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Série Especial Comunicação Comunitária
A Regulamentação da TV Digital no Brasil
O Decreto 5.820, de junho de 2006, estabelece as diretrizes para a
implantação do sistema de transmissão digital no Brasil. Segundo ele, o
país deverá adotar o padrão de sinais do ISDB-T (Integrad Services
Digital Broadcasting Terrestrial), desenvolvido pelos japoneses, mas
contendo algumas inovações tecnológicas aprovadas pelo Comitê de
Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital - instituído pelo
Decreto 4.901, de novembro de 2003. Outro ponto contemplado é a
forma como se dará a transição do sistema analógico para o digital.
Durante essa fase – que deverá durar, no máximo, 10 anos – as
concessionárias e autorizadas que estiverem regularizadas receberão em
consignação um canal digital e, ao final do tempo estabelecido, elas
deverão devolver ao governo o canal analógico que detêm.
A legislação também estabelece que a União poderá dispor de quatro
canais, sendo um para o Executivo, outro para educação, um para
cultura e um "de cidadania". Por fim, fala-se da criação Fórum do
Serviço Brasileiro de Rádio Difusão (SBTVD), que deverá ser formado
por representantes das empresas de radiodifusão, da indústria e das
universidades, e que terá como objetivo assessorar o Comitê de
Desenvolvimento – órgão composto por representantes do governo –,
na definição de quais inovações tecnológicas brasileiras serão
incorporadas ao nosso sistema de TV digital.
O pequeno decreto deixa muitas lacunas e é margem para inúmeras
críticas por parte dos estudiosos da área. Para a professora Regina
Mota, do departamento de Comunicação Social da UFMG, uma das
falhas do Decreto foi o fato de ele não contemplar as potencialidades de
convergência e de interatividade possíveis com a nova tecnologia. De
acordo com ela, “A TVD no Brasil, como está planejada pelo atual
governo e executada pelo Ministério das Comunicações, não muda nada
no atual sistema de televisão, porque apenas digitaliza a transmissão
que hoje é analógica, e com isso pode melhorar um pouco o sinal de
vídeo e de áudio”.
A Agência de Notícias conversou sobre esse assunto com Gustavo
Gindre, coordenador geral do Instituto de Estudos e Projetos em
Comunicação e Cultura (INDECS), membro eleito do Comitê Gestor da
Internet do Brasil e do Coletivo Intervozes.
Agência de Notícias: Como irá funcionar o modelo de TV Digital que será
implantado no Brasil? Quais são as implicações sociais dele?
Gustavo: É importante deixar claro que nós estamos falando de TV
Digital aberta, a TV gratuita. O governo optou que cada empresa paga,
como as empresas de cabo e via satélite, se digitalizassem por sua
própria conta, sem nenhum tipo de regulamentação. Então, quando
estamos falando de TV Digital, estamos falando da TV aberta, que é a
que está na casa da maior parte das pessoas.
Eu diria que a TV Digital tem três grandes impactos que, conforme eu
vejo, poderão afetar toda a sociedade brasileira. O primeiro deles está
relacionado com a questão da ciência e tecnologia: a TV Digital permite
desenvolver dois tipos de tecnologia que estão em quase tudo o que nos
cerca hoje: o software e a microeletrônica (o chip). Em geral, o Brasil
não produz nem os softwares nem os chips que usa. E abrir uma frente
de produção nacional destes itens para a TV Digital, que estará na casa
da maior parte dos brasileiros, seria uma chance de desenvolver essa
tecnologia, que posteriormente poderia ser usada em outras áreas – na
indústria petrolífera, na aviação, na indústria automobilística – ou seja,
isso possibilitaria um desenvolvimento tecnológico que o país ainda não
tem. Atualmente, nós pagamos vários bilhões de dólares só de royalties
para usar tecnologia dos outros.
O segundo impacto está no fato de que a TV Digital poderia significar a
ampliação da programação disponível. Na TVD, não se usa mais esse
conceito de canal que nós usamos na TV aberta, porque dentro de um
mesmo canal da TV Digital você consegue colocar várias programações
simultâneas, dependendo da qualidade da imagem que você transmite.
Assim, uma possibilidade que nós teríamos seria usar a TV Digital para
ter várias programações. Uma gama muito grande de canais poderia
estar disponível na TV Digital. Infelizmente, o governo optou – e isso
não tem nada a ver com a tecnologia escolhia, mas com o modelo de
regulação –, por um modelo que entrega um espaço enorme para as
emissoras, pois, onde havia um canal, é possível colocar várias
programações. Ele não só fez isso, como durante o processo de
transição, que nós avaliamos que deve durar em torno de 10 anos, no
qual cada emissora vai transmitir no analógico e no digital, praticamente
não vai haver mais espaço para novas emissoras. A TVD era uma
chance de ouro que nós tínhamos de democratizar a televisão brasileira,
e que foi jogada na lata do lixo.
Por fim, a terceira possibilidade da TV Digital é o fato de ela poder ser
interativa. Você deixa de ser um sujeito passivo, que só recebe
conteúdo. No entanto, a interatividade depende de duas condições
fundamentais: uma caixinha – um terminal de acesso –, para captar o
sinal digital; e que essa caixinha seja tenha memória suficiente, um
software adequado (o GINGA) e que esteja conectada a um terminal de
retorno – um sistema de internet banda larga.
O grande medo que nós temos é que o governo permita a venda de
terminais de acesso que não sejam interativos, que sejam basicamente
seletores de canal, somente conversores do sinal. E que, com isso, se
crie dois tipos de cidadãos: um que tem acesso à TV interativa e aqueles
que vão continuar com a TV unidirecional. Dessa forma, a televisão irá
se transformar em mais um elemento de exclusão. A TV Digital no
Brasil, que poderia ser um espaço para desenvolver a ciência e a
tecnologia, para democratizar a comunicação e no qual seria possível
estabelecer interatividade, caminha para ser o contrário disso tudo,
graças à posição dos radiodifusores.
Agência de Notícias: Como irão funcionar os canais públicos que estão
previstos no decreto?
Gustavo: Pelo Decreto 5.820, o governo poderá criar esses canais. O
documento não fala que o governo deverá criá-los. “Poderá” significa
que ele pode ou não fazer isso. O primeiro grande problema em criar
esses canais é que não há espaço. Não serão criados canais só no
sistema digital, porque pouquíssimas pessoas terão acesso a ele nos
primeiros anos. Tanto que todo canal de televisão terá que transmitir no
digital e no analógico durante a transição. No entanto, se o governo for
ceder um canal digital e um analógico para cada emissora nos grandes
centros urbanos, não vai haver espaço para se colocar esses quatro
canais que ele está querendo criar. Isso porque, na verdade, eles
significam oito canais: quatro digitais e quatro analógicos. Além disso,
segundo o Decreto, esses serão canais da União, ou seja, eles serão
geridos pelo governo.
Na realidade, o que nós sabemos é que o governo está planejando um
único canal: a TV Brasil. Ele será a junção da atual da TVE – que
pertence à Fundação Roquete Pinto –, com a TV Nacional, de Brasília –
que pertence à Rádiobras. O se especula é que haverá no máximo dois
canais da TV Brasil: um para jornalismo e o outro pra entretenimento.
Agência de Notícias: Quais as principais lacunas que ainda precisam ser
preenchidas pelo decreto?
Gustavo: Precisaríamos fazer o que vários países do mundo – como
Estados Unidos, Coréia do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Reino Unido,
França, Espanha e Japão – fizeram. Esses países trocaram a legislação,
fizeram uma lei nova de “radiodifusão” para a TV Digital.
Na Europa foi criada, em 2001, uma legislação chamada “Televisão sem
fronteiras”. É uma diretiva que vale para toda a União Européia para
preparar a televisão desses países para o cenário de convergência
tecnológica. E eles já estão chegando à conclusão de que essa lei já está
velha. Hoje, já se fala em coisas que não são contempladas por ela. A
nossa legislação é de 1963, da época que a televisão em preto e branco
no Brasil ainda era uma novidade. Ou seja, ela é impossível de ser
aplicada em um cenário de TV Digital. Na verdade, quando você instaura
algo dessa magnitude, envolvendo interesses econômicos e políticos
enormes, e não regulamenta isso, quem tem mais dinheiro e mais poder
político faz o que quer. O que o Brasil deveria ter feito era ter criado
uma nova lei antes de introduzir a TV Digital.
Agência de Notícias: Para você, qual a importância em se discutir acesso
público à comunicação quando se fala em TV Digital?
Gustavo: Discutir acesso público significaria reconhecer que a
comunicação é um direito humano. Ela não é uma mercadoria a ser
vendida, não é uma possibilidade só pra quem tem concessão de rádio e
televisão, que ganhou por ser amigo de um político ou por ser o próprio
político. Assim como o ser humano tem direito a ter um emprego, de ter
saúde e educação, ele tem direito de se comunicar e de ter acesso aos
meios que são necessários para tanto. Nesse contexto, a televisão, o
rádio e a internet deveriam estar a serviço do direito humano à
comunicação. No modelo analógico, ainda era cabível a justificativa de
que não dava para todos terem acesso à esfera de emissão de massa,
porque não caberia no espectro eletromagnético. Mas, ainda assim,
seria preciso reconhecer que as pessoas que detinham as emissoras
eram privilegiadas e que precisariam cumprir com uma série de
regulamentos, que no Brasil nunca foram cumpridos de fato. Mas agora,
com a TV Digital, tem-se a possibilidade de aumentar
consideravelmente o número de programações que vão para o ar. Se
estamos falando que em cada canal poderia haver cerca de seis
programações, nós estamos falando de dezenas de possíveis novas
emissoras de televisão. Dessa forma, ela poderia ser usada para
quebrar um oligopólio da comunicação que vem se mantendo durante
anos, e permitir uma multiplicidade de interlocutores e uma diversidade
de culturas.
No entanto, cada emissora comercial irá receber um canal de televisão.
Entregar isso para as emissoras é entregar um espaço enorme, e nós
não sabemos o que elas vão fazer com ele. As emissoras que já estão
no mercado ganharam um latifúndio, e o nosso medo é o que isso vai
significar, já que elas não têm programação para ocupar a quantidade
atual de canais de televisão – se você assistir TV de madrugada vai ver
várias pessoas vendendo tapete, jóias, culto evangélico, por exemplo.
Fico pensando o que será essa maravilhosa TV aberta, com essa
programação fantástica, multiplicada por quatro ou cinco.
Fonte: Boletim Informativo Rede Jovem de Cidadania - nª 16 -
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