CISC A Bobalização da TV

Propaganda
CISC
CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA
A Bobalização da TV
Marina Quevedo
A sociedade brasileira está refém de um paradoxo: a bobalização da TV. Ao
mesmo tempo em que as emissoras apresentam em seus programas temas
sociais freqüentes, com uma pretensão "crítico/reflexiva", inflacionam o
mercado com cabeças sem idéias, sem conteúdo. O horário nobre da maior
emissora brasileira esteve tomado, recentemente, por uma novela que dizia
"discutir" o uso de drogas entre jovens e adolescentes. As opiniões se
dividiram entre a pertinência do tema abordado pela autora, que estaria
esclarecendo as famílias brasileiras e promovendo a conscientização dos
usuários, e a total ineficácia da novela como um mecanismo eficiente para o
combate ao tráfico e ao consumo de drogas.
É verdade que um problema tão grande e sério como as drogas precisa
mover recursos de todos os agentes sociais - comunidade, governos, veículos
de comunicação -, mas não é possível pregar um prego duas vezes, ao mesmo
tempo, como quer essa emissora. Ao longo dos anos, a TV brasileira tem se
especializado
em
formar
gerações
"impensantes",
fruto
de
"Xuxas",
"Malhações", "Ver de Novo" etc. Tudo tem sido oferecido para "bobalizar" a
audiência, principalmente às tardes, quando, supostamente, os pais estão no
trabalho e as crianças e adolescentes ficam em casa, livres (ou presos?) diante
do aparelho de TV. São desenhos e seriados enlatados sem qualquer sentido,
enfiados goela abaixo de quem fica prostrado diante da tela, até produções
nacionais que mais parecem vindas de algum país do "tudo é possível, tudo é
belo, tudo fazemos".
A educação oferecida por estas emissoras é pela imagem por imagem, que
não pede nenhuma reflexão em troca, senão ser acreditada. Não há
programas que levem a um desenvolvimento do senso crítico e que se
proponham refletir o que vivemos, que não estejam amparados no poderio
monopolizante,
na
pasteurização
controladora
da
TV
brasileira.
As
Universidades são um termômetro desse resultado. Centenas de jovens
projetaram suas expectativas para o conhecimento fácil, que não demanda
dificuldades e obstáculos, tal qual a pregação destas emissoras. O ato de ler é
2
algo amargo e sacrificante para grande parte dos universitários. E não poderia
ser de outra forma, para crianças que pensaram que o mundo seria, no futuro
(hoje), como o planeta governado por uma "rainha de baixinhos". O
aprendizado é penoso para aquelas crianças, hoje jovens e adultos, que
tiveram como paradigma a programação barata das emissoras de TV, salvo
raras exceções. Essas crianças foram formadas em outro modelo e não sabem
lidar, ou nem mesmo conhecem, a reflexão. Para os que conseguiram chegar à
Universidade, o problema das drogas é real, mas ainda assim há mais
possibilidades de resgate da cidadania, pelo contato com professores e outras
idéias. Vamos falar daquelas crianças "bobalizadas", hoje jovens e adultos que
não tiveram esse privilégio, ou seja, a insignificância de 99% da população.
Esse número alarmante cresce na medida e proporção em que crescem os
problemas com as drogas, pois o investimento na "bobalização" formou
milhares de pessoas que se tornaram os profissionais do submundo. Do
contrário, de que outra forma encontrar, com tanta facilidade, aquele ideal
propugnado pelos programas infantis e jovens das emissoras, (O maravilhoso
mundo fácil), para quem chegar à universidade é somente uma quimera? A
essas parcelas de jovens restou a periferia do pensamento e da crítica, a
periferia geográfica, a periferia econômica e a verdade de que nada na vida é
fácil como um simples plim plim.
No livro "Sobre a Televisão", o sociólogo francês Pierre Bourdieu desvenda
alguns enigmas: "... As notícias de variedades consistem nessa espécie
elementar, rudimentar, de informação que é muito importante porque interessa
a todos sem ter conseqüências e porque ocupa tempo, tempo que poderia ser
empregado para dizer outra coisa. Ora, o tempo é algo extremamente raro na
televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão
fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas
preciosas. Se insisto nesse ponto, é que se sabe, por outro lado, que há uma
porção muito importante de pessoas que não lêem nenhum jornal; que estão
devotadas de corpo e alma à televisão como fonte única de informações. A
3
televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das
cabeças de uma parcela muito importante da população. Ora, ao insistir nas
variedades, preenchendo esse tempo raro com o vazio, com nada ou quase
nada, afastam-se as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão
para exercer seus direitos democráticos". E sobre utilizar o tempo para não
dizer nada, a TV brasileira tem dedicado grandes investimentos em projetos,
logística e pessoal.
A oferta de programas cheios de Nada aumenta e se supera. Agora, o Nada
traz ainda mais atrativos: o de comer insetos, vivos e mortos; o de mostrar o
tanto de Nada que alguns "artistas" são capazes de fazer em suas vidas, e que
se dispõem a promover durante 24 horas diante das câmeras; o de valorizar o
"conteúdo do Nada", como um personagem chamado Cleber, vencedor de um
"show de realidade", e que por esse feito, é pago para dar palestras. É no
investimento do Nada que as emissoras de TV têm apostado, açoitando, dessa
forma, a cidadania e a formação social de passadas e futuras gerações.
Quando a TV paga uma pequena fortuna (R$300 mil, R$400 mil) àquele que se
sair como o vitorioso, o que melhor simbolizar o Nada supremo e catatônico de
um show mostrado ao vivo na TV, forma uma consciência coletiva positiva e
crédula nesse modelo. E a cada dia, faz engrossar as fileiras de jovens que
pensam que é com um golpe de sorte que sua vida tomará um jeito, do modo
mais fácil, do Nada.
As novelas de televisão não servem para despertar nenhum senso crítico
com relação às drogas ou a qualquer outro tema que adoeça a sociedade,
porque apresentam imagens de uma vida, de um mundo, irreal durante um
pequeno espaço de tempo, se comparado ao tempo que se destina ao
"conteúdo do Nada" Trabalham com a imagem, com a superficialidade do
problema, e não com o problema em si. E nem tampouco lhes cabe, de forma
autônoma ao restante da programação da emissora, levantar a bandeira da
cidadania, pois seria um contrasenso. Portanto, não é possível para o jovem se
identificar com o que somente vê, que é efêmero, e morre no instante em que
4
ele desliga o aparelho de TV. Não agora, depois que já se investiu, e continua
se investindo, na sua formação com as "tardes de Nada". A vida real, aquela
que a TV mesma ajudou a promover e projetar, não existe nas telas, (pelo
menos não nas telas diárias dessas grades de programação). E portanto, não
estamos falando da realidade quando vemos os desafios e sofrimentos de uma
adolescente abastada e sua família, na luta contra a dependência química em
horário nobre. Falamos, sim, de imagens, mantidas e criadas a partir de um
padrão que quer se transformar em global, com critérios de primeiro mundo,
cujos valores simbólicos são iguais aos das "tardes de Nada".
Esse simbolismo se manifesta e pode ser detectado em alguns fatos
pontuais: os textos elaborados pela produção faz do indivíduo o centro,
gerando o egocentrismo, o eu em primeiro lugar, desbancando o sentido de
coletividade para instaurar o autoritarismo, como reflexo do próprio
pensamento da emissora; o padrão imagem/persona é igualizado por um
comportamento que nunca permite ao telespectador perceber alguma
tendência pessoal sem a desconfiança de que por trás esteja o dedo
"bobalizador", que "sabonetiza" e cria uma apática sintonia entre funcionários
que apresentam os programas, em comportamento, tom de voz e modo de
falar; e ainda, na efemeridade das relações, na puerilidade dos diálogos, no
distanciamento e futilidade pessoais, deixando claro que entre apresentador e
telespectador há algo de suprema importância: a própria emissora.
Da vida real à vida das imagens há imensas distâncias. Não cabe recorrer
ao argumento da liberdade de escolha, ao livre arbítrio de cada um, para
justificar o melhor prato que essas emissoras têm oferecido: o excremento.
Senão, por que não inverter o prisma? Ou seja, a sociedade não experimenta
outros programas porque as grades de programação não os oferecem, a
despeito
de
termos
profissionais
competentes
para
realizá-los
e
telespectadores para assisti-los. Os poderosos donos das grandes emissoras
devem pensar que mais vale uma sociedade apática, cujo comportamento lhes
confere lucros imediatos, a uma outra que pode se arvorar a crítica do atual
5
sistema de bens de consumo. Portanto, não cabe às emissoras a pretensão de
debater o uso de drogas entre jovens, com o intuito de resolver o problema e
posar, depois, como arautos do bem viver, quando elas mesmas abrem as
portas desse submundo. É o mesmo que esperar que uma casa esteja limpa
quando, depois da faxina, toda a sujeira da cozinha foi jogada na sala de
visitas.
Marina Quevedo é jornalista, professora de Jornalismo na Universidade Mackenzie e
mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Texto originalmente publicado no Portal Estadão em:
http://www.estadao.com.br/artigodoleitor/htm/2002/jul/05/199.htm
Signature Not Verified
Digitally signed by Cisc
DN: cn=Cisc, o=Centro
Interdisciplinar de Semiotica da
Cultura/Midia, c=BR
Date: 2002.08.01 22:13:09 -03'00'
Location: SP - Brasil
6
Download