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OS DESAFIOS DOS DIREITOS
SOCIAIS E DIREITOS
COLETIVOS E CIDADANIA NO
SÉCULO XXI
PAULO CÉSAR CORRÊA BORGES
LUCIANA CAMPANELLI ROMEU
MARCELA DIAS BARBOSA
ORGANIZADORES
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OS DESAFIOS DOS DIREITOS
SOCIAIS E DIREITOS COLETIVOS E
CIDADANIA NO SÉCULO XXI
Paulo César Corrêa Borges
Luciana Campanelli Romeu
Marcela Dias Barbosa
(Organizadores)
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Comitê Científico
Alejandro Rosillo Martinez
Ana Gabriela Mendes Braga
André Leonardo Copetti Santos
Carlos Henrique Gasparoto
Carolina Costa Ferreira
David Sanchez Rubio
Dimitri Dimoulis
Edihermes Marques Coelho
Eduardo Saad Diniz
Elisabete Maniglia
Ericson Crivelli
Érika Mendes de Carvalho
Gisele Mendes de Carvalho
Guilherme Gouvêa de Figueredo
Gustavo Assed Ferreira
Gustavo Noronha de Avila
Jair Aparecido Cardoso
Júlia Lenzi Silva
Júlio Cesar de Lima Ribeiro
Luciana Campanelli Romeu
Marcelly Fuzaro Gullo
Marisa Helena D'arbo Alves de Freitas
Michele Cia
Paulo César Corrêa Borges
Sebastiao Sergio da Silveira
Soraya Regina Gasparetto Lunardi
Taylisi de Souza Correa Leite
Capa
Guilherme Vieira Barbosa
Contato:
Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, Jd. Petráglia. CEP 14409-160,
Franca/SP – [email protected]
ISSN: 2236-1928
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SUMÁRIO
Apresentação
1 O desafio da assistência jurídica do trabalhador submetido à condição análoga à de escravo
Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues
Carlos Henrique Borlido Haddad
2 Guarda compartilhada como uma possibilidade de minimização da ocorrência da síndrome da
alienação parental
Ana Paula dos Santos Prado
Regina Maria de Souza
3 Direito fudamental à saúde frente ao princípio da reserva do possível e do mínimo existencial
Giovanna Rossetto Magaroto Cayres
Teófilo Marcelo de Arêa Leão Júnior
4 Bases teóricas para uma agenda de direitos humanos: uma leitura de Kierkegaard
Ivan Pinheiro de Figueiredo
5 A efetivação dos direitos sociais e a cidadania no Estado capitalista
Jéssica Raquel Sponchiado
6 Quanto vale o trabalho escravo? Considerações sobre as indenizações arbitradas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Européia de Direitos Humanos
Jorge Luís Mialhe
Rui Decio Martins
7 Cidadania Cultural: o Direito à cultura e a legislação referente aos direitos autorais na música
Guilherme Jorge da Silva Gravatin
Marina Ribeiro da Silva
8 Migração e trabalho: impactos do processo migratório na vivência cotidiana da mulher
nordestina
Regina Maria de Souza
9 A atuação interpretativa e concretizadora do poder judiciário em face da abstração dos textos
definidores de direitos fundamentais
Renato Gobetti de Souza
10. A vulnerabilidade agravada do consumidor idoso à luz do princípio da dignidade da pessoa
humana
Sergio Leandro Carmo Dobarro
André Villaverde
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APRESENTAÇÃO
A presente coletânea de artigos é resultado das palestras e debates ocorridos no IV
Seminário Internacional "Formas contemporâneas de trabalho escravo", ocorrido entre os
dias 05 a 08 de maio de 2015, na Universidade Estadual Paulista – UNESP, no Campus de
Franca.
O evento foi realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da UNESP (Universidade Estadual Paulista) - Campus de
Franca, através do Núcleo de Estudos de Tutela Penal e Educação em Direitos Humanos
(NETPDH), em conjunto com as USP-FDRP, FDF, FÓRUM PAULISTA DE PROGRAMAS
DE PÓS-GRADUAÇÃO, GRUPO INTERINSTITUCIONAL UNESP-UFRN-FDV-GVUNIFOR, UN. DE SEVILLA, UN. AUT. DEL LITORAL-ARG, RED IBEROAMERICANA
DE INVESTIGACION DE FORMAS CONTEMPORANEAS DE TRABAJO ESCLAVO.
Contou, pois com a imprescindível contribuição dos Professores David Sanchez
Rubio, da U.S.da Espanha, Cecília Andrea Goyneche, da Universidad Nacional del Litoral da
Argentina, Maria Esther Pomares Cinta, da Universidad de Jén, da Espanha, e da Relatora
Especial da O.N.U. para Formas Contemporâneas de Trabalho Escravo, Urmila Bhoola.
O IV Seminário Internacional "Formas contemporâneas de trabalho escravo" é fruto
de pesquisas, reflexões e estudos que foram realizados no Núcleo de Estudos de Tutela Penal
e Educação em Direitos Humanos (NETPDH). Este também realizou, com repercussão de
âmbito nacional e internacional, o I Seminário Internacional “Marcadores Sociais da
diferença e repressão penal”, o II Seminário Internacional “Alessandro Baratta: Leituras de
um realismo jurídico-penal marginal” e o III Seminário Internacional “Tráfico de pessoas
para fins de exploração sexual ou trabalho sexual em condições análogas à de escravo”.
Em conjunto com o Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP, Campus de
Franca, com o Departamento de Direito Público, sob direção da Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais UNESP, e o apoio nacional da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), o NETPDH realizou o IV Seminário Internacional, a fim
de proporcionar, a partir de visões inter e multidisciplinares, debates sobre o grave problema
referente à violação de direitos fundamentais de seres humanos suscetíveis a formas de
trabalho degradantes e atentatórias à sua dignidade.
Os temas que foram objeto de aprofundamento teórico nas comunicações nos grupos
temáticos foram: I – Formas contemporâneas de trabalho escravo, II – Tutela e efetividade
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dos direitos da cidadania e os desafios do direito e desenvolvimento na realidade brasileira,
III – Sistema constitucional de proteção de minorias e construção do saber jurídico: críticas
aos fundamentos da dogmática, e, finalmente, IV- Os desafios dos direitos sociais e direitos
coletivos e cidadania no século XXI.
O presente livro traz os artigos aprovados, apresentados e discutidos na comunicação
sobre este último tema, quais sejam: I- O desafio da assistência jurídica do trabalhador
submetido à condição análoga à de escravo, II –Guarda compartilhada como uma
possibilidade de minimização da ocorrência da síndrome da alienação parental, III – Direito
fundamental à saúde frente ao princípio da reserva do possível e do mínimo existencial, IV –
Bases teóricas para uma agenda de direitos humanos: uma leitura de Kierkegaard, V – A
efetivação dos direitos sociais e da cidadania no Estado capitalista: uma análise crítica sobre
as políticas sociais no modo capitalista de produção, VI – Quanto vale o trabalho escravo?
Considerações sobre as indenizações arbitradas pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos e pela Corte Europeia de Direitos Humanos, VII – Cidadania cultural: o direito à
cultura e a legislação referente aos direitos autorais na música, VIII – Migração e trabalho:
impactos do processo migratório na vivência cotidiana da mulher nordestina, IX – A atuação
interpretativa e concretizadora do Poder Judiciário em face da abstração dos textos
definidores de direitos fundamentais, X – A vulnerabilidade agravada do consumidor idoso à
luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nossos agradecimentos a aqueles que contribuíram de alguma forma no sentido de
tornar viável este Livro referente à temática “Os desafios dos direitos sociais e direitos
coletivos e cidadania no século XXI”. Muito obrigada a todos os participantes do IV
Seminário Internacional "Formas contemporâneas de trabalho escravo".
Professor Doutor Paulo Corrêa Borges – Coordenador do Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP
(Universidade Estadual Paulista) - Campus de Franca, do Núcleo de Estudos de Tutela Penal
e Educação em Direitos Humanos (NETPDH) e do IV Seminário Internacional "Formas
contemporâneas de trabalho escravo"
Luciana Campanelli Romeu – coordenadora do IV Seminário Internacional "Formas
contemporâneas de trabalho escravo"
Marcela Dias Barbosa– coordenadora do IV Seminário Internacional "Formas
contemporâneas de trabalho escravo"
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O DESAFIO DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA DO TRABALHADOR SUBMETIDO À
CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO
THE CHALLENGE OF LEGAL ASSISTANCE TO WORKER SUBMITTED TO
SLAVERY ANALOG CONDITION
Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues
Doutoranda em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma Tor Vergata em cotutela com
a Universidade Federal de Minas Gerais. Master em Direito Sindical e Direito do Trabalho
pela Universidade de Roma Tor Vergata. Membro da Clínica de Combate ao Trabalho
Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG. Advogada.
Carlos Henrique Borlido Haddad
Pós doutor em Direito Processual Penal pela Universidade de Michigan. Doutor em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Coordenador da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas
da UFMG. Juiz Federal.
SUMÁRIO: 1.Introdução; 2.A situação do trabalho escravo no Brasil; 3. A atuação do MTE
e do MPT e seus limites; 4. A ineficácia dos institutos existentes para o acesso individual dos
trabalhadores escravizados à Justiça; 5. Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas; 6.
Conclusão; Referências.
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar a Clínica de Trabalho Escravo e
Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, espelhada no modelo americano da
Universidade de Michigan, como parte de experiência pioneira na formação de sistema
internacional de clínicas de Direito. A clínica surge com o desafio de auxiliar a atuação dos
órgãos públicos, promovendo assistência jurídica individual do trabalhador submetido à
situação análoga à de escravo e propiciando ação articulada com o Poder Público. Ao longo
do trabalho demonstrou-se a lacuna que deve ser preenchida pela clínica na tutela do
trabalhador, motivada por dois fatores principais: os limites de atuação de importantes órgãos
públicos, como Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e
Ministério Público Federal e a insuficiência dos institutos já existentes para garantir o acesso
individual dos trabalhadores escravizados à Justiça.
Palavras-chave: Trabalho escravo; ação articulada; assistência individual; clínica de Direito
ABSTRACT: This article aims to present the Slavery and Human Trafficking Clinic from the
Law School of UFMG, mirroring the American model of the University of Michigan, as a
part of one pioneering experience in the international system of constitution of law clinics.
The clinic emerges with the challenge of helping the performance of public agencies,
promoting individual legal assistance to worker submitted to slavery analog conditions and
providing coordinated action with the government. Throughout the paper it will be shown a
gap which should be filled by the clinic in worker protection, motivated by two main factors:
the limits of important public bodies acting as the Ministry of Labor and the Public
9
Prosecutor Office and the insufficiency of existing institutions to ensure individual access of
workers enslaved to justice.
Keywords: „Slave labor‟, coordinated action; individual assistance; legal clinic
1. INTRODUÇÃO
No mundo globalizado, a rede está em toda parte. Os problemas são conectados, a
sociedade é interligada e tudo se move por meio de ações articuladas. E se há rede de
problemas, também deve haver rede de soluções, ou talvez a solução seja colocar as ações de
combate ao problema funcionando em um circuito harmônico.
Nesse raciocínio, a escravidão contemporânea brasileira deve ser combatida por
meio de uma rede, de trabalho conjunto da sociedade civil e do Poder Público (este também
deve possuir órgãos conectados entre si). O desafio é criar tal rede, propiciar harmônica e
eficiente ação conjunta entre todos de forma a desenvolver efetiva linha de combate a tão
grave violação da dignidade do trabalhador.
No presente texto, far-se-á análise panorâmica da situação dos trabalhadores
submetidos à condição análoga à de escravo no Brasil e em Minas Gerais, será descrita a
atuação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho
(MPT), ressaltando sua importância e também os limites de atuação, além do relato da
insuficiência dos institutos já existentes que permitem o acesso individual dos trabalhadores
escravizados à Justiça.
O artigo tem como principal finalidade apresentar a Clínica de Combate ao
Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas criada na Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais, em parceria com a Universidade de Michigan, como tentativa de
solucionar o desafio de auxiliar a atuação dos órgãos públicos, promovendo assistência
jurídica individual ao trabalhador submetido à situação análoga à de escravo.
2. A SITUAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
A realidade demonstra triste estatística: ao menos 12,3 milhões de pessoas no mundo
sofrem as agruras do trabalho forçado, segundo a OIT (SECRETARIA INTERNACIONAL
DO TRABALHO,2005, p.96). No Brasil, a Pastoral da Terra em 2006 já contabilizava 25 mil
pessoas (SIMON;MELO,2006, p.48).E a prática continua recorrente. Em janeiro deste ano, o
10
MTE divulgou seu balanço (GOVERNO FEDERAL, 2015) 1 do trabalho escravo de 2014. Só
as ações de fiscalização do grupo móvel alcançaram mais de nove mil trabalhadores. Ao todo,
foram resgatados 1590 trabalhadores em condições análogas à de escravo em todo o país. 2
Ainda de acordo com o balanço, o Estado de Minas Gerais surpreendeu
negativamente, uma vez que ficou na primeira posição quanto ao número de trabalhadores
identificados em condição análoga à de escravo, com o total de 354 vítimas.
Conforme constatou José Cláudio Brito Filho:
Convivemos com total abundância, com todas as formas listadas de
superexploração do trabalho. O trabalho em condições análogas às de escravo é tão
disseminado que escapa até da pobre zona rural do norte do país, onde seria até
previsível, dada a situação de miséria e abandono da região, para cravar hipóteses
de ocorrência na cidade de São Paulo. (BRITO FILHO, 2004, p.135)
A situação de Minas alarma e mais do que nunca se faz necessário que haja real
participação conjunta do Estado com a sociedade civil para enfrentamento do problema.
Como tentativa de se combater o trabalho escravo, surge em 1992 o Programa para a
Erradicação do Trabalho Forçado – PERFOR. Em 1995, são criados o Grupo Executivo de
Repressão ao Trabalho Forçado e o Grupo Móvel de Fiscalização. Em 2003, o Governo
lançou o I Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que atualmente está em sua
segunda edição. Em seguida, é instituída a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo – CONATRAE – com representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
e de vários segmentos da sociedade civil (VIANA, 2007, p.48).
Embora a atuação de diversos atores sociais seja uma necessidade, a sociedade civil
ainda não age de forma efetiva no processo de erradicação do trabalho escravo. Em 2002, o
deputado federal Paulo Rocha já afirmava que:
“somente uma força-tarefa, reunindo poder público, Justiça, sociedade civil
organizada e cada cidadão pode acabar de vez com o trabalho escravo. (...) Trata-se
de uma nova campanha em favor da liberdade” (DUTRA, 2003, p.55).
A atuação isolada do Estado não consegue combater mal de tamanha envergadura
como a escravidão contemporânea. O Plano de Erradicação de trabalho escravo é
insuficiente, por ser medida apenas estatal, sem a participação efetiva da sociedade civil. Há
ainda poucas entidades que participam ativamente como a ONG Repórter Brasil (que tem um
importante papel no âmbito do jornalismo investigativo e na publicização do problema) e a
Comissão Pastoral da Terra (cuja missão é ajudar a denunciar os locais em que ocorre o
1
Disponível em <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/01/ministerio-divulga-balanco-do-trabalhoescravo-em-2014>, acesso em 08/04/2015.
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escravagismo). Ademais, faltam entidades que prestem assistência individual a quem teve
sua dignidade violada. Evidência disso é o fato de que grande parte dos resgatados retorna ao
trabalho escravo, uma vez que não têm onde morar, nem dinheiro para sua sobrevivência.
“Falta efetividade ao Plano Nacional para a erradicação do Trabalho Escravo, pois
apenas 22,4% das suas metas foram, de fato, cumpridas, sendo que 46% das suas
metas foram cumpridas parcialmente e 26,3% não foram cumpridas. Falta também
eficácia, pois verifica-se a reincidência de infratores e vítimas bem como a
manutenção da impunidade e miséria”. (SCHWARZ, 2008, p.20)
A sociedade civil, principalmente as universidades e as associações, têm o dever de
voltar suas forças para o combate dessa grave violação de direitos humanos.
3. A ATUAÇÃO DO MTE E DO MPT E SEUS LIMITES
O Ministério do Trabalho e Emprego, preventiva ou repressivamente, ocupa-se da
fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho, garantindo sua eficácia,
principalmente por meio da aplicação de multas.
Quanto ao combate ao trabalho escravo, o MTE exerce papel valioso na luta contra
esta prática ilícita, por meio dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel (GEFM).
Inicialmente, o MTE toma conhecimento das violações dos direitos trabalhistas por meio de
fiscalizações de rotina, geralmente realizadas nas áreas de altos índices de violação das
normas trabalhistas, ou por meio de representações feitas por terceiros, em geral vítimas. A
inspeção é feita pelos auditores-fiscais do trabalho nos locais onde são exercidas as atividades
laborais e lá mesmo realizam o enquadramento no artigo 149 do Código Penal e o resgate dos
trabalhadores, quando caracterizada a situação análoga à escravidão.
Ressalta-se importantíssimo instrumento criado pelo MTE para ajuda no combate ao
trabalho escravo: a “lista suja”criada pela portaria n. 540/2004, substituída pela Portaria
Interministerial n. 2 de 2011.A relação traz os empregadores flagrados com esse tipo de mãode-obra e que tiveram oportunidade de se defender em primeira e segunda instâncias
administrativas, antes de ser confirmado o conjunto de autuações que configuraram condições
análogas às de escravo. Embora a lista suja tenha sido suspensa por decisão do Supremo
Tribunal Federal, o governo federal anunciou a edição de nova portaria interministerial que
recria o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo,
utilizando a Lei de Acesso à Informação como amparo legal.
Outra valiosa instituição que atua no combate ao trabalho escravo é o Ministério
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Público do Trabalho, especialmente através das ações coletivas. O MPT tem suas atividades
diretamente relacionadas à tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos,
conforme estabelece o art. 81, parágrafo único, I a III, da Lei n. 8.078/90. Por seu turno, o art.
83, III, da Lei Complementar n. 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União) atribui
a ele a promoção da ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de
interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos.
Em 12 de setembro de 2002, por meio da portaria n. 231o MPT criou a
Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo 3 - CONAETE. Desde então, a
CONAETE além de organizar ações de repressão, implementa medidas que atacam o tráfico
de pessoas e projetos que visam à inserção dos trabalhadores em cursos de qualificação
profissional e, consequentemente, no mercado de trabalho.O Ministério Público Federal
(MPF) também criou força-tarefa destinada a atuar com o mesmo foco.
Em que pese a importante atuação dos órgãos supracitados, visualiza-se lacuna a ser
preenchida pela atuação da sociedade civil. Isso porque, embora o MTE fiscalize, o MPT atue
no âmbito coletivo trabalhista e o MPF aja no âmbito penal coletivo, o plano individual
(assistência/orientação jurídica individual e representação processual) fica, de certa forma,
desamparado.
Uma das mais nítidas lacunas verifica-se quando há representação informando a
existência de uma única pessoa em situação análoga à de escravo. Nesse caso, o MTE pode
fiscalizar, mas o MPT não é legitimado a atuar em defesa do interesse do trabalhador, uma
vez que se trata de direito individual. Assim, é necessário que haja o amparo da sociedade
civil na assistência do trabalhador vitimado. Conforme se descreverá em tópico posterior,
sugere-se que a assistência venha das universidades.
Outra lacuna pode ser observada no fato de a atuação do MPT restringir-se ao
âmbito coletivo, principalmente ao ajuizamento de ações civis públicas que requerem, na
maioria das vezes, a imediata cessação da prática do trabalho escravo e o pagamento de
indenização por dano moral coletivo. É nítido que a prática do trabalho escravo gera tanto o
dano moral coletivo como o dano moral individual. As condições degradantes a que estão
submetidos as vítimas,efetivamente, violam a dignidade e as garantias constitucionais
conferidas ao trabalhador individualmente considerado (ARAÚJO JÚNIOR, 2006,p.98).
“o trabalho em condições análogas à de escravo afeta individualmente os valores do
obreiro e propicia negativas repercussões psicológicas em cada uma das vítimas,
como também, concomitantemente, afeta valores difusos, a teor do art. 81,
parágrafo único, inciso I, da Lei 8078/90, haja vista que o trabalho em condição
3
Cartilha do MPT disponível em: <Http://portal.mpt.gov.br>, último acesso em 08/04/2015.
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análoga à de escravo atinge objeto indivisível e sujeitos indeterminados, na medida
em que viola os preceitos constitucionais como os princípios fundamentais da
dignidade da pessoa humana, (art. 1º, inciso III) e dos valores sociais do trabalho
(art. 1º, inciso IV), de modo que não se pode declinar ou quantificar o número de
pessoas que sentirá o abalo psicológico, a sensação de angústia, desprezo,
infelicidade ou impotência em razão da violação das garantias constitucionais
causada pela barbárie do trabalho escravo”(ARAÚJO JÚNIOR, 2006, p. 99).
De acordo com Rezende Filho (2009, p.70), “a quantidade de demandas coletivas
apresentadas em face do grande desrespeito ao ordenamento jurídico trabalhista faz com que
o MP priorize demandas envolvendo direitos difusos e coletivos em sentido estrito”.
Cabe ressaltar que direitos coletivos em sentido amplo são os direitos coletivos
como gênero, dos quais são espécies: os direitos difusos, os direitos coletivos em sentido
estrito e os direitos individuais homogêneos (DIDDIER, 2012, p.75).
Em que pese a possibilidade jurídica – mas a baixa probabilidade – de o Ministério
Público do Trabalho requerer danos morais fundados em violações a direitos individuais
homogêneos, é inegável a dificuldade da execução no plano fático. Mostra-se inviável que o
Ministério Público acompanhe cada um dos trabalhadores escravizados na fase de liquidação
e execução da sentença. A maioria dos trabalhadores submetidos à condição análoga à de
escravo, após o resgate, acaba não mantendo contato direto com o MPT, perdendo muitas
vezes sua indenização por inércia e falta de esclarecimento. Após um ano, se o titular do
direito não comparece para requerer a execução, a indenização é revertida ao FAT, nos termos
do art. 100 do Código de Defesa do Consumidor.
Além da questão dos danos morais, o trabalhador submetido à condição análoga à de
escravo terá direito a receber várias verbas trabalhistas, em especial os adicionais de horas
extras, de insalubridade e noturno. Para pleitear tais verbas, de natureza meramente
individual, o trabalhador teria, a princípio, como únicas opções, o exercício do jus postulandi,
buscar amparo junto a um sindicato ou contratar advogado particular.
4.
A INEFICÁCIA DOS INSTITUTOS EXISTENTES PARA O ACESSO
INDIVIDUAL DOS TRABALHADORES ESCRAVIZADOS À JUSTIÇA
Conforme mencionado no tópico anterior, para pleitear individualmente verbas
trabalhistas, os trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo, a princípio, teriam
duas opções reais: exercer o jus postulandi ou buscar assistência no sindicato.
Primeiramente, insta destacar que o jus postulandi, possibilidade de se reclamar
pessoalmente perante a Justiça do Trabalho, foi consagrado pelo art. 791 da CLT. Tal instituto
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foi criado na primeira metade do século XX, época em que a Justiça do Trabalho acabava de
sair do âmbito administrativo e passou a integrar o Poder Judiciário. Nesse contexto, o jus
postulandi era útil e eficaz, tendo em vista que a maioria das demandas trabalhistas não era
dotada de muita complexidade técnica, sendo, portanto, maneira de tentar garantir mínimo
acesso à Justiça (SANTOS, 2014, p.1).
Atualmente, esse instituto mostra-se ineficaz, dada a crescente complexidade técnica
das demandas trabalhistas. Assim, produz mais efeitos negativos do que positivos, porque
causa a ausência de acesso a ordem jurídica justa e ainda é usado como pretexto para que a
defensoria pública não atue em demandas trabalhistas.
No que concerne ao trabalho escravo, o trabalhador submetido a estas condições
sequer tem a informação de que possui capacidade postulatória no âmbito trabalhista. Além
disso, as demandas relativas ao escravagismo contemporâneo são de alta complexidade e
exigem acompanhamento individual diferenciado. Logo, tais características estão além do
limite de atuação do setor de atermação normalmente estruturado na Justiça do Trabalho. Este
setor não consegue oferecer assistência completa ao indivíduo fragilizado pela grave ofensa à
dignidade.
Os sindicatos, por sua vez, não existem ou não estão fortalecidos em todos os locais
onde funcionam as Varas do Trabalho, o que gera reduzida atuação política e insuficiente
assistência jurídica. A maioria deles não tem condições de dar o suporte necessário ao
processo de combate ao trabalho escravo e, geralmente, costumam recorrer ao MTE e ao
MPT para que a defesa dos interesses do trabalhador vitimado não fique totalmente ausente.
Mas, como visto, os órgãos aos quais os sindicatos recorrem não conseguem fornecer ampla
cobertura protetiva. Além disso, verifica-se no plano fático que a maioria dos trabalhadores
escravizados não são sindicalizados, sequer já adentraram num sindicato, não conhecem a
finalidade institucional deles, nem sabem a que categoria pertencem.
Portanto, constata-se que há evidente lacuna quanto ao real acesso individual dos
trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo à Justiça, tendo em vista a
regulamentação das atribuições dos órgãos públicos e as condições fáticas acima descritas.
5.
CLÍNICA DE TRABALHO ESCRAVO E TRÁFICO DE PESSOAS
Na maior parte das faculdades de Direito, o método predominante há décadas
consiste em aulas expositivas. Técnicas ou metodologias distintas são raras. O professor na
sala de aula faz pronunciar uma conferência, repleta de tecnicismos, cuja arbitrariedade é
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mau disfarçada pela sua antiguidade. Não é nem teoria nem prática. Comumente, é apenas a
repetição de fórmulas doutrinárias de pouca ou nenhuma utilidade (UNGER, 2012). Os
alunos são condicionados a serem agentes passivos do processo de formação e levam esse
tipo de comportamento para o momento da atividade profissional.
Os assuntos tendem a ser introduzidos de forma enciclopédica, por meio de aulas
expositivo-descritivas que introduzem normas contidas na Constituição, em códigos ou em
leis esparsas. Isso reforça a concepção de que as normas devem ser vistas como disposições
abstratas, sem conexão clara e direta com o mundo real, com prevalente enfoque jurídicodogmático. O ordenamento jurídico torna-se sistema autônomo e exógeno à sociedade, que
deve ser analisado com método e linguagem própria, o que contribui para a perpetuação do
caráter formalista do ensino.
Esse tipo de abordagem proporciona ao aluno falsa experiência de determinação e
sistematicidade do Direito e faz esse escolasticismo doutrinário e exegético ter pouco valor
prático para a vida forense e menor valor ainda para o entendimento e o manejo dos pactos
nacionais de poder. Em suma, domina uma cultura normativista, técnico-burocrática, assente
em três grandes idéias: a idéia de que o direito é um fenômeno totalmente diferente de todo o
resto que ocorre na sociedade e é autônomo em relação a essa sociedade; uma concepção
restritiva do que é esse direito ou do que são os autos aos quais o direito se aplica; e uma
concepção burocrática ou administrativa dos processos (SANTOS, 2007, p.67).
Para contornar ou amenizar essa situação, a tradição do ensino do Direito sempre
esteve ligada aos serviços de prática judiciária, como forma de estimular o contato do
estudante com a vida forense. Se não se aprende em sala de aula, aprende-se praticando.
Normalmente são estabelecidos serviços de assistência judiciária para pessoas carentes, a fim
de permitir aos estudantes travar contato com a vida real e simultaneamente oferecer
contribuição à sociedade.
Os serviços de assistência judiciária, embora tenham reconhecida importância,
pecam por justamente reforçar aquilo que deveriam reduzir: o distanciamento entre prática e
teoria. Como as atividades consistem em atendimento da população carente, sublinha-se o
aspecto utilitário do ensino, sem preocupação com o conhecimento teórico que representa a
base de sustentação do aprendizado.
Essa imperfeição não faz parte do ensino jurídico americano porque nos Estados
Unidos a prática forense, há muitos anos, está a cargo das clínicas de direito. A denominação
de clínicas é derivada da metodologia utilizada tipicamente nos cursos de Medicina. O
16
movimento de Clinical Legal Education(ensino jurídico em clínicas) remonta ao ano de
1870, em razão da introdução do case method por Langdell em Harvard. Além disso, a
profusão das clínicas deve-se à crescente preocupação das escolas de direito com a
preparação de seus estudantes para a vida profissional; à eliminação dos estágios
profissionais como meio de admissão à ordem dos advogados, criando vácuo no processo de
educação jurídica; ao processo de criação da ordem dos advogados (American Bar
Association) e a consequente rediscussão dos estágios profissionais e dos meios de admissão
de novos bacharéis; e ao crescimento do movimento para a assistência jurídica dos mais
necessitados (MACCRATE, 1997, p. 1100).
A Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da
UFMG, seguindo o modelo americano, faz parte de experiência pioneira na formação de
sistema internacional de clínicas de Direito. Desde 2011, a clínica de tráfico de pessoas que
existe na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, tem internacionalizado sua missão.
Com apoio do Departamento de Estado americano, a Universidade de Michigan expandiu seu
modelo de clínica para o Instituto Tecnológico Autónomo de México, na Cidade do México.
Em seguida, foi criado o Clinnect HTS (Human Trafficking and Slavery), iniciativa voltada
ao estabelecimento de rede global de clínicas de Direito especializadas em tráfico de pessoas
e trabalho escravo para intercâmbio das melhores práticas. As clínicas de Direito que
integram a rede oferecem aos estudantes oportunidades de trabalho tanto em âmbito
doméstico quanto internacional, em questões que envolvem tráfico de pessoas e trabalho
escravo.
A Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da
UFMG tem como base o princípio da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão e, no
desempenho de sua função institucional, preenche lacuna na defesa dos direitos dos
trabalhadores vítimas da prática de crimes.
No que diz respeito ao ensino, os alunos recebem capacitação para atuação nos
processos patrocinados pela clínica por meio de aulas realizadas semanalmente, em que, além
do ensino teórico do tema, são discutidos casos concretos. A capacitação busca promover
visão crítica dos casos para que os alunos possam ser capazes de identificar os elementos
configuradores dos crimes de trabalho em condições análogas às de escravo e de tráfico de
pessoas. Nesse processo de capacitação são abordadas técnicas de entrevista e interrogatório,
elaboração de peças processuais, estudo e discussão de casos, entre outras metodologias de
ensino. Os casos são trabalhados em sala de aula, gerando relatórios que constarão do banco
17
de dados da clínica.
A pesquisa, também realizada pelos alunos, visa à elaboração e consolidação das
bases teóricas e jurídicas, com o objetivo de analisar dados e jurisprudências que demonstrem
a real situação do trabalho escravo e do tráfico de pessoas no Brasil e no mundo. Nesse
ponto, estão sendo estabelecidas parcerias com órgãos públicos, tais como a Justiça do
Trabalho, a Justiça Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal,
Ministério do Trabalho e Emprego, Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do
Estado de Minas Gerais, dentre outros, a fim de coletar dados e de formar rede doméstica de
parceiros, que permita contínuo fluxo de informações, essencial para o combate às práticas
ilícitas. Todo o material ficará à disposição para consulta, sendo compilado, atualizado e
analisado constantemente pelos alunos.
A faceta mais importante da clínica é a atividade de extensão, em que se estabelecem
vínculos estreitos com a sociedade. Além de transformadora, ela apresenta impacto social. A
extensão somente pode ser considerada universitária se estiver aliada à pesquisa e ao ensino e
se estrutura por meio de ações que têm por finalidade aprofundar as relações de
democratização do saber científico, difundindo socialmente o conhecimento acadêmico,
reconhecendo os saberes populares e de senso comum, aprendendo com a comunidade,
produzindo novos conhecimentos e disponibilizando serviços. Trata-se de movimento
denominado por muitos como de “mão dupla”, porque interfere na formação do estudante e
interage com a sociedade.
A extensão ocupa posição acadêmica privilegiada na edificação das políticas
universitárias, porque é ela que atribui importância e pertinência à produção do conhecimento
e cria a relevância social da própria universidade. É justamente por meio das ações de
extensão e pela forma como são abordados as questões e desafios postos pela sociedade que a
universidade distingue-se das demais instituições sociais. Por meio dos programas e projetos,
tal como o proposto pela clínica, a universidade é desafiada permanentemente a buscar
respostas às perguntas e problemas que lhe são apresentados e que se tornam novos objetos
de investigação científica.
A extensão consiste no atendimento às vítimas dos crimes de trabalho escravo e
tráfico de pessoas, por meio de assistência jurídica gratuita. Os alunos são responsáveis pelo
atendimento das vítimas do crime, identificando as possíveis violações de direito em cada
caso apresentado e buscando as soluções jurídicas viáveis para garantir a efetivação do direito
do cidadão. A atividade na clínica estimula a confiança dos estudantes em suas próprias
18
habilidades e confere a eles a sensação de satisfação por ajudar membros do corpo social.
Eles conseguem obter pelas próprias mãos informações sobre como o direito aprendido em
sala de aula realmente funciona e têm a oportunidade de beneficiar-se da experiência prática
dos professores (MAHASNEH; THOMAS, 2012, p.13). O desenvolvimento da advocacia pro
bono é incrementado e as vítimas de crimes passam a ter representação jurídica,
aconselhamento e orientação sobre como o sistema funciona. Essa inovação serve como
contribuição para a administração da justiça e implementação da cidadania.
A área de atuação da clínica não é alcançada pelos órgãos de proteção das vítimas
dos crimes analisados. A tutela judicial do obreiro vítima de trabalho escravo e tráfico de
pessoas encontra vácuo funcional porque os auditores do Ministério do Trabalho e Emprego
atuam apenas na esfera extrajudicial e o órgão ministerial somente postula em juízo na defesa
de interesses metaindividuais. A Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da
Faculdade de Direito da UFMG, ao mesmo tempo em que pretende introduzir inovadora
experiência pedagógica, terá marcante atuação no enfrentamento de grave problema social,
oferecendo assistência jurídica às vítimas em aspectos não alcançados pelos órgãos estatais.
Essa assistência jurídica é ampla e irrestrita no sentido de abordar a proteção nas
áreas trabalhista, cível e criminal. Existindo no Brasil uma Justiça especializada, com
competência para conciliar e julgar as ações judiciais entre trabalhadores e empregadores e
outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, a maior demanda judicial concentrase na Justiça do Trabalho. O pagamento de verbas rescisórias ou de parcelas devidas no curso
da relação de trabalho, indenização por danos morais e materiais, são alguns dos pleitos que
normalmente são veiculados na tutela do trabalhador vitimado.
Na seara cível, são muitas as possibilidades de atuação. Inicialmente, quando se faz
alusão à área cível, considera-se que tem caráter residual, excluindo o âmbito trabalhista e
penal. Isso faz com que se compreendam questões que tocam o Direito Civil e os demais
ramos do Direito Público. Assim, desde a assistência oferecida para solucionar problemas
atinentes ao status imigratório da vítima estrangeira até a prestação de amparo jurídico em
questões atinentes à obtenção de seguro-desemprego compreendem-se no campo de atuação
da clínica.
Por fim, na área criminal, em havendo processo instaurado contra o agente
explorador, o ofendido poderá habilitar-se como assistente da acusação, nos termos do art.
268 do Código de Processo Penal. Embora seja papel secundário e contingente, o assistente
da acusação pode intervir para reforçar e auxiliar o Ministério Público para o êxito da
19
acusação, visando também a garantir seu interesse em relação à indenização civil em
decorrência dos danos causados pelo crime.
Ao ocupar espaço até então vazio, atuando em defesa de pessoas em situação de
vulnerabilidade, a Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito
da UFMG visa a, não apenas aprimorar o ensino jurídico e tornar relevante o papel da
universidade no contexto social, como também assegurar o pleno exercício da cidadania pelo
trabalhador ao assegurar-lhe proteção jurídica integral.
6. CONCLUSÃO
Muito ainda há de se articular para tornar mais efetivo o combate ao trabalho
escravo. Conforme demonstrado, apesar da importante atuação do Ministério Público do
Trabalho, do Ministério Público Federal e do Ministério do Trabalho e Emprego, persiste
lacuna em relação à assistência individual do trabalhador submetido à condição análoga à de
escravo, uma vez que os institutos já existentes (jus postulandi e sindicato) são pouco
eficazes na representação das vítimas.
A Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da
UFMG tem o propósito de auxiliar o Estado no enfrentamento desse grave problema social,
que toca pessoas em situação de grande vulnerabilidade. É apenas o primeiro passo para
ampliar a tutela jurídica do trabalhador vitimado, a que se seguirão medidas com o intuito de,
cada vez mais, expandir a cobertura de proteção.
Pretende-se estabelecer rede nacional de clínicas sobre o tema, que podem funcionar
em instituições de ensino superior espalhadas pelo país, a exemplo da rede internacional
capitaneada pela Universidade de Michigan. O sistema de clínicas nacionais propiciaria
harmônica e eficiente ação conjunta, de forma a desenvolver efetiva linha de combate a tão
grave violação da dignidade do trabalhador.
Além disso, no âmbito da própria UFMG, tenciona-se estender a proteção do
trabalhador a outras áreas do conhecimento, incorporando serviço de assistência social,
psicológica, à saúde e mesmo propiciando-lhe a realização de cursos ou o desenvolvimento
de habilidades que possibilitem excluí-lo do ciclo do trabalho escravo. Essas ações poderão
ser desenvolvidas em parceria com as faculdades de Psicologia, Medicina e Administração e
representarão não apenas reforço ao enfrentamento do problema, mas meio de permitir à
vítima do trabalho escravo ou do tráfico de pessoas a participação na sociedade como igual,
20
com maiores chances de exercer a plena cidadania.
REFERÊNCIAS
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análoga à de escravo: âmbito individual e coletivo. Revista TST, Brasília, vol. 72, nº 3,
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21
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mancha. In: Possibilidades jurídicas de combate à escravidão contemporânea. Brasília:
Organização Internacional do Trabalho, 2007.
22
GUARDA COMPARTILHADA COMO UMA POSSIBILIDADE DE MINIMIZAÇÃO
DA OCORRÊNCIA DA SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL
SHARED CUSTODY WITH A POSSIBILITY OF MINIMIZATION IN
OCCURENCE OF PARENTAL ALIENATION SYNDROME
Ana Paula dos Santos Prado
Graduanda em Direito – Faculdades Integradas de Santa Fé do Sul
Profa. Dra. Regina Maria de Souza
Economista/IE-UFU, psicóloga Fisa/Funec, doutora Unesp/Franca
SUMÁRIO: Resumo; Introdução; Caracterização da Síndrome da Alienação Parental;
Avanços Introduzidos pela Lei nº 12.318/10 e demais dispositivos legais na preservação da
integridade psicológica da criança ou do adolescente; A Guarda Compartilhada como uma
possibilidade de minimização dos conflitos: o equilíbrio nas responsabilidades em relação ao
menor ou adolescente; Conclusão; Referências.
RESUMO: Este artigo apresenta como proposta central analisar as modificações
introduzidas pela Lei nº 13.058, de dezembro de 2014 que trata de alterações nos dispositivos
da Lei nº 11.698/2008. Caberá destaque aos seus desdobramentos no âmbito do Direito de
Família. Contemplará também as contribuições da Lei nº 13.058/2014, que se agrega à Lei
12.318/2010 no trabalho de minimização da Síndrome da Alienação Parental, uma vez que o
artigo pretende também analisar os aspectos centrais da Síndrome da Alienação Parental,
destacando sua conceituação geral, suas causas e consequências, tanto para o menor
envolvido quanto para o genitor alienado e motivações do genitor alienante, o que se constitui
em matéria de intervenção tanto da Psicologia Jurídica quanto do Direito de Família. Foram
explicitados os avanços alcançados na última década, em benefício do menor alienado, bem
como as alternativas que se colocam, com destaque para a guarda compartilhada.
Palavras-chave: alienação parental; direito; psicologia; guarda compartilhada.
ABSTRAC: This article presents as its main purpose to analyze introduced modifications by
Law number 13.058, from December 2014 regarding to changes on flam of the Law number
11.698/2008. It has room for their development over Family Rights range. It will also
comtemplate the contribuitions of the Law number 13.058/2014, this one aggregates to Law
12.318/2010 over the effort to minimize Parental Alienation Syndrome, once the article aims
to analise the main aspects from Parental Alienation Syndrome, pointing out its general
conceptualization, its causes and consequences, either to the under age involved or the
alienated genitor and the motivation of the alienating genitor, fact that is liable to both legal
Psychology and Family Right. It was explained the accomplishments over the last decade,
benefiting the alienated under age, as well as suggested alternatives, highlighted to shared
custody.
Key-words: Parental Alienation; Law; Psychology, Shared Custody.
1. INTRODUÇÃO
23
A partir dos anos 1960 ocorreu uma alteração na dinâmica familiar e as
mulheres/mães verificaram a necessidade de aprimoramento profissional. Some-se a isso, na
década de 1970, a lei permitindo o divórcio “sem culpa” que desencadeou nos Estados
Unidos uma quantidade de divórcios sem precedente acarretando uma escala de conflitos
sobre a guarda dos filhos, chegando-se aos anos 1980 com diversos casos de desvio de afeto
das crianças para um dos seus genitores em detrimento do outro, fenômeno este chamado de
Síndrome da Alienação Parental.
Conforme Gomes (2013) a origem da Síndrome da Alienação Parental (SPA) está
relacionada a uma grande força da organização de convivência familiar, o que desencadeia
maior aproximação dos pais com os filhos. Portanto, quando a separação dos genitores, gera
uma concorrência pela proteção dos filhos, pode ocorrer à síndrome. Esta se apresenta, por
exemplo, no espaço da mãe que detêm a guarda dos filhos, pois é inevitável a relação de um
longo período de tempo para a seu estabelecimento.
Muitas vezes, quando da ruptura da vida conjugal, um dos cônjuges
não consegue elaborar adequadamente o luto da separação e o
sentimento de rejeição, de traição, o que faz surgir um desejo da
vingança: desencadeia um processo de destruição, de desmoralização,
de descrédito do ex parceiro. O filho é utilizado como instrumento da
agressividade é induzido a odiar o outro genitor. Trata-se de
verdadeira campanha de desmoralização. (GOMES, 2013, p. 33).
Segundo Gomes (2013), a falta de compreensão entre genitores causa desavença que
dificulta ainda mais o contato entre pais e filhos. O conceito é de que a participação dos filhos
está em primeiro lugar e ambos os pais são igualmente bons genitores, ocorrendo o contrário
haverá uma disputa e a desavença é levada aos tribunais e cada um tenha provar que outro é
um mau genitor esquecendo-se da origem do conflito, a criança.
A Constituição de 1988 trouxe igualdade entre homens e mulheres,
houve uma mudança nos paradigmas da sociedade contemporânea,
garantindo o respeito às diferenças e incorporando à família a
concepção de igualdade de direitos e o partilhamento das obrigações e
papéis assumidos pelo homem e pela mulher enquanto pais (GOMES,
2013, p. 35).
Assim, com as modificações, alteraram a compreensão de que as mulheres seriam as
mais prendadas para cuidar dos filhos, portanto, muitos homens mudaram de situação e
decidiram por não abandonar seus filhos em benefício das mulheres. Essa é a origem da
24
Alienação Parental, a criança entre as divergências dos pais. Os conflitos podem provocar os
graves problemas à saúde mental do menor, conforme se verifica na Síndrome da Alienação
Parental (GOMES, 2013).
2. CARACTERIZAÇÃO DA SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL
O procedimento de desconstrução da conjugalidade surge juntamente à reconstrução
da identidade individual, do antigo casal. Entretanto, Sousa (2010) afirma que este processo,
é vivenciado por homens e mulheres de modos distintos ocorrendo, por vezes, um profundo
sofrimento e diversas dificuldades. Pode-se verificar a ocorrência de mágoa em função do
rompimento da relação, levando-se algum tempo para que ocorra a recuperação. Caruso
(1981) afirma que, mediante da ocorrência de conflitos, a separação pode ser vivida como um
momento de sofrimento e perdas.
Resgatando a diferenciação entre conjugalidade e parentalidade, Cigoli (2002)
menciona que a lógica de não ser mais cônjuges, mas sempre pais, não é tão simples, já que a
relação entre eles não se encerra totalmente. Enfatiza que, na realidade, o vínculo obtido entre
os ex-companheiros não se desfaz, mas se altera, fazendo com que dessa forma o ex-casal
estruture o vínculo entre pais e filhos. (SOUSA, 2010).
O momento vivenciado por pais e filhos com o trauma da separação pois é dos
momentos de maior desestruturação de um sistema familiar, e se as pessoas que se separam
possuem filhos esse processo é muito mais conflituoso. Ademais, acrescenta a autora que, em
algumas situações, o término do casamento é considerado como derrota, visto que não
conseguiram proporcionar aos filhos a tão almejada família perfeita. Assim, uma forte carga
emocional é mantida sobre os filhos, fazendo-os preencher o lugar de companheiro e
admitindo os cuidados pelos genitores (SOUSA, 2010).
Segundo a pesquisa de Rapizo et al (2001), algumas mulheres, manifestam certa
dependência em relação aos filhos, procurando amparar-se neles para enfrentar a nova
configuração familiar. Aspectos como a maneira com que algumas mulheres encararam a
separação, o sentimento de impotência diante das transformações, e a percepção diante da
falta do ex-companheiro, podem levá-las a colocar, no lugar antes ocupado este, seus próprios
filhos. (SOUSA, 2010).
De acordo com Sousa (2010), o aumento da verificação de ocorrência da Síndrome da
Alienação Parental (SAP) se amplia no meio jurídico, possivelmente, por meio da associação,
há muito existente, entre a Justiça e o saber psicológico, que colocou à disposição das
25
ciências jurídicas o seu instrumental, já que a Psicologia vem disponibilizando explicações
para comportamentos mencionados como desviantes. Explicações estas que incidem sobre o
indivíduo.
De forma geral, na SAP a criança tem de, efetivamente, participar na depreciação do
genitor que é alienado, o que ocorre, segundo Sousa (2010), quando a criança denigre, por
exemplo, o pai alienado com linguajar impróprio e severo comportamento opositor,
utilizando-se de argumentos da genitora e não seus. Para tal, apresenta motivos fracos,
absurdos ou frívolos para sua raiva, tais como afirmar que o pai não é “confiável”. Afirma
que a genitora não teve ideia de denegrir o pai alienado, garantindo que ninguém disse aquilo
a ela. Nega que alguém a tenha induzido a falar daquele modo, afirma que seus sentimentos e
verbalizações são autênticos. Estabelece-se um pacto de lealdade com o genitor alienador em
função da dependência emocional e material, demonstrando medo em desagradar ou opor-se
a ele.
Muitos alienadores impedem e até proibiam as instituições escolares de fornecerem
informações acerca do rendimento escolar e de comportamento do filho ao outro genitor,
alegando “não ser o guardião” e “não ser o provedor financeiro” e as escolas assumem a
postura equivocada de confundir guarda com poder familiar e omitem informações do
genitor alienado. Em muitos casos o provedor financeiro é demandado quando as
mensalidades escolares estão atrasadas, ou em decorrência de problemas de aprendizagem ou
comportamento, apresentados pela criança. Com base nessa postura, a escola está
intensificando a alienação, por ser mais um instrumento que o alienador utiliza para sua
conveniência, objetivando afastar a criança do convívio com o outro genitor.
Silva (2009) discute os níveis de instauração da SAP nos filhos e afirma que em grau
leve, a criança recebe, a princípio, as mensagens do alienador com o intuito de prejudicar a
imagem do outro genitor, entretanto, ainda gosta do mesmo, quer manter o contato e
manifesta desejo de comparecer às visitas. Contudo, em seu grau médio, inicia-se o processo
de contradição/ambiguidade de sentimentos, já que ama o genitor alienado, mas sente que
necessita evitar o seu convívio para não desagradar o alienador, ocorrendo depressão,
sensação de não conseguir identificar o que realmente sente e intenso conflito.
A autora afirma que em seu nível grave, ambiguidade de sentimentos desaparece e a
criança começa a rejeitar o genitor alienado e a excluí-lo, chegando ao ódio, completamente
envolvida no vínculo de dependência exclusiva/simbiose com o alienador. Ao perder sua
autonomia e a independência, começa a repetir mecanicamente seus discursos, exprimindo
26
emoções não autênticas, manipulando informações e assimilando os interesses e objetivos do
alienador.
O processo destacado acima repercute em consequências para a criança envolvida na
SAP e, para Silva (2009), nos primeiros momentos da instauração da SAP, a criança envolvese com o alienador, por dependência afetiva e material, ou por medo do abandono e rejeição,
incorporando em si as atitudes do alienador, fazendo desaparecer a ambiguidade de
sentimentos em relação ao outro genitor, exprimindo as emoções convenientes ao alienador.
Já em momento posterior, quando, em razão tomada de consciência, a criança/adolescente
percebe que vivenciou uma mentira, criada pelo alienador, que foi manipulada e incorreu em
injustiça com o outro genitor, desenvolve ódio pelo alienador em função da manipulação e
um enorme sentimento de culpa por ter odiado o outro genitor sem ter tido motivos
plausíveis.
3. AVANÇOS INTRODUZIDOS PELA LEI Nº 12.318/10 E DEMAIS
DISPOSITIVOS LEGAIS NA PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE
PSICOLÓGICA DA CRIANÇA OU DO ADOLESCENTE
A Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, inseriu, no ordenamento jurídico brasileiro,
uma série de novidades legislativas que fortalecem a proteção de crianças e adolescentes
contra essa espécie antiga de maus tratos que, porém, conforme mencionado no item anterior,
está se apresentando de maneira excessiva nos dias atuais que é a alienação parental. De
acordo com Gomes (2013, p.62), “[...] a recorrência da alienação parental é tão séria no
Brasil, que levou o Legislativo a receber da população diversas reivindicações, as quais
redundaram em Projeto de Lei, o qual originou a Lei da Alienação Parental”.
Para Freitas (2012) quando houve a incorporação da Lei da Alienação Parental ao
ordenamento brasileiro, operou-se uma revolução nas práticas jurídicas do âmbito familiar.
Se antes, devido à lacuna legislativa existente, os magistrados tinham sob o seu comando o
poder de reconhecimento ou não da ocorrência de alienação parental, hoje, diante da vigência
desta lei específica, poderão aqueles ser compelidos a reconhecer objetivamente a existência
desse instituto, mediante pedido das partes ou do Ministério Público.
Reconhece também esse autor que ainda é tímida a aplicação dessa lei, o que é algo
normal quando se incorpora um dispositivo novo no sistema jurídico. Não obstante,
acrescenta que ela já conseguiu proporcionar inovações aos litígios familistas que tratam de
guarda e regulamentação de convivência. Dessa forma, é notável que estão crescendo
27
progressivamente os estudos ao seu entorno, ampliando-se os entendimentos doutrinários e
jurisprudenciais, que reafirmam a sua relevante aplicação para se alcançar tutelas eficazes.
Anteriormente já se relatou que a Síndrome da Alienação Parental não é um instituto
novo, nem no campo médico como, muito menos, no jurídico. Muitas vezes, no passado, a
reconhecida inabilidade dos profissionais que atuavam nas lides que envolviam a síndrome,
pode ter prejudicado a obtenção de tutela eficaz para inúmeros casos. É indispensável, pois,
no entendimento de Souza (2012), que se tenha o necessário discernimento para a
identificação da alienação, ou de seus indícios, para que enfim sejam tuteladas as melhores
medidas a serem aplicadas. A partir da adoção da Lei nº 12.318/10, novos mecanismos foram
trazidos à órbita judiciária, tornando-se instrumentos que, se utilizados corretamente,
prometem modificar esse panorama.
Os casos de alienação parental não são incomuns nas Varas de
Família e, agora, tendem a ser descobertos a tempo de evitar maiores
males para as crianças, adolescentes e aos próprios genitores. A lei irá
instrumentalizar as Varas de Família com equipe multidisciplinar
necessária ao acompanhamento dos casos de alienação, e muitas
vezes de difícil constatação, pois são praticados de forma sorrateira e
muitas vezes criando versões que só o tempo e a experiência dos
profissionais da área têm condições de perceber. (GOMES, 2013, p.
97).
Tutelando singularmente a alienação parental, a lei apresenta redação didática, é
concisa (apenas nove artigos), elenca, de forma simplificada, exemplos de situações que
caracterizam a síndrome e, por fim, utiliza-se tão somente do termo “Alienação Parental”
para designá-la, conceituando-a como a prática de que qualquer ato que vise fazer com que a
criança ou adolescente repudie o genitor alienado ou que prejudique as relações de afeto entre
eles. Uma conduta de alienação pressupõe o exercício de influência psicológica, podendo ser
desenvolvida ou induzida por aquele que detém o menor sob seus cuidados, por um dos
genitores, ou, até mesmo, pelos avós (FREITAS, 2012).
Em um estudo sobre o tema, Gomes (2013) destaca que a tipificação da alienação
parental faz com que o judiciário disponha de instrumentos concretos para o combate e
prevenção de suas ocorrências. Ter codificações materiais significa, para os juízes, a
possibilidade de intervenção rápida, quando assim requerer o litígio. Verificados indícios de
existência da alienação, a lei coloca à disposição do magistrado medidas de caráter
emergencial, com o intuito de amenizar os danos que uma prestação jurisdicional tardia
28
ocasionaria. Deve-se fazer tudo o que for possível para manter intacta a integridade e os
interesses do alienado e, por isso, a agilidade processual faz-se estritamente necessária.
Freitas (2012) avalia que não são incomuns, nas varas de família, os casos de
denúncias graves, como de abuso sexual, por exemplo, que são fraudulentas. Inúmeras vezes
os indícios de alienação parental aparecem, sobretudo, depois que comprovadamente
percebe-se que tais acusações não passaram de meras invenções do genitor alienador. É
evidente que não poderá o magistrado, em hipótese alguma, menosprezar a possibilidade de
que a acusação seja real, contudo, a lei em estudo recomenda que, salvo raros casos, não se
deverá proceder à imediata e completa separação entre genitor e filho.
Nesse sentido, é assegurado o direito de convivência mínima até a conclusão da
investigação, nem que para isso precise-se recorrer ao estabelecimento de período de
convivência assistido ou restringir o contato a locais públicos. Essa garantia mínima de
visitação assistida encontra-se no § único, do art. 4º, da lei ora em análise, e somente será
aceita a violação desse preceito, quando houver um atestado elaborado por um profissional,
que possivelmente fora designado para acompanhamento das visitas, indicando que a
interrupção do contato se dará devido ao iminente risco de abalo à integridade física ou
psicológica da criança e adolescente.
De modo semelhante, o dispositivo prevê a realização de perícia psicológica ou
biopsicossocial, a qual será determinada pelo juiz e feita por profissional ou equipe
multidisciplinar. Tais profissionais, por exigência expressa da lei, precisam comprovar, por
meio de histórico profissional ou acadêmico, que estão aptos a diagnosticar práticas que
configuram alienação parental. Indo mais longe, são discriminados no § 1º, do art. 5º, alguns
aspectos que deverão ser avaliados pelo perito na realização da avaliação, como, por
exemplo, análise comportamental, estudo de documentos acostados aos autos e exame do
histórico familiar. Freitas (2012) assinala que há inovação quanto à terminologia “perícia”
trazida pela lei, pois, anteriormente, tais profissionais eram considerados simplesmente
assistentes, sendo elevados, então, à categoria de peritos judiciais.
Ademais, Freitas (2012) observa que estando presentes indícios de alienação parental,
caberá ao juiz aplicar advertência, bem assim ampliar o período de convivência em favor do
genitor alienado, modificando o sistema “visitação” (substituído na lei pelo emprego da
expressão “período de convivência”), concedendo maior contato entre as vítimas da
alienação, ou seja, genitor e filho alienados.
O artigo 7º, que faz referência à preferência de atribuição da guarda ao genitor que
29
viabiliza maior contato da criança com o outro genitor, quando há impossibilidade de
aplicação da guarda compartilhada, deve ser interpretado juntamente com o artigo 1.584 do
Código Civil, que faz alusão ao poder de interferência do juiz no que diz respeito à escolha
do tipo de guarda, podendo ser sua decisão fundamentada no atendimento de necessidades
específicas do filho ou, então, em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste
com o pai e com a mãe (FREITAS, 2012).
No artigo posterior, ou seja, o 8º, foi instituído que é irrelevante a alteração de
domicílio do menor para a determinação da competência do foro para apreciar a ação. Isso
porque tal mudança domiciliar pode ser aquela indicada na lei e que se apresenta como
indício de alienação parental. Quando o assunto em pauta for, portanto, o direito de
convivência familiar, a apreciação dessa norma que busca a alteração do foro competente
ocorrerá tão somente se forem frutos de decisão consensual dos genitores ou então decorrente
de ordem judicial (GOMES, 2013).
A lei estabelece a criminalização da alienação parental, tipificando-a conforme atos de
campanha de desqualificação da conduta do genitor enquanto exercente da autoridade
parental, o impedimento de contato da criança com um dos pais, omissão de informações
pessoais importantes sobre o filho (médicas, escolares), alteração de endereços sem prévia
comunicação e com o intuito de dificultar o contato com a outra parte da família (GOMES,
2013).
Assim como no Código Penal, artigo 339, constitui infração penal a falsa imputação
de crime a alguém, na ocorrência de alienação parental também merece repreensão aquele pai
ou mãe que inventa, exagera ou distorce dolosamente dados ou fatos triviais, enfatizando-os
de tal forma que pudessem ser interpretados como verdadeiras “ameaças de morte”,
inserindo, ao pleito, um fantasioso sentimento de pavor. Como se sabe, processos, em geral,
provocam sofrimentos intensos nos envolvidos, situação que pode ser agravada devido ao
fornecimento de informações fajutas que levam o genitor alienado de ex-companheiro à
categoria de agressor.
No que concerne ainda à gravidade da prática de alguns atos, a Lei da Alienação
Parental inovou no sentido de que codificou aparatos repreensivos a serem aplicados aos pais
que descumprem normas. É necessário lembrar, contudo, que quando se trata de direito de
família “É preciso levar em conta que qualquer medida tomada contra os pais implicará
consequências aos filhos” (SOUSA, 2010, p. 177). Dessa forma, embora institua a aplicação
de multa como forma de penalização àquele que interrompe o tratamento médico em juízo,
30
foge com o filho ou pratica qualquer outro ato de alienação parental, não se permitiu, aqui no
Brasil, que houvesse a punição com o cerceamento da liberdade do genitor.
4. A GUARDA COMPARTILHADA COMO UMA POSSIBILIDADE DE
MINIMIZAÇÃO
DOS
CONFLITOS:
O
EQUILÍBRIO
NAS
RESPONSABILIDADES EM RELAÇÃO AO MENOR OU ADOLESCENTE
Silva (2009) apresenta como uma das opções para a manutenção do vínculo parental,
após a separação, a guarda compartilhada, que é uma modalidade de guarda de filhos
menores de 18 anos completos não emancipados, ou maiores incapacitados enquanto durar a
incapacidade, que vem crescendo nos últimos tempos, como a maneira mais evoluída e
equilibrada de manter os vínculos parentais com os filhos após o rompimento conjugal
(separação, divórcio, dissolução de união estável) e está prevista na Lei nº 11.698, de 13 de
junho de 2008.
De forma geral, constitui-se em uma forma pela quais pais separados,
divorciados ou com dissolução de união estável realizada, permanecem com as obrigações e
os deveres na educação dos filhos e nos cuidados necessários ao desenvolvimento deles em
todas as áreas, tais como emocional e psicológica.
Segundo Silva (2009) a guarda compartilhada não permite, portanto, que nenhum dos
pais se exima de suas responsabilidades e, muito menos, que um dos pais não possa exercer
esse dever para com a vida do filho e, por fim, garante que permaneça a convivência dos pais
com o filho, mesmo após a dissolução do casamento ou da união estável. É um regime que
conduz a relação dos pais separados com os filhos após o processo de separação, quando os
dois vão gerir a vida do filho.
A autora afirma que necessita de uma responsabilidade compartilhada entre ambos os
genitores acerca de todos os eventos e decisões referentes aos filhos: os pais conhecem,
discutem, decidem e participam em igualdade de condições exatamente da mesma maneira
como faziam quando estavam unidos conjuntamente, de forma que nenhum deles ficará
afastado a um papel secundário, como mero provedor de pensão ou limitado a visitas de fim
de semana. Não há, por exemplo, omissão de informações escolares ou médicas, nem acerca
de festinhas ou viagens. Uma vez que ambos os pais faziam isso enquanto estavam juntos, a
guarda compartilhada respeita esse princípio, e por isso não há motivos para que a situação
seja diferente agora que estão separados.
A guarda compartilhada funciona de maneira satisfatória para os pais participativos e
cooperativos e até mesmo entre pais que não possuem um bom relacionamento entre si, mas
31
que são capazes de separar as diferenças e conflitos conjugais que possuem em relação com
os filhos, preservado o exercício adequado da parentalidade. Entretanto, não funcionará,
principalmente para aquelas famílias com pais em conflito judicial ou com enormes
problemas conjugais não solucionados, onde as intrigas e os conflitos pessoais se sobrepõem
a tudo. Portanto, o entendimento, a boa vontade do casal é fundamental, sem o que, todas as
expectativas com relação à guarda compartilhada desaparecerão.
É claro que, na guarda compartilhada, não se fala mais em “visita com hora marcada”,
em finais de semana alternados, menos ainda estipulada por um terceiro – o juiz. Mas é claro
que os pais precisam conversar e debater muito acerca dos horários de convívio, conforme a
idade da criança, suas necessidades, sua rotina e suas atividades.
Para Silva (2009), não existe uma idade estabelecida, mas não é comum crianças
abaixo de 7 anos serem consultadas por juízes. Com adolescentes, é mais complicado porque
eles simplesmente decidem, independente do juiz, pegam a mala e vão para a casa do pai ou
da mãe. Quando o juiz acha necessário, ele pode pedir para psicólogos ouvirem a criança,
independentemente da idade. O que tem de prevalecer é o melhor interesse da criança, que
precisa de estabilidade. Se essa criança já tem uma convivência consolidada com uma das
partes, seja pai ou mãe, o entendimento dos tribunais é de que ela deve permanecer onde está.
É preciso consultar laudos para ver se as alterações não atrapalharão a rotina da criança. Os
vínculos socioafetivos, ao lado dos biológicos, não devem ser considerados.
Conforme o § 1.º do art. 1.583, do Código Civil, na redação da Lei nº 11.698/2008, a
guarda compartilhada, Grisard Filho (2013) entende que consiste na responsabilização
conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto.
A regra não limitou a possibilidade de compartilhamento da guarda às hipóteses de separação,
divórcio ou dissolução de união estável, é mais abrangente, favorecendo todos os pais que
nunca mantiveram um relacionamento familiar, a exemplo dos que assim se tornam por conta
de uma única e ocasional relação sexual, da qual resultou o nascimento de filho comum, e
que, mesmo assim, ambos os pais desejam participar ativamente da sua vida. Deve-se
interpretar a expressão “que não vivam sob o mesmo teto” como significado de pessoas que
nunca mantiveram ou deixaram de manter um projeto familiar comum.
Cabe destacar que em relação aos pais a guarda compartilhada oferece múltiplas
vantagens. Além de mantê-los guardadores e lhes proporcionar a tomada de decisões
conjuntas relativas ao destino dos filhos, compartilhando o trabalho e as responsabilidades,
privilegiando a continuidade das relações entre cada um deles e seus filhos, minimiza o
32
conflito parental, diminui os sentimentos de culpa e frustação por não cuidar de seus filhos,
ajuda-os a atingir os objetivos de trabalharem em prol dos melhores interesses morais e
materiais da prole. Compartilhar o cuidado aos filhos significa conceder aos pais mais espaço
para suas outras atividades (GRISARD FILHO, 2013).
Podemos dizer que um lar com ambiente equilibrado e relação
amigável e carinhosa com o infante e seus progenitores, além da
possibilidade de concessões recíprocas entre o ex-casal conjugal, bem
como uma relação no mínimo respeitosa entre pai e mãe com relação
aos assuntos da criança e adolescente, são condições e pré-requisitos
fundamentais para a admissibilidade da utilização da guarda
compartilhada e, consequentemente, para que a sua verdadeira
finalidade seja atingida; caso contrário, sua aplicação poderá ser
prejudicial à vida e à formação do menor, que sofrerá ainda mais com
os conflitos diários dos pais (AKIEL, 2010. p. 122).
Diante o exposto acima, a compreensão de Grisard Filho (2013), se existir entre os excônjuges o discernimento necessário, bom senso e razoabilidade e, ainda, se souberem
separar a frustação da relação conjugal que não deu certo da relação parental que é eterna,
sem sombra de dúvida, a utilização da guarda compartilhada constitui, para a família
moderna, o modelo perfeito e ideal.
Recentemente, em dezembro de 2014, dispositivos Lei 12.318/2010 foram
regulamentados pela Lei nº 13.058/2014, contribuindo para o trabalho de minimização da
Síndrome da Alienação Parental.
Há que se considerar que a Lei n.º 13.058/2014 dispõe sobre a aplicação da guarda
compartilhada, sendo quando não houver acordo entre os pais em relação ao sistema de
guarda dos filhos, o juiz deve, obrigatoriamente, aplicar a guarda compartilhada, à exceção de
situações em que um dos genitores não for considerado apto ao exercício do poder familiar.
Além disso, pode ocorrer que um dos genitores afirme em juízo que não quer a guarda do
filho.
A Lei 13.058/2014, prevê também que o tempo de convívio entre genitores e filhos
deve ser dividido de maneira igualitária, considerando as condições fáticas e os interesses dos
filhos. Quanto à base de moradia dos filhos deverá ser considerada a cidade que melhor
atender aos interesses da criança.
Aspecto importante estabelecido pela lei é a previsão de multa para seja de natureza
privada ou pública que negar informações a um dos genitores sobre seu filho, já que cabe a
33
ambos o acompanhamento do direito à saúde e à educação de seus filhos, s no âmbito do
regime de guarda compartilhada ou não.
5. CONCLUSÃO
A Síndrome Alienação Parental, constitui-se em um fenômeno que vem sendo
estudado no âmbito da Psicologia e Direito e que passou por significativo avanço, alcançado
com a Lei nº 12.318 de 2010, uma vez que a mesma regulamenta e deixa claro o real
significado da alienação parental. Além disso, coube à lei o papel de instalar os mecanismos
necessários para inibir os atos que envolvam alienação e que podem desencadear a síndrome
em crianças e adolescentes. Auxilia ainda, ao Poder Judiciário, apurar os fatos e aplicar a lei,
com o intuito de proteger a dignidade menor, criança ou adolescente e a garantia de seus
vínculos familiares.
Ao instituir a guarda compartilhada no ordenamento jurídico nacional, a Lei nº
11.698/2008 recolhe os meta princípios constitucionais da proteção integral da criança e ao
adolescente e da convivência familiar e estabelece preceitos de direito material e processual,
que asseguram uma adequada comunicação entre pais e filhos, para a sedimentação dos
sentimentos dos filhos e assim lograr a coesão afetiva e eficaz dos vínculos familiares e o
desenvolvimento de uma estrutura sólida e equilibrada da personalidade dos filhos menores
de idade (GRISARD FILHO, 2013).
Segundo o autor, os fundamentos da nova lei surgiram da necessidade de
normatização de uma realidade crescente na sociedade contemporânea, de democratização e
humanização da guarda de filhos após a ruptura da união de seus pais, de modo a garantir que
do processo educacional dos filhos participem igualitariamente os pais, preencher o vazio
legal que existia.
A Guarda Compartilhada ao ser estimulada pelo Judiciário, faz com que este endosse
um exercício de tolerância e amor aos filhos, em detrimento de pleitos baseados na defesa dos
interesses de um dos genitores. Os pais que optam por essa modalidade de guarda dividem a
responsabilidade legal sobre os filhos e compartilham obrigações e decisões importantes
relativas à criança. Pode ser instituída após processo de separação e, se há amizade entre os
ex-cônjuges, é mais fácil que seja implementada, até mesmo por acordo entre as partes, mas,
se há litígio, deve ser determinada mediante decisão judicial.
A partir das informações apresentadas anteriormente, é possível compreender que o
desenvolvimento do artigo em questão justifica-se em função de constituir em uma questão
34
atual, verificada com frequência na sociedade contemporânea e que tem sido alvo de
pesquisas e relatos de experiências no âmbito da Psicologia e do Direito.
REFERÊNCIAS
AKEL, A. C. S. Guarda Compartilhada: um avanço para a família. 2º ed. São Paulo: Atlas,
2010.
BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm. Acesso em: 23
fev. 2014.
BRASIL. Lei nº 13.058, de dezembro de 2014, de 22 de dezembro de 2014.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/Lei/L13058.htm. Acesso em: 28
fev. 2015.
CASTRO, L. R. F. Disputa de Guarda e visita: no interesse dos Pais ou dos Filhos? Porto
Alegre: Artmed, 2013.
FREITAS, D. P. Alienação parental: comentários à Lei 12.318/2010. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012.
GOMES, J. L. P. Síndrome da alienação parental: o Bullying familiar. Leme: Imperium
Editora, 2013.
GRISARD FILHO, W. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade
parental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SILVA, D. M. P. Guarda compartilhada e Síndrome de Alienação Parental: o que é isso?
Campinas: Armazém do Ipê, 2009.
SOUSA, A. M. Síndrome de Alienação Parental: um novo tema nos juízos de família. São
Paulo: Cortez, 2010.
35
DIREITO FUDAMENTAL À SAÚDE FRENTE AO PRINCÍPIO DA RESERVA DO
POSSÍVEL E DO MÍNIMO EXISTENCIAL
FUDAMENTAL RIGHT TO HEALTH FRONT OF THE PRINCIPLE OF POSSIBLE
RESERVE AND MINIMUM EXISTENCIAL
Giovanna Rossetto Magaroto Cayres
Mestranda pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM– Marília/SP. Bolsista
CAPES/PROSUP. Membro do Grupo DIFUSO – Direitos Fundamentais Sociais, cadastrados
no diretório de grupos de pesquisa do CNPQ. Contato: [email protected].
Teófilo Marcelo de Arêa Leão Júnior
Vice-Coordenador do Programa de Mestrado em Direito, professor universitário e bacharel
em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Mestre em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Doutor em Direito pela
Instituição Toledo de Ensino – ITE. Pós-Doutorando pela Universidade de Coimbra Portugal. Advogado. Líder do Grupo de Pesquisa Difuso – Direitos Fundamentais Sociais.
Advogado desde 1996. Contato: [email protected].
SUMÁRIO: 1- Introdução; 2- O direito fundamental a saúde; 3- O sistema único de saúde
como garantia institucional fundamental; 4- O princípio da reserva do possível e o direito à
saúde; 5- O mínimo existencial o direito à saúde; 6- Considerações finais. Referências
RESUMO: No presente artigo, será realizada uma análise do mínimo existencial e o
princípio da reserva do possível, com enfoque no direito fundamental à saúde. Diante disso,
veremos as possibilidades e limites do que pode ser exigido do Estado, tendo em vista a
escassez de recursos públicos. A dificuldade a ser enfrentada reside oporem duas questões
relevantes: por um lado, o Poder Público somente poderá implantar as políticas públicas
dentro de sua capacidade financeira, porém, por outro lado, não pode inviabilizar a garantia
das necessidades básicas para a sobrevivência do indivíduo, dentro do conceito de mínimo
existencial, sob pena de afronta ao princípio da dignidade humana, pilar de toda a sistemática
dos direitos humanos e fundamentais. Conclui-se que o acesso à saúde é ineficaz, na medida
em que devem ser realizadas políticas públicas em prol de um acesso direto e eficiente,
assegurando, desta forma, o direito previsto na Constituição como fundamental: a
sobrevivência do ser humano. A pesquisa pauta-se pelo método de investigação dedutivo,
onde livros, doutrinas, leis e jurisprudência foram adotados como procedimento técnico. Tem
como ponto de partida estudo bibliográfico e jurídico, para a posterior abordagem do atual
contexto legislativo brasileiro mediante a adoção de um ponto de partida constitucional.
Palavras-chave: Direito Fundamental; Saúde; Reserva do Possível; Mínimo Existencial.
ABSTRACT: In this paper, an analysis of the existential minimum and the principle of
reservation as possible, focusing on the fundamental right to health will be held. Therefore,
we will see the possibilities and limits of what can be required of the State, in view of the
scarcity of public resources. The difficulty to be faced lies oppose two relevant issues: first,
the Government may implement public policies only within their financial capacity, but on
the other hand, can not prevent the guarantee of the basic needs for survival of the species,
within the concept of existential minimum, otherwise affront to the principle of human
36
dignity, pillar of the whole scheme of human and fundamental rights. It follows that access to
health is ineffective to the extent that public policy should be made in favor of a direct and
efficient access, ensuring in this way, the right provided for in the Constitution as
fundamental: the survival of human beings. The research is guided by deductive research
method, where books, doctrines, laws and jurisprudence were adopted as technical procedure.
Its point of departure bibliographic and legal study for the posterior approach of the current
Brazilian legislative context by adopting a constitutional point of departure.
Keywords: Fundamental Right; Health; Reserve possible; Existential minimum.
1.
INTRODUÇÃO
Os direitos fundamentais sociais, previstos na Constituição Federal, constituem um
conjunto de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade o respeito a sua
dignidade, por meio de sua proteção contra o poder estatal, o qual estabelece condições
mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana, garantia extensiva a todos os
cidadãos a fim de se ver consagrado o direito à saúde do ser humano.
A presente pesquisa pauta-se na busca da forma em que o Estado aplica e administra
o dinheiro público, a fim de cumprir garantia constitucional relevante, não obstante se veja
diante de obstáculos gerados pela teoria da reserva do possível, os quais impedem ou
atrapalham a progressão a tal desiderato, dificuldades essas formalizadas em defesas do
Estado nas demandas dentro de processos judiciais em que o cidadão busca o reconhecimento
de seu direito, que antes lhe fora negado.
O tema abordado nesse artigo envolve questões relativas à eficácia dos Direitos
Fundamentais inerentes ao ser humano dispostos na Constituição Federal de 1988, por tê-los
elevado à categoria de direitos fundamentais/ direitos sociais, incluídos no Título II “Dos
Direitos e Garantias Fundamentais”. Daí a pretensão da plena eficácia e direta aplicabilidade
da norma que regulamenta o direito à saúde.
A efetivação dos direitos fundamentais é indispensável para o exercício de outros
direitos e liberdades fundamentais, como o direito à vida, por exemplo, exige a eficácia do
direito à saúde; o direito à dignidade reclama o direito à moradia; à educação, à escolha de
um trabalho digno, dentre outros.
Tanto o direito à vida como o direito à saúde foram reconhecidos como direitos
subjetivos fundamentais. Essa distinção produz reflexos na esfera individual da pessoa
humana, como em toda a comunidade em que ela está inserida, isto é, coletivamente. Mostrase evidente que, no Brasil, os recursos são escassos para que sejam assegurados, em toda sua
37
plenitude, o direito fundamental à saúde.
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) teve o objetivo de atender às
necessidades humanas da sociedade. Evidentemente, a formulação constitucional do SUS por
si só não resolveu a dramática situação da população brasileira no acesso às prestações de
saúde, vez que há dificuldade para ter-se um atendimento digno e eficaz.
Não basta a mera contemplação de direitos e deveres previstos na Constituição,é
preciso a concretização destes por meios de políticas públicas formuladas de tal modo a que
haja maior efetividade desse direito.
Oportuno se exponha, de início - embora constitucionalmente reconhecido o direito
fundamental à saúde -, ser árdua sua aplicação prática. É que não basta ser proclamado um
direito, necessário, em complemento, que haja efetividade desse direito. Questiona-se, pois: o
que é a efetividade? Responde-se: a efetividade é a satisfação, o sucesso na prática do que é
feito. Algo não realizado não teve efetividade, isto é, ficou sem o pretendido êxito. Para um
resultado satisfatório, a efetividade fica na dependência da conduta estatal de causa, a qual
está entre os deveres do Poder Público, que há de se submeter na articulação de políticas
prestacionais na área da saúde. Na seara jurídica, usa-se amiúde a expressão efetividade para
o direito, para o processo, sendo que os processualistas firmaram o que se deve entender
quando utilizado o substantivo.4
Abordaremos a reserva do possível diante do elevado crescimento dos direitos
fundamentais. As despesas públicas geram a diminuição dos recursos do Estado (ou até
podem torná-los escassos). O ente estatal, para conservá-los, procura limitar ao mais alto grau
a utilização dos recursos materiais necessários a efetivação dos direitos fundamentais
prestacionais, como o direito à saúde, que também o é. E quando o Estado se depara com um
direito fundamental amparado pelo mínimo existencial, alerta que se deve observar a reserva
orçamentária disponível, ou seja, a capacidade econômica estatal para gastos. Nessa
controvérsia, se e quando vence o Estado, o mínimo existencial inerente a todo ser humano,
alicerce da vida humana, é desrespeitado.
4
Cândido Rangel Dinamarco define a efetividade do processo, pontificando: “constitui expressão resumida da
idéia de que o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-política-jurídica,
atingindo em toda a plenitude todos os seus escopos institucionais.” (1998, p. 270.)José Carlos Barbosa Moreira
fornece a seguinte noção de efetividade do processo: “I- O processo deve dispor de instrumentos de tutela
adequados, na medida do possível, a todos os direitos contemplados no ordenamento. II) Em toda extensão da
possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da
específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento”. (1984, vol. III, pp. 27/28).Humberto Theodoro
Júnior preleciona: “Por efetividade entende-se a aptidão de um meio ou instrumento para realizar os fins ou
produzir os efeitos para que se constituiu.” (1997, p.34.)
38
Nesse contexto, questiona-se: Há mesmo um direito à saúde? Se existe, insere-se no
rol dos direitos sociais? Qual a limitação que pode sofrer, ou como ir em sua defesa para que
se respeite seu âmbito de proteção? Contém as características de direito subjetivo? Qual a
extensão ou delimitação das ações positivas do Estado em se levando em conta o conceito da
“reserva do possível”? Como se pode ou deve trabalhar o denominado “mínimo existencial”?
Tal mínimo insere-se dentro do princípio da dignidade da pessoa humana? Por quê?
Tentar-se-á elucidar, na linha de tais questionamentos, sobre o cabal reconhecimento
constitucional de proteção à saúde na categoria de direito, mas não só, também na categoria
de direito social, bem como se preenche as condições necessárias para ser, existir, realizar-se,
para cuja ocorrência por certo existem obstáculos, porém, como se pode enfrentá-los na busca
de sua realização efetiva. Enfim, em sendo direito social, o é factível ou passível de
realização.
A pesquisa pauta-se pelo método de investigação dedutivo, onde livros, doutrinas,
leis e jurisprudência foram adotados como procedimentos técnicos. Tem-se como ponto de
partida o estudo bibliográfico e jurídico, para a posterior abordagem do atual contexto
legislativo brasileiro mediante a adoção de um ponto de partida constitucional.
2.
O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Desde o primórdio, a sociedade humana vem evoluindo econômica, social e
politicamente; quando da conquista dos direitos fundamentais, vence as batalhas contra o
poder do estatal.
Sobrepujou obstáculos diversos e obteve como conquista o amparo estatal à saúde
pública, da qual se destaca o interesse individual e coletivo de proteção, que passou a ser
direito à saúde. Esse direito constitui um direito fundamental, garantido mediante políticas
públicas sociais e econômicas, constituindo o dever do Estado, da coletividade e do indivíduo
em adotar as medidas pertinentes à sua preservação e conservação. Pode-se dizer que o
direito à saúde tem caráter de interesse individual e social, por se tratar de uma questão
humana que deve ser respeitada.
A proteção do direito à saúde depende de previsão de políticas públicas que devem
ser realizadas pelo ente estatal, com intuito de tutela do bem da vida com dignidade. E o art.
5º, §1º da CF/88 estabelece que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
tem aplicação imediata".
39
Com a Segunda Guerra Mundial, os direitos fundamentais novamente foram
marcados historicamente, com a incumbência atribuída ao Estado de zelar e proteger a vida
de todos, sem distinção, já que era e é possuidor da aparato necessário para a concretização
desse bem da sociedade. (MORENO e VENDRAME,2011, p.2).
A Constituição Federal de 1988 assegurou o direito à saúde como garantia a todos,
devendo o Estado exercer ações e serviços de saúde visando uma nova ordem social, cujo
objetivo é o bem-estar e a justiça social, conforme expresso no artigo 196:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.
Temos também a Declaração Universal de Diretos Humanos em seu artigo 25, que
apresenta a importância de assegurar a pessoa humana condições de vida e acesso a bens,
serviços para manutenção da saúde e do bem estar, tendo como um direito, o acesso a saúde
(POZZOLI, 2012, p. 125).
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde e o bem–estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário,
ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários,
e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na
velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade.
Segundo Lafayette Pozzoli " é possível afirmar que a positivação dos direitos
humanos não é obra de um legislador que subitamente foi despertado pela crueza de uma
injustiça, pelo contrário, surge da necessidade de reorganizar o corpo social (2012, p.56).
Quem tem saúde conta com um estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e
seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo. Aquele
que não a tem,em decorrência de estar acometido de alguma doença, sofre manifestação
patogênica que influencia sua qualidade de vida, tirando-lhe algum
desfrute que seria
proporcionado pelo referido equilíbrio dinâmico. Ver-se-á no final, porém, que a saúde é bem
mais envolvente, não se circunscrevendo somente por estarem ausentes doenças, de vez que
há fatores que a determinam e condicionam.
Certo também será saúde um bem humano essencial, que constitui, logo depois da
vida, a essência natural de um ser, absolutamente necessário e indispensável. Logo, a saúde é
o núcleo do direito à vida, sem o que não há fruição (física ou espiritual) dela. Reconheceu-se
constitucionalmente esse direito para que o ente estatal passe a dever o desenvolvimento de
políticas públicas que visem a redução de doenças, a promoção, a proteção e a recuperação da
40
saúde (RAMOS, 2010, p. 336).
Como bem salienta Flávia Piovesan, forte em Norberto Bobbio: “os direitos
fundamentais não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Com efeito, são
frutos das batalhas travadas por heróis sem rosto e sem nome em prol dos valores humanos, a
favor da liberdade e da preservação da dignidade do homem, que buscam abarcar sob a
proteção do maior número de indivíduos possível". (PIOVESAN, 2006, p.560).
Bem por isso, a Constituição Brasileira reconhece, em seu artigo 6º, a saúde como
um direito social e fundamental, força motriz para fornecer às pessoas o acesso às ações e aos
serviços de saúde para garantir-lhes condições de sobrevivência digna.
Os direitos humanos fundamentais dão plena positivação de direitos, a partir dos
quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o poder judiciário, a fim de ser
concretizado. Ressalta-se que a proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar
efetiva a aplicabilidade e o respeito dos direitos humanos fundamentais previstos na
Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral. (MORAES, 2003, p.21).
Nesse propósito, demonstrar-se-á a importância da Administração Pública na
implantação dos direitos prestacionais, seja por meio de políticas que priorizem as
necessidades estabelecidas na Constituição como fundamentais, seja como se deve
estabelecer a competência para gerenciamento dos recursos, com verificação dos que são
escassos, exercendo crítica construtiva e responsável para que a administração pública não
descure do dever de prestação de contas efetivas e eficientes que demonstrem a real
impossibilidade de implementação do direito a saúde. Não haverá tolerância de respostas
vazias e sequer retrocesso social.
Necessário seria uma revisão das prioridades dos gastos públicos no Brasil e
adequado estudo sobre a melhor forma de programar políticas públicas voltadas para a
satisfação das necessidades básicas e inerentes do ser humano. Tendo em vista que o direito
fundamental à saúde é de suma importância quanto à sua efetivação, é dizer, produção dos
efeitos desejados (Theodoro Júnior, 1997, p.34.), diante das necessidades essenciais do
indivíduo, com respeito o direito a vida, do direito à saúde, sob o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Afirmam Daniel WeiLiang Wang e Marcos Paulo Veríssimo que a “efetivação dos
direitos sociais depende da realização de políticas públicas por parte do Estado, o que faz
com que a proteção de um direito social se dê pela ação estatal e a violação pela omissão do
poder público”. (2006, p. 3). Desse modo, a aplicabilidade dos direitos sociais assegurados
41
pela Constituição depende da posição positiva do Estado, ficando os seres humanos a mercê
do poder estatal, que, se omisso for, não serão realizados tais direitos.
O financiamento do Sistema Único de Saúde, conforme artigo 195, opera-se com
recursos do orçamento da seguridade social. No RE 195.192-3/RS, a 2ª Turma do Supremo
Tribunal Federal consignou o entendimento de que a responsabilidade pelas ações e serviços
de saúde é da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (RAMOS, 2010,
p.336 e 337):
Saúde-AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS- DOENÇA
RARA. Incumbe ao Estado(gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde,
especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde,
torna a responsabilidade linear, alcançando a União, os Estado, o Distrito Federal e
os Municípios. (RE 195.192- 3/RS, 2ª Turma, Ministro Marco Aurélio, DJ 22-022000).
O Superior Tribunal de Justiça, vem proferindo acórdãos sobre o assunto, verbis:
É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos o direito fundamental à saúde
constitucionalmente previsto. Eventual ausência do cumprimento de formalidade
burocrática não pode obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à
cura e/ou minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso,
não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento. Entendimento
consagrado nesta Corte na esteira de orientação do Egrégio STF” ( Rel. Min.
FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, ROMS nº 11.129PR, in DJU de 18/02/2002).
O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade a assistência, de forma
individual ou coletiva, para tender cada caso em todos os níveis de complexidade,
razão pela qual, comprovada a necessidade do medicamento para a garantia da vida
da paciente, deverá ele ser fornecido” (Rel. Min. FRANCIULI NETTO, REsp nº
212.346RJ, in DJU de 04/02/2002).
Destarte, mera alegação de ter-se por violada a separação dos poderes em face da
ativação do Poder Judiciário para submeter órgão da administração pública a uma imposição
de cumprimento omitido não justifica a inércia do Poder Executivo. Por quê? É que é dever
do Poder Executivo cumprir com seu dever constitucional de garantia do direito à saúde,
estabelecido pelas normas que regem o SUS. O princípio de acesso igualitário e universal do
ser humano ao SUS reforça a responsabilidade dos entes da federação, garantindo também a
"igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie (art.
7°, IV, da Lei 8.080/90).
Desta forma, deixar de efetivar o direito à saúde representa não só descumprimento
ao texto constitucional, mais afronta a sociedade como um todo, cujo integrante dela tem
direito a uma saúde eficaz e digna.
3.
O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE COMO GARANTIA INSTITUCIONAL
42
FUNDAMENTAL
Após a promulgação da carta magna de 1988, criou-se o Sistema Único de Saúde
(SUS) para atender a garantia constitucional à saúde no Brasil. Antes ficava a cargo do
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que se
circunscrevia aos empregados contribuintes da previdência social, enquanto os demais eram
atendidos por serviços filantrópicos.
Juridicamente, o direito brasileiro atribui importância significativa à saúde,
consagrando-a como garantia fundamental essencial ao ser humano. E a concepção do
Sistema Único de Saúde tem por escopo atender a coletividade, cujo objetivo é de promover
o bem estar social.
A sociedade buscava garantir, na nova Constituição, direitos e valores da
democracia. Apesar do SUS ser definido pela Constituição de 1988, somente em 1990 foi
regulado. A Lei 8.080, de 19/09/1990, que o regulou, estabeleceu o modelo operacional do
SUS, instituindo sua organização e funcionamento (MORENO e VENDRAME, 2011, p. 14 e
15).
Desta forma, foram instituídos princípios doutrinários do SUS, tais como o da
universalidade, onde todos os cidadãos têm direito a assistência a saúde; a equidade, que
garante a igualdade da assistência à saúde, sem privilégios e preconceitos e, por último, a
integralidade, que prevê que a assistência a saúde deve ser fornecida na sua totalidade, ou
seja todas as fases de um tratamento devem ser cobertos pelos SUS (POZZOLI, 2012, p.
130).
Enquanto a organização do SUS, é a descentralização da assistência e comando
único de gerenciamento das ações dividindo as responsabilidades entre o governo estadual,
federal e municipal. E a participação social através da população, profissionais da saúde,
além dos representantes do governo nos Conselhos de saúde local, municipal, estadual e
federal e nas Conferencias de saúde federal e municipal (POZZOLI, 2012, p. 130).
A implantação do Sistema Único de Saúde não tem sido muito eficaz e promissora
no que tange a seus objetivos, precisando dispor de recursos financeiros, de pessoal
qualificado e de uma efetiva política para viabilizar o sistema. Verifica-se também que houve
descumprimento constitucional e legal, portanto houve omissão do ente público na
fiscalização das ações de saúde.
43
Duas décadas após a criação do SUS, muitas pessoas ainda se sentem insatisfeitas ou
prejudicadas no que diz respeito à saúde pública. Algumas delas preferem pagar alto preço
para obter atendimento especializado nos hospitais privados ou optam pelos planos de saúde.
(SCHWARZ, 2012).
Entende-se que o SUS é uma organização administrativa destinada à promoção da
saúde pública, cujo acesso deveria ser tanto universal como igualitário, de acordo com as
diretrizes estabelecidas pela própria Constituição Federal de 1988, consoante se demonstra a
seguir:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por
pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
Em assim sendo, qualquer pessoa tem direito de obter os serviços do SUS, tenha ou
não condições econômicas para arcar com os gastos da saúde de forma privada. Nesse
sentido, a saúde pública desempenha a função de executar a tarefa de garantir as condições de
vida saudável ao indivíduo,estimulando a população a satisfazer as necessidades básicas de
vida e melhorar seu bem estar físico, mental, social e espiritual.
Destaca o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, no Agravo Regimental
interposto pelo Estado do Pernambuco visando a Suspensão de Liminar deferida:
O estudo do direito a saúde no Brasil leva a concluir que os problemas de eficácia
social desse direito fundamental devem-se muito mais a questões ligadas a
implementação e a manutenção das políticas publicas de saúde já existentes- o que
implica também a composição dos orçamentos dos entes da Federação- do que a
falta de legislação especifica. Em outros termos, o problema não é de inexistência,
mais de execução (administrativa) das políticas publicas pelos entes federados.
(AgReg./PE 47, rel. min. Gilmar Ferreira Mendes, DJ, 30/04/2010)
E segundo o Ministro Celso de Mello:
(...)Dever estatal de assistência à saúde e de proteção à vida resultante de norma
constitucional(...).Desrespeito à Constituição provocado por inércia estatal (...).
Comportamento que transgride a autoridade da Lei Fundamental da República (...).
44
O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela
Constituição e não efetivadas pelo poder público. A fórmula da reserva do possível
na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação
para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação
constitucionalmente impostos ao poder público.(...) Caráter cogente e vinculante
das normas constitucionais, inclusive daquelas de conteúdo programático, que
veiculam diretrizes de políticas públicas, especialmente na área da saúde (cf. arts.
6º, 196 e 197).(...).Controle jurisdicional de legitimidade da omissão do poder
público: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de
observância de certos parâmetros constitucionais (proibição de retrocesso social,
proteção ao mínimo existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de
excesso). (...) Responsabilidade solidária das pessoas políticas que integram o
Estado federal brasileiro, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS).” (ARE
727.864, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-92014, DJE de 17-9-2014).
A sociedade brasileira depositava esperança na construção de um SUS para todos.
Ainda que construído, a expectativa resultou em alta dose frustrada pelo fato de a efetividade
na realização dos fins esperados não se concretizou sobretudo por omissão do ente estatal. É
inaceitável que governos e gestores, representantes do Estado responsáveis em promover a
saúde pública, deixem de cumprir seus deveres e responsabilidades. A luta pela efetivação do
direito à saúde no Brasil ainda permanece, pois esse sistema se mostra insuficiente em face da
grande demanda da população.
No entanto, ao mesmo tempo que o marco regulatório da saúde evoluiu, as
políticas públicas não se mostraram suficientes para viabilizar de fato os anseios do
constituinte de 1988. Apesar de todo o processo de assistência à saúde, ainda encontramos
dificuldade para se chegar a ter um atendimento digno e eficaz.
4.
O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL E O DIREITO À SAÚDE
A efetiva concretização dos direitos sociais e fundamentais, dentre os quais o direito
à saúde, depende da disponibilidade financeira do Estado. O princípio da reserva do possível
representa justamente as limitações financeiras do ente estatal, as quais conduzem à
contenção e corte de gastos, repercutindo nas previsões do orçamento público. As limitações
orçamentárias do Estado dificultam a aplicação desses direitos, recaindo no Poder Judiciário
a tarefa de equalizar a questão, devendo o julgador verificar a razoabilidade da pretensão a
real capacidade pecuniária do Estado.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 30), a reserva do possível apresenta três
dimensões, quais sejam:
a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos
fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que
45
guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias,
orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso,
reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso
sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular
de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da
proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta
quadra, também da sua razoabilidade.
Enquanto Dirley da Cunha Júnior(2008, p. 349-395) afirma:
Em suma, nem a reserva do possível nem a reserva de competência orçamentária do
legislador podem ser invocados como óbices, no direito brasileiro, ao
reconhecimento e à efetivação de direitos sociais originários a prestações. Por
conseguinte, insistimos, mais uma vez, na linha da posição defendida por este
trabalho, que a efetividade dos direitos sociais, notadamente daqueles mais
diretamente ligados à vida e à integridade física da pessoa, não pode depender da
viabilidade orçamentária.(...)Nesse contexto, a reserva do possível só se justifica na
medida em que o Estado garanta a existência digna de todos. Fora desse quadro,
tem-se a desconstrução Constitucional de Direito, com a total frustração das
legítimas expectativas da sociedade.
Na concretização ou realização dos direitos sociais, Gustavo Amaral diz que a
reserva do possível significa que a concreção pela via jurisdicional de tais direitos demandará
uma escolha desproporcional, imoderada ou não razoável por parte do Estado, pois teria que
demonstrar, judicialmente, que tem motivos fáticos razoáveis para deixar de cumprir um
direito previsto na Constituição. Finaliza o doutrinador que:
A postura de 'máxima eficácia' de cada pretensão, sobre o fato de não adentrar no
conteúdo do direito a ser dada a eficácia, implica em negação da cidadania na
medida em que leva à falência do Estado pela impossibilidade de cumprir todas as
demandas simultaneamente e rompe com a democracia, pretendendo trazer para o
ambiente das Cortes de Justiça reclamos que têm seu lugar nas ruas, a pressão
popular e não na tutela paternalista dos 'sábios” (AMARAL, 2001, p. 116-119).
Anderson Rosa Vaz assevera que a escassez de recursos materiais constitui barreira à
efetivação dos direitos sociais, de tal maneira que o pleito por um cidadão de algum direito
social em face do Estado, quando se alega falta de recursos financeiros e ausência de previsão
orçamentária, será negado pelo Judiciário e, por conseqüência, aniquilados direitos humanos
consagrados na ordem jurídica interna e externa. O princípio da reserva do possível deveria
condicionar-se à prova cumprida da falta financeira estatal e sem ser óbice para a efetivação
dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. (2007, p. 44-45). A contenção e corte
de gastos destinados fora da área dos direitos fundamentais e sociais é, em princípio,
legítima, e ainda mais se legitima se tais gastos podem ser considerados desnecessários para o
funcionamento da máquina pública ou quando a destinação deles não cumpre a finalidade
social.
E no Brasil, infelizmente, o que se percebe, com muita frequência, é o uso indevido
do dinheiro público. Por falta de fiscalização ou por desvio de caráter dos nossos
administradores, o que se verifica amiúde com o uso de recursos públicos que deveriam ser
46
alocados na efetivação de direitos como o da saúde, educação, segurança, alocados que são
para setores distintos da destinação originária.
Nesse conflito, ações judiciais variadas deságuam no Judiciário para reivindicar-se a
tutela do direito previsto no texto constitucional. O Estado, por sua vez, reprisa em demandas
a alegação da falta ou escassez de recursos, sob o pálio da reserva do possível, a fim de
abster-se da prestação dos direitos sociais e fundamentais.
Em suma, a efetivação dos direitos sociais se encontra subordinada à teoria da
reserva do possível, na medida em que o Poder Público somente poderá implementar as
políticas públicas dentro de sua capacidade financeira. Entretanto, a reserva do possível não
pode se tornar um óbice à preservação do mínimo necessário, salvaguarda para garantir a
dignidade humana, porquanto é este o alicerce para efetivação do direito fundamental.
Além disso, essencial o princípio da proporcionalidade para se resguardar o
equilíbrio entre a reserva do possível e o mínimo existencial, impedindo que haja um
retrocesso das conquistas sociais.
Ainda mais, “quanto maior a densidade do comando normativo, maior será a
possibilidade de exigibilidade; contudo, está é reduzida proporcionalmente, conforme a
diminuição de sua densidade.” (LEÃO JÚNIOR, 2015, p. 45)
Para Ana Paula Barcelos, os recursos públicos são escassos em decorrência de a
sociedade estar em constante desenvolvimento e os custos do sistema público de saúde
tornam-se cada vez maiores, deixando de suprir necessidades mínimas para existência do
indivíduo. (2008, p.133-160)
O ministro Celso de Mello,ao apreciar a Pet. 1.246-SC, pontifica que o direito à vida
teria mais peso que o interesse financeiro do Estado:
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como
direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da
República (art. 5º, caput e art. 196) ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa
fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez
configurado esse dilema – que razões de ética jurídica impõem ao julgador uma só e
possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e saúde
humanas.
Para tanto, a política pública deve ser compreendida como um conjunto de atuações
do Poder Público e não como ato isolado, pois os direitos mínimos garantidos pela
Constituição Federal e as políticas públicas necessárias para sua implementação necessitam
de recursos para serem concretizados, sendo atribuição ou responsabilidade do Estado tanto
rever quanto aplicar adequadamente os recursos arrecadados com o escopo de atender a
sociedade no tocante ao direito à saúde.
47
5.
O MÍNIMO EXISTENCIAL E O DIREITO À SAÚDE
O direito à saúde desempenha um papel de destaque no Ordenamento Jurídico. Sua
análise passa por uma perspectiva de direito público, em que é tratado como direito
fundamental social (artigos 6º e 196 da Constituição da República do Brasil de 1988), em que
o Estado tem o dever de prestá-lo, tanto materialmente em estrutura, construção de hospitais,
postos de saúde e fornecimento de medicamentos, como na contratação de profissionais da
saúde.
O mínimo existencial é núcleo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
previsto no artigo 1º, III da CF, consistente de um conjunto de prestações materiais
necessárias e essenciais destinadas para que todo ser humano desfrute de uma vida digna
(NASCIMENTO, 2012).
Assim, o Estado não pode negar o encargo de promover o mínimo existencial para
os seres humanos. Ana Paula de Barcellos, em sua dissertação de Mestrado intitulada “A
eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana”
define mínimo existencial como:
Uma primeira resposta que se pode apresentar desde logo, insatisfatória por sua
generalidade, porém útil, é que o mínimo existencial corresponde ao conjunto de
situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí
considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e a manutenção
do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um
Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos
indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada
um seu próprio desenvolvimento. (BARCELLOS, 2002, p. 197-198).
Ainda sobre o tema, Ana Paula de Barcellos disserta:
O mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três
materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a
assistência aos desamparados e o acesso a justiça. Repita-se, ainda uma vez, que
esses quatros pontos correspondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana a que
se reconhece a eficácia jurídica positiva e, o status de direitos subjetivo exigível
diante do Poder Judiciário. (BARCELLOS, 2002, p. 258).
Sobre o mínimo vital enquanto direitos sociais Teófilo Marcelo de Arêa Leão Júnior
elucida:
Os direitos sociais estabelecem direitos hábeis a gerar aos indivíduos condições de
sobrevivência. Podemos analisá-las em duplo sentido: primeiro, quando esses
direitos não podem ser objeto de intervenção do Estado, pois geram a idéia de
liberdade e dignidade do homem (direitos negativos); segundo, quando exigem
prestações estatais positivas (direitos positivos). Nota-se que do primeiro sentido se
passou ao segundo; ou seja, passou-se daquilo que é preciso fazer para afirmar
juridicamente para aquilo o que não pode deixar de fazer, quedando-se, assim,
inerte. (LEÃO JÚNIOR, 2014, p. 50)
48
Desta forma, o Estado tem que fornecer obrigatoriamente esse mínimo, pois se
deixar de fornecer as prestações correspondentes, descumpre o dever de executar o que lhe é
acometido e contribui negativamente para o desrespeito da dignidade humana, o que
significa, também, desconsideração
a uma efetividade mínima dos direitos sociais e
fundamentais.
Ricardo Lobo Torres (2003, p. 26) assim define o mínimo existencial:
Sem o mínimo necessário a existência cessa a possibilidade de sobrevivência do
homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as
condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo.
Nota-se que o ser humano tem o direito, e o Estado o dever, na preservação da vida
como um direito fundamental. Isso porque o ser humano reclama condições mínimas de
existência digna conforme os ditames da justiça social. (SILVA, 1998, p. 147). A saúde e a
vida estão extremamente próximas e ligadas. Por essa posição de supremacia ao lado do
direito à vida digna é que a saúde se revela o mais importante dos direitos expostos no artigo
6º da Constituição Federal.
Assim dispõe no artigo 3º e o seu parágrafo único da Lei 8.080 de 19 de setembro de
1990 (Lei Orgânica da Saúde):
Art. 3º. A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda,
a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis
de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do
disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social.
Demonstra-se, nessa esteira, que o mínimo existencial à saúde abrange não apenas a
ausência de doenças, mas o completo bem-estar físico, mental e social.
Segundo Luiz Alberto David Araújo (1997, p. 88):
O direito à saúde não significa, apenas, o direito de ser são e de se manter são. Não
significa apenas o direito a tratamento de saúde para manter-se bem. O direito à
saúde engloba o direito à habilitação e à reabilitação, devendo-se entender a saúde
como o estado físico e mental que possibilita ao indivíduo ter uma vida normal,
integrada na sociedade.
O Estado deve agir de forma a socorrer todos os cidadãos, independente de sua
classe social, prestando toda a assistência necessária, sob pena de estar violando não só o
direito fundamental à saúde, mas todos os direitos fundamentais.
A crise do sistema de saúde é um retrato da realidade brasileira, ruína essa que
mostra a decepção de milhares de pessoas no enfrentamento de filas em busca de seus
49
direitos frustrados, seja pela falta de leitos hospitalares, seja por falta de medicamento
gratuito, seja até mesmo pela falta de médicos capacitados para um atendimento adequado.
O SUS é um exemplo disso, pois seu índice de desempenho mostrou que o maior
problema no país é o acesso a ele. Os pacientes têm dificuldade em conseguir atendimento,
principalmente nos hospitais, mormente para os procedimentos complexos.
Ocorre que a reserva do possível passa ainda por um critério de razoabilidade, como
decidido pelo STF no julgamento da ADPF nº 45. O Estado não pode escusar-se de cumprir
determinadas prestações sem ponderar a possibilidade de fazê-lo. O que se procura nessa
medida é impedir que as normas dadas por programáticas se transformem em promessas
constitucionais inconsequentes, fraudando justas expectativas, pela população, depositadas
nos Poderes Públicos.
Infelizmente, no Brasil, a saúde pública é tratada com descaso, negligência, mesmo
que se olvide os impostos altos incidentes em remédios, os quais são cobrados sem
comiseração. Médicos e agentes da saúde são insuficientes e, além disso, as pessoas sofrem e
morrem em filas formadas para acesso aos hospitais, pela demora em serem atendidas, pela
falta de leitos, pela demorada espera em corredores hospitalares, pela falta de equipamentos
especializados, de tecnologia, de hospitais e postos de saúde apropriados para a demanda.
Arrimado em Soraya Gasparetto Lunardi em estudo sobre a moradia, podemos fazer
paralelo com a saúde identificar que a preocupação normativa do legislador brasileiro são “os
beneficiários e não o conteúdo à moradia”, aqui neste texto, à saúde. (LUNARDI, 2011, 310)
Em suma, a tutela do direito à saúde é questão bastante complexa, não só porque
envolve direito da personalidade integrante do mínimo existencial da pessoa, mas também
porque, em se tratando de direito fundamental social, submete-se à capacidade financeira do
Estado (reserva do possível). E a intervenção do Poder Judiciário deve ser feita, portanto,
com bastante cautela, avaliando-se as especificidades do caso concreto e levando-se sempre
em conta a dimensão subjetiva e objetiva do direito fundamental envolvido.
Enfim, é necessário um padrão mais uniformizado de atuação dos poderes estatais na
realização dos direitos sociais com o intuito de assegurar o mínimo existencial, para evitar
que a falta de vontade política e decisões parciais sejam adotadas, produzindo efeitos
variados no oferecimento de prestações de conteúdo universal. Contudo, não se pretende
partir para a defesa de um mínimo próprio de cada direito, porque seria o mesmo que nivelar
por baixo direitos que não foram hierarquizados na Constituição.
50
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos fundamentais sempre foram objeto de lutas durante toda a história do
homem, e hoje são reconhecidos como garantais inerentes ao cidadão, previstos no
ordenamento constitucional. Nesse sentido, pode-se dizer que os direitos fundamentais
sociais são os que mais encontram problemas para sua aplicação.
Bem por isso, os direitos sociais devem ser compreendidos como direitos
fundamentais para a realização das liberdades individuais e coletivas, e dos direitos políticos,
como pressuposto para a efetivação da dignidade inerente ao cidadão, bem como fator
determinante para a concretização da justiça social e para a reafirmação do Estado
Democrático de Direito.
Nesse sentido, abordados temas de grande relevância, qual seja, o direito
fundamental social, em especial o direito a saúde em oposição à reserva do possível, que
preconiza a existência de recursos materiais suficientes para a realização das garantias
constitucionais fundamentais, pela concretização legislativa e ponderação.
Dessa forma, verificou-se que os tribunais brasileiros têm adotado posições
divergentes em relação às pretensões dos direitos sociais: alguns ignoram a questão relativa
ao custo prestacional de tais direitos, determinando uma aplicação quase que absoluta da
norma constitucional, outros, diferentemente, quando confrontados com a questão da
aplicação de recursos e a efetividade dos direitos fundamentais sociais, eximem-se de obrigar
o Estado à adoção de políticas públicas ou mesmo realização de prestações específicas, ora
sob fundamento de que estaria havendo uma invasão da competência discricionária do
Executivo, ora sob a alegação da faltar recursos aos poderes públicos.
Assim, o Estado tem o dever legal de garantir o mínimo do ser humano, para
garantir que a pessoa humana tenha acesso digno a hospitais, postos de saúde, médicos
capacitados, enfim, a todos os meios e recursos que lhe devolvam ou promovam sua saúde.
Entretanto, analisamos que os direitos fundamentais sociais de cunho prestacional
têm aplicação imediata e devem ser impostos ao Estado, não podendo deixar de prestar
serviços que já foram implantados dentro da sociedade, sob pena de ferir o princípio da
proibição de retrocesso e, muito menos, deixar de prestar direitos mínimos necessários para
uma vida com dignidade, ferindo o mínimo existencial.
Diante da escassez de recursos e das necessidades sociais, cabe ao Estado efetuar
escolhas, estabelecendo critérios e prioridades, sendo que tais escolhas consistem na
51
definição de políticas públicas, cuja implantação depende de previsão e execução
orçamentária, contudo, jamais podem sobrepor-se ao mínimo existencial. A reserva do
possível deve dar lugar à vida, à dignidade, à saúde, para que o ser humano possa desfrutar do
mínimo existencial e sobreviva. Nessas escolhas estatais a existência vital mínima deve ser
priorizada e jamais ser superada por quaisquer políticas, normas, princípios ou
supraprincípios.
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54
BASES TEÓRICAS PARA UMA AGENDA DE DIREITOS HUMANOS: UMA
LEITURA DE KIERKEGAARD
THEORETICAL BASES FOR A HUMAN RIGHTS AGENDA: A LECTURE ON
KIERKEGAARD
Ivan Pinheiro de Figueiredo
Mestrando em Direito pela UNESP/Franca
Pós-graduando pela FDRP-USP
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O todo e o sujeito em Kierkegaard. 3. O pensamento universal
e a lógica totalizadora. 4. A construção de uma agenda positiva para os direitos humanos. 5.
Conclusões.
RESUMO: Procura-se discutir a relação entre o sujeito e a totalidade a partir das visões de
Søren Kierkegaard, e a respectiva interpretação de sua obra feita por Theodor Adorno, para a
partir daí desenvolver raízes teóricas de atuação política em relação à efetivação de direitos
humanos. A partir da virada ao subjetivo operada pela filosofia kierkegaardiana em “Temor e
tremor”, estabelecer a capacidade de ação política transformadora inserida em um contexto
com pretensões hegemônicas e conservadoras.
Palavras-chave: Kierkegaard. Direitos Humanos. Totalidade. Subjetividade.
ABSTRACT: This article discusses the relation between the subjectivity and the totality
from the perspectives of Søren Kierkegaard, and the interpretation of his work made by
Theodor Adorno, to thereafter develop theoretical roots of political action in relation to the
implementation of human rights. From the turn to the subjective operated by kierkegaardian
philosophy in "Fear and trembling", establish the ability of transforming political action
embedded in a conservative context with hegemonic pretensions.
Keywords: Kierkegaard. Human Rights. Totality. Subjectivity.
1. INTRODUÇÃO
O debate acerca da ação política empreendida em um sistema de organização
social com pretensões universalistas e totalitárias esbarra na capacidade de superação do
próprio sistema a partir de dentro. Tomado como espelho da lógica capitalista, o Estado, e por
conseguinte os seus produtos, como é o direito, revela-se incapaz de superar a totalidade
sistemática imposta pelo capital. Dessa perspectiva, a atuação por dentro do aparelho estatal
está condenada a perpetuar a apropriação e posterior desfiguração de interesses comuns em
interesses superiores e gerais, pertencentes não mais à sociedade, mas ao Estado, subtraída
nesse processo a atuação das pessoas para em seu lugar ser colocada a atuação de governo.
(MARX, 1968, p. 143 e ss.).
De outro lado, a investigação da subjetividade e da subjetivação, tomada a
55
partir da obra de Kierkegaard, propõe escape à hegemonia calcado na capacidade de
ressignificação operada pelo indivíduo. A emancipação com relação ao sistema com
pretensão universalista se dá, então, no sujeito, no lócus intangível à lógica hegemônica.
Ao localizar no sujeito a capacidade de ressignificação do total, a obra de
Kierkegaard abre espaço para o debate sobre a realização de uma agenda de ação política
transformadora, ainda que inserida no sistema capitalista.
2. O TODO E O SUJEITO EM KIERKEGAARD
Em seu livro “Temor e Tremor”, Søren Kierkegaard, escrevendo sob o
pseudônimo de Johannes de Silentio, trata da possibilidade de ocorrência de uma suspensão
teleológica do ético. Valendo-se da passagem bíblica sobre Abraão e Isaac, pai que recebe a
incumbência de assassinar seu filho, o dinamarquês procura conciliar o universal e o
indivíduo. A questão está no paradoxo enfrentado por Abraão, consistente na necessidade de
conciliar o ético5, universal, exprimido no mandamento de que um pai deve amar seu filho
mais do que a si, com o rompimento operado por um ato de fé necessariamente individual.
A situação torna-se paradoxal pois a suspensão do ético precisa ser operada
por agente que, inserido nos limites normativos do ético, precisa superá-los. O caso é distinto
daquele enfrentado por “heróis épicos”, como Agamemnon, rei grego cujo sacrifício da filha
Ifigênia, malgrado seja capaz de gerar sofrimento ao pai, é executado com o fito de “salvar”
um povo, portanto cingido pelos limites do ético. O caso de Abraão é completamente distinto.
Nas palavras de Kierkegaard (2008, p. 53), Abraão “[n]ão está agindo para a salvação de um
povo, nem para defender a ideia de Estado, nem mesmo para apaziguar os deuses zangados”.
Enquanto a ação de Agamemnon pode ser compreendida por toda a comunidade, que entende
a “nobre ação de consentir, no interesse geral, o sacrifício de sua virgem e amada filha”
(KIERKEGAARD, 2008, p. 51), Abraão desafia o dever ético de amor em relação a seu filho.
A abstração do ético, compreendido como requisito moral de validade
universal instituído na forma de um relicário de normas e princípios objetivos, gerais e
racionalmente inteligíveis (SCHRAG, 1959), é barrada pela concretude do comportamento
que desafia o universal. Kierkegaard reconcilia os pontos ao fazer encontrar no Indivíduo a
razão para a suspensão teleológica do universal. Abraão é, de acordo com a concepção
kierkegaardiana, a ruptura da ética universal enquanto totalidade de normas de conduta
reconhecíveis operada em favor de um universal assentado no interior do indivíduo. A partir
5
O termo “moralidade” é utilizado na tradução brasileira de “Temor e tremor”, ao passo que a tradução para o
inglês (KIERKEGAARD, 2013) utiliza o termo “Ethical”, que se traduz em “ética”, utilizada como referência.
56
daí o etéreo universal do qual é constituído o ético precisa ser apropriado pelo concreto, vez
que “o indivíduo concreto é a fundação e o portador do universal, e o universal tem validade
apenas na medida em que emerge do concreto e encontra o indivíduo existente” (SCHRAG,
1959, p. 67).6
Torna-se clara a pretensão de Kierkegaard perfurar a esfera da totalidade ética
através da suspensão teleológica de sua validade normativa; à pergunta sobre qual é então a
vida do indivíduo que sofre essa suspensão, responde: “existe como Indivíduo que se opõe ao
geral” (KIERKEGAARD, 2008, p. 65). O momento de contradição total resultante do
contraposto entre a ética universal e a exigência de cariz religiosa que impõe a suspensão do
ético é superada, em Kierkegaard, através do salto realizado por Abraão para atender a uma
necessidade decorrente da fé. Na posição em que foi posto, não há qualquer mediação
possível para Abraão, que sequer pode falar. A figura da deidade, ausente no paganismo,
incorpora o dever maior que enseja a suspensão do ético. A divindade, todavia, habita lugar
distinto do geral, o que torna necessário o silêncio de Abraão, visto que “quando falo, dou
expressão ao geral, e se mantenho calado, ninguém pode me entender. Quando Abraão quer
exprimir-se no geral, é-lhe preciso dizer que a sua situação é aquela da dúvida religiosa, pois
não dispõe de expressão mais elevada, vinda do geral, que fique acima do geral que ele
ultrapassou” (KIERKEGAARD, 2008, p. 54).
O “salto” dá-se entre as esferas do ético e do religioso. O indivíduo supera a
totalidade ética para reencontrá-la na esfera religiosa, conectada com o divino. A pretensão
kierkegaardiana de combater o pensamento sistemático, atingindo no subjetivo o epicentro de
significação todavia é de alguma maneira falseada pela resposta construída na hierarquização
das esferas do ético e do religioso; a total ruptura do universal ético conduz à esfera do
religioso, localizada somente depois da superação do ético. A subjetividade não se encerra em
si, mas encontra novo significado no objetivo que constitui a religião; se Abraão irrompe o
ético, é porque encontrou a esfera do religioso. Se Kierkegaard pretendia fugir à
sistematicidade, encontrou abrigo num modelo sistematicamente estruturado, de hierarquia e
de passagens de uma esfera à outra. Aí está o problema da sistematização em torno da
doutrina do “salto” entre esferas sucessivas, notado por Adorno ao apontar que o esquema das
esferas não é algo deduzido, mas são elas postas umas junto às outras, como as ideias
platônicas, e representam estágios no caminho da vida, ultrapassando-se uma após a outra
(ADORNO, 2006, p. 116).
6
No original: “The concrete individual is the foundation and the bearer of the universal, and the universal has
validity only insofar as it emerges from the concrete encounters of the existing individual”.
57
Não obstante, as esferas, enquanto momentos antitéticos do processo dialético
inaugurado pelo indivíduo na reconstrução nele mesmo do sentido ontológico, retratam a
contradição irresolúvel que escapa ao conceito, permanecendo como signos da precariedade
de uma existência na qual o sentido ontológico está oculto. Desse modo, “se Kierkegaard
busca a ontologia exclusivamente na dialética da subjetividade, esta ontologia não pode ser
completamente reproduzida na frágil estática daquela hierarquia de esferas. Suas rupturas não
são senão as marcas que deixa um movimento que a própria hierarquia efetua” (ADORNO,
2006, p. 124)7. Se em “Temor e tremor” havia o embate entre o ético total e a exceção,
privilegiando-se a saída subjetivadora, torna-se possível unir a própria figura humana à
exceção que escapa ao total, o que conduz à conclusão de Adorno (2006, p. 133) no sentido
de que “em Kierkegaard, a imagem do homem é idêntica à da „exceção‟: emancipando-se da
contingência, do anonimato, da universalidade coisificada” 8. Resta necessário perguntar se
“em nome da transcendência das esferas extremas, inimigas da pessoa, não acaba toda a ética,
inclusive a burguesa-privada, que seus [de Kierkegaard] escritos „éticos‟ representaram,
submetida ao veredito e à ironia da „exceção‟” (ADORNO, 2006, p. 133). 9
A leitura laicizada de Kierkegaard realizada por Adorno, apartada da
tradicional interpretação de cariz teológica, encontra no subjetivo, para além da reconciliação
com o universal, a chave para ultrapassar obstáculos totalizadores. Tanto Kierkegaard como
Adorno encontrariam no sujeito o “movimento interior do qual o caráter constituinte da
elaboração conceitual confronta-se com uma resistência que vem da reflexão empírica e tem
estatuto de algo real que afeta o pensamento” (SAFATLE, 2013, p. 211). Na raiz, o
pensamento dos dois autores, revelada na leitura adorniana de Kierkegaard, compartilha a
busca por “constituir um conceito de sujeito capaz de servir de fundamento para a crítica à
noção hegemônica de subjetividade” (SAFATLE, 2013, p. 212).
Diante da ciência de que o pensamento contemporâneo, ao invés de atingir as
raias da emancipação da razão, teria seguido o sentido contrário, caracterizado pelo emergir
de totalitarismos das ditaduras e das sociedades massificadas, a interioridade kierkegaardiana,
devidamente laicizada, poderia oferecer um refúgio extraterritorial. Além do refúgio, “a
7
No original: “Si Kierkegaard busca la ontología exclusivamente en la dialéctica de la subjetividad, esta
ontología no puede ser completamente reproducida en la frágil estática de aquella jerarquía de las esferas. Sus
roturas no son sino las marcas que deja un movimiento que la jerarquía misma efectúa”.
8
No original: “en Kierkegaard, la imagen del hombre es idéntica a la de la «excepción», para él, el hombre solo
existe humanamente cuando constituye una excepción: emancipándose de la contingencia, del anonimato, de la
universalidad cosificada”.
9
No original: “en nombre de la trascendencia de las esferas extremas, enemiga de la persona, no queda toda la
ética, incluida la burguesa-privada, que sus escritos «éticos» representan, sometida al veredicto y a la ironía de
la «excepción»”.
58
interioridade podia ser o lugar de uma resistência: a innere Emigration, a emigração interna, a
recusa radical e absoluta do sujeito de mitmachen, de colaborar com o inimigo” (ROUANET,
2013, p. 154). A leitura de Kierkegaard feita por Adorno, então, poderia localizar a salvação
do indivíduo contra as investidas do sistema totalizador no próprio indivíduo, na relação
modelar estabelecida entre o caso e o conceito, entre a filosofia e as artes.
3. O PENSAMENTO UNIVERSAL E A LÓGICA TOTALIZADORA
A possibilidade de transbordar os limites de um ético universal, totalizador, a
partir da perspectiva subjetiva, tese fundamental da filosofia kierkegaardiana e tratada
especificamente em “Temor e tremor”, abriu espaço para a equiparação, por Adorno, do
indivíduo à exceção, em um movimento de emancipação da universalidade coisificada. A
dialética negativa de Kierkegaard, despida de uma síntese pacificadora e que remonta à
interpretação do pensamento socrático em sentido completamente distinto daquele trilhado
por Hegel, é a maior expressão da linha de pensamento que procura fornecer espaço para o
rompimento do universal (ROUANET, 2013).
A crítica ao pensamento kierkegaardiano, que indica que o interior no qual se
localizaria a saída para o universal totalizador somente poderia ser aquele pertencente ao
filósofo-rentista, visto que o próprio Kierkegaard experimentou uma vida burguesa,
segregada do processo produtivo, ressoa na tentativa de utilização de sua filosofia como base
de trabalho teórico. Ainda assim, a “própria radicalidade da filosofia de Kierkegaard, que
recusa qualquer conivência com o existente, tanto em suas estruturas eclesiásticas como
seculares, permite entrever os contornos de uma intuição justa sobre a história e a natureza”
(ROUANET, 2013, p. 151). Justamente a radicalidade do pensamento do filósofo
dinamarquês possibilita entreabrir a porta filosófica ao seu pensamento.
Sendo possível rebentar, no contexto massificante de um ético totalizador, a
capacidade de suspendê-lo em favor de uma visão pautada no indivíduo que se eleva sobre o
“universal” passa a ser viável a defesa de uma ressignificação a partir de dentro da massa. O
velho embate sobre uma ação que legitimamente corrói e ultrapassa os limites contingenciais
socialmente instituídos dos quais ela mesmo deriva, tratada por Habermas (2011) pelo nome
de “ação moralmente autorreferencial”10, em Kierkegaard é resolvida pela virada ao
10
O problema é recorrente. Ao tratar das raízes filosóficas de uma teoria do discurso, Laclau (2003) desenha
três “momentos” do estruturalismo – a fundação da linguística estrutural por Saussure, a radicalização do
formalismo estrutural pelas escolas de Praga e Copenhagen e o desenvolvimento de uma teoria da hegemonia - e
aponta que em todos os casos, há permanente confronto com as aporias internas que organizações estruturais
demonstram e a impossibilidade de superá-los dentro do sistema de regras que preside sua constituição.
59
subjetivo, que ultrapassa a abstração do universal para superá-lo através da concretude da
experiência pessoal, afinal, “no abstrato, diante de um favor, todos possuem os mesmos
direitos. Esquecem-se a tribulação, a angústia, o paradoxo” (KIERKEGAARD, 2008, p.
59).11 A dialética kierkegaardiana, consistente no movimento que a subjetividade efetua para
recuperar por si mesma e em si mesma o „sentido‟ e desligada de qualquer conteúdo ôntico
positivo, convertendo todo o ser em ocasião de si mesma, subtrai a definição material; ela é
imanente, e sua imanência, infinita (ADORNO, 2006, p. 40 e ss.).
A concretude descoberta no subjetivo, orientadora dos processos de
significação e capaz de fazer superar o pensamento totalizador, então tratada como ponto de
partida para um pensamento dirigido para dissolver as categorias ditas universais, pode ser
transposta como um modelo filosófico para o trato de problemas ligados à concreção de
direitos humanos baseado na figura do agente relativamente expungido da determinação
externa.
Nesses termos, enxerga-se o direito inserido e ao mesmo tempo produto de
uma sociedade organizada em torno de um capitalismo totalizante e colonizador, capaz de
tornar a produção econômica e a estratificação social dela decorrente em alicerce e única
fonte de explicação da história política e intelectual (MARX; ENGELS, 2012). A
racionalidade econômica, enquanto centro conferidor de significação às relações sociais,
baseia-se nos “princípios, comportamentos e as instituições de economia formal e do
mercado total, do “Mercado” com “M” maiúsculo”, fazendo com que o capital empurre “a
economia mercantil para a totalização do mercado. Até a moral se desliga dela e perde sua
normatividade, porque a economia se apropria do Mercado para ser o dispensador de valores”
(RUBIO, 2013, p. 6-7).
O próprio desenvolvimento temporal do modo de produção capitalista, com a
criação de novas necessidades no lugar de antigas, cuja satisfação demandaria produtos de
países e climas longínquos, “aglomerou populações, centralizou os meios de produção e
concentrou em poucas mãos a propriedade”, o que resultou numa centralização política e a
reunião de modos de vida distintos em “uma nação, um governo, uma lei, um interesse
11
Como anota Adorno: “Como adversario de la doctrina hegeliana del espíritu objetivo, Kierkegaard no
desarrollo ninguna filosofía de la historia. Con la categoría de «persona» y la historia interior de la persona
quiere expulsar la historia exterior del dominio de su pensamiento. Pero la historia interior de la persona se
relaciona antropológicamente con la exterior en la unidad de la «especie »” (ADORNO, 2006, p. 44). [Como
adversário da doutrina hegeliana do espírito objetivo, Kierkegaard não desenvolve nenhuma filosofia da história.
Com a categoria de “pessoa” e a história interior da pessoa quer expulsar a história exterior do domínio de seu
pensamento. Mas a história anterior da pessoa se relaciona antropologicamente com a exterior na unidade da
“espécie”.
60
nacional de classe, uma fronteira aduaneira” (MARX; ENGELS, 2012, p. 48-49).
Ou seja, a massificação e a totalização de uma forma de pensamento são
inerentes à forma de organização produtiva capitalista. A instituição mesmo da forma
dinheiro como responsável por unificar e transformar coisas físicas em metafísicas, visto que
reflete “aos homens as características sociais de seu próprio trabalho como características
objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas
e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social existente fora deles, entre objetos”, é pressuposto para a circulação de
mercadorias e somente funciona a partir da estabilização de determinadas formas de vida
social das quais erige o processo de conversão da mercadoria em valor, pois “as formas que
certificam os produtos do trabalho como mercadorias e, portanto, são pressupostos da
circulação de mercadorias, já possuem a estabilidade de formas naturais da vida social, antes
que os homens procurem dar-se conta não sobre o caráter histórico dessas formas, que eles já
consideram imutáveis, mas sobre seu conteúdo”, do que resulta que “somente a análise dos
preços das mercadorias levou à determinação da grandeza do valor, somente a expressão
monetária comum das mercadorias levou à fixação de seu caráter de valor” (MARX, 1987,
sem itálico no original). Desse modelo de organização é possível deduzir a integração de
sistemas sociais diversos em um sistema global, do qual emana a significação limitadora e
totalizadora dos processos da vida: “[d]eclarar guerra a diversidade e apostar pela
uniformidade de culturas e de cultivos se considera a melhor estratégia, enquanto que a arma
com que se executa é o exercício de uma força virulenta disfarçada sob a roupagem do livre
mercado e também amparado pela força militar” (RUBIO, 2013, p. 11).
Esse modelo de pensamento recorreria ao modo de organização capitalista para
dele desprender o significado de todas as relações desenvolvidas no interior de sociedades
submetidas a essa economia. No caso do direito, a secularização da concepção teológica, com
o dogma divino substituído pelo direito humano, à Igreja sobrevindo o Estado, foi possível
criar normas jurídicas, originárias de fatos econômicos, capazes de dar feição de codificação
formal ao arcabouço que tinha por finalidade garantir a igualdade diante da lei como forma
de estatuir a competição e a concorrência como bases da organização social. E mesmo
sobrevindo a reinvindicação por igualdade material, compreendeu-se que “uma relação
jurídica toma de empréstimo um conteúdo que ela própria não é capaz de engendrar,
espelhando uma relação econômica” (GIANNOTTI, 1980, p. 10).
Sob essa perspectiva, a luta política empreendida no interior ou a partir de
61
instituições jurídicas carece de sentido e torna-se completamente estéril. Encravada num
sistema completo, totalizador e de pretensão universalista, o direito seria incapaz de romper
com a trama social da qual origina. Na sistematização axiomática do direito como quadro de
coesão formal estaria encoberta uma função estratégica de reprodução ampliada do
capitalismo: o direito atuaria como estabilizador das regras de transformação social; “seu
caráter sistemático, com base em normas abstratas, gerais, formais e estritamente
regulamentarizadas” comportaria “suas próprias regras de transformação, fazendo assim com
que suas modificações se tornem transformações reguladas no seio de seu sistema (papel
notadamente da Constituição)” (POULANTZAS, 1980, p. 80).
Os direitos humanos, compreendidos como a forma ocidental hegemônica de
luta por dignidade humana, seriam produtos da lógica totalizadora e colonialista do modo de
produção capitalista (FLORES, 2005). Ao invés de exercerem o papel de barreira contra a
ação do mercado, seria o mercado auto-regulado, nos limites da máxima eficiência e da
redução de custos econômicos o operador e aplicador dos direitos. Direitos humanos são,
com efeito, produto cultural surgido no ocidente em função da necessidade de justificação
ideológica das expansões coloniais pelo globo e ainda para enfrentar a globalização das
injustiças que a agenda expansionista produziu.
A saída que pretendeu romper com a visão universalista dos direitos humanos
de origem europeia, burguesa e economicamente orientada foi pensada com base na visão de
que não se pode condensar direitos em conceitos acadêmica e hegemonicamente formulados,
mas sim no contexto e na concretude da multiplicidade de visões distintas acerca da
dignidade. O desenvolvimento de uma teoria crítica dos direitos humanos, nessa esteira, está
necessariamente comprometido com a realização de um pensamento novo, na “humanização
do humano”, “não no que se refere à imposição universal de algum conteúdo aceito por
todos, mas na potencialização de nossa capacidade cultural de criatividade e postulação de
alternativa ao existente” (FLORES, 2005, p. 42).12
4. A CONSTRUÇÃO DE UMA AGENDA POSITIVA PARA OS DIREITOS
HUMANOS
O projeto universalista de expansão do modo de produção capitalista,
responsável por dizimar formas de vida distintas e pela criação de um aparato capaz de
internalizar e homogeneizar, sob a rubrica de universais, visões de direitos completamente
12
No original: “No en lo que se refiere a la imposición universal de algún contenido aceptable por todos, sino en
la potenciación de nuestra capacidad cultural de creatividad y de postulación de alternativa a lo existente”.
62
distintas entre si, alcançou sucesso inegável. O incremento de técnicas de comunicação veloz
e invasiva, com grande capacidade de dispersão de informações propagandísticas para um
grande número de pessoas em tempo extremamente curto resultou em um nivelamento
cultural nunca antes experimentado. A denúncia sobre a forma de organização de direitos em
torno do eixo hegemônico, que se articula em razão e com o intuito de manter a sua matriz
europeia, branca, capitalista, burguesa, masculina, patriarcal e cristã nunca mereceu tanta
atenção.
No entanto, se há algo a ser extraído da visão kierkegaardiana sobre a
possibilidade de ruptura do universal a partir da reflexão calcada no sujeito, na dialética entre
a história subjetivada e a externa, no constante movimento interior do indivíduo capaz de
ressignificar a totalidade em razão da visão subjetiva, que escapa ao todo, esse algo está
contido na possibilidade de mudança a partir de dentro, no revolvimento do universal pelo ser
humano dotado de capacidade de subjetivar o real universalizante e de superá-lo.
O sujeito capaz de escapar do universal, portanto, pode obstar a reprodução
sistemática do conhecimento totalizador. Encontrar no sujeito a possibilidade de romper com
a dinâmica autofágica e auto reprodutora típica do sistema capitalista, permite, com efeito,
tratar as instituições, como a lei e o Estado, de uma nova perspectiva.
A figura do Estado, tradicionalmente criticada por atuar como braço
operacionalizador da vontade das classes socialmente hegemônicas, a partir de um
pensamento voltado à capacidade humana de criação subjetiva, pode ser concebida como
mecanismo de tutela de direitos até então menoscabados. Ao revés do quanto enunciado por
Engels (1980), a luta política e jurídica não pode ser tomada como estéril e carente de
sentido, mas sim como eixo principal para a transformação social. O problema quanto à
autoreprodutividade do sistema eficientista e desconectado do ser humano do qual o Estado é
longa manus pode ser então superado a partir da confiança na existência do ser humano
dotado de criatividade, presente e capaz de interferir nos processos do qual participa.
É claro que a proposição toma cariz puramente idealista se as condições
materiais de ação política, meio através do qual as demandas por direitos assumem caráter
público e podem ser encampadas como fins a serem desenvolvidos pelo Estado, forem
ignoradas. E aí impende anotar que autores tão distintos quanto Joaquín Herrera Flores e
Jürgen Habermas inclinam-se na mesma direção. Enquanto Herrera Flores (2005, p. 45) fala
da “exigencia de construção de lugares de encontro em que todas e todos os que participem
possam fazer valer suas propostas e diferenças. Lugares de encontro de seres humanos
63
empoderados, é dizer, de indivíduos e grupos que desfrutam de um conjunto de condições
baseadas em três especificações da igualdade: igual valor, igual racionalidade e igual
autoridade”13, Habermas (2011, p. 60) defende que “uma distribuição igual de direitos
exclusivamente formal não pode garantir por si só a autonomia pública de todos os cidadãos.
Uma „igualdade jurídica‟ entendida em termos materiais – igualdade em conteúdo de direitos
– exige que todos possam ter as mesmas oportunidades para fazer uso, faticamente, desses
direitos distribuídos de maneira igual”.14 Nota-se que, com relação às condições de exercício
da ação política, ambas construções teóricas exigem espaços de conversação maximamente
estruturados e o compartilhamento de conteúdos comuns mínimos, com a ressalva de que
sejam asseguradas condições materiais necessárias para esse exercício.
A ação política exercida nesses termos, atingidas condições materiais fundadas
na igualdade, seja ela tratada como igualdade especificada ou de conteúdo de direitos e a
partir da capacidade criativa do ser humano, faz possível compreender uma agenda
modificadora onde o indivíduo atua como epicentro do processo político. Na valiosa síntese
de Joaquín Herrera Flores, não basta negar a possibilidade de reinventar democraticamente o
direito, mas antes de “não se trata de se desarmar frente a tais cumplicidades entre o jurídico
e o sistema de relações sociais hegemônico, mas de afirmar nossa diferença e nossa
discrepância política, social e cultural contra o encerramento da capacidade humana de
transformar o mundo em função de novos valores e novas formas de reação diante do
mundo” (FLORES, 2005, p. 47).
A tutela de direitos humanos, concebida como instrumento de busca por
formas de dignidade múltiplas não contidas em um conceito total, pode, a partir da conjunção
entre atingimento de condições materiais de existência e de ação política e da criatividade
humana tratada em termos kierkegaardianos, ser internalizada mesmo pelo Estado de cariz
burguesa. Mesmo lutas tradicionalmente suprimidas do debate político, como é o caso da
realização de um projeto amplo de reforma agrária no Brasil, podem ser encampadas pelo
sistema a partir de uma visão anti-hegemônica. Precisamente este é o diagnóstico de
13
No original: “Pensar los derechos humanos, desde este plano de inmanencia, nos lleva a integrar dentro de su
concepto, no solo formas y procedimientos que reúnen a individuos, grupos o Estados bajo la forma de
denuncias mutuas ante las Cortes Internacionales de Derechos Humanos, sino también la exigencia de
construcción de lugares de encuentro en que todas y todos los que participen puedan hacer valer sus propuestas
y sus diferencias. Lugares de encuentros de seres humanos empoderados, es decir, de individuos y grupos que
gocen de un conjunto de condiciones basadas en tres especificaciones de la igualdad: igual valor, igual
racionalidad e igual autoridad”
14
No original: “Una distribución igual de derechos exclusivamente formal no puede garantizar por sí sola la
autonomía pública de todos los ciudadanos. Una “igualdad jurídica” entendida en términos materiales – igualdad
en el contenido de los derechos – exige que todos puedan tener las mismas oportunidades para hacer uso,
fácticamente, de esos derechos distribuidos por igual.”
64
Guilherme Boulos (2015), líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) ao
afirmar que “ [u]ma saída popular é defender a Constituição. Ser de esquerda no Brasil, é
meio lamentável dizer isso, implica em defender pontos da Constituição, que prevê a
auditoria da dívida pública, a taxação de grandes fortunas, a função social da propriedade, a
democracia nas comunicações (...) Taxação de grandes fortunas se faz com correlação de
forças, não se faz apenas com vontade política. Agora correlação de forças se constrói e se
cria fortalecendo os movimentos sociais”. Mais do que descartar a luta política a pretexto de
sua inocuidade, ou de denunciar que os aparelhos institucionais funcionam sob a batuta de
um sistema totalizador, é preciso que a dinâmica estatal pode ser dirigida pelo sujeito dotado
de capacidade de subjetivação equipado de condições materiais de exercício de sua
autonomia política.
Em contrapartida à compreensão dos instrumentos jurídicos e políticos como
decorrências do sistema total, funcionalmente limitados a garantir a sobrevida do todo
hegemônico, a partir de uma lógica que encadeia a ação política exercida no interior da
dinâmica estatal aos fins buscados por estratos sociais detentores do poder, surge uma visão
que a partir da conexão entre capacidade de criação subjetivadora e atingimento de condições
materiais de exercício da ação política pretende separar o aparelho estatal das pretensões
totais e hegemônicas, capaz de exclamar diante delas que: “teus caminhos não são os meus
caminhos e teus pensamentos não são os meus pensamentos!” (MARX, 1998, p. 267).
5. CONCLUSÃO
Analisada a leitura kierkegaardiana sobre a subjetividade, que aterra no sujeito
a capacidade de suspender a totalidade, torna-se possível construir, desde que necesariamente
atingidas condições materias suficientes, uma agenda de ação política e social transformadora
capaz de superar a lógica hegemónica capitalista, ainda que operada no interior do aparato
estatal e com instrumentos institucionalizados. Se não há dúvida sobre o alcance e a
apropriação perfeita pelo sistema centrado no capital sobre a organização social, limitar a
ação social e política com pretensões transformadoras à condição de produto do próprio
sistema, e portanto incapaz de suspender a lógica retroalimentadora capitalista, interdita
desde a saída as possibilidades de mudança. Com efeito, a tese acerca da subjetividade
levantada por Kierkegaard e relida por Adorno representa base teórica para o rompimento do
pensamento hegemônico, reabrindo espaço para a modificação do sistema a partir da atuação
parida dentro do próprio sistema.
65
REFERÊNCIAS
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Tradução de Joaquin Chamorro Mielke.
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67
A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E A CIDADANIA NO ESTADO
CAPITALISTA.
UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE AS POLÍTICAS SOCIAIS NO MODO
CAPITALISTA DE PRODUÇÃO
L'EFFICACITÉ DES DROITS SOCIAUX ET LA CITOYENNETÉ DANS L'ETAT
CAPITALISTE.
UNE ANALYSE CRITIQUE SUR LES POLITIQUES SOCIALES DANS LA
MANIÈRE CAPITALISTE DE PRODUCTION
Jéssica Raquel Sponchiado
Graduação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais. Mestranda pela UNESP. Área de pesquisa: Criminologia,
Política Criminal e Dogmática Penal.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Métodos: Materialismo histórico e materialismo dialético; 2.
Formas jurídicas e Modo de Produção Capitalista; 2.1 Sujeito de Direito; 2.2 Classes sociais;
3. Direitos Sociais no Estado Capitalista. A função real das Políticas Sociais Estatais; 4. A
(in)compatibilidade dos discursos de cidadania com o modo de produção capitalista;
Conclusões.
RESUMO: O presente trabalho procura discutir de que forma pode-se falar em efetivação de
direitos sociais e direitos coletivos no âmbito de uma sociedade baseada na estruturação do
modo de produção capitalista. Inicia-se o trabalho com uma breve explicação sobre o método
adotado e sobre o conceito de classe social utilizado para compreender o direcionamento das
políticas sociais, assim como a forma jurídica sujeito de direito. Assim, demonstrar-se-á, por
meio do método do materialismo histórico, a função oculta que está por detrás de políticas
sociais no Estado Capitalista. Da mesma forma, debater-se-á as contradições dos discursos
sobre cidadania em uma sociedade cuja desigualdade social e a exploração é a força motriz
do modo de produção determinado.
Palavras-Chave: Políticas Sociais; força de trabalho; mercadoria; trabalho assalariado.
RÉSUMÉ: Présent travail cherche à discuter que il forme se peut parler dans accomplir de
droits sociaux dans le contexte d‟une société basée sur la structura de manière de production
capitaliste. S‟initiera le travail avec une brève exposition sur la méthode adoptée et sur le
concept de classe sociale qui seront utilisées pour comprendre le direcionamento des
politiques sociales. Aisin, il se démontrera, au moyen de la méthode du matérialisme
historique, de la fonction oculte qui est derrière des politique sociales dans l‟État Capitaliste,
sur base de la théorie de Claus Offe. De la même manière, il se débattra les contradicitions
des discours sur citoyenneté dans une société dont l‟inégalité sociale est da force motrice de
as maniére de production
Mots-Clés: Politiques sociales; force de travail; marchandise; travaille salarié.
68
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar as finalidades ocultas das políticas
sociais no modo de produção capitalista, com base na tese de Claus Offe, representante da
segunda geração da Escola de Frankfurt.
Em um primeiro momento, tem-se uma breve explicação sobre o método utilizado nos
estudos deste trabalho, qual seja: o método do materialismo histórico e dialético. Em seguida,
inicia-se uma análise crítica sobre a forma jurídica sujeito de direito e o que ela realmente
representa em nossa sociedade, ou seja, uma forma que oculta a real exploração dos
trabalhadores com a extração da mais-valia, assim como esta forma simboliza a prática de
comercialização do ser humano. Também fora analisada, nesta segunda parte do trabalho,
conceitos sobre classes sociais, notadamente na América Latina, com os quais é possível
entender o direcionamento das políticas sociais.
Após estas considerações iniciais, na terceira parte do artigo, fora desenvolvida uma
análise sobre a Tese de Claus Offe, o qual considera que a real função da política social no
Estado Capitalista está ligada à manutenção da força de trabalho dentro dos parâmetros do
trabalho assalariado. Assim como, as políticas sociais apresentam, também, a função de
controle das massas que estão fora do mercado de trabalho.
Neste sentido, discutir-se-á que o sistema de direitos sociais e as políticas sociais
responsáveis pela efetivação daqueles direitos não estão isentos das determinações do
Capital, notadamente em países periféricos como o Brasil, da mesma forma que os princípios
declarados da democracia liberal não possuem condições de uma prática real no interior do
modo de produção capitalista.
1. MÉTODOS: MATERIALISMO HISTÓRICO E MATERIALISMO
DIALÉTICO
Por meio do método dialético propõe-se uma análise crítica do objeto, através da
investigação e da exposição deste. Dessa forma, a análise sobre as políticas sociais no modo
de produção capitalista será exposta após a investigação crítica das determinações essenciais
deste objeto.
A metafísica ignora ou desconhece a realidade do movimento e da transformação.
Separa o homem de seu meio, ou seja, da sociedade. A rejeição da transformação, a separação
69
do que é inseparável e a exclusão sistemática dos contrários são características essenciais da
metafísica. A dialética opõe-se sobre todos estes pontos. Explica o movimento pela luta dos
contrários. Na sociedade a luta dos contrários se dá sob a forma de luta de classes. Dialética
significa discutir, ou seja, é a luta de ideias contrárias. Marx, diferente de Hegel, diante da
concepção materialista recusa a concepção idealista do mundo segundo a qual o universo
material é um produto da ideia. As leis da dialética são as do mundo material. É
essencialmente crítica e revolucionária.
Toda a história da humanidade é uma história de luta de classes. No sistema de
produção feudal a burguesia concentrava em suas mãos a riqueza social embora encontrava
grandes dificuldades para conquistar o poder político que se achava nas mãos da nobreza e da
monarquia, apoiada naquela. Com a Revolução Burguesa, a burguesia conquistou também o
poder político e se converteu em classe dominante, frente ao proletariado e aos pequenos
camponeses. (SODRÉ, Nelson Werneck, 1968).
Para analisar qualquer fenômeno social, é preciso:
Decompor este todo complexo em suas partes e elementos constituintes, extrair da
massa dos aspectos e dos elementos do todo os que são mais importantes, os que
são determinantes, procurar e descobrir o que há de essencial e de comum, nos
fenômenos, aos aspectos múltiplos e que os reúne em um só todo. A tarefa da
análise é de se elevar do singular ao geral, do concreto ao abstrato, do lado
imediato ao mediato, do contingente ao necessário, da aparência dos fenômenos à
sua lei. (SODRÉ, Nelson Werneck, 1968).
Tem-se que analisar o caráter histórico e mutável do mundo objetivo e descobrir a
essência dos fenômenos. A diferença do método lógico de investigação para o método
histórico é que o primeiro realiza um estudo dos fenômenos em seu estado mais puro, em
forma generalizada, e o segundo reflete a trajetória histórica dos fenômenos e os
acontecimentos em todas as suas manifestações.
As políticas sociais têm caráter histórico, operam em condições concretas. Nas
condições materiais atuais, as políticas sociais devem ser analisadas perante a sua
significação prática imediata diante do modo de produção adotado em nossa sociedade, ou
seja, o capitalismo.
2. FORMAS JURÍDICAS E MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
2.1.
Sujeito de Direito
Na sociedade capitalista é necessário que todos os homens sejam sujeitos de direito
70
para permitir a realização das trocas mercantis generalizadas. No modo de produção
capitalista tem-se um processo de valorização de um capital por meio de uma força de
trabalho comprada no mercado como mercadoria. A mais-valia é a gênese e o modo de
funcionamento de todo o sistema capitalista.
O salário não representa o equivalente do dispêndio da força de trabalho, mas
somente uma parte dele. A parte não paga do dispêndio da força de trabalho
valoriza o capital, fazendo-o produzir um rendimento, a mais-valia, de que se
apropria o proprietário do capital. (MIAILLE, Michel, 2005, 117)
A noção de sujeito de direito, segundo Miaille, é indispensável ao funcionamento deste
modo de produção. (MIAILLE, Michel, 2005, p. 118) A troca de mercadorias exprime uma
relação social (relação do proprietário do capital com proprietários da força de trabalho),
escondida por relações livres e iguais provindas aparentemente da vontade dos indivíduos
independentes. O modo de produção capitalista tem como condição de seu funcionamento a
“atomização”, a representação ideológica da sociedade como um conjunto de indivíduos
separados e livres. Esta representação toma a forma de sujeito de direito. Esta forma surge em
um momento preciso da história e desenvolve-se como uma das condições da hegemonia de
um novo modo de produção.
O sistema prisional surge no contexto de que “o indivíduo, para ser livre, se transforma
em escravo, ou seja, a pessoa não tem opção de não ser livre, o capital obriga o trabalhador a
ser livre, isto é, o capital disciplina esse trabalhador para que ele reconheça a própria
liberdade.” (NAVES, Márcio Bilharinho, 2005, p. 29) O processo de capital é concomitante à
emergência da prisão, pois o Estado burguês utilizou o aparato prisional para educar o
trabalhador nos limites de sua suposta liberdade, fazendo com que ele aceitasse a disciplina
das fábricas e os valores burgueses da sociedade.
A exploração se dá no interior do próprio processo de produção permitindo, assim, que
a mais-valia não pode ser identificada, reconhecida pelo trabalhador. “A estrutura mesma do
sujeito de direito é tão somente a expressão jurídica da comercialização do homem.” ( NAVES,
Márcio Bilharinho, 2005, p. 27).
Bilharinho Naves mostra como as categorias jurídicas criadas pela burguesia têm o
poder de manipular, alienar e comandar as massas dos trabalhadores:
As categorias de direito impedem que as determinações do capital sejam visíveis
(...) a exploração capitalista é encoberta pelo efeito ilusório do direito: a extração de
mais-valia, no processo de produção capitalista é encoberta pela relação jurídica de
compra e venda a que se submetem, por sua livre vontade, dois sujeitos de direito
formalmente iguais (...). Categorias da ideologia jurídica no movimento dos
trabalhadores: Esse efeito ilusório penetra profundamente no movimento dos
71
trabalhadores (...) que passa a ser dominado por uma representação jurídica do
mundo e orientado, em sua prática política, para a obtenção da mesma liberdade e
da mesma igualdade que são as formas de seu próprio subjugamento ao capital.
(NAVES, Márcio Bilharinho, 2005, p. 32)
Bilharinho Naves, em seu texto Direito, relações mercantis e lutas sociais, mostra
como a presença do elemento jurídico, da ideologia jurídica, no interior do movimento dos
trabalhadores resulta em uma verdadeira neutralização da luta social, que é o resultado
preciso, imediato, do domínio do Direito no campo da luta popular.
Assim, a forma de sujeito de direito aparece em um momento específico da histórica
ligado à formação da economia capitalista. A Teoria do Direito Natural fora utilizada como
arma de combate ao Feudalismo e instauração do sistema capitalista de produção A Escola do
Direito Natural, Escola do século XVII de perspectiva individualista, aponta que a natureza
de cada homem está na base do direito, representa o Direito ligado ao individuo. O contexto
da Escola do Direito Natural está ligado à Revolução Francesa de 1789, esta escola teve uma
função prático-social, uma função de arma de combate e uma função ideológica, de
ocultação. Funções estas necessárias para derrubar o feudalismo e a Pirâmide feudal (que era
composta pelo clero, nobreza e terceiro estado), e formar a sociedade capitalista.
Miaille explica, em sua obra Introdução Crítica ao Direito, como o discurso do Direito
Natural e a Racionalidade do Direito foram necessários para acabar com o Feudalismo e
instituir uma nova sociedade:
O terceiro estado era realmente tudo no plano social e econômico, enquanto que o
poder político lhe escapa praticamente. A burguesia chega a constatar uma espécie
de regressão neste domínio: a nobreza que se vê ultrapassada pela progressão e
ascensão da burguesia, defende-se impedindo o acesso aos postos importantes,
tanto administrativos como militares, eclesiástico ou parlamentares. Esta reação
dos nobres agrava o caráter absurdo e irracional da divisão da sociedade em ordens
e do velho sistema feudal. A burguesia que não beneficia dos privilégios da
nobreza, deixa mesmo de poder esperar entrar nesta categoria. Para tal situação
desrazoável, não há senão um remédio: a razão. É preciso fazer prevalecer a razão.
Esta propõe uma inversão da ordem. Enquanto que o terceiro estado que deveria
ser tudo não é nada politicamente, a nobreza que não é nada, é tudo e reina
verdadeiramente. Será preciso conferir ao terceiro estado o lugar que logicamente
deveria ter (...). A Teoria do Direito Natural inverte completamente a pirâmide
feudal. Em lugar de relações verticais – hierarquizadas – instaura-se relações
horizontais – comunidade nascida do contrato social (...). A reivindicação de um
direito natural racional pode ser compreendida pela burguesia do século XVIII
como a única maneira de resolver corretamente o problema das desigualdades
sociais e políticas da sociedade francesa do século XVIII. Nesse sentido,
destruindo a estrutura feudal, esta reivindicação realiza um progresso, quer dizer,
uma superação das contradições resultantes da sociedade feudal. Todo este
discurso, coerente aliás, não passava de uma mascara humanista e lógica para a
tomada do poder pela burguesia em seu único proveito. (MIAILLE, Michel, 2005,
p. 266).
72
As relações de troca, contrato de trabalho e concorrência precisavam de uma mudança
na estrutura social apresentando uma relação suposta de liberdade e de igualdade entre os
homens. Assim, a racionalidade do direito burguês foi necessária para destruir o antigo
sistema de produção e instaurar a ordem burguesa.
O Direito racional procurou esconder, ocultar, a função própria e real que
desempenha: permitir a passagem a um outro tipo de economia e de relações
políticas e sociais, sem dizer evidentemente a favor de quem se realiza esta
passagem (...). O direito racional da Revolução Francesa é o direito do homem
egoísta, da sociedade burguesa fechada sobre os seus interesses. Esquecendo os
homens concretos, ele limita-se a proclamar princípios que não têm exceto para a
burguesia qualquer espécie de realidade. (MIAILLE, Michel, 2005, p. 273).
2.2. Classes sociais
Nicos Poulantzas define as classes sociais, em sua obra As classes sociais no capitalismo de
hoje, da seguinte forma:
As classes sociais são conjuntos de agentes sociais determinados principalmente,
mas não exclusivamente, por seu lugar no processo de produção, isto é na esfera
econômica (...). As classes sociais não se limitam somente ao critério econômico,
mas se referem explicitamente a critérios políticos e ideológicos (...). As classes
sociais abrangem as práticas de classe, isto é, a luta de classes, e só podem ser
colocadas em sua oposição. (POULANTZAS, Nicos, 1978, p. 74)
Percebe-se que Poulantzas aponta um entendimento de classe social fundamental para
compreendermos a estrutura social, ele não se reduz a um economicismo apresentando a importância
e a funcionalidade dos aspectos ideológicos e políticos na construção da sociedade.
De acordo com Florestan Fernandes,
A classe social só aparece onde o capitalismo avançou suficientemente para
associar, estrutural e dinamicamente, o modo de produção capitalista ao mercado
como uma agência de classificação social e à ordem legal que ambos requerem,
fundada na universalização da propriedade privada, na racionalização do direito e
na formação de um Estado nacional formalmente representativo (...). A sociedade de
classes possui uma estratificação típica, na qual a situação econômica regula o
privilegiamento positivo ou negativo dos diferentes estratos sociais.
(FERNANDES, Florestan, 2009, p. 47)
Este referido privilegiamento é muito comum no âmbito jurídico-penal, em que as
classes sociais tidas como “inferiores15” são selecionadas pelo sistema penal (neste ponto,
15
Massa dos despossuídos, condenados a níveis de vida inferiores ao de subsistência, ao desemprego
sistemático, parcial ou ocasional, à pobreza ou à miséria, à marginalidade socioeconômica, à exclusão cultural e
política.
73
cabe destacar a seletividade da política criminal enquanto uma política pública), subtraindo
durante o processo penal muitas garantias e direitos fundamentais.
As classes sociais não são diferentes na América Latina. O que é diferente é o modo
pelo qual o capitalismo se objetiva e se irradia historicamente como força social
(...). Mantidas as condições de dependência e de reduzido esforço para criar-se um
padrão alternativo de desenvolvimento autossustentado, o capitalismo continuará a
florescer como no passado remoto ou recente, socializando seus custos sociais e
privilegiando os interesses privados. (FERNANDES, Florestan, 2009, p. 47)
Salienta-se que as classes sociais nos países latino-americanos não preenchem suas
funções sociais tanto as desintegradoras quanto as construtivas por causa da modalidade
predatória do capitalismo selvagem.
As classes sociais falham, nas situações latino-americanas, porque operam
unilateralmente, no sentido de preservar e intensificar os privilégios de poucos e de
excluir os demais. Elas não podem oferecer e canalizar socialmente transições
viáveis, porque a Revolução dentro da ordem é bloqueada pelas classes possuidoras
e privilegiadas, porque as massas despossuídas estão tentando aprender como
realizar a Revolução contra a ordem. (FERNANDES, Florestan, 2009, p. 50).
3. DIREITOS SOCIAIS NO ESTADO CAPITALISTA. A FUNÇÃO REAL DAS
POLÍTICAS SOCIAIS ESTATAIS
A partir das explicações anteriores, ou seja, com a base metodológica do materialismo
histórico e dialético, com as definições básicas sugeridas sobre classes sociais e
principalmente sobre a crítica da forma jurídica sujeito de direito e das categorias jurídicoburguesas de igualdade e liberdade, pode-se, então, realizar um pequeno estudo crítico sobre
a efetivação de direitos sociais por meio de políticas sociais do Estado Capitalista,
apresentando a tese de Claus Offe sobre a função oculta que está por detrás das políticas
sociais capitalistas.
Claus Offe propõe a seguinte tese: “A política social é a forma pela qual o Estado tenta
resolver o problema da transformação duradoura de trabalho não assalariado em trabalho
assalariado.” (OFFE, Claus, 1984, p. 15)
Assim, pode-se afirmar que de forma concomitante ao processo de industrialização
capitalista têm-se processos de desorganização e mobilização da força de trabalho. Em
primeiro lugar, cumpre destacara diferença entre o processo de proletarização passiva e
proletarização ativa.
A Proletarização passiva é maciça e contínua, e deriva da destruição das formas de
74
trabalho e de subsistência habituais. É um aspecto estrutural do processo de industrialização
capitalista. Os indivíduos não possuem mais as condições para utilizar as suas próprias
capacidades de trabalho como a base de suas subsistências, pois o controle daquelas
condições não pertence mais a eles. A proletarização ativa é o momento no qual o indivíduo
passa a oferecer a sua força de trabalho nos mercados de trabalho.
A questão principal na distinção entre proletarização passiva e proletarização ativa é
que os indivíduos atingidos pela desapropriação16 das condições de utilização de seu trabalho
como meio de subsistência não transitam de forma espontânea e consciente para o estado de
proletarização ativa. Claus Offe critica as ideias que sustentam um automatismo em acreditar
que os indivíduos por si mesmos têm condições de descobrir a alienação da força de trabalho
em troca de dinheiro.
Opções como a emigração, o roubo, a fuga para formas alternativas de vida e economia
com bases religiosas, abaixar o nível de subsistência (mendicância), ampliar o período
anterior à entrada no mercado de trabalho, dilatar a passagem pelas instituições do sistema
educacional formal, lutar contra as causas de proletarização passiva por meio da destruição de
máquinas, do clamor público político pela proteção alfandegária ou de movimentos políticos
com o objetivo de liquidar a forma mercadoria da força de trabalho, são opções à
proletarização ativa. Entretanto, a massa dos indivíduos não encontrou estas opções, sendo
levada às condições determinadas pela proletarização ativa.
Explica Claus Offe que,
A socialização em massa das forças de trabalho como trabalho assalariado e o
surgimento de um mercado de trabalho não são tão obvias, mesmo se aceitarmos a
destruição das formas de subsistência tradicionais como um dado, embora no plano
conceitual não seja possível pensar o próprio fato de industrialização sem o prérequisito de uma maciça proletarização ativa. (OFFE, Claus, 1984, p. 16)
Claus Offe apresenta a tese de que o problema da proletarização da inserção da força de
trabalho no mercado de trabalho (acontecimento essencial ao processo de industrialização)
fora resolvido por meio de estruturas da sociedade que agiram funcionalmente com vistas à
solução desse problema estrutural. “Assim, a transformação em massa da força de trabalho
despossuída em trabalho assalariado foi possível por meio de uma política social dirigida a
integrar a força de trabalho no mercado de trabalho.” (OFFE, Claus, 1984, p. 17).
Percebe-se, então, a função oculta que se encontra por detrás dos discursos de direitos
sociais e das políticas sociais responsáveis para efetivá-los. As políticas sociais, segundo a
16
A desapropriação da força de trabalho significa que os indivíduos foram despojados de seus recursos
materiais e simbólicos.
75
tese de Claus Offe, devem conter as formas alternativas à proletarização ativa, assim como
coordenar a massa da força de trabalho em trabalho assalariado, voltada às exigências do
sistema capitalista de produção.
Destaca-se que para ocorrer uma reorganização da sociedade adequada ao modelo de
industrialização capitalista são necessárias algumas condições, como: 1. A força de trabalho
despossuída seja disposta a oferecer sua capacidade de trabalho nos mercados enquanto uma
mercadoria e aceitar os riscos e sobrecargas; 2. Os trabalhadores precisam ter motivos
culturais para se transformarem em trabalhadores assalariados; 3. Precisa-se constituir
condições sócio-estruturais para que o trabalho assalariado funcione efetivamente como
trabalho assalariado.
Assim, as políticas sociais do Estado Capitalista têm que estar voltadas a efetivar estas
condições de adaptação ao sistema dominante. Desta forma, ao compreender que o trabalho
assalariado tem como pré-requisito também formas de existência externas ao mercado de
trabalho, pode-se afirmar que estas formas externas devem ser organizadas e sancionadas
pelo Estado Capitalista, por meio de suas regulamentações políticas formalizadas.
Alerta-se que, a estatização dos subsistemas do mercado de trabalho permite controlar
as condições de vida e as pessoas que estão fora do mercado de trabalho. Esclarece Claus
Offe, que “a regulamentação de políticas sociais delibera quem pode e quem não pode tornarse um trabalhador assalariado. A escolha entre as formas de trabalho assalariado e formas
externas de subsistência não podem mais depender do trabalhador.” (OFFE, Claus, 1984) As
políticas sociais têm, como um de seus objetivos, a regulação para que os trabalhadores
assalariados não saiam do mercado de trabalho, prejudicando as dinâmicas do sistema
capitalista de produção. Ressalta-se a mobilização das políticas estatais que integram os
aparelhos ideológicos e repressivos do Estado para a entrada da força de trabalho na função
de trabalhador assalariado. “Esta socialização segundo o modelo de trabalho enquanto
mercadoria é problemática e é recriada no decorrer do desenvolvimento do capitalismo
industrial.” (OFFE, Claus, 1984)
Salienta-se:
Com a propriedade privada dos meios de produção foram institucionalizados os
meios de distribuição dos bens e as formas de divisão do trabalho. Assim, os
trabalhadores perderam a possibilidade de estruturar a organização do trabalho de
forma autônoma e segundo seus próprios interesses. Uma das características da
organização do trabalho capitalista é submeter a força de trabalho a um controle
externo. (OFFE, Claus, 1984, p. 19)
Deve-se ater que apesar da forma de organização do trabalho assalariado ser a
76
dominante, isto não significa que se auto-sustente ou persista. No capitalismo industrial se
reintroduzem este problema estrutural, sendo que as políticas sociais do Estado Capitalista
devem ser adequadas à controla-lo.
Neste sentido, entende-se que:
A Política Social representa uma estratégia estatal de integração de força de
trabalho na relação de assalariado, isto é, uma relação que somente poderia
adquirir a difusão e a normalidade que hoje existem graças à efetividade dessa
estratégia (...). A função da política social é contribuir para a constituição da
classe operária. (OFFE, Claus, 1984, p. 22).
Os componentes da política social são: 1. Preparação repressiva e socializadora da
proletarização; 2. Estabilização por medidas da coletivização compulsória dos riscos; 3.
Controle quantitativo do processo de proletarização.
Apesar da força de trabalho ser tratada como mercadoria, sua existência não se
fundamenta em expectativas de sua possibilidade de venda. Assim, percebe-se um excedente
potencial de oferta de força de trabalho, o que exige mecanismos reguladores (políticas
sociais) dos volumes quantitativos capazes de estabelecerem o equilíbrio entre a
proletarização passiva e a ativa.
Impõem-se um sistema social, fora do processo produtivo, destinado a recolher as
parcelas redundantes, de modo a assegurar a reprodução da força de trabalho,
mesmo quando não há um impacto direto sobre o processo de produção
(...).Recolhimento institucional de parcelas da força de trabalho que não podem ser
absorvidas pela demando no mercado de trabalho. (OFFE, Claus, 1984, p. 23)
No que tange à ligação entre a cidadania e o sistema capitalista de produção, tem-se que
o proprietário da força de trabalho somente se torna trabalhador assalariado enquanto
cidadão. Percebe-se que as categorias, tanto jurídicas quanto da democracia liberal, têm forte
ligação com a própria estrutura do sistema de produção.
Diante destas considerações apresentadas, pode-se apresentar a seguinte definição da
Política Social: “Conjunto daquelas relações e estratégias politicamente organizadas que
produzem continuamente essa transformação do proprietário de força de trabalho em
trabalhador assalariado, na medida em que participam da solução dos problemas estruturais.”
(OFFE, Claus, 1984, p. 24)
Assim sendo, Claus Offe questiona de que forma o aparato de instituições sóciopolíticas corresponde aos problemas estruturais da integração de força de trabalho no sistema
do trabalho assalariado?
O aparato de instituições sociais do Estado Capitalista procura reforçar a disposição
para o trabalho. Com a ajuda das políticas sociais:
77
O capital é exonerado na medida em que na ausência de tais instituições, os
problemas individuais decorrentes da existência do trabalhador assalariado
precisariam ser resolvidos mediante exigências salariais mais elevadas por parte dos
trabalhadores. (OFFE, Claus, 1984, p. 28)
Sem políticas sociais como previdências e seguros sociais, as lutas sociais
aumentariam, os conflitos diante das condições desfavoráveis da existência do trabalhador
assalariado se fortificariam, o confronto entre trabalho e capital e o conflito de classes se
intensificariam; o objeto dos conflitos seria o questionamento da própria organização
capitalista. Enfim, a estrutura do processo de produção capitalista seria colocada em cheque.
As políticas sociais que implementam uma das condições e relações de trabalho
modificam de forma mínima e insignificante a estrutura da divisão de trabalho e as leis do
processo econômico capitalista. Assim, a Política Social volta-se ao objetivo de integração
permanente de força de trabalho no sistema do trabalho assalariado, além de ser um controle
às formas de reprodução externas ao mercado de trabalho. Claus Offe explica que apenas a
organização estatal permite conciliar as medidas político-sociais às exigências da econômica
de mercado.
A política social contribui para a transformação de força de trabalho em trabalho
assalariado, não podendo afetar o primado institucionalizado da organização de
trabalho capitalista (...). As políticas sociais visam o controle das motivações, a
adaptação da capacidade de trabalho e a regulamentação quantitativa da oferta da
força de trabalho. (OFFE, Claus, 1984, p. 30)
Faz parte da política social: as medidas político-repressivas de controle ou as
estratégias voltadas para os problemas na área educacional, residencial e de saúde, inclusive
porque o aparelho administrativo já tem hoje clara consciência das inter-relações entre todas
essas categorias. (OFFE, Claus, 1984, p. 31)
Por fim, pode compreender, então, que a Política social apresenta uma orientação
funcional ao modo de produção capitalista, preocupando-se com o problema da constituição e
da reprodução permanente da relação do trabalho assalariado.
Forma de organização do trabalho assalariado pode ser mantida se os riscos vitais
forem aceitos pelos trabalhadores, e se evitar a tendência de evasão dos trabalhadores para
outras formas organizacionais. Assim a política social apresenta duas fontes: uma encontra-se
nos riscos do processo de industrialização capitalista, e a outra na força de organização da
classe operária, a qual impõe ao Estado algumas exigências. Nas palavras de Claus Offe, o
desenvolvimento da política social seria o resultado de uma carga de risco objetiva e da
imposição de exigências políticas. (OFFE, Claus, 1984, p. 33).
78
O processo de transformação das exigências da classe trabalhadora em políticas sociais
é, segundo Claus Offe, mediatizado por estruturas internas de organização do sistema
político, as quais decidem se tais necessidades podem ou não ser admitidas como temas que
mereçam elaboração. (OFFE, Claus, 1984, p. 34).
4. A (IN)COMPATIBILIDADE DOS DISCURSOS DE CIDADANIA COM O
MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo demonstra em sua obra intitulada o “Capital e
suas metamorfoses” as contradições da modernidade pautadas nos conflitos entre forças e
valores da concorrência capitalista e a realização autônoma do indivíduo. Para Belluzzo a
estrutura material da sociedade capitalista não permite a realização do projeto da
modernidade, não sendo possível a realização dos valores declarados pela burguesia no
momento histórico de ascensão, ou seja, os valores de liberdade, igualdade e de
autodeterminação dos indivíduos.
De acordo com Belluzzo, as relações econômicas fundamentais estão constituídas por
uma assimetria de poder entre os que possuem os meios de produção e os que para sobreviver
são obrigados a vender livremente a sua força de trabalho. Neste sentido, a história do
capitalismo retrata a subordinação do trabalho e o empobrecimento do indivíduo. Salienta-se
que,
(...) o capitalismo nos aprisiona nas cadeias das relações de produção, estruturas
técnico-econômicas e formas de convivência que agem sobre o destino dos
protagonistas da vida social como se fossem forças naturais que destroem a
natureza, fora do controle da ação humana. (BELLUZZO, Luiz Gonzaga, 2013, p.
20)
Na sociedade capitalista industrializada, o indivíduo encontra-se preso ao vício do
consumismo, à insatisfação das necessidades ilimitadas e ao impulso insaciável da
acumulação de riqueza monetária. Bem explica Belluzzo sobre as duas categorias de
“cidadãos”:
No mundo em que mandam os mercados da riqueza financeira e a concorrência
entre as grandes corporações, os cidadãos estão divididos entre vencedores e
perdedores. Os primeiros, ao acumular capital financeiro, gozam do tempo livre e
do consumo de luxo. Os demais se tornam dependentes crônicos da obsessão
consumista e do endividamento, permanentemente ameaçadas pelo desemprego, e,
portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência. BELLUZZO,
Luiz Gonzaga, 2013, p. 27)
Destaca-se, ainda, que a introdução das novas tecnologias de informação no mundo do
79
trabalho transforma-se em meios de dominação e controle: “ (...) descontadas a liberdade do
desemprego aberto, o avanço do subemprego e da precarização determinaram a criação de condições
de trabalho mais duras, ainda menos visíveis às vítimas.” (BELLUZZO, Luiz Gonzaga, 2013, p. 30)
As relações de subordinação e dependência contemporâneas permitem a flexibilidade de horário
(trabalho em casa, por exemplo) onde o trabalhador está permanentemente disponível para responder
às exigências do empregador ou contratante. (BELLUZZO, Luiz Gonzaga, 2013, p. 30)
As flexibilizações dos direitos trabalhistas e as jornadas de trabalhos sem limites são
exemplos de duras condições que o mercado de trabalho tem imposto aos indivíduos de uma
forma oculta, menos visível. Os trabalhadores nas sociedades capitalistas industrializadas
estão sob permanente controle e disciplina do mercado.
O Capitalismo atropela os princípios clássicos da Democracia e as políticas neoliberais
apresentam-se como uma tentativa de reestruturação regressiva. “As classes dominantes e
dirigentes, em escala mundial, apostam e ganham no retrocesso, no recuo das conquistas
sociais e econômicas das classes subalternas.” As violações de direitos sociais são constantes
em nossa sociedade. No contexto do neoliberalismo, difunde-se novamente a ideia
conservadora de que “a liberação das forças que impulsionam a acumulação de capital é um
movimento natural e irreversível em direção ao progresso e à realização da autonomia do
indivíduo.” (BELLUZZO, Luiz Gonzaga, 2013, p. 33)
CONCLUSÕES
Pode-se concluir que as políticas sociais voltadas para a efetivação de direitos sociais,
como a saúde, a moradia, a educação, o lazer, a previdência, dentre outros. Possuem uma
estrita ligação de aproveitamento com o modelo de produção capitalista, sendo que estas
políticas sociais cumprem (ou tentam cumprir) funções de manutenção de uma determinada
ordem econômica. As politicas sociais, segundo a tese de Claus Offe, possuem a função de
manter a força de trabalho sob os comandos do capitalismo, notadamente no que se refere ao
controle do trabalhador assalariado e na permanência da mais-valia como algo naturalizado
pelo sistema. Com o presente trabalho procurou-se demonstrar as funções ocultas que estão
por detrás dos discursos encantadores de direitos sociais e políticas sociais no interior de uma
sociedade marcada pela exploração e pela desigualdade social.
REFERÊNCIAS
80
BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. O Capital e suas metamorfoses. São Paulo: Ed.
Unesp, 2012.
FERNANDES, Forestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 4ª
ed., São Paulo: Global, 2009.
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 3ª edição,
2005.
OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
POULANTZAS, NICOS. As classes sociais no capitalismo de hoje. 2ª Ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1978.
NAVES, Márcio Bilharinho. Direito, circulação mercantil e luta social. In: Direito,
Sociedade e Economia: Leituras marxistas. Barueri, SP: Manole, 2005.
SODRÉ, Nelson Werneck. Fundamentos do Materialismo Histórico. Rio de Janeiro: 1968
81
QUANTO VALE O TRABALHO ESCRAVO?
CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INDENIZAÇÕES ARBITRADAS PELA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E PELA CORTE EUROPÉIA DE
DIREITOS HUMANOS17
HOW MUCH WORTH THE SLAVE LABOR?
CONSIDERATIONS AS DAMAGES REFEREED BY INTER ON HUMAN RIGHTS
AND HUMAN RIGHTS EUROPEAN COURT
Jorge Luís Mialhe
Doutor, mestre e bacharel pela USP.
Pós-doutorado pelas universidades de Paris e de Limoges.
Docente da UNESP/Rio Claro.
Docente do Curso de Mestrado em Direito da UNIMEP/Piracicaba.
E-mail: [email protected]
Rui Decio Martins
Doutor em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP.
Mestre em Direito Internacional e Bacharel pela USP.
Vice-diretor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.
Coordenador do Curso de Mestrado em Direito da UNIMEP/Piracicaba.
Docente aposentado da UNESP/Franca.
E-mail: [email protected]
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. No Brasil; 3. Das indenizações fixadas pela jurisprudência
brasileira; 4. Das indenizações fixadas pelas Cortes de Direitos Humanos; 5. Caso Siliadin v.
França (CEDH, 2005); 6. Caso Massacres de Rio Negro v. Guatemala (Corte IDH, 2012);
7.Quanto vale o trabalho escravo?; 8. Considerações Finais; Referências.
RESUMO: O presente trabalho pretende discutir os valores e critérios das indenizações
arbitradas, em matéria de trabalho escravo ou análogo à escravidão, pelo judiciário brasileiro
e, na esfera internacional, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso
Massacres de Rio Negro v. Guatemala (sentença da Corte IDH de 4 de setembro de 2012) e
pela Corte Européia de Direitos Humanos, no Caso Siliadin v. França (sentença da CEDH de
26 de outubro de 2005) e sugerir como parâmetro para a fixação dos montantes das
indenizações a renda per capta dos países membros que integram os sistemas de Direitos
Humanos na América e na Europa, com eventual majoração decorrente da menoridade da
vítima, conforme disposição do Código Penal brasileiro. Sugere, finalmente, a criação de um
“Fundo Interamericano de Reparação”, gerido e supervisionado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, semelhante ao sistema de quotas-partes do FMI, para
17
Trabalho apresentado no IV Seminário Internacional do NETPDH – “Formas contemporâneas de trabalho
escravo”, na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, campus de Franca, em 08 de maio de 2015.
Os autores agradecem ao juiz Jorge Eduardo Assad, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, pelo
compartilhamento de pesquisas jurisprudenciais e informações acerca das indenizações arbitradas pelo judiciário
brasileiro sobre o tema do trabalho escravo ou análogo à escravidão.
82
atender os países com maior déficit democrático do hemisfério.
Palavras-chave: trabalho escravo – critérios de indenização – Corte Interamericana de
Direitos Humanos – Corte Européia de Direitos Humanos.
ABSTRACT: This paper discusses the values and criteria of arbitrated indemnities, relating
to slave labor or slavery, by the Brazilian judiciary and at the international level, the InterAmerican Court of Human Rights in the case of Rio Negro Massacres v. Guatemala
(judgment of the Inter-American Court of September 4, 2012) and the European Court of
Human Rights in the case Siliadin v. France (ECHR judgment of 26 October 2005) and to
suggest as a parameter for fixing the amount of compensation, the per capita income of the
member countries of the Human Rights Systems in America and Europe, with possible
increase due to the minority of the victim, according to the legal provision of the Brazilian
Penal Code. Suggests, finally, the creation of an "Inter-American Fund of Repair", managed
and supervised by the Inter-American Commission on Human Rights, similar to the system of
the IMF‟s participation shares, to attend the countries with the highest democratic deficit in
the hemisphere.
Keywords: slave labor - compensation criteria - American Court of Human Rights European Court of Human Rights.
1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é refletir sobre os valores das indenizações arbitradas pela
Justiça do Trabalho, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e pela
Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) nos casos de trabalho escravo ou análogo à
escravidão.
Para tanto, consultou-se a jurisprudência de alguns TRTs e foram selecionadas
sentenças proferidas pelas Cortes identificadas pelas ferramentas de busca disponíveis nos
sites dos respectivos tribunais internacionais de Direitos Humanos.
No caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi utilizada a ferramenta
“Jurisprudence Finder”, para a localização dos casos que envolvessem escravidão e trabalho
forçado em todas as decisões e julgamentos da Corte, utilizando-se o termo de pesquisa
“esclavitud”. O resultado da busca apontou para três casos: 1. Massacres de Rio Negro v.
Guatemala (Julgamento da Corte IDH de 04 de setembro de 2012, série C N°250); 2.
Uzcátegui et al. v. Venezuela (Julgamento da Corte IDH de 03 de setembro de 2012, série C
N°249) e 3. Massacres de Ituango v. Colômbia (Julgamento da Corte IDH de 01 de julho de
2006, série C No. 148). Todavia, verificando mais detalhadamente as peças processuais,
constatou-se que tão somente o primeiro caso tratou do tema “esclavitud y servidumbre”.
Na pesquisa da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, foram
consultadas as listas de julgamentos e decisões aplicando-se a palavra “slavery” na
ferramenta de busca disponível no site da Corte, que redundou em um único caso: Siliadin v.
83
França (sentença da CEDH de 26 de outubro de 2005, Requerimento N°73316/01)
Não vamos, aqui, discorrer sobre a escravidão, flagelo da humanidade desde tempos
imemoriais e sobre o qual já se escreveu milhares e milhares de páginas. Vamos nos ater ao
tempos modernos, nos quais têm vindo à luz novas formas de escravidão muito além daquele
conceito tradicional. Vejamos algumas formas descritas no Manual Direitos Humanos no
Cotidiano18:
- venda de crianças, prostituição infantil, utilização de crianças na pornografia, a
exploração de trabalho infantil, a utilização de crianças em conflitos armados;
- práticas escravizadoras que afetam a mulher, tais como o matrimônio sem
consentimento voluntário, a venda de mulheres e os assassinatos por causa do
sistema de dotes, as mutilações de genitais das meninas;
- a servidão por dívida, o trabalho forçado, o tráfico ilícito de trabalhadores
migrantes;
- o tráfico de pessoas para fins diversos e de órgãos humanos;
- a exploração da prostituição alheia. (BRASIL, 2001, p.58)
Uma dessas formas surge no século XX, nas relações de trabalho, ou de uma falsa
aparência de relação de trabalho. Estamos nos referindo ao trabalho forçado, um estigma da
modernidade que vai buscar no passado da humanidade suas formas mais bárbaras e indignas
dando-lhe nova roupagem, novo disfarce posto que surge numa era de aparente proteção,
nacional e internacional, ao trabalhador; aparente, posto que este último crê ingenuamente
estar sob o manto protetivo da lei, interna e/ou internacional.
No plano do Direito das Gentes a repulsa à escravidão encontrou eco já no Congresso
de Viena, de 8 de fevereiro de 1815, em cuja Declaração se proibiu o tráfico de escravos.
Todavia, aquele diploma legal travestiu-se apenas em um Princípio adotado nas relações
internacionais de então. A transformação em fatos concretos deu-se posteriomente com um
tratado assinado por Áustria, França, Grã Bretanha, Prússia e Rússia, em 20 de dezembro de
1841, desenvolvido a seguir pela Ata Geral de Bruxelas, de 2 de junho de 189019.
(VERDROSS, 1972, p.547).
Ainda assim, a proibição não era de fato mundial. Isso se conseguiu, in tese, com a
assinatura do Convênio de Genebra Relativo à Escravidão, de 25 de setembro de 1926, e
completado pela Convenção Suplementar Relativa à Abolição da Escravidão, de 4 de
setembro de 195620, que de fato obrigava os signatários a punir criminalmente o transporte de
18
Este Manual foi elaborado em atendimento ao disposto no Programa Nacional de Direitos Humanos, durante a
Presidência de Fernando Henrique Cardoso.
19
Em consequência da exploração da borracha o Rei Leopoldo II da Bélgica escravizou e massacrou populações
inteiras no então Estado Livre do Congo. A esse respeito veja-se HOCHSCHILD, Adam. O Fantasma do Rei
Leopoldo. Uma história de cobiça, terror e heroísmo na África Colonial.
20
Convention Supplémentaire relative à l’abolition de la esclavage, de la traite des esclaves et des instituitions
et pratiques analoges à l’esclavage. Tal documento já previa algumas situações tidas como práticas análogas à
84
escravos, a adotar medidas para impedir esse transporte em navios e aeronaves sob sua
jurisdição, bem como o uso de portos, aeroportos e litoral para esse fim. Acrescentava, mais,
que todo escravo que lograsse fugir de um navio ou avião de um dos Estados firmantes seria
considerado ipso facto como tendo obtido a liberdade.
Interessante anotar neste tópico que a Convenção do Mar, de Genebra, de 29 de abril
de 1958, em seus artigos 13 e 22 autorizavam os Estados signatários a capturar os navios
destinados ao tráfico de escravos. (VERDROSS, 1972, p.547).
Há pouco mais de dez anos de sua entrada triunfal no cenário jurídico internacional
(1919), a primeira organização internacional interestatal, a Organização Internacional do
Trabalho – OIT, adotou a Convenção nº 29, sobre Abolição do Trabalho Escravo, de 28 de
junho de 1930, a qual em seu artigo 1º estipula que os Estados se obrigam a suprimir o
emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo
possível (§ 1º); porém, de certa forma contraditório, o § 2º. abre uma exceção ao prever que
com o fim de alcançar essa supressão total, o trabalho forçado ou obrigatório poderá ser
empregado, durante o período transitório21, unicamente para fins públicos e a título
excepcional, nas condições e com as garantias estipuladas nos artigos que seguem.
No artigo 2º, § 1º, vemos a inscrição de que “trabalho forçado ou obrigatório”
designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer
penalidade e para a qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.
O parágrafo seguinte elenca uma série de situações que não são consideradas como
trabalho forçado: a) trabalhos exigidos em virtude de serviço militar obrigatório; b) quando o
trabalho ou serviço for parte das obrigações cívicas normais dos cidadãos; c) quando o
trabalho ou serviço tiver de ser executado em decorrência de condenação judiciária, desde
que o indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas;
d) quando ocorrer em situações de força maior; e) pequenos trabalhos de uma comunidade,
isto é, trabalhos executados no interesse direto da coletividade pelos membros desta,
considerados como obrigações cívicas normais, contanto que a comunidade tenha o direito de
se pronunciar sobre a necessidade desse trabalho.
Na sequência, a OIT editou a Convenção 105, de 27 de junho de 1957, sobre Abolição
escravidão, tais como servidão por dívidas e o fornecimento de jovens e crianças a terceiros para exploração de
suas capacidades de trabalho.
21
O art. 1º, § 3º, estipula o prazo de cinco anos.
85
do Trabalho Forçado22. A diferença entre as duas reside em que enquanto aquela previa um
período transitório para obter seu objeto integral, esta última, em seu Artigo 1º, prevê a
supressão imediata do trabalho forçado, proibindo a não recorrer ao mesmo sob forma
alguma:
a) como medida de coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a
pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua
oposição ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida;
b) como método de mobilização e de utilização de mão de obra para fins de
desenvolvimento econômico;
c) como medida de disciplina de trabalho;
d) como punição por participação em greves;
e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.
Ainda no plano internacional, embora, aqui, não necessariamente em ordem
cronológica, outros instrumentos legais somam-se aos já vistos para formar uma teia protetiva
e que repudia o trabalho escravo nas relações de trabalho. Vamos a elas.
Em 30 de abril de 1948, no âmbito da OEA – Organização dos Estados Americanos,
foi aprovada a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem que em seu artigo
XIV declara o direito ao trabalho em condições dignas, garantindo uma justa remuneração
pelo mesmo. O artigo XV prevê a instituição do descanso, ao recreio honesto e à
oportunidade de aproveitar utilmente o seu tempo livre em benefício de seu melhoramento
espiritual, cultural e físico. Como se pode notar nada disso é compatível com a condição de
escravo ou, que seja, de condição análoga à de escravo; em outras palavras: trabalho forçado.
Em 10 de dezembro de 1948, em Genebra, celebrou-se a aprovação da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da ONU, que em seu artigo 4º proíbe a escravidão ou
servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Combina este dispositivo com o artigo 23 do mesmo documento que prevê a livre escolha de
emprego com condições justas e favoráveis ao trabalho, direito a uma remuneração
compatível com a dignidade humana, a si e sua família.
O ano de 1966 foi pródigo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos: foram
elaborados dois importantes documentos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(PIDCP).
O primeiro deles, em seu artigo VII, assegura o direito de toda pessoa de gozar de
condições de trabalho justas e favoráveis que visam assegurar uma remuneração mínima,
22
Entrou em vigor na esfera internacional em 17 de janeiro de 1959. Aprovada no Brasil, pelo Decreto
Legislativo nº 20, de 30 de abril de 1965. Ratificada em 18 de junho de 1965, com o Decreto de Promulgação nº
58.822, de 14 de julho de 1966.
86
com salário equitativo, e uma vida decente a si e sua família, condições de trabalho higiênicas
e seguras, garantia de promoção, usufruir de descanso e laser.
Já o segundo Pacto, seu artigo VIII, proíbe a escravidão, o tráfico de escravos em
todas as suas formas. No § 3º., alínea a é enfático ao enunciar que ninguém poderá ser
obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios. Nas demais alíneas, b,c,d, retorna-se
ao conteúdo da Convenção 29, da OIT, em seu artigo 2º, § 2º, já estudado linhas acima.
Ainda no domínio da ONU, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 20 de
novembro de 198923, em seu artigo 32 garante proteção à criança contra a exploração
econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir
em sua educação, ou, seja nocivo para a saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental,
espiritual, moral e social.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, da ONU24, de 30 de março de 2007, em seu artigo 27, § 2º, estipula que os
Estados Partes deverão assegurar que as pessoas com deficiência não serão mantidas em
escravidão ou servidão e que serão protegidas, em igualdade de condições com as demais
pessoas, contra o trabalho forçado ou compulsório.
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, do Conselho da Europa, assinada em Roma, 4 de novembro de 1950, prevê em
seu artigo 4º., a proibição da escravatura e do trabalho forçado.
Dirigindo-se novamente para a esfera do continente americano encontramos a
proibição à escravidão e trabalhos forçados na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, de 22 de novembro de 1969, mundialmente conhecida como Pacto de San José da
Costa Rica25, cujo texto estipula no artigo 6º., § 1º, que ninguém poderá ser submetido a
escravidão e servidão e, no § 2º, que ninguém dever ser constrangido a executar trabalho
forçado ou obrigatório. Da mesma forma que o PIDCP, em seu artigo VIII, § 3º, b, c, d, este
artigo 6º, em seu § 3º, e alíneas, reproduz as regras da Convenção 29, da OIT, artigo 2º, § 2º,
retro mencionado.
O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conhecido como Protocolo de San Salvador, de
23
Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 28, de 14 de setembro de 1990, e promulgada pelo Decreto nº
99.710, de 27 de novembro de 1990 e ratificada em 24 de setembro de 1990.
24
Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2009, passando a ter status de Emenda
Constitucional, nos termos do Artigo 5º, § 3º, da CF/88, promulgada pelo Decreto nº 6949, de 25 de agosto de
2009, ratificada em 01 de agosto de 2008.
25
Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 27, de 25 de setembro de 1992 e promulgada pelo Decreto nº
678, de 06 de novembro de 1992.
87
17 de novembro de 198826, nos artigos 6º e 7º trazem estipulações que corroboram a
proibição do trabalho forçado.
O Estatuto de Roma27 que instituiu o Tribunal Penal Internacional trata da escravidão
no artigo 7º, § 1º, c, capitulado como Crime contra a Humanidade.
2. NO BRASIL
A Constituição de 1988, no artigo 5º, XLVII, c, é precisa ao não admitir condenações
penais baseadas nos trabalhos forçados. Trata-se mesmo de cláusula pétrea, à luz do artigo
60, § 4º, IV. Ora, desta forma encontra-se o texto constitucional totalmente integrado à prática
internacional de repúdio ao trabalho forçado adotada pelo Brasil, como foi visto linhas acima.
Todavia, em termos legais, aquela proibição não é exclusividade da Constituição. O
Código Penal, em seu artigo 149 tipifica como sendo crime o ato de reduzir alguém à
condição análoga de escravo. Daí se extrai que também a lei penal brasileira repudia e proíbe
a prática de trabalho forçado.
Como bem destacou Leite (2005), a leitura do artigo supracitado revela que:
a legislação pátria é mais abrangente do que a prevista na Convenção nº 29 da OIT,
na medida em que amplia o conceito de trabalho em condições de escravidão, não
se limitando a considerá-lo apenas sob o enfoque do cerceio da liberdade do
trabalhador. Dito de outro modo, a lei brasileira considera trabalho em condições
análogas à de escravo não apenas quando há cerceio da liberdade de trabalhar, mas
também quando existentes condições de trabalho degradantes ou jornada exaustiva.
Torna-se factível afirmar, portanto, que, em nosso ordenamento jurídico, o trabalho
em condições análogas à de escravo constitui gênero que tem como espécies o
trabalho forçado, o trabalho em condições degradantes e o trabalho realizado em
jornada exaustiva.
No Programa Nacional de Direitos Humanos-3, Decreto 7.037, de 21 de dezembro de
2009, a questão do trabalho forçado vem nominada como trabalho escravo. 28
3. DAS INDENIZAÇÕES FIXADAS PELA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
Ao abordar o tema da indenização arbitrada pela Justiça do Trabalho, nos caos de
trabalho escravo ou análogo à escravidão, Broecker (2012) sublinha que:
Não há uma quantificação a priori do valor adequado a reparar o prejuízo causado,
bem como punir o agente que ocasionou o dano, ou seja, a pessoa física ou jurídica,
incluindo o Estado. De fato, o valor da indenização deve ser fixado no caso
concreto. Destarte, no Brasil é adotado o sistema aberto para fixação de indenização
por dano moral, vale dizer que há “individualização da reparação da ofensa por
26
Aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 56, de 19 de abril de 1995 e promulgado pelo Decreto nº
3.321, de 30 de dezembro de 1999.
27
Aprovado em 17 de julho de 1998, assinado pelo Brasil em 07 de fevereiro de 2002, aprovado pelo Decreto
Legislativo 112, de 06 de junho de 2002, ratificado em 20 de junho de 2002. Promulgado pelo Decreto 4388, de
25 de setembro de 2002. No plano internacional entrou em vigor em 01 de julho de 2002.
28
PNDH-3 - Objetivo estratégico VII: Combate e prevenção ao trabalho escravo.
88
meio da aplicação de elementos subjetivos estabelecidos prudentemente pelo
magistrado”. Assim, a respeito da indenização devida nos casos em que haja
comprovação do dano moral coletivo, levando-se em consideração os acórdãos
apreciados dos Tribunais Regionais do Trabalho do País podemos perceber alguns
parâmetros, como, por exemplo, a intensidade do dolo, a culpa, a omissão, a
negligência ou imprudência, a condição financeira do ofensor, situação da vítima,
etc. Para a quantificação do valor indenizatório, portanto, devem ser considerados,
principalmente, os seguintes critérios: número de vítimas diretas e potenciais, o
descumprimento normativo, o grau de violação e a capacidade econômica das
partes. (BROECKER, 2012)
No seu voto de 04 de outubro de 2005, no Acórdão da 1ª. Turma do Tribunal Regional
do Trabalho da 8ª. Região, RO 1327-2003-112-08-00-4, o desembargador relator, Georgenor
de Sousa Franco Filho, no caso de trabalho forçado análogo à escravidão, reforça a
importância da aplicação de critérios rígidos na fixação de indenização. Vejamos:
(...) Agora, relativamente ao quantum, é preciso estabelecer alguns parâmetros,
como, por exemplo, a intensidade do dolo, a culpa, a omissão, a negligência ou
imprudência, a condição financeira do ofensor, situação da vítima, etc.
Maurício Godinho Delgado, comentando sobre o valor da indenização por danos
morais, ensina que: Hoje o novo Código dispõe que „a indenização mede-se pela
extensão do dano‟ (art. 944, CCB/2002), o que, evidentemente, não afasta o justo e
o equilibrado arbitramento judicial em situações como as inerentes ao dano moral,
por exemplo. (....) Deve-se atentar ainda para o seguinte: que o montante arbitrado
não produza enriquecimento ou empobrecimento sem causa das recíprocas partes;
que não perca esse montante a harmonia com a noção de , seja por deixar de
compensar adequadamente o mal sofrido, seja por agregar ganhos financeiros
superiores a uma compensação razoável pertinente (in Curso de Direito do
Trabalho. 4ª ed., São Paulo, LTr, 2005, p. 623).
É bem verdade, como ressaltado pela r. sentença de fls. 1445/1449, que não se pode
arbitrar a indenização pela riqueza do ofensor. Também é verdade que os requisitos
acima referidos devem ser sopesados, porque a indenização tem natureza de
punição, de castigo, e não apenas simbólico; deve desestimular o ofensor e outros
que tendem à mesma prática.
O patrimônio da recorrida apontado pelo recorrente é real, tanto que admite em sua
contestação, mas diz que deve ser levado em conta as despesas com a manutenção
dos animais e suas dívidas, mas não apontou quais.
No caso dos autos, a agressão é grave; se nada for feito pelas autoridades
competentes para tolher de uma vez por todas práticas nocivas à sociedade,
ninguém o fará. O quadro dramático em que vive o trabalhador do campo tenderá a
se agravar ante o sentimento de impunidade. Na mesma proporção crescerá a
violência, já que o drama vivido pelos trabalhadores levam a isso.
Dessa forma, levando-se em conta que o fato de o proprietário da reclamada ser
afortunado não justifica, por si só, a indenização pretendida; a condição financeira
da recorrida, provada nos autos e admitida em contra-razões, muito embora com a
ressalva de que possui várias dívidas e despesas com os animais; a grave situação a
que eram submetidos os trabalhadores; e, finalmente, o bom senso e o princípio do
enriquecimento ou empobrecimento sem causa, entendo que a multa deve ser
elevada para R$1.000.000,00 (hum milhão de reais), considerando, primeiro o
tratamento desumano a que seres humanos (não se trata de pleonasmo, mas de alerta
à realidade) eram submetidos; a imperiosa necessidade de demonstrar o escárnio da
sociedade com práticas que ofendem a dignidade da pessoa humana; e, por fim,
demonstrar à comunidade internacional que o Judiciário deste país não compactua
com atitudes imorais como a que estes autos revelam.
No caso da Ação Civil Pública, processo nº: 01780-2003-117-08-00-2, o juiz titular da
2ª Vara do Trabalho de Marabá/PA, Jorge Antonio Ramos Vieira, na significativa data de 13 de
89
maio de 2005, arbitrou o maior valor de indenização paga por conta de trabalho escravo no
Brasil. A sentença adotou os seguintes parâmetros:
O Direito Brasileiro não obedece a sistema de tarifação do dano. Aos Órgãos do
Poder Judiciário, portanto, cabe a fixação do valor de cada indenização, no caso
concreto.
Diz o art. 944, do CCB que “A indenização mede-se pela extensão do dano”. E o
dano que se comete contra seres humanos em coletividade indistinta de indivíduos,
sejam homens, mulheres, adolescentes ou crianças, apenas para reduzir custos do
empreendimento é, certamente, o mais extenso, e grave, de todos (em tempos de
paz).
Mas o dano a que se passa a fixar neste ponto da Decisão deve ser medido tanto
pelos atos ilícitos dos réus, quanto pela sua reiteração e pelo pouco caso que
fizeram das decisões judiciais, condenatórias e homologatórias a que devem se
submeter.
Por isso, neste Processo, como em nenhum outro antes dele, sopesarei o valor não
apenas pela afronta a direitos básicos dos trabalhadores (acepção coletiva do termo),
mas com base, também, na reincidência e recalcitrância dos réus em não
obedecerem aos comandos emitidos quer por sentenças, quer por acordos judiciais a
que estavam submetidos; quer pelo descaso para com as Autoridades
Administrativas que se lhes impuseram diversas vezes Autos Infracionais, sem que
isso fosse suficiente para demovê-los do firme propósito de atingir a dignidade do
homem trabalhador, indistintamente considerado e, ainda, pelo descaso em relação à
condenação anterior, conforme acima demonstrado. (...)
Contudo, considerando as provas de fls. 1043/1045, pelo que vejo que a 1ª
reclamada está se adequando às normas que tanto já violou, reduzo a condenação
em R$1.000.000,00 (um milhão de Reais), como estímulo para que continue com o
processo de adequação de seus procedimentos às normas de segurança, higiene,
medicina e meio ambiente do trabalho. Porém, tais adequações são obrigações
legais e já deviam ter sido providenciadas há mais tempo, segundo a vigência da
legislação, logo, são insuficientes para diminuir o dano em patamar superior ao
valor acima definido.
Desse modo, defiro o pagamento de indenização por danos morais coletivos no
importe de R$3.000.000,00 (três milhões de Reais), que está bem abaixo do que o
pedido do MPT, mas em valor 100 vezes maior do que a primeira condenação
imposta à ré, na ACP anterior, pois, como demonstrei acima, aquele valor não foi
suficiente para demovê-la da continuidade da prática de atos contrários à legislação,
ferindo direitos humanos e praticando atos de lesa humanidade, manchando o nome
deste grande Estado e do País, frente aos Organismos Internacionais, o que deve ser
sempre lembrado para efeito dos fins a que essa ação visa evitar e punir.
Os advogados recorreram e, no acórdão do TRT da 8ª. Região, 1ª T/ RO 01780-2003117-08-00-2, a desembargadora relatora, Suzy Elizabeth Cavalcanti Koury, em 21 de
fevereiro de 2006, estabeleceu o seguinte:
Aqui o que se busca é reparar o dano causado à coletividade pelo fato de os
recorrentes, em pleno século XXI, manterem trabalhadores em condições
subumanas, enquanto que as multas administrativas cominadas encontram previsão
legal e são devidas em razão do descumprimento de disposições não só da CLT,
como também das Normas Regulamentares Rurais de Saúde, Higiene e Segurança,
restando incólume o artigo 5º, inciso II, da CF/88, que fica desde logo
prequestionado. (...)
Os valores requeridos pelo Ministério Público do Trabalho também me parecem
excessivos, mas entendo que a condenação deva ser agravada face à reiteração, a
fim de que se coíba, de uma vez por todas, a prática das irregularidades pelo grupo
de empresas-rés.
De notar que, em se tratando de ação civil pública, não há falar em bis in idem por
90
serem constatadas as mesmas irregularidades de sempre e que teriam sido punidas
com a imposição de multa de R$30.000,00, pois houve a reiteração dos atos após a
imposição da multa, o que demonstra que a mesma não foi suficiente para inibir a
conduta ilícita das recorrentes.
Assim é que dou parcial provimento ao recurso do autor para condenar os
recorrentes ao pagamento de indenização no importe de R$ 5.000.000,00 (cinco
milhões de reais), a ser revertido ao FAT, valor que considero como justo para
indenizar o dano moral constatado nestes autos.
Foi homologado acordo, mas na realidade este apenas estabeleceu um parcelamento
da execução. Destaca-se o seguinte trecho:
Conciliação.
Natureza jurídica: a presente conciliação é celebrada a título de quitação de todas as
parcelas da presente execução trabalhista.
Obrigação de pagar: o(a) reclamado(a) pagará a importância líquida, livre de
descontos, de R$6.600.000,00, dividida em 06 parcelas de R$1.100.000,00, da
seguinte forma: a 1ª parcela já foi depositada nos autos, conforme guia de depósito
que reclamada juntou; as 04 parcelas seguintes vencerão no dia 21/10/2014,
21/10/2015, 21/10/2016 e 21/10/2017; a última parcela vencerá no dia 21/04/2018.
Local do pagamento: as obrigações serão sempre cumpridas mediante depósito
judicial na(o) Caixa Econômica Federal/Banco do Brasil S.A.
Custas: impõe-se custas ao reclamado no valor de 50% de R$132.000,00,
calculados sobre o montante da conciliação, que devem ser recolhidas ao final do
acordo. O MPT é isento na forma da lei.
Ainda na esfera do direito pátrio, Assad (2015) conclui que não há tarifação para o
cálculo da indenização. Mede-se a extensão do dano, pela sua gravidade (art. 944, do Código
Civil), considerando a ilicitude do ato, a capacidade econômica do ofensor, a reiteração da
conduta. Em se tratando de dano coletivo, aplica-se o art. 13, da Lei n.º 7.347/1985, visa-se a
reparação à própria sociedade, não se esquecendo do caráter pedagógico-inibitório da conduta
ilícita.
Já no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, assevera Assad (2015),
embora o Estado seja o réu nessas ações, seria viável utilizar os parâmetros considerando os
ofensores (as pessoas físicas e jurídicas), porque de toda a sorte o Estado terá direito de
regresso contra essas pessoas. Ou seja, fixa-se uma condenação, considerando a ilicitude, a
capacidade econômica do ofensor, a extensão do dano, etc, praticados pelo ofensor e,
condena-se o Estado e ele, por seu turno, deverá voltar-se contra o ofensor.
4. DAS
INDENIZAÇÕES
FIXADAS
PELAS
CORTES
DE
DIREITOS
HUMANOS
Tanto na órbita interna como internacional, destaca Sánchez (2010), dois dos
requisitos essenciais ao Direito são a justiça e a reparação, “las cuales son estratégias
indispensables de lucha contra la impunidad de los autores de violaciones a los derechos
91
humanos em situaciones de reconciliación”. Ainda do mesmo autor extraímos o conceito de
que as violações de Direitos Humanos “genera un derecho a reparar a las victimas, sus
parientes o compañeros”. (SÁNCHEZ, 2010, p.101)
Todavia o termo “reparação” apresenta uma amplitude multissêmica, onde se
apresentam várias possibilidades de restaurar as violações sofridas aos direitos humanos. As
reparações, no direito internacional incluem o dever de prevenir violações, o dever de
investigar violações, o dever de prover ações apropriadas contra os violadores e o dever de
fornecer os remédios necessários às vítimas. (VAN BOVEN, 1993)
É dele, van Boven, ainda, a lição de que:
Reparação deve responder às necessidades e anseios das vítimas. Será
proporcionada de acordo com a gravidade das violações e dos prejuízos resultantes
e devem incluir: restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de
não repetição, sendo que ao que interessa ao presente trabalho a compensação será
providenciada em decorrência de um resultado econômico calculado e que resulta
numa violação de direitos humanos, tais como (...) dano físico ou mental, stress
emocional, perda de oportunidades, incluindo educação, perda de salários e a
condição de assalariado, danos à reputação e dignidade, entre outros. (VAN
BOVEN, 1993)
Como bem anotou Salvioli (1995), a obrigação de reparar o dano causado por meio de
uma indenização encontra seus fundamentos no Direito Internacional. Quando existe uma
violação dos direitos humanos que tramita em uma instância internacional, tanto os
instrumentos gerais (no âmbito das Nações Unidas) como os instrumentos regionais
(Convenção Européia de Direitos Humanos e Convenção Americana de Direitos Humanos)
determinam de forma inequívoca o direito das vítimas ou de seus herdeiros a uma justa
indenização. (SALVIOLI, 1995, p.151)
A Convenção Americana de Direitos Humanos prevê que:
Art. 63.1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos
nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu
direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que
sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a
violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte
lesada. (grifamos)
A Corte IDH tem entendido, prossegue Salvioli (1995), que a obrigação contida neste
artigo é de Direito Internacional em todos os seus aspectos como, por exemplo, a sua
extensão, as suas modalidades, os seus beneficiários, etc. (SALVIOLI, 1995, p.151)
A sentença impõe obrigações de Direito Internacional que não podem ser modificadas
nem suspensas em seu cumprimento pelo Estado obrigado, invocando para si disposições de
seu direito interno, conforme previsto no artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos
92
Tratados de 1969: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para
justificar o inadimplemento de um tratado”.
Na sua primeira sentença condenatória29, a Corte IDH determinou que a forma e a
quantia da indenização fossem estabelecidas a partir de um acordo entre a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e o governo do Estado condenado, no prazo de seis
meses, e que, na hipótese da sua não concretização, a Corte IDH decidiria a questão. Nesse
particular, o voto dissidente do Juiz Pisa parece-nos o mais adequado, visto que preferia que a
forma e a quantia da indenização fossem fixadas pela Corte e se as partes não chegassem a
um acordo, em um período de seis meses, haveria a intervenção da Comissão.
5. CASO SILIADIN V. FRANÇA (CEDH, 2005)
O artigo 4° da Convenção Européia de Direitos Humanos, de 1950, proíbe a
escravatura e o trabalho forçado, nos seguintes termos:
1. Ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão.
2. Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório.
3. Não será considerado "trabalho forçado ou obrigatório" no sentido do presente
artigo:
a) Qualquer trabalho exigido normalmente a uma pessoa submetida a detenção nas
condições previstas pelo artigo 5° da presente Convenção, ou enquanto estiver em
liberdade condicional;
b) Qualquer serviço de caráter militar ou, no caso de objetores de consciência, nos
países em que a objeção de consciência for reconhecida como legítima, qualquer
outro serviço que substitua o serviço militar obrigatório;
c) Qualquer serviço exigido no caso de crise ou de calamidade que ameacem a vida
ou o bem-estar da comunidade;
d) Qualquer trabalho ou serviço que fizer parte das obrigações cívicas normais.
O sentido e alcance do artigo 4º da Convenção Européia de Direitos Humanos foram
considerados pela Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) no caso Siliadin v. França,
no momento em que o único caso no qual o tribunal tinha sido obrigado a enfrentar um
tratamento semelhante, foi em relação ao tráfico de pessoas. A requerente alegou violação do
artigo 4º., por ter sido submetida, por mais de três anos, a trabalho doméstico forçado.
Siwa-Akofa Siliadin, cidadã do Togo, chegou à França em 1994, com a idade de
quinze anos. Ela estava acompanhada por uma cidadã francesa, de origem togolesa, que se
comprometeu a regularizar a sua situação de imigrante e a promover a sua educação.
A requerente deveria realizar trabalhos domésticos, até que tivesse recebido o
suficiente para pagar o custo da sua fuga para a França. O seu passaporte foi confiscado e ela
29
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez v. Honduras. Sentença de 28 de julho de 1988. Série C N°4, parte
resolutiva, parágrafo 06.
93
tornou-se, efetivamente, uma trabalhadora forçada. Após vários meses, foi “emprestada” para
um casal para ajudar com as tarefas domésticas. Siliadin foi obrigada a trabalhar longas horas
com pouco tempo de descanso. Ela dormia em um colchão no chão de um quarto que
partilhava com dois filhos pequenos do casal. A requerente não foi remunerada;
ocasionalmente, recebia pequenas quantidades de dinheiro para eventual transporte urbano.
Esta situação durou de outubro de 1994 a julho de 1998, à exceção de alguns meses, quando
escapou e trabalhou para outra pessoa por um salário justo, porém Siliadin teve de retornar
para a residência do casal sob as ordens de seu tio. Durante todo esse período, ela não
frequentou a escola30 e a sua condição de imigrante não foi regularizada.
Após um vizinho ter relatado o que estava acontecendo, o casal para quem Siliadin
trabalhou foi processado e condenado por obter serviços ilicitamente não remunerados ou
serviços insuficientemente pagos, explorando uma pessoa vulnerável ou dependente e por
sujeitar a vítima a condições de trabalho ou vivendo de forma incompatível com a dignidade
humana, ambas as violações previstas no Código Penal francês. Os acusados foram
absolvidos em segunda instância. O caso foi posteriormente encaminhado ao Tribunal de
Recurso de Versailles, que condenou os réus por forçar a requerente a trabalho não
remunerado, porém o tribunal não considerou que o trabalho e as conduções de vida de SiwaAkofa Siliadin eram incompatíveis com a dignidade humana.
A requerente não estava reclamando que o Estado francês fosse diretamente
responsável pela violação do artigo 4º. da Convenção Européia de Direitos Humanos pois,
como nos casos de tráfico de pessoas, os atos denunciados à CEDH foram perpetrados por
particulares. Porém, a denúncia encaminhada era de que a França precisava fazer mais do que
simplesmente abster-se de violações por parte dos agentes do Estado, que tinha uma
obrigação positiva para evitar a infração do artigo 4º. da Convenção Européia de Direitos
Humanos. Nesse sentido, a CEDH condenou a França por violação ao artigo 4º. da
Convenção Européia de Direitos Humanos aduzindo que os dispositivos do Código Penal
francês, assim como sua interpretação, não asseguravam uma “proteção concreta e eficaz” às
vítimas de trabalhos forçados ou em regime de servidão, devendo pagar a requerente o
montante de 26.209,69 EUR a título de indenização.
A plena conformidade com o artigo 4º. da Convenção Européia de Direitos Humanos
30
Nesse particular, como destaca Leite (2005, p. 168): “O trabalho em condições análogas à de escravo é
também responsável pela perpetuação de um círculo vicioso: os excluídos do trabalho acabam sendo excluídos
dos demais direitos sociais, como a educação, a cultura, o lazer, a saúde, a assistência, tornando-se, de tal modo,
verdadeiros “indigentes sociais”.
94
exige, portanto, obrigações e ações positivas por parte do Estado para desencorajar e
penalizar a escravidão, o servidão e o trabalho forçado. (PIOTROWICZ, 2012, p. 187)
6. CASO MASSACRES DE RIO NEGRO V. GUATEMALA (CORTE IDH, 2012)
Durante os anos de 1980 e 1982, o Exército da Guatemala e membros das Patrulhas de
Autodefesa Civil praticaram massacres da população de Rio Negro, planejadas por agentes
estatais no âmbito de uma política de “terra arrasada” dirigida pelo Estado guatemalteco
contra o povo maia, qualificado como “inimigo interno”, em um contexto de discriminação e
racismo. (Corte IDH, 2012, § 2)
Vários dos sobreviventes dos massacres, alguns deles crianças, foram submetidos à
condição de escravidão ou análoga à escravidão, conforme indicou a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos:
136. La Comisión indicó que diecisiete niños pertenecientes a la comunidad de Río
Negro que sobrevivieron a las masacres fueron entregados y obligados, bajo
amenaza, a vivir com sus victimarios durante varios años para la realización de
trabajos forzados que eran inadecuados para su edad. Según la Comisión, estos
niños “fueron utilizados para la servidumbre de la casa […,] maltrata[dos…],
golpe[ados…] y oblig[ados…] a trabajar demasiado”. La Comisión enfatizó que los
niños y niñas fueron sometidos a trabajos forzados con la aquiescencia de miembros
del ejército, y que los victimarios también les tenían prohibido, incluso con
amenazas de muerte, hablar con sus familiares, en caso de que éstos estuvieran
vivos y los encontraran en la calle. (grifamos)
Nesse sentido, no Caso dos Massacres de Rio Negro v. Guatemala, na sentença de 4 de
setembro de 2012,
la Corte estima pertinente fijar en equidad, por concepto de daño material e
inmaterial, las cantidades señaladas a continuación o su equivalente en moneda
guatemalteca, las cuales deberán ser pagadas en el plazo que la Corte fije para tal
efecto (infra párr. 318):
a) USD $ 30,000.00 (treinta mil dólares de los Estados Unidos de América) a cada
una de las víctimas de desaparición forzada (supra párr. 127);
b) USD $ 15,000.00 (quince mil dólares de los Estados Unidos de América) a cada
una de las víctimas sobrevivientes de las masacres señaladas en el Anexo VI de esta
Sentencia;
c) USD $ 10,000.00 (diez mil dólares de los Estados Unidos de América)
adicionales a cada uno de los sobrevivientes de las masacres que son familiares de
las víctimas de desaparición forzada declaradas en este Fallo (supra párr. 127 e infra
párr. 310);
d) USD $ 10,000.00 (diez mil dólares de los Estados Unidos de América)
adicionales a cada uno de los sobrevivientes de las masacres que fueron víctimas de
actos de esclavitud y servidumbre (supra párr. 150);
e) USD $15,000.00 (quince mil dólares de los Estados Unidos de América) a favor
de la señora María Eustaquia Uscap Ivoy, adicionales a los USD $10,000.00 (diez
mil dólares de los Estados Unidos de América) que le corresponden en calidad de
sobreviviente de las masacres, por ser víctima de violación sexual, así como de
actos de esclavitud y servidumbre. (Corte IDH, 2012, § 309)
95
7. QUANTO VALE O TRABALHO ESCRAVO?
É impossível ignorar que os Estados têm capacidades econômicas distintas para o
pagamento de indenizações de toda sorte. Porém, pareço-nos razoável supor que o valor da
renda per capta (GDP per capita) ou seja, o quantum que cada habitante receberia, em
dólares americanos, se o valor do Produto Nacional Bruto (PNB) de um país fosse distribuído
igualitariamente entre todos os seus nacionais, deveria ser computado no valor básico da
indenização, com eventual majoração decorrente de agravante, a ser fixada pelos tribunais de
Direitos Humanos.
Contudo, faz-se necessário lembrar que o PNB é a soma do Produto Interno Bruto
(PIB), total de bens e serviços produzidos anualmente pelo país, somados aos resultados
obtidos no exterior por agentes econômicos nacionais, descontando-se as rendas enviadas
para fora do país (notadamente, em tempos de denúncias do MPF, dos desvios e das remessas
bilionárias de recursos públicos ao exterior, efetuadas por partidos políticos e agentes
públicos e privados). Nesse sentido, esse indicador é tão somente uma média, pois, a renda
per capta de um Estado pode ser alta e, mesmo assim, a renda se concentrar nas mãos de uma
diminuta parcela da população.
A título de exemplo, no Caso dos Massacres de Rio Negro v. Guatemala, se fossem
aplicados os critérios sugeridos (renda per capta da Guatemala, U$ 3.447)31, e a majoração
de cinqüenta por cento (US$ 1.723), o valor da indenização chegaria a US$ 5.170 por ano de
trabalho análogo à escravidão. A proposta de aplicação da majoração leva em conta, por
analogia, a norma penal brasileira, conforme disposta no § 2° do art. 149, do Código Penal,
na redação da Lei n.° 10.803, de 11/12/2003, quando a pena por trabalho escravo é
aumentada de metade, se for praticado contra criança, adolescente e por motivo de
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Em suma, considerando dois anos de
trabalhos análogos à escravidão, o valor arbitrado pela Corte IDH (US$ 10.000) mesmo
sendo baixo, está muito próximo do resultado da fórmula de cálculo sugerida para o
pagamento da indenização.
Já no Caso Siliadin v. França, os valores seriam substancialmente diversos. A renda
per capta da França é de US$ 42.56032; acrescente-se cinqüenta por cento (US$ 21.280), pois
a vítima era adolescente quando da ação criminosa. Total apurado por ano de trabalho
análogo à escravidão: US$ 63.840 (59.032 EUR)33. Esse valor deveria ser multiplicado ao
31
Dados de 2013. Fonte: Banco Mundial.
Dados de 2013. Fonte: Banco Mundial.
33
No câmbio de 19 de abril de 2015.
32
96
menos por três, pois a togolesa Siliadin, em 1994, tinha 15 anos de idade quando chegou a
França. Imediatamente foi submetida a trabalho análogo à escravidão, e o deixou apenas em
1998. Portanto, o valor da indenização deveria suplantar os 177.000 EUR. No entanto, menos
de 15% desse valor foi arbitrado pela CEDH (26.209,69 EUR), sem considerar os descontos
incidentes da assistência judiciária. Numa palavra, o valor arbitrado pela CEDH é ultrajante.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na ausência de critérios objetivos para a determinação das indenizações, fixadas pela
Corte IDH e pela CEDH, a serem pagas pelos Estados às vítimas de escravidão, servidão, ou
trabalho análogo à escravidão defende-se a adoção da renda per capta como valor mínimo de
referência, sem prejuízo de eventual majoração nos valores das indenizações, em cinqüenta
por cento, adotando-se internacionalmente as agravantes previstas no artigo 149 do Código
Penal brasileiro.
Assim, o montante da indenização deveria, no mínimo, ser fixado como igual ao valor
da renda per capta do Estado-membro da Convenção Americana de Direitos Humanos e/ou
da Convenção de Direitos Humanos do Conselho da Europa, multiplicada pelo número de
anos trabalhados.
Nota-se, na análise do Caso Siliadin v. França, uma brutal discrepância entre o poder
econômico do Estado francês e o valor da indenização arbitrado pela CEDH. Nesse caso,
portanto, verifica-se que o trabalho análogo à escravidão vale muito pouco para a Europa.
Nos casos das indenizações arbitradas pela Corte IDH, de quantias eventualmente
superiores a US$ 10.000, os valores adicionais poderiam ser completados por um “Fundo
Interamericano de Reparação”, gerido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
financiado a partir da cobrança compulsória de uma contribuição anual dos países signatários
da Convenção Americana de Direitos Humanos, proporcional ao PIB dos seus Estadosmembros, semelhante ao sistema de quotas-partes do FMI. Assim como no sistema do FMI, a
liberação dos recursos seria condicionada ao cumprimento, pelos governos dos países com
maior déficit democrático, de metas fixadas em matéria de Direitos Humanos,
supervisionadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS
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97
pessoal]. Mensagem recebida por [email protected] em 17 abr. 2015.
BANCO MUNDIAL. GDP per capita (current US$). Disponível em: <
http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.CD>. Acesso em: 19 abr. 2015.
BRASIL. Justiça do Trabalho da 8ª. Região. 2ª Vara do Trabalho de Marabá/PA. Ação Civil
Pública, Processo nº 01780-2003-117-08-00-2. Juiz Titular: Jorge Antonio Ramos Vieira.
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BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. UNESCO. USP.
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_____. Tribunal Regional do Trabalho da 8ª. Região. Acórdão do TRT 1ª T/ RO 017802003-117-08-00-2. Desembargadora Relatora: Suzy Elizabeth Cavalcanti Koury. Voto de 21
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99
CIDADANIA CULTURAL: O DIREITO À CULTURA E A
LEGISLAÇÃO REFERENTE AOS DIREITOS AUTORAIS NA MÚSICA
CULTURAL CITIZENSHIP: CULTURAL RIGHTS AND THE
LEGISLATION RELATIVE TO COPYRIGHT IN MUSIC
Guilherme Jorge da Silva Gravatin
Graduando em Direito na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquisa Filho” – Unesp.
Bolsista FAPESP.
Marina Ribeiro da Silva
Mestranda em Direito na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquisa Filho” – Unesp.
Advogada.
SUMÁRIO: Introdução. 1. 1. Concepção de cidadania cultural: o entendimento da cultura
como direito. 2. A Constituição de 1988 e a educação em prol da cultura. 3. Direitos autorais
na música: as características legislativas nos âmbitos interno e externo. 3.1. O copyright, o
fair use e os direitos autorais na música. 3.2. A legislação autoral brasileira referente à
música. Conclusão. Referências.
RESUMO: Este trabalho objetiva compreender o processo de imbricação entre os direitos à
educação e à cultura, inseridos no âmbito dos direitos sociais, e a legislação referente aos direitos
autorais na música. Para tanto, analisamos a concepção de cidadania cultural, bem como a positivação
do direito à educação pela Constituição de 1988. Igualmente, buscamos explicitar os pontos de
concordância e de dissonância entre as legislações pátria e alienígena no que tange aos direitos
autorais na música. Finalmente, concluímos que, no Brasil, embora se evidencie uma aproximação da
legislação aos princípios constitucionais de respeito à cidadania e à educação, tem-se que as garantias
não refletem uma efetivação clara e delineada nem dos direitos dos artistas, nem dos direitos ao
acesso à cultura e a educação da população. A realidade, que impõe tamanha dicotomia, poderia ser
tratada, alternativamente, de forma a convergir os interesses de autores e da coletividade.
Palavras-chave: cidadania cultural; direitos culturais; direito à educação; direitos autorais na
música
ABSTRACT: This work aims to understand the process of interweaving among the rights to
education and culture, inserted in the scope of the social rights, and the legislation relative to
copyright in music. So much for that, we analize the concept of cultural citizenship, as well
as the positivization of the right of education by the Brazilian Constitution of 1988. Equally,
we seek to explicate the points of agreement and dissonance between the local and foreign
legislation with respect of the copyright in music. Finally, we conclude that, in Brazil,
although there is an approach between the legislation and the constitutional principles related
to citizenship and education, the guarantees do not reflect in a clear implementation both
concerned about the rights of the artists and the rights of cultural and educational access by
the population. The reality, that impose such a dichotomy, could be treated, alternatively, so
as to converge the interests of the author and the collectivity.
Keywords: cultural citizenship; cultural rights; right to education; copyright in music
100
INTRODUÇÃO
“Também os direitos do homem são, indubitavelmente, um fenômeno social”
(BOBBIO, 1992, p. 68). É a partir desta assertiva que Norberto Bobbio reconhece que dentre
os vários pontos de vista de onde podem ser examinados (filosófico, jurídico, econômico,
etc.), cabe igualmente à sociologia jurídica o papel de discorrer sobre a multiplicação, ou a
proliferação dos direitos do homem. Se em um primeiro momento estes direitos versavam
sobre as liberdades individuais – das chamadas liberdades negativas, de religião, de opinião,
de imprensa, dentre outras -, a partir da Segunda Guerra Mundial adveio a preocupação com
os direitos sociais, políticos e econômicos. Assim, ocorreu uma passagem da consideração do
indivíduo humano singularmente visto para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família,
as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto. (BOBBIO, 1992, p. 69).
A terceira etapa consiste na universalização dos direitos, isto é, na transposição da proteção
do sujeito do sistema interno para o sistema internacional. O autor acena, ainda, para um
quarto momento evolutivo, denominado especificação de direitos, sejam eles das mulheres,
das crianças, dos idosos, dos deficientes. (BOBBIO, 2000, p. 482).
De acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a doutrina dos direitos
fundamentais revelou uma grande capacidade de incorporar desafios: a primeira geração
enfrentou o problema do arbítrio governamental, com as liberdades públicas; a segunda, o
dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais; a terceira luta contra a
deterioração da qualidade de vida humana e outras mazelas, com os direitos da solidariedade.
(FERREIRA FILHO, 2010, p. 33). Interessa-nos, para atingir o tema delimitado, tecer mais
algumas breves considerações a respeito dos direitos sociais e econômicos. A este respeito, a
Constituição Federal de 1988 explicitou amplo rol de direitos sociais, proclamados principalmente,
mas não apenas, nos seus arts. 6º a 11, quais sejam: direitos sociais relativos ao trabalhador, à
seguridade, à educação e à cultura, à moradia, à família – criança, adolescente e idoso -, ao meio
ambiente. Tais direitos, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações
positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de
vida aos hipossuficientes. São, portanto, direitos que tendem a realizar a igualização de situações
sociais desiguais, conforme nos ensina José Afonso da Silva, e exigem do Poder Público uma
atuação positiva, uma forma atuante de Estado na implementação da igualdade social dos mais
fracos. (SILVA, 2011, p. 285). São, por esse exato motivo, conhecidos também como direitos a
101
prestação, ou direitos prestacionais. Por tratarem de direitos fundamentais, há de reconhecer a eles
aplicabilidade imediata (artigo 5º, §1º da CF), e no caso de omissão legislativa haverá meios de
buscar sua efetividade, como o remédio constitucional do mandado de injunção e a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão.
Este trabalho objetiva compreender o processo de imbricação entre os direitos à educação
e à cultura, inseridos no âmbito dos direitos sociais, e a legislação referente aos direitos autorais.
Para tanto, buscaremos explicitar a concepção de cidadania cultural e o entendimento da cultura
como direito. Além disso, traçaremos, ainda que brevemente, as características da positivação do
direito à educação pela Constituição de 1988. Em uma última etapa, explicitaremos no que se
parecem e no que diferem as legislações nacional e internacional referentes aos direitos autorais na
música, e como, no Brasil, tal arcabouço jurídico se relaciona com a implementação da cidadania
cultural e do direito à educação.
1. CONCEPÇÃO DE CIDADANIA CULTURAL: O ENTENDIMENTO DA
CULTURA COMO DIREITO
Segundo Natalia Morato Fernandes, é importante lembrar que há registros bastante
antigos da relação entre cultura e política – no entanto, as análises históricas indicam que tais
vinculações se intensificaram com o advento do capitalismo e da sociedade burguesa.
(FERNANDES, 2011, p. 174). No Ocidente, a ideia de cultura passou a integrar os textos
constitucionais a partir do momento em que as Constituições abriram um título especial para
a ordem econômica, social, educação e cultura. Isto se deu, inicialmente, com a Constituição
Mexicana de 1917, e posteriormente com a Constituição de Weimar de 1918, que exerceu
grande influência sobre as Cartas Políticas produzidas entre as duas Grandes Guerras
Mundiais. (SILVA, 2001, p. 39). Daí a inspiração para a norma contida no art. 48 da
Constituição de 193434, primeira, no Brasil, a dispor sobre a proteção das ciências, das artes,
das letras e da cultura em geral.
Estas Constituições da primeira metade do século XX faziam, contudo, menção à
cultura de maneira vaga e sintética, assegurando, na maioria das vezes, como forma de direito
individual, o direito à livre manifestação do pensamento, os direitos autorais e os direitos de
invenção. (FERNANDES, 2011, p. 175). As Constituições contemporâneas, com ênfase para
aquelas efetivadas a partir da década de 1970, período marcado por um processo crescente de
34
Desde então, o tema referente à cultura tem recebido tratamento constitucional em todas as Cartas brasileiras
que se seguiram, disposto topograficamente em título conjunto com a educação, no contexto da ordem social.
102
globalização política e econômica, por sua vez, alargaram os horizontes da proteção da
cultura. (SILVA, 2001, p. 40). Trouxeram, inclusive, a concepção de direitos culturais como
dimensão dos direitos fundamentais, cuja matriz está na Declaração dos Direitos Humanos de
1948:
Artigo 27.
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus
benefícios.
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
(ONU, 1948).
Em 1988, a Constituição fala pela primeira vez em direitos culturais. O art. 215
estabelece que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais. (BRASIL, 1988). Segundo Gohn (2008, p. 42-43 apud FERNANDES, 2011, p.
175):
O campo dos direitos culturais abrangem temas, questões e problemáticas
relacionadas à múltiplas dimensões do ser humano tais como gênero, raça,
etnia, religião, faixas etárias, nacionalidades. Abrange também o produto e a obra
produzida por esses seres humanos em suas relações sociais tais como as formas e
os meios de comunicação (em que a linguagem tem sentidos e significados
peculiares segundo as dimensões anteriormente citadas); expressões artísticas,
manifestações culturais e folclóricas locais, regionais e nacionais; práticas de
ensino e aprendizagem; esporte e lazer. O campo dos direitos culturais penetra
também no modo e estilo de vida cotidiana (trabalhar, comer, vestir, habitar,
cuidar da saúde do corpo e da mente; o relacionamento com amigos, colegas
de trabalho, parentes, vizinho e a comunidade próxima); assim como nos
valores, formas de pensar e agir, e concepções de mundo, que os seres humanos têm
elaborado ao longo dos séculos e milênios, como, por exemplo, concepção de
tempo e espaço, valores aspirados como universais como igualdade, liberdade,
fraternidade, solidariedade etc. Hábitos e comportamentos também relacionam-se
diretamente com os direitos culturais, pois o respeito à natureza, ao acervo e
patrimônio arquitetônico e artístico-cultural da humanidade, aos símbolos,
signos e códigos culturais de uma nação os culto e as crenças construídos
pelos antepassados, dentre outros, formas perpassadas por práticas de direitos e
deveres orientados por matrizes com enraizamento na cultura.
José Afonso da Silva demonstra que na ordenação constitucional da cultura se
encontram duas ordens de valores culturais, dois sistemas de significações: i) um, composto
pelas próprias normas jurídico-constitucionais, quais sejam, os direitos culturais, a garantia de
acesso à cultura, a liberdade de criação e difusão cultural, a igualdade de gozo nos bens
culturais, etc.; ii) outro, constituído pela própria matéria normatizada: a cultura, o patrimônio
103
cultural brasileiro, os diversos objetos culturais (formas de expressão, modos de criar, fazer e
viver; criações artísticas; obras, objetos, documentos, edificações, conjuntos urbanos, sítios,
monumentos de valor cultural). (SILVA, 2001, p. 35). No julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.950, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)
explicitou, sob a relatoria do ministro Eros Grau, este entendimento de que nossa
Constituição Federal privilegia a efetividade do direito à educação, à cultura e ao desporto –
grifo nosso:
É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um
sistema no qual joga um papel primordial à livre iniciativa. Essa circunstancia não
legitima, no entanto, a assertiva que o Estado só intervirá na economia em situações
excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição
enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela
sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a
sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos arts. 1º, 3º e 170. A livre
iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também
pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da „iniciativa
do Estado‟; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. Se
de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao
Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo
exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (arts. 23, V, 205, 208,
215 e 217, §3º, da Constituição). Na composição entre esses princípios e regras
há de ser preservado o interesse da coletividade, o interesse público primário.
O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer são meios de complementar
a formação dos estudantes. (STF. ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em
13/11/2005, Plenário, DJ de 02/06/2006)
A década de 1980 trouxe, para o Brasil, novos contornos para a forma de atuação
do Estado com relação à cultura, expressos em duas tendências, quais sejam: a de “cultura
de mercado” e a de cidadania “cultural”. Na primeira tendência, conforme nos explica
Fernandes, o Estado aparece como mediador das relações entre produtores culturais e
empresas ou pessoas físicas interessadas em financiar projetos culturais e serem
beneficiadas por abatimento em impostos. É neste contexto que se insere a discussão sobre
as Leis de incentivo à cultura. A proposta de “cidadania cultural”, por sua vez, concebe a
cultura como direito de todos os cidadãos e o Estado como agente da política cultural.
(FERNANDES, 2011, p. 178).
2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A EDUCAÇÃO EM PROL DA CULTURA
Quando da elaboração da Constituição Federal de 1988, buscou-se implementar, no
texto de nossa Carta Maior, conquistas populares e legislativas que fossem ao encontro dos
104
direitos fundamentais. O panorama referente à cidadania e à educação, no entanto, ainda
apresentava algumas incertezas. Mesmo com o advento da chamada Constituição Cidadã, a
educação brasileira, fragilizada por anos e anos de descaso público e pelo aumento do
poderio do ensino privado, se mostra um problema até os dias atuais – ainda que o final dos
anos 1980 e o começo dos anos 1990 tenham trazido conceitos de democracia há muito
reivindicados pela nação, a condição material do país, em se tratando de melhorias
educacionais, continuava atrasada. Sobre o momento pós-Constituição de 1988, afirma José
Murilo de Carvalho:
Os direitos políticos adquiriram amplitude nunca antes atingida. No entanto, a
estabilidade democrática não pode ainda ser considerada fora de perigo. A
democracia política não resolveu os problemas econômicos mais sérios, como a
desigualdade e o desemprego. Continuam os problemas da área social, sobretudo na
educação, nos serviços de saúde e saneamento, e houve agravamento da situação
dos direitos civis no que se refere à segurança individual. Finalmente, as rápidas
transformações da economia internacional contribuíram para pôr em xeque a
própria noção tradicional de direitos que nos guiou desde a independência.
(CARVALHO, 2013, p. 199).
A preocupação com a educação é um consenso internacional. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos, em seu conteúdo, versa sobre o respeito aos direitos e liberdades
sendo construído a partir da educação. A defasagem educacional em qualquer país,
considerando o Brasil e outras nações, pode influenciar na construção de uma sociedade onde
as diferenças não são respeitadas. É identificável, nessas sociedades, o desejo de que as
próximas gerações encontrem uma solução para as mazelas sociais, ao mesmo passo que a
educação, desde sua base, é negligenciada. As melhorias em educação que deveriam ser
encaradas como prioritárias – meios eficazes de transformação social, estão comumente
presentes em discursos políticos, mas são menosprezadas quando da implementação de
práticas e políticas públicas eficazes. Comentando o preambulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, Egidia Maria de Almeida Aiexe afirma:
A educação já aparecia, então, como o instrumento de realização dos direitos. No
mesmo sentido, a grande maioria, se não a unanimidade dos diagnósticos a respeito
dos problemas cruciais vividos pelas sociedades atuais, como desigualdade e
violência, apontam a educação como a resposta, a solução, o horizonte a ser trilhado
em busca da superação desse quadro. Embora não se possa superestimar a
capacidade dos processos de educação como instrumentos de transformação social,
nos planos social e político, seja na construção de um cultura de paz em face da
violência crescente, ou na eliminação da prática de crimes de lesa-humanidade,
também não há como desconhecer a sua contribuição. (PEREIRA, 2008, p. 523).
105
A Constituição Federal, em seu art. 6º, reconhece a educação como um direito
fundamental de natureza social, ultrapassando, em muito, a consideração de interesses
meramente individuais. De acordo com Clarice Seixas Duarte, embora a educação, para
aquele que a ela se submete, represente uma forma de inserção no mundo da cultura e mesmo
um bem individual, para a sociedade que a concretiza, ela se caracteriza como um bem
comum, já que representa a busca pela continuidade de um modo de vida que,
deliberadamente, se escolhe preservar. (DUARTE, 2007, p. 697). A autora continua: se a
proteção de um bem jurídico como a educação envolve a consideração de interesses supraindividuais, deve-se reconhecer que a sua titularidade não recai apenas sobre indivíduos
singularmente considerados, mas abrange até mesmo os interesses de grupos de pessoas
indeterminadas ou de difícil determinação, como as futuras gerações, que têm direito ao
acesso às tradições públicas, preservadas e transmitidas pela ação educacional. Trata-se, pois,
de um direito que, mesmo podendo ser exercido individualmente, não pode ser compreendido
em abstração de sua dimensão coletiva e até mesmo difusa. (DUARTE, 2007, p. 698).
É necessário que, para que o passo significativo em direção à melhoria da educação
aconteça, as normas de cada sociedade incentivem a cultura e a educação. O Pronac instituído
pela Lei n. 8.313, de 23 de dezembro de 1991 - conhecida como Lei Rouanet - é um exemplo
da mobilização legislativa em prol da cultura. Quando leis patrimoniais acabam por limitar o
acesso à cultura dentro ou fora das salas de aula, inicia-se o seguinte processo de
questionamento: até que ponto as liberdades individuais e os direitos patrimoniais seriam um
empecilho para a concretização plena do acesso à educação e à cultura? Como exemplo dessa
celeuma é possível citar os direitos autorais, que entram no cenário de discussões culturais
onde o acesso à música para fins educacionais é protegido pela legislação brasileira em
detrimento dos interesses patrimoniais do autor, artista ou interprete.
No que tange à legislação pátria, é sabido que existe a diferenciação entre direitos
patrimoniais e morais do autor; quando se fala em limitação dos direitos autorais para fins
educacionais, não se deve rotular essa limitação como se ela influenciasse nos direitos morais
do autor. É evidente que o processo de criação musical é importantíssimo dentro do universo
cultural. A riqueza de símbolos que é colocada na música, assim como sua capacidade de
causar as mais diferentes emoções no ouvinte, de maneira incontestável consagram o artista
como um contribuinte essencial da própria cultura. O fato é que os direitos patrimoniais são
limitados para que a coletividade se beneficie de maneira educacional com a produção
artística.
106
3. DIREITOS
AUTORAIS
NA
MÚSICA:
AS
CARACTERÍSTICAS
LEGISLATIVAS NOS ÂMBITOS INTERNO E EXTERNO
É importante ressaltar que os direitos autorais na música, tais quais os conhecemos no
Brasil, são distintos daqueles que encontramos em outros lugares do mundo, principalmente
no que diz respeito ao ponto de vista legislativo. Pelo próprio caráter cidadão da Constituição
de 88, é possível levantar as questões concernentes à cidadania dentro dos direitos autorais
brasileiros - a discussão, porém, aparece de maneira diferente em outras partes do globo.
Existe no ordenamento jurídico brasileiro o objetivo de proteção do autor, interprete e
executante, assim como o do produto artístico. Fora do Brasil existe a concepção de
copyright, o chamado direito de cópia, que tem um caráter comercial e patrimonialista. A
discussão cultural e de proteção do artista não tem um cunho axiológico constitucional tão
forte como acontece em terras brasileiras. Procuramos, no texto que segue, explicitar pontos
de concordância e de dissonância entre as legislações pátria e alienígena, no que tange aos
direitos autorais na música e suas relações com a cidadania cultural e o direito à educação.
3.1.
O copyright, o fair use e os direitos autorais na música
Em alguns lugares da Europa e nos Estados Unidos existe a utilização da
nomenclatura copyright. Também é importante destacar que a origem desse direito, que foi
na Inglaterra, tinha um caráter de proteção das obras escritas pelos escritores ingleses que,
muitas vezes, tinham seu trabalho plagiado. (ASCENSÃO, 1997. p. 4). Um direito de cópia
para que, com o advento da imprensa, os exemplares fossem disseminados. A influência
inglesa ultrapassou as fronteiras dos países e hoje está presente até mesmo em tratados
internacionais, como por exemplo o TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of
Intellectual Property Rights), que demonstra o interesse da Organização Mundial do
Comércio (OMC), em padronizar uma proteção mínima dos direitos autorais nos países
signatários. (OMC, 2015).
Quando o assunto é a música, a visão comercial representada pelo TRIPS e pela
legislação tem um reflexo em relação à proteção da mídia em formato físico de CD‟s e
também da mídia digital que facilmente pode ser alvo de pirataria na internet. Uma legião de
usuários da internet pratica contrafação todos os dias fazendo o download de músicas sem
107
que necessariamente sejam pagas as contraprestações aos artistas. Mais do que uma discussão
sobre quem deveria pagar quem, a polêmica é delineada por uma discussão que envolve
também relações comercias. Estão presentes nessas negociações não só os artistas e os
ouvintes, como também empresas multinacionais da área fonográfica.
Os interesses internacionais pendem para a valorização das questões patrimoniais que
estão em serviço do capital investidor, dentro da indústria fonográfica – e esses investimentos
não têm interesse principal na questão educacional. Entram em cena nesses países os
dispositivos que flexibilizam legislação de proteção do conteúdo autoral a fim de beneficiar
algumas utilizações educacionais, ou mesmo o acesso de alguns usuários individuais por
meio da internet. É possível encontrar tais tendências em países da Europa e nos Estados
Unidos da América.
Nos EUA, a doutrina do fair use está presente não só no cotidiano do americano,
como também em sua legislação. Segundo a Seção 107 da lei de copyright, para os propósitos
de criticismo, comentários, reportagens de notícias e para ensinar, incluindo cópias múltiplas
para utilização dentro da sala de aula, as reproduções são autorizadas pela lei. (EUA, 2015).
A dimensão do copyright, começando pelo nome, traz uma significativa carga comercial, que
não pode ser confundida com a tentativa de proteção do autor que existe no Brasil. Mesmo
dentro de um contexto no qual a proteção econômica é do produto final da criação autoral e
não do criador, a questão educacional emerge refletindo a importância que o sistema de
educação americano atribui à música, sendo esta uma matéria disponível desde a iniciação da
criança na escola até o highschool, ou Ensino Médio.
Na Europa existe uma grande discussão em relação ao direito autoral, chamado de
copyright, que transpõe fronteiras. Existem divergências de regulamentação entre os países
que nos últimos tempos tendem a adotar certa uniformização. O conteúdo autoral,
disponibilizado por algumas empresas que são pagas pela população como Netflix e BBC
iPlayer, variam nos diferentes países da União Europeia, o que acaba por gerar tensão entre a
população que clama por mudanças na legislação visando maior compartilhamento de
conteúdo. (EURACTIV, 2015). Do outro lado, existe o grande peso da Indústria Cultural e
também dos artistas que almejam a defesa da sua criação e de seus interesses patrimoniais.
Dentro da nova tendência européia de flexibilização do copyright, alguns países já
tomaram medidas convergentes que acabam por conciliar os interesses da população e
também dos artistas. O site euractive.com disponibilizou em seu site oficial no dia 13 de
janeiro de 2015 um artigo intitulado “Artists fight Internet users over Europe’s copyright
108
future”, que discute a luta entre artistas e usuários da internet em relação ao copyright
europeu. O artigo relata que a pressão para a reforma vem de diferentes formas e membros
dos Estados. Aponta o texto que, no ano passado, o Reino Unido passou uma lei que
legalizava a cópia privada e individual sem qualquer compensação adicional para o artista.
A Espanha também substituiu cobranças de copyright por um fundo de compensação
governamental, assim como a Finlândia. A membro do comitê de pesquisa de indústria e
energia do Parlamento Europeu, Helenna Virkkunen afirmou sobre o sistema de
compensação: “[…] mais justo com os consumidores e melhor para os artistas porque eles
conseguirão mais compensação com este modo[…]”.(EURACTIV, 2015). As presunções são
de sucesso para um sistema que tenta aliar os interesses de ambos os segmentos, tanto
consumidores, quanto artistas.
3.2.
A legislação autoral brasileira referente à música
Já em relação à legislação autoral brasileira, como dito anteriormente, a proteção do
autor, do intérprete, do artista em geral, é um fator que pode, partindo de uma análise
axiológica, contribuir para a valorização do artista como disseminador de cultura. Como bem
sabido, a legislação dos direitos autorais nacional compreende a existência dos direitos
morais e dos direitos patrimoniais do autor. Segundo Eduardo Salles Pimenta:
Os direitos morais são aqueles que, dentro do regime do direito de autor, se
ocupa em salvaguardar a boa fama dos autores e compreendem a faculdade
do autor para exigir, em todo caso, que seu nome seja mencionado quando
da utilização da obra, e impedir as alterações ou supressões, ou quaisquer
modificações feitas por outrem Prerrogativas que são inalienáveis.
E como direitos patrimoniais: o direito que refere a exploração econômica
da criação intelectual, da qual se beneficia, com os frutos (royalties), o
autor, ou seus herdeiros e ou os titulares (adquirentes de direitos autorais
patrimoniais). (PIMENTA, 2007, p.73).
No que diz respeito à garantia dos direitos autorais, é possível distinguir uma
complexidade na sua estrutura que coloca direitos inalienáveis e alienáveis em posições
muito próximas. O conteúdo cultural presente na dimensão moral dos direitos autorais muitas
vezes entra em choque com o aspecto patrimonial. Isso acontece quando outros agentes
passam a participar das relações que estão presentes a tutela dos direitos autorais. Sejam os
usuários individuais, seja a coletividade, esses agentes acabam sujeitos aos conflitos entre
esses dois aspectos. A legislação brasileira que coloca como objetivo central a proteção do
109
artista e incentivo à cultura, se torna, muitas vezes, ineficaz, quando confrontada com a
realidade da contrafação ou com o olhar estritamente comercial. Seja pela adoção da visão
completamente mercadológica, ou seja pelo alto nível de contrafação que existe no país,
percebemos a atenuação da preocupação principal do legislador brasileiro, quando pensou em
proteger o autor. Uma das características da música brasileira consolidada no Brasil e no
exterior é a diversidade e riqueza de signos, que muitas vezes não estão presentes em outros
países. Razão pela qual essa produção deve ser preservada e incentivada.
A preservação da indústria musical e a garantia dos direitos autorais representam um
fortalecimento da produção cultural do país. É necessário que os brasileiros se identifiquem
como tais. Aproveitando que o país tem potencial para produção de música de alta qualidade,
esse ramo artístico não pode ser esquecido ou sucateado por uma tendência social de
negligencia à lei e de culto ao desrespeito. A exaltação das particularidades culturais de um
povo pode ser entendida como um investimento na solidificação do país como nação. Essa
solidificação do caráter nacional propicia condições da formação de um país politicamente
poderoso, que valoriza sua própria cultura - desde suas manifestações mais simples e
espontâneas, até as mais complexas, que acabam por delinear as características comuns dos
cidadãos.
Dentro da seara do Direito, existem barreiras que dificultam a positivação de normas
que sejam eficazes no controle da propriedade sobre aquilo que é criado com a
música. Na realidade, não apenas em relação à música, uma vez que a normatização de toda
a produção cultural está fortemente vinculada à interdiciplinariedade das ciências humanas.
Neste sentido, discorre Sérgio Said Staut Júnior:
“A normatização jurídica da produção cultural em sociedade é uma questão
interdisciplinar, que compreende dimensões filosóficas, históricas, sociológicas,
econômicas, políticas entre outras [...]”. (STAUT JÚNIOR, 2006, p. 277).
A legislação brasileira, assim, traz algumas limitações aos direitos autorais e elas
aparecem no capítulo IV da Lei 9.610/98. O art. 46, inciso VI desta Lei dispõe que não
constitui ofensa aos direitos autorais:
Artigo 46, VI.
[..] a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso
familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não
havendo em qualquer caso intuito de lucro. (BRASIL, 1998).
110
Este capítulo da lei, expressa uma certa convergência com a própria doutrina
americana do fair use, colocando as representação educacionais como exemplo de exceções
no que diz respeito à ofensa a esses direitos.
CONCLUSÃO
Quando o assunto de direitos autorais é explorado no Brasil, é possível evidenciar
uma aproximação dos princípios constitucionais, da legislação que prevê também a proteção
do artista, do próprio acesso à cultura; porém as garantias não refletem uma efetivação clara e
delineada tanto dos direitos dos artistas quanto dos direitos ao acesso à cultura e a educação
da coletividade. Claro que a dicotomia existente na matéria autoral se estende dentro do
âmbito internacional e nacional. Essa realidade apresenta um cenário em que os direitos dos
artistas são confrontados com os direitos da coletividade, como se a efetivação de um
estivesse vinculada ao detrimento do outro.
A alternativa que se apresenta mais plausível seria aquela em que o conflito de
interesses fosse tratado como convergência de interesses. O ideal é que os direitos
patrimoniais e morais dos artistas, assim como o acesso à cultura e à cidadania e educação
fossem convergidos para um entendimento que contemplasse a todos. É extremamente
necessário o acesso à cultura da mesma forma que é necessária a proteção de quem a
dissemina. Neste sentido algumas medidas seriam bem vindas, como a diminuição do tempo
de proteção após a morte do compositor ou cantor; políticas públicas que exaltassem o
material disponível no domínio público; a construção de acervos culturais que contassem a
história da música brasileira que está diretamente ligada à história da nação; o incentivo do
ensino musical nas escolas desde o ensino de base até o ensino médio.
A existência de um mercado musical mais saudável é de extrema relevância, realidade
em que os cidadãos sejam conscientes de que o dinheiro investido em musica e cultura é um
investimento no futuro do próprio país. É de máxima importância que a cultura da população
não seja a de contrafação, mas que essa conduta não seja praticada apenas visando a lucros
mais satisfatórios às gravadoras, mas sim um indício de que a cultura está sendo exaltada. É
relevante também que haja não só um ganho financeiro, mas que o autor esteja cada vez mais
próximo do processo de criação, que este seja incentivado, aumentado ainda mais a produção
de cultura no país.
111
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113
MIGRAÇÃO E TRABALHO: IMPACTOS DO PROCESSO MIGRATÓRIO NA
VIVÊNCIA COTIDIANA DA MULHER NORDESTINA
MIGRATION AND WORK : IMPACTS OF THE MIGRATION PROCESS IN
EVERYDAY EXPERIENCE OF NORTHEAST WOMAN
Regina Maria de Souza
Graduação em Ciências Econômicas, Universidade Federal de Uberlândia, Especialização em
Psicopedagogia, Faculdade de Educação/UFU, Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós
Graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP-Franca,
docente do curso de Direito da Fundação Municipal de Educação e Cultura de Santa Fé do
Sul/FUNEC
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A conformação do capitalismo brasileiro sustentado em uma
industrialização retardatária; 2.1 A inserção da mulher migrante nordestina na microrregião
do Triângulo Mineiro: características de sua inserção; 3. Considerações finais; Referências.
RESUMO: Este trabalho apresenta como proposta central analisar as modificações
verificadas na vivência cotidiana de mulheres nordestinas de migração permanente, que se
deslocaram durante a década de 1990 para os municípios de Iturama, São Francisco de Sales,
Itapagipe, Carneirinho e Limeira do Oeste-MG, juntamente com seus esposos atraídos pela
oferta de trabalho na cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Para tal, foram entrevistadas dez
mulheres residentes nos municípios mencionados que fazem parte da Microrregião de Frutal,
localizada na Mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Utilizou-se o método de
História Oral para compreensão das singularidades das histórias de vida, das experiências,
bem como a forma como essas mulheres interpretam sua experiência cotidiana, sobretudo
quando são induzidas a reproduzir, após a migração permanente, uma rotina de atividades
que não lhes pertence de fato e com as quais usualmente não se identificam. A fim de
compreender os fatores de expulsão que acarretam o processo migratório do Nordeste para o
Centro-Sul, utilizou-se pesquisa bibliográfica para compreensão tanto do processo de
constituição, avanços e retrocessos da economia brasileira quanto da modalidade de ocupação
e desenvolvimento das relações sócio-históricas e de produção capitalista no âmbito dos
municípios selecionados da Microrregião de Frutal. As modificações na estrutura econômica
nacional verificadas ao longo da segunda metade do século XX refletiram-se no setor
agrícola, sendo que a partir da década de 1990, ocorrem alterações como a
desregulamentação da cadeia produtiva da cana de açúcar, que deslocou as empresas do setor
para o Centro Sul, merecendo destaque neste trabalho a proliferação do número de usinas de
açúcar e álcool no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, intensificando o deslocamento tanto
de trabalhadores sazonais quanto daqueles que migraram permanentemente com suas
famílias.
Palavras-chave: migração. cotidiano. trabalho. identidade.
RESUMEN: Este trabajo presenta como propuesta analisar los cambios vefificados en la
vivencia cotidiana de mujeres nordestinas de migración permanente que se desplazaran
durante la década de 1990 para los municipios de Iturama, São Francisco de Sales, Itapagipe,
Carneirinho y Limeira do Oeste-MG, acompañadas de sus maridos seducidos por las ofertas
114
de empleo en la cadena productiva de caña de azucar. Para eso fueron entrevistadas diez
mujeres residentes en los municipios nombrados los cuales hacen parte de la Microrregión de
Frutal, situado en la Mesorregión del Triangulo Mineiro y Alto Paranaiba. Fué utilizado el
método de Historia Oral, para comprensión de las singularidades de las historias de vida, de
las experiencias, asi como la manera que estas mujeres interpretan su experiencia cotidiana,
sobretodo cuando son inducidas a reproducir , después de la migración permanente, una
rutina de actividades que no les pertenezca de hecho y con las cuales usualmente no
identificanse. A fin de comprender los factores de expulsión que traen al proceso migratório
del Nordeste para el Centro Sur, se utilizó una investigación bibliográfica para comprensión
tanto del proceso de constituición, avance y retroceso de la economia brasileña como de la
modalidad de la ocupación y desarrollo de las relaciones sicio-históricas y de la producción
capitalista en ámbito de los municipios elegidos de la Microrregión de Frutal. Los cambios
en la estructura económica nacional, verificadas a lo largo de la segunda mitad del siglo XX,
se reflejaran en el sector agrícola, siendo que a partir de la década de 1990, ocurrieron
cambios como la desregulamentación de la cadena productiva de caña de azucar, que
desplazó las empresas del sector para el Centro Sur, con gran destaque en ese trabajo la
proliferación del numero de usinas de azucar y alcohol en el TringuloMineiro y Alto
Paranaíba, intensificando el desplazamiento tanto de los trabajadores sazonales como de
aquellos que migraron permanentemente con sus famílias.
Palabras-llave: migración. cotidiano. trabajo. identidad.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho fundamenta-se nos relatos de mulheres migrantes nordestinas
estabelecidas na Microrregião de Frutal, que compõe mesorregião denominada Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba-MG. A escolha do grupo em questão parte do entendimento que se
tem nesse espaço de vida de um grupo de migrantes que empreenderam esforços, desde o
início dos anos 1990 para estabelecer novos vínculos e espaços de vida cotidiana nas cidades
selecionadas. Constituem-se em um grupo de trabalhadores de migração permanente, que
abandonaram as relações socioeconômicas e culturais vivenciadas em suas respectivas
regiões de origem geográfica em nome do trabalho. Entende-se que a demanda por postos de
trabalho em outra região do país é resultado de um processo histórico, em que as diversas
políticas econômicas adotadas, contemplaram, ao longo de décadas, o processo de
industrialização concentrado no eixo Centro-Sul, privilegiando políticas de estabilização
econômicas pautadas em taxas de juros elevadas, âncoras monetárias, políticas restritivas,
concessão de crédito fácil aos grandes negócios em detrimento da necessidade de fixação das
populações de média e baixa renda em suas regiões de origem geográfica.
115
Tendo em vista a necessidade de delimitar o período final analisado neste capítulo
estabeleceu-se a primeira década deste século como referência, tendo em vista considerar-se
este período como suficiente para empreender as análises necessárias para a compreensão da
temática
2. A CONFORMAÇÃO DO CAPITALISMO BRASILEIRO SUSTENTADO EM
UMA INDUSTRIALIZAÇÃO RETARDATÁRIA
Empreendeu-se, nesse trabalho, a tarefa de analisar a conformação do capitalismo
brasileiro sustentado em uma industrialização retardatária, dependente da tecnologia e do
investimento externo, concentrada, excludente, cuja dinâmica vai se perpetuar ao longo dos
planos econômicos adotados entre fins do século passado e início deste século. Há que se
considerar que o processo de consolidação do capitalismo brasileiro, sustentou-se em um
desenvolvimento industrial que além de retardatário, subordinou-se à acumulação
internacional de capital. Essa situação predominou até a crise do café e a Grande Depressão
da década de 1930, quando a acumulação de capital industrial tornou-se mais independente
do capital proveniente do café.
Suzigan (1986) entende que o crescimento da produção nas indústrias de bens de
consumo ocorre graças às políticas monetária e fiscal expansionistas introduzidas na década
de 1930, além da redução da capacidade de importar, que contribuem para um processo de
industrialização com a finalidade de substituição de importações de bens intermediários e de
bens de capital demandados internamente.
Apesar das modificações, a economia nacional permaneceu dependente da importação
de máquinas e insumos utilizados pelo setor industrial, sendo que, só na década de 1950, as
indústrias pesadas são introduzidas no país.
Há que se considerar que à época em que em países avançados, ao final do século
XIX, introduzia-se a Segunda Revolução Industrial, o processo industrial brasileiro
fundamentava-se em um processo tecnológico pouco complexo, incorporando as inovações
da Segunda Revolução Industrial somente a partir dos anos 1930, com uma a estrutura
produtiva pouco diversificada, um número reduzido de empresas, um mercado de trabalho
pouco integrado, preponderância de incorporação de mão de obra no setor agrícola e baixa
concentrações de assalariados nas cidades de maior importância econômica.
116
De fato, o processo de industrialização por substituição de importações defronta-se
com a questão do tamanho do mercado que implicava em escalas baixas de produção. sendo
que a tecnologia importada demandava escalas de produção elevadas, ou seja, a importação
de tecnologia implicava em grandes investimentos de capital, mas gerava baixo emprego de
mão de obra.
A partir da intervenção estatal, nos anos 1950, quando da introdução de uma indústria
pesada de bens de produção, bem como do deslocamento para o Brasil de empresas
estrangeiras, verifica-se a organização de forças produtivas efetivamente capitalistas que
garantiram o predomínio do capital industrial no processo de acumulação.
Ao longo do período do presidente Juscelino Kubitschek, ocorreu uma série de
modificações responsáveis pela diversificação da matriz industrial brasileira, entretanto
intensificam-se as contradições, já que os gastos do Plano de Metas foram financiados por
emissão monetária e financiamento externo, que geraram, respectivamente, expansão
inflacionária e expansão da dívida externa.(GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO
JÚNIOR, 2002).
A fim de promover o controle do processo inflacionário e estimular a industrialização,
é lançado o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), no governo de Castello
Branco(1964-1966), que inicia o Regime Militar no Brasil. O PAEG criou as bases para a
constituição do Milagre Econômico brasileiro de modo que, entre 1968 e 1973, ocorre
aceleração do desenvolvimento econômico.
A trajetória de crescimento verificada ao longo do Milagre Econômico é interrompida
pelos aumentos do preço do petróleo no mercado externo, verificando-se intensificação dos
gastos públicos e da dívida externa em função da dependência do mercado interno em relação
ao petróleo importado. Dessa forma, o Brasil ingressa nos anos 1980 com uma dívida externa
elevada, com taxas de juros altas no contexto externo e uma política altamente restritiva por
parte dos países emprestadores.
No que se refere à política econômica nacional, cabe destacar a adoção de taxas de
juros elevadas e redução do capital disponível para empréstimos e financiamentos, o que
apresentou como consequência a retração da criação de novos postos de trabalho, bem como
levou à expansão do contingente de demissões em distintos setores da economia nacional. No
que se refere à questão salarial, esta foi estruturada de forma a proporcionar uma redução do
salário real, o que também impactou na redução do consumo das famílias.
117
É essa a conjuntura econômica em que se inicia o processo de redemocratização do
Brasil, na chamada Nova República, por meio da posse do presidente José Sarney que vai
optar por uma política econômica sustentada, fundamentalmente, por medidas heterodoxas
que não logram o resultado esperado, sendo que, entre os anos 1980 e 1990, intensifica-se a
instabilidade das variáveis macroeconômicas brasileiras, graças à adoção de planos
econômicos que não alcançaram sucesso. (GREMAUD; VASCONCELLOS; TONETO
JÚNIOR, 2002).
O presidente José Sarney foi sucedido pelo presidente Fernando Collor de Mello, que
foi alvo de um processo de impeachment, de forma que toma posse o vice-presidente Itamar
Franco que adota uma política econômica que abandonou o congelamento de preços ou
confisco de liquidez, medidas adotadas ao longo dos períodos anteriores. A partir de 1993,
estruturam-se as transformações da política econômica brasileira com a posse de Fernando
Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda e, em 1994, na de presidente da república para
dois mandatos consecutivos.
Abandonam-se as medidas heterodoxas de estabilização micro e macroeconômicas
que não lograram sucesso e começa a ser introduzido, no final de 1993, o Plano Real.
Destacam-se a reforma monetária, a renegociação da dívida externa, a elevação das taxas de
juros, a instituição da nova moeda, bem como o processo de desestatização.
Ao longo dos anos 1990, ocorre redução dos investimentos, sobretudo de longo prazo, de
modo que, ao final década de 1990, o modelo adotado apresentava problemas, já que apesar
dos avanços importantes no controle do processo inflacionário, tem-se a volatilidade do
crescimento, retração do PIB, entre 1994 e 1998, crise fiscal, baixo desenvolvimento do
mercado de crédito e permanência do viés de curto prazo dos ativos financeiros. Os reajustes
do salário mínimo no período foram baixos, menos de 5% nominais em contraposição a uma
projeção de 20% de inflação, o que deteriorou a capacidade de consumo da classe
trabalhadora.
O presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva sucedeu o presidente Fernando Henrique
Cardoso e governou o Brasil entre 2003-2006 e 2007-2010, períodos de governo em que se
verifica o aumento expressivo do gasto público, sendo que a meta fiscal, na prática, deixou de
ser efetivamente perseguida. Quanto à relação entre o Banco Central e o Ministério da
Fazenda, verificam-se divergências no que se refere à condução da política monetária, bem
como expansão significativa da participação do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) no financiamento das empresas nacionais. Mas de forma geral,
118
pode-se afirmar que a política econômica do primeiro Governo Lula muito se aproximou à de
seu antecessor.
Diante da necessidade de estabilização econômica, o governo adotou uma série de
medidas de cortes de gastos e redução da participação direta do Estado em vários setores, que
incluíram, desde o final dos anos 1980, a cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Dessa forma,
regiões produtoras tradicionais como o Nordeste perderam força ao longo do processo de
desconcentração da cadeia produtiva da cana-de-açúcar e emergiram novos centros regionais,
como ocorreu com a Mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, impactada em suas
atividades produtivas pela expansão da referida cadeia produtiva e que acaba por incorporar
mão de obra sazonal e permanente egressa de distintas cidades do Nordeste brasileiro.
2.1 A inserção da mulher migrante nordestina na microrregião do Triângulo
Mineiro: características de sua inserção
Para compreensão da forma como esse processo ocorre e toma forma nas cidades
selecionadas da Microrregião de Frutal, destaca-se que o processo de configuração das
relações de produção, ocupação e expansão da Mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto
Paranaíba, tem início em 1722, quando os sertanistas atravessam a região em busca das
Minas de Goiás. Com a intensificação do movimento migratório e econômico para os sertões,
ocorre o povoamento do território e a criação de uma economia de abastecimento, sustentada
na produção para o autoconsumo e na comercialização dos excedentes.
O cenário local modifica-se quando, entre o final do século XVIII e início do XIX,
famílias de migrantes oriundos da região central e sul da capitania de Minas Gerais, expulsos
pelo crescimento demográfico e esgotamento dos solos das comarcas de Ouro Preto e Rio das
Mortes, estabeleceram-se como fazendeiros, sitiantes e agregados em áreas localizadas entre
os rios Paranaíba e Grande.
O papel do Triângulo Mineiro nas relações econômicas nacionais cresce com a
instalação da estrada de ferro Mogiana, a Proclamação da República em 1889 e a formação
de cidades como Uberaba em 1884. A região passa a constituir-se em espaço para a formação
da identidade de grupos de indivíduos que alí levaram adiante sua vida cotidiana, bem como
seus vínculos sociais e atividades profissionais.
Instalaram-se proprietários de terra e
comerciantes, os arraiais se emanciparam transformando-se em redes de municípios e a
região assume o papel de entreposto comercial, responsável por integrar a economia de São
119
Paulo, Goiás e Mato Grosso. A região assume a condição de periferia do processo de
desenvolvimento paulista, produzindo produtos complementares à economia paulista,
pautados na produção de vestuário e alimentos.
Tal dinâmica vai se perpetuar até cerca de 1960, quando os cerrados começam a ser
beneficiados por políticas públicas que direcionam créditos para investimentos em
infraestrutura e para a modificação do padrão agrícola, destacando-se um significativo
processo de modificação da estrutura técnica da agricultura.
Dessa forma, quando ocorre nos anos 1990 a desregulamentação da cadeia produtiva
da cana-de-açúcar, os usineiros estabelecidos no Nordeste brasileiro buscam, a partir da
autorregulação, novas possibilidades de ingresso, sendo que a região do Triângulo Mineiro
oferece as condições ideais para a abertura de unidades industriais para a instalação de usinas
de açúcar e álcool. De fato, mostram que atividades tradicionais das cidades selecionadas
para a pesquisa: Iturama, Itapagipe, Carneirinho, Limeira do Oeste e São Francisco, são
substituídas e até mesmo extintas em função da emergência e consolidação das atividades
ligadas à cadeia produtiva da cana-de-açúcar.
Juntamente com as referidas usinas desloca-se um grande número de trabalhadores
que se dividem entre os que migram sazonalmente, retornando ao final da safra para suas
famílias e aqueles que migram juntamente com suas esposas e filhos, a fim de constituir nas
cidades da nova região seu espaço de vida cotidiana. Os migrantes do sexo masculino, em sua
maioria, encontraram emprego com facilidade ao longo dos anos 1990, tendo em vista a
grande expansão do setor e a necessidade de mão de obra em grande quantidade, entretanto,
as mulheres nordestinas, em sua maioria com baixa escolarização, com histórico de ocupação
em atividades rurais ou domésticas, encontram grande dificuldade para inserir-se no mercado
de trabalho local.
As grandes correntes migratórias do passado, mesmo as internas, em muitos países,
inclusive na Europa, se baseavam na suposição de que os sacrifícios e privações do
momento seriam compensados pela ascensão social e pela integração no futuro,
mesmo que fosse numa geração seguinte. (MARTINS, 2008, p. 148).
Sendo assim, da condição de trabalhadoras ou chefes de famílias ativas, responsáveis
também por prover parte do sustento da família, convertem-se em mulheres responsáveis
pelas atividades domésticas, alijadas do mercado de trabalho, das relações de produção e
confinadas ao espaço da casa e do bairro.
O percurso histórico da mulher inserida no processo de desenvolvimento
socioeconômico e cultura da humanidade deixa claro que foi submetida a condutas e
120
julgamentos distintos, tanto na perspectiva social, quanto na familiar e profissional, pautadas
na dinâmica de diferentes tempos históricos. O que Touraine (2011) destacou ao mencionar
que se definir como mulher demanda um esforço em colocar no centro da vida certo
relacionamento para consigo mesma e construir uma imagem de si como mulher.
Fraser (2002) amplia a discussão e ressalta que a compreensão de gênero filia-se por
um lado ao conceito de classe e por outro à questão do status. A discussão de gênero inclui a
dimensão da distribuição e do reconhecimento social, sendo que a perspectiva distributiva
está relacionada à própria estrutura econômica da sociedade, destacando-se como um
princípio fundante para a estruturação da divisão do trabalho, capaz de oferecer sustentação à
divisão elementar entre o trabalho produtivo pago e o trabalho doméstico reprodutivo não
pago, que é habitualmente entendido como responsabilidade primária das mulheres. No que
se refere à discussão do reconhecimento social, cabe considerar que o conceito de gênero
modifica padrões culturais de interpretação e avaliação anteriormente difundidos e que são
fundamentais na ordem de status posta anteriormente, e que vão se modificando, no contexto
histórico, enquanto a discussão se aprofunda.
Quanto à inserção da mulher no mercado de trabalho brasileiro, destaca-se que este
processo é recente sob a perspectiva histórica e que, inseridas na sociedade capitalista, as
mulheres são induzidas a aderir à lógica de otimização de resultados e eficiência nos distintos
momentos do processo de produção e comercialização de bens e serviços em distintos setores
da atividade produtiva, sendo que as mulheres pouco adaptadas a este processo continuaram
vinculadas ao trabalho doméstico ou empregadas em atividades de baixa qualificação.
Os resultados das entrevistas livres realizadas com 10 (dez) mulheres nordestinas que
migraram, a partir dos anos 1990, para as cidades de Iturama, Itapagipe, Limeira do Oeste,
Carneirinho e São Francisco de Sales, juntamente com seus esposos e filhos em busca de
trabalho nas atividades diretamente relacionadas à cadeia produtiva da cana-de-açúcar,
mostra que para as referidas mulheres, os diversos mecanismos de superexploração
intensificam-se após o processo migratório, expondo a mulher trabalhadora a uma situação da
qual não pode se livrar.
Há que se considerar ainda que a imagem que as mulheres entrevistadas têm de si
mesmas está condicionada à imagem que os outros fazem delas, sendo que as entrevistas
demonstram que não conseguem perceber a importância que possuem para as relações de
consumo, para a sociedade e para o mercado de trabalho das cidades em que estão
estabelecidas.
121
São preponderantes os sentimentos de desvalia, pessimismo e ausência de perspectiva
em relação ao futuro. Em sua maioria mostram-se pouco propensas a modificar suas
estruturas comportamentais ou estão desprovidas de recursos cognitivos para tal.
O segundo relato, apresentado na sequência, foi concedido por Lúcia, de 47 anos,
oriunda de Major Isidoro (AL), também residente em Iturama no momento presente:
Nasci na roça, o pai tinha um pedaço de terra, que foi do pai dele. Primeira coisa
que lembro é de eu e dos oito irmãoajudano na roça. Cedinho a gente ia com pai e a
mãe mais tarde levava comida. Comida poca e a gente era muitos.... Casar lá em
casa era coisa rápida pras mulher. Era o jeito de sair de casa e tenta otra vida, sabe?
Eu mesma queria sair da roça, mas quando casei pela primeira vez foi com quinze
ano e com Francisco, que o pai dele tinha mais terra e um irmão só. A gente morou
e plantou roça pra come e vender o que sobrava. Tive meu primeiro menino um ano
depois de casar. Marido era bom e a gente até se dava bem, mas tinha muita
dificuldade na roça, tinha que trabalhar muito. Num dia no sol quente demais e com
calor, o Francisco passou mal e como num tinha ajuda de médico, nada, como tem
aqui, ele morreu, a gente num ficou sabendo nem do que. Fiquei com o menino
pequeno. Num quis fica muito tem na roça do sogro e fui pra casa da minha tia na
cidade com o menino, porque ela me arranjou emprego numa casa de família. Não
tinha carteira não, mas ganhava pra comer e vestir. Fiquei três anos assim, desse
jeito. Na quermesse conheci o João, que era dois anos mais novo que eu e trêismêis
depois nóis foi morar junto numa casa, perto da tia mesmo. João gostava do meu
menino, mas não gostava que eu trabaiava não. Mas com precisava continuei. O tio
do João e a família tava morando aqui fazia tempo, cortano cana e chamou ele para
cortar cana na safra, se fosse agora não dava mais, quase num tem emprego. O João
veio primeiro e ficou na casa do tio da primeira vez, mas num quis vorta sozinho no
outro ano. Larguei o emprego e vim com ele e o meu menino. Eu tive mais três
menina. Hoje só num tá casada a mais nova, que gosta de estuda, faz faculdade de
Enfermagem, única da minha família inteira que chegou na faculdade. Tenho
orgulho. Eu não estudei muito não, no tempo que morei na cidade no Norte estudei
um pouco, sei lê e escrevê. Trabalha pra fora nunca mais trabalhei, pouco estudo,
muito filho e tamén quando mudei num tinha nem pra gente com estudo. Trabalha é
coisa boa demais, mais pros homem é mais fácil, num tem fiio, num tem casa pra
cuidá. Otra coisa pra eles! Eu queria tê meu dinheiro sim, pra pode compra as coisas
sem pedi pro marido, mas eu não tive preparação pra trabaia no comércio. Quando
cheguei aqui tinha aula de noite e eu fui estuda na escola aqui do bairro, achei que
sabia um pouco, mas num sabia nadinha e aprendi ler e escrever melhor.
Lúcia começou a trabalhar com 7 (anos) no roçado do pai onde colhia milho, plantava
e cuidava do rebanho, quando era necessário. Aos quinze anos, já era uma veterana no mundo
do trabalho, alimentava-se mal e nutria o sonho de se casar para minimizar a responsabilidade
sobre os irmãos mais novos que lhe pesavamnos ombros. Ao se casar, ainda muito jovem, sua
vida melhora de alguma forma, há mais comida na mesa e um pouco menos de trabalho, mas
o falecimento do primeiro esposo a obriga a enfrentar as obrigações relativas à criação de um
filho pequeno. Decidiu mudar-se para a cidade, pois não queria viver subjugada pelos sogros.
Não consegue atingir seu objetivo fundamental que era ter um emprego com carteira
assinada, mas consegue um emprego de empregada doméstica e, nas escassas horas vagas,
começa a estudar e aprende as primeiras letras, transmutando-se de analfabeta à analfabeta
122
funcional. Por mais difícil que fosse, gostava do trabalho e da independência que este lhe
trazia. Quando conheceu João, este, típico homem nordestino, não queria que a mulher
trabalhasse, mas se rende à sua própria falta de trabalho em sua região de origem geográfica,
até que surgiu a possibilidade de vir para o corte de cana no Sudeste. A mudança de cidade
representa para ela e para a família a obtenção de maior renda e possibilidade de acesso a
bens de consumo. Alega ainda que os serviços de saúde, o acesso à escola e a possibilidade,
portanto, do que denominou de “uma vida melhor” são maior e sem Iturama. De fato, os
dados relativos aos indicadores apresentados no capítulo 2 apontam boas condições de
inserção para o município de residência atual.
Lúcia considera a educação um aspecto de grande relevância para a vida de um
indivíduo e deixa em destaque, em sua fala, um sentimento de desvalia ao mencionar os
poucos anos de estudo aos quais teve acesso. Existem revistas na residência que em sua
maioria são de temáticas relacionadas a programas de televisão e alguns poucos romances
populares que, segundo ela, contam história de amores felizes. Ao mencionar as suas
experiências com a aprendizagem escolar, Lúcia tenta corrigir a fala, apresentando maior
cuidado com o uso das palavras. Mas, é traída pelo hábito e segue seu relato de maneira
bastante informal:
Foi bom, hoje eu leio revista, vejo as coisas na televisão e entendo mais, só que eu
parei, o marido tinha muito ciúmes, num gostava que eu ia pra escola, então voltei
pra casa. Nunca tive emprego aqui não, nem de carteira, nem sem. Lá no Norte
também num era de carteira, mas sinto saudade de trabalha. Queria estudar mais
também. Eu acho que o povo aqui não gosta da gente do Norte. É uma impricância
com nosso jeito de falar. Os meninos sofria demais na escola, não queria ir mais, fiz
ir até quando pude segurar, mas cresce e a gente não dá mais conta. Só a mais nova,
essa não, sempre gostou, até tem bolsa agora, conseguiu Fies, muito boa aluna, vai
se dar bem. Se eu quero voltar pro Norte? Ahhh, num quero não, sofri demais, mas
quero trazer mãe pra viver aqui. Por causa do postinho e dos filho e dos netostamen,
esses nem pensa em vorta pra lá.
O maior orgulho da vida de Lúcia e da família como um todo é representado pela filha
mais nova que concluiu ensino médio e ingressou em curso superior. Segundo Lúcia,
passaram por dificuldades para pagar a mensalidade no primeiro ano e, posteriormente, a
filha fez a opção pelo Fundo de Financiamento Estudantil. É bastante característico o
sentimento de realização pessoal que projeta na filha, que realiza o sonho nunca alcançado
por ela mesma. Não demonstra desejo de retornar para sua cidade de origem já que considera
a vida mais fácil de ser vivida em Iturama e também porque a primeira lhe traz lembranças
que considera ruins, de um tempo bastante difícil, que envolve toda a sua infância e parte da
vida adulta.
123
Seligmann-Silva (2011) entende que no cotidiano das mulheres o significado do
trabalho assume uma dimensão entrelaçada às demais, sendo que em várias ocasiões é quase
impossível separá-lo das questões familiares e afetivas. Na trajetória de Lúcia, não é
diferente, já que foi empurrada para o trabalho ainda criança para garantia da sobrevivência
da família, posteriormente para cuidar de si mesma e do filho, na condição de viúva, fugindo
da tutela da família do marido falecido. Há ainda o momento em que assume o trabalho como
uma forma de complementação da renda do marido. Há que se considerar que existem
profundas diferenças entre as situações vivenciadas por indivíduos do sexo feminino e
masculino no âmbito do trabalho, sendo que as mulheres estão em franca desvantagem. Lúcia
se identifica, quando questionada, com uma mulher em desvantagem no mundo do trabalho.
Apesar de as condições de habitação, bem como o acesso a bens de consumo das
famílias de que fazem parte essas mulheres migrantes, não serem diferentes das condições da
maior parte da população local, sua origem geográfica e estilo de vida distintos conferem-lhes
uma posição inferior no estrato social.
Além disso, para as trabalhadoras do campo, as dificuldades acentuam-se, com o
processo de intensa capitalização da produção rural, que aumentou a adoção de processos de
mecanização que reduzem a ocupação feminina como mão de obra temporária às mais jovens
e produtivas. Nesse contexto, manifesta-se entre elas uma clara consciência de que o processo
de escolarização e a formação profissional são determinantes para a inserção de seus filhos no
mercado de trabalho e que o nível de renda da família impossibilita o acesso a esses recursos
quando as famílias são muito numerosas.
Quanto as modalidades de vínculos estabelecidos entre a mulher trabalhadora
migrante e os integrantes dos grupos sociais locais, estes acabam por pautar-se na posse de
bens de consumo e em relações sociais precárias. As migrantes entrevistadas relatam que não
possuem liberdade de escolher os valores socioeconômicos e culturais que vivenciam,
tampouco, possuem consciência de condição e, fundamentalmente, de sua função no circuito
econômico local, como trabalhadoras e como consumidoras. De fato, interiorizam o
estereótipo de que a mulher migrante nordestina não possui capacidade intelectual de adaptarse à nova realidade. Em sua maioria, acostumadas a atividades agrícolas, apresentam baixa
escolarização, possuem histórias de vida pessoal que incluem sofrimento e privações, mas, ao
migrar, não vivenciam o respeito à sua individualidade, capacidade de trabalho e construção
de uma nova realidade cotidiana convivendo com a transitoriedade e como uma rotina.
124
O trabalho apresenta-se como uma necessidade entranhada e não satisfeita, a mudança
nas rotinas, nos usos e costumes; a rejeição que os estabelecidos apresentam em relação à sua
cadência vocal, as tornam retraídas e incapazes de ocupar os mesmos papéis que ocupavam
em suas regiões de origem geográfica. A sua própria locomoção fica restrita ao bairro e a
frequências situacionais a alguns estabelecimentos comerciais no centro da cidade,
condicionadas às datas comemorativas.
A frustração intensifica-se quando os filhos abandonam a escola, já que entendem que
sua condição de analfabetos ou com baixa escolarização impõe barreiras ao seu ingresso no
mercado de trabalho.
[...] o processo de “captura” da subjetividade do trabalho como inovação sócio
metabólica tende a dilacerar (e estressar) não apenas a dimensão física da
corporalidade viva da força de trabalho, mas sua dimensão psíquica e espiritual (que
se manifesta por sintomas psicossomáticos). (ALVES, 2011, p. 114).
Ao contrário, quando os filhos alcançam o ensino superior, ou, por meio de um curso
profissionalizante conseguem emprego considerado por elas como de status superior, sentem
compensadas, em parte, por toda sua frustração com o trabalho.
Os vínculos de amizade e os momentos de lazer também são estabelecidos no próprio
bairro, já que a maior parte ou totalidade da família está distante. Elas frequentam as casas de
famílias amigas, algumas vão a lanchonetes com os familiares e à igreja mais próxima.
Após anos ou décadas de migração, sentem-se invasoras em suas próprias casas, em
seu bairro e em sua cidade atual, o que constitui uma dinâmica de sofrimento e frustração,
conferindo uma falta de sentido à atual vivência cotidiana da mulher migrante.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das informações apresentadas, é possível concluir que a dominação
psicossocial dos trabalhadores migrantes nordestinos pelos grupos estabelecidos nos
municípios selecionados da Microrregião de Frutal sustenta-se em valores, crenças e na
apropriação da renda gerada por eles.
É nesse contexto que se estabelece a relação da mulher migrante nordestina com a
sociedade e o mercado de trabalho local, nos municípios selecionados da Microrregião de
Frutal.
Cabe considerar que os sujeitos são constituídos, em parte, a partir de suas interações
e interlocuções com o meio social, ao longo dos anos, vinculando as suas habilidades e os
seus desejos aos dos grupos sociais com os quais convivem durante a existência,
125
estabelecendo relações de cooperação e também de poder. Os indivíduos oriundos de outros
contextos sociais acabam por conviver, tanto em seu espaço de trabalho quanto em situações
sociais, com indivíduos que nem sempre os entendem como iguais e, em alguns casos,
adotam atitudes preconceituosas.
De forma efetiva, o processo da inserção de novos grupos sociais nas sociedades
estabelecidas é antigo no Brasil. A transformação do regime de trabalho escravo para o
trabalho livre, por exemplo, foi capaz de afiançar o crescimento do sistema produtivo
brasileiro, entretanto, condicionou impactos na estrutura produtiva básica do sistema, que era
a grande propriedade agrária, já que a adaptação do trabalhador livre ao regime da grande
lavoura foi difícil.
No que se refere aos empregadores, estes não possuíam mais à sua disposição o
escravo sujeito à exploração, originando-se uma situação, a instabilidade da mão de obra, já
que o trabalhador livre não estava preso a seu empregador e, portanto, obrigado a sofrer as
diversas variantes de exploração do seu trabalho.
Dessa forma, em um país, que no período, possuía baixa densidade demográfica,a
lógica do empregador era a de incutir a instalação de um sistema de relações de trabalho que
levasse o trabalhador livre a considerar-se preso ao empregador, o que ocorreu, por exemplo,
mediante a retenção por dívidas, já que os salários eram reduzidos e os preços dos gêneros
necessários ao seu sustento bastante elevados.
No contexto interno brasileiro, ao longo do século passado, o padrão industrializante
norte-americano foi incorporado no que diz respeito ao paradigma tecnológico e também no
que se refere à organização do trabalho fordista-taylorista. Dessa forma, o processo de
trabalho consolidou-se sustentado na produção em massa, na linha de montagem, no controle
dos tempos e na produção em série, fragmentando funções e gerando a separação entre
elaboração e execução no processo de trabalho, de modo a favorecer a consolidação da figura
do operário-massa e do trabalhador coletivo fabril.
Assim, intensifica-se a demanda por mão de obra barata favorecendo a migração de
trabalhadores entre as regiões brasileiras, sobretudo do Norte/Nordeste para o Centro/Sul, que
é estimulada pela necessidade de ocupação profissional e pela necessidade de fugir de
condições socioeconômicas e culturais precárias, que são reflexo do processo de evolução do
capitalismo no Brasil que demanda, no período, mão de obra barata.
No que se refere ao processo de modernização da agricultura, que ocorre na década de
1960, por meio da consolidação dos Complexos Agroindustriais, esta promove grande
126
expulsão de trabalhadores do meio rural, que se direcionaram para as áreas urbanas,
expandindo a quantidade de pessoas disponíveis para o trabalho.
De fato, ocorre um período de dinamismo da economia brasileira, mas incapaz de
empregar o total de trabalhadores, além de pagar baixos salários aos que eram empregados.
Destaque-se ainda, que o processo de crescimento da economia nacional é concentrado no
Centro-Sul.
Cabe considerar que a partir dos anos 1960 as unidades familiares de pequenos
produtores agrícolas tornam-se em assalariados que se direcionam para a execução de fases
determinadas do processo de produção agroindustrial e que devem obedecer ao ritmo imposto
pelas máquinas que manejam, tornando o trabalho, em vários momentos, intenso e exaustivo.
Já a década de 1980 se caracterizará pelo esgotamento do dinamismo, com a elevação
do desemprego e a queda do poder aquisitivo da população por conta da inflação desenfreada
e defasagem de salários, aumento do trabalho informal e desequilíbrio macroeconômico, que
agravam as condições de vida do trabalhador.
Incluídas nesse processo histórico estão as mulheres brasileiras. E cabe considerar que
o ser mulher no Brasil e no mundo significa a definição de uma identidade que implica na
construção de condutas, padrões de julgamento quanto à inserção em uma classe social, uma
nacionalidade, um determinado grupo étnico e a lógica de pertencimento a um determinado
grupo político ou a uma ideologia.
As mulheres entrevistadas, embora executassem trabalho produtivo, quando
perguntadas, diziam que não trabalhavam, considerando seu trabalho como extensão do
trabalho doméstico. Contudo, parte deste trabalho era vendido, compondo a renda mensal da
família. (MURARO, 1983)
Essas mulheres migrantes não reconhecem sua identidade na região de destino,
considerando-se pouco ativas e sem nenhuma importância no processo de configuração da
dinâmica local. Atribuíram grande valor aos usos, costumes e tradições de suas cidades de
origem, sendo que os vínculos com a religiosidade, festas religiosas e hábitos alimentares
diversos também foram ressaltados.
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129
A ATUAÇÃO INTERPRETATIVA E CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO
EM FACE DA ABSTRAÇÃO DOS TEXTOS DEFINIDORES DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS
THE INTERPRETATIVE AND CONCRETE ACTION OF THE JUDICIARY IN
FACE OF THE ABSTRACTION OF THE DEFINING TEXTS OF FUNDAMENTAL
RIGHTS
Renato Gobetti de Souza
Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo
Univem e Pós-graduado em Direito do Estado pela
Anhanguera-Uniderp. Professor em Cursos
Preparatórios para Concursos Públicos.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Leitura constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais;
2 Processo interpretativo de concretização; Conclusão; Referências.
RESUMO: Os textos constitucionais se revelam como instrumentos de interação necessária
entre a ciência jurídica e a não jurídica e, portanto, hodiernamente, além de objeto de
disciplina jurídica passam a ser o estatuto do político e da ordem econômica e social. Assim,
as constituições, inclusive a brasileira de 1988, são permeadas por um grande número de
opções, deliberações e escolhas de valores políticos, sendo que a adoção dessas concepções,
por óbvio, não encerram a contenda política sobre o acordo firmado pela sociedade no
período de elaboração da Constituição. Em verdade, transfere para a esfera de aplicação da
Constituição a disputa sobre as opções político-ideológicas adotadas, passando a jurisdição a
intermediar o inexorável encontro entre direito e política. Nesse sentido, emergem riscos, mas
também possibilidades. O principal risco é a imposição discricionária das maiorias eventuais
dos tribunais, mas a possibilidade é a abertura para um novo horizonte de discussão
filosófica, política e ética de efetivação dos textos constitucionais definidores de direitos
fundamentais. E nesse aprofundamento das discussões, a atuação do Poder Judiciário e os
mecanismos de legitimação das decisões judiciais devem ser encarados como verdadeiros
contributos para a afastar a falta de efetividade dos direitos fundamentais, em especial dos
direitos sociais, problema que assola o direito contemporâneo.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Abstração. Processo Interpretativo.
ABSTRACT: The constitutional texts are found to be necessary interaction between the legal
instruments of science and not legal and therefore, in our times, and legal discipline object
become the status of political and economic and social order. Thus , constitutions, including
Brazil 1988, are permeated by a large number of options, resolutions and political value
choices, and the adoption of these conceptions, obviously, do not dismiss the political strife
on the agreement signed by the company during the period of drafting the constitution. In
fact, transferred to the sphere of application of the Constitution the dispute over the political
and ideological options adopted, from the jurisdiction broker the inevitable encounter
between law and politics. In this sense, emerging risks, but also opportunities. The main risk
is the discretionary imposition of any majority of the courts, but the possibility is the opening
130
to a new horizon of philosophical discussion, policy and ethics, especially of execution of the
constitutional texts defining Fundamentals Rights. And this deepening of discussions, the
judicial power and the legitimation mechanisms of judicial decisions should be seen as true
contributions to avoid the lack of effectiveness of fundamental rights, especially social rights,
a problem that plagues the contemporary law.
Keywords: Fundamental rights. Abstraction. Interpretive process.
INTRODUÇÃO
O estudo da abstração dos dispositivos constitucionais definidores de direitos
fundamentais deve ser perspectivado na compreensão da vigência de um novo modelo de
Estado, responsável por atuar nos setores econômicos e sociais da sociedade, tornando-se
mais participativo e decisivo na implementação de direitos. Um Estado direcionado à
concreta realização social, fundamentalmente pela prática dos direitos fundamentais.
Inserido, também, dentro do Constitucionalismo contemporâneo que apresenta
Constituições responsáveis não somente pela garantia do existente, mas por instituir um
programa de ação ou linha de direção para o futuro, fazendo com que o Estado fique
vinculado a atuar permanentemente na realização das diretrizes constitucionais, sob pena de
incúria dos poderes constituídos. (CANOTILHO, 1994).
Em verdade, o constitucionalismo contemporâneo, forjado após a Segunda Guerra
Mundial, reconhece a supremacia material e axiológica da Constituição, cujo conteúdo,
dotado de força normativa e expansiva, passou a condicionar a validade e a compreensão de
todo o Direito e a estabelecer deveres de atuação para os órgãos de direção política. Aclara
Ferrajoli (2003), a validade das leis, que no paradigma do Estado Legislativo de Direito
estava dissociada da justiça, se dissocia agora também da validez por autoridade, sendo
possível que uma lei formalmente válida seja substancialmente inválida pelo contraste de seu
significado com os valores prestigiados pela Constituição. A Constituição não apenas
disciplina a forma de produção legislativa como também impõe proibições e obrigações de
conteúdo, correlativas umas aos direitos de liberdade e outras aos direitos sociais.
Barroso (2005) apresenta os marcos desse novo constitucionalismo, identificando
que o primeiro, o histórico, traz a formação do Estado constitucional de direito; o segundo
marco, o filosófico, é o da centralidade dos direitos fundamentais e da reaproximação entre
Direito e ética; por fim, o marco teórico inclui a força normativa da Constituição, a expansão
da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação
constitucional.
131
Assim, no atual cenário não é admissível que direitos fundamentais consagrados em
textos constitucionais careçam de efetivação ou sejam implementados insatisfatoriamente, em
face da omissão dos órgãos do poder público, aos quais cumpria adotar as medidas fáticas e
normativas necessárias. Os direitos fundamentais consagrados em uma Constituição
democrática não podem ser negligenciados, sob o risco da existência do próprio estado de
direito.
Como salienta Rocha (1996) essa espécie de direitos se apresenta como
fundamentais em duplo sentido, pois de um lado são essenciais aos homens em sua
convivência com outros homens e de outro lado, representam os pilares ético-políticojurídicos do Estado, fornecendo as bases sobre as quais as ações dos órgãos estatais se
desenvolvem, em cujos limites se legitimam (determinantes de limites negativos) e para a
concretização dos quais se determinam comportamentos positivos do Estado (determinantes
positivos).
A letargia do poder público em não concretizar a Constituição, sobretudo os direitos
fundamentais, inclui, obviamente, o Judiciário que ainda se encontra restrito a métodos
formais da teoria jurídica tradicional positivista e contrário a transformações operadas por
uma nova teoria jurídico-constitucional.
Aliás, como observa Bonavides (1997) onde quer que os direitos fundamentais
padeçam de lesão, a Sociedade se acha enferma.
Dessa forma, a análise da abstração dos textos definidores de direitos fundamentais
deve ser contextualizada e lida a partir de uma teoria do direito não aferrada às resistências
inerentes à concepção liberal de Estado e dotada de novos subsídios teórico-dogmáticos.
A aurora se perfaz com a derrota do jusnaturalismo e do positivismo no processo
histórico e político, emergindo um conjunto aberto de reflexões acerca do Direito, sua função
social e seu processo de interpretação. O positivismo, enquanto teoria jurídica, observa
Bustamante (2012), passa a não ser a alternativa viável para orientar a interpretação e
aplicação do direito, tendo em vista que não leva em consideração o aspecto ideal do Direito,
as ideias de correção, justiça, razoabilidade e defende um descolamento entre Direito e
Moral. Em contraposição, exsurge o pós-positivismo, como uma concepção teórica de
interação entre direito e moral e entre direito e política, na qual se incluem a definição das
relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica
constitucional e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da
dignidade da pessoa humana.
132
1. LEITURA CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais assumem uma posição de destaque nas cartas
constitucionais, seja pela vivência jurídico-constitucional, como dantes demonstrado nos
marcos do Constitucionalismo contemporâneo, seja, também, pelo plano textual, tendo em
vista a quantidade de artigos tratando da matéria, como a qualidade desses artigos, no sentido
de sujeição a um regime jurídico reforçado.
Não obstante esse contexto, os direitos fundamentais, sobretudo os direitos sociais,
são objeto de forte testilha na doutrina e na jurisprudência.
Por isso para adequada compreensão dos direitos fundamentais é necessário refletir
sobre tópicos da teoria em uma perspectiva dogmático-jurídica, mas não necessariamente
formal positivista.
Nessa empreitada, Sarlet (2009) propõe ao analisar o conteúdo dos direitos
fundamentais uma desconstrução no tocante a classificação dos direitos fundamentais,
ponderando que existem direitos fundamentais de defesa e direitos fundamentais encarados
como direitos à prestações. Classificação essa desenvolvida por Alexy e que se refere aos
direitos de defesa como relacionados à liberdade, à propriedade, à vida, ou seja, tratam da
autonomia individual e encerram a exigência de uma postura de não agir do Estado, e aos
direitos de prestação como direitos que exigem um agir do Estado, seja em sentido amplo em
uma prestação jurídica e normativa, quando o Estado atua em face de terceiros, seja em
sentido estrito com uma prestação material, onde o Estado garante prestações materiais,
fornecendo bens da vida e serviços essenciais.
Mas, explica Sarlet (2009) que sem prejuízo dessa classificação, a desconstrução
proposta é no sentido de que uma espécie de direito fundamental pode envolver direitos
prestacionais (positivos), mas também direitos defensivos (negativos). Portanto, os direitos
positivos possuem, também, uma dimensão negativa, ou seja, ao mesmo tempo que exigem
uma atuação do Estado, essa atuação ingerencial não pode se revelar abusiva, bem como os
direitos negativos que classicamente pugnam por uma não intervenção do Estado, tem sua
dimensão positiva, reclamando uma atuação prévia no fornecimento de todo o aparato estatal
para proteger um direito individual.
Portanto, exemplica Sarlet (2009) que no rol dos direitos sociais na Constituição
133
Federal de 1988, classicamente enquadrado como direito prestacional, existem direitos de
caráter negativo, como a liberdade de associação sindical. Assim, para uma definição dos
direitos sociais constitucionalmente adequada faz-se necessário perceber que o qualificativo
social não está exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na promoção
social, como instrumento de compensação de desigualdades fáticas manifestas e o modo de
assegurar um mínimo de condições para uma vida digna, mas, também,
asseguram e
protegem um espaço de liberdade ou proteção de determinados bens jurídicos para
determinados segmentos, em virtude de sua vulnerabilidade em face do poder estatal,
econômico e social, como por exemplo no caso dos direitos dos trabalhadores.
Compreender adequadamente o conteúdo dos direitos fundamentais é vital, em
tempos hodiernos, para que seja afastada objeções para a implementação de certos direitos,
como é o caso dos direitos sociais. Parte do pensamento jurídico defende que a falta de
efetividade dos direitos fundamentais sociais se dá pela necessidade de atuação do Estado, o
que implica um alto custo, mas esquecem ou escondem que para garantia dos direitos
individuais existe a necessidade por parte do Estado de dispender vultuosos recursos na
organização do aparelho estatal garantista.
O que se pretende marcar é que não se nega a indeterminação dos direitos sociais,
mas que essa indeterminação também aflinge ou já aflingiu os direitos individuais e que a
ideia de custos dos direitos sociais, também atinge os direitos individuais. Hauriou (2003)
observa que, com referência no século XVIII, o problema da indeterminação também povoou
os direitos individuais, na medida em que eles deveriam ser organizados, ou seja, deveriam
ser estabelecidas as condições e os limites nos quais eles pudessem ser exercidos e que isso
seria determinado por uma lei orgânica.
Em verdade, é suscitada o problema da indeterminação dos textos e do custo dos
direitos em maior intensidade com relação aos direitos sociais, tendo em vista que o
constitucionalismo confunde-se, no plano político, com o liberalismo e ambos caminham
conjuntamente no século XIX e XX. As Constituições emergem sob forte influência do
liberalismo político e econômico e portanto concebem todo um instrumental jurídico para
tutela e garantia dos direitos individuais, com mecanismos de efetivação e garantia dessa
índole de direito.
Barroso (2000, p. 106), em lúcuda crítica, afirma que:
É puramente ideológica, e não científica, a resistência que ainda hoje se opõe à
efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais. Também os direitos
134
políticos e individuais enfrentaram, como se assinalou, a reação conservadora, até
sua final consolidação.
Outro elemento da teoria dos direitos fundamentais que ajuda a refletir sobre a
abstração dos textos e sua correlação com a falta de efetividade dos direitos fundamentais é o
da fundamentalidade.
A discussão a respeito da fundamentalidade emerge da constatação de que parte da
doutrina brasileira é refratária à natureza material dos direitos fundamentais, entendendo que
os direitos fundamentais são apenas aqueles incorporados ao texto de uma Constituição
escrita, mesmo diante da inserção do parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal de
1988.
Não obstante o respeito a essa parte do pensamento jurídico, é necessário marcar
posição para dissidiar e assegurar que os direitos fundamentais não se resumem àqueles
tipificados na Constituição, máxime quando ela própria contém cláusula de abertura,
admitindo que outros direitos, além daqueles que prevê, possam existir, seja em razão de
decorrerem do regime e dos princípios que ela adota, seja em razão de decorrerem dos
tratados internacionais que o Brasil é signatário.
Reconhece-se, portanto, a dupla fundamentalidade, ou seja, tanto no sentido formal
como no sentido material. Aclaro que por fundamentalidade formal se pode entender a
constitucionalização de direitos, podendo inferir que esses textos que definem os direitos
fundamentais são considerados normas fundamentais, que se situam no ápice do ordenamento
jurídico e por essa razão, vinculam imediatamente os poderes públicos. Por fundamentalidade
material se admite a presença de direitos que não estão inscritos nas cartas constitucionais,
mas são admitidos por consubstanciarem a dignidade da pessoa humana, por serem
indispensáveis para a constituição e manutenção das estruturas básicas do Estado e da
Sociedade, sobretudo em relação à posição nestes ocupada pela pessoa.
Cunha Júnior (2008, p. 255) sobre o aspecto da fundamentalidade conclui que:
[...] como consequência direta do reconhecimento da dignidade da pessoa humana
como fundamento do Estado brasileiro (CF, art. 1º, III) – a Constituição Federal
adota cláusula aberta, ou de não tipicidade dos direitos fundamentais, para admitir a
existência de outros direitos fundamentais, para além dos nela catalogados, sejam os
subentendidos das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais
expressos, sejam os decorrentes do regime e dos princípios que adota
(reconhecimento de direitos fundamentais implícitos e decorrentes, que vem desde a
Constituição de 1891), sejam, finalmente, os previstos em tratados internacionais
em que o Estado brasileiro seja parte (reconhecimento de direitos fundamentais
instituídos por tratados, que foi inovação da Constituição de 1988), desde que
ostentem a fundamentalidade material e sejam, consequentemente, identificados, no
135
geral, como explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana. Em face
disso, havemos de sustentar que, no Brasil, assim como ocorre nos EUA, em
Portugal e outros Estados, os direitos fundamentais podem ostentar sentido formal e
sentido material, merecendo, ambos, idêntico tratamento jurídico-constitucional.
Por essa razão, os direitos fundamentais, encontrem-se ou não positivados na
Constituição escrita, são protegidos por ela; não podem ser abolidos e vinculam
imediatamente os poderes públicos.
Feita a leitura constitucionalmente adequada dos aspectos do conteúdo e da
fundamentalidade resta, ainda, superar os problemas e as resistências opostos na aplicação do
regime jurídico pleno ou reforçado aos direitos fundamentais.
Para Alexy (2008) os direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto
relevantes que o seu reconhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente
à disposição das maiorias parlamentares. Para ter uma posição privilegiada devem estar
blindados contra supressão ou enfraquecimento arbitrário por parte dos órgãos estatais, além
de ter sua normatividade garantida.
A Constitução Federal de 1988 atenta a esse modelo inseriu os direitos fundamentais
no seleto rol das “cláusulas pétreas”, na condição de limites materiais ao poder de reforma
constitucional (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV) e afirmou que as normas definidoras de
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Mas aqui, também, se encontra resistência de parte do pensamento jurídico que
sustenta que esse regime reforçado não se aplicaria a todos os direitos fundamentais,
afastando, por óbvio, desse regime os direitos sociais.
Como contraponto, no que toca à cláusula pétrea, a interpretação mais alinhada ao
Estado Democrático e Social de Direito e aos valores trazidos pela Constituição é no sentido
de que todas as espécies de direitos fundamentais se inserem no artigo 60, parágrafo 4º, inciso
IV e não somente os direitos e garantias individuais, pois a interpretação literal levaria a
exclusão não somente dos direitos sociais, como também dos de nacionalidade, dos políticos,
exceto o direito de sufrágio e até mesmo dos coletivos. E, mais, não é traçado pela
Constituição uma genérica e expressa diferença entre os direitos de liberdade e os direitos
sociais, nem muito menos uma prevalência de um sobre o outro, além de, como já assentado
na compreensão do conteúdo dos direitos fundamentais, nem todos os direitos sociais são
conceituados como direitos à prestações materiais estatais, pois possuem direitos dessa classe
que se assemelha aos direitos de defesa.
Não se pode olvidar que a cláusula pétrea preserva a identidade da Constituição,
assim suprimir alguns direitos fundamentais, como os sociais, representa uma agressão ao
136
princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, ao cerne da nossa Constituição.
No que toca à aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais, outra
resistência relacionada ao regime reforçado, alguns aprofundamentos são exigidos.
Torna-se necessário adiantar que não obstante previsão constitucional expressa sobre
a eficácia das normas de direitos fundamentais, o assunto encontra entraves, pois existem
consideráveis divergências teóricas e até mesmo ideológicas que não permitem dar um
tratamento uniforme para a matéria, conforme será detalhado.
É sabido que as normas definidoras de direitos fundamentais também apresentam
variação de carga eficacial, como as normas constitucionais em geral, pois são direitos que
desempenham diversas funções e suas formas de positivação são diferentes.
Obviamente, isso não desvaloriza esse princípio e não justifica a posição de que os
direitos fundamentais somente são aplicados imediatamente se as normas que os definem são
completas na sua hipótese e no seu dispositivo, conforme defende o professor Ferreira Filho
(1998).
Dessa posição se infere, na verdade, a inutilidade do artigo 5º, §1º, da Constituição,
tendo em vista a afirmação de que esse princípio não tem o efeito de emprestar aos textos
carentes de concretização sua imediata aplicação.
É visível a incompatibilização dessa posição com o novo constitucionalismo, pois o
escopo desse revolucionário artigo é evitar o esvaziamento dos direitos fundamentais,
assegurando a plena produção de seus efeitos e sua concretização.
Contrapondo-se a essa posição temos a linha doutrinária em defesa da imediata e
direta aplicação das normas de direitos fundamentais, ainda que de caráter programático, no
sentido de que os direitos subjetivos nelas consagrados podem ser imediatamente realizados,
sem necessidade de intermédio do legislador.
Tal linha doutrinária é difundida, entre nós, por Eros Roberto Grau, Luís Roberto
Barroso e Dirley da Cunha Júnior.
Segundo Grau (1997), a norma em comento obriga os Poderes Públicos,
especialmente o Judiciário, a dar exeqüibilidade imediata das normas definidoras de direitos e
garantias, independentemente da produção de qualquer ato legislativo ou administrativo. O
Poder Judiciário está autorizado a suprir a ausência de norma legislativa ou medida
administrativa que impeçam a exequibilidade imediata de um direito fundamental.
Complementa, ainda, o autor que essa norma autoriza o Judiciário a “inovar o ordenamento
jurídico”, a “produzir direito”.
137
Barroso (2000) destaca a importância da inserção deste princípio no texto
constitucional e afirma que a competência para aplicar as normas constitucionais é do Poder
Judiciário quando descumpridas por seus destinatários. Complementa, ainda, dizendo que a
não existência de norma integradora não pode frustrar a aplicação de preceito constitucional
pelo magistrado, de acordo com a Lei de Introdução ao Código Civil.
No mesmo sentido, Cunha Júnior (2008), em aprofundada pesquisa, acrescenta que
em votação plenária na Assembléia Nacional Constituinte o Deputado Presidente Ulysses
Guimarães explicou o sentido dado ao artigo 5º, §1º, afastando a necessidade de lei
complementar para aplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais.
E complementa, a seguir, Cunha Júnior (2008, p. 276):
Ademais disso, também considerando o método histórico de interpretação do art. 5º,
§1º, da CF, e consciente de que deve o jurista perquirir no sistema normativo, até a
exaustão, todas as potencialidades dos comandos normativo-constitucionais,
notadamente o ora sob investigação, firmamos nossa posição em favor da direta e
imediata aplicação de todas as normas definidoras de direitos fundamentais,
independentemente de qualquer interpositio legislatoris, que é até desnecessária.
Isso significa que a norma-princípio do art. 5º, §1º, da Constituição Federal, tem por
finalidade irrecusável propiciar a aplicação imediata de todos os direitos
fundamentais, sem necessidade de qualquer intermediação concretizadora,
assegurando, em última instância, a plena justiciabilidade destes direitos, no sentido
de sua imediata exigibilidade em juízo, quando omitida qualquer providência
voltada à sua efetivação.
Essa doutrina prega força máxima ao artigo 5º, §1º, da Constituição. Os dispositivos
de direitos fundamentais são dotados de autossuficiência normativa, suplantando toda
omissão ou deficiência infraconstitucional.
É preciso enfatizar que tal comando confere aos poderes públicos a atribuição de
tornar os direitos fundamentais reais e efetivos.
Assim, diante da omissão dos órgãos de direção política e em caso de lacuna
legislativa, cumpre a qualquer órgão do Poder Judiciário, quando provocado, conferir ao
titular o desfrute imediato de um direito fundamental, pleiteado no caso concreto, cumprindo,
dessa maneira, sua obrigação de realizar concretamente os comandos normativos
constitucionais, como é o caso do artigo em análise.
Mesmo as normas programáticas atributivas de direitos fundamentais sociais, ou
seja, aquelas que fixam programas, tarefas e finalidades a serem cumpridas pelos órgãos de
direção política e, portanto, necessitam de lei, possuem plena aplicabilidade, requisitando
somente uma atuação maior do Poder Judiciário no tocante a complementação e
concretização dos direitos fundamentais. A ausência de legislação não impede que qualquer
138
órgão do Poder Judiciário aplique imediatamente as normas definidoras de direitos
fundamentais, fazendo com que as pessoas possam desfrutar das posições jurídicas subjetivas
ali consagradas.
Diante da Constituição brasileira de 1988, compromissada com os anseios do Estado
social democrático, outra não deve ser a interpretação dessa norma-princípio. Aliás, a
desigualdade social que permeia o Brasil faz emergir no Constitucionalismo contemporâneo a
urgente necessidade de evoluir nas formas de proteção dos direitos fundamentais, sobretudo,
dos sociais e de adotar uma nova dogmática jurídico-constitucional.
Assim, superar as amarras teóricas e ideológicas é decisivo para a compreensão de
que a abstração dos textos definidores de direitos fundamentais não é um vício atávico, mas
uma caracterísitica inerente da forma de positivação, o que não acarreta nenhum prejuízo ao
seu caráter normativo, apenas exige seriedade no processo interpretativo de concretização.
2. PROCESSO INTERPRETATIVO DE CONCRETIZAÇÃO
A concretização dos direitos fundamentais vem perspectivada na consciência ética
coletiva, como fundamento filosófico último dos direitos fundamentais, que não é um
fenômeno paralisado no tempo. Seu aprofundamento e ampliação se dá com o evolver da
História. Como aclara Comparato (2001) contemplar a dignidade da condição humana exige
o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância, a justificar a imposição dos
primeiros direitos humanos, relativamente aos direitos liberais, e posteriormente de outras
condições sociais aptas a propiciar a realização de todas as virtualidades do ser humano,
materializadas pela formulação de novos direitos fundamentais. É o processo histórico de
expansão e afirmação progressiva dos direitos humanos fundamentais que aclara as reais
objeções para concretização dessa categoria de direitos.
É evidente que a abstração é uma característica de todo o sistema constitucional, em
razão das constituições abrigarem complexos temas políticos, econômicos e sociais em
disputa na sociedade e, portanto, não raramente, se utilizarem de textos de viés
principiológico.
O dinamismo das relações sociais levam a situações que não estão exauridas pela lei,
conforme a construção do positivismo de decisão jurídica pela técnica subsuntiva, ou estão
atendidas por ela, mas encerram uma solução injusta. Nesses casos, exige-se do julgador a
construção da decisão em consonância com a unidade dos princípios do sistema jurídico.
139
Em verdade, para construção adequada de uma decisão jurídica o julgador precisa
em sua sentença atribuir sentido, realizando uma tarefa de produção. O juiz deve interpretar,
construir e, ainda, distinguir os casos, para que possa formular suas decisões, confrontando-as
com o Direito vigente.
No atual Estado Constitucional se exige uma atuação mais concreta do juiz no
desenvolvimento das normas. Os valores do Estado Liberal que eleva a atividade legislativa
como algo perfeito e acabado, atualmente deve ceder espaço à crítica judicial, no sentido de
que o magistrado, necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso
concreto uma interpretação conforme a Constituição. (MARINONI, 2006)
Streck (2013) à luz da Crítica Hermenêutica do Direito assevera que não subsistem
os mitos da univocidade sígnica, da interpretação unívoca, da vontade da lei, do espírito do
legislador, da essência da norma, e diversos outros disseminados pelos juristas. Interpretar é,
portanto, dar sentido.
Assim, ao ingressar no campo da hermenêutica devemos considerar a noção de
compreensão e interpretação, sendo a primeira a busca pelos valores subjacentes à lei, a busca
do significado em função das razões que a orientam, já a interpretação o processo por meio
do qual a compreensão é construída.
Nesse sentido, a compreensão se revela como um processo crítico, de reexame dos
pressupostos pessoais iniciais. É reflexiva e operacionalizada por meio da argumentação.
Assim, uma prática jurídica racional pressupõe a hermenêutica e a teoria da argumentação, no
sentido de compartilhamento discursivo.
Ora, é necessário abrir espaço, nesse momento, para o auxílio da ciência política. E
ao buscar o fundamento da própria política se percebe que é o que há de contingente na
convivência humana, ou seja, é aquilo que homem delibera, decide, sobre sua convivência, na
medida em que ela é estabelecida de uma forma, mas poderia ser estabelecida de outra.
Portanto, a política está relacionada com a organização da vida em coletivo, a partir da
perspectiva de que essa organização não é definida para sempre por ninguém, mas resulta
inexoravelmente de disposições, engajamentos e condutas dos agentes sociais.
Por óbvio, aqui se encontra o juiz, como agente social capaz de transformar a
convivência em sociedade.
É nesse contexto que surge a necessidade de uma jurisdição capaz de concretizar os
textos definidores de direitos fundamentais e proteger as minorias, o sistema democrático e
toda a Constituição.
140
Como afirma Cunha Júnior (2014, p. 167):
a expansão do papel do Juiz é uma exigência da sociedade contemporânea, que tem
dele reclamado, mais do que uma mera e passiva inanimada atividade de pronunciar
as palavras da lei, um destacado dinamismo ou ativismo na efetivação dos preceitos
constitucionais, em geral, e na defesa dos direitos fundamentais e valores
substanciais, em especial. Essa demanda social, fruto das novas condições sociais e
econômicas, tem propiciado um crescente reconhecimento do fenômeno da criação
judicial do Direito, por meio de uma interpretação judicial criativa e concretizadora,
em virtude da qual juízes e tribunais estão habilitados e legitimados a inovar a
ordem jurídica, constituindo ex novo o Direito, desenvolvendo e efetivando
diretamente os preceitos constitucionais, ainda que dependentes de legislação
concretizadora.
Cappelletti (1993, p. 24) pondera que falar do Judiciário como órgão inovador do
Direito é “uma óbvia banalidade, um truísmo privado de significado: é natural que toda
interpretação seja criativa e toda interpretação judiciária „law-making’”.
Segundo Habermas (1997), sob o prisma substancial, não existe qualquer diferença
entre jurisdição e legislação, haja vista que ambos os processos, o jurisdicional e o
legislativo, criam o direito. Assinala que ambos os atores concorrem na construção e
conformação do Direito. Ao legislativo é reduzida a função do legislar originariamente para a
de concretizador, e a do Judiciário da aplicação interpretativa do Direito para a sua
concretização criativa, de tal modo que a diferença qualitativa entre o legislar e a jurisdição é
anulada.
Entretanto, essa atuação judicial não é completamente livre de vínculos, pois há
certos limites de ordem processual e substancial.
Por isso, o valor da teoria da argumentação como elemento de legitimidade da
decisão.
A aplicação do direito, enquanto decisão jurídica de conflitos sociais, não pressupõe
apenas um raciocínio de índole formalista, fundado na Lógica Clássica; ao contrário, o
mesmo encontra-se intimamente vinculado a discursos que articulem valores, que não se
confundem com evidências racionais ou empíricas, pressupostos básicos da aplicação do
raciocínio silogístico dedutivo ou indutivo.
Assim, observa Alexy (2008, p.54) que “uma norma é o significado de um
enunciado normativo”. Para Ávila (2009, p.30) “normas não são textos nem o conjunto deles,
mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”.
Segundo Streck (2013) a norma é resultado da interpretação do texto, muito embora
este não subsista sem aquela, sendo que a interpretação do texto em busca da norma é já sua
141
aplicação. Para Grau (2009) os enunciados legislativos são interpretados em busca da norma
jurídica, a qual é produzida para ser aplicada em um caso concreto por meio de uma decisão
judicial que a expresse, por isso a interpretação é já aplicação e a norma é produzida pelo
intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto, mas também a partir
de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade.
Desta forma, a norma não é um elemento pronto, mas o resultado construído pela
atividade do intérprete.
Nesse sentido, se inserem os precedentes judiciais, com a função de orientar o
intérprete não apenas na hora de determinar o significado das normas adscritas, mas também
decidir acerca do peso ou da força que essa norma vai assumir quando for aplicada no caso
concreto, ou seja, quando for utilizada como um dos fundamentos ou razões para justificar
uma decisão.
Bustamante (2012) obtempera que a teoria dos precedentes, como teoria
metodológica que é, liga-se inseparavelmente a uma teoria da argumentação que seja capaz
de tornar racional o processo de aplicação do Direito. É pela via das teorias da argumentação
jurídica que o Judiciário, mesmo carente de representação democrática característica do
Poder Legislativo, pode legitimar as normas jurídicas que ele deixa assentadas em suas
decisões. A teoria dos precedentes, a teoria da argumentação jurídica e a teoria do Direito
passam a fazer parte de um único tipo de discurso em que cada decisão concreta é
considerada como uma norma universalizável que merece passar por um discurso de
justificação
e,
num
momento
posterior,
ser
imparcialmente
aplicada.
Nesse
“Constitucionalismo discursivo”, na linguagem de Alexy, a técnica do precedente é
considerada um importante aspecto da racionalidade prática, haja vista que a exigência de
considerar as decisões anteriores encontra fundamento não mais apenas em fatores
institucionais, mas também em fatores extrainstitucionais (intrinsecamente racionais), que são
tão importante quanto os primeiros.
É verdade que a concretização dos direitos fundamentais perpassam pela
fundamentação por princípios, pois estes tem como função exatamente superar a abstração
dos textos das regras, sendo inegável as contribuições teóricas destes na hodierna dogmática
jurídica.
Os princípios, como mandamentos de otimização na construção de Alexy (2008),
são textos que não permitem inferir diretamente uma norma, da espécie regra, contendo uma
prescrição comportamental concreta com a determinação da conduta que deve ser adotada,
142
seja pela Administração Pública, seja pelo particular, para alcançar esses objetivos, mas são
suficientes para que se possa chegar a uma norma que estabelece o dever de atingir um estado
ideal de coisas, na máxima medida possível.
Nos princípios, geralmente, temos normas nas quais está institucionalizada a
obrigação de realizar determinado fim ou valor, mas não estão ainda disciplinados os meios
para tanto, sendo necessário uma ponderação para que os meios possam ser estabelecidos.
Está disposto um direito preliminar que deve ser ponderado com outros.
Sendo assim, o valor dos princípios reside no elevado conteúdo moral que eles
carregam, além do potencial de irradiação sobre o ordenamento jurídico, sendo
imprescindíveis para produzir coerência e racionalidade para a dogmática jurídica.
CONCLUSÃO
O pós-positivismo apresenta o Direito com uma concepção essencialmente
interpretativa, onde as decisões tomadas pelos legisladores e pelos juízes são consideradas
Direito apenas em um sentido preambular da interpretação, não se aferrando à concepção
jusnaturalista que se funda na teoria declaratória e da concepação positivista que mostra o
Direito pela essência da autoridade institucionalizada.
Nesse movimento teórico-jurídico, as normas, o sentido do Direito, depende de um
processo interpretativo no qual o intérprete trabalha com os enunciados, com os precedentes,
de forma coerente com os valores morais, na perspectiva do atendimento de uma
interpretação que leve em conta as diversas matizes democráticas do problema e que alcance
a solução que satisfaça os objetivos constitucionais.
Portanto, a abstração dos textos não pode ser encarada como um vício, nem muito
menos como objeção à concretização de direitos, sobretudo direitos de índole fundamental.
Compreensão diversa só se justifica perante o paradigma liberal da teoria dos direitos
fundamentais e o paradigma positivista do Direito.
Assim, os enunciados legislativos definidores de direitos fundamentais, em razão da
sua estrutura normativo-material, apenas exigem da jurisdição, como instrumentalizadora da
vocação constitucional, uma atuação ética mais profunda e um processo criativo
concretizador capaz de contribuir dinamicamente para a formação e evolução do Direito.
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A VULNERABILIDADE AGRAVADA DO CONSUMIDOR IDOSO À LUZ DO
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
THE AGGRAVATED VULNERABILITY OF THE ELDERLY CONSUMER IN
LIGHT OF THE HUMAN BEING’S DIGNITY ABSTRACT
Sergio Leandro Carmo Dobarro
Bacharel em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, possui graduação em
Administração e Especialização em Administração de Marketing e Recursos Humanos.
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília (UNIVEM). É
pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais (DiFuSo) e Reflexões
sobre Educação Jurídica Brasileira. Funcionário Público. Email:
[email protected]
André Villaverde
Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM e em Ciências
Jurídicas e Sociais pela UAL – Universidade Autónoma de Lisboa; Tabelião na cidade de
Timon-MA; professor de direito em diversos cursos e universidades; especialista em direito
notarial e registral, constitucional, civil, processo civil e outros; Doutorando em Direito pela
UMSA – Universidad Del Museo Social Argentino; Presidente do IEPTB-MA – Instituto de
Estudos de Protesto de Títulos do Brasil – Seção Maranhão e autor do livro 2ª Fase-Concurso
de Cartório. E-mail: [email protected].
SUMÁRIO: Introdução; 1. Considerações sobre o princípio da dignidade da pessoa humana
nas relações de consumo; 2. Vulnerabilidade e (hiper)vulnerabilidade no código de defesa do
consumidor 3. o estatuto e a dignidade humana do idoso; 4. O consumidor idoso e a
hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade agravada; Considerações finais; Referências
bibliográficas.
RESUMO: O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República
Federativa do Brasil e orientação para a apreciação de todas as antevisões do ordenamento
jurídico, ensejo pelo qual pode ser vislumbrado através de variados pontos em que a pessoa
humana é posta em seu cotidiano, entre os quais o de consumidor. O corrente artigo versa
sobre a proteção do consumidor idoso na sociedade de consumo, análise que surge dentro da
conjuntura da massificação da produção, bem como na intensa influência que esta tem na
vida daqueles que estão colocados nela. Desta forma, localiza-se um contexto já exposto pela
doutrina, o da hipervulnerabilidade, ou, ainda, da vulnerabilidade agravada que envolve o
consumidor idoso. O enfoque basilar do estudo procura evidenciar que dentro da igualdade
material, deve-se proteger de forma mais competente este consumidor que muitas vezes vem
sendo lesado por esta condição (agravada) relacionada a sua idade.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; consumidor idoso; vulnerabilidade;
(hiper)vulnerabilidade.
147
ABSTRACT: The principle of human being‟s dignity is the fundament of the Federative
Republic of Brazil and the orientation to appreciation of all preview of legal order, an
occasion which may shimmer through many points which the human being deals in its daily
life, among it, the consumer. The current article examines over the elderly consumer‟s
protection in the consumerist society, an analysis which emerges inside the conjuncture of
production‟s massification, as well as in the intense influence which it has in the lives of
whom are put into. In this way, it is found a context, already exposed by the doctrine, the
hyper vulnerability, or, still, the aggravated vulnerability which involves the elderly
consumer. The fundamental study‟s approach seeks to enlighten inside the material equality,
it must protect in a more competent way this consumer which has been injured many times by
this (aggravated) condition related to his or her age.
Keywords: Human being‟s dignity; elderly consumer; vulnerability; (hyper)vulnerability.
INTRODUÇÃO
Perante a sociedade de consumo todos os consumidores devem estar em igualdade,
não permitindo ser diminuídos diante um sistema que habitualmente tende à prevalência dos
que detém maior poderio econômico, motivo pela qual há aguda ligação entre a
vulnerabilidade do consumidor e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Através da vulnerabilidade, alcança-se a igualdade material, tão aspirada pela Constituição de
forma a colocar todos os cidadãos em um mesmo nível nas relações jurídico-sociais, sendo
este um dos basilares vieses do fundamento da dignidade da pessoa humana. Com razão,
versa-se de tema de importante destaque.
O presente artigo dirige-se para as questões que envolvem as relações de consumo, a
vulnerabilidade do consumidor, em especial o idoso dentro do contexto da sociedade de
consumo.
Inicia-se o estudo com a abordagem sobre o princípio da dignidade da pessoa
humana, matéria com ampla multiplicidade de avaliações sob variáveis perspectivas, uma vez
que trata da proteção de todos os bens jurídicos fundamentais à pessoa humana,
desempenhando manifesta função social no sistema jurídico consistente na efetivação do
tratamento de todas suas esferas de proteção. A dignidade da pessoa humana está arrolada a
uma edificação de natureza moral, que independente de qualquer particularidade da pessoa
em questão, possui um valor intrínseco que lhe é próprio e não poder ser quantificado, tão
pouco ser objeto de abdicação. Qualquer direito que se arrole às esferas de proteção da
dignidade da pessoa humana, ou seja, qualquer direito que seja efetivo ao indivíduo, fazer jus
a proteção específica, entre os quais se sobressai o de igualdade nas relações jurídico-sociais.
148
Ressalta-se que nas relações jurídico-sociais do direito do consumidor fica aparente
que a falta de um tratamento especial iria contra esta almejada promoção de igualdade
material, logo, a conferência de tratamento próprio ao consumidor solidifica o próprio
fundamento da dignidade da pessoa humana. Foi com esse escopo que o legislador pátrio,
almejando tornar efetiva a defesa dos direitos do consumidor, suprindo a até então persistente
carência de utensílios característicos de proteção, preparou o Código de Defesa do
Consumidor e nele inseriu o princípio da vulnerabilidade.
Na sociedade de consumo não pode ser diferente, necessitando todos os
consumidores estar em igualdade, mesmo com as diferenças de idade, por exemplo.
A concepção de vulnerabilidade agravada, ou hipervulnerabilidade, como
determinados doutrinadores vêm abordando, é um conceito extremamente novo que vem
sendo aplicado aos consumidores idosos. Tal classificação leva em consideração o fato de
serem miras fáceis dos fornecedores de produtos e serviços, em virtude de sua
vulnerabilidade potencializada.
Em seguida, analisar-se-á o Estatuto do Idoso, destacando o conceito de proteção
social para abordarmos o tema da efetivação dessa proteção.
O referencial teórico deste trabalho aborda conceitos jurídicos, doutrinários e
jurisprudenciais.
1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
A dignidade da pessoa humana revela-se em todos os campos em que torna-se
preciso solidificar o respeito a um valor intrínseco do ser humano, logo, se encontra na busca
de igualdade material nas relações jurídico-sociais. Anterior ao estudo da correlação da
dignidade da pessoa humana com a proteção das relações de consumo evidencia-se imperioso
introduzir o posicionamento jurídico desta ante o ordenamento constitucional.
O princípio da dignidade da pessoa humana está disposto no inciso III do artigo 1º
da Constituição Federal, o que auxilia em sua diferenciação em relação aos direitos
fundamentais, já que foi distribuído no texto constitucional como fundamento da República,
tendo papel de importância estruturante do ordenamento jurídico, a ser corporificado pelos
direitos e garantias fundamentais.
149
O citado princípio independe de qualquer ocorrência sólida, em virtude de ser
inerente a toda e qualquer pessoa humana, ou seja, todos são iguais em dignidade enquanto
reconhecidos como pessoas, mesmo que não cheguem a ter atitudes dignas com seus
semelhantes ou consigo mesmos.
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e
pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma
existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim,
onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos
fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá
espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá
não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. [...] (SARLET, 2009, p. 65).
Observa-se que há proteção constitucional à própria pessoa humana que vai muito
mais a frente da previsão desta enquanto fundamento já que com o estabelecimento dos
direitos e garantias fundamentais, além da proteção, existiu também a finalidade de
concretização da dignidade da pessoa humana; sendo assim, não é a pessoa que existe em
função do Estado, mas sim o contrário, sendo o ser humano estimado um fim em si mesmo.
Na filosofia kantiana, a dignidade humana se repousa na natureza racional do ser
humano, isto é, é um atributo, uma particularidade inerente, e não uma concessão estatal.
Ressalta-se o entendimento de Sarlet (2009, p. 47):
Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é
reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que constitui dado
prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda experiência especulativa.
Neste deslinde, o fundamento mínimo para uma real concepção da dignidade
humana pode ser retirado do pensamento kantiano, que proíbe a coisificação e
instrumentalização do ser humano, independentemente de suas características pessoais.
Assim, frisa-se uma dimensão da dignidade da pessoa humana sólida na busca de
garantia de igualdade material nas relações jurídico-sociais, notadamente as de consumo, para
ao final apurar na prática o respeito à dignidade da pessoa humana nestas, tomado o viés da
vulnerabilidade.
As relações de consumo podem ser entendidas, a priori, como relações jurídicas
existentes entre fornecedor e consumidor tendo por intento a obtenção de produto ou a
utilização de serviços, inserida dentro de um mercado de consumo.
Ratificando tal compreensão, Gama (2000, p. 23) sobre as relações de consumo:
Aquelas relações que se estabelecem ou que podem vir a se estabelecer quando de
um lado porta-se alguém com a atividade de ofertador de produtos ou serviços e, de
outro lado, haja alguém sujeito a tais ofertas ou sujeito a algum acidente que venha
ocorrer com a sua pessoa ou com os seus bens.
150
A defesa do consumidor logrou atenção especial em razão da Lei n. 8.078, de 11 de
setembro de 1990, apreciada como Código de Defesa do Consumidor, diploma legal em que a
dignidade constitucional da pessoa humana é introduzida em múltiplos dispositivos legais.
Ressalta-se, neste sentido, o que expõe Gonçalves (2009, p. 86):
A defesa dos consumidores responde a uma duplo tipo de razões: em primeiro
lugar, razões econômicas derivadas das formas segundo as quais se desenvolve, em
grande parte, o atual tráfico mercantil; e, em segundo lugar, critérios que emanam
da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que hoje vivemos,
imersos que estamos na chamada sociedade de consumo, em que o “ter” mais do
que o “ser” é a ambição de uma grande maioria das pessoas que se satisfaz
mediante o consumo.
Bittar (1991, p. 22) assegura que o Código de Defesa do Consumidor, na realidade
jurídica, comporta intrinsecamente a proteção dos valores fundamentais da pessoa humana:
Coerência com o espírito que presidiu a Carta de 1988, em que a dignidade da
pessoa humana e a preservação de seus direitos de personalidade são as pilastras
básicas, o Código vem suprir lacuna existente em nosso direito positivo,
acompanhando o progresso legislativo processando a matéria, especialmente em
alguns países na Europa e nos Unidos Estados.
Existe um interesse público na proteção e defesa do consumidor, pelo fato das
relações de consumo ser a força matriz da economia e, por ser o consumidor vulnerável, o
Estado necessita intervir nas relações de consumo, objetivando o equilíbrio apropriado a toda
e qualquer harmonia econômica.
A citada intervenção se dá pela política nacional de relações de consumo, a qual
possui a dignidade consagrada em seu caput no artigo 4º do Código de Defesa do
Consumidor.
O Direito do Consumidor é um direito fundamental do cidadão, que tem seu alicerce
na proteção da dignidade da pessoa humana. Além do mais, afere-se sentido instrumental à
dignidade da pessoa humana quando são previstos fundamentos e ferramentas para o alcance
da dignidade do consumidor, entre os quais se sobressai o princípio da vulnerabilidade, que
será observado no tópico seguinte.
2. VULNERABILIDADE E (HIPER)VULNERABILIDADE NO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR
A vulnerabilidade do consumidor é depositada como um dos fundamentos da
política nacional de relações de consumo, aferindo sentido instrumental à proteção da defesa
do consumidor e, logo, da dignidade da pessoa humana. Prontamente, para concretizar a
151
dignidade da pessoa humana nas relações de consumo se mostra imperativo o respeito à
vulnerabilidade do consumidor.
De acordo com Saad (2002, p. 52), “consumidor é aquele que adquire o bem ou o
serviço como destinatário final, isto é, realiza a compra para usar o bem ou o serviço em
proveito próprio”, sendo assim, é a este destinatário final do produto ou serviço que se
sobrepõe a característica da vulnerabilidade.
A conceituação legal de consumidor compõe-se tanto daquele que adquire quanto
aquele que usufrui do serviço ou produto, motivo pelo qual fica manifesto que, caso o
desígnio for o alcance de lucro, se descaracterizará a relação de consumo. Quanto a este
consumidor que ambiciona ter lucro pela sua aquisição, exclui-se o reconhecimento da
vulnerabilidade.
A vulnerabilidade do consumidor é assunto de significado extenso para aplicação no
Direito, sendo que, como visto, o próprio Código de Defesa do Consumidor o sagra como
princípio em seu artigo 4º, I, ao tratar da política das relações de consumo. Na ausência deste
princípio não se pode discorrer em liberdade, igualdade e harmonização numa sociedade de
consumo.
Avançando, Almeida (1993, p. 15) exibe a seguinte compreensão acerca do princípio
da vulnerabilidade:
Os que não dispõem de controle sobre bens de produção e, por conseguinte, devem
se submeter ao poder dos titulares destes. Isto que dizer que a definição de
consumidor já descreve essa vulnerabilidade, essa relação de hipossuficiência que
pode ocorrer por desinformação, por fraude ou quando o produtor não dê ou não
honre a garantia ao bem produzido.
Ressalta-se que a vulnerabilidade do consumidor é a espinha dorsal da sua proteção.
Ragazzi (2010, p. 151) assevera que “o princípio da vulnerabilidade do consumidor é o
grande alicerce do microssistema, pois suas regras foram construídas com a finalidade de
harmonizar as relações de consumo entre fornecedores e consumidores”.
Relevante não confundir a vulnerabilidade com a hipossuficiência. A vulnerabilidade
é de direito geral e material, concerne à apreciação de consumidor apresentado pelo Código
de Defesa do Consumidor, desta forma, presume-se que seja absoluta, não admitindo prova
em contrário. Já a hipossuficiência é um conceito particularizado e processual e está
conectado à falta de recursos econômicos, o hipossuficiente é aquele economicamente fraco,
que não é autossuficiente, sendo assim, a hipossuficiência sempre será econômica. Evidenciase, desta forma, que esta ausência de recursos tornará o consumidor muito mais vulnerável.
Nesse aspecto, tem-se a explicação de Bonatto (2001, p.46):
152
A vulnerabilidade do consumidor não se confunde com a hipossuficiência que é
característica restrita aos consumidores que além de presumivelmente vulneráveis,
vêem-se agravados nessa situação por sua individual condição de carência cultural,
material ou como ocorre com freqüência, ambas. [...] A vulnerabilidade é um traço
universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educadores ou ignorantes,
crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal, limitada a alguns – até
mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os consumidores.
O princípio da hipossuficiência acontece em razão da desvantagem do consumidor
para com o fornecedor. A diferença habita no fato do hipossuficiente, além de ser vulnerável,
por ser mais fraco frente ao fornecedor, está mais exposto à má-fé de certos fornecedores por
sua carência de instrução, cultura e informação.
A respeito da diferença existente entre o consumidor vulnerável e o hipossuficiente,
Grinover e outros (2000, p. 313-314) ressaltam:
A vulnerabilidade é um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres,
educados ou ignorantes, crédulos ou espertos. Já a hipossuficiência é marca pessoal,
limitada a alguns – até mesmo a uma coletividade – mas nunca a todos os
consumidores. A utilização, pelo fornecedor, de técnicas mercadológicas que se
aproveitem da hipossuficiência do consumidor caracteriza a abusividade da prática.
Desta forma, a hipossuficiência se reduz somente a certa parte da população,
enquanto a vulnerabilidade abrange a todos os consumidores, ou seja, a definição de
hipossuficiência deriva de um conceito fático e não jurídico, estando baseada em uma
disparidade identificada no caso concreto que reclama a presença de condições pessoais
relativas a cada consumidor.
Grinover e outros (2000, p. 313), expõem que:
[...] entre todos os que são vulneráveis, há outros cuja vulnerabilidade é superior à
média. São os consumidores ignorantes e de pouco conhecimento, de idade pequena
ou avançada, de saúde frágil, bem como aqueles cuja posição social não lhes
permite avaliar com adequação o produto ou serviço que estão adquirindo. Em
resumo: são os consumidores hipossuficientes.
Entende-se, por conseguinte, que o consumidor é naturalmente vulnerável, assim, o
consumidor que for hipossuficiente e vulnerável terá uma vulnerabilidade agravada.
Neste deslinde, encontra-se a (hiper)vulnerabilidade, atributo dos consumidores
(hiper)vulneráveis, que são aqueles que possuem uma vulnerabilidade agravada. Nunes
(2005, p. 133) narra:
A hipossuficiência do consumidor não se confunde com a incapacidade econômica,
mas sim tem o sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do
serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos
modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de
consumo e o dano, das características do vício.
153
Com
relação
a
estes
consumidores
hiper(vulneráveis),
aumenta-se
a
imprescindibilidade da efetivação dos instrumentos de proteção das relações de consumo,
visto que se encontram numa posição ainda mais desfavorável na escala de desigualdade
entre consumidor e fornecedor. Deste modo, para o reconhecimento da vulnerabilidade temse que sempre haver desigualdade entre consumidor e fornecedor, ao passo que pela
afirmação da hiper(vulnerabilidade) tem-se que caberá sempre a observação do caso real para
detectar se aquele consumidor é mais vulnerável que os demais consumidores. É desta
maneira que a teoria coloca, competindo o exame do reflexo desta na realidade jurídica.
3. O ESTATUTO E A DIGNIDADE HUMANA DO IDOSO
No termino de 2003 foi editada a Lei nº 10.741, legislação de grande importância e
impacto na ordem legal brasileira, o Estatuto do Idoso.
Tal estatuto é demasiadamente inovador, pois pela primeira vez se coloca, com
precisão, a figura do idoso. Além disso, disciplina de forma sistemática os direitos, e,
fundamentalmente, a forma de garantia, tanto coletiva como individual, no plano criminal,
civil e administrativo de todos os direitos titularizados pelos idosos.
Importante observar que o Estatuto do Idoso dispõe da legitimidade para a defesa de
um direito individual indisponível, que não seja homogêneo, ou seja, um direito
fundamentalmente individual, em virtude da relevância do direito e pela presumida
incapacidade da parte.
Neste diapasão, ressalta-se que os pontos primordiais da Lei são: a precisão do visto
do Ministério Público nos instrumentos de transação; a inclusão da Ordem dos Advogados do
Brasil, como ente legitimado à propositura desta ação civil; e a interdição expressa de
imposição de verba sucumbencial em ações coletivas ajuizadas pelo Ministério Público.
Ao inserir a dignidade humana como foco fundamental do ordenamento jurídico, a
Constituição Federal de 1988 infundiu a concepção de uma vasta esfera de direitos
fundamentais que se configuram como obrigatórios para a garantia do fundamento
constitucional da dignidade da pessoa humana.
A pessoa idosa também é ser humano, e, logo, detém status de cidadão, e por
decorrência, devendo também ser apreciada por todas as ferramentas asseguradoras da
dignidade humana aos brasileiros, sem qualquer diferença.
Deste modo, a Constituição da República Federativa do Brasil define:
154
A cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos do Estado
Democrático de Direito (art. 1°, II e III, da CF).
Direitos Sociais: São direitos a educação a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maturidade e a infância, assistência aos
desamparados na forma desta Constituição (art. 6°, da CF).
De seguridade social: compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência e à assistência social (art. 194, da CF).
Evidentemente, a tutela jurídica constitucional do idoso estriba-se em toda a gama
de direitos fundamentais e garantias previstas para o cidadão. O primado do Estado
Democrático de Direito tem íntima ligação com a proteção ao idoso – assim como à família, a
maternidade e infância – pois nele se materializa a defesa do direito à vida das pessoas
(FIORILLO, 1995, p. 38)
Ressalta-se que os direitos sociais avigoram o direito de ordenar a intervenção do
Estado na sociedade e no mercado na finalidade de que as desigualdades sejam diminuídas e
a justiça social seja garantida e promovida. Deste modo, são direitos que objetivam extinguir,
ou corrigir desigualdades que surgem das condições de partida, econômicas e sociais, mas
também, em parte, das condições naturais de inferioridade física como as leis que protegem
os idosos.
Em meio aos direitos sociais constitucionais vislumbra-se a assistência aos
desamparados, nela implantada a proteção à velhice, versada com maior detalhamento no
artigo 230 da Constituição de 1988.
Desta forma, há uma série de leis que abordam sobre o tema da dignidade da pessoa
humana na velhice, como é o fato do Estatuto do Idoso (lei no 10.741/2003), que veio para
avigorar as determinações constantes no artigo 230 supracitado.
4. O
CONSUMIDOR
IDOSO
E
A
HIPERVULNERABILIDADE
OU
VULNERABILIDADE AGRAVADA
O Código de Defesa do Consumidor tem por objetivo resguardar a todos os
consumidores de forma que estes, como já demonstrado, possuem uma vulnerabilidade em
determinados episódios, potencializada, agravada pela sua condição ante os outros
consumidores, como os idosos, objeto basilar do corrente artigo.
Atualmente vive-se mais em consequência da qualidade de vida que se tem.
Portanto, atina-se que o envelhecimento da população esta ocasionando com que estes idosos,
cada vez mais, estejam dentro nas relações de consumo.
155
Importante observar que dentro do aspecto biológico, o envelhecimento trás
alterações biológicas que tornam o idoso menos capaz de conservar a homeostase quando
submetido a determinado fator de estresse, tornando-o mais susceptível ao adoecimento,
morte e crescente vulnerabilidade (BUENO, LIMA, 2009, p. 276).
Neste deslinde, os idosos possuem amparo em estatuto próprio, na Lei
10.7441/2003, que objetiva resguardar pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, além
de salvaguardar todos os direitos inerentes a estes, tais como: trabalho, justiça, saúde e
educação.
É clara a vulnerabilidade do idoso em relação aos consumidores em geral, sendo
facilmente atraídos por planos de saúde, empréstimos consignados e publicidades abusivas
e/ou enganosas.
Imprescindível se mostra trazer para o presente artigo, julgado que repreende tais
casos.
Deste modo, temos o seguinte (RIO GRANDE DO SUL, 2009):
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. CONSUMIDOR. SERVIÇOS DE TELEFONIA
MÓVEL. FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. COBRANÇAS
ABUSIVAS. VULNERABILIDADE AGRAVADA DO CONSUMIDOR IDOSO.
CONSIDERAÇÃO.
RESCISÃO
DO
CONTRATO
DETERMINADA.
DEVOLUÇÃO DE VALORES. DANOS MORAIS. NÃO CONFIGURAÇÃO.
Considerando a verossimilhança das alegações do autor, no sentido de que o serviço
de telefonia móvel contratado para utilização no exterior mostrou-se defeituoso,
culminando com cobranças abusivas, bem como tendo em vista a vulnerabilidade
agravada do consumidor idoso, é de se julgar procedente o pedido de rescisão de
contrato, sem o pagamento de multa, tornando-se inexigíveis os valores a título de
ligações internacionais, determinando-se, outrossim, a devolução do valor pago pelo
aparelho celular [...]. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Cível Nº
70025289943, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene
Bonzanini Bernardi, Julgado em 18/02/2009). (grifou-se)
O julgado demonstra que o consumidor hipervulnerável de alguma forma tornou-se
ou tornar-se-ia prejudicado em resultado de tal conduta, inadmissível pelo Código de Defesa
do Consumidor e pelo Estatuto do Idoso.
Neste diapasão, nota-se um diálogo entre o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa
do Consumidor, já que o idoso é parte hipervulnerável nas relações de consumo.
Percebe-se que o consumidor idoso sofre, especialmente, com as demandas
envolvendo instituições financeiras, assentindo muitas vezes sem perceber do que se trata,
aos créditos consignados que virão a ser descontado mensalmente das concernentes contas
correntes e, ainda com relação aos planos de saúde.
Discorrendo sobre
planos de
saúde, destaca-se
a
situação do público
(hiper)vulnerável, que é o dos idosos. Neste sentido, conveniente analisar a impossibilidade
156
de aplicação de reajuste por faixa etária dos planos de saúde de pessoas com idade igual ou
superior a 60 anos de idade, naturalmente hipossuficientes, em virtude do disposto no
Estatuto do Idoso. Deste modo, conferem-se dois julgados a respeito da questão:
APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. NULIDADE DE CLÁUSULA
CONTRATUAL. REAJUSTE DE MENSALIDADE EM RAZÃO DA MUDANÇA
DE FAIXA ETÁRIA. ABUSIVIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA.
CLÁUSULA NULA. APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR E
DO ESTATUTO DO IDOSO. PRESCRIÇÃO.
INOCORRÊNCIA. 1. As cláusulas que implicarem limitação de direito do
consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil
compreensão 2. Deve ser declarada a abusividade e a nulidade de cláusula
contratual que prevê reajuste de mensalidade de plano de saúde em razão da
mudança de faixa etária. 3. "Veda-se a discriminação do idoso em razão da idade,
nos termos do art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, o que impede especificamente o
reajuste das mensalidades dos planos de saúde que se aderem por mudança de faixa
etária; tal vedação não envolve, portanto, os demais reajustes permitidos em lei, os
quais ficam garantidos às empresas prestadoras de planos de saúde, sempre
ressalvada a abusividade" (STJ - REsp n. 989.380/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi,
DJe 20/11/2008). APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (PARANÁ, 2011)
DIREITO CIVIL. CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA.CLÁUSULA DE REAJUSTE POR MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA.
INCREMENTO
DO
RISCO
SUBJETIVO.
SEGURADO
IDOSO.
DISCRIMINAÇÃO. ABUSO A SER AFERIDO CASO A CASO. CONDIÇÕES
QUE DEVEM SER OBSERVADAS PARA VALIDADE DO REAJUSTE. 1. Nos
contratos de seguro de saúde, de trato sucessivo, os valores cobrados a título de
prêmio ou mensalidade guardam relação de proporcionalidade com o grau de
probabilidade de ocorrência do evento risco coberto. Maior o risco, maior o valor
do prêmio. 2. É de natural constatação que quanto mais avançada a idade da pessoa,
independentemente de estar ou não ela enquadrada legalmente como idosa, maior é
a probabilidade de contrair problema que afete sua saúde. Há uma relação direta
entre incremento de faixa etária e aumento de risco de a pessoa vir a necessitar de
serviços de assistência médica. 3. Atento a tal circunstância, veio o legislador a
editar a Lei Federal n. 9.656/98, rompendo o silêncio que até então mantinha acerca
do tema, preservando a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro
de saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado, estabelecendo, contudo,
algumas restrições e limites a tais reajustes.4. Não se deve ignorar que o Estatuto do
Idoso, em seu art. 15, § 3º, veda "a discriminação do idoso nos planos de saúde pela
cobrança de valores diferenciados em razão da idade". Entretanto, a incidência de
tal preceito não autoriza uma interpretação literal que determine, abstratamente, que
se repute abusivo todo e qualquer reajuste baseado em mudança de faixa etária do
idoso. Somente o reajuste desarrazoado, injustificado, que, em concreto, vise de
forma perceptível a dificultar ou impedir a permanência do segurado idoso no plano
de saúde implica na vedada discriminação, violadora da garantia da isonomia.5.
Nesse contexto, deve-se admitir a validade de reajustes em razão da mudança de
faixa etária, desde que atendidas certas condições, quais sejam: a) previsão no
instrumento negocial; b) respeito aos limites e demais requisitos estabelecidos na
Lei Federal n. 9.656/98; e c) observância ao princípio da boa-fé objetiva, que veda
índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios, que onerem em demasia o
segurado.6. Sempre que o consumidor segurado perceber abuso no aumento de
mensalidade de seu seguro de saúde, em razão de mudança de faixa etária, poderá
questionar a validade de tal medida, cabendo ao Judiciário o exame da exorbitância,
caso a caso.7. Recurso especial provido. (BRASIL, 2011a).
No primeiro julgado, o Tribunal de Justiça do Paraná valeu-se do posicionamento
tido inicialmente pelo Superior Tribunal de Justiça, em que não poderia incidir o reajuste por
157
faixa etária para idosos, tanto para contratos firmados após a edição do Estatuto do Idoso
(janeiro de 2004), quanto para os antecedentes.
Todavia, o segundo julgado, em extensa votação no precedente acima mencionado,
chegou à conclusão de que o contrato de plano de saúde depende do equilíbrio econômicofinanceiro para sua preservação, advertindo também que os mais velhos acabam por usar
mais o plano do que os mais jovens, da tal forma que é apropriado que o valor da
mensalidade deles seja maior.
Neste diapasão, é fundamental observar que o Superior Tribunal de Justiça deixa
patente que é possível o reajuste de valores aos beneficiários idosos, a partir de meios
objetivos que afastam todo e qualquer repente de abusividade, acatando a dignidade da
pessoa humana que lhes é devida e o enquadramento de consumidores hipossuficientes ao
qual fazem jus. Imperioso, assim, misturar tanto os aspectos sociais quanto os econômicos
abrangidos, ao invés de adotar interpretação extremista anterior, que simplesmente negava o
reajuste.
O presente estudo demostra ser imprescindível à atuação do CDC juntamente com o
Estatuto do Idoso, objetivando reprimir e punir determinadas condutas. Pode-se perceber que
o avanço da expectativa de vida faz com que acresça as relações de consumo envolvendo os
idosos. Ainda, como decorrência destas relações encontra-se o idoso como um consumidor
hipervulnerável que tem no CDC e no seu estatuto a proteção que carece.
Analisando a passagem dos fatos acima expostos, dá-se a magnitude do estudo do
tema, visto o valor de um continuado aperfeiçoamento legislativo, com intento de realizar
concretamente modificações no comportamento das atuações sociais neste país, respeitando
com ardor o princípio da dignidade da pessoa humana, evitando desta forma a consecução de
fraudes e abusos contra os consumidores. Neste deslinde, a doutrina brasileira já vem
apresentando maneiras de tutelar o consumidor vulnerável, vítima de ofertas enganosas,
assim como a jurisprudência trilha caminhos para sua essencial proteção.
A partir dos estudos e levantamentos realizados pelo presente, compreende-se que a
forma correta da interpretação do princípio da vulnerabilidade sob o foco da dignidade da
pessoa humana está na própria hermenêutica constitucional, que mostra a necessidade de
interpretar todas as normas infraconstitucionais sob a luz da dignidade da pessoa humana,
atribuindo à norma jurídica eficácia plena almejada no modelo do Estado Democrático de
Direito.
158
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1988 é fruto de uma fase histórica que beneficiou a
promoção a uma democracia que, nas derradeiras décadas, impetrou corpo na nação
brasileira. Adentrado no artigo 170 da Constituição Federal de 1988, o arquétipo adotado para
a ordem econômica, constrói-se na livre valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tendo como desígnio asseverar a todos a existência digna, segundo os pareceres da justiça
social. Deste modo, tonifica-se um Estado Social que tem por finalidade maior promover o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana através da demanda da efetivação
dos fundamentos da República Brasileira e do acatamento a suas finalidades base.
No que diz respeito às relações de consumo, a Carta Política de 1988 prognosticou a
preparação de uma legislação característica apreciada como Código de Defesa do
Consumidor, que concebe um avanço social e gira ao redor do constitucional princípio da
dignidade da pessoa humana, o qual também é sobredito no artigo 4º do codex, a partir do
momento em que o legislador trata da Política Nacional das Relações de Consumo.
O presente artigo mirou evidenciar os meios que contornam as relações de consumo,
bem como os princípios constitucionais direcionadores destas, atribuindo foco ao princípio da
vulnerabilidade e suas aclarações, no que tange aos idosos hipervulneráveis, buscando-se
identificar a importância do mote, na medida em que é crescente a exposição destes as
condutas abusivas.
Ressalta-se que o consumidor está acudido, até mesmo em caráter constitucional, à
garantia da promoção da defesa dos seus direitos em virtude da sua vulnerabilidade diante das
relações de consumo. Se assim é na conjuntura geral, por certo, o consumidor-idoso deparase com circunstâncias que vão além da vulnerabilidade inicial, admitindo-se falar em
vulnerabilidade agravada, ou mesmo hipervulnerabilidade. Neste deslinde, novos paradigmas
são edificados em outros contextos, cenários; novas apreciações oportunizam repensar a
proteção do consumidor (idoso) através da condição de especialidade que lhe é pertinente.
O Estatuto do Idoso proporcionou tratamento jurídico às relações interpessoais na
velhice e seu alicerce constitucional leva a uma composição conclusiva: envelhecer é fato da
natureza e do tempo. Estender a vida é fato da medicina e do avanço das ciências. Aqueles
que chegam à idade avançada têm dificuldades no seu grupo social, no mercado de trabalho,
na saúde, no cuidado e proteção devido a eles por descendentes e parentes. Envelhecer com
dignidade é prêmio a ser atingido, em especial pela população pobre, sujeitada às durezas da
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idade provecta. Mesmo com as limitações, conclui-se que o Estatuto junto ao Código de
Defesa do Consumidor, atenderá, ao menos em parte, os ideais que os determinaram para
afastar do idoso o medo do futuro.
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