Devemos liberar a exploração comercial de madeira na Mata Atlântica? Uma rede de organizações ligadas à Mata Atlântica se mobilizou para impedir que a exploração das espécies nativas do bioma volte a ser liberada WIGOLD BERTOLDO SCHAFFER* 17/10/2016 - 19h21 - Atualizado 20/10/2016 11h33 Uma rede de organizações ligadas à Mata Atlântica se mobilizou para impedir que a exploração das espécies nativas do bioma volte a ser liberada. A Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA), em parceria com outras 60 organizações socioambientalistas e de pesquisa de 14 estados brasileiros, encaminhou ao Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, no último dia 3 de outubro, uma carta que pede a suspensão imediata de uma proposta do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para reabrir a exploração. Iniciativas para autorizar desmatamento, exploração comercial ou destruição do pouco que restou do bioma são recorrentes por parte de alguns parlamentares e também de setores do governo de estados como Santa Catarina e Paraná. Muitas vezes, eles ignoram a Lei da Mata Atlântica ou buscam subterfúgios para burlar as diretrizes por ela estabelecidas. Foi o caso da Lei Estadual 15.167/2010, que permitia o corte e exploração comercial da Floresta com Araucária em Santa Catarina, declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça. No Paraná, a recorrente prática de autorizar corte legal de araucárias pelos órgãos ambientais e, recentemente, o Projeto Imbituvão – da Universidade Estadual do CentroOeste (Unicentro) apoiada pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e pela Universidade de Rottenburg, da Alemanha – pretendem desenvolver estratégias de manejo florestal na Floresta com Araucária. Por enquanto, elas vêm sendo criticadas e até suspensas por intervenção do Ministério Público do Paraná e por pressão de ONGs e pesquisadores. >> O que sobrou da Floresta com Araucárias A conservação, proteção, regeneração e utilização da vegetação nativa da Mata Atlântica foram regulamentadas pela Lei da Mata Atlântica (11.428/2006), conforme art. 225, § 4º, da Constituição Federal, aprovada e sancionada após mais de 14 anos de intenso esforço da sociedade. Como uma norma específica, ela permanece inalterada, mesmo diante da aprovação posterior da Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012), que substituiu o antigo Código Florestal de 1965. >> O manejo sustentável das araucárias é um mito Mesmo assim, o Serviço Florestal Brasileiro, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, quer se valer da aprovação da Lei de Proteção da Vegetação Nativa para reabrir a exploração comercial generalizada de espécies nativas da Mata Atlântica, ignorando o fato de que a Lei específica da Mata Atlântica e o Decreto 6.660/2008, que a regulamentou, só permitem utilização ou supressão da vegetação em casos de utilidade pública, interesse social, pesquisa científica, exploração sem propósito comercial direto ou indireto, para consumo nas propriedades rurais e posses das populações tradicionais ou de pequenos produtores rurais. Para “dourar a pílula”, como outras iniciativas dessa natureza, o SFB vem se valendo do argumento de que vai “simplificar a elaboração, apresentação e licenciamento do manejo florestal, com ênfase no manejo florestal comunitário e familiar”. Ao fazer isso, a entidade ignora o fato de que todas as exceções de uso não comercial de madeira nativa da Mata Atlântica por parte de comunidades tradicionais e de pequenos produtores rurais já estão minuciosamente regulamentadas no Decreto 6.660/2008, atualmente em vigor. >> Belo Horizonte tem menos área verde entre as 10 maiores capitais No caso da Floresta com Araucária, sua espécie símbolo, o pinheiro-brasileiro (Araucaria angustifolia), teve sua população tão explorada e reduzida que hoje sofre as consequências de uma forte erosão genética, conforme apontam diversos estudos científicos. O fenômeno é causado pela falta de conexão entre os poucos remanescentes naturais da floresta. Quando as espécies encontram muitos obstáculos para se comunicar e enviar o pólen de um framento ao outro, acontece a endogamia, que é o cruzamento com exemplares que tem parentesco entre si. Isso diminui drasticamente a variabilidade genética da floresta. A tendência dessa situação é que algumas populações, desprovidas de certos atributos genéticos, enfrentem sérias dificuldades para se adaptar mesmo em seus ambientes de origem, podendo até ser extintas. Não é por acaso que as espécies mais exploradas dessa formação vegetal, como o pinheiro-brasileiro, a imbuia (Ocotea porosa), a canela-sassafrás (Ocotea odorifera) e o xaxim-mono (Dicksonia sellowiana), já figurem na lista das espécies ameaçadas de extinção. Somente a proibição da exploração e a conservação dos ecossistemas em diferentes níveis de conservação podem minimizar essa perda genética. Atualmente, 164.651 mil hectares de Floresta com Araucária estão protegidos por Unidades de Conservação (UCs). Isso corresponde a apenas 0,65% da área original do ecossistema, um percentual insuficiente de acordo com as metas assumidas pelo Brasil em acordos internacionais. No Paraná, sobraram menos de 0,8% de remanescentes naturais em estágio avançado de conservação. Nesses espaços, reúnem-se áreas com maior diversidade e que resguardam as principais características das florestas primitivas. O problema é que boa parte delas ainda não está protegida por Unidades de Conservação. Diante de tamanha pressão, como mostram os números, todo esforço do governo e também da sociedade para salvaguardar a manutenção do ecossistema e aumentar o índice de áreas protegidas é fundamental. A Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que hoje restam apenas 12,5% de remanescentes florestais na Mata Atlântica com áreas acima de 3 hectares e somente cerca de 8% com mais de 100. Os dados também mostram que houve uma redução de 46% no desmatamento do bioma após a aprovação da Lei da Mata Atlântica, passando de uma média de 34.313 hectares desmatados em 2006 para 18.433 mil hectares em 2015. Apesar de ainda elevado em alguns estados – Piauí, Minas Gerais e Bahia somam 79,34% de todo o desmatamento –, a queda da degradação nos outros 14 estados inseridos na Mata Atlântica é superior a 90%, o que indica que a Lei vem atingindo seus objetivos. Por outro lado, estudos recentes como o Inventário Florístico Florestal de Santa Catarina, realizado pelo governo do estado em parceria com universidades, mostram um retrato extremamente preocupante do que restou das florestas do estado. Em Santa Catarina, 85% dos fragmentos florestais tem área menor que 50 hectares e a quantidade de espécies dos remanescentes florestais caiu pela metade. Por lá, existe uma média de 30 a 50 espécies lenhosas por remanescente amostrado, quando o ideal seria que esse índice variasse de 60 a 100. A regeneração natural da Floresta com Araucária é ainda mais baixa, indicando, em média, 15 espécies por fragmento florestal. Um quinto das espécies arbóreas registradas há 50 anos não foi mais observado em 2010 e 32% de todas as espécies arbóreo-arbustivas foram encontradas com menos de dez indivíduos no estado todo. Das dez espécies dominantes, oito são pioneiras e apenas uma ou duas climácicas – que definem o desenvolvimento final da sucessão vegetal. Um dos dados mais contundentes sobre a total inviabilidade técnico-científica de reabrir qualquer tipo de exploração madeireira comercial é o fato de que 95% dos remanescentes de florestas são formações secundárias, florestas jovens, com baixo estoque de diversidade, de biomassa e de carbono. Suas árvores têm troncos finos, copas estreitas e baixas, com pouco valor comercial. Os exemplos de Paraná e Santa Catarina são uma amostra do que ocorre na Mata Atlântica inteira, visto que nos demais estados a situação dos remanescentes em termos de percentual de cobertura em relação à área original é igual ou pior. Apesar de fragilizados, os remanescentes florestais da Mata Atlântica desempenham importantes funções ecológicas e fornecem serviços ambientais essenciais para mais de 120 milhões de brasileiros. A proteção dos mananciais e das áreas de recarga dos aquíferos, a manutenção da biodiversidade, a amenização do clima e a proteção contra os desastres ambientais estão entre os principais. É notório que a restrição à exploração comercial das espécies madeireiras, que já perdura por mais de dez anos, vem dando uma chance para a Mata Atlântica iniciar um lento processo de recuperação de sua estrutura e biodiversidade. Essa recuperação deve ainda levar décadas em razão do reduzido percentual de remanescentes espalhados em milhares de fragmentos isolados já altamente degradados por exploração madeireira predatória no passado. Portanto, além de não haver qualquer amparo legal, as intenções do Serviço Florestal Brasileiro ou da Unicentro não possuem qualquer justificativa para se consolidar, dado a reduzida área remanescente do bioma Mata Atlântica e a situação-limite, em termos de viabilidade ambiental, de suas espécies vegetais. Reabrir a exploração madeireira comercial na Mata Atlântica é assinar a sentença de extinção dos últimos exemplares de araucária, de canela-preta, de canela-sassafrás, de cedro, de peroba e de centenas de outras espécies vegetais e animais que ainda guardam a carga genética e permitem gradual recuperação da floresta. *Wigold Bertoldo Schaffer é ambientalista, administrador e especialista em políticas públicas ambientais. Foi coordenador do Núcleo Mata Atlântica do Ministério do Meio Ambiente entre 2003 e 2007 e fundador da Apremavi (Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida).