Revista de Direito Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O ABORTO UMA REALIDADE A SER PENSADA Tais Nader Marta Faculdade Anhanguera de Bauru RESUMO [email protected] Edinês Maria Sormani Garcia Faculdade Anhanguera de Bauru [email protected] A saúde é uma garantia fundamental a todo cidadão; porém, nem sempre foi assim. Em verdade, antes da promulgação da Carta Magna de 1988, a saúde no Brasil nunca havia sido moldada e pensada como um verdadeiro direito, muito pelo contrário! A importância da saúde se justifica, inclusive, pela adoção do princípio da dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos do Estado. Assim é que, apesar da questão do aborto ser fonte de reflexões desde os primórdios da civilização, em alguns momentos não tem sido tratado de maneira adequada com os preceitos de nossa Lei Maior, que garante a todos os cidadãos não apenas a existência de vida, mas de vida digna. Com os avanços da ciência e a evolução da sociedade, surgem projetos de lei e grandes questionamentos abordando a realização do aborto de forma descriminalizada, contrapondo-se a realidade religiosa e a fortes princípios éticos. O presente artigo questiona a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana a favor ou não da prática liberada do aborto, vez que se encontram dois direitos por ele protegidos: a saúde da mulher e a vida de um ser em formação. Palavras-Chave: dignidade; pessoa humana; aborto; saúde. ABSTRACT Health is a fundamental guarantee to every citizen, but was not always so. In fact, before the promulgation of the Magna Carta of 1988, health in Brazil has never been shaped and designed like a real right, quite the contrary! The importance of health is justified, even by adopting the principle of human dignity, as one of the rule. So it is that, despite the issue of abortion is a source of ideas since the dawn of civilization, at times has not been addressed properly with the precepts of our Greater Law, which guarantees all citizens not only the existence of life, but dignified life. With the advances of science and the evolution of society, there are bills and big questions addressing the implementation of decriminalized abortion in order, opposing the religious and strong ethical principles. This article questions the principle of human dignity in favor of or released from the practice of abortion, as are two rights protected by it: women's health and life of a being in development. Keywords: dignity; human person; abortion; health. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 27/10/2009 Avaliado em: 13/11/2009 Publicação: 31 de março de 2010 93 94 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada 1. INTRODUÇÃO Não existe direito sem lutas contra injustiças. A Constituição brasileira de 1988 realizou grandes transformações nesse sentido, não só na sociedade mas também na vida das pessoas, uma vez que foi decisiva para alargar muitos conceitos e direitos, impondo diretrizes de conduta. Ela é lei fundamental e suprema do Estado Democrático brasileiro e está acima de todo ordenamento jurídico, que deve se submeter a ela. Além de objetivos sociais claros, a Constituição empalmou com grande vigor, amplo catálogo de direitos sociais, cujo reconhecimento e proteção concorrem para delimitar o Estado desejado pelo constituinte (ARAUJO, 2007). Surge a necessidade de um Estado que promova o ser humano e a justiça social. Percebe-se a dimensão política da Constituição, em um novo Estado: Estado Social de Direito, Estado do Bem-Estar Social ou ainda Estado Democrático Constitucional (COZZOLINO, 2005). Tem-se, pois “na mudança de paradigma operada pelo surgimento do Estado Constitucional de Direito, a concepção de igualdade e liberdade, a partir da e para a dignidade” (TAVARES; ARAUJO; SEGALLA, 2003). Ocorre que é totalmente inútil o cuidado para elaborar uma boa Constituição se ela não for efetivamente aplicada e respeitada por todos, governantes e governados. O desrespeito à Constituição torna inseguro os avanços sociais, deixando muito aberta a possibilidade de anulação das mudanças. Ao contrário disso, as conquistas sociais, mesmo que sejam frutos de condições favoráveis momentâneas, serão facilmente consolidadas se incluídas na Constituição e se esta for respeitada (DALLARI, 1985). É certo que desde a Antigüidade se admitiu a existência de valores eternos e imutáveis, inerentes à natureza humana e não passíveis de subversão pelo poder temporal (REIS, 1999). A existência e preservação desses parâmetros constitucionais são, dessa forma, exigências da própria democracia. Nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição Federal que o princípio da dignidade da pessoa humana (BONAVIDES, 2001). Hodiernamente, é inadmissível a existência de um Estado Democrático de Direito sem o prestígio dos direitos fundamentais. Para que os direitos fundamentais não sejam apenas juridicamente eficazes, mas, principalmente, socialmente efetivos, é necessária a constitucionalização de direitos. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 95 Abandonando-se o individualismo e buscando-se a solidariedade, relativiza-se a autonomia da vontade para o prestígio e proteção da dignidade da pessoa humana. 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS O conceito de direitos fundamentais não é unívoco, como também não é expressão que lhes designa: direitos fundamentais, direitos humanos, direitos humanos fundamentais e liberdades públicas (GONÇALVES, 2007). A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 – conforme assevera Celso Ribeiro Bastos preocupou-se, essencialmente, com quatro ordens de direitos individuais: Logo no início, são proclamados os direitos pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Num segundo grupo encontram-se expostos os direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, direito de asilo para todo aquele perseguido (salvo os casos de crime de direito comum), direito de livre circulação e de residência, tanto no interior como no exterior e, finalmente, direito de propriedade. Num outro grupo são tratadas as liberdades públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação, princípio na direção dos negócios públicos. Num quarto grupo figuram os direitos econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à educação (BASTOS, 2000, p. 174-175). A primeira geração (ou núcleo inicial de liberdades individuais) se caracteriza por seu conteúdo negativo; já para que sejam exercidos de maneira plena exige-se uma abstenção do Estado da esfera social, só intervindo em caso de perturbações. Estado e sociedade eram imaginados como dois sistemas distintos, cada um com limites bem definidos, com regulações autônomas e com mínimas relações entre si. Surge o Estado Liberal com o intuito de salvaguardar as liberdades individuais ante a sua principal ameaça, traduzindo-se na idéia de que o direito vincula positivamente o poder público (que só pode fazer o que está expressamente na lei) e negativamente os cidadãos (que poderiam realizar tudo aquilo que as normas não proíbem). O Estado Absoluto vira o Estado de Direito (pautado na legalidade formal). Existe a necessidade de uma forma nova (sistemática e racional) de ordenação e limitação do poder político e, como resultado dos movimentos constitucionalistas, aparecem as primeiras constituições (“Constituições Modernas”), como documentos escritos nos quais se declaram as liberdades/direitos e se fixam os limites do poder político. Assim, [...] como fruto do constitucionalismo moderno, portanto, se formaram duas esferas estanques, dando origem à famosa dicotomia clássica entre o público e o privado. O interesse privado tinha no indivíduo sua afetação jurídica natural, e o interesse público tinha como seu titular e executante, o Estado (VALE, 2004, p. 39). As idéias de direitos fundamentais, que começaram a se formar na era moderna e as sociedades pluralistas atuais exigem das Constituições a possibilidade de uma vida em Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 96 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada comum. “O que é verdadeiramente fundamental, pelo mero fato de sê-lo, nunca pode ser posto, mas, sim, sempre pressuposto” (ZAGREBELSKY, 2007). As normas jurídicas já não podem ser nem a expressão de interesses da parte, nem a formulação de concepções universais e imutáveis que alguém pode impor e os demais devem simplesmente acatar. A humanidade possui aspirações que se manifestam por um desejo de mudança, de uma nova ordem social, com relações baseadas na justiça e no respeito aos direitos humanos para todos. Há uma força expansiva dos direitos fundamentais, segundo Juan María Bilbao Ubillos: Assistimos, em efcto, a un proceso de continua expansión de los derechos fundamentales, em varias direcciones. Su coenido se enriquece incesantemente: dia a dia, los tribunales descubren nuevas posibilidades (a veces insospechadas) de penetración de aquellos derechos, nuevos escenarios en los que se estima que pueden operar (UBILLOS; SARLET, 2006, p. 308). A idéia dos direitos fundamentais é, assim, tão antiga como a própria história das civilizações, tendo logo se manifestado, em distintas culturas e em momentos históricos sucessivos, na afirmação da dignidade da pessoa humana, na luta contra todas as formas de dominação, exclusão e opressão, em prol da salvaguarda contra o despotismo e a arbitrariedade, bem como na asserção da participação na vida comunitária e do princípio de legitimidade (TRINDADE, 1997). De todas as inovações da Constituição de 1988, sem dúvida a mais positiva e valiosa foi o destaque ímpar na nossa história conferido aos direitos fundamentais. A própria estruturação interna pôs os direitos fundamentais na parte inicial da Carta Magna, o que revela a importância sem precedentes conferida a tais direitos (SARMENTO, 2008). Nada obstante a noção de direitos fundamentais tenha sua origem na garantia de liberdades do indivíduo frente ao Estado, com uma eficácia vertical, o processo histórico acabou por alargar o espectro e o campo de eficácia desses direitos (FACHIN, 2006). Os direitos fundamentais são princípios gerais do direito, possuindo fundamentalidade formal e material, o que lhes afere uma função central no ordenamento jurídico, influenciando todas as normas do ordenamento jurídico. Esses direitos tratam de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive (SILVA, 2005), ou seja, são direitos reconhecidos pelo Estado para propiciar uma vida mais digna ao homem. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 97 2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana Na atualidade, a dignidade da pessoa humana constitui requisito essencial e inafastável da ordem jurídico - constitucional de qualquer Estado que se pretende Democrático de Direito, e, por óbvio que as pessoas portadoras de deficiência, quiçá, principalmente elas, devem tê-lo reconhecido e exercido. Seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, a Constituição Federal de 1988, incorporou, expressamente, ao seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) – como seu valor supremo –, definindo-o como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito e dos Direitos fundamentais. Vinte anos após a promulgação da Constituição, presencia-se, diariamente, situações em que a dignidade da pessoa humana é malferida, não apenas pela violência direta em que há o repúdio da sociedade, mas, principalmente, pela formas veladas como o preconceito, o racismo e, acima de tudo, pela miséria em que vivem milhões de pessoas desprovidas das condições mínimas de sobrevivência. Ensina Sarlet que É justamente neste sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice1 esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade (SARLET, 2002, p. 47). Deve-se, contudo, ter cuidado, pois a pessoa não pode e não deve ser tratada como um reflexo da ordem jurídica. Deve constituir o seu objetivo supremo, sendo que na relação entre o indivíduo e o Estado, há uma presunção a favor do ser humano e da sua personalidade, vez que o Estado existe para o homem e não o homem para o Estado. Ao se tratar tal valor positivado, como princípio, este deverá ser ponderado, ou seja, deverá ser aplicado na medida do possível; agora, se for entendido como regra, esta deverá ser tratada diante da conhecida expressão afeta ao jogo do tudo ou nada (JACINTO, 2006)2. 1 São condições dúplices da dignidade da pessoa humana, segundo o autor, a função defensiva e prestacional. “[...] Ao assumirmos a condição da dignidade como princípio, estamos enquadrando-a numa das concepções já anteriormente exaradas. Desse modo, a dignidade humana consubstancia-se como um comando de otimização que dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas – sendo estas os espaços vazios deixado pelos princípios que se lhe contrapõem – para prevalecer, pelo menos em tese. Note-se que o entrechoque de princípios outros com a dignidade humana vai ensejar – pelo menos teoricamente – a ponderação de bens e interesses constitucionalmente protegidos, determinando a prevalência de um sobre o outro, pelo menos na situação concreta determinada. Ao se considerar que a dignidade humana é expressa não apenas através de um princípio, assim como também, de regras, a solução para o conflito se avizinha mais clara. Afinal, a dignidade como regra, que conflita com outra regra, que não componha o conteúdo da dignidade, gera a aplicação da máxima do tudo ou nada. Vale dizer que o conflito de regras se soluciona no âmbito da validade, enquanto que a colisão de princípios, no âmbito do peso [...]”. 2 Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 98 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada Portanto, se da observação do princípio da dignidade da pessoa humana resultam conseqüências dentro do próprio sistema constitucional, dispensável é reafirmar a importância desse valor como fonte integradora e hermenêutica de todo o ordenamento jurídico brasileiro e latino-americano e não apenas dos direitos e garantias fundamentais (NUNES, 2002)3. Mesmo sendo impossível atribuir-lhe um conceito fixo e imutável, não há dúvidas que a sua aplicação, em casos concretos, é inafastável, principalmente, quando noticiados desrespeitos à vida, integridade física e psíquica, falta de oferecimento de condições mínimas que garantam uma existência digna, limitação da liberdade ou a promoção da desigualdade ou, pior, nos casos em que direitos fundamentais estejam flagrantemente sendo afrontados ou desconsiderados. A correta interpretação desse princípio, leva à concretização de valores superiores, direitos e garantias fundamentais, inalienáveis e irrenunciáveis por qualquer ser humano. Pode-se, então, concluir que, por se tratar de princípio ético, de inquestionável inafastabilidade, é vinculante dos poderes estatais e qualquer norma constitucional ou infraconstitucional que lhe contrarie padece de inegável ilegitimidade e deve ser afastada de plano do ordenamento jurídico. Por fim, deve-se ressaltar que, por força de sua dimensão intersubjetiva, o princípio da dignidade da pessoa humana cria um dever geral de respeito de todos os seres humanos com relação a seus semelhantes, isolada ou coletivamente, afetando a todos indistintamente, intérpretes jurídicos ou não do sistema constitucional (HÄBERLE, 1997)4, indiferente de estar expresso ou não no ordenamento jurídico, exercendo sua força soberana. 2.2. Vida digna Os textos constitucionais avançam, as sociedades se modificam e inúmeras transformações são introduzidas em busca de Estados que promovam o ser humano. Nesse contexto, devemos analisar essa idéia de igualdade dentro da sistemática constitucional para edificação de uma sociedade livre, justa e solidária. 3 “[...] está mais do que na hora de o operador do Direito passar a gerir sua atuação social pautado no princípio fundamental estampado no Texto Constitucional. Aliás, é um verdadeiro “supraprincípio” constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas [...]”. 4 “[...] No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição [...]”. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 99 Qualificar um dado direito como fundamental, não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer conseqüência jurídica. Agora, os operadores do direito, precisam fazer a sua parte e também lutar por mudanças. De acordo com Lenio Streck: No tempo presente o operador do direito conquista um papel essencial para que a promoção do ser humano e da justiça social se efetive. Enquanto (ou porque) ‘a eficácia das normas constitucionais exige um redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário (em especial da Justiça Constitucional) nesse complexo jogo de forças, na medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-judiciária que (só) nega a aplicação de tais direitos’ (STRECK, 2004, p. 15). Sem a dignificação, a existência do ser humano fica sem sentido. O Direito à Vida exige que medidas sejam tomadas pelo Estado para proteção de seus cidadãos e cidadãs. 3. A QUESTÃO DO ABORTO 3.1. Evolução histórica O tema está presente nas legislações hebraica e babilônica (ÊXODO, In Bíblia Sagrada). Para os gregos, os conceptos não eram possuidores de alma, portanto, não os concebiam como seres vivos (BARTON, 1984). No Brasil, desde os tempos coloniais, as representações contra o aborto estavam fortemente ligadas às doutrinas da Igreja Católica e aos interesses mercantilistas da metrópole portuguesa – política de ocupação demográfica com condenação à forma de controle malthusiano. Assim, a Igreja repudiava o aborto porque o considerava homicídio, que muitas vezes era realizado em função de relacionamentos extramatrimoniais. A medicina corroborava tais paradigmas ao responsabilizar exclusivamente as mulheres pelo abortamento pela existência de suas femininas “paixões”, que as distanciavam da digna vida familiar. Os médicos estavam focados somente nos estudos dos casos de aborto involuntário em que se tentava desenvolver medicamentos, soluções e compreensões para mecanismos envolvidos em sua gênese (DEL PRIORE, 1993). A partir da primeira metade do século XX, por considerar a gravidade do problema no âmbito da saúde pública, as leis sobre o abortamento começaram a ser mais flexíveis pela autonomia dos Estados laicos da Europa, Estados Unidos, Canadá, Cuba e Índia (BERER, 2000). Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 100 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada Em consonância com tais idéias, após a década de 70, muitos outros países reduziram as limitações e as incriminações judiciais sobre a prática do aborto (RAHMAN; KATZIVE; HENSHAW, 1998). O Código Penal Brasileiro, que entrou em vigor em 1940, no capítulo intitulado “Dos crimes contra a vida”, prevê como crime o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (artigo 124) e o aborto provocado por terceiros (artigos 125 e 126). Não se pune o aborto praticado por médico se não houver outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (artigo 128). Assim posto, salvo as exceções elencadas, o médico que pratica aborto além de cometer infração legal, está infringindo os artigos 42 e 43 Código de Ética Médica, segundo os quais é vedado ao médico “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do país” (artigo 42) e “descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento” (artigo 43). Ademais, a hodierna pujança do cristianismo influenciou a reafirmação, na Convenção Americana de Direitos Humanos em 1969 (ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992), que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Cabe ressaltar o caráter anacrônico do vigente Código Penal que foi desenvolvido a partir conceituações de décadas anteriores, as quais não traduzem a atual realidade da sociedade brasileira. Considerando-se esse fato, em 1992, uma Comissão para Reformulação do Código Penal propôs a descriminalização do aborto nos casos em que o feto apresentasse graves e irreversíveis anomalias. A Comissão apresentou a seguinte proposta para a reforma legislativa (BITENCOURT, 2001): Não constitui crime o aborto praticado por médico: Se se comprova, através de diagnóstico pré-natal, que o nascituro venha a nascer com graves e irreversíveis malformações físicas ou psíquicas, desde que a interrupção da gravidez ocorra até a vigésima semana e seja precedida de parecer de dois médicos diversos daquele que, ou sob cuja direção, o aborto é realizado. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 101 3.2. Aborto: uma questão de saúde pública 3.2.1 Saúde A saúde obteve seu primeiro conceito teórico-formal em 1946, com a Organização Mundial de Saúde (OMS), ao reconhecê-la como um dos direitos fundamentais de todo ser humano, independentemente de sua condição social ou econômica e de sua crença religiosa ou política. O preâmbulo da Constituição da OMS refere-se à saúde como o “completo bem-estar físico, mental e social” e não apenas como a ausência de doenças ou outros agravos, ou seja, passou a ser uma incessante busca pelo equilíbrio entre influências ambientais, modos de vida e vários outros aspectos sociais. No entanto, há de se registrar que a conceituação de saúde formulada pela OMS não satisfaz, uma vez que não é operacional, devido à expressão “bem-estar” ser de cunho altamente subjetivo, logo, de difícil quantificação. A implementação desse direito social depende muitas vezes de políticas e verbas públicas suficientes para o completo bem-estar físico, social e mental. O conceito de bem-estar ora formulado é irreal, pois visa a uma perfeição inatingível que não se adapta à realidade fática, afinal, o perfeito bem-estar é um objetivo a ser alcançado de acordo com a evolução da sociedade e da tecnologia. A saúde não pode e não deve ser conceituada como algo estático, pois faz parte de um sistema social no qual estamos inseridos e interagimos, devendo ser implementada mediante prestações positivas do Estado; está diretamente ligada ao conceito de qualidade de vida, e, para viver com dignidade em um legitimo Estado Democrático de Direito, todo cidadão necessita ter acesso a uma vida saudável. A busca do bem-estar físico, psíquico e social é o objetivo final a ser alcançado pelo direito à saúde, mas que somente se efetivará se forem disponibilizados aos cidadãos outros fatores determinantes e condicionantes, como os direitos à proteção do meio ambiente, ao saneamento, à moradia, à educação, ao bem-estar social, à seguridade social, à assistência social, ao acesso aos serviços médicos e à saúde física e psíquica. A Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), em seu art. 3º, refere-se a vários direitos afins com o direito à saúde e à qualidade de vida, mencionando que a saúde possui características correlacionadas com a educação, a moradia, o trabalho, o saneamento básico, a renda, o meio ambiente, o lazer e o acesso aos serviços essenciais. Denota-se a necessidade do Estado agir preventivamente, como legislador e como agente Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 102 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada social, voltado para a consecução do bem comum, e incidentalmente, por meio do Poder Judiciário, para a interpretação e aplicação da norma. 3.2.2 A questão do abortamento no Brasil O Poder Judiciário do Brasil vem autorizando, em diversas ocasiões, o abortamento nas situações de anomalia fetal grave incompatível com a vida extra-uterina. Em concordância com essa tendência, vêem-se hoje em tramitação no Congresso Nacional, diversos projetos de lei que visam a descriminalização do aborto em casos de anencefalia ou má formação congênita, como por exemplo, o recente Projeto de Lei nº 660/2007. Nesse contexto, e principalmente a partir da redemocratização do país, o debate sobre o aborto passou a ser um lócus de confronto entre duas vertentes instituídas: a tese respaldada pelo movimento feminista emancipacionista o considera como um exercício lícito da autonomia da mulher e a tese do aborto como uma nefasta infração moral. Assim, aqueles atuam na tentativa de mudança da mentalidade social e anseiam por modificação na legislação e ampliações das políticas públicas; enquanto estes, encabeçados pelas Igrejas Católica e Evangélicas, repudiam tais movimentos utilizando sua abrangente estrutura para propagar ideais e exercer pressões. Envolto nesse conflito de idéias, a prática do aborto suscita no espectro da vitalidade política uma questão de saúde pública que deverá ser resolvida (MARTA; JOB, 2008). Devido ao próprio caráter de violação às disposições da lei, o número de abortos ilícitos efetuados no Brasil é desconhecido. As estimativas mais confiantes apontam para 1.000.000 de abortos anuais (MONTEIRO, 2007), a maior porcentagem desses, inseguros e provocados por mulheres de baixo nível sócio-econômico, constituindo a quinta causa de internação na rede SUS e responsáveis por 9% das mortes maternas e 25% das esterilidades por causa tubária (Brasil, Ministério da Saúde, 1999). De acordo com a Organização Mundial de Saúde, cerca de 20 milhões dos abortamentos induzidos anualmente são inseguros sendo que 95% desses acontecem em países em desenvolvimento. Há uma média de um abortamento inseguro para cada sete nascidos vivos. Para a América Latina, essa relação é de 1:3 (Organização Mundial da Saúde, 1998). Cerca de 13% das mortes relacionadas com a gravidez são atribuídas a complicações dessa prática, o que corresponde a cerca de 67.000 mortes anuais (Organização Mundial da Saúde, 2001). Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 103 Também se associa a uma morbidade considerável, visto que uma em cada cinco mulheres que têm abortamento inseguro sofre de infecção do trato reprodutivo, que pode levar à infertilidade (Organização Mundial da Saúde, 1998). O abortamento inseguro foi reconhecido como um dos maiores problemas de saúde pública por representantes governamentais de todo o mundo na Conferência do Cairo das Nações Unidas (Nações Unidas, 1995). Posteriormente, na Conferência de Beijing (Nações Unidas, 1996), houve concordância que “os direitos humanos das mulheres incluem seus direitos a ter controle e a decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo saúde sexual e reprodutiva, livres de coerção, discriminação e violência” (parágrafo 96). Nessa ocasião, foi solicitada a atenção dos governantes para que revissem as leis que contivessem medidas punitivas contra mulheres que praticam abortamento ilegal (parágrafo 106). À saúde pública interessa o aperfeiçoamento da máquina social que assevera a cada pessoa, dentro da comunidade, um nível de vida condizente com a manutenção da saúde, condição que resguarda os caracteres físico, psíquico e social humanos da pessoa. O imperativo ético-sanitário primordial deve exprimir a imprescindível necessidade de preservação da autonomia subjetiva nesses três aspectos (MALERBE, 1987). Portanto, tem como característica primordial o estudo das problemáticas que afetam a saúde das pessoas incorporadas ao seu meio, viabilizando condições para solucioná-las. Apela-se nesses casos, aos estudos da Bioética que, juntamente com outras disciplinas discute a conduta humana nas áreas relacionadas com a vida e a saúde perante os valores e princípios morais. Ademais, uma das visões bioéticas contemporâneas está baseada no princípio explícito de considerar e respeitar a autonomia da pessoa quando esta tem a liberdade de fazer o que quiser desde que completamente informada para um consentimento livre e consciente. Vale ressaltar ser este o principal princípio da bioética. Interessante ainda buscar nos ensinamentos de Giselda Hironaka (2003), o papel da Bioética na busca incansável de respostas, posições ou soluções com a atenção voltada à ordem ética e sob a máxima consideração do princípio constitucional – a dignidade da pessoa humana. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 104 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada 3.2.3 A questão do abortamento no Brasil Anencefalia A anencefalia é um defeito congênito (do latim “congenitus”, “gerado com”). Corresponde a uma alteração na formação cerebral resultante de falha no início do desenvolvimento embrionário do mecanismo de fechamento do tubo neural e que se caracteriza pela falta dos ossos cranianos frontal, occipital e parietal, hemisférios e do córtex cerebral. O tronco cerebral e a medula espinhal na maioria dos casos não são atingidos, mas há casos em que, a anencefalia ocorre por defeitos no fechamento da coluna vertebral. De acordo com um estudo realizado pelos doutores Carlos Gherardi e Isabel Kurlat denominado Anencefalia e Interrupción Del Embarazo – Análisis médico y bioético de los fallos judiciales a propósito de um caso reciente, aproximadamente 75% dos fetos afetados morrem dentro do útero, enquanto que, dos 25% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana. Na anencefalia, a inexistência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex) provoca a ausência de todas as funções superiores do sistema nervoso central. Estas funções têm a ver com a existência da consciência e implicam na cognição, percepção, comunicação, afetividade e emotividade, ou seja, aquelas características que são a expressão da identidade humana. Há apenas uma efêmera preservação de funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal (SOUSA, 2008). Com relação à morte encefálica, os critérios estão previstos na Portaria 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que assim dispõe: Artigo 1º - A morte encefálica caracterizada da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias. Artigo 4° - Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação e morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Artigo 6° - Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sanguínea cerebral A obra intitulada Aspectos Bioéticos e Jurídicos do Abortamento Seletivo no Brasil de autoria de Marcos Valentin Frigério, Ivan Salzo, Silvia Pimentel e Thomaz Rafael Gollop (FRIGÉRIO; SALZO; PIMENTEL; GOLLOP, 2006, p. 15), na qual foi realizado o estudo de 263 pedidos de alvarás para interrupção da gravidez em casos de anomalias incompatíveis com a vida, sendo a anencefalia uma dessas anomalias. Nestes 263 casos estudados, o Ministério Público opinou pelo deferimento do alvará em 201 casos (76,43%) e pelo indeferimento em 62 casos (23,57%). Em contrapartida, o juiz decidiu pelo deferimento em 250 casos (95,06%) e pelo indeferimento em apenas 13 casos (4,94%). Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 105 Nessas condições, a maioria da população e dos profissionais da área jurídica são favoráveis à interrupção da gravidez no caso de anomalias absolutamente incompatíveis com a vida, dentre elas está o caso da anencefalia (SOUSA, 2008). ADPF 54 A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou a argüição de descumprimento de preceito fundamental (n. 54) considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras decorrentes do enquadramento no Código Penal. Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a literatura médica aponta que a máformação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que, principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública. Quem mais se opõe à prática do aborto de feto anencéfalo é a Igreja Católica, mas proibir o aborto no caso de anencefalia por motivos puramente religiosos é inadmissível Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 106 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada em um Estado laico. Neste sentido o Ministro Carlos Ayres Brito, proferido nos autos da ADPF 54/DF: [...] Quero dizer, o crime deixa de existir se o deliberado desfazimento da gestação não é impeditivo da transformação de algo em alguém. Se o produto da concepção não se traduzir em um ser a meio caminho do humano, mas, isto sim, em um ser que de alguma forma parou a meio ciclo do humano. Incontornavelmente empacado ou ‘sem qualquer possibilidade de sobrevida’ (ainda uma vez, locução tomada de empréstimo à mesmíssima resolução do CFM), por lhe faltar as características todas da espécie. Uma crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estádio de borboleta. O que já importa proclamar que se a gravidez ‘é destinada ao nada’ – a figuração é do ministro Sepúlveda Pertence – sua voluntária interrupção é penalmente atípica. Já não corresponde ao fatotipo legal, pois a conduta abortiva sobre a qual desaba a censura legal pressupõe o intuito de frustrar um destino em perspectiva ou uma vida humana in fieri. Donde a imperiosidade de um conclusivo raciocínio: se a criminalização do aborto se dá como política legislativa de proteção à vida de um ser humano em potencial, faltando essa potencialidade vital aquela vedação penal já não tem como permanecer. Equivale a dizer: o desfazimento da gravidez anencéfala só é aborto em linguagem simplesmente coloquial, assim usada como representação mental de um fato situado no mundo do ser. Não é aborto, contudo, em linguagem depuradamente jurídica, por não corresponder a um fato alojado no mundo do dever-ser em que o Direito consiste. [...]”. (STF, ADPF/DF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 27.04.2005) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Atualmente, os valores constitucionais são a mais completa tradução dos fins que a comunidade pretende ver realizados no plano concreto, mediante a normatização empreendida pela própria Lei Fundante. A Constituição de 1988 abriu perspectivas de realização social profunda pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade humana, enunciado no inc. III do art. 1º da Constituição Federal de 1988 é o vetor máximo interpretativo da Constituição Federal e foi elevado à condição de “super princípio” da República Federativa do Brasil. O ser humano como pessoa está em constante processo de relacionamento não apenas consigo, mas também com o ambiente em que vive. Assim, é necessário observar a proteção ambiental para que se garanta a existência de vida digna. A saúde é um direito fundamental do homem, de eficácia imediata e autoaplicável, é também um dever do Estado, pois, o Poder Público está obrigado na efetivação desse direito por meio de prestações positivas essencialmente necessárias para a proteção da vida humana. Estudos empíricos sobre o abortamento corroboram a visão de que a ilegalidade do ato acarreta execráveis conseqüências para a saúde feminina, não reprime tal prática e torna perpétua a desigualdade social. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 107 Por outro lado, há que se verificar as más conseqüências que a descriminalização poderá acarretar com a morte de seres indefesos, inocentes e silenciosos, talvez de forma ilimitada a ponto de desintegrar o código de valores em que se tem pautado o mínimo da dignidade da pessoa humana (HIRONAKA, 2003). Dois pontos de relevância, dois aspectos de preservação à vida, bem supremo, nos quais precisam se ater e pensar os operadores do Direito e principalmente os legisladores atuais. Com relação ao aborto praticado em decorrência da anencefalia entendemos que o mesmo não é crime em razão da existência de atipicidade, bem como pela ausência de lesividade ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal aborto. REFERÊNCIAS ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BARTON, W.E.; BARTON, G.M. Ethics and Law in mental health administration. Washington: Library of Coogress, 1984. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. BERER M. Making abortions safe: a matter of good public health policy and practice. Bulletin of the World Health Organization, v. 78, p. 580-592, 2000. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte especial. v. II. São Paulo: Saraiva, 2001. BONAVIDES, Paulo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. BRASIL. Ministério da Saúde. Portal da Saúde. Disponível em: <http://www.saude.gov.br/programas/mulher/assist.htm>. Acesso em: 24 nov. 1999. ______. Código Penal Brasileiro. Decreto: lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.detel.rj.gov.br/site/lex/declei_2848-40.pdf>. Acesso em: 22 set. 2007. ______. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.246/88, de 08 jan. 1988. Diário Oficial da União. 26 jan. 1988. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/codigo_etica>. Acesso em: 19 jan. 2006. COZZOLINO, Patrícia Elias. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988 e sua força normativa. In: OLIVEIRA, Flávio Luis (Org.). Perfis da tutela constitucional dos direitos fundamentais. Bauru: EDITE, 2005. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1985. DEL PRIORE, M.L.M. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. ______. Êxodo. In Bíblia Sagrada. São Paulo, Editora Ave Maria, 1992. p. 101 – 144 e Código de Hamurabi. Disponível em: <http://www.cpihts.com/PDF/C%C3%B3digo%20hamurabi.pdf>. Acesso em: 23 set. 2007. FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 108 Dignidade da pessoa humana e o aborto - uma realidade a ser pensada FRIGÉRIO, Marcos Valentin; SALZO, Ivan; PIMENTEL, Silvia; GOLLOP, Thomaz Rafael. Aspectos bioéticos e jurídicos do abortamento seletivo no Brasil. Disponível em: <http://www.jep.org.br/downloads/JEP/ Artigos/aspectos_bioetico_juridico_abortamento_seletivo.htm>. GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007. HIRONAKA, G.M.F.N. Bioética e Biodireito: revolução biotecnológica, perplexidade humana e prospectiva jurídica inquietante. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4193>. Acesso em: 08 ago. 2006. JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá Editora, 2006. MALERBE, J.F. Pour une éthique de la médecine. Paris: Larousse, 1987. MARTA, Gustavo Nader; JOB, José Roberto Pretel Pereira. Medicina, Ribeirão Preto, v. 41, p. 196199, 2008. OMS. Organização Mundial da Saúde. Unsafe abortion: global and regional estimated of incidence of mortality due to unsafe abortion with a listening of available country data. Geneva: Organização Mundial da Saúde (OMS/RHT/MSM/97.16), 1998. ______. Organização Mundial da Saúde. Maternal mortality in 1995: estimates developed by OMS, UNCEF, UNFPA, Geneva: Organização Mundial da Saúde (OMS/RHR/01.9), 2001. ONU. Nações Unidas. Report of the International Conference on Population and Development, Cairo 5-13 September 1994. New York: Nações Unidas (Sales no. 95 IV.13), 1995. ______. Nações Unidas. Report of the Fourth World Conference on Women, Beijing 4-15 September 1995. New York, Nações Unidas. (Sales no. 96. IV.13) ,1996. RAHMAN, A.; KATZIVE, L.; HENSHAW, S.K. A global review of laws on induced abortion, 19851997. International Family Planning Perspectives, v. 24, p. 56-64, 1998. REIS, Márcio Monteiro Reis. Moral e direito: a fundamentação dos direitos humanos nas visões de Hart, Peces-Barba e Dworkin. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. TAVARES, André Ramos. Princípio da dignidade da pessoa humana. In: ARAUJO, Luiz Alberto David; SEGALLA, José Roberto Martins (Org.). 15 anos da Constituição Federal em busca da efetividade. Bauru: Edite, 2003. SOUSA, Fabiana de Santana. Aborto de feto anencéfalo: fato típico ou atípico? Revista da Esmese, n. 11, 2008 - Doutrina – 221. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/22097/aborto_feto_anencefalo_fato.pdf?s equence=1>. Acesso em: 21 mar. 2010. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. UBILLOS, Juan María Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004. Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109 Tais Nader Marta, Edinês Maria Sormani Garcia 109 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos e justicia. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta. 2007. Tais Nader Marta Edinês Maria Sormani Garcia Revista de Direito • Vol. XII, Nº. 16, Ano 2009 • p. 93-109