Revista Filosófica de Coimbra Publicação semestral do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Director: Miguel Baptista Pereira Coordenação Redactorial: Francisco Vieira Jordão e António Manuel Martins Conselho de Redacção : Alexandre F. O. Morujão , Alfredo Reis, Amãndio A. Coxito , Anselmo Borges , António Manuel Martins , António Pedro Pita, Edmundo Balsemão Pires , Fernanda Bernardo , Francisco Vieira Jordão, Henrique Jales Ribeiro , João Ascenso André, Joaquim das Neves Vicente, José Encarnação Reis, José M . Cruz Pontes , Luísa Portocarrero F. Silva, Marina Ramos Themudo , Mário Santiago de Carvalho, Miguel Baptista Pereira As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos Autores A correspondência relativa a colaboração, pedidos de permuta, oferta de publicações, assinaturas, etc. deve ser dirigida a: Revista Filosófica de Coimbra Instituto de Estudos Filosóficos Faculdade de Letras P - 3049 Coimbra Codex Subsidiado pela J .N.I.C.T. e pela Fundação Calouste Gulbenkian Revista Filosófica de Coimbra ISSN 0872-0851 Publicação semestral Artigos Miguel Baptista Pereira - Modernidade, Fundamentalismo e Pós-Modernidade ................................................................................ 205 J. Ma. Ga. Gomez-Heras - La Naturaleza Reanimada - Del Desencantamiento del Mundo en Ia Racionalidad tecnológica al Reencantamiento de Ia Vida en Ia Utopia ecológica ................ 265 Amândio A. Coxito - Ainda o Problema da Filosofia Portuguesa - Recordando Joaquim de Carvalho, no Centenário do seu Nascimento ............................................................................. 299 Francisco V. Jordão- Joaquim de Carvalho e Espinosa- O Acordo de Intenções no Campo político-religioso ................................. 309 Joaquim Neves Vicente - Subsídios para uma Didáctica Comunicacional no Ensino-Aprendizagem da Filosofia ........................ 321 Estudo Crítico Mário A. Santiago de Carvalho - Noção, Medição e Possibilidade do Vácuo segundo Henrique de Gand ........................................ 359 Crónica ................................................................................................ 387 Recensões ............................................................................................ 389 CRÓNICA FILOSOFIA E CULTURA NO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE JOAQUIM DE CARVALHO Decorreu nas instalações da Academia Figueirense o colóquio Filosofia e Cultura / No centenário de Joaquim de Carvalho, organizado pela Associação de Professores de Filosofia e submetido a um duplo objectivo: analisar a pertinência das interpretações filosóficas, estéticas e culturais de Joaquim de Carvalho e "fazer o ponto" dos conhecimentos actuais nos domínios favoritos do labor intelectual do ilustre mestre coimbrão. Três conferências e cinco mesas redondas preencheram os quatro dias de colóquio, que se realizou de 10 a 13 de Junho de 1992. Docentes da Universidade de Coimbra, quer da Faculdade de Ciências - como o Prof. Doutor António Amorim Costa - quer da Faculdade de Letras, e em particular do Instituto de Estudos Filosóficos, participaram activamente na iniciativa; é o caso dos Profs Doutores Carvalho Homem, Francisco Vieira Jordão, Maria Luísa Portocarrero Ferreira da Silva, Amândio Coxito, Fernando Catroga, Carlos André e dos Drs. José Carlos Seabra Pereira e Ana Leonor Pereira. Todos apresentaram comunicações a convite da entidade organizadora, num contexto multi disciplinar destinado mais a reflectir com (e a partir do ) trabalho de Joaquim de Carvalho do que a tomá-lo como ponto de referência erudito. E, neste sentido, pode considerar-se que a reflexão produzida pelos participantes (cuja publicação conjunta se prevê) constitui um momento significativo na cena historiográfico-cultural. O programa do colóquio procurou, de facto, articular de um modo coerente as principais linhas de força do trabalho de Joaquim de Carvalho, atendendo, como pressuposto fundamental, a que reflectir sobre ele significa analisar a textura filosófica da historiografia das ideias. A tese: "0 que somos, somo-lo pela história" conduz o Mestre de Coimbra a uma peculiar articulação entre Filosofia e História da Filosofia: dissipa a aparente "contradição que a história da filosofia parece conter intrinsecamente, ou seja a contradição entre o conceito de História como sucessão e diversidade de pensamentos, e o de Filosofia, como expressão da imutabilidade e eternidade da verdade" (Prefácio a Introdução à História da Filosofia , Arménio Amado Editor, Coimbra, 38 edição, 1974, p. 19); e, nessa linha, entende a Filosofia como "o conhecimento do sistema (ou da Ideia) que evolve" e a História da Filosofia, assim colocadas em relação com o necessário desenvolvimento da História, são Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) pp. 387-388 António Pedro Rita 388 terreno de opinião: "a filosofia ( diz-se ainda no mesmo texto) é conhecer mediante conceitos , não é opinar nem deduzir uma opinião de outra". De posse desta intuição, que vai progressivamente explicitando , Joaquim de Carvalho desenvolve um impressionante trabalho : começa por ser a elaboração das possibilidades de urna 1listória da Filosofia em Portugal ( publicação de fontes , reedição de textos básicos ); prossegue numa interpretação de alguns objectos favoritos , entre os quais não será excessivo salientar a ideologia republicana, a lógica interna do sistema de Espinosa e a descnvolução existencial e metal ísica de Aulero: inclui unia abordagem do problema de uma " lilosoti:l portuguesa", tornada questão relevante pelo trabalho sobre as condiçì es, os IcnIas e : is personalidades da Filosofia em Portugal ; clescinboca uuin:i elaboração te(iiica pró pria, distanciada do labor hisloriogrífico , embora primitivamente diluída cm miloliogratias sobre outros autores e em privilegiado diálogo com poetas (Anteio. Pascoaes). Assim, reflectir sobre a obra de Joaquim de Carvalho e: a) abordar os problemas da comunicação do teclo filosr^Jico ( trabalho exempiar como professor , administrador da Imprensa da Universidade, director da Revista Filosófica e coordenador da Biblioteca Filosófica da Atlântida Editora); b) reabrir a discussão ou tentar novas vias de debate para os filósofos da modernidade (Espinosa, Leibniz , Ilegel. Ilusserl , l)ilthey), para a ideologia republicana , para o problema da Ilistória da Filosofia em Por(ugal, para as possibilidades e resistências de uma verdadeira atitude científica entre nós e para a importância da literatura como capítulo de urna história das ideias; c) remeditar, no crepúsculo do paradigma moderno, o problema elo filosofar e não tanto a questão da filosofia (" O que importa é o filosofar e não a adopção de uma filosofia"). Os trabalhos que decorreram na Figueira da Foz procuraram ir ao encontro, precisamente , destas temáticas . O Prof . J. V. de Pina Martins fez a inscrição biográfica do percurso especulativo de Joaquim de Carvalho, na sessão de abertura . O Dr. Joaquim de Montezuma Carvalho, ensaísta e filho do homenageado, abordou o enraizamento concreto, existencial de qualquer filosofia e da atitude filosófica do Mestre. O Prof. Eduardo Lourenço , em comovida evocação , analisou o problema de Portugal no pensamento de Joaquim de Carvalho. E os Profs Viriato Soromenho Marques , João Caraça e Ana Luísa Janeira, bem como os Drs João Luís Oliva, Cabral Pinto , Adelino Cardoso e Manuel Dias Duarte, participaram, com os docentes da Universidade de Coimbra já referidos , nas mesas - redondas. Resultou , do conjunto de trabalhos , um Joaquim de Carvalho porventura inesperado , intérprete arguto mas discreto , elo insubstituível na compreensão actual da cultura portuguesa moderna, analista pertinente das articulações internas dos pensamentos mais do que das vicissitudes externas dos pensadores , filósofo inconcluso a caminho da explicitação de uma atitude filosófica própria. Se não houve conclusões emergiu , talvez, a complexidade coerente de paciente paixão, perseverança militante e irreprimível aspiração ao voo especulativo. António Pedro Pita pp. 387 -388 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) *til :$fiifl d^. f + 11iiN$1iRl^.dteila 'r,bs:xll^^ +i*w eSs s pa a ,. :ilkilMlANgO ** . p ... r ¡ : ^,lgtkl n s 4Of ^Y 1, f ïdiktõWlgk^ \ 9h outkdMl 417 f. {9 1^t:^C /d. MgáwJ, .. +riM gP!!^cy " l^w,1k;1-^ggAW'. ^.é^IMâ t , 1M,1 d'' OW F +ry+HO 'ia ì a,} , i RECENSÕES WESSELL, Leonard P.: El Realismo Radical de Xavier Zubiri - Valoraciónl Crítica. Ed. Univ. de Salamanca. 1992. El Realismo radical de Xavier Zubiri - Valoraclón crítica tem como objectivo confrontar o realismo de Zubiri com o idealismo de Josiah Royce , destacando num e noutro o que se oferece de mais específico e resistente às objecções da facção contrária, e mostrar que a dinâmica interna do realismo de Zubiri não permite concluir pela total independência da realidade em relação ao sujeito , sem o perigo de cair numa aporia: o real é o que se dá por si mesmo ao sujeito cognoscente ; o real é o que permanece sempre para além do mesmo sujeito. A obra consta de seis capítulos e cada um constitui uma etapa no processo de solução do conflito que opõe o idealismo ao realismo . No primeiro capítulo , tomando como ponto de referência a posição de N. Hartmann , o autor procura explanar a posição realista a partir do conceito de "realidade" e conclui pela problematicidade radical deste conceito: "mi interpretación me fuerza a desafiar a todos los Ilamados defensores de Hartmann a que me expliquem , es decir , a que hagan compreensible a mi conciencia cognoscente, sentiente , etc., cuál es el carácter general , positivamente expressado , de Ia realidad, de esta realidad -en-si, que está absolutamnete mas allá de, o allende , toda experiencia" (p.55). No segundo capítulo, o autor desenvolve o conceito de realidade em Zubiri e defende que o dado determinante para a sua concepção consiste no modo como ela se dá na intelecção: "realidad es formalidad o, en otros términos, un modo de estar presente en Ia intelección" (p.74). O terceiro capítulo oferece- nos uma permenorizada exposição de qual é, segundo Zubiri , o traço fundamental da realidade , o «de suyo» (o que lhe é próprio no dar-se à intelecção ), que constitui a essência da realidade, ou a realidade «simpliciter», a este único traço, Zubiri tende para um "nominalismo pluralista que se basa en un nominalismo monista , es decir, en Ia independencia absoluta y única que tipifica el «de suyo» en cuanto realidad transcendental y nada más " (p. 106). No quarto capítulo , é explanado o carácter problemático do realismo de Zubiri , em virtude da impossibilidade de precisar o que está na base da intelecção , o "facto puro", ou realidade « simpliciter», concluindo que um tal realismo, ao defender a independência total da realidade , tal qual é, em relação ao conhecimento que o sujeito tem dela , nunca pode gerar qualquer segurança no conhecimento : "si Ia conciencia o inteligencia no encuentra directa , inmediata y unitariamente Ia realidad como es, no tenemos ni certidumbre ni seguridad de que Ias representaciones representen Ia realidad verdadeira" (p. 144). O quinto capítulo é dedicado a mostrar que a capatação do "de suyo", ou da realidade « simpliciter", é impossível de descrever, pelo que não se pode defender que na base da intelecção esteja um "acto puro", independente de todo o contexto envolvente e da acção do sujeito: "el «de suyo » no puede ser aprehendido (primordialmente o simplemente ) en absoluto como lo que es simpliciter" (p. 200). No sexto e último capítulo, a partir da reflexão de Royce sobre o idealismo, Wessell Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) pp. 389-414 390 Revista Filosófica de Coimbra conclui que realidade não é mais do que "o que está aí como dado à consciência", ou o que se apresenta a uma apreensão ulterior e englobante: um «ex se-ad alium», bem expressivo da relatividade de todo o conhecimento. Com a sua interpretação do realismo de Zubiri pelo prisma do idealismo royciano, com notável firmeza de argumentos, grande coerência nas deduções, clareza de linguagem e precisão de conceitos, Wessell procura mostrar que, no acto primordial de apreensão, não existe uma "actualidade comum", como defende Zubiri, mas uma simples correlação intrínseca entre os dois polos, ou os dois momentos, tanto objectivos como subjectivos, da apreensão : o que está consciente e o que foi dado à consciência O que está em causa , para Wessell, é a possibilidade de conceptuali/ar a realidade de qualquer índole, independentemente da consciência. A sua conclusão e a de que a reali dade como alteridade - um "prius" objectivo - é sempre cunclauva ao aprcensãi - uni "prius" subjectivo - interessado nela. No acto de intelecção, ha sempre dois ' pnoia que não são independentes um do outro mas dois polos dum mesmo: a realidade e o que esta presente na medida em que me dou conta da sua presença. Wessell propôs-se "prescrutar" e, ao mesmo tempo, pôr a prova a filosofia de Zubiri. Como sublinha Mariano Alvarez Gómez (Presentación, pp. 15-17), a conjugação destes dois aspectos, investigação e prova, é um dos grandes méritos da obra de Wessell. Trata-se dum estudo de carácter valorativo. que resulta numa espécie de drama, com Zubiri por protagonista e Royce por antagonista, em que aquele pretende reconquistar a base autêntica da realidade , enquanto este se opõe tenazmente a este intento. Sem cair numa apologética fácil ou na exposição repetitiva nem numa crítica vazia ou sem ponto de apoio, Wessel desenvolve a tese de que, da realidade enquanto supostamente independente da consciência , não é possível dizer seja o que for, porque, de modo geral. só se pode falar com sentido do que se torna presente a nós e, por conseguinte, a realidade não pode ser pensada como independente do pensamento: além disso, a realidade enquanto tal, para ser pensada, tem de ser forçosamente algo discernido ou discernível por uma inteligência, o que quer dizer que a sua independência da consciência não significa necessariamente "fora de" ou para além de toda a consciência. No termo do seu estudo, Wessell constata que o realismo de Zubiri não somente é impossível de se manter sem pressupostos idealistas, como , mais ainda , encerra uma dinâmica intrínseca tendente à sua transformação em idealismo : se a realidade se torna presente na inteligência por impressões e a inteligência se constitui nela como impressão de, a reflexão de Zubiri move-se no círculo idealista entre a consciência da realidade e a a realidade consciente. Esta obra de Leonard Wessell, apesar do mérito que lhe reconhecemos para o esclarecimento duma problemática sempre actual, a da possibilidade de atingir o que as coisas são sem qualquer aportamento da actividade pensante, é susceptível de levantar algumas questões : constituirá Royce a única alternativa a Zubiri, ou apenas o opositor mais bem colocado para fornecer os argumentos da crítica feita a este? Não terá a consciência nenhuma capacidade de se transcender e de afirmar algo como independente de si mesma? Poderá dizer - se que o último possível de ser afirmado tem de ser restringido aos princípios, às categorias e aos conceitos inerentes ao funcionamento da mesma consciência? Nenhuma distinção pode ser estabelecida entre a consciência enquanto consciência e a consciência enquanto algo? Estas e outras questões ficam em aberto na obra de Wessell, porque, mais do que o problema da possibilidade de afirmar a independência do real em relação ao sujeito cognoscente , como penso que é preocupação de Zubiri, a investigação foi-se desenvolvendo no sentido de tornar dominante o problema de saber o que é que, no contexto dos limites e dos princípios prévios ou subjacentes à actividade esclarecedora do sujeito , pode ser afirmado . O que equivale a dizer que a questão ontológica de Zubiri é transformada por Wessell numa questão fundamentalmente gnosiológica. Francisco Vieira Jordão pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra -2 (1992) Recensões 391 DILTHEY, W.: Teoria das Concepções do Mundo, Trad ., Lisboa: ed.70, 1991, 162 pp. Publicados nos princípios deste século , acabam de ser editados entre nós, numa tradução de A. Morão, os dois textos que constituem a Teoria das Concepções do Mundo de W. Dilthey. Trata- se de dois ensaios da última fase do autor, que claramente revelam qual a sua grande preocupação: compreender o mundo da cultura como expressão significativa da vida histórica e concreta dos homens. Que para além do mundo fáctico, neutro ou puramente natural , sabiamente explorado pela ciência e técnica modernas, existe um mundo vivido originário, o mundo sofrido e significado , cuja textura simbólica ou intersubjectiva escapa a toda a lógica subsuntiva da objectividade e universalidade - eis o contexto mais geral que nos permite entender a pertinência das reflexões desenvolvidas nestes dois ensaios . W. Dilthey , o teórico das ciências do espírito , eminente representante das filosofias da vida , na sua reacção contra o naturalismo abstracto da Modernidade científica , procura mostrar - nos ao longo de toda a sua vida como a imagética que sustenta a ciência e cultura humanas faz parte da própria ordem da vida vivida pelos homens dando precisamente origem a múltiplas visões ou concepções do mundo . O mundo originário da vida é um mundo já sempre mediado pela ordem do sinal e da significação e, no entanto , sempre ainda por significar . Por isso, a grande tarefa de uma filosofia da vida é compreender as diferentes concepções do mundo que entretecem a nossa história , procurando simultaneamente estabelecer os fundamentos de uma nova gnosiologia , capaz de resolver o importante problema suscitado pela historicidade fundamental de todas as nossas imagens do mundo. O antagonismo entre perspectiva histórica e pretensão de validade universal de qualquer concepção de mundo constitui , pois , o eixo central em volta do qual se desenrolam as meditações feitas por Dilthey nesta pequena obra . É que são várias e muito diferentes as visões do mundo que caracterizam a nossa história. O mundo da cultura não é um conjunto de formas estáticas ou ideias a priori . E, apesar de permanecer a reinvindicação de universalidade de todas as visões humanas do mundo, todas elas acabam por se dissolver tragicamente no processo da história . A vida ultrapassa as suas próprias significações, apesar de nada ser sem elas. É um jogo inacabado de força e significação . Por isso , só a autoreflexão histórica pode resgatar os ideais humanos e suas múltiplas imagens do abismo do tempo e da inexorável marcha da evolução. Mas para que tal aconteça , é necessário descobrir , na "variegada multiplicidade dos sistemas , estruturas , conexões e articulações " ( 20). Por outras palavras : um mesmo pressuposto deve ser encontrado por detrás de toda a luta entre as diversas mundividências. É, de facto, de ordem preconceptual a solução para a variedade das perspectivas que entretecem a história . Não exprimem elas apenas a dimensão semântica ou visível daquele enigmático poder que distingue o homem ou vida vivida do objecto puramente inerte? A capacidade evolutiva do homem, essa dimensão prospectiva que o caracteriza enquanto projecto, antecipação ou ser inacabado , tal é o núcleo da imagem, ou o miolo do tempo, motivo pelo qual é introduzida no mundo a perspectiva , a expectativa, a significação ou imagem. É, pois, a vida na sua inesgotável capacidade de simbolização ou referência (transcendência ) a raíz última de toda a visão de mundo . Por isso , muitas são as possibilidades de o conceber. Por toda a parte, Religião, Filosofia e Poesia reflectem nomeadamente sobre o enigma da vida procurando torná- lo compreensível , na base de modelos, que transformam o que é confuso e absurdo numa conexão necessária de problemas e soluções (118). Da reflexão sobre a vida nasce a experiência da vida, afirma Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992 ) pp. 389-414 392 Revista Filosófica de Coimbra o autor revelando -nos, deste modo, a dimensão eminentemente histórica e mediata de toda a experiência humana. A ordem das significações, integra a própria ordem da vida, é mesmo a sua real condição - tal é a descoberta fundamental de Dilthey que o obriga a elaborar uma teoria das concepções ou linguagens do mundo, que procure respeitar a ,ua inevitável historicidade. l.ui.sa l'ortocarrero F. Silva SIMON, Josef: Filosofia da Linguagem. Trad. de A. Moi ãt). Lisboa, Ed. 70, 1990, 244 pp. Publicada em 1981, a obra Filosofia da Linguagens de J. Simon surge finalmente entre nós, numa tradução de Artur Morão. Neste texto interessante o autor analisa a inegável importância da linguagem no pensamento contemporâneo, em ordem a poder situar a tarefa concreta de uma filosofia da linguagem. Se, de facto, a linguagem ocupou, desde cedo, a cena filosófica - como o atestam o diálogo Crbtilo de Platão e a importante determinação aristotélica da linguagem como logos semântico, dotado de um tríplice carácter, pragmático (ou retórico), poético e apofântico - nem sempre os filósofos deram muita atenção aos problemas implicados na mediação linguística do seu pensamento, considerando-a, em regra. como puro acidente ou roupagem exterior. É, no entanto, já desde a crise nominalista dos universais e sua crítica ao conceito realista de linguagem que se prepara, no contexto da tradição filosófica ocidental, todo um movimento de ordem marcadamente epistemológica, cujo resultado foi a conversão linguística do filosofar iniciada por W. von Humboldt nos finais do séc. XIX. Com efeito, ao pôr em causa a pretensão directa de todos os nossos enunciados predicativos, o movimento nominalista abre caminho a uma forte tendência para a desvalorização da linguagem natural, que acaba por ter como contrapartida necessária a posição transcendental do sujeito moderno. O divórcio entre pensamento puro e linguagem natural consuma-se de um modo tal com a viragem transcendental da filosofia moderna que a questão da verdade - a questão filosófica por excelência - passa então a exigir uma fundamentação extralinguística dos nossos enunciados. Só a referência dos conceitos universais à experiência (elevada a verdadeira instância de fundamentação )(34) permite agora decidir da verdade ou não verdade dos nossos juízos. Mas a própria noção de experiência - o novo modelo de referência - é, como nos alerta já Kant, uma noção complexa, pois sem os conceitos que a ordenam (51) toda a observação humana é puramente caótica. O pensamento humano, os seus conceitos não têm um significado em si geral , nem tãopouco derivam simplesmente da experiência. São por referência à experiência , que ordenam e que, por sua vez, nada é sem eles. Tal foi o ensinamento fundamental da filosofia transcendental de Kant. Mas, Kant, diz-nos a este propósito J.Simon (45), parte ainda de um entendimento arquetípico, cujo pensar é plenamente adequado , isto é , pressupõe a identidade do sujeito na sua referência às formas com que pensa, ideia que mais tarde será radicalmente contestada. Na verdade, o advento, no séc. XIX, da problemática das ciências humanas e toda a questo da sua radical linguisticidade e historicidade, vai fazer-nos tomar consciência de que o pensamento humano tem uma consistência linguística finita; de que nada existe onde falta a palavra pp. 389 -414 Revista Filosófica de Coimbra- 2 (1992) Recensões 393 e de que toda a linguagem é uma visão específica do mundo que "sobressai como um comportamento interindividual"(79). A partir de W. von Humboldt e de toda a revisão da autocompreensão filosófica ocidental proporcionada pela problemática da finitude e historicidade do existir humano, criam- se, pois, as condições que obrigam a Filosofia a pensar , antes de mais, a sua mediação linguística. Grande parte do filosofar do nosso tempo considera mesmo que uma teoria dos signos ( e da sua radical intersubjectividade) deve preceder a antiga teoria das coisas, concedendo assim à filosofia da linguagem o lugar outrora ocupado pela própria Metafísica ou filosofia primeira . A filooofia da linguagem é, hoje, uma disciplina fundamental, que reorganniza o filosoficamente pensável, não devendo , pois, confundir-se com a mera análise linguística , desenvolvida com êxito e pertinência neste século, a partir de F. Saussure. Reflecte sobre a linguagem não para a tratar como um qualquer objecto particular mas para, a partir dela , reinterpretar o nosso próprio modo de ser e pensar, na sua eterna referência ao ser das coisas . Nem o conhecimento puramente conceptual, nem o conhecimento puramente empírico ou sensista são, hoje, hipóteses possíveis. Para o homem não existe de facto uma relação directa e imediata com o mundo e com os outros homens. A descoberta da finitude e historicidade do existir mostrou-nos, justamente , que a nossa relação ao mundo não é de posse , espelhamento ou coincidência, mas sim de referência , interpretação ou simbolização . Por isso, é hoje impossível sustentar um discurso inequívoco sobre a referência.É o poder hermenêutico -intersubjectivo da própria linguagem humana o objecto fundamental de uma filosofia da linguagem que apresenta assim um escopo simultaneamente ontológico, ético e gnosiol6gico. Luísa Portocarrero F. Silva BOAVIDA, João: Filosofia - do Ser e do Ensinar, Coimbra, Centro de Psicopedagogia (I.N.I.C.), 1991 , 540 + XIV páginas. O livro é constituído por quatro partes , distintas mas inter -relacionadas, que vamos tentar resumir com vista à compreensão da obra. A primeira ("Análise dos condicionalismos gerais postos pela Filosofia como domínio específico") procura compreender não s6 as condições gerais do pensamento filosófico como o seu "modus faciendi". Apesar da variedade quase ilimitada das suas manifestações, poderá resumir-se a uma necessidade de entendimento e a uma exigência racional quanto aos factores que o desencadeiam, a dois tipos de actividade intelectual, quanto ao modo da actuação predominante (a análise e a síntese), e a duas formas de concretização essenciais (o processo e o sistema). A segunda ("A adolescência como transformação e especificidade") procura justificar o carácter particular do comportamento e do pensamento adolescentes, com o intuito de compreender melhor o que se pretende ao nível do ensino/aprendizagem da Filosofia. Apesar do carácter em grande parte cultural da chamada crise da adolescência, o livro procura demonstrar que há efectivamente uma especificidade psico-afectiva e intelectual que se coaduna muito bem com o tipo de actividade que a Filosofia dominantemente exige. Ou seja, o livro pretende demonstrar que os alunos do ensino secundário têm em geral boas condições para a aprendizagem e para a actividade filosófica, e que a razão para a sua desmotivação frequente terá que encontrar-se em razões de natureza pedagógica e psicológica e não no âmbito da Filosofia propriamente dita. Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992 ) pp. 389-414 394 Revista Filosófica de Coimbra A terceira ("A educação e a concepção educativa como processos em evolução") procura, analisando o acto educativo , e a evolução a que tem vindo a ser sujeita a sua concepção , realçar não só a sua dinâmica integrada, mas, digamos, a sua funcionalidade, real e potencial . Passa ainda em revista os contributos psicológico e pedagógico para uma concepção da actividade educativa que concorre, no seu ponto de vista, para a abordagem que pretende para a Filosofia. A quarta parte enfim ("Esboço de uma didáctica geral para a Filosofia") pretende sintetizar os contributos das perspectivas anteriores (filosófica, psicológica e pedagógica) no sentido de encontrar uma nova abordagem para a I ilusnfia e, simultaneamente, uma didáctica diferente. As razões e os argumentos aduzidos nas quatro partes valem cm si mesmos ruas, numa segunda ordem, entrecruzarn -se numa espécie de conflucncia ou coeréncia orais profunda, porque inter-relacionada. Quero dizer, desde a primeira paute que rios apercebemos , tomando como ponto de partida a Filosofia, quer como interpretação/ fundamentação , quer como construção/interpretação, que a relação entre Filosofia e Pedagogia tem aqui uma nova perspectiva, uma inter-relação que não é habitual ver-se. Por um lado, a actividade filosófica é de natureza judicativa e oscila constitutivamente entre a vocação para o sistema e a dinâmica do processo que o apela. Por outro, a dimensão pedagógica, muito mais do que uma actividade complementar e extrínseca, surge aqui como uma componente intrínseca ao processo, como elemento determinante. Na medida em que a actividade filosófica real tem uma estrutura reconhecidamente pedagógica, e a vocação profunda da pedagogia é muito mais do que a arte de transmitir conceitos , as coisas alteram-se profundamente em relação ao que é habitual. Assim não só será necessário alterar a relação pedagógica, mas também a actividade na aula, que terá que passar a assentar na dinâmica do processo e não na estrutura do sistema. Não se nega a sistematicidade implícita da Filosofia; simplesmente toda a pedagogia moderna, do mesmo modo que alguns dos contributos mais significativos da Psicologia, apontam no sentido da necessidade de não esquecer o processo, ou esquecer-nos-emos da própria Filosofia. A quarta parte, por outro lado, ao propor uma didáctica para a Filosofia que corresponda " à natureza construtiva do processo filosófico", e depois de analisar numa perspectiva nova o tão falado problema da "ensinabilidade filosófica", estabelece pressupostos mínimos na concretização da actividade filosófica e na definição de objectivos. A qual definição (cognitivos, psico-afectivos e psicomotores: gerais, específicos, comportamentais) constitui uma solução suponho que original para este problema , visto que ao nível do ensino da Filosofia, sendo também indispensável a definição de certas metas, para que se possam alcançar aquelas que realmente interessam à Filosofia, é preciso dar-lhe, porém, uma formulação diferente e alterar a sua concepção, se não queremos ver de novo afastada a hipótese de uma iniciação filosófica adequada. Sendo esses objectivos, justamente , os que partem do próprio processo filosófico. Todos os outros se afiguram ilegítimos , pelo conteúdo que impõem e pela particularização (de escolas, de problemas) que, por este meio, imediatamente impõem à Filosofia. Quanto, enfim , aos objectivos capazes de proporcionar estas condições, reservamos aos leitores da obra a tarefa de encontrar a resposta... Na verdade , isto é apenas um esboço, e tendo a obra mais de quinhentas densas páginas, só uma leitura completa e atenta a poderá revelar em todos os seus aspectos significativos . Há, porém, desde já, e para incentivar os hesitantes, um aspecto que apraz registar : mesmo nas passagens mais complexas, o autor procura sempre tornar claro o seu pensamento . É sabido que não é a sinuosidade verbal que faz a boa filosofia, mas ainda há quem tenha dificuldade em o entender . E tratando-se de um livro que assumidamente defende a ligação indissociável da Filosofia e da Pedagogia, o esforço é de louvár. pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 395 Licenciado em Filosofia , que leccionou no ensino secundário durante vários anos, o autor especializou - se depois na área da Psicopedagogia , estando diariamente em contacto, teórico e prático , com os respectivos problemas . Daí que esta obra não seja o resultado de uma qualquer " congeminação abstracta ", e nem mesmo uma simples ( ainda que excelente ) tese de doutoramento . Ela é antes o fruto, maduro , de parte de uma vida apaixonada por estas questões. J. A. Encarnação Reis HARRIS, J. F. (Ed.): Logic, God and Metaphysics. (Dordrecht /Boston/ London, Kluwer Academic Publishers, 1992) IX+151 pp. A recepção do pensamento de A. N . Whitehead no continente europeu tem-se limitado a um conjunto muito limitado de investigadores embora esteja a aumentar o número de publicações sobre a filosofia do processo na Alemanha. Contudo, é, de facto, nos EUA que floresce uma teologia do processo bem como uma certa tradição de estudos sobre Whitehead . O livro que J. F. Harris edita inclui um conjunto de dez ensaios publicados pelo Grupo Kluwer como homenagem a Bowman L. Clarke, professor universitário que se distinguiu nas áreas da filosofia da religião, do estudo da filosofia de Whitehead e do "cálculo de indivíduos ". Por isso, os ensaios aqui reunidos reflectem precisamente sobre estes três centros de interesse do homenageado e sua interpenetração. Daí, a justificação do título Lógica, Deus, e Metafísica. Charles Hartshorne partilha com Bowman Clarke o interesse pelos grupos temáticos para que aponta o título deste volume . Contudo , divergem profundamente quer ao nível da construção sistemática quer no domínio da reconstrução interpretativa das teses fundamentais de Whitehead . Divergência que é explorada por Lewis S. Ford e confrontada com as interpretações de John Cobb, Jr. e William Christian em torno da problemática da concrescência divina (19-37). Trata-se de um tema complexo que envolve a difícil reflexão sobre o tempo e, muito particularmente, a análise da teoria do tempo desenvolvida por Whitehead como possível resposta à célebre distinção de dois tipos de tempo (a série-A e a série-13 baseada em relações de antes e depois) feita por J. M. E. Mc Taggart. Rem B . Edwards retoma as divergências de fundo em torno das noções básicas de "Processo e Deus" (41-57). Referindo- se a um estudo de Bowman Clarke em que este argumenta convincentemente que, apesar de Hartshorne defender a tese de que todas as preensões implicam uma causalidade eficiente , Whitehead distinguia claramente entre dois tipos de preensões, causais e presentacionais ( 54), R. E . Edwards conclui: "Clarke convenceu -me de que Whitehead acreditava na existência de preensões físicas não-causais de actualidades concretas . Não me convenceu de que tais preensões não-causais existem realmente" (55). John T. Dunlop analisa outro tema sobre o qual Clarke e Hartshorne divergem: o argumento ontológico (99-109). Neste ensaio de Dunlap , mais interessante do que a exegese das posições dos dois autores citados, é a análise das dificuldades comuns a ambos face a qualquer interpretação standard da lógica modal quer se trata do sistema T de Von Wright ou dos sistemas S4 e S5 de Lewis (104-108). A única saída possível seria optar por um sistema modal não-standard sabendo de antemão que estes sistemas são fracos. A posição de Hartshorne que pretende manter a validade do argumento independentemente de qualquer sistema formal, parece claramente insustentável. Revista Filosófica de Coimbra -2 (1992 ) pp. 389-414 396 Revista Filosófica de Coimbra James Harris, no estudo "Deus, eternalidade e a visão de parte nenhuma", examina alguns dos problemas relacionados com o atributo clássico da etern(al)idade divina desde a concepção judaico-cristã e o Primeiro Movente de Aristóteles até às concepções mais características da Modernidade com realce para os autores da tradição anglo-americana. Mas o objectivo principal de Ilarris é a avaliação da resposta whiteheadiana ao dilema do Movente Imóvel resultante da adopção por Tomas de Aquino da argumentação aristotélica para justificar a existência do Movente Imóvel (73-86). Mais urna vez, tudo passa por uma reflexão sobre essa dimensão central e extremamente dificil de articular que é a temporalidade. Eugene 'Churras Long aborda a questão do " plurali in icligiov, e Jn fundamento da fé religiosa " (87-97) a partir de um posição que se inspira no pens:unento de 1lcideggcr e de John Macquarric (88). Trata-se, portanto de um estudo que não se insere na tradição de que se reclama B. Clarke e a maior parte dos colaboradores deste volume. 1., sem dúvida, um dos estudos mais interessantes deste conjunto e que nos leva a uma questão que o leitor se pode colocar: qual dos quadros de referência, o heideggeriano ou o whiteheadiano, preferir? Evidentemente, que esta pergunta pressupõe um mínimo de abertura no horizonte de reflexão do leitor e uma reflexão minimamente estruturada a um nível meta -filosófico. Lucio Chiaraviglio escreve a partir de um contexto das ciências da computação e da informação sobre "alguns problemas novos para a especulação construtiva" defendendo a prioridade da metáfora do processamento da informação sobre a velha metáfora da representação ou da figuração (111-119). Lance Factor, no estudo "Regiões, limites e pontos" analisa criticamente a versão do cálculo dos indivíduos desenvolvida por B. Clarke focando a sua atenção sobre as consequências da substituição da noção primitiva de "overlap" de Goodman pela noção whiteheadiana de "conexão" (121-131). L. Factor sublinha a importãncia do trabalho de Clarke neste domínio uma vez que Whitehead não desenvolveu uma topologia nem dispunha de qualquer cálculo dos indivíduos. Na IV Parte dç Processo e Realidade, tudo o que se pode encontrar é um conjunto de definições e construções parciais bem como algumas sugestões . Daí a importância dos estudos de Clarke no desenvolvimento de um projecto de inspiração whiteheadiana. O último ensaio, de Bowman L. Clarke inclui a sua resposta a algumas das criticas à sua obra formuladas pelos colaboradores deste volume bem como a sua reflexão sobre os aspectos principais da interpretação do pensamento de Whitehead que ainda requerem um esforço por parte daqueles que se interessam por este tipo de filosofia (131-149). De facto, todos estes ensaios podem servir como exemplo de um modo peculiar de fazer filosofia que não é certamente o modelo dominante mas que é adoptado por um grupo minoritário da comunidade filosófica americana. Caracteriza-se, por um lado, pela referência nuclear à obra de Whitehead e, por outro, pelo desenvolvimento de instrumentos de análise lógica e rigorosa dos construtos teoréticos. Não é de forma nenhuma um livro adequado a uma introdução ao labirinto da filosofia do processo mas pode ser interessante para quem já possuir uma boa formação e informação filosófica e quiser explorar novos caminhos, confrontar pontos de vista diferentes , por à prova a autenticidade do seu pluralismo e tolerância. Aliás, este parece ser o espírito que anima a colecção publicada pelo Grupo Kluwer em que se insere este volume. António Manuel Martins pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 397 ZEKL, Hans Günther : Topos. Die aristotelische Lehre vom Raum. Eine Interpretation von Physik, 0 1-5. (Hamburg : Felix Meiner, 1990) VII + 289 pp. H. G. Zekl tem consciência das dificuldades que se deparam a quem quiser ocupar-se hoje com a Física de Aristóteles e muito particularmente com a doutrina do lugar/ espaço. Isto apesar de Heidegger ter caracterizado a Física, no seu conjunto , como "o livro fundamental da filosofia ocidental, ocultamente e por isso nunca suficientemente pensado" (Satz vom Grund , 112). Daí a necessidade de obter um horizonte a partir do qual seja possível ainda hoje reflectir sobre a Física de Aristóteles em geral e sobre a sua doutrina do topos sem desembocar numa floresta de enganos . Zekl define sumariamente este horizonte a partir de três caracteríticas fundamentais. Em primeiro lugar, o princípio da racionalidade : para Aristóteles , a sua reflexão sobre o topos insere - se num quadro de racionalidade metódica e crítica orientada pela observação e experiência e que não tem nada que ver com qualquer misticismo topológico ou cabalístico . A segunda característica seria a interdisciplinaridade dado que este tema exige como poucos o concurso da matemática , ciências da natureza e filosofia . A investigação interdisciplinar é apresentada hoje , muitas vezes , como um novo paradigma. Dentro dos seus limites, "a física aristotélica foi sempre interdisciplinar , no sentido de estar aberta e em comunicação com outros methodoi aristotélicos como: lógica, dialéctica , doutrina dos princípios, da matéria e suas transformações , astronomia , metereologia , psicologia , investigação sobre o comportamento , anatomia , movimento e reprodução dos seres vivos e ainda a metafísica"( 2). A terceira dimensão do horizonte aqui esboçado seria a Alternativa não-cartesiana , tornada urgente pela falência do paradigma científico - técnico dominante na Modernidade . Zekl parte da urgência de uma viragem , sublinhada, entre outros, por C. F. v. Weiszãcker . Não se trata aqui de reclamar um regresso acrítico a uma posição pré-moderna sob a forma de um retorno a Aristóteles mas sim de integrar a leitura do texto aristotélico no quadro de uma reflexão exigente sobre modelos alternativos de uma forma de ciência de tipo não cartesiano ( 3). O presente estudo de H. G. Zekl insere-se numa linha programática de interpretação do texto aristotélico definida por O . Gigon como a necessidade de dar prioridade a análises do texto aristotélico em que cada frase é interpretada por si e em função do seu contexto imediato de forma a chegarmos à reconstrução interpretativa do contínuo de determinado texto. Trata- se, portanto de uma microanálise do texto de Física 0 1-5 sobre o topos . Em rigor, nem Platão nem Aristóteles esboçaram qualquer teoria do espaço . A sua reflexão gira em torno da problemática do lugar dos corpos naturais. Daí a necessidade de situar o texto da Física sobre o lugar no quadro do pensamento aristotélico . Depois de uma série de considerações preliminares sobre o estado da questão (reconstrução do pensamento de Aristóteles , forma do texto, tema ), H. G. Zekl analisa a determinação fundamental do lugar/espaço nas Categorias fazendo, em seguida, um contraste com a definição quasi lexicográfica de topos em Metafísica 13 (21-46 ). O resto do livro gira em torno da interpretação de Física Ml-5, texto que tem como tema o lugar físico enquanto determinação central da physis. Os conceitos " infinito", "lugar ", " vazio" e "tempo", contrariamente àquilo que sucede com o de movimento ( Kinesis ), são problemáticos para Aristóteles no sentido em que há muitas coisas que não são claras a seu respeito a começar pela questão de saber se existem realmente ou não. Aliás, como é sabido, o vazio, por exemplo , não existe de acordo com o texto da Física e Aristóteles explica porque é que ele não pode admitir a existência do vazio postulada pelos atomistas antigos . Assim , o texto da Física apresenta - nos a análise aristotélica destes conceitos centrais em três momentos : existência (ou não), modalidade da existência e definição . O texto de Phys. A 1-5 segue igualmente este esquema genérico Revista Filosófica de Coimbra-2 ( 1992 ) pp. 389-414 398 Revista Filosófica de Coimbra que vai servir de fio condutor à investigação minuciosa de H. G. Zekl. Numa primeira aproximação , H. G. Zekl explora as antinomias físicas ligadas à tese da existência do lugar . Dado que o texto aristotélico é muito sintético no que se refere ao enquadramento histórico desta problemática (o que talvez não seja de admirar se nos lembrarmos que Aristóteles pensava que também nesta matéria não tinha recebido qualquer legado digno de nota ) tem particular interesse o Excursus sobre as opiniões dos antecessores de Aristóteles (56-69). A resposta à primeira questão parece fácil, pelo menos a nível intuitivo. O facto de os corpos naturais mudarem de lugar parece indicar que este e diferente de todos os corpos que podem "estar nele". Aliás, a existência de seis direcções diferentes, suposta no texto, implica urna teoria do movimento dos corpos naturais que vai no mesmo sentido (71-73). Contudo, a introdução de urna componente cosmológica nesta análise do lugar vem introduzir alguns factores de perturbação no quadro conceptual da 1 isica aristotélica. Num universo esférico como é o aristotélico, as direcções para cima e para baixo ( ou na linguagem problemática dos "lugares naturais": em cima e em baixo) podem ser de certa forma reinterpretados em termos de periferia (em cima) e centro do todo (cm baixo). Foi isto que fez a tradição de leitura irreflectida do texto aristotélico. partilhada pelos defensores cegos do Estagirita e pelos seus adversários igualmente pouco dados a um maior rigor hermenêutico. Esta reinterpretação já não é tão fácil de fazer - no universo esférico de Aristóteles - com os pares esquerda/direita, à frente/atrás. H. G. Zekl chama a atenção para alguns dos principais problemas que se colocam neste contexto (72-82). O primeiro momento da análise aristotélica termina com a conclusão de que o lugar existe e que todos os corpos naturais ocupam determinado lugar (88-89). Mas, mesmo que se dê por positivamente resolvida a primeira questão, resta ainda a difícil tarefa de encontrar uma resposta satisfatória à pergunta, o que é o lugar? Para chegarmos lá é necessário passarmos pela análise do segundo momento da reflexão aristotélica. Em ordem a clarificar melhor o ductus do texto, H. G. Zekl começa por salientar uma série de seis aporias relativas à definição e existência do lugar: tridimensionalidade, redução geométrica, noções de elemento e de causalidade, o paradoxo de Zenão de Eleia e o crescimento (90-100). Segue-se a análise do texto de 209a31-210al3 (101-118). Não se trata tanto de julgar os conteúdos objectivos adquiridos na análise como de salientar os processos argumentativos usados no texto. A análise das aporias permitiu encontrar uma primeira resposta a duas questões colocadas no início do texto em apreço (208a28). Por um lado, é manifesto que o lugar existe e sem admitirmos a sua existência não se pode compreender adequadamente a estrutura fundamental da physis que é a mudança (kinesis). Por outro lado, essas mesmas aporias mostram que não se pode aceitar acriticamente um conceito de lugar(topos) que nos leve a pensar que a existência do lugar e o seu modo característico são algo de imediatamente acessível e claro para todos. Daí que a tentativa de definição (210b32-212a30) seja inseparável dos problemas levantados ao longo da análise . H. G. Zekl faz uma análise minuciosa deste texto e dos pressupostos da argumentação aristotélica (136-210). Na última parte do livro, faz uma série de esclarecimentos complementares e algumas considerações sobre as principais consequências da análise aristotélica no âmbito da cosmologia e do quadro conceptual em que se desenvolve a física aristotélica (211-260). Estamos perante um estudo rigoroso do texto aristotélico que se orienta pela letra do texto de Phys. A 1-5, como não poderia deixar de ser, mas que não perde de vista o fio condutor principal que é o ductus da análise aristotélica do lugar . Por isso, é um livro que como o próprio autor sublinha, não se presta a uma súmula que compendie os resultados da análise pois o que há de mais importante aqui reside na própria investigação, no caminho penoso para a definição. Como H. G. Zekl diz, com alguma ironia , "aqui não existe a célebre escada que se pode deixar cair depois de com ela ter atingido um nível superior " (262). Também não é, como o próprio título o indica, pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 399 uma análise completa do conceito de lugar no Corpus Aristotelicum . Tal não seria viável se o autor quisesse manter o mesmo nível de análise e confinar - se a um número razoável de páginas . Entre outras coisas, falta a análise de textos centrais para a concepção do lugar em De caelo A, B e Met. XII, 8. Tal análise revelar -nos-ia , para além de novos aspectos da dimensão cosmológica, os traços centrais da dimensão antropológica do lugar. Porém, o objectivo principal de H.G . Zekl era fazer uma análise detalhada dos momentos por que passa a reflexão aristotélica em Phys . AI -S. Podemos dizer que a sua reconstrução foi levada a bom termo e de uma forma exemplar. António Manuel Martins HONNEFELDER, Ludger: Scientia transcendens. Die formale Bestimmung der Seiendlleit und Realitcit in der Metaphysik des Mittelalters und der Neuzeit (Duns Scotus - Suárez - Wolff - Kant Peirce). (Hamburg: Felix Meiner, 1990) XXIII + 568 pp. Ludger Honnefelder persegue neste trabalho uma intuição que já estava presente na sua dissertação sobre a metafísica de Duns Escoto, Ens inquantum ens (Münster, 1979) e que aparece muito claramente na parte final em que o autor procura situar historicamente o projecto de Escoto definindo -o como a transformação da metafísica em ciência transcendental ( scientia transcendens - precisamente o título da obra que agora nos cumpre analisar ) ( 396-404 ). Aquilo que naquelas páginas finais era simples alusão transformou-se agora em objecto principal de investigação . A prossecução de tal investigação insere-se num quadro de articulação da ontologia medieval com a ontologia moderna. O nexo entre as várias configurações históricas destas duas grandes épocas da história do pensamento é algo que está ainda muito pouco estudado . E o pouco que existe, pelos limites e parcialidade inerentes , conduz facilmente a uma floresta de enganos. Honnefelder aproveita toda a investigação por ele realizada sobre Duns Escoto e , recorrendo a toda uma série de trabalhos publicados sobre os principais pensadores da Modernidade designadamente sobre Kant, procura seguir as vicissitudes da recepção do conceito de metafísica como scientia transcendens no pensamento moderno . É claro que não se trata de simples recepção mas igualmente , em maior ou menor grau conforme os casos, de transformação do ponto de partida inicial . Assim, torna-se decisivo para o horizonte da investigação de Honnefelder a introdução da compreensão da realidade como a questão central que pode polarizar um interesse de algum modo comum aos autores investigados. Honnefelder desenvolve aqui um projecto paralelo mas de sentido inverso ao de Gilson em L'être et 1'essence . Aceita- se, nos seus traços gerais , a linha de desenvolvimento da influência da metafísica de Escoto em pensadores posteriores designadamente em Suárez e Wolff. O que Honnefelder não aceita é a superioridade do projecto tomasiano reclamada por Gilson . Pelo contrário , Honnefelder parte do pressuposto de que a definição da metafísica como scientia transcendens em Duns Escoto é não s6 o conceito de metafísica mais influente nos finais da idade média e princípio dos tempos modernos como aquele que é, de facto, teoricamente mais aceitável . Portanto , a haver superioridade de algum dos vários projectos de determinação da metafísica como filosofia primeira esboçados na época medieval , ela pertenceria sem qualquer margem para dúvida ao esboço de Duns Escoto . Esta é, de algum modo , a tese central de Honnefelder neste texto. A monografia de Honnefelder está estruturada em quatro partes e uma conclusão . Na primeira parte (3-199) desenvolve a concepção de Duns Escoto em que a metafísica teria sido definida, Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992 ) pp. 389-414 400 Revista Filosófica de Coimbra pela primeira vez, de forma clara, como scientia transcendens. Nesta configuração teórica, o ente seria definido primordialmente como "non repugnantia ad esse". Daí a importância crucial que assumem as modalidades e a necessidade de articular convenientemente a relação entre ente, possibilidade e realidade para compreender o discurso de Escoto sobre os "modi essendi ". Nesta primeira parte do seu trabalho, llonnctclder persegue dois objectivos estratégicos essenciais . Em primeiro lugar, aproveitando os trabalhos anteriormente realizados e as novas contribuições da literatura especializada, procura situar a metafísica de Escoto no contexto histórico que a viu nascer. Escoto pertence a urna segunda geração do confronto coar Aristóteles que levou a unia nova re(onnul:rçao da filosofia primeira nos sécs. XIII e XIV. Escoto não se confronta apenas tom Aristotcles e seus intépretes árabes mas também com os autores latinos que entretanto tinham desenvolvido a recepção do conceito aristotélico de mctafisica em varas sentidos Henrique de Gand, Godofredo de Fontaincs, Egidio Romano e Tontas dc Aquino. Mas o que importa a Honnefelder sublinhar é que o conceito de mctafisica desenvolvido por Escoto foi pensado para superar as dificuldades entretanto surgidas com os esboços dos autores da primeira geração mantendo uma pretensão de validade que não limitasse a intenção programática do texto aristotélico a ser uma interpretação do mundo e, por outro lado, não tivesse implicações destrutivas para a teologia cristã designadamente tornando a Revelação supérflua. Isto só poderia ser conseguido por uma metafísica que se compreendesse como ciência transcendental e partindo de uma crítica da razão. O segundo objectivo estratégico de que falávamos consiste precisamente na defesa especulativa do ponto de vista de Duns Escoto, assim entendido, como o mais satisfatório. E este o sentido da primeira parte desta monografia com uma análise sistemática dos principais temas e conceitos da metafísica de Duns Escoto. Estabelecidas as bases do projecto com a articulação e travejamento do edifício escotista, lonnefelder pode passar à segunda estação do seu roteiro: Francisco Suárez, tema da segunda parte (200-294). Honnefelder parte da constatação de que tanto Suárez como Wolff retomam quase literalmente as formulações escotistas "hoc cui non repugnar esse" e "quod aptum natum est existere" para definir "ens". Uma vez que a recepção daquelas fórmulas não parece meramente acidental e ocorre em textos centrais pergunta-se até que ponto Suárez e Wolff aceitaram e/ou transformaram o conceito de metafísica associado originalmente àquelas fórmulas. Honnefelder sublinha a ausência de monografias que explorem esta problemática nos autores citados. O fio condutor da reconstrução da sistematização da metafísica em Suárez é o conceito de entidade como "aptitudo intrínseca". Apesar de todas as incertezas que a falta de estudos críticos semeiam , Honnefelder procura reconstruir o projecto suareziano de uma filosofia primeira retomando a tese defendida já em 1919 por Minges, contra Grabmann , segundo a qual Suárez, nas questões centrais da metafísica, concorda com Escoto mesmo nos passos em que o combate, tese que a investigação mais recente sobre Escoto confirmaria (205). Toda a segunda parte da monografia de Honnefelder consiste numa análise do conceito de ens e sua explicação modal em Suárez que permitam uma justificação mais explícita e diferenciada daquela tese. A terceira parte, como não podia deixar de ser , ocupa-se da transformação da metafísica em ontologia geral operada por Christian Wolff (295-381). Trata- se aqui de desenhar os contornos de uma filosofia primeira que compreende a entidade como "não contradição". Para sublinhar a importância histórica de Wolff, Honnefelder recorda que, em 1735, nas escolas e universidades alemãs havia 112 lugares ocupados por fiéis discípulos de Wolff (298). Kant teria tomado contacto com a tradição da metafísica clássica precisamente através destes discípulos de Wolff. Daí a importância estratégica desta terceira parte dedicada a Wolff a que acresce o facto de Honnefelder não dedicar nenhum capítulo a Kant. Isto não significa que o filósofo de Kõnigsberg esteja ausente da investigação de Honnefelder. Pelo contrário, é a figura de referência para todas as vias, aqui exploradas , de definir os contornos de uma pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 401 filosofia primeira como "ciência transcendental". Neste sentido , ele está presente ao longo de todo o texto mas aparece de forma mais explícita a partir dos capítulos dedicados a Wolff e sobretudo na conclusão ( 403-486 ) designadamente nas pp . 443-459 . A última parte da monografia de Honnefelder tem por objecto a análise do conceito de metafísica em Charles S. Peirce ( 382-402 ). Peirce não se enquadra na linha de recepção do conceito escotista de metafísica que liga Duns Escoto a Wolff. Contudo , na medida em que faz uma referência explícita ao conceito escotista de "realitas " pode - se legitimamente perguntar até que ponto Peirce retoma aquele conceito de realidade e a determinação formal de entidade que lhe está associada . Esta conexão Escoto - Peirce já tinha sido explorada anteriormente por alguns estudos . Contudo, Honnefelder espera contribuir com algo de positivo para este debate fazendo uma reconstrução apoiada na investigação mais recente sobre Escoto. Assim , explora a definição da metafísica em Peirce como "theory of reality ". Realidade que é definida como objecto da "definite opinion" em Peirce. Como já salientámos , o objectivo principal da monografia de Honnefelder consiste na reconstrução crítica do projecto de uma filosofia primeira enquanto "scientia trancendens " e da compreensão da determinação formal da realidade e entidade que lhe está associada em Duns Escoto. Quem tiver um conhecimento minimamente satisfatório do texto de Escoto sabe que as proposições metafísicas nele contidas se encontram esparsas na sua obra teológica e , por isso, saberá igualmente apreciar o mérito da síntese oferecida por Honnefelder . O facto de esta problemática não se encontrar desenvolvida na bibliografia especializada para cada um dos autores citados levou o autor a desenvolver pequenas monografias sobre cada um deles a partir de um conjunto de textos relevantes para o tema . Contudo , verifica - se um esforço para não violentar o texto dos autores analisados procurando reconstruir , num primeiro momento , o ponto de partida característico de cada um dos autores . Só num segundo momento se faz a comparação crítica com o ponto de partida de Escoto detalhadamente analisado na primeira parte da obra. No capítulo final , Honnefelder resume os principais resultados da sua investigação e procura articular melhor alguns aspectos teóricos , refutar algumas críticas mais correntes às posições dos autores estudados . O tema é interessante e este estudo contribui decisivamente para explorar um possível horizonte comum às várias filosofias representadas pelos autores indicados no subtítulo a partir do qual será eventualmente viável um diálogo . Seria talvez necessário , a partir daqui, ter mais presentes as diferenças e ver até que ponto o diálogo pode ser frutuoso noutras direcções . Além de uma boa bibliografia , o texto de Honnefelder inclui um índice de citações bem como índices de temas e de nomes. António Manuel Martins BURNS, Linda Claire: Vagueness. An Investigation finto natural Languages and lhe Sorites Paradox, Dordrecht/ Boston/London, Kluwer Academic Publishers, colecção Reason and Argument volume 4, 1991, 202 págs. + xii. Integrado numa colecção dedicada a temas de Lógica iniciada nos fins dos anos 80 na editora multinacional Kluwer, o presente livro de L. C. BURNS aborda temas e problemas semânticos que se levantam na análise das linguagens naturais. O grupo disciplinar a que pertencem as suas investigações pode considerar-se o da Semântica das Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) pp. 389-414 402 Revista Filosófica de Coimbra Linguagens Naturais . A obra divide-se em duas partes. A primeira parte (Puzzles, Problems and Paradoxes ) investiga o conceito do vago, tal como ele surge perspectivado directa ou indirectamente em G. FREGE, B. RUSSELL, L. WITTGENSTEIN, R. CARNAP, D. DAVIDSON, D. LEWIS. A abordagem da autora não se limita ao histórico das acepções do vago e propõe-se examinar este conceito não apenas em sede semântica, mas também na pragmática , na psicológica e na ontológica. Esta parte contém três capítulos. A segunda parte (The Sorites Parador) é constituída por seis capítulos. Aqui, o leitor encontrará uma aplicação do conceito do vago da primeira parte à resolução dos paradoxos semânticos que podem surgir de argumentos do tipo do Sorites. Um dos problemas básicos com que se defronta a autora é o de saber se o vago e uma cararteristira das linguagens naturais eliminável pela via da formalização lógica ou se o vago e irredutível a semântica lógico-formal e é, para além disso, objecto de dilucidação no uso quotidiano das linguagens naturais, na dependência de contextos válidos para interlocutores com competência linguística e comunicativa. Esta forma de apresentação da questão do vago leva a autora a encarar a abordagem pragmática como mais decisiva do que a estritamente semântica , em concordância com a posição analítica de D. LEWIS. A serie argumentativa em causa no Sorites exemplifica de um modo claro a utilização do vago no encadeamento de raciocínios, que levam a conclusões inesperadas ou paradoxais. Na primeira parte, L. C. BURNS começa por nos referir o carácter vago e impreciso do próprio conceito do vago, o que pode enunciar-se dizendo que o vago "se diz de muitas maneiras ". O seu ponto de partida na tarefa de clarificação é a posição de G. FREGE, a qual pensa o vago como uma imprecisão das linguagens naturais. L como um defeito de significado (deficiency of meaning) que K. FINE descreve o vago. A caracteristica distintiva deste fenómeno frente às indefinições, por exemplo, radica em que o vago se aplica aos predicados das proposições e às condições de aplicação desses predicados a casos e objectos possíveis. Podem assumir-se duas posições teóricas a partir da constatação deste traço distintivo: 1. o vago é um fenómeno linguístico e é uma propriedade semântica de tipos de expressão das linguagens naturais (FREGE, FINE): 2. o vago resulta dos usos da linguagem , que são ou não considerados como vagos. Neste último ponto de vista, ele não é uma propriedade semântica mas sim pragmática, ou conviria dizer melhor, semântico -pragmática (F. WAISMANN, LEWIS). A atitude pragmática de D. LEWIS conduz a uma situação do vago que a autora retém: o vago existe onde há tinta multiplicidade de linguagens precisas alternativas para falantes numa comunidade (pág. 9). Este enunciado leva implicado o pressuposto de que as linguagens naturais como códigos linguísticos são indiferentes, em si mesmas, ao vago ou não vago das expressões que os falantes possam realizar com base na sua competência linguística. Para LEWIS, o vago depende de certas convenções linguísticas originadas numa população e dos hábitos linguísticos dos falantes . O "segundo- WITTGENSTEIN abandona nas Investigações Filosóficas as teses de FREGE sobre o carácter defeituoso das linguagens vulgares, quanto à sua capacidade para gerar expressões com significado coerente. O acento posto por WITTGENSTEIN no uso da linguagem , viria a recobrir a intenção semântica da definição dos termos a partir da relação entre os factos do mundo objectivo e os conceitos mentais, com a ideia de que a linguagem quotidiana possui mecanismos próprios de clarificação semântico-pragmática dos termos, na dependência da conversação e do uso de regras. Mas, uma regra do uso de certos termos não pode ser entendida como uma fórmula infalível para a aplicação desses termos a todos os objectos possíveis, numa subsunção mecânica. Uma outra ordem de problemas em torno das expressões vagas aparece-nos quando ligamos a linguagem a certos estados mentais . Daqui resulta a versão psicológica do problema do vago. L. C. BURNS mostra toda a relevância da dimensão psicológica a respeito das crenças , em que o vago parece oscilar quanto a ser determinado pela natureza pp. 389 -414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 403 da realidade psicológica ou pela expressão linguística dessa realidade : vaga expressão de uma crença precisa ou expressão exacta de uma crença vaga? A referência ontológica do vago é enunciada na proposição (d) da página 14, na ideia de que objectos, acontecimentos ou estados de coisas no mundo podem ser vagos. A autora não se ocupa longamente com a tese do vago nas coisas e apresenta a refutação liminar de D. M. ARMSTRONG, para a qual ser é ser determinado. No mesmo sentido irá M. DUMMETT que afirma o carácter pouco inteligível de uma tese que defende o vago nas coisas actualmente existentes. No ponto 1.3 do capítulo 1, a autora diferencia dois tipos , com base no que é commonly supposed by philosophers: 1. a variedade do vago dos "casos de fronteira" (borderline case vagueness ), do tipo de FREGE, inerente às linguagens naturais e fonte de paradoxos; 2. o tipo das indefinições, que se funda tanto na linguagem como em fenómenos psicológicos. De um modo geral , o vago do tipo "borderline" e o vago típico das indefinições distinguem -se pelo facto de no primeiro caso existir o vago se uma proposição contiver expressões ou termos com casos de aplicação do tipo "borderline". No segundo caso o vago acontece em graus . Aqui, uma proposição é tanto mais vaga quanto maior for a extensão da sua aplicação verdadeira a casos possíveis . Em qualquer destes casos , estamos em presença de violações da Lei do Meio Excluído e do Princípio da Bivalência . O vago nestes dois tipos distingue -se ainda da ignorância (pp. 22-23). Com efeito, existem casos em que o valor de verdade de uma proposição não pode ser inteiramente determinado por falta de conhecimento objectivo do referente dessa proposição. Mas este aspecto não pode comparar-se com o conhecimento vago actual que eu retiro de uma proposição. Os valores de verdade referentes à aplicação de um predicado considerado vago a um caso podem, em certas circunstâncias , depender de decisões ad hoc, no sentido do alargamento da verdade ou falsidade para o caso em questão. A introdução de decisões ad hoc é um caso particular de intervenção de convenções a propósito de indeterminação semântica . Outro caso de controlo da indeterminação é possível quando ocorre a explicitação de pressuposições de background, no uso de certas palavras. O capítulo 1 é decisivo na economia da obra para o esclarecimento das distinções operatórias dos outros capítulos. É por isso que têm uma grande importância as páginas dedicadas aos sentidos "forte" e "fraco" do vago, na acepção do borderline case vagueness (sobretudo pp. 24 e ss.). No sentido forte do vago do tipo "borderline", um predicado é considerado vago se a linha de demarcação entre as condições positivas , negativas e neutras da sua aplicação para casos possíveis não tiver sido estabelecida com clareza. No sentido comum do predicado "vermelho" não está disponível uma demarcação infalível entre as coisas "vermelhas" e os casos "fronteira" em que o vermelho desliza para o "laranja", por exemplo. De acordo com o sentido forte , este predicado é considerado "vago". O conceito de vago que se encontrou a propósito da posição de FREGE aproximase deste sentido. No sentido fraco do vago existe indeterminação sobre até onde se devem estender os limites de aplicação de um predicado vago. Nesta acepção, as instâncias neutras da aplicabilidade dos predicados são instâncias potenciais e meramente potenciais da extensão dos predicados. A ausência de incerteza actual seria um motivo suficiente para se considerar que não existe , como tal, o vago . Assim, o sentido fraco s6 pode considerar-se um conceito genuíno do vago se a classe neutra for considerada do mesmo modo que a extensão actual da incerteza quanto à aplicação do predicado. Outro fenómeno linguístico associado e que permite atribuir toda a importância que merece o conceito de FREGE é a existência de inconsistências. O que é uma inconsistência? Uma inconsistência emerge no uso actual de uma linguagem natural, quando vários locutores dessa linguagem concordam com a existência de uma discordância fundamental sobre a extensão de um ou mais predicados para um caso particular do uso Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) pp. 389-414 404 Revista Filosófica de Coimbra desse(s) predicado(s). Os continua seriam determinantes a este respeito, na análise deste tipo de casos : é necessária uma certa continuidade no uso de termos para distinguir. num uso possível , quando um predicado ainda é ou deixa de ser aplicável a uma classe determinada dos seus casos eventuais. A discussão do ponto 1.7 (The Evidence for Fregean Vagueness) acaba por conduzir à afirmação positiva de que "uni termo é intensionahnente vago se o seu significado permite a possibilidade de casos de fronteira' (p. 29). Mas desta conclusão vão resultar ainda algumas proposições decisivas sobre o vago no sentido de FREGE, que vale a pena agrupar: 1. onde existe o vago no sentido da semântica intencional fracassa toda a tentativa de desenhar uma linha de demarcação rigorosamente nítida da classe dos casos "borderline", pois ha sempm uni .uplemento de outros casos "borderline", que não se incluiram na classe inicial e que a todo o momento podem ser descobertos. A hipótese do vago no sentido fraco e aqui questionada. 2 A existência de uma open texture e decisiva na aceitação do conceito Iregeano-lorte do vago. A open texture resulta da forma habitual como aprendemos os ternos, a partir de casos exemplares da aplicação desses termos ou de estereotipos: —0 dominio da maior parte dos termos vulgares é adquirido em situações nas quais eles são aplicados a altuns objectos salientes, a partir dos quais o aprendiz está preparado para extrapolar para tuna mais ampla classe de coisas" (p. 29). Mas esta extrapolação é possivel somente porque o sentido dos termos aprendidos se não restringe ao contexto da sua aprendizagem. Isto implica que a forma da aprendizagem não traz consigo uma regra infalível da aplicação dos predicados a casos diferentes. 3. Se a regularidade no uso da linguagem (das regras do uso dos termos) revela uma fundamentação normativa, a noção de open lexture mostra que não possuímos regras de tal natureza, que governam o uso dos termos para todas as circunstâncias imagináveis. 4. Mesmo os termos utilizados de acordo com definições no campo das Ciências Naturais (natural sciences) mantêm uma margem de indeterminação, que apenas pode ser limitada por critérios extra-semânticos. como o escopo do significado de tais termos em um estádio determinado da pesquisa nessas ciências. A legitimidade da relação entre certos usos linguísticos e certos termos nas linguagens naturais , costuma ser identificada com o consensus gerado nas comunidades linguísticas sobre esses mesmos significados. A ideia do consensos comunitário aparece como uma "necessária idealização" da inconsistência no uso actual das línguas naturais. Esta concepção foi alargada no trabalho de K. LEHRER (1984), que a autora cita (p. 33), a um conceito matemático do consensus, com base num tratamento das "probabilidades semânticas ". A base empírica possível para se poder falar de um comportamento discursivo (speech behaviour) ligado a comunidades linguísticas é a regularidade no uso de certos significados. Esta regularidade pode exprimir-se mesmo do ponto de vista estatístico . As regularidades estatísticas sobre os usos habituais podem dar, também, a indicação da natureza e frequência dos usos vagos. A autora segue aqui M. BLACK na sua proposta de um "perfil de consistência". A apreciação quantitativa do vago pode exprimir - se concretamente por intermédio de uma função. Esta será a função de consistência da aplicação de predicados a objectos ou ocorrências e expõe-se na forma geral : C(F, b), em que C designa a consistência, F o predicado e b o objecto. A quantificação exprime - se no limite min, em que "m" representa numa amostra de juízos, as ocorrências positivas da aplicação de "F" a "b" e "n" representa para a mesma amostra o número de aplicações de -F. A autora exemplifica com abundância as possibilidades de utilização desta fórmula . As tentativas de formalização e quantificação apenas revelam, todavia , como a noção do "falante competente" de uma linguagem natural é tão vaga e variável. A abordagem que a obra faz das concepções pragmáticas de LEWIS tem, como frutos imediatos , as seguintes conclusões : 1. as noções no quadro da "Semântica Geral" de pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 405 LEWIS permitem uma fundamentação mais clara da ideia de linguagem comunal, do que a visão do consensus com base estatística; 2. permitem uma resposta ao desafio da clarificação do relacionamento entre linguagens naturais vagas e os seus modelos formais precisos e exactos; 3. a abordagem que ele fez da linguagem natural permite que o vago seja tomado "mais a sério". Segundo LEWIS, existe uma linguagem natural desde que se reunam determinadas condições: uma possível linguagem L é a linguagem actual de uma população P de falantes, quando eles usam L para certos propósitos comunicativos em conformidade com a convenção (p.37). Toda a questão reside aqui em saber o que se deve entender por Convenção. O conceito de convenção possui uma relação muito estreita com a regularidade no uso. Uma convenção existe , aliás, se a ela corresponder alguma regularidade empírica. Mas uma regularidade só pode tornar-se no objecto de uma convenção, se as condições de veracidade que são válidas para ela, coexistirem com condições complementares de veracidade em outra linguagem, mas de um modo alternativo. Depois de analisar em 2.3 as teses de LEWIS sobre a convenção , a autora aborda em 2.4 a tese de D. DAVIDSON sobre a relação entre as teorias semânticas e a teoria da verdade. O capítulo 3 destina-se, em larga medida, à apreciação da importância da aplicação dos valores de verdade à questão do vago. Na parte II da obra sobre o Sorites, L. C. BURNS analisa , entre outras, as teses de M. DUMMETT e de C. WRIGHT. Estas teses afirmam que se as linguagens naturais são estruturalmente alicerçadas no uso de asserções e de predicados vagos, isso se deve a uma característica interna e não a uma ignorância de teorias semânticas que lhes seriam aplicáveis, no sentido de as purificar do vago, da incoerência e do paradoxo. O Sorites não poderia pura e simplesmente resolver-se, como paradoxo lógico, no quadro das inconsistências essenciais das linguagens naturais . DUMMETT e WRIGHT parecem ambos concordar em que é impossível afastar o vago das linguagens naturais. Resumidamente, os argumentos destes dois autores ou levam à admissão do sentido fregeano do vago (sentido forte) e, desde logo, à impossibilidade de resolver as séries argumentativas do Sorites; ou à tese de que não há expressões genuinamente vagas. Aqueles autores, se concordam com a posição de FREGE sobre o vago como fonte de incoerência, dele discordam quando se trata de impôr a sua liquidação, em nome da univocidade do significado. DUMMETT reafirma de um modo claro a tensão que existe entre as posições de FREGE e WITTGENSTEIN a propósito do vago como fonte de incoerência. Neste passo, a autora reconhece a sua concordância com a atitude de WITTGENSTEIN, no sentido de que a linguagem de todos os dias possui uma profunda coerência semântico-pragmática, não obstante a presença do vago. Coerência não significará, portanto, univocidade. No Sorites, o princípio da série argumentativa é uma proposição cujo predicado deve poder aplicar-se a uma corrente contínua de proposições até à conclusão. O Sorites traduz-se numa aplicação contínua de um predicado vago numa série argumentativa. De acordo com o capítulo que conclui o presente livro (especialmente 9.2, pág. 177), o Sorites implica casos do vago no sentido fregeano, quer dizer, ele ocorre quando certos termos vagos se aplicam a um discurso, sem que seja possível traçar uma linha de demarcação entre aplicações incorrectas e correctas do mesmo termo, no sentido de aplicações a casos do tipo "borderline". Uma das questões que se pode colocar a respeito da aplicabilidade em série do termo vago é a de saber qual o limiar de autenticidade e veracidade da aplicação, isto é, qual a última proposição no interior da série, para a qual é correcto aplicar certo termo (p.181). A autora defende a importância da relação entre contexto, observador e interlocutor na determinação desta legitimidade. Assim, a opção pelo uso de um termo a respeito de um novo membro da série no Sorites, depende não somente do relacionamento entre conceito mental e estado de coisas objectivo, como mais decisivamente da opção por parte dos falantes de modalidades de uso determinadas e Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) PP• 389-414 406 Revista Filosófica de Coimbra precisas dos mesmos termos em diferentes facetas da linguagem de uma comunidade linguística . Este entendimento dos problemas semânticos que se levantam no quadro do Sorites, não é um entendimento semântico mas pragmático. É nesta direcção que a autora orienta as suas conclusões. Edmundo Balsetnão THOMPSON , Janna : Justice and World Order, 1.undun/Ncw Yurk, Routledge, 1992, 211 páginas. Os acontecimentos políticos mundiais mais recentes, que abalaram as crenças das gerações da Guerra Fria e da divisão do mundo em blocos, colocaram problemas ao homem comum, ao jornalista , ao historiador; ao jurista e ao político; ao economista e ao sociólogo; tal como ao físico preocupado com o alcance industrial-militar das suas pesquisas , e ao biólogo interessado nos graves problemas ecológicos. Mas, o grau em que estes acontecimentos perturbaram os filósofos é tão variável, quanto e diferente o alcance que eles atribuem à sua própria actividade teórica. O livro de Janna Thompson deve contar-se no número daquelas obras em que o interesse pela Filosofia é tomado como indício de empenhamento na inteligibilidade de tudo o que ocorre. Mas, ao mesmo tempo, mantém tal interesse no domínio da mais rigorosa exigência teórica e argumentativa. As "relações internacionais" constituem o objecto imediato da obra, no que se pode considerar um excelente texto de introdução ao agrupamento disciplinar que se designa sob este título comum. Todavia, a intenção filosófica da autora acaba por recobrir este domínio de investigação das pesquisas políticojurídico -sociológicas com temas filosóficos iniludíveis, do ponto de vista da tradição da Filosofia política, como são os da Justiça, da Comunidade Universal, da Paz, da Soberania, da Democracia ; do Cosmopolitismo e do Nacionalismo; da Comunidade e da Sociedade. A intenção filosófica aparece também ao leitor numa perspectiva histórica, nas abordagens dos autores que a autora considera fundamentais: Hobbes, Locke, Rousseau, Fichte, Hegel, Marx e Rawls. O livro divide- se em duas partes, que coincidem com duas modalidades diferentes da aproximação ao mesmo género de problemas: parte 1 "De um ponto de vista cosmopolita" e parte II "De um ponto de vista comunitário". A parte 1 contém cinco capítulos e a parte II quatro. A Introdução e o capítulo 6 da parte II conheceram versões anteriores , publicadas em revistas da especialidade. Qual é o problema nuclear da presente obra? O de dar resposta às condições de possibilidade da justiça na ordem internacional . As diferentes questões que começam a abrir- se a partir desta sugestão genérica vão todas elas agrupar-se, como é natural, num conceito de Justiça "doméstico", que é, já por si, um conceito atormentado. Contudo, J. Thompson segue , no geral , a concepção dos "dois princípios da justiça", tal como foram enunciados na obra de J. Rawis, A Theory of Justice (1971). Rawls foi particularmente incisivo no seu enunciado (cf. A theory of Justice, 1. 2. § 11). O primeiro princípio : cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema o mais extenso de liberdades de base iguais para todos, que seja compatível com o mesmo sistema para os outros. O segundo princípio: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas, de tal modo que , ao mesmo tempo; a) se possa razoavelmente esperar que sejam vantajosas a cada um e b) que se relacionem com posições e funções abertas a todos. Estes dois princípios são, para Rawls , particularizações de uma concepção mais geral da justiça: pp. 389 - 414 Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) Recensões 407 todos os valores sociais - liberdade e possibilidades oferecidas ao indivíduo , proventos e riqueza, tal como as bases sociais do respeito de si mesmo - devem ser repartidos igualmente, a não ser que uma repartição desigual de um ou de outro destes valores seja mais vantajosa para cada um. Este último conceito do justo "doméstico", quando aplicado à ordem internacional tal como a conhecemos, coloca imediatamente os problemas de uma distribuição da riqueza mais respeitadora da equidade . Na perspectiva de J. Thompson, a justiça internacional tem de enfrentar problemas desta natureza, não podendo quedar- se numa orientação meramente formal, baseada nos princípios consagrados do respeito da soberania dos estados . Porém, não é só num plano doutrinal que se põem as dificuldades da adequação dos "dois princípios da justiça" às relações internacionais . O principal obstáculo reside na própria organização internacional. É pelo facto de admitir a organização internacional no terreno da própria teoria internacional da justiça, que a autora pode submeter as doutrinas filosóficas a uma dupla mediação: a que se refere às instâncias político-práticas da assumpção internacional do justo , e a mediação pelo "utópico" que, nesta sede , significa a pré-figuração da "ordem mundial justa". Logo na Introdução é feito o mapa doutrinal do percurso da obra , com base naquela dupla mediação. Aí se distinguem algumas doutrinas sobre a realidade internacional, umas mais divulgadas do que outras. O "realismo" na política internacional, por exemplo, é uma doutrina que nega possibilidades de aplicação dos princípios da justiça doméstica à ordem mundial dos estados . O "realismo" parte da visão da ordem mundial como de um cenário "pessimista" de afrontamento explícito ou previsível, regional ou global , entre potências. Para os autores "realistas " (de Tucídides a R. Aron) qualquer acto de um Estado que não suponha um cálculo sobre as suas próprias oportunidades em conflitos mais ou menos generalizados , é um acto inconsequente na política internacional desse Estado. As críticas ao "realismo " partem de uma ideia mais "realista" da realidade internacional , desde logo naquilo que se refere à existência nas democracias liberais de um processo decisório determinado por normas constitucionais , sobre matérias relativas à guerra ou à "defesa nacional ". Este processo decisório nunca é completamente indiferente a princípios morais , sobretudo em sociedades em que o horror à guerra está historicamente implantado . Um estado de coisas mais ou menos violento no cenário internacional pode, também por esta razão , vir a constituir matéria para o juízo do público. Mas, as críticas ao modelo "realista" partem da própria natureza das "relações internacionais " no seu pluralismo . Tais relações não se limitam às políticas externas dos Estados. Deve supor- se ao lado destas últimas , as relações comerciais entre empresas, os negócios entre particulares, as actividades das grandes companhias multinacionais, etc. É por isso que no grupo dos opositores das teses realistas se contam os liberais que, no séc. XIX, como J. S. Mill, apostavam decididamente no contributo das relações privadas para um orbe pacífico, muito para além dos magros esforços dos estados soberanos para um mundo livre de conflitos. A concepção marxista não se pode considerar "optimista", como a visão liberal sobre os esforços dos particulares, mas o seu "pessimismo" não tem os mesmos fundamentos da atitude "realista". A análise da posição dos marxistas ocupa todo o capítulo 3 (pp. 62-73), onde de um modo que se afigura demasiado resumido , se mostram alguns dos motivos que conduzem a ver na economia do capitalismo e no imperialismo as raízes dos grandes conflitos internacionais , de Marx a Bukharine e a Lénine. Partindo destas posições que podem considerar-se "descritivas " ("realismo ", posição liberal e posição marxista), a autora investe progressivamente no terreno dos discursos de legitimação, mesmo que alicerçados nas posições anteriores . Isto acontece na Introdução e na globalidade da obra, o que pode ser tomado como próprio do ritmo lógico escolhido. Assim, as teorias da "Guerra Justa", cujos antecedentes medievais e renascentistas não preocupam sobremaneira a autora , tendem a insistir nos princípios da Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992 ) pp. 389-414 408 Revista Filosófica de Coimbra "política das nações" e da diplomacia, quer dizer, no reconhecimento recíproco do valor das soberanias nacionais , no respeito dos tratados internacionais e da liberdade individual, tal como ela veio a ser pensada na Declaração Universal dos Direitos do Homem. A guerra justifica - se quando um ou vários destes princípios são violados de uma forma flagrante, pondo em risco as bases do respeito mútuo entre estados. As teorias da "Guerra Justa" baseiam as intervenções de um ou mais estados na esfera da política soberana de outro(s) estado ( s) na noção da legalidade e costume internacionais, que permitem uma linha de demarcação suficientemente clara entre o "crime de agressão" e a "intervenção justa". As teorias da "Guerra .Justa" podem ser tratadas, com alguma facilidade, como teorias "conservadoras " da ordem internacional, incapazes dc integrar nos seu. quadros de legitimação as guerras de libertação, a resistência a opressores, o surgimento de novas nacionalidades a partir do florescimento da consciência nacional, os movimentos de migração e certas políticas de colonatos e, sobretudo, a constante lonte de v iolcncia regional que é o desequilíbrio económico mundial entre Norte e Sul. A contrapartida das teorias da "Guerra Justa" proposta pela autora e um relativismo de fundo cultural-nacional, que o leitor enquadrará, sem dificuldade, em um postmodernismo de feição "comunitarista". Para os teóricos que se agrupam nesta tendência, as comunidades nacionais são "incomensuráveis". Isto significa que a ordem internacional não pode consistir na aplicação de um critério do "justo" a conflitos regionais fundando-se em valores inteiramente alienígenas para as culturas em questão. As teses sobre a "incomensurabilidade" das comunidades nacionais tornam-se especialmente agudas, no que diz respeito aos juízos do público sobre a intervenção de potências ocidentais em outros países, com base na sofismável defesa dos direitos humanos ou dos direitos das minorias ameaçadas. Todavia, ainda para além das extraordinárias exigências que a defesa da "incomensurabilidade" comporta no ideal de uma justiça para o universo, não é ela mesmo um impedimento para uma teoria exequível da justiça, talvez, afinal, pelo excesso de fascínio pelo diferente que põe num tema dominado pelo "terceiro homem" e pela terceira instância ? Para a autora, o post-modernismo e o comunitarismo aprofundam a crise , já começada há muito, da justificação dos valores da política internacional com base no Direito Natural clássico, de que os Direitos do Homem seriam uma consequência histórica. Como o leitor verá, a tentativa de J. Thompson consiste na ultrapassagem da dicotomia imposta pela alternativa entre uma base moral com vocação universal, mas com um berço cultural particular, cujo centro é a defesa da inviolabilidade da liberdade individual; e uma séria defesa da identidade das "comunidades", como raízes dos próprios indivíduos. A estas duas posições francamente divergentes no ponto de partida cabem as designações de "cosmopolitismo" e "comunitarismo", respectivamente. Em torno de tal oposição concentram - se os recursos histórico-filosóficos das duas partes da obra, do mesmo modo que os princípios teóricos hauridos na obra de Rawls. Resumindo as perspectivas históricas da obra, com Hobbes e Kant é possível testar a hipótese do duplo estado de natureza (doméstico e internacional) e verificar em que residem as condições de possibilidade da Paz. Se. para Hobbes, o estado de natureza internacional não pode ser ultrapassado mediante a mesma solução contratual da política interior e, por isso , os Estados se comportam uns com outros, como os indivíduos sem o poder soberano e o império da lei, já para Kant é possível que a congruência mundial dos estados , na sua forma "republicana", tenha como conclusão um contrato social universal e a paz perpétua (pp.48 e 54). O conceito kantiano de "república" significa a forma de Estado que obedece a princípios legais comuns a um povo e à "regra da lei', pelo menos tal como é usado no artigo de 1795 sobre a "Paz Perpétua—. O equivalente contemporâneo da "república " kantiana é a democracia liberal, independentemente do facto de se exprimir mediante formas monárquicas ou republicanas. Pelo facto de o tipo pp. 389 -414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 409 de contratualismo de Kant conter a dimensão teleológica do aperfeiçoamento histórico, que lhe empresta a visão da História "do ponto de vista cosmopolita", não pode o contrato social entender-se como um acto empírico , mas como prius regulador da história política das nações e seu recurso justificador. A tendência da história política é, para Kant, a realização de uma comunidade supra - nacional dos estados -repúblicas , de modo a impedir a guerra. A evolução de que aqui se trata é apoiada, na história factual dos povos, no papel educativo da lei moral e civil , gradualmente introduzindo hábitos de vida social e política, que acabam por tornar preferível a vida no "estado social " regida por leis, à existência anárquica do "estado de natureza". O que faz de Hobbes e de Kant pensadores do tipo "cosmopolita" é o facto de o seu ponto de partida comum ser o indivíduo, independentemente da sua pertença a "comunidades" com "formas de vida" próprias, determinantes das características dos seus membros. Os capítulos 4 e 5 da obra estão voltados para uma apreciação do grau de extensão da justiça em sentido cosmopolita, numa versão federalista ou na versão do "estado mundial". A lógica que a autora segue no cap . 4 para a evolução dos tratados de integração supra-nacional , guia-se pela história recente do empenhamento progressivo das nações da comunidade europeia na "construção europeia". Segundo esses esquemas , o movimento da integração far-se-ia, num primeiro momento , de um ponto de vista estritamente económico, seguindo- se uma união política parcial , com base nas políticas externas e de defesa , para finalmente dar lugar a um estado com os poderes de uma administração central de uma federação (p. 86). Esta narrativa pretende mostrar, na sequência da visão kantiana do contrato social e para a ordem mundial , que o hábito da decisão conjunta e da geração de consensos produz, no tempo , as necessidades associativas e comunitárias ligadas a esses mesmos hábitos, tal como também pretende Rawls com a noção de "overlapping consensus". O capítulo 5 avança decididamente a tese de que a visão cosmopolita plena terá de corresponder aos ideais do Estado planetário e do cidadão do universo, depois de caracterizar o conceito de cosmopolitismo e a defesa dos direitos individuais no mundo. Mas, ao mesmo tempo, os "cosmopolitas " colocam frente ao seu próprio ideal alguns obstáculos de ordem prática, que podem resumir - se a cinco aspectos , a que autora dá uma importância desigual : 1. o carácter excessivamente complexo de um governo mundial, com a consequente tendência para reduzir a complexidade por meio dos mecanismos burocráticos; 2. o facto de a participação eleitoral de um indivíduo perder a sua força num "oceano" de outras expressões eleitorais , com uma tão grande diversidade de interesses e de problemas; 3. a possibilidade de um aumento preocupante da passividade política e um desenvolvimento substitutivo dos grupos de pressão, num sistema democrático constitucional que não pode subsistir sem participação popular; 4. um desvio das forças disponíveis na participação política no sentido de comportamentos anómicos ou num uso alienante dos recursos tecnológicos existentes na ocupação dos tempos livres; 5. o perigo da deriva totalitária num mundo politicamente apático. O governo mundial pode bem não ser o meio próprio da defesa dos indivíduos no mundo, como deveria segundo a base doutrinal e política dos "cosmopolitas." Mas outras dificuldades bem mais decisivas se colocam à noção do estado mundial . Em primeiro lugar podem existir nações que, simplesmente , não estejam interessadas em constituir o "grande estado" e, em segundo lugar, o estado planetário incipiente pode evitar desenvolver políticas económicas que favoreçam a distribuição igualitária ( segundo o "princípio da diferença" de Rawls, que é consequência obrigatória do "segundo princípio" da justiça), como modalidade de uma justiça distributiva mundial. Perante estes obstáculos é possível concluir que os "cosmopolitas" só aceitarão o estado mundial se este for uma solução preferível a qualquer outra para a defesa do indivíduo. Caso contrário, ela deve ser uma solução abandonada. É a este propósito que a oposição entre "comunitaristas" e Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) pp. 389-414 410 Revista Filosófica de Coimbra "cosmopolitas" vem à superfície, pois para aqueles, a solução do estado mundial não pode aceitar -se em si mesma, na medida em que o valioso reside, para eles, na pertença histórica dos indivíduos às comunidades nacionais em que se formaram. A parte II é dedicada à análise das diferentes posições do "comunitarismo". Logo o capítulo 6 é dedicado à concepção hegeliana do Estado como realidade orgânica, continuando os laços internos que unem os indivíduos desde o espaço familiar, passando pelas corporações até à comunidade política propriamente dita. De acordo com as interpretações mais correntes dos Princípios da Filosofia do Direito, a autora vê em l legel um defensor radical da soberania dos estados, pois para ele a liberdade dos indivíduos só tem pleno florescimento na unidade dialéctica racional-real do 1?stadn. Nu plano da política internacional ou ainda no que se chama a "soberania para o exterior". Ilegel considera os estados como indivíduos separados, dotados de vontades autonomas. ('onio cada estado realiza a unidade orgânica do todo e das partes, us relações enue estados devem compreender-se como relações semelhantes às do reconhecimento entre as consciências , tal como a Fenonrenologia do Espírito as pensou. quer dizer, envolvendo uma luta. A História não é mais do que esta evolução do reconhecimento entre estados na cena mundial, de que a guerra é uma das mais importantes expressões. As análises do capítulo seguinte dedicadas a Rousseau estabelecem uma comparação com Hegel, do ponto de vista, contudo, de uma noção democrática das comunidades nacionais. Os desenvolvimentos centram-se aqui nos conceitos do "contrato social", de "vontade geral", na ideia não representativa da democracia, nos limites demográficos e territoriais das comunidades ideais em Rousseau. A autora reserva também algumas páginas (138-146) aos autores que continuam Rousseau na perspectiva contemporânea do "comunitarismo" de pequena escala. O tema comum é sempre o de que uma ordem supra comunitária não pode garantir a expressão do enraizamento mais profundo dos indivíduos nas suas comunidades de origem. Claramente, o "comunitarismo" substitui um pluralismo dos indivíduos por um pluralismo das comunidades. No seu horizonte, as questões referentes a uma justiça mundial não dispensam o valor da incomensurabilidade das comunidades. O capítulo 8 trata de um tipo particular de comunidade - a nação. Aqui se expõem os rudimentos do nacionalismo, tal como aparece na obra de Fichte e na de Mazzini. Depois de estabelecer uma distinção operatória entre Estado e Nação (p. 147), a autora mostra como a nação é um conceito "fuzzy" (p. 157), que retira grande parte do seu sentido do reconhecimento pelos indivíduos de uma participação num fundo de valores sedimentado historicamente e que se exprime num ideal e numa forma de vida comuns. Foram propostos vários índices exteriores da individuação das nacionalidades, como por exemplo o uso de uma determinada língua (Fichte), a pertença a uma mesma raça (teóricos do séc . XIX) ou a uma mesma cultura , mas todos estes signos fracassam se forem tomados como motivos da obrigação ética dos indivíduos para com as comunidades nacionais, renovando -se, a este propósito, a antiga questão da descontinuidade entre facto e obrigação ética . O carácter problemático do nacionalismo em termos de política prática advém do ideal da " auto - suficiência " axiológica da nação. É aqui que vai ancorar toda a intenção imperialista do nacionalismo, em tudo contrária, todavia, à vocação do nacionalismo romântico, que tomava essa "auto-suficiência" como argumento contra as grandes potências dominantes na política europeia nos princípios do século passado. No capítulo 9 repõe - se a dúvida sobre se a nação e as relações inter-nacionais estritas são os conceitos mais indicados para pensar uma ordem mundial justa e regressa-se à ideia de um "consenso por sobreposição" ( Rawls ), para propor o princípio (tido por "não utópico") de uma " sociedade mundial de comunidades interligadas" ["World Society of Interlocking Communities " (pp. 168, 171, 184-185, 187)], que consistirá numa sociedade de indivíduos (mantendo - se a perspectiva cosmopolita) dotados de compromissos comunitários de diversa índole ( tal como tende a sublinhar o "comunitarismo"). A interligação pp. 389-414 Revista Filosófica de Coimbra - 2 (1992) Recensões 411 das diferentes obrigações comunitárias dos diferentes indivíduos será a tarefa permanente da ordem mundial. A tese da autora não se pode desvincular de um conceito optimista da modernidade , sobretudo no que se refere à "modernização" das comunidades tradicionais , factor este decisivo no envolvimento de todas as comunidades do mundo, sem excepção , na sociedade mundial . Não deixa de ser importante notar o facto de que a referência à ordem justa mundial se associa ao conceito de uma sociedade e não apenas ao de um governo mundial . Naturalmente que a tarefa da sua realização não fica entregue a um decisionismo momentâneo , mas é um ideal regulativo que pode , desde já, funcionar no palco mundial como inspiração na resolução dos conflitos inter-comunitários e nos conflitos gerados entre indivíduos e comunidades . A conclusão da obra aponta nesta direcção ( pp. 188 - 196), do mesmo modo que para um prolongado período de gestação da autêntica "nova ordem mundial". Para terminar , algumas questões podem ser colocadas a respeito da obra. Em primeiro lugar, as referências históricas não ultrapassam os autores da modernidade , sendo ainda aqui os contratualistas os mais privilegiados . Para esta preferência não se encontram justificações , excepto aquela que decorre da "semelhança de família" entre Rawls e essa tradição . Uma abordagem histórica mais profunda não poderia deixar na sombra a concepção grega da "Polis " e as linhas divisórias que introduz, a ideia estóica da unidade do género humano e a noção de Império, tal como a visão medieval da cristandade e as ideologias das conquistas da nova época. Trata-se, no fundo, dos membros de uma genealogia do Direito Natural do Ocidente, com a qual a autora não chega a defrontar-se. Em segundo lugar , a imagem de uma Sociedade Mundial emergente da confluência planetária das comunidades e das diferentes obrigações individuais , segundo o ideal democrático - liberal e como efeito do alargamento progressivo do modelo político da modernidade ocidental a sociedades tradicionais ou neo - tradicionais , não possui uma correspondência suficientemente clara no plano da política prática . É difícil não colocar certas conclusões nos planos do utopismo ou da futurologia . Mas o leitor encontrará neste pequeno livro muitos outros motivos de inspiração e esclarecimento. Edmundo Balsemão LEVINAS, Emmanuel: Transcendência e Inteligibilidade, Lisboa, Edições 70, Biblioteca de Filosofia Contemporânea, 1991, 53 páginas (Transcendance et Intelligibilité, Genève, Labor et Fides - Centre Protestant d'Études, 1984, 69 páginas) Tradução do francês por José Freire Colaço, revisão da tradução por Artur Morão e revisão tipográfica de Artur Lopes Cardoso. Emmanuel Levinas não é um autor desconhecido no meio filosófico do nosso país, depois de, em 1988 , ter sido traduzida e editada uma das suas obras mais relevantes, Totalidade e Infinito, nas edições 70. Ainda de Levinas, publicou- se nesta mesma editora e na mesma colecção o texto de uma conferência realizada em 1983, em Genebra, seguido do registo de uma conversa-debate. Na presente publicação, o autor teve a preocupação de distinguir entre os dois tipos de textos oferecidos ao leitor. O texto da conferência pretende ser, segundo as palavras da Introdução, "rigorosamente filosófico", enquanto que o registo escrito da conversa-debate releva de um diálogo no campo teológico, entre representantes de diferentes confissões religiosas. O cuidado desta diferenciação não afecta Revista Filosófica de Coimbra - 2 ( 1992) pp. 389-414 412 Revista Filosófica de Coimbra somente este livro , mas é visível ao longo da actividade literária do filósofo, logo na escolha das casas editoras que lhe publicam as lições e comentários talmúdicos e aquelas que veiculam a sua produção filosófica. Quando os cruzamentos temáticos e conceptuais se estabelecem entre o "teológico" e o "filosófico" - o que não raramente acontece - a necessidade dos enlaces manifesta-se já no interior da obra filosófica, na sua arquitectura conceptual e nos seus desígnios de fundo. No presente livro, o leitor deparara, por isso, com preocupações distintas a nível temático, embora dependentes de um traço de união. Uma leitura minimamente atenta permite notar que os conceitos de pensamento e de religião, associados aos de intc'li,çihilidade e transcende-nn-ia ì oostilue o todo o conteudo problemático da conferência e do debate. O tema da conferência é a "Inteligibilidade do Transcendente.", junção de termos cuja trama o filósofo faz remontar às raízes metafisicas da interpretaçao do pensar como saber e da Filosofia como saber da "presença do Ser'', aias que por onuo lado, tanibem deveria fazer sinal para um novo entendimento do Transcendente. A conferência dedica-se à investigação desta última possibilidade - a de uni sentido novo para a lntelrgibilidade e o pensar do Outro. O autor começa com o questionamcnto da noção do psiquismo como sede do saber e do saber como essência do psiquismo. A "filosofia que nos é transmitida" (p. 13) ter-se-ia baseado, logo na sua origem, na confluência não problematizada entre auto-consciência , saber e psiquismo, de modo que este último não reservaria para a Filosofia nenhum outro segredo, para além da dimensão do conhecimento. O ser consciente de si na modalidade reflexiva de um saber de qualquer coisa é o conceito de Espírito, a partir do qual a mesma Filosofia entreviu a possibilidade da experiência. Assim, pensar significa saber e nesta identificação jogam-se determinações antropológicas decisivas, como a socialidade e a revelação em sentido religioso. Na primeira, o "outro homem" apareceria ao lado de tantas outras manifestações do mundo e como correlato de uma intenção do eu, como mostrou a fenomenologia da V Meditação cartesiana de Husserl ; na segunda , Deus surgiria ou como o correlato do acto de crer, cuja teleologia elevaria a intenção para além do nosso mundo visível ou como o efeito de experiências religiosas colectivas, que encontrariam a sua explicação na imanência de um mundo da cultura . Tanto a alteridade pessoal como Deus estavam prometidos à tentação omniexploratória do "querer saber', cujo coroamento doutrinal se dá no hegelianismo e na fenomenologia (p. 17), momentos do fausto filosófico do Espírito como saber do Outro. A identificação filosófica entre psiquismo e saber tem uma correspondência ontológica na unidade entre Ser e presença do presente. Esta unidade representa para Levinas um esquecimento da corrente do Novo, que prende a alteridade ao tempo. Esta "alter-acção " que é tempo, foi descoberta por Bergson no seu conceito de "durée pure", em que o Novo haveria de irromper com o incessante brotar da energia criadora, em tudo diferente da monótona insistência no mesmo, que constitui o espaço e as relações das coisas no espaço . Ainda a respeito da associação entre o saber e a presença, tematiza o autor o privilégio filosófico do conceito, que indica um "agarrar" ou um "prender", uma assimilação e um "tornar próprio" (p. 14). No plano da realização do conhecimento, a captação da exterioridade por um sujeito designa a motivação mais profunda da dependência do conhecer em relação à re-presentação. Mas a exterioridade de que fala Levinas não é a exterioridade dos factos empíricos que, na sua forma de objectos do conhecimento se sincronizam na experiência do tempo imanente, na synopsis dos extases. A ordem da imanência que é, ipso facto, ordem minha, a "Jemeinigkeit do Cogito" (p. 24), não possibilita um acesso à dimensão do pensamento que não se inclui nas diferentes modalidades do conhecimento, desde o conhecimento vulgar, ao conhecimento científico e ao conhecimento metafísico , dimensão a que já Kant fizera referência no seu conceito de Razão Prática . A exterioridade do outro-homem e a exterioridade pressentida na Revelação do Deus bíblico não podem deixar de se referir a um Absoluto, quer dizer, a pp. 389 -414 Revista Filosófica de Coimbra- 2 (1992) Recensões 413 um Outro que não pode sincronizar -se, na corrente do tempo , numa intuição do que seria o seu próprio presente , a sua própria manifestação, abertura ou verdade . Mas o que é um pensamento irredutível ao conhecer e que se abre a essa novidade do Absoluto ? A resposta que o autor dá é inicialmente interrogativa : "seria para tal necessário um pensamento que não fosse construído como relação ... seria necessário um pensamento em que deixaria de ser legítima a própria metáfora da visão e da visada ?" ( Note-se que a tradução portuguesa corrompe o sentido da frase , ao tirar o ponto de interrogação que consta do original). A concepção cartesiana da ideia do Infinito não é utilizada por Levinas a um título meramente ilustrativo , nesta conferência ou em textos anteriores onde o Infinito é tema nuclear, como em La Philosophie et I'Idée de 1'Infini (Revue de Métaphysique et de Morale, 1957) e Totalité et Infini (1961). O infinito na interpretação levinasiana de Descartes significa o princípio de uma afecção do psiquismo por uma exterioridade, que não se reduz nem à imanência desse psiquismo , nem à ordem do mundo . Com efeito, a ideia do infinito é, na "ordem das razões ", um momento de separação e distinção no ego cogito daquilo mesmo que não poderia ter provido do pensar finito, embora nele se revele e a ele afecte . Esta descontinuidade entre o continente da revelação e a fonte da revelação permite encontrar no psiquismo , não já um acto que se desdobra desde si até ao seu conteúdo reflexo, mas uma passividade que, na obra de 1974 , se exprimia mediante os recursos estilísticos de uma ênfase da sensibilidade e da afectividade (Autrement qu'être ou au -deld de 1'essence, 86 e ss .). Numa significação reflexiva e filosófica , o infinito das Meditações de Descartes é a modalidade pela qual Deus "vem à Ideia", mas já no que chamamos religião e na socialidade se formula , para Levinas , o paradoxo de um Deus que não aborda de face , mas na modalidade do mandamento do "amor do próximo", isto é, na forma de uma transcendência duplicada que, ao longo das obras do autor, se vem exprimindo no conceito de Rosto do outro-homem. O "religioso" vive - se como transcendência na socialidade e não pode caracterizar -se nas formas da relação com o ser ou nas formas da relação com o mundo . O "religioso " é rigorosamente afastado da gesta ontológica da anfibologia do ser e dos entes , para além da "diferença ontológica" e das suas potencialidades teológicas , tão bem investigadas por J . L. Marion (Cf. L'Idole et Ia Distance , Paris, 1977). E se a realidade da religião comandada pelo "amor do próximo" é o próprio Bem, ela não representa , todavia, uma relação com um ser ou com uma existência superior , diferente das existências finitas porque perfeita , embora ainda segundo os predicados da finitude ; ainda de outro modo que aquilo que se viesse a implicar de superlativo nas teologias superlativas ou de alteridade negativa na negação das teologias negativas . O convite do autor consiste em nos franquear o acesso ao Reino de um Deus sem Ser , sem que isso implique um Nada , alternativa em que nos quereria encerrar, ainda, a forma ontológica de perguntar por Deus desde a existência. Na religião contém-se a possibilidade de pressentir Deus na oscilação entre verdade e mistério, o que as provas filosóficas da Sua existência não permitem manter, não obstante todo o seu virtuosismo dialéctico . Mas, não é verdade que o religioso monoteísta só poderia ter nascido da prevenção dos homens contra o "humano, demasiado humano" dos deuses pagãos, o que talvez implique uma secreta aliança entre cepticismo e monoteísmo? Gesto este de uma imanência inquietada pelo Transcendente ! O conceito de "enigma", que Levinas introduziu num artigo de 1965 ["Enigme et Phénomène" in Esprit, 33 (1965)] fala-nos, justamente, desta hesitação no ser, de um peut-être que é o modo primitivo como Deus aborda um psiquismo satisfeito e ateu. Ateísmo que é, afinal, a única possibilidade que resta ao Deus único de afectar uma subjectividade liberta de encatamentos e de "mistérios", de feitiçaria e do "mau" sobrenatural. O logos que compõe a palavra teologia só pode compreender-se mediante este esforço de ultrapassagem do que resume o Divino à iniciativa cognoscitiva do "eu penso", nos quadros do seu sincronismo teo-onto-gnosiológico, na direcção positiva da socialidade, Revista Filosófica de Coimbra- 2 (1992) pp. 389-414 414 Revista Filosófica de Coimbra do "amor do próximo" e no "temor pela morte do outro": "socialidade que, por oposição a todo o saber e a toda a imanência - é relação com o outro enquanto outro e não com o outro, pura parte do mundo" (p. 24). Mas, comoção do ateísmo: um Deus que provém "de fora" num mundo que se basta a si mesmo e em si encena as leis da sua possibilidade é, segundo a afectividade da adoração e da prece, um Deus que sú um mundo laico pode receber, aliás pelo seu puro "desinteresse" pela questão da existência de um hiper-mundo, de um além. Com efeito, Deus num mundo laico apenas pode significar na modalidade mesma da rigorosa transcendência e do Novo. A segunda parte deste livro reúne os contributos de Levinas e dos seus interlocutores num debate sobre os cnntcúdos da conferência (lean I lalperin: o ;mlitrià(i, Marc I aessler, Esther Starohinski-Safran, David Banon, Jean Burel, (jabriclle Duluur e I.aurent Adert). A pretensão do debate foi a de reunir representantes de dilerentes cunfrssCes religiosas (judeus, católicos e protestantes) e de submeter o exercicio Glusolieu da cunlcrcncia a prova da multiplicidade do "religioso". Como seria de esperar, novas noçoes e temas surgiram e o tipo de literatura evocado deixou de ser "estritatnentc lilusol ico", para passar a incluir referências ao texto bíblico e ao Talmude, à obra do Rabi llaïm de Volozina e à de Chouchani. Um dos temas que me pareceu mais decisivo neste debate, foi o de "Kénosis". Este termo grego que na forma verbal significa literalmente esvaziar, evacuar ou fazer sair, recebe interpretação teológica na ideia de uma descida-despojamento do Divino. Entre Jean Borel e Levinas desenvolve-se um diálogo sobre a universalidade do tópico da "Kénosis", que no plano filosófico tem especial interesse para a compreensão da transcendência na socialidade. Com efeito, sem a dimensão de uma "descida" ou "humildade" de Deus [o termo hebraico é anarvah e surge a propósito de Moisés em Números 12, 3 (p. 43)], não é possível ver na epifania do Rosto do outro-homem a Traça do Ele Divino. A mesma insistência no tópico da "descida', da chegada ou da "visita' é comum à interpretação levinasiana de certos passos da Escritura com apoio talmúdico e ao Cristianismo, que toma a figura de Jesus Cristo como a objectivação do `despojamento" e "humildade' do Divino, na unidade da encarnação, do sacrifício e da bondade. A interpretação da "kénosis" ocupará ainda Levinas num artigo mais recente e de grande importância no quadro dos seus textos teológicos. Trata-se de "Judaistne et Kénose" [publicado inicialmente em Archivio di Filosofia n°. 2-3 (1985) e integrado no livro A l'Heure des Nations, Paris, 19881 onde, a propósito da obra de Rabi Haïm de Volozina inspirada na Kabala de Safed, se pensa a articulação entre a "descida' e a "elevação" no Divino, ultrapassando o valor cosmológico das teses do Rabi, num sentido ético. O leitor vai encontrar neste livro um grande número de problemas em aberto, de sugestões de estudo e investigação mas, talvez o mais importante: um novo modo de interrogar a alteridade pessoal e a alteridade do Divino. Só é pena que a presente tradução encerre por vezes erros que corrompem o significado das proposições, o que um leitor desprevenido pode tomar como a própria intenção do autor. Certas gralhas fazem esperar um maior cuidado na revisão tipográfica que, neste caso, até teve um responsável. Edmundo pp. 389 - 414 Balsemão Revista Filosófica de Coimbra-2 (1992) ÍNDICE 1992 Nota de apresentação ........................................................................ 5 Artigos Fernanda Bernardo, O Dom do Texto: a Leitura como Escrita - o Programa gramatológico de Derrida ......................................... 155 Amândio A. Coxito, A Crítica do Inatismo segundo Luís A. Vernei Ainda o Problema da Filosofia Portuguesa. Recordando Joaquim de Carvalho, no Centenário do seu Nascimento ....... 299 J. Ma. Ga. Gomez-Heras, La Naturaleza Reanimada - Dei Desencantamiento dei Mundo en Ia Racionalidad tecnológica ai Reencantamiento de Ia Vida en Ia Utopia ecológica ................ 265 51 Francisco V. Jordão, Natureza, sentido e liberdade em Kant........ Joaquim de Carvalho e Espinosa. O Acordo de Intenções no Campo político- religioso ........................................................ 309 Miguel Baptista Pereira, Do Biocentrismo à Bioética ou da Urgência de um novo Paradigma holístico .......................................... 5 Modernidade, Fundamentalismo e Pós-Modernidade ...... José Reis, Sobre o Conceito de Ser .................................................. Luísa Portocarrero F. Silva, Da Fusão de Horizontes ao Conflito de Interpretações: a Hermenêutica entre Gadamer e Ricoeur ..... Marina R. Themudo, Solipsismo: Viagens de Wittgenstein à volta de uma Questão ............................................................................ Joaquim Neves Vicente, Subsídios para uma Didáctica Comunicacional no Ensino-Aprendizagem da Filosofia ........................ 63 205 97 127 83 321 Estudo Crítico Mário A. Santiago de Carvalho, Noção, Medição e Possibilidade do Vácuo segundo Henrique de Gand ....................................... 359 Crón ica ................................................................................................ 387 Recensões .................................................................................... 191, 389 BOLETIM DE ASSINATURA Assinatura anual ( 2 números) ........................ 3.000$00 Assinatura de apoio .................................... 5.000$00 Desejo assinar a Revista Filosófica de Coimbra a partir do n.° Nome Morada Código Postal , sobre o Junto envio cheque n .° Banco na importância de $ pagável à ordem de Revista Filosófica de Coimbra. Data Assinatura Execução gráfica da TIPOGRAFIA LOOSANENSE, LDA. em Outubro de 1992 Depósito legal n .° 51135/92 Tiragem : 500 ex.