Miscigenando o Círculo do Poder: Ações Afirmativas, Diversidade

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MISCEGENANDO O CÍRCULO DO PODER:
AÇÕES AFIRMATIVAS, DIVERSIDADE RACIAL E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA
RESUMO
Este artigo apresenta uma defesa da constitucionalidade de cotas raciais no serviço público a
partir da reconstrução de um argumento geralmente defendido por aqueles que são contrários a
essas medidas governamentais. Muitos atores sociais afirmam que essas iniciativas são
inerentemente problemáticas por causa da miscigenação do povo brasileiro, o que é visto como
um empecilho à identificação de seus beneficiários. Eles também asseveram que o amalgamento
racial e cultural permitiu a construção de uma moralidade pública que possibilita a construção de
relações raciais harmônicas. Argumenta-se aqui que o povo brasileiro pode ser miscigenado, mas
o grupo que controla a vasta maioria das instituições públicas e privadas do país é racialmente
homogêneo. Essa estratificação é produto de processos de exclusão social sistemática de
brasileiros de ascendência africana e ameríndia. Utiliza-se o conceito substantivo de diversidade
para a defesa da miscigenação dos círculos do poder por meio de ações afirmativas, o que deve
ser visto como um requisito para o avanço da democratização da sociedade brasileira.
Palavras-chave: ações afirmativas, miscigenação, diversidade, igualdade
ABSTRACT
This article advances a defense of racial quotas in public employment by reverting the logic of a
common argument commonly defended by opponents of these policies. Many of them claim that
racially conscious measures are inherently problematic because it is extremely difficult to
identify their beneficiaries. They also claim that racial and cultural amalgamation allowed the
construction of public morality that encourage harmonious race relations. This paper claims that
racial mixing may be a characteristic of the Brazilian people, but those who control most social
institutions belong to the same racial group. This stratification is the product of various processes
of social exclusion that affect those of African and Amerindian descent. By using the idea of
diversity, the author defends the miscegenation of the circles of power in order to foster the
democratization of Brazilian society.
Keywords: affirmative action, racial mixing, diversity, equality.
Introdução
1
Poucos assuntos têm sido tão intensamente debatidos na atualidade como a adoção de cotas
raciais para o acesso a instituições de ensino superior e para cargos públicos (Penteado, 2012;
Minhoto, 2013; Moreira, 2013, 61 - 94). Essa discussão demonstra a necessidade de se pensar o
papel do direito na construção de uma sociedade democrática e racialmente inclusiva no Brasil.
De um lado temos uma narrativa desenvolvida por acadêmicos e juristas baseada na ideia de que
essas iniciativas representam uma grave ameaça à ordem social porque elas promovem a
racialização da nação brasileira. Parte-se do pressuposto de que existe entre nós uma moralidade
pública fundamentada no tratamento igualitário entre grupos raciais, produto de um processo
histórico do amalgamento biológico e cultural que se tornou um elemento central da identidade
nacional (Maggie & Fry, 2004; Gross, 2008). Segundo os defensores desta perspectiva, os
programas de ações afirmativas, além de violarem o princípio da igualdade, geram a
fragmentação social porque eles disseminam o princípio de que as pessoas podem ser
classificadas segundo critérios raciais. Eles acreditam que a racialização dos indivíduos
desconsidera o fato de que os brasileiros não utilizam a raça como um parâmetro para a
construção da identidade pessoal. O reconhecimento da multiplicidade das nossas origens
possibilita a construção de relações raciais cordiais, realidade muito distinta da história social de
outras nações nas quais a discriminação era sancionada pelo direito (Fry, 2007; Fry et al., 2007).
A miscigenação característica da população brasileira estabelece referências culturais a partir das
quais identidades individuais e coletivas são criadas. Isso significa que o povo brasileiro entende
a si mesmo como essencialmente miscigenado; políticas racialistas servem apenas para alterar a
forma como nos compreendemos e nos relacionamos. Os que defendem essa posição acreditam
que o sistema jurídico possui um papel bastante claro em uma democracia: manter os arranjos
sociais que representam o consenso cultural sobre as formas como as relações sociais devem ser
pautadas (Kaufmann, 2006; Duarte, 2007).
Podemos identificar outra posição sobre o papel do direito dentro do debate sobre políticas
públicas que procuram promover a integração de minorias raciais. Ela está centrada na premissa
de que a igualdade constitucional tem uma função essencialmente transformadora, posição que
tem como base a correlação entre o princípio constitucional da isonomia material, o respeito pelo
pluralismo e a defesa da justiça social. Esta visão da igualdade baseia-se na compreensão do
direito como um instrumento de emancipação social, entendimento que oferece parâmetros para a
2
justificação de cotas raciais nas instituições de ensino superior e no serviço público. 1 Os que
advogam esta perspectiva classificam a noção de raça como uma construção social que tem
consequências concretas na vida das pessoas; ela legitima mecanismos discriminatórios que
procuram manter os privilégios sociais da população branca. As consequências do racismo
presente nas relações sociais se estendem por várias gerações porque são fruto de práticas
institucionais que afetam a vida de todos os membros de grupos minoritários ao longo do tempo.2
Argumenta-se que a miscigenação racial não elimina mecanismos excludentes, nem a
concentração do acesso a oportunidades sociais nas mãos daqueles socialmente classificados
como brancos. Para esses autores, o princípio da igualdade opera dentro de uma linha temporal:
ele procura reparar as consequências de processos históricos de exclusão social e também
pretende estabelecer parâmetros para a construção de uma sociedade igualitária (Barbosa, 2005;
Ikawa, 2006; Rocha, 1996).
Este artigo desenvolve um dos argumentos presentes em inúmeras decisões judiciais que
reconheceram a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas: a construção de uma
sociedade igualitária requer a adoção de políticas que procuram promover a inclusão racial.
Defenderei essa posição a partir do conceito de diversidade, um princípio de política pública que
teve origem na jurisprudência norte-americana sobre ações afirmativas. Um dos fundamentos
centrais da noção de diversidade é a ideia de que instituições públicas e privadas devem espelhar
o pluralismo que existe no corpo social, o que facilita a participação dos diferentes grupos nos
processos decisórios, fator legitimador das práticas democráticas.
1
Essa posição tem sido defendida pelos tribunais que reconheceram a constitucionalidade dos programas de ações
afirmativas. Ver, por exemplo. STF, ADPF No. 186, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Relator: Ricardo
Lewandovsky, 2012 (afirmando que a raça deve ser compreendida a partir das consequências concretas da mesma na
vida das pessoas); TJRJ, AC No. 2005.001.27.062, Órgão Julgador: 11ª. Câmara Cível, Relator: Cláudio de Mello
Tavares, 2005 (classificando a raça como um mecanismo como um mecanismo legítimo para a implementação de
políticas distributivas porque esse elemento é utilizado para manter minorias sociais em desvantagem material);
TJRS, AC No. 70013034152, Órgão Julgador: 3ª. Câmara Cível, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino,
25/05/2006 (argumentando que o princípio da isonomia deve ser analisado em perspectiva material, pois a aplicação
pura e simples da igualdade formal permitiria a perpetuação de heranças discriminatórias históricas, que vêm desde a
abolição da escravatura.
2
A compreensão da dimensão temporal da discriminação racial teve um papel importante na argumentação do
Supremo Tribunal Federal na decisão que reconheceu a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas. O
relator reconheceu que as desigualdades entre negros e brancos de reproduzem ao longo do tempo, o que mantém
esse grupo em uma situação de permanente desvantagem social. STF, ADPF No. 186, Órgão Julgador: Tribunal
Pleno, Relator: Ricardo Lewandovsky, 2012.
3
Embora defenda cotas raciais, uma das formas de ações afirmativas, este artigo não
pretende descartar a representação do Brasil como uma nação miscigenada, ideia que muitos
caracterizam como mera manipulação ideológica. Pelo contrário, eu utilizo a noção de
diversidade para defender a miscigenação das posições de poder como um elemento
democratizador da sociedade brasileira. No lugar de uma visão que articula a noção de igualdade
formal e homogeneidade racial para atacar ações afirmativas, eu adoto o conceito substantivo de
diversidade para defender a miscigenação dos círculos de poder. O povo brasileiro pode ser
miscigenado, mas o grupo social que controla as mais variadas instituições brasileiras é
racialmente homogêneo. Dentro dessa perspectiva, o conceito de miscigenação não descreve uma
realidade histórica e social, mas sim um objetivo a ser buscado para se promover a justiça social.
Ele se refere, então, à igualdade constitucional como um princípio historicamente consciente,
como um mecanismo que procura construir uma sociedade na qual todos os grupos raciais estão
devidamente representados no processo decisório. Cotas raciais para homens e mulheres de
ascendência africana e ameríndia não apenas garantem o acesso dos mesmos a milhares de postos
de trabalho, mas também permitem que as decisões da administração pública possam ser tomadas
a partir da perspectiva de todos os que serão afetados por elas.
O conceito de diversidade servirá como base para a construção de um argumento que
articulará princípios da administração pública com os preceitos de igualdade material e justiça
social. Essa correlação nos permitirá demonstrar que a adoção de cotas raciais no serviço público
possibilita o alcance de objetivos centrais do nosso sistema jurídico. Essas iniciativas devem ser
vistas como uma política pública compatível com os princípios da supremacia do interesse
público e o princípio da eficiência administrativa. 3 Portanto, ações afirmativas encontram
fundamento não apenas nos preceitos da igualdade material e na justiça social, mas também nos
parâmetros que regulam a atuação da administração. A primeira parte deste artigo examina os
seguintes pontos: os motivos que levaram instituições públicas e privadas a adotar ações
3
O argumento desenvolvido nesta monografia não pretende ser original. Ele teve um papel central na decisão do
Supremo Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas. Aquele julgado
afirmou que o princípio da diversidade tem um papel importante na construção de uma sociedade democrática ao
possibilitar o acesso de minorias raciais no processo decisório. Isso se torna necessário principalmente em uma nação
na qual a raça determina o acesso a oportunidades acadêmicas e profissionais. STF, ADPF No. 186, Órgão Julgador:
Tribunal Pleno, Relator: Ricardo Lewandovsky, 2012 (“Verifica-se, assim, que a Suprema Corte dos Estados Unidos,
ao assegurar certa discricionariedade às universidades no tocante à seleção de seu corpo discente, o fez tendo em
conta a necessidade de que a busca da heterogeneidade esteja pautada pela correção de distorções histórico-sociais
que atuam como obstáculo à concretização dos valores constitucionais da igualdade substancial.”).
4
afirmativas nos Estados Unidos, o nascimento do conceito de diversidade dentro da
jurisprudência norte-americana e as críticas feitas por liberais e conservadores a esse preceito. A
segunda parte analisa os argumentos utilizados por certos autores para justificar a diversidade
como um elemento importante para o funcionamento de instituições públicas e privadas. Analiso
a seguir os meios como como as ações afirmativas podem contribuir para a realização de
princípios constitucionais que regulam a administração pública.
1 - Emergência e Evolução do Conceito de Diversidade
1.1 - Retórica Racial e Ações Afirmativas nos Estados Unidos
Inúmeras instituições públicas e privadas norte-americanas adotaram programas de ações
afirmativas nos últimos quarenta anos, medida adotada para que minorias raciais pudessem ter
acesso a oportunidades profissionais e acadêmicas que são geralmente monopolizadas por
pessoas brancas. Isso se tornou necessário em função da política oficial de segregação racial
adotada no país, regime que começou a ser gradualmene eliminado a partir da segunda metade do
século passado, embora ainda exista como uma prática social informal (Massey & Danton, 1998).
Esse regime permitia a discriminação sistemática de minorias raciais, o que era justificado pela
compreensão de que o princípio da igualdade não impunha a necessidade de convivência entre
negros e brancos. Segundo o entendimento firmado pela Suprema Corte, aquele mandamento
constitucional garantia a igualdade de direitos civis, mas não implicava a igualdade social, o que
era entendido como a possibilidade de circular nos ambientes tradicionalmente ocupados por
pessoas brancas. Essa interpretação do princípio da isonomia serviu para justificar a completa
marginalização econômica e a separação espacial de afrodescendentes naquela nação; a sociedade
norte-americana instituiu um dos mais brutais regimes de segregação racial da história da
humanidade (Blackmon, 2009).
Essa situação começou a mudar em função de uma série de conjunções sociais e
históricas. Líderes comunitários e cidadãos comuns passaram a questionar a legitimidade da
segregação nos tribunais, instituições que reconheceram gradualmente a validade dessas
demandas. O movimento dos direitos civis possibilitou o desmantelamento do sistema de
discriminação racial, o que foi alcançado por uma advocacia estratégica que tinha como objetivo
eliminar as bases legais do mesmo (Arthur, 2007, 89 - 157; Bell, 2008, p. 19 - 73). A referida
mudança também pode ser parcialmente atribuída às repercussões negativas do regime de
5
segregação racial no plano internacional em um momento no qual os Estados Unidos procuravam
afirmar a posição de líder das sociedades democráticas (Bell, 1979). A manutenção de uma
ditadura racial aparecia como um obstáculo ao alcance desse objetivo, principalmente porque
muitos países africanos estavam engajados na luta pela emancipação política. Tendo em vista
esses interesses das elites políticas e econômicas norte-americanas, o sistema de apartheid que
vigorava naquele país começou a ser paulatinamente descontruído. A criação de ações
afirmativas em certos setores profissionais foi uma das primeiras medidas adotadas por
instituições públicas para eliminar as consequências da estratificação racial naquela sociedade.
Foram implementados programas de cotas para negros como uma medida de proteção contra a
discriminação sistemática sofrida pelos membros desse grupo (Anderson, 2005). Essas medidas
foram expandidas após o fim do sistema de segregação racial legalmente sancionado que ali
vigorava; havia um consenso de que elas eram necessárias para combater tanto as consequências
de séculos de exclusão, como também as diferentes formas de racismo institucional presentes
naquele país. Mas esses programas também começaram a ser adotados voluntariamente,
iniciativas que tinham como objetivo aumentar o número de minoriais em certos quadros
profissionais, medida decorrente da consciência da responsabilidade social das instituições na
luta contra a discriminação racial (Roosevelt Jr, 2006, p. 47 - 116).
Mas o consenso social sobre a necessidade dessas iniciativas começou a se esvaziar na
medida em que setores conservadores elaboraram uma nova ideologia racial em reação aos
ganhos do movimento pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Alguns acadêmicos
formularam uma leitura das relações sociais na sociedade norte-americana que serviria como
fundamento para a construção de uma versão conservadora do ideal de neutralidade racial. Esses
autores propuseram uma interpretação da sociedade norte-americana baseada na representação da
mesma como uma nação formada por uma série de grupos étnicos que possuem uma história
bastante semelhante. Eles foram discriminados em um primeiro momento, mas começaram a ser
assimilados na medida em que internalizaram os valores que estruturam aquela sociedade
(Steinberg, 1989). Esse modelo de interpretação das relações raciais substituiu o conceito de raça
pela noção de etnia, um desenvolvimento teórico que permitiu a desconstrução da existência de
um grupo racial majoritário e detentor de benefícios sociais fechados a minorias. A história norteamericana deixa então de ser interpretada como uma oposição entre negros e brancos para ser
vista como um movimento de conflito político entre diferentes grupos étnicos. Tal retrato dos
6
Estados Unidos começou a ser constantemente utilizado por setores contrários aos programas de
ações afirmativas. Muitos deles passaram a negar a caracterização da história dos negros norteamericanos como um fato significativamente diferente da experiência de grupos étnicos europeus
porque todos eles supostamente enfrentaram uma história de exclusão. Como não se pode falar de
uma maioria branca como um grupo racial identificado com as instituições de poder, também não
se pode falar de negros como um grupo cuja história seja distinta de todos as etnias existentes
naquele país (Lopez, 2006, p. 1001 - 1028).
De forma semelhante ao discurso da democracia da democracia racial no Brasil, essa
narrativa forneceu o susbrato ideológico necessário para a mobilização contra ações afirmativas
nos Estados Unidos. Essas medidas começaram a ser caracterizadas como uma forma de
discriminação reversa porque davam tratamento preferencial a negros, o que constitui, segundo
seus opositores, uma violação do princípio da igualdade. O ideal de neutralidade racial defendido
durante a luta pelos direitos civis tornou-se um meio de condenação de todas as formas de
classificação racial (Brown et al., 2005; Cho, 2009; Powell, 1997). Segundo os defensores dessa
posição, a eliminação das leis discriminatórias criou uma realidade social na qual as pessoas de
diferentes grupos raciais têm as mesmas oportunidades. O reconhecimento da necessidade de
tratamento igualitário entre negros e brancos causou uma mudança considerável nas atitudes
individuais na esfera pública e na esfera privada. Para esses acadêmicos e políticos, a conjunção
desses fatores possibilitou a superação da consciência racial; isso significa que a discriminação
acontecida no passado não afeta mais as oportunidades de minorias no momento presente.
Seguindo o mesmo tipo de raciocínio de acadêmicos e políticos brasileiros, eles começaram a
negar qualquer correlação entre status racial e desvantagem material (Kaufmann, 2005; Powell,
2009).
Essa narrativa racial forneceu as bases para uma campanha de contestação da necessidade
de programas de ações afirmativas como cotas raciais nos Estados Unidos e a constitucionalidade
dos mesmos rapidamente começou a ser questionada nos tribunais. Sendo essas instituições
compostas por agentes que reproduzem discursos dominantes no meio cultural, elas também
incorporaram o discurso da neutralidade racial como princípio de política pública e como
parâmetro de interpretação da igualdade. Geralmente chamado de colorblindness, essa narrativa
prega a neutralidade racial como forma de justiça social, uma posição baseada na premisa de que
7
negros e brancos se encontram nas mesmas condições. Dentro dessa perspectiva interpretativa, o
princípio da igualdade significa tratamento simétrico entre os indivíduos, pois esse mandamento
constitucional tem como função principal proteger pessoas e não grupos sociais. Rejeitando
decisões anteriores que entendiam a igualdade a partir de um ponto de vista emancipatório,
muitos tribunais norte-americanos passaram a argumentar que todas as formas de classificações
raciais são potencialmente perigosas, inclusive aquelas que beneficiam afro-americanos. Para os
que defendem essa posição, a igualdade tem um caráter fundamentalmente procedimental; ela é
um princípio que analisa a racionalidade das distinções entre indivíduos. Baseados neste
raciocínio, certos juristas influentes equipararam programas de ações afirmativas a políticas
racialmente discriminatórias, o mesmo argumento utilizado por atores sociais contrários a essas
iniciativas governamentais no Brasil (Scalia, 1979; Abraham, 1985; Duarte, 2005; Azevedo,
2004).
1.2 - O Conceito de Diversidade na Jurisprudência Norte-Americana
A discussão sobre a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas nos Estados
Unidos sempre esteve centrada na questão da correlação entre o uso de classificações raciais e o
alcance de algum interesse estatal legítimo. Aqueles que defendem essas políticas públicas
sempre apresentaram uma série de argumentos para justificá-las tais como a necessidade de se
remediar a discriminação social, a defesa de um ideal de justiça identificado com a noção de
igualdade de resultados e a criação de modelos que possam inspirar positivamente membros de
minorias raciais. Mas os tribunais norte-americanos começaram a rejeitar essas teses na medida
em que o ideal de neutralidade racial adquiriu maior empatia entre a opinião pública. Essa
doutrina adquiriu status constitucional em uma decisão que considerou a constitucionalidade de
um programa de cotas em uma instituição de ensino superior. A Faculdade de Medicina da
Universidade da Califórnia decidiu reservar um determinado número de vagas para minorias
raciais para tornar seu corpo discente mais diversificado. Um candidato branco questionou a
validade desse programa porque ele supostamente teria sido classificado entre as cem vagas
disponíveis caso a instituição não tivesse implementado cotas raciais.
Nenhum das justificativas acima referidas conseguiu sobreviver ao teste utilizado para
avaliar a constitucionalidade desse programa. O ministro Powell, autor do voto que representou a
opinião majoritária, argumentou que todas as classificações raciais, independentemtente dos seus
8
objetivos, devem ser submetidas à mais rígida forma de escrutínio judicial. Segundo ele,
classificações raciais são sempre perigosas porque desestabilizam a credibilidade das instituições
estatais. Tendo em vista esse raciocínio, ele rejeitou o argumento segundo o qual ações
afirmativas seriam legítimas porque procuram remediar as consequências da discriminação
social. Essa tese não teria legitimidade porque não há como estabelecer uma relação direta entre a
situação presente dos membros de uma minoria racial e os possíveis eventos históricos que teriam
sido responsáveis por ela. O objetivo de remediar discriminação racial só é compatível com o
texto constitucional quando tanto os agentes estatais responsáveis por atos discriminatórios
quanto as suas vítimas podem ser claramente identificados, asseverou Powell. Além disso,
afirmou o ministro, essa tese poderia ser utilizada por todos os grupos étnicos presentes na
sociedade norte-americana porque todos eles tiveram a mesma história social. Recusando a noção
segundo a qual existe uma raça branca oposta a uma raça negra, Powell afirmou não existir uma
maioria branca e uma minoria negra marcada por uma história de opressão, mas sim uma série de
grupos étnicos que lutam pelas mesmas oportunidades sociais.4
Esse retrato da sociedade norte-americana como um mosaico de grupos étnicos que tiveram
a mesma história social serviu para justificar uma interpretação da igualdade de caráter
procedimental. Mais especificamente, ele funcionou como um recurso retórico para defender a
ideia de que negros e brancos encontram-se na mesma situação social, o que justifica uma
compreensão da igualdade como tratamento simétrico. Seguindo essa direção, Powell rejeitou o
argumento segundo o qual ações afirmativas são necessárias para aumentar a representatividade
de minorias em certas posições sociais. Ele asseverou que esse argumento viola o princípio da
igualdade porque classificações raciais não podem ser um fim em si mesmas. Estabelecer
diferenciações entre indivíduos que estão igualmente situados não é nada mais do que pura
discriminação racial, o que contraria os princípios republicanos que sustentam a sociedade norteamericana. Ele alegou também que cotas raciais impedem a competição entre indivíduos que
estão em igualdade de condições. Isso não apenas pode ser caracterizado como uma forma de
discriminação de pessoas brancas, mas também das próprias pessoas negras porque elas são
obrigadas a suportar estigmas sociais em nome do grupo racial (Hunt II, 2005; Dworkin, 2005).
4
Ver Bakke v. Regents of the University of California, 438 U.S. 265 (1978).
9
Mas aquele magistrado não descartou todos os argumentos favoráveis a ações afirmativas.
Powell classificou a construção de um ambiente acadêmico diversificado como a única hipótese
que justifica a utilização de classificações raciais. Ele reconheceu a noção de diversidade como
um princípio suficientemente adequado para alcançar um interesse estatal de grande importância.
Para ele, o conceito de diversidade tem relevância central para a construção de um ambiente
acadêmico capaz de proporcionar o enriquecimento da experiência educacional. Os alunos
poderão interagir e discutir diversos temas com pessoas que possuem experiências sociais
distintas, o que preparará futuros profissionais para atuar em uma sociedade pluralista. Isso
significa que estudantes serão expostos a uma série de experiências sociais e pontos de vistas que
estariam ausentes em uma sala de aula racialmente homogênea. Entretanto, a criação de um
ambiente acadêmico diversificado não pode ser criado pela utilização de cotas raciais porque elas
violam a igualdade ao impedir que todas as pessoas disputem as mesmas vagas. As universidades
podem considerar a raça no processo de seleção dos candidatos, mas desde que outros fatores
tenham o mesmo peso, perspectiva que gerou grande crítica por parte de acadêmicos (Farell,
2009; Guinier, 2000).
A Suprema Corte dos Estados Unidos voltou a caracterizar a diversidade como um
interesse estatal que justifica o uso de classificações raciais no julgamento sobre a
constitucionalidade de ações afirmativas na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan.
Esse princípio foi novamente classificado como um valor importante em uma sociedade
composta por uma infinidade de grupos sociais. Mais do que um procedimento que procura expor
alunos universitários a uma multiplicidade de experiências culturais, essa segunda formulação de
diversidade tem um caráter notoriamente substantivo. A Suprema Corte considerou a diversidade
como um interesse estatal que tem como objetivo a democratização do acesso ao poder: ações
afirmativas são compatíveis com o princípio da igualdade porque elas podem contribuir para a
efetivação do direito de participação e representação no processo decisório. O conceito de
diversidade serve então para garantir um funcionamento mais democrático das instituições sociais
como um todo ao permitir que os interesses de diversos grupos que compõem uma nação sejam
considerados nos vários processos de deliberação.5
5
Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003). Os programas de ações afirmativas na Universidade de Michigan foram
eliminados em função de um plebiscito que proibiu ações afirmativas naquele estado no ano de 2009.
10
De acordo com aquele órgão julgador, a diversidade presente no ambiente acadêmico serve
como ponto de partida para a existência de instituições mais democráticas. Esse processo será
mais legítimo se refletir a pluralidade existente dentro da realidade social. Para a ministra que
escreveu o voto majoritário, a criação de uma liderança que reflete a diversidade presente na
sociedade aumenta a credibilidade dos órgãos públicos e privados, pois afasta a percepção de que
o jogo democrático representa apenas os interesses de um grupo social específico. Isso significa
que as instituições devem procurar selecionar candidatos de diversos estratos sociais e não apenas
aqueles que são economicamente ou socialmente privilegiados. 6 A formulação de diversidade
presente nessa decisão apresenta parâmetros mais robustos para a defesa de programas de ações
afirmativas baseados na raça dos indivíduos. Ao defender a criação de uma liderança política
representativa, a decisão sob análise reconhece a esfera pública como um campo de luta de
dominação social. Por isso instituições públicas e privadas precisam recrutar candidatos de
diferentes seguimentos sociais para que eles possam formar uma liderança que seja socialmente
representativa. Segundo a Suprema Corte dos Estados Unidos, a representação e a participação de
todos os grupos étnicos e raciais na vida pública devem ser vistas como um interesse estatal de
grande importância. A diversidade surge então como um valor constitucional porque permite a
cooperação entre diferentes grupos raciais na criação de uma sociedade atenta às particularidades
da experiência social dos diferentes grupos. Desse modo, a consideração da raça se justifica não
apenas em função da diferença de opiniões, mas principalmente porque promove a integração de
grupos que têm sido historicamente excluídos de aspectos essenciais da vida pública (Estlund,
2005, p. 15 - 20).
1.3 - Crítica Jurídica e Acadêmica do Conceito de Diversidade
“Para que se possa criar um grupo de líderes que tenha legitimidade aos olhos dos cidadãos, torna-se necessário
abrir o caminho para a liderança para indivíduos talentosos e qualificados de todos os grupos raciais e étnicos. Todos
os membros de nossa socieade heterogênea precisa ter confiança na abertura e integridade das instituições
educacionais que proporcionam o treinamento profissional. Como as Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu,
as faculdades de direito não podem cumprir o seu papel de forma efetiva de forma isolada das instituições sociais
com as quais ela interage. O acesso à educação jurídica (e consequentemente ao exerício do direito) precisa incluir
indivíduos talentosos e qualificados de todas as raças e etnias de forma que todos os membros de nossa sociedade
heterogênea possam ingressar nas instituições que proporcionam o treinamento necessário para o sucesso nos
Estados Unidos.”
6
11
A noção de diversidade tem sido atacada por detratores e defensores de ações afirmativas.
Conservadores alegam que ela está baseada na noção equivocada de que grupos raciais possuem
opiniões diferentes por causa da cor da pele. Essa premisa não apenas reforça concepções
essencialistas de identidade racial, mas também reproduz a ideia de que opiniões de grupos
minoritários são sempre racializadas. Eles também classificam ações afirmativas como medidas
que reforçam a estigmatização porque reproduzem a percepção de que minorias não foram
selecionadas em função da capacidade acadêmica. Eles afirmam que o interesse na diversidade
serve apenas para mascarar políticas reparatórias. Iniciativas dessa natureza discriminam pessoas
que não têm culpa por atos cometidos por seus antepassados. Para esses atores sociais, o conceito
de diversidade não pode ser adequadamente sustentado porque não se compara a outros interesses
estatais tidos como suficientemente persuasivos como, por exemplo, a segurança nacional ().
Progressistas atacam o conceito de diversidade porque não o consideram como uma
justificação adequada para ações afirmativas. Segundo o entendimento desses indivíduos, essas
medidas devem ser vistas como iniciativas que procuram atacar o racismo estrutural que existe na
sociedade norte-americana. Mais do que isso, eles defendem uma compreensão substantiva de
igualdade, princípio que justifica medidas reparativas e distributivas (Bell, 1991). A noção de
diversidade funciona então como um artifício ideológico que ignora contextos sociais e
históricos; a sua lógica apenas considera os benefícios futuros que pode causar, ignorando então a
necessidade de corrigir as consequências de práticas discriminatórias (Bell, 2003). Esse
argumento impede o reconhecimento das várias formas como raça e classe colocam minorias em
uma situação de desvantagem, eliminando, portanto, a necessidade de mudanças estruturais na
sociedade norte-americana. Esse sentido estrito de divesidade serve apenas para desvituar o
sentido substantivo da noção de igualdade, princípio que justifica medidas baseadas na
necessidade de se remediar os efeitos da estratificação racial. Essa crítica tem sido elaborada
principalmente por aqueles autores que desenvolveram a teoria da anti-subordinação, um
princípio da interpretação da igualdade que procura recuperar a dimensão substantiva desse
mandamento constitucional (Fiss, 1976; Karst, 1976).
2
- Diversidade Como Princípio de Política Pública
O conceito de diversidade passou a designar uma série de diferenças referentes a traços
identitários que afetam a forma como interações sociais se desenvolvem em uma sociedade.
12
Essas distinções estão baseadas em fatores que são frequentemente utilizados para designar o
lugar social de grupos minoritários, reproduzindo então relações assimétricas de poder. Elas
designam uma coletividade cujos membros possuem uma experiência social específica em função
dos processos de estratificação nelas fundamentados. Embora essas categorias sejam socialmente
construídas, elas são interpretadas como diferenças reais entre grupos. Os seus membros são
sistematicamente excluídos de oportunidades, processos que têm como objetivo a manutenção do
poder social nas mãos de grupos majoritários (Bell, 2007, p.4). Dentre outros fatores, o conceito
de minoria passou a ser algo socialmente relevante por causa dos movimentos sociais de
libertação ocorridos na segunda metade do século passado em vários lugares do mundo. Grupos
sociais excluídos questionaram a legitimidade de práticas discriminatórias responsáveis pela
opressão social, processo que ocasionou uma mudança significativa na situação dessas classes de
indivíduos. Muitos deles conseguiram alcançar a igualdade formal em relação aos grupos
dominantes, apesar da persistência de práticas discriminatórias nas interações cotidianas. Em
alguns casos, esses movimentos mobilizaram vários grupos em torno da tentativa de se criar uma
sociedade mais inclusiva. A luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos pode ser vista
como o exemplo paradigmático desse processo (Skrentny, 2002).
Como forma de contrabalançar as consequências de processos históricos de discriminação
racial, instituições públicas e privadas adotaram iniciativas que procuram garantir o acesso de
minorias a oportunidades acadêmicas e profissionais. Como observado anteriormente, essas
medidas, no contexto norte-americano, tem agora um foco integracionista; elas não se apresentam
como políticas que procuram promover reparação histórica. Os argumentos utilizados para
justificar ações afirmativas na jurisprudência foram transformados em princípios que agora guiam
a implementação de programas de ações afirmativas no setor público e no setor privado. Mais do
que uma simples preocupação em seguir as normas legais impostos pela jurisprudência, a noção
de diversidade passou a representar a forma como diferentes agentes sociais devem compreender
a sociedade.
Embora a diversidade como princípio jurídico e como prática social tenha sido atacada por
diferentes setores sociais, esse preceito se transformou em uma verdadeira política social por
segmentos dos setores públicos e privados. Mais do que uma iniciativa que tem como objetivo
remediar um passado de discriminação, a diversidade passou a ser vista como uma estratégia que
13
pode trazer ganhos consideráveis para as instituições que as empregam. Essas vantagens estão
relacionadas com a melhoria da competividade das empresas no mercado, com a melhora das
respostas às demandas sociais feitas a essas instituições e com o dever moral de promover a
inclusão social. Um dos elementos mais importantes para a mudança da lógica das ações
afirmativas teve inicio com a percepção de que o desempenho das empresas privadas depende da
capacidade das mesmas em responder às demandas do pluralismo no plano nacional e
internacional. Esse argumento está fundamentado na premissa de que a diversidade pode facilitar
a operacionalização e aumentar a lucratividade dos negócios. Isso porque a globalização das
economias exige a contratação de pessoas que tenham a capacidade de compreender as
particularidades culturais e políticas dos diferentes mercados. Uma força de trabalho racialmente
e culturalmente homogênea seria menos capaz de tratar questões que podem surgir dos conflitos
gerados pelo pluralismo cultural. Os diferentes grupos sociais têm interesses e exigências
distintas e os que não possuem competência cultural para negociar com eles enfrentam grandes
dificuldades. A diversidade adiciona um valor considerável às empresas que as empregam por
causa do aumento de sua competividade no mercado (Cox & Blake, 1991, p. 45 - 55).
A prática da diversidade também fez com que ela passasse a ser vista como algo positivo do
ponto de vista da eficiência gerencial. Para alguns, ela representa uma vantagem importante, pois
permite que as instituições respondam aos interesses de diversos grupos da forma mais efetiva
possível. Os que escrevem sobre esse tema afirmam que um corpo de funcionários diversificado
melhora o desempenho da instituição ao incrementar a capacidade de análise e solução de
problemas. Esses estudos demonstram que as perspectivas trazidas por pessoas de diferentes
origens sociais e com experiências diversas fazem com que a capacidade institucional de solução
de problemas seja superior àquelas empresas cujos corpos de funcionários são uniformes.
Empresas que congregam pessoas de diferentes raças, de ambos os gêneros, de orientações
sexuais diversas criam os meios para que o surgimento e troca de novas ideias seja aumentado, o
que é algo particularmente desejável em um mercado no qual grupos minoritários adquirem um
poder de compra cada vez maior (Hawkings, 2012, p. 88 - 90).
Além das vantagens decorrentes da eficiência gerencial dos negócios, a diversidade
também tem sido adotada por instituições privadas com base na noção de responsabilidade social.
Além das vantagens relacionadas com competividade e eficiência, a promoção da diversidade
14
começou a ser vista como um dever moral, principalmente em sociedades pluralistas. Segundo
esse raciocínio, muitos autores interpretam a diversidade como um mecanismo importante para a
realização da responsabilidade social das corporações, sendo que elas devem considerar o
impacto social das suas atividades. A incorporação de pessoas de diversos segmentos sociais
possibilita o acesso a oportunidades profissionais, além de fazer com que elas participem da
tomada de decisões que têm o potencial de afetar toda a sociedade. A governança corporativa se
aproxima da ideia de que as suas decisões devem ser tomadas por pessoas que representam a
variedade de grupos e de interesses que existem na realidade social. Portanto, a justificação da
prática da diversidade não se restringe ao caráter reparatório das justificações de ação afirmativa,
mas se justifica pelo seu caráter inclusivo (Hawkings, 2012, p. 88 - 90))
3
- Ações Afirmativas, Inclusão Racial e Sociedade Democrática
3.1 - Discriminação Racial e Ações Afirmativas
Inúmeros estudos sociológicos e históricos demonstram que afrodescendentes sofrem as
consequências de processos discriminatórios que os mantêm em uma situação de perene
marginalização social no Brasil. Negros são vítimas preferenciais da violência policial (Signoreto
& Schiltter, 2014), eles permanecem menos tempo na escola (Nascimento & Nascimento, 2002,
p. 105, -156), eles ganham menos da metade do salário de homens brancos (Telles, 2005, p. 107 139), e são vítimas constantes de injúria racial (Guimarâes, 2004). Essa realidade aparece como
fruto da permanência de estereótipos culturais que legitimam práticas excludentes em diversas
esferas da vida social, processo mascarado pela influência da noção de neutralidade racial no
âmbito cultural e político (Hanchard, 1994, p. 31 - 76; Hasenbalg, 2005, p. 252 - 275). A
rearticulação dos movimentos sociais após a restauração da democracia, o afastamento gradual do
discurso oficial da democracia racial e a emergência de uma nova cultura constitucional
possibilitaram a construção de uma agenda política voltada para a questão da justiça racial nas
três últimas décadas. Várias instituições estatais adotaram programas de ações afirmativas que
têm como objetivo a facilitação do acesso de afrodescendentes a instituições de ensino superior.
O debate jurídico sobre a constitucionalidade dessas iniciativas governamentais aprofundou-se
ainda mais com a adoção de cotas raciais nas seleções para o serviço público.
A importância do debate sobre ações afirmativas requer uma definição precisa dessa
política pública, bem como de seus objetivos e de sua justificação constitucional. Esse termo
15
designa um conjunto de medidas utilizadas por instituições públicas e privadas que visam
incrementar o acesso de grupos minoritários a oportunidades acadêmicas e profissionais. Elas
servem como um instrumento que procura suplantar os problemas gerados pela existência de
mecanismos discriminatórios que impedem a inclusão social desses grupos, mecanismos cuja
operação nem sempre podem ser reconhecidos e eliminados por normas jurídicas. Tais processos
restringem ou impedem o acesso a essas oportunidades, o que subverte o ideal democrático de
que todos os grupos sociais sejam tratados com a mesma consideração e respeito. As ações
afirmativas surgem como uma política social que procura manter uma representação significativa
de representantes de grupos minoritários nas posições de poder existentes dentro da sociedade.
Como uma prática institucional, essas medidas instituem mecanismos que utilizam os mesmos
critérios responsáveis pela exclusão social para garantir a inclusão de grupos minoritários.
Agentes públicos e privados conferem um tratamento preferencial a grupos tradicionalmente
discriminados ao utilizar critérios como raça e gênero para a promoção da inclusão. Em relação
aos seus objetivos, as ações afirmativas procuram construir um futuro igualitário ao concorrer
para a realização da justiça social, o que pode acontecer pela garantia da igualdade de resultados.
No lugar de uma concepção de igualdade como tratamento simétrico, essas medidas incorporam
uma noção de igualdade como um princípio redistributivo. Os agentes públicos e privados que
implementam essa forma de política não discriminam de membros de um grupo para garantir
privilégios a outros: eles atuam para que grupos minoritários tenham acesso a oportunidades que
estão geralmente fora do alcance dos mesmos. Ações afirmativas como cotas raciais partem então
da noção de igualdade de resultados, um princípio que justifica medidas que têm por objetivo
garantir que membros de diversos grupos tenham o mesmo nível de sucesso social (Bolyan, 2002,
p. 117 - 123; Crosby, 1991, p. 13 - 18).
Como sugerido anteriormente, essa forma de política pública tem sido defendida a partir de
duas perspectivas. Ações afirmativas são justificadas a partir do princípio de justiça reparativa,
pois elas procuram remediar as consequências de injustiças históricas que se perpetuam no tempo
presente. Essa iniciativa procura então anular os efeitos contemporâneos dos mecanismos
discriminatórios que criaram uma relação de subordinação de um grupo em relação a outro.
Ações afirmativas também encontram fundamentação no conceito de justiça redistributiva, pois
esse preceito procura alocar oportunidades sociais tendo em vista a situação real dos indivíduos
no meio social. De certa forma, essas duas dimensões da justiça estão relacionados porque elas
16
levam em consideração as diferenças estruturais existentes entre grupos sociais (Rosenfeld, 1985,
p. 860 - 865). Mas essas medidas de inclusão racial também têm sido caracterizadas como uma
política de caráter integracionista. O objetivo de se construir uma sociedade na qual pessoas de
diferentes grupos sociais estejam adequadamente representadas nas posições de poder aparece
aqui como um ideal político e moral a ser alcançado. Mais do que reparar os erros do passado
histórico, pretende-se criar mecanismos para que as instituições sociais espelhem o pluralismo
social, o que contribui para a legitimidade das instituições públicas e privadas (Estlund, 2005, p.
2 - 40).
A adoção de programas de ações afirmativas nas instituições brasileiras de ensino superior
tem surtido efeitos extremamente positivos; podemos dizer que essa é uma política pública
extremamente bem sucedida. Ao contrário do que seus opositores alegavam, as cotas raciais
trouxeram benefícios reais para os seus beneficiários e para as instituições que as adotaram. Os
relatórios divulgados por muitas universidades demonstram que o rendimento médio dos alunos
cotistas está, em muitos casos, acima da média do rendimento dos alunos que entram no
vestibular pelo processo tradicional. Mais do que isso, esses estudos demonstram que o
desempenho dos alunos cotistas é superior em muitos dos cursos mais concorridos das
universidades brasileiras. Vemos então que esses alunos têm um elevado desempenho, realidade
que desmente o argumento de que as cotas raciais e sociais iriam contribuir para a queda da
qualidade de ensino das universidades. Os mesmos estudos também indicam que o índice de
evasão dos alunos cotistas também é menor, uma possível evidência do comprometimento dos
mesmos com a oportunidade social que lhes foi conferida.7
3.2 - Ações Afirmativas e Igualdade Constitucional
Programas de ações afirmativas foram introduzidos no Brasil nos últimos quinze anos
como um mecanismo que procura facilitar o acesso de minorias raciais a universidades e ao
serviço público. Segundo os defensores dessas iniciativas, o nosso texto constitucional provê
amplo fundamento para a adoção das mesmas, um documento legal que incorpora a noção de
7
O desempenho acadêmico de alunos cotistas tem sido objeto de vários estudos nos últimos anos. Ver, por exemplo,
Jacques Velloso, Cotistas e não-cotistas: rendimento dos alunos da Universidade de Brasília. Cadernos de Pesquisa,
v. 39, n. 137, p. 621 - 644, 2009; MATTOS, W.R. Cotas para afro-descentes na Universidade do Estado da Bahia:
uma exposição comentada. In: FERES JÚNIOR, J.; ZONINSEIN, J. (orgs.) Ação afirmativa e universidade:
experiências nacionais comparadas. Brasília: Editora da UnB, 2006. p 166-182;
17
igualdade material, além de estabelecer a erradicação das desigualdades sociais como um
objetivo central da nossa ordem constitucional. O sistema jurídico brasileiro consagra dois
sentidos do princípio da igualdade: a igualdade formal e a igualdade material. O primeiro
determina o tratamento igualitário entre todos os membros da comunidade política, mandamento
que reconhece não apenas o mesmo status jurídico, mas também comanda o igual respeito e
consideração de todos eles. A igualdade formal baseia-se no pressuposto do universalismo das
normas jurídicas, o que afirma a necessidade de que elas sejam dirigidas à universalidade dos
sujeitos de direito. Por outro lado, a igualdade material refere-se à isonomia proporcional entre as
pessoas, pois deve-se reconhecer as diferenças estruturais que existem entre elas de forma que
uma paridade mínima possa ser alcançada. Essa concepção substantiva da igualdade reconhece a
existência de classes de pessoas que estão em uma situação de desvantagem estrutural. Em
função disso, as instituições estatais devem promover políticas públicas que promovam a inclusão
social desses grupos, o que aparece como uma obrigação estatal. Dessa forma, o conceito de
igualdade material está diretamente relacionado com o princípio da justiça social, pois o primeiro
funciona como um mecanismo para a realização do segundo. Mais uma vez, não se pode esquecer
que o texto constitucional estabelece a erradicação das desigualdades como um objetivo central
da nossa ordem jurídica; isso significa que a eliminação das disparidades sociais é algo que pode
plenamente ser classificado como um interesse público (Silva, 2011, p. 211 - 221). As políticas
de ação afirmativa têm um papel importante no alcance desse objetivo, pois elas garantem acesso
a oportunidades acadêmicas e também promovem a integração social de minorias raciais no
mercado de trabalho.
Essas formulações do princípio da igualdade adquirem pleno sentido quando
correlacionadas com a filosofia política subjacente à nossa Constituição Federal.
O atual
paradigma constitucional estabelece a construção de uma sociedade igualitária como um dos
objetivos centrais da ordem jurídica. Esse compromisso expressa um comprometimento com uma
concepção substantiva da cidadania, o que serve como justificação para a adoção de políticas
públicas que têm a função de promover a inclusão social. Esse objetivo faz parte de um programa
de transformação baseado na articulação de diferentes categorias de direitos e na
responsabilidade das instituições estatais com a promoção da justiça. Esse projeto compreende o
princípio da igualdade como um mecanismo de emancipação que procura eliminar os processos
de estratificação decorrentes das correlações entre status cultural e de status material. Parte-se do
18
pressuposto de que o caminho para uma sociedade justa requer o combate dos processos culturais
que legitimam práticas discriminatórias, pois esses dois elementos reforçam a estratificação
social. O caráter transformador do nosso texto constitucional implica uma opção política pela
construção de uma sociedade igualitária, o que significa um distanciamento de uma compreensão
do estado como um ator politicamente neutro. Consequentemente, as instituições estatais devem
sempre procurar integrar grupos sociais, uma exigência do nosso sistema constitucional (Klare,
1998; Barroso, 2009, p. 51 - 91).
Recentemente, os tribunais brasileiros começaram a enfatizar esse caráter transformador
da isonomia constitucional. Mais do que fundamentar o tratamento simétrico e também políticas
redistributivas, esse mandamento constitucional funciona como um instrumento de transformação
social. Para que ela seja possível, as instituições estatais devem abordar a isonomia como um
princípio que procura articular demandas de redistribuição e demandas de reconhecimento.
Partindo da premissa de que existe uma relação direta entre status cultural e desvantagem
material, esses tribunais afirmam a necessidade de mudar práticas sociais que reafirmam ao
mesmo tempo estereótipos negativos e exclusão material. O compromisso constitucional com a
justiça social e com o pluralismo justificam iniciativas que têm como objetivo promover a
emancipação social. Nesse sentido, a igualdade funciona como um dispositivo constitucional que
procura eliminar práticas que promove a subordinação de grupos minoritários.8
3.3 - Diversidade como Instrumento de Construção da Igualdade
As considerações anteriores demonstram uma plena compatibilidade entre os preceitos que
regem a nossa ordem constitucional e o princípio da diversidade. A prática da diversidade tem
importância instrumental para a construção de uma sociedade igualitária ao promover acesso de
minorias raciais ao processo de decisão. Isso permite a realização do ideal do reconhecimento ao
possibilitar que um número maior de membros desse grupo faça parte das instituições que criam
normas destinadas a regular a sociedade como um todo. A diversidade possibilita a construção de
Ver, por exemplo, TRF – 4a. Região, AC No. 2000.71.00.009347-0/RS, Relator: João Batista Pinto Silveira, DJU
10.08.2005 (afirmando que a Constituição Brasileira tem um compromisso com a cidadania do povo brasileiro, o que
é atestado pela consagração do princípio da dignidade humana como princípio constitucional fundamental); TJRS,
AC No. 70016239949, Órgão Julgador: 7ª. Câmara Cível, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, 20.12.2006 (negando
provimento à apelação que procurava anular decisão que reconheceu uma união homossexual como união estável sob
o argumento de que a Constituição Federal deve reconhecer novas perspectivas culturais e relações sociais,
salvaguardando assim os direitos de todos os cidadãos à busca de tutela jurisdicional).
8
19
políticas públicas que atendem as demandas dos diversos setores da nação brasileira, pois a
implementação de medidas universais não são capazes de promover a inclusão racial. A
promoção desse ideal é muitas vezes frustrada porque agentes estatais são socializados a partir de
uma cultura pública que torna as desigualdades sociais invisíveis (Souza, 2009). A Constituição
Federal estabelece a erradicação da marginalização social e a construção de uma sociedade
solidária e justa como objetivos centrais do nosso sistema jurídico. Devemos então responder a
questão se ações afirmativas que visam promover a inclusão racial por meio de cotas em
concursos públicos podem ser caracterizadas como um interesse estatal.
A administração pública é regida por uma série de princípios jurídicos, entre eles o da
primazia do interesse público, o que pode ser genericamente pensado como a defesa da prioridade
do interesse da comunidade sobre interesses privados. Esse preceito tem algumas referências de
grande importância. A primeira delas decorre do compromisso legal com a promoção do bem
comum, um dos objetivos centrais da nossa ordem constitucional. O princípio do interesse
público está centrado na premissa de que a vida dentro de uma sociedade política democrática
dever ser pautada pela precedência do bem-estar da coletividade sobre a defesa de benefícios para
alguns. Esse regime político implica o exercício coletivo do poder por meio de normas jurídicas,
sendo que elas determinam as formas como as instituições estatais devem atuar para atender os
objetivos da comunidade. O estado no atual paradigma constitucional representa uma instância
que, além de ter a atuação pautada por normas jurídicas, também precisa trabalhar para alcançar
os propósitos estabelecidos pelos cidadãos por meio de seus representantes. Tais intenções são
vistas como o conjunto de ações estatais que procuram atender as necessidades humanas nas suas
variadas expressões; elas adquirem conteúdo específico por meio das categorias de direitos
fundamentais presente no texto constitucional. O compromisso estatal com esses propósitos
presta legitimidade ao exercício da operação das instituições estatais, órgãos que devem
necessariamente partir da ideia da prevalência dos objetivos públicos sobre os interesses
privados. Esses interesses pautam a atuação dos órgãos governamentais, como também a relação
dos mesmos com os cidadãos. Na verdade, a atuação da administração pública só pode ser
legítima quando há plena consonância com os interesses dos cidadãos expressos nas normas
jurídicas (Carvalho, 2008, p. 61 - 63).
20
O princípio da eficiência que regula a administração pública impõe o dever ao agente
estatal de oferecer seus serviços com a maior presteza e rendimento possíveis. Mais do que um
preceito que observa a legalidade dos atos públicos, a eficiência determina que o desempenho dos
agentes estatais possa atender as necessidades da comunidade da melhor forma. Alguns
interpretam esse princípio como um dever de otimização dos recursos públicos, uma exigência
pautada na noção de que as funções estatais devem ser exercidas da forma mais satisfatória
possível. Mas como parte da doutrina observa, o princípio da eficácia não deve ser interpretado
apenas segundo os parâmetros da racionalidade econômica. Ele implica também a eleição dos
meios mais efetivos para a efetivação dos interesses da comunidade. Assim, o princípio da
eficácia da administração pública deve ser interpretado também à luz dos direitos fundamentais e
dos objetivos do nosso sistema jurídico como a afirmação da justiça social. (Justen Filho, 2012,
p. 182). Se por um lado ele guarda relações próximas com o princípio da economicidade,
exigindo então o uso racional dos recursos públicos, ele também se relaciona com o princípio da
moralidade ao ter como propósito a realização dos interesses da coletividade da forma mais
adequada. A otimização dos resultados e a maximização das finalidades funcionam então como
elementos que podem racionalizar a atividade estatal prestando-lhe parâmetros para a realização
do interesse público. Em resumo, o princípio da eficácia congrega interesses de racionalização da
atividade estatal e também o interesse em prestar o máximo de garantias aos administrados
(Carvalho, 2012, p. 185 - 188.
Sabemos que a cultura política moderna está centrada na premissa de que o poder estatal
deve ser sempre regulado pelo direito, sendo que o exerício desse poder só possui legitimidade na
medida em que pretende alcançar uma finalidade pública. As funções das entidades estatais estão
necessariamente vinculadas às normas que regulam o poder político, sendo que elas adquiriram
novos sentidos nos diferentes paradigmas constitucionais. Atualmente, a inclusão de grupos
tradicionalmente excluídos foi erigida como um interesse público, pois a construção de uma
sociedade igualitária é um objetivo central da nossa ordem jurídica. Podemos afirmar então que a
integração de minorias raciais no mercado de trabalho pode ser categorizada como um interesse
estatal legítimo (Marques Neto, 2011, p. 88 - 99; Mello, 2014, p. 99 - 102). Os que classificam as
cotas raciais no serviço público como inconstitucionais argumentam que a meritocracia deve ser
o parâmetro a ser seguido para a seleção de funcionários. Embora essa afirmação seja plausível,
ela não condiz com a complexidade das funções estatais em uma realidade que está pautada pelo
21
pluralismo social. A consecução dos interesses públicos não pode ser restrita à consideração da
meritocracia porque o alcance dos mesmos depende de outros fatores que estão além da
consideração desse preceito. As instituições estatais devem encontrar parâmetros legítimos para a
distribuição de oportunidades sociais como o acesso a instituições de ensino superior e ao serviço
público. Aquelas pessoas que vão servir os interesses da comunidade precisam ter uma formação
que, muitas vezes, está além do conhecimento necessário para passar em processos de seleção. O
nosso país é composto de uma diversidade imensa de comunidades que formulam demandas
distintas e as pessoas que são selecionadas para vagas para cargos públicos devem estar
preparados para servi-los. Essa preparação não se resume ao conhecimento acadêmico. A
diversidade racial pode ter um impacto significativo na qualidade e eficiência do serviço
oferecido ao público.
A análise da diversidade indica a grande relevância que a adoção de cotas raciais pode ter
tanto para a realização do princípio da supremacia do interesse público como para a realização do
princípio da eficiência. Ações afirmativas possibilitam a consecução do primeiro porque a
administração pública, ao incluir um número maior de afrodescendentes, promove a inclusão
racial de grupos que são severamente discriminados no mercado de trabalho. Essas iniciativas
governamentais também instrumentalizam o princípio da eficiência ao criar um grupo de
funcionários públicos que são mais capacitados para analisar e apresentar soluções para as
demandas que o poder executivo precisa responder. Se a diversidade aumenta a capacidade
operativa das instituições privadas, ela tem o potencial de produzir o mesmo efeito no setor
público. Podemos imaginar situações nas quais a adoção de cotas raciais pode tornar a prestação
do serviço público muito mais eficiente. Muitas pessoas classificariam um concurso para a
seleção de profissionais de saúde como um processo que deveria recrutar apenas aquelas pessoas
que têm o melhor desempenho nos testes de seleção. Isso demonstraria que elas são as mais
qualificadas para exercer os serviços em questão. Não há dúvidas de que as instituições estatais
devem procurar profissionais competentes, mas os que defendem essa posição ignoram as
diferentes demandas que surgem em função do pluralismo social que existe no nosso país. A
meritocracia não possibilita a seleção das pessoas mais competentes para realizar todas as
funções estatais (Guimarães, 2013, p. 165 - 196).
22
Podemos facilmente imaginar situações nas quais a adoção de cotas raciais no serviço
público pode contribuir para a realização de finalidades públicas particularmente importantes. É o
caso da promoção da igualdade de acesso de minorias raciais a serviços de saúde pública, uma
garantia que tem óbvia importância para o bem-estar desse grupo populacional. Pesquisas
demonstram que negros e pardos sofrem as consequências do racismo institucional presente nos
serviços de saúde, fato que expõe pessoas desse segmento populacional a problemas que podem
trazer danos consideráveis aos mesmos. Embora a qualidade dos serviços públicos de saúde no
Brasil afete negativamente a população como um todo, a raça dos indivíduos surge como um
obstáculo adicional ao acesso a tratamento médico, mesmo quando todas as outras variáveis são
eliminadas. Em função disso, a maior presença de profissionais negros nesse setor deve ser vista
como uma finalidade importante da administração pública porque isso melhorará a qualidade do
serviço médico fornecido a essa população (Gomes, 2013; Coimbra & Santos, 2000; Maia:
Souza, Mendes, 2012).
Podemos imaginar ainda outra situação na qual a diversificação racial do corpo de
funcionários públicos pode também melhorar a qualidade dos serviços prestados a população.
Sabemos que afrodescendentes são vítimas constantes de discriminação racial na nossa
sociedade, mas poucas pessoas foram condenadas por crimes de racismo até o presente momento.
A ideologia da democracia racial ainda influencia consideravelmente os membros do sistema
judiciário, instituição composta majoritariamente por pessoas brancas de classe média alta. O
racismo permanece um crime sem consequências sociais no nosso país porque muitos membros
do nosso sistema judiciário desconsideram o caráter discriminatório dessa prática, algo
decorrente da ideia de que elas não expressam ódio ou desprezo racial. Como pessoas brancas de
classe alta geralmente não têm a experiência social do racismo e da discriminação, elas não
sabem como esse problema afeta da vida das pessoas negras no Brasil (Racusen, 2004). Temos
fortes razões para acreditar que a presença de um número maior de homens e mulheres negros no
sistema judiciário poderia contribuir para a diminuição do racismo no país. A diversidade racial
pode efetivamente contribuir para a solução desse problema ao incorporar pessoas que têm a
vivência social do mesmo. Embora todas as pessoas comprometidas com a democracia saibam
que o racismo afronta a dignidade humana, elas não sabem exatamente como ele opera no
cotidiano das pessoas. A maior presença de minorias raciais no judiciário poderá contribuir para a
eliminação da influência dos discursos raciais dominantes no processo de interpretação dos fatos
23
jurídicos. Como os membros desses segmentos minoritários têm conhecimento da forma como o
racismo e afeta a vidas das pessoas, eles estarão mais capacitados a interpretar as normas que
regulam o racismo de acordo com a realidade social. Dessa forma, a diversificação racial do
sistema judiciário permite que essa instituição pública possa apresentar soluções mais adequadas
à demanda social de tratamento igualitário entre grupos sociais, o que obviamente pode ser
considerado como um interesse público de primeira ordem.
4
- Conclusão: Miscigenando o Círculo do Poder
A influência do discurso da miscigenação racial no debate político sobre ações afirmativas
frequentemente obscurece os objetivos que essa forma de política pública procura alcançar. Os
que são contrários a ela argumentam que ela promove uma racialização da sociedade brasileira, o
que compromete a ética pública de tratamento igualitário entre grupos raciais. Esse argumento
esbarra no fato de que a hibridismo racial e cultural não é um processo antagônico ao racismo,
pois ele tem servido historicamente para escamotear tanto a discriminação racial quanto o
privilégio branco. Mas a miscigenação pode ser defendida como um objetivo a ser alcançado pela
sociedade brasileira e as cotas raciais devem ser vistas como um mecanismo importante para isso.
Sejam elas entendidas como um mecanismo reparatório ou como um meio de se promover a
integração, as cotas raciais permitem a realização dos ideais democráticos. Ações afirmativas
permitem que grupos minoritários tenham acesso ao processo decisório, que eles possam
participar das decisões que afetam todos os grupos sociais. A miscigenação do círculo do poder é,
portanto, um passo necessário para promover a inclusão social de um segmento da população que
ocupa uma posição subalterna desde a fundação do país.
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