“Olha, eu quero me tratar, mas eu não sou louco!”: Memórias, contradições e narrativas históricas da atenção a saúde mental em Irati (PR) nas décadas de 1980 e 1990 Luiz Ricardo Pauluk (Unicentro)* Gustavo Zambenedetti (Unicentro)* Resumo: O presente trabalho utiliza a metodologia da História Oral para construir uma narrativa sobre a constituição da atenção a saúde mental no município de Irati (PR). Como temporalidade, delimita as décadas de 1980 e 1990, quando Irati passa a contar com um serviço psiquiátrico no hospital Santa Casa de Irati. Foram entrevistados quatro informantes, os quais apresentaram informações conforme sua experiência de vida, sendo todos eles profissionais com algum grau de aproximação com as questões de saúde mental. A narrativa, produto final do trabalho, será discutida em relação à metodologia proposta e às questões muitas vezes contraditórias que permeiam o conflito característico da psiquiatria no Brasil e seu processo de Reforma. Palavras-chave: Irati; Psiquiatria; Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental; Psicologia Social; Introdução∗ A evolução da psiquiatria no Estado do Paraná ocorre de forma descompassada em relação a outros estados da Federação. O Estado vem a ter seu primeiro hospital psiquiátrico em 1903, com a fundação do Hospício Nossa Senhora da Luz, em Curitiba. Durante 40 anos, permaneceu como única referencia no Paraná, situação que se altera com a criação do Sanatório Bom Retiro, em 1945, também em Curitiba. Nove anos depois, uma nova instituição surge, o Hospital Colônia Adalto Botelho, que permaneceu como única instituição pública do Paraná voltada ao atendimento psiquiátrico. Apenas na segunda metade do século XX que a referência exclusiva de Curitiba seria rompida, com o surgimento, no ano de 1957 em Londrina, o Hospital Shangri-lá, atualmente denominado Hospital Psiquiátrico de Londrina. A grande maioria dos hospitais presente no estado foi criada no período da Ditadura Militar. Segundo a historiadora Yonissa M. Wadi e Attiliana Casagrande (2011): O movimento ocorrido no Paraná estava em consonância com a estratégia adotada pelos governos militares, pós-golpe de 1964, tanto para o campo da saúde geral quanto para o da assistência psiquiátrica, ou seja, um amplo movimento de privatização da assistência amparado por instituições governamentais (...) e recursos públicos. (WADI; CASAGRANDE, 2011, p. 07). * Licenciado em História pela UEPG (2010), Especialista em História Social pela UNOPAR (2012) e acadêmico de Psicologia na Unicentro. * Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (2005), Mestre e Doutorando em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, Professor Assistente A do Departamento de Psicologia Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) / Campus Irati-PR. Esse trabalho é resultado projeto de Iniciação Científica intitulado Uma abordagem histórica da constituição da saúde mental em Irati (PR), orientado pelo professor Gustavo Zambenedetti. O caráter de privatização dos hospitais psiquiátricos cria, não apenas no Paraná, mas em todo o território nacional, uma “indústria da loucura”, conforme denuncia o psicanalista Fernando Tenório (2002): Para 45 hospitais públicos, havia 211 contratados. A maioria dessas clínicas tem como única fonte de receita as verbas públicas, que só se lhe são destinadas como pagamento de internações. Em uma área da medicina em que a indicação da internação raramente é cabal, cientificamente indiscutível, mas, ao contrário, depende em larga medida da aposta do profissional responsável pelo ato de saúde, tal situação desempenha papel importante na confluência de forças de diversas naturezas, que induzem à internação. O sistema e a mentalidade vigentes estavam organizados em torno da internação (e da internação prolongada), as empresas hospitalares auferiam benefícios financeiros significativos com as internações (sua única fonte de lucro) e havia total falta de controle por parte do Estado — tem-se aí um verdadeiro empuxo à internação, e pode-se perceber por que o sistema veio a ser chamado de indústria da loucura. (TENÓRIO, 2002, p. 47). Nas décadas entre 1960 e 1990, período que abrange o governo militar, é criado no Paraná um total, segundo Wadi e Casagrande (2011), de treze instituições. Esse crescimento apresenta como principal justificativa a supressão da demanda reprimida. A situação altera-se consideravelmente após a criação da Lei da Reforma Psiquiátrica 10.216/01. Os hospitais psiquiátricos passam a dar lugar a serviços substitutivos de base comunitária. A partir dessa lei, o internamento de pacientes em sofrimento psíquico só poderia acontecer caso falhassem os serviços extra-hospitalares (Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, os ambulatórios, as Unidades Básicas de Saúde, os Serviços comunitários de saúde mental, as unidades básicas de saúde). O Paraná, porém, já dava sinais de reestruturação da psiquiatria na década de 1990. Processo que culminou, conforme Wadi (2009), na Lei Estadual da Reforma Psiquiátrica: em 09 de novembro de 1995 foi promulgada a Lei Estadual nº. 11.189 que dispôs “sobre as condições para internações em hospitais psiquiátricos e estabelecimentos similares de cuidados com transtornos mentais”. Em seu artigo primeiro a lei estabeleceu que ninguém com base em alegação de “transtorno mental” poderia ser limitado em sua condição de cidadão e sujeito de direitos, sofrendo internações ou quaisquer outras formas de privação de liberdade sem o devido processo legal (WADI, 2009, p. 89). Nesse contexto de transformações recentes que localizamos nosso objeto: a atenção à saúde mental na cidade de Irati (PR). Um município do interior do Paraná que conta atualmente com 56.207 habitantes1. Localiza-se cerca de 150 km de Curitiba, capital do Estado. O presente trabalho delimita sua temporalidade as duas décadas finais do século XX. Período que permite a utilização da metodologia da História Oral. Assim, foram entrevistados quatro informantes chaves com o objetivo de compreender as especificidades da constituição 1 Segundo o Senso publicado pelo IBGE em 2010. histórica da saúde mental. A metodologia será discutida em momento oportuno. Adiante, apresentaremos uma breve revisão bibliográfica de trabalhos que tomaram como objeto alguma instituição psiquiátrica na região paranaense. Revisão bibliográfica Em Irati, até o momento dessa pesquisa, não foram produzidas pesquisas sobre a constituição histórica da saúde mental2. Nesse sentido, esse texto é pioneiro. Mesmo em nível de Paraná, o número de pesquisa é limitado a alguns artigos e trabalhos publicados em anais de eventos. Um prospecto geral da história das instituições psiquiátricas no Paraná foi proposto por Yonissa M. Wadi, em 2009, no artigo História da Loucura no tempo presente: os caminhos da assistência e da reforma psiquiátrica no Estado do Paraná. O artigo localiza temporal e espacialmente as instituições médicas que assumiram a especialidade da psiquiatria desde a primeira que surgiu no território paranaense: o Hospício Nossa Senhora da Luz, em 1903, Curitiba. A pesquisa da historiadora segue a partir das análises dos documentos produzidos pelos hospitais ou pelo Estado do Paraná. Em 2011, Wadi junto de Attiliana Casagrande, publica um mapeamento no Paraná das instituições especializadas em psiquiatria, seguindo a mesma lógica metodológica do artigo citado acima. Intitula-se Assistência psiquiátrica no Estado do Paraná: um mapa dos hospitais especializados. Com exceção de Wadi, não existem artigos que tratem da saúde mental no Estado do Paraná de forma geral. Quando a questão é levantada academicamente é feita em localidades e temporalidades específicas. Por exemplo, o historiador Maurício Ouyama dedicou-se a estudar, a partir de um diversificado corpo de fontes (jornais, memórias, documentos oficiais...), os processos de instituição do Hospital Nossa Senhora Da Luz, já citado. Outro exemplo é o trabalho "O Dr. Alô mandou não contrariar": a consolidação da psiquiatria no Paraná, escrito por Andréia A. Lima e Adriano F. Holanda, que analisa os fundamentos do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro, também em Curitiba. Buscam a partir de um único personagem histórico, compreender o processo de consolidação da psiquiatria no contexto. Geograficamente – e culturalmente – mais próximo de Irati, o artigo de Fabiana Trentini, A história da saúde mental e seu processo de Reforma Psiquiátrica no município de 2 A revisão bibliográfica seguiu a seguinte metodologia: primeiramente, foram consultadas as palavras chave nas bases de dados virtuais Scielo e Google Acadêmico. Essa busca inicial teve como resultados os trabalhos da historiadora Yonissa M. Wadi, quais assumiram o papel de porta de entrada para a pesquisa. Em segundo momento, as referências utilizadas por Wadi serviram para estabelecer uma rede de citações dos autores que trabalham com a questão da psiquiatria no Paraná (PAULUK; ZAMBENEDETTI, 2013, p. 06). Ponta Grossa, Paraná, Brasil, analisa os processos de abertura e fechamento do Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha, e seus efeitos na sociedade dos pontagrossenses. Além das leituras de pesquisas anteriores, a autora buscou informações em entrevistas orais, aproximando metodologicamente da presente pesquisa. Nossa pesquisa se localiza junto às que focam numa espacialidade e temporalidade específicas. Não se objetiva uma generalização, nem mesmo se considerarmos o Paraná como macro-contexto. Não se trata de um estudo de micro-história3 no sentido de "estudar o oceano através de uma gota d'água", para usar um jargão comum na História, mas sim apresentar as condições específicas da atenção à saúde mental em Irati que, certamente, se relacionam com o macro-contexto como, aliás, buscaremos demonstrar. Metodologia Diferente de outros municípios do Paraná, não há pesquisas que tem como objeto a atenção à saúde mental em Irati4. Dessa forma, só podemos partir de fontes primárias. Optamos por coletar e analisar entrevistas com fontes orais, configurando a metodologia de História Oral. Para selecionar informantes, utilizamos o método “bola de neve”, que consiste, a partir da indicação de um informante chave, em encontrar outras pessoas relacionadas à saúde mental. Apesar do método não ter se esgotado, analisaremos nesse trabalho quatro entrevistas realizadas até o presente momento. Esse método, de aceitação consolidada no meio historiográfico, deve levar em conta certas especificidades. Segundo o historiador José d'A. Barros (2010): Essa subdivisão historiográfica refere-se a um tipo de fontes com o qual o historiador trabalha, a saber, os testemunhos orais. (...) Um historiador pode estabelecer como enfoque a História Política ou a História Cultural, e selecionar como abordagem a História Oral. Isso significa que ele irá produzir o essencial dos seus materiais de investigação e reflexão a partir da coleta de depoimentos, que depois deverá analisar com os métodos adequados. (BARROS, 2010, p. 132-3). Dentre as principais preocupações do pesquisador que trabalha com testemunhos orais, podemos elencar a construção da entrevista, o uso de questionários pré-determinados ou não, o cuidado com a decodificação dos dados e análise dos depoimentos. Além disso, certamente, deve levar em conta a construção da memória coletiva e da memória individual (conceitos que estaremos debatendo adiante) dos entrevistados5, de modo a não retirá-las de seu contexto, o 3 Micro-história: Peter Burke (1991) identifica que o primeiro estudo de micro-história foi Montaillou, de Le Roy Ladurie. 4 A contribuição de Ferreira [et. al] (2005) traz apenas brevíssimas informações sobre a ala psiquiátrica da Santa Casa. De fato, seu objeto de estudo é o tratamento destinado às pessoas com dependência química e não a constituição histórica da ala psiquiátrica. 5 SILVA e SILVA, 2005, p. 186. que, certamente, produziria anacronismos. Dessa forma a análise precisa ser feita a partir de um contexto, cujas características sejam bem delimitadas historicamente. O projeto previa a delimitação de um informante-chave, atuante há pelo menos 15 anos na saúde mental do município, para a realização da primeira entrevista. A partir de seus apontamentos, novos informantes seriam inseridos à pesquisa. Entretanto, houve dificuldades de acesso ao primeiro informante delimitado. Após cerca de 3 meses de negociações de tentativa de agendamento de uma entrevista, decidimos mudar para entrevistar dois outros informantes-chave, mantendo-se o critério de ser pessoas atuantes há pelo menos 15 anos em uma área relacionada à saúde mental. Esses informantes apontaram para uma rede de outras pessoas que poderíamos acessar. Paralelamente, seguimos na tentativa de acesso ao primeiro informante, definido no projeto inicial da pesquisa, até o momento em que conseguimos realizar a entrevista. A análise realizada neste trabalho refere-se, assim, a 4 entrevistas, sendo que a pesquisa pretende ainda abordar, pelo menos, mais dois sujeitos, considerados referências importantes para fornecer informações sobre a conformação da saúde mental em nossa região. Estes dois sujeitos ainda não foram entrevistados por não residirem mais em Irati, fator que dificulta o acesso aos mesmos. É importante apontar que a necessidade de tomar precauções éticas foi cumprida, ou seja, lhes foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual informara aos sujeitos entrevistados dos procedimentos da pesquisa. A partir dos relatos transcritos da gravação das entrevistas, realizou a análise dos dados, sintetizada no presente trabalho. Esse trabalho tem como ponto de partida - assim como todo trabalho com história oral – a memória dos entrevistados. Dessa forma, é preciso advertir se espera da narrativa apenas uma cronologia aproximada. Reconhecendo esse limite das nossas fontes de pesquisa, é preciso justificar sua contribuição: tomando como matéria prima a percepção mnemônica, tomamos como objeto de análise as impressões que esses atores sociais carregam sobre o processo de constituição da atenção a saúde mental. Impressões quais apontaram para a configuração de um processo. Não obstante, as quatro entrevistas apontam para o mesmo ponto: a disputa entre duas linhas de pensamento sobre a saúde mental, como veremos na narrativa. Os testemunhos se posicionam diante da questão, certamente, mas seu posicionamento não será objeto de análise. Primeiro motivo é devido ao risco de denunciar a identidade desses informantes aumentaria perigosamente na análise discursiva, o que feriria o princípio ético do caráter confidencial da entrevista. Segundo, porque as questões da saúde mental são, no contexto atual, polêmicas, tendo em vista os movimentos de Reforma Psiquiátrica, por exemplo. A polêmica não atinge apenas a área da saúde, mas diversas facetas sociais, políticas, econômicas e culturais. Por outro lado, a cronologia do processo – apesar da sua importância – não é fundamental à análise. No lugar do dado cronológico, caro à historiografia metódica, nosso foco está muito mais direcionado ao sentido dado à própria experiência. O conceito de memória e abordado pelo historiador Jacques Le Goff (2001): Finalmente, os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento (...), nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2001, p. 270). Ainda sobre o conceito de tempo, é possível dizer que a exatidão cronológica retire da fonte oral aquilo que lhe é mais precioso: o sentido próprio, a lógica de mundo ou de parte significativa dele. Separaríamos do processo de constituição da atenção à saúde mental de sua historicidade. A cronologia exata não seria uma história da loucura, nem dos atores sociais, mas sim um paradoxal anacronismo. Uma história de ninguém. Conforme a citação acima de Le Goff, tanto a memória e o esquecimento individual como a memória e esquecimento coletivos são processos movidos pelos interesses dos indivíduos ou grupos. As lutas sociais pela autoridade sobre a saúde mental também surtem seus efeitos sobre aquilo que será historicamente lembrado. Ainda sobre a construção e análise de sentido que a fonte histórica produz, Roger Chartier (1991) nos aponta que o objetivo da análise histórica deve ser: (...) decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles. (CHARTIER, 1991, p. 177). A opção de metodologia de análise perpassa por essas questões. Optamos pelo cruzamento das informações levantadas pelas entrevistas. Esse cruzamento resultou numa narrativa sintética e cronologicamente aproximada, que será exposta adiante. A opção pelo não estabelecimento de valores temporais deixou uma brecha aberta à questão da saúde mental em Irati: cruzar esses dados com uma possível linha cronológica ainda não estabelecida. Seria um passo possível se essa pesquisa tivesse optado pelo estudo de outras fontes junto aos testemunhos orais, como jornais, fotos, documentos institucionais, etc. Enfim, a temporalidade quantificável permanece em aberto, conforme a natureza do nosso quadro de fontes. Alerta-se mais uma vez para o fato da narrativa seguinte ser construída a partir das vivências de algumas (quatro) pessoas que tiveram relação com a atenção à saúde mental em Irati nas últimas décadas. Narrativa Antes da década de 1980, não havia na região de Irati atendimento psiquiátrico especializado. Nos Campos Gerais, havia nessa década o Ambulatório de Higiene Mental em Guarapuava, inaugurado em 1962 e o Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha em Ponta Grossa, inaugurado em 19676. Em Irati, a atenção, apesar de não ser especializada, era dada por organizações nem sempre médicas. Os médicos realizavam o atendimento geral a pacientes que apresentavam algum sinal de doença mental. Os casos mais agudos eram encaminhados para os hospitais da região ou para Curitiba7. Estipulou-se numa das entrevistas que mais de 40 pacientes eram encaminhados para outros municípios semanalmente8. Por outro lado, questões como o consumo de álcool e drogas, muitas vezes associado às questões de saúde mental, encontravam auxílio em sacerdotes e outros religiosos. No caso de comunidades católicas, era comum que determinados problemas dessa ordem surgissem no ato da confissão ou nos atendimentos pastorais. Sensibilizados por essa demanda, alguns sacerdotes buscaram criar, no final da década de 1980, uma organização para o atendimento dessa demanda. Para localizar um ponto de origem para essa forma de atenção é explicitada a Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro9, localizada no bairro Rio Bonito. Assim, em um primeiro momento em parceria com os médicos, as organizações religiosas auxiliavam na distribuição de cestas básicas, aquisição de medicamentos e no transporte dos pacientes para os hospitais (ambos de forma gratuita) e, ao colocar em cheque a eficácia do tratamento psiquiátrico para alguns pacientes, passaram a encaminhar exclusivamente para comunidades, quais também tinham cunho religioso10. 6 WADI, 2009, p. 82. Informante 1 e 3. 8 Informante 1. 9 Informante 2 e 4. 10 Informante 4. 7 Vale, nesse ponto, destacar que não havia um atendimento de assistência social em Irati11, o qual viria a se efetivar apenas na década seguinte, como veremos adiante. Essa demanda era minimamente suprida pela atuação dos religiosos. Voltemos agora para o início da década de 1980. Em abril de 1983, é criada a ala psiquiátrica a partir da iniciativa de um médico recém-chegado em Irati e de uma psicóloga. Junto a eles se instituiu uma equipe multidisciplinar composta por assistente social e enfermeira. Nesse contexto, a equipe fazia atendimento à pacientes das cidades da região deslocando-se para essas localidades, como Mallet, Prudentópolis, Rio Azul e Teixeira Soares12. Além disso, a enfermaria de saúde mental de Irati se constituiu como referência para as prefeituras dessas cidades, encaminhando assim seus pacientes13. Com a chegada de um médico que direcionou seu trabalho para o atendimento de pessoas em situação de sofrimento psíquico, Irati passa a contar com um serviço que antes não era prestado. Assim, nesse momento de 1983 é instituída a prática médica voltada à psiquiatria própria do município, começando um deslocamento no papel exercido pelo Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha, localizado em Ponta Grossa, assim como pelo papel exercido pelas comunidades religiosas. A equipe multidisciplinar manteve-se até o final da década de 1980. Por motivos ainda obscuros, ou seja, que a pesquisa com as fontes orais não foi capaz de elucidar, a multidisciplinarização desmantelou-se e a atenção à saúde mental centralizou-se no atendimento médico, representada pela figura de único médico. Essa centralização é uma das características da psiquiatria iratiense até o presente, uma vez que nenhum outro médico psiquiatra instalou-se efetivamente na cidade ou qualquer um dos municípios pertencentes à 4ª Regional de Saúde. A referência de Irati se expande por toda a 4ª Regional de Saúde do Paraná, que abrange as cidades de Fernandes Pinheiro, Guamiranga, Imbituva, Inácio Martins, Mallet, Rebouças, Rio Azul e Teixeira Soares. O atendimento psiquiátrico era realizado na enfermaria destinado ao tratamento de alcoolismo. Essa situação perdurou até 1999, quando o atendimento psiquiátrico passou a ser realizado numa área separada do restante do hospital, conforme apontam Ferreira [et. al]: Em 1999, criou-se na Santa Casa uma nova enfermaria, dedicada em parte para a psiquiatria, passando os pacientes para um local mais separado, diminuindo os problemas com a equipe médica e com os pacientes de outras patologias, indo em consonância à proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), que através de auditoria cobrava outros espaços e terapias para os pacientes internados. (FERREIRA [et. al.], 2005, p. 55). 11 Informante 2 e 4. Informante 1. 13 Informante 1 e 2. 12 Na década de 1990, além da enfermaria na Santa Casa de Misericórdia, os grupos terapêuticos iniciados pelos sacerdotes continuavam a atender a demanda das questões de álcool, drogas e sofrimento psíquico. Essa década é marcada pela disputa que, nas suas devidas proporções, é análoga a toda a questão da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Disputa-se hegemonicamente quem tem a autoridade discursiva sobre as questões de saúde e doença mental. Por um lado, busca-se centralizar na psiquiatria para encabeçar as ações em relação à população em sofrimento psíquico. Mantém-se a esperança na cura pelo medicamento, o foco principalmente no indivíduo e na intervenção médica como ferramenta central para o tratamento14. Atenta-se para a posição de destaque da psiquiatria, representada na figura do único médico que realizava atendimentos nessa área na cidade. Entretanto, por outro lado, compreendem-se os aspectos sociais que entornam o sofrimento psíquico. Busca-se, através da assistência social em parceria com os grupos religiosos, solucionar o problema do sofrimento psíquico, articulando os fatores biológicos, psicológicos e sociais, sem reduzir o indivíduo a sua doença. O foco são os projetos comunitários, o trabalho de apoio às famílias e redução dos estigmas da loucura. É preciso explicitar que a ausência de uma assistência social suficientemente estruturada em Irati dessa época levou a prefeitura a estabelecer os vínculos com as comunidades de orientação religiosa15. Essa situação decorre por fatores ainda não muito bem estabelecidos pela pesquisa. Não que se pretenda identificar dois lados dicotômicos da questão. O estabelecimento dessas posições é arbitrário, mas necessário à análise. O que percebemos nas ações dos indivíduos são posições contraditórias, hora tencionando para um lado, hora para outro. De qualquer forma, são formas de perceber o atendimento a pessoas em sofrimento psíquico que se opõe em algum grau. Na década de 1990, o trabalho social era feito em parceria da prefeitura com as igrejas, como já dito anteriormente. Em meados dessa década, é instituída a ADAC – Associação de Dependentes de Álcool. A ADAC era uma comunidade terapêutica gratuita que também contava com o apoio da psiquiatria da Santa Casa16. Sua atuação se estendeu pela região, mas o número de vagas limitado não deu conta da demanda emergente. A ADAC fazia parte de uma rede de solidariedade formada por instituições, as quais muitas eram de cunho religioso (católicas ou evangélicas), sem apoio ou convênio com a Prefeitura Municipal permaneciam na informalidade. Para citar um exemplo de comunidade religiosa que fazia parceria com a 14 Informante 1 e 3. Informante 2. 16 Informante 2. 15 assistência social, as entrevistas17 apontam para o Abrigo Santa Clara, em União da Vitória (PR). Trata-se de uma entidade católica para o acolhimento de mulheres esquizofrênicas, atuante desde a década de 1980. Nossa proposta temporal limita-se até a virada do século. A análise das entrevistas aponta para quadro exposto até agora. Como síntese, Irati no fim do século XX vê a atenção à saúde mental dividida entre a prática da psiquiatria, que tem como principais ferramentas a atuação médica e o internamento, e a prática social, marcadamente comunitária, voluntária e religiosa. Considerações finais: a narrativa de uma frase Numa das entrevistas, um informante reproduz a seguinte fala, que seria comum às pessoas em sofrimento psíquico no final da década de 1980 que buscavam os religiosos: “Olha, eu quero me tratar, mas eu não sou louco!” 18. Nessa fala, resume-se a disputa que identificamos ao elaborar a pesquisa. A busca por tratamento diferencia-se da busca pela psiquiatria. Entende-se que essa especialidade médica está destinada aos “loucos”, mas não aos alcoolistas, aos dependentes químicos, aos depressivos, etc... Identificamos nesta fala a dicotomia entre o tratamento comunitário e o atendimento psiquiátrico. A fala traduz também o conflito. Aquele que a profere desacreditou na psiquiatria, ou, mais especificamente, acredita que a prática psiquiatria é estritamente pautada no internamento em hospitais psiquiátricos. Assim, seria coerente com seu sofrimento a busca por atendimentos alternativos. Das entrevistas emerge o seguinte caso ilustrativo dessa situação. No final da década de 1980, os religiosos prestaram auxílio à uma mulher a qual julgava-se esquizofrênica. Essa mulher foi levada ao Hospital Franco da Rocha para ser internada. Após um tempo de permanência no hospital, insistiu para ser removida de lá. Os grupos religiosos de Irati, então, dirigiram-na para o Abrigo Santa Clara, em União da Vitória. Segundo o informante, a paciente encontrou alento para sua condição e uma melhora significativa de vida19. Em ambos os casos, o estigma encontra-se na profissão e prática psiquiátrica. A cura seria dissociada do médico e o hospício é identificado pejorativamente no sentido moral como um espaço indigno. O retiro religioso, por sua vez, é identificado como o oposto. Seria um espaço de cura e reconstrução da vida, apesar de também ser um espaço de internamento e 17 Informantes 2 e 4. Informante 4. 19 Informante 4. 18 tratamento. Essas características diferem e especificam visões sobre a loucura vigentes em Irati do período. As duas linhas de pensamento que se confrontam em Irati é o que dá subsídios ao ordenamento das falas. A disputa pelo posicionamento na ordem discursiva sobre a doença mental interfere diretamente na vida cotidiana daqueles que demandam atenção à sua saúde psíquica. Portanto, aquele que busca o atendimento, posiciona-se em uma das duas linhas de pensamentos conflitantes, hora pendendo para um lado, hora para outro. A fala se mostra contraditória nesse sentido: elementos notadamente psiquiátricos (tratamento) são dissociados da condição que o indivíduo se apresenta (negação da loucura). O conflito entre as diversas esferas de pensamento – a visão comunitária e a visão médica, no nosso caso – marca não apenas a sociedade iratiense, mas toda a constituição da saúde mental no Paraná. Nesse período, a Reforma Psiquiátrica surge como uma terceira via sobre o sofrimento psíquico, a qual visa desinstitucionalizar, ou seja, entender que a instituição não é estática, mas sim dinâmica e complexa20. Portanto, a loucura e a instituição devem ser percebidas em um contexto biopsicossocial. Porém, essa terceira via é percebida de modo incipiente no contexto analisado. Nossa hipótese é de que ela só irá emergir em Irati, enquanto uma terceira linha de tencionamento, no começo do século XXI, o que extrapola os limites da pesquisa. O ponto mais fundamental de nossa análise é traduzir o conflito instaurado em Irati nos anos que abrangemos. Não basta situar o conflito em seu contexto histórico relacionado ao Paraná e entendê-lo ao contexto brasileiro. O propósito do trabalho foi explorar as entrevistas de modo levantar as especificidades do contexto. Nesse último tópico, é preciso dizer que o conteúdo das entrevistas não foi esgotado. De fato, cada uma delas demandaria uma análise própria, o que não caberia nesse trabalho. Por segundo, permanece em aberto a constituição de uma nova rede de informantes e testemunhos orais, os quais possivelmente teriam percepções diferentes das que expomos na narrativa. Nada é mais imprevisível do que o passado. Isso justifica o trabalho histórico. O campo da saúde mental permanece em aberto para explorações e novas interpretações do passado. Referências AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida: A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. 2ª ed. 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