1 VARIAÇÕES CONCEITUAIS DA ESFERA PÚBLICA Rosana Sousa de Moraes Sarmento* Hélder Boska de Moraes Sarmento** RESUMO A problemática acerca das políticas públicas nas sociedades contemporâneas exigem reflexões e ações compreendidas no âmbito do planejamento, gestão e avaliação levando em conta as esferas do público e do privado. Trata-se de uma discussão complexa expressada em várias formas de compreensão, exeqüibilidade, sustentabilidade e visibilidade. A visão embaçada e até distorcida sobre o significado de público e do impacto que seu desconhecimento pode provocar no produto esperado com a ação das políticas públicas, nos despertou o interesse em buscar, na bibliografia clássica, os fundamentos teóricos, sua importância conceitual e as variações que o termo público pode inferir. Palavras-Chave: Políticas Públicas; significado de público; fundamentos teóricos. ABSTRACT Problematic concerning the public politics in the societies the contemporaries they demand reflections and actions understood in the scope of the planning, management and evaluation leading in account the spheres of the public and the private one. One is about an expressed complex quarrel in some forms of understanding, feasibility, sustainability and visibility. The distorted darkened vision and until on the public meaning and of the impact that its unfamiliarity can provoke in the product waited with the action of the public politics, in them awaked the interest in searching, in the classic bibliography, the theoretical beddings, its conceptual importance and the variations that the public term can infer. Keywords: Public Politics; public meaning; theoretical beddings. 1 INTRODUÇÃO As novas configurações estabelecidas neste início de século entre Estado, Sociedade Civil e Mercado têm apontado quão complexa é a interrelação do público com o privado. Esta complexidade pode estar expressa nas várias formas de compreensão, exeqüibilidade, sustentabilidade e visibilidade do que é público. A visão embaçada e até distorcida sobre o significado de público e do impacto que seu desconhecimento pode provocar no âmbito da ação das políticas públicas, nos despertou sobre a importância do conhecimento conceitual das variações que o termo público pode inferir. Entendemos que dependendo da compreensão do termo público, esta interferirá nas articulações políticas que garantam sua exeqüibilidade, sustentabilidade e visibilidade * Assistente Social, Profª da Universidade da Amazônia – UNAMA, mestra em Serviço Social pela PUC/SP Assistente Social, Profº da Universidade da Amazônia – UNAMA e da Universidade Federal do Pará – UFPa, doutor em Serviço Social pela PUC/SP. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 ** 2 uma vez que estão em negociação interesses públicos e interesses privados em benefício de ações que se propõe a resguardar (VASCONCELOS,2002). Para elucidação do conceito de público buscamos aprofundar nossos estudos sobre o significado desta categoria em autores referenciais clássicos como Karl Marx (1991), Marx Weber (1991), Hanna Arendt (1991), Norberto Bobbio (1987), Jürgen Habermas (1984) e Richard Sennet (1988) nos levando a compreender e afirmar que público, hoje, só pode ser compreendido na sua singularidade se for associado à idéia de privado e de social, que também são categorias diferentes, mas que formam uma unidade se pensadas e operadas no âmbito da práxis social. 2 CONCEPÇÕES TEÓRICAS ACERCA DA CATEGORIA PÚBLICO 2.1 Karl Marx: o dualismo da vida humana Em Marx (1991), pudemos compreender que para a noção de público é preciso considerar que a vida humana dever ser compreendida fazendo parte de um dualismo, pois é dividida entre a vida individual e a vida genérica; entre a vida burguesa e a vida política. A presença da necessidade natural e do interesse particular se contrapõe aos direitos que nos tornam iguais quanto às necessidades naturais, mas são usados para suprir essas necessidades de forma muito particular. Estando a sociedade organizada por interesses de classe, esse dualismo demarca interesses que estão submetidos a posições, papéis e funções eminentemente conflituosos. Assim, questionamos: será que os envolvidos com as políticas públicas hoje têm clareza de quais são esses interesses que estas relações de classe possuem, contraem e realizam? O que está determinando socialmente sua posição neste jogo de relações? 2.2 Max Weber: o patrimonialismo das relações sociais Com Weber (1991) percebemos que a relação com o aspecto público da sociedade capitalista pressupõe um vínculo marcado pelo patrimonialimo que se modifica acompanhando as determinações da formação histórico-social, uma vez que para ele, a propriedade de algo significa exercer uma relação de posse, identificando-o enquanto de uso pessoal. A esfera pública estaria marcada por uma forma de organização social como também por uma conduta engendrada e legitimada à acumulação capitalista, ou seja, as São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 3 possibilidades de liberalização do homem público estariam limitadas pela própria racionalidade que o homem constituiu. Consideramos que as políticas públicas implementadas pelas organizações públicas e privadas, no campo da prestação de serviços assistenciais com caráter educativo e organizativo junto às classes trabalhadoras, muitas vezes ainda são desenvolvidas travestidas de caridade e filantropia, no sentido de ajuda para com a miséria do outro. Esta atitude tem demonstrado uma certa personificação dos problemas sociais à medida que vai se formando um padrão pessoal e não social, demonstrando uma certa distância entre o que somos e pretendemos ser com estas políticas, muitas vezes, vinculados a fatores morais ligados à conduta individual, destituidora dos direitos sociais. 2.3 Hanna Arendt: o homem apartado de sua intimidade Essa racionalidade, característica da sociedade contemporânea, é questionada por Hanna Arendt (1991) quando aponta preocupações com a perda da liberdade política do homem que se submetendo às exigências do trabalho, não o vive como processo de autorealização, interdependência, compartilhamento, e sim como uma obrigatoriedade de ordenar e obedecer. Assim, ressalta que a organização política a qual estamos inseridos, exige um homem apartado de sua intimidade, exigindo-lhe conciliar o que lhe é próprio com o que é comum, vivido no seio da esfera pública, evidenciando assim a presença de dois fenômenos: o da aparência e do que é comum a todos. Assegurar o acesso à política pública enquanto direito universal, se constitui um dos maiores desafios na sociedade contemporânea porque as vias de proteção social pública e privada estão cada vez mais residuais e afastadas dos processos de participação social, assim como da garantia de direitos sociais pelo Estado. É necessário refletir se os atendimentos realizados pelos seus protagonizadores estão garantindo o resgate da intimidade, da singularidade do usuário uma vez que a relação com o trabalho ou com sua ausência o tem submetido a uma condição desumanizada. 2.4 Norberto Bobbio: o primado do direito público e o primado do direito privado E para ratificar que a relação do homem com a sociedade é regulada, Bobbio (1987), evidencia que as relações estabelecidas na sociedade econômica capitalista são São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 4 dicotômicas estando sempre representadas pelo primado do direito público e pelo primado do direito privado, reforçando a noção de que são relações reguladas contratualmente. As políticas públicas têm como cenário de existência o espaço político que é regulado contratualmente, implicando o conhecimento da gestão complexa pública, privada e social, no sentido dessa estar inserida no movimento das relações sociais que hoje está, no âmbito da assistência social, concretamente sendo operacionalizada por uma política de seguridade social contraditória, focalizadora que se edifica sobre a garantia de mínimos sociais que estratificam cada vez mais a população, buscando a objetivação de práticas na direção da qualificação dos serviços, de maneira impessoal e com a perspectiva da universalização. A necessidade de sentir-se parte e não a parte deste cenário político pode possibilitar caminhos que invertam certos papéis, funções, critérios e limites, além de reverter o hiato existente entre o pensar e o agir o que poderá beneficiar a operacionalização dessas políticas, assim como a coerência entre suas propostas e sua efetividade para assegurar os direitos sociais. Para a consolidação das políticas públicas “[...] não basta a superação da visão legalista dos direitos, muito embora, não se possa perder de vista seu princípio regulador das práticas sociais, é importante e necessário ampliar a sua discussão.” (SARMENTO,1997). 2.5 Jurgen Habermas: a noção de “res-pública” Habermas (1984) a partir dessa realidade dicotômica, resgatou a história da esfera pública, enfatizando que da noção de “res-pública” (que significa coisa do povo) foi sofrendo mudanças com o desenvolvimento industrial e que imprimiram um novo sentido às relações de dependência, que antes eram restritas ao espaço familiar, enveredando o espaço público numa dinâmica inversa na qual essa dependência deixa de ser assegurada pelo vínculo familiar, para privilegiar a dependência econômica, de valor de uso e de troca, tornando as relações sociais cada vez mais reificadas. As ações neste campo estão direcionadas para o resgate dos direitos humanos, da condição de cidadania, de uma práxis transformadora, dentro de um cenário contraditório que ao mesmo tempo aponta exigências, limites e possibilidades. Se estas ações nas suas entrelinhas se propõem a resgatar a coisa do povo – a res-pública -, questionamos se estamos sabendo diferenciar as demandas públicas dos cidadãos das demandas do Estado? São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 5 2.6 Richard Sennet: a intimidade da esfera pública Ao consultar a obra de Sennet (1988), compreendemos que a “res-pública” formada por vínculos de compromisso mútuo existente entre as pessoas que não possuem laços familiares íntimos é um vínculo marcado pela associação de uma multidão ou povo de uma sociedade organizada, cujo comportamento público, é, antes de tudo, agir a uma certa distância do eu, de sua história imediata. Compreendendo a partir desta perspectiva que a esfera pública, refuta a idéia de espaço do povo, para edificar a idéia de espaço de vínculos de compromisso mútuo. E que também se constitui como um espaço onde deixamos vir à tona ações que não exponham nossas maneiras de viver, nossa condição econômica, nossa ideologia. Estas reflexões de Sennet enfatizam que apesar de vivermos a era da liberdade de expressão, ainda estão presentes comportamentos que limitam e/ou emitem juízos de valor que cerceiam nossas intimidades, levando-nos sempre a ter o cuidado sobre qual o melhor comportamento público, prendendo-nos a cuidados secundários. Por exemplo, ao sair à rua, estamos sempre preocupados com o manequim e o discurso que utilizaremos. São preocupações que demonstram que o homem falha em considerar que o domínio privado restringe-se apenas ao fato de estarmos em privacidade, pois é necessário considerar também o aspecto da intimidade que hoje é tratada de forma muito pública, usando-a como fim para nossos objetivos e não como meio de nos aproximarmos um do outro. Este autor apresenta uma concepção de que a forma como a privacidade tem sido compreendida tem propiciado a decadência da esfera pública, desencadeando a cultura da personalidade e a impessoalidade, onde a privacidade é vista como um fim em si mesmo e não como um princípio. As novas configurações estabelecidas nas relações sociais de trabalho públicas e privadas estão exigindo ações que não podem prender-se ao aspecto da intimidade privada, do que é interessante e/ou mais cômodo. Se a intenção é tornar que o interesse privado também seja assegurado na dimensão de política pública, de acessibilidade universal, é necessário romper com a aparência da realidade que nos chega de forma isolada, mas que se reverta na necessidade de um interesse público. 3 À GUISA DE CONCLUSÕES Nossa intenção é a de contribuir com a visibilidade conceitual da categoria público, uma vez que está presente no discurso e na ação técnica e política de sujeitos que São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 6 se propõem a trabalhar pela construção de políticas públicas que assegurem a garantia de direitos sociais e humanos. Entendemos a partir deste levantamento teórico que público pode ter vários significados: expressar o que é do povo; pode referir-se a visão geral de um grupo de pessoas; pode ser a contraposição do que é privado; pode representar o que é de direito por designar propriedade individual; pode representar vínculos de compromisso mútuo. Assim, dependendo do tipo de compreensão teórica sobre público implicará ações sobre a realidade social, conseqüentemente, estas implicarão articulações estabelecidas politicamente que podem dar sustentabilidade às necessidades individuais e coletivas garantindo condições físicas, humanas e financeiras de exeqüibilidade e continuidade. No campo das políticas públicas seus resultados deverão demonstrar impactos, assegurando maior efetividade e visibilidade política não de forma privada, mas de forma pública que traga a satisfação de quem recebe e/ou é beneficiado por esta ação. Se entendermos política (de forma simplificada) como a tomada de decisão diante de fenômenos para uma ação sobre a realidade, podemos inferir, sinteticamente que as políticas públicas correspondem a um conjunto de princípios, diretrizes e medidas que visam atender situações ou questões coletivas, reconhecidas como de interesse público e que, por sua vez, exigem uma forma de organização que as viabilize articuladamente entre a esfera governamental e não-governamental. Nesta perspectiva, finalizamos sugerindo que as políticas públicas compreendem o estabelecimento de um novo tipo de relacionamento entre a sociedade e o Estado para além da garantia do acesso a bens e serviços, pois implicam a construção de novos mecanismos de democratização e participação social. Estes mecanismos permitiriam tanto a definição de quais bens e serviços são necessários para serem implementados, como também, compreender esta complexa dinâmica societária estabelecendo novos mecanismos de sociabilidade e política, podendo materializar-se em novos procedimentos de ação, mas pergunta-se: seria isto possível sem uma maior clareza do que se entende por público? REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A condição humana. 5.ed., trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. 3.ed., trad. Marco Aurelio Nogueira, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 7 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. DONAHUE, John D. Privatização: fins públicos, meios privados. trad. José Carlos Teixeira Rocha, Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar, 1992. HABERMAS, Jürgen, Mudança Estrutural da Esfera Pública. trad. Flávio Kothe. 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