, inicia a Era Neoliberal no país. A crise estrutural do
Modelo de Substituição de Importação (MSI), uma espécie de Fordismo restrito, atravessou
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toda a década de 1980, sem sinais de resposta. Ela virá nas décadas de 1990 e 2000 dentro do
mesmo padrão que já havia ocorrido na maioria dos países periféricos. Verificam-se, então, a
reestruturação produtiva selvagem e a inserção passiva na globalização e reformas e políticas
neoliberais. Em particular, os processos de abertura comercial e financeira aparecem como
instrumentos de combate à inflação, isto é, completamente descolados de políticas
tecnológicas, industriais e comerciais de promoção do desenvolvimento econômico.
Os Governos de FHC e de Lula, em circunstâncias internacionais distintas, deram
sequência e acabamento à obra iniciada por Collor, aprofundando e consolidando um novo
padrão de acumulação capitalista no Brasil, que pode ser caracterizado como um Modelo
Liberal Periférico (MLP). O modelo é liberal porque se estrutura a partir da liberalização das
relações econômicas internacionais nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e monetáriofinanceira; da implementação de reformas no âmbito do Estado (em especial na área da
Previdência Social) e da privatização de empresas estatais, que implicam a reconfiguração da
intervenção estatal na economia e na sociedade; e de um processo de desregulação do
mercado de trabalho, que reforça a exploração da força de trabalho. O modelo é periférico
porque é uma forma específica de realização da doutrina neoliberal e da sua política
econômica em um país que ocupa posição subalterna no sistema econômico internacional, ou
seja, um país que não tem influência na arena internacional, ao mesmo tempo em que se
caracteriza por significativa vulnerabilidade externa estrutural nas suas relações econômicas
internacionais. Por fim, o modelo tem o capital financeiro e a lógica financeira como
dominantes em sua dinâmica macroeconômica (FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007, p. 96).
O conjunto da obra é conhecido: abertura comercial sem planejamento e sem
contrapartidas, abertura financeira que inseriu a dívida do Estado brasileiro no circuito da
acumulação financeira mundial, quebra de monopólios do Estado, privatizações de empresas
estatais, duas reformas da previdência e flexibilização dos direitos trabalhistas, entre outras
iniciativas. O seu resultado também é conhecido: aumento da vulnerabilidade externa
estrutural do país, crescimento da dívida pública, desnacionalização da economia, baixas
taxas de crescimento do PIB, elevados níveis de desemprego, precarização do trabalho e
aumento da pobreza.
No processo de constituição do MLP, a política macroeconômica, iniciada a partir da
adoção do Plano Real em 1994, caracterizou-se pelo uso de âncora cambial, sustentada com
elevada taxa de juro. Esta política causou a crise cambial no início de 1999, que levou à
alteração dessa política no sentido da constituição do tripé que se sustenta até o presente
momento: política monetária (fundamentalmente manejo da taxa de juro) conforme metas de
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inflação previamente estabelecidas; política fiscal dirigida para a obtenção de elevados
superávits fiscais primários; e política cambial “suja” na qual predomina a livre flutuação.
Esta redefinição se fez com a manutenção de todas as reformas anteriormente efetivadas,
inclusive a abertura comercial e financeira.
Essa mudança não melhorou, de logo, a situação anterior da economia brasileira,
porem reduziu um pouco, conjunturalmente, a sua vulnerabilidade externa, em virtude da
melhora da balança comercial. No entanto, a partir de 2003, quando a economia mundial,
capitaneada pelos EUA e a China, começou a crescer a taxas muito elevadas, a redução
conjuntural dessa vulnerabilidade externa se acelerou. O crescimento sistemático dos saldos
positivos da balança comercial, propiciando a obtenção de superávit na conta de transações
correntes, abriu espaço para flexibilização da política monetária, com a manutenção de taxas
de inflação baixas e a obtenção de taxas de crescimento do PIB um pouco maiores entre 2004
e 2008. Com isto, reduziram-se as taxas de desemprego, voltou a crescer o emprego em geral,
e o formalizado em particular.
A implementação da política social focalizada, iniciada no segundo Governo FHC,
através de programas específicos de bolsas, foi consolidada e ampliada no Governo Lula. A
partir do fracasso do Programa Fome Zero, houve a criação do Programa Bolsa-Família, que
unificou diversos programas e aumentou o número de beneficiários e o volume de recursos
utilizados. O Programa atinge as famílias do país consideradas pobres e muito pobres (mais
de 11 milhões), conforme a linha de pobreza estipulada pelo programa6.
Assim, direitos e políticas sociais universais de Estado (previdência, assistência social,
saúde e educação, entre outras) convivem com políticas sociais focalizadas de Governo. Entre
as políticas de transferência de renda, os gastos com a previdência social, o Beneficio de
Prestação Continuada (destinado a deficientes e idosos a partir de 65 anos) e o programa
Bolsa-Família ocupam, respectivamente, os três primeiros lugares na hierarquia dos gastos
sociais (IVO, 2008b).
Considerando-se as linhas de pobreza (renda) utilizadas, para a definição de pobres e
miseráveis, sabidamente subestimadas, estudos recentes (NERI, 2007; SOUZA, 2006;
DELGADO, 2005; DELGADO E THEODORO, 2005) têm evidenciado a redução da pobreza
absoluta nos últimos anos. Este fato resulta do aumento real do salário mínimo e das
transferências de renda das políticas sociais, sobretudo as de caráter universal, em especial os
gastos da seguridade social. Também se constata redução na desigualdade de renda, em
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No entanto, o Ministério do Desenvolvimento Social detectou mais 2,2 milhões de famílias que, apesar de
preencherem os requisitos de perfil e renda, estão fora do Bolsa-Família. (Folha de São Paulo, 07/01/2009).
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particular entre aqueles que auferem rendimentos do trabalho, visto que a distribuição
funcional da renda piorou (1998-2003) ou praticamente permaneceu a mesma (2000-2005),
conforme se adote a velha ou a nova versão (2007) do Sistema de Contas Nacionais divulgado
pelo IBGE (HOFFMANN E NEY, 2008).
Do ponto de vista político, a política social focalizada executada através de programas
de governos específicos, diferentemente dos direitos e das políticas sociais universais, se
presta a um novo tipo de populismo e vem sendo utilizado política e eleitoralmente
(MARQUES R. M.; MENDES, A., 2006). Nas palavras de BETTO (2008): “Miséria não se
erradica apenas com renda mínima. Exige investimentos em educação, saúde, inserção
ocupacional, saneamento básico e acesso à terra. Sem isso, qualquer política social perde seu
caráter emancipatório e se restringe ao compensatório. Concebeu-se o Fome Zero como um
leque de políticas capaz de alterar a arcaica estrutura social brasileira e permitir aos
beneficiários vir a produzir a própria renda. Assim a reforma agrária se impunha como
prioridade. Não se pretendia saciar apenas a fome de pão, mas também a de beleza, ou seja,
aprimorar culturalmente os beneficiários e torná-los protagonistas do aperfeiçoamento de
nossa democracia. O controle do programa cabia à sociedade civil através dos Comitês
Gestores. Um desvio ético abortou o Fome Zero, anulou o seu caráter emancipatório e o
reduziu ao programa Bolsa Família, meramente compensatório: a fome de poder. Manter os
beneficiários na dependência permanente do Governo traz votos. Em 2005, os Comitês
Gestores foram cancelados e o governo federal repassou às prefeituras a responsabilidade de
controle dos recursos destinados aos beneficiários. Decisão que, segundo o Tribunal de
Contas da União, fez aumentar os indícios de corrupção nas administrações municipais.”
4. Conclusão
Na Era Liberal, com o controle da inflação em 1994, o fim do imposto inflacionário e
a estabilidade de preços a pobreza, inicialmente, se reduziu. Posteriormente, em virtude das
políticas sociais universais a pobreza – sempre medida por linhas de pobreza definidas de
forma minimalista – se reduziu ainda mais. No conjunto destas políticas os destaques são a
aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada – ambos balizados pelo valor do
salário mínimo, que teve aumentos reais nos últimos anos – e, em menor proporção, o
programa Bolsa-Família. Taxas de crescimento econômico um pouco maiores, a partir de
2004, foram decisivas para permitir essa ocorrência.
Entretanto, a questão da redução da pobreza deve ser vista com cautela visto que se
utilizam linhas de pobreza e indigência minimalistas, que não conseguem medir
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adequadamente (qualitativa e quantitativamente) o fenômeno. Ademais, a “saída da pobreza”
é extremamente precária, porque dependente estrutural e permanentemente de programa de
governo, que não responde ao problema da segurança alimentar a longo prazo (IVO, 2008b).
Não há “porta de saída” do programa, com a emancipação das famílias. E, qualquer inflexão
no ciclo econômico, como a que se configura no início de 2009, com a crise mundial, aumenta
significativamente o risco de ressurgir os níveis anteriores de pobreza.
Em síntese, a política social focalizada, de combate à pobreza, nasce e se articula
umbilicalmente às reformas liberais e tem por função compensar parcial, e muito
limitadamente, os estragos socioeconômicos promovidos pelo Modelo Liberal Periférico e
suas políticas econômicas – baixo crescimento econômico, pobreza, elevadas taxas de
desemprego, baixos rendimentos, enfim, um processo generalizado de precarização do
trabalho (FILGUEIRAS E GONÇALVES (2007: 155-157). Trata-se de política social
apoiada em um conceito de pobreza restrito, que reduz o numero real de pobres, suas
necessidades e o montante de recursos públicos a serem disponibilizados. Ela procura se
adequar ao permanente ajuste fiscal a que se submetem os países periféricos, por exigência do
FMI e do capital financeiro (os mercados), para garantirem o pagamento das suas respectivas
dívidas públicas. Portanto, uma política social que se define e se caracteriza por ser a
contraface dos superávits fiscais primários.
A política focalizada é de natureza mercantil, que concebe a redução da pobreza como
um “bom negócio” e que transforma o cidadão portador de direitos e deveres sociais em
consumidor tutelado, através da transferência direta de renda, e cuja elegibilidade, como
participante desses programas, subordina-se a critérios ‘‘técnicos’’ definidos ad hoc a
depender do governo de plantão e do tamanho do ajuste fiscal – numa operação ideológica de
despolitização do conflito distributivo.
Formula-se uma política social que, pela sua própria origem e natureza, busca se
implementar e se tornar hegemônica a partir da negação dos direitos e das políticas sociais
universais, através de um discurso que ataca diretamente a seguridade e a assistência social
públicas – aposentadorias, pensões, seguro desemprego, etc. –, bem como a universidade
pública e as políticas de subsídios ao consumo de bens básicos, como no caso da energia
elétrica.
A política focalizada é uma política social que divide, canhestramente, os
trabalhadores em categorias do tipo: miseráveis, mais pobres, pobres, não-pobres e
privilegiados – estes últimos identificados como aqueles que têm acesso à seguridade social
incompleta e limitada, própria dos países da periferia do capitalismo, em particular da
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América Latina. É uma política social que enclausura o conflito distributivo na base da
pirâmide social e é compatível com o empobrecimento e a redução das chamadas classes
médias e com o processo de polarização das desigualdades na distribuição de renda (Salama,
2006) – ambos produtos do período de vigência do MLP.
A política focalizada é uma política social que desloca a disputa entre capital e
trabalho, própria das sociedades capitalistas, para o âmbito interno da classe trabalhadora.
Esta política transforma a disputa de classes em um conflito distributivo intra-classe
trabalhadora visto que opõe os seus vários estratos: assalariados com rendimentos mais
elevados versus mais reduzidos, trabalhadores qualificados versus não-qualificados,
trabalhadores formais versus informais, participantes versus não participantes da seguridade
social, trabalhadores do setor público versus do setor privado, etc. Todas elas, clivagens reais
ou imaginárias, explicitadas ou criadas pelo capital e sua política, fragmentam a classe
trabalhadora e estimulam e açulam a disputa entre os seus diversos segmentos.
Finalmente, pode-se constatar que a recuperação do mercado de trabalho, em
particular do emprego formal e do rendimento médio real dos trabalhadores, ocorrida a partir
de 2005, não conseguiu retomar os níveis de 1996. A melhora na distribuição de renda se deu
em razão, fundamentalmente, da desconcentração dos rendimentos referentes ao trabalho; a
distribuição funcional da renda piorou ou, no máximo, se manteve. Num contexto de
manutenção da mesma estrutura agrária e tributária, as políticas sociais focalizadas se
encaixaram funcionalmente como políticas compensatórias.
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