Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro Diretrizes para o Diagnóstico e Tratamento da Malária Bernardo Wittlin Marta Guimarães Cavalcanti INTRODUÇÃO A malária se inscreve no rol das doenças infecciosas febris agudas e seu quadro clínico típico é caracterizado por febre alta, calafrios, sudorese profusa, cefaleia e astenia, por vezes precedido de sintomas prodrômicos, dentre os quais, náuseas, vômitos, fadiga e anorexia. Manifesta-se, classicamente, na forma de paroxismos febris, tendo seu padrão cíclico influenciado pela espécie do plasmódio infectante. Não obstante, pode se apresentar de forma mais branda, com febre baixa, sem cortejo clínico, ou mesmo assintomática – apresentação esta comum em pacientes com infecções prévias e imunidade parcial (residentes em áreas endêmicas). O período de incubação varia de 8 a 40 dias, contudo pode se estender por meses ou anos a depender de alguns fatores (p.ex: recaídas, uso de antimaláricos para profilaxia alterando a história natural). Sendo de natureza endêmica e de transmissão vetorial, impõe-se uma especial atenção à história epidemiológica do paciente (p.ex: viagem ou residência em zona de transmissão). No Brasil, a região amazônica é a zona de transmissão por excelência, devendo o paciente ser inquirido acerca de passagem nesta nos últimos meses. Todavia, é preciso atentar também para regiões que se mantêm como focos isolados no território nacional (p.ex: as cidades de Nova Friburgo no estado do Rio de Janeiro). Há diferentes prevalências das espécies de plasmódio de acordo com a região do mundo. No Brasil, por volta de 75% das infecções são por P. vivax, 25% por P. falciparum e 1% por P. malarie. P. ovale é espécie encontrada no continente africano. O site http://cdc-malaria.ncsa.uiuc.edu/ é uma ferramenta útil para pesquisa das áreas endêmicas e distribuição de espécies pelo mundo. A evolução para a forma grave da malária, com suas variadas complicações clínicas associadas à ocorrência de intensa parasitemia, também é dependente da espécie – tipicamente atribuída ao P. falciparum – e de outros fatores relativos ao hospedeiro. DIAGNÓSTICO Para o diagnóstico da malária em contexto de área não-endêmica, a exemplo de nosso hospital, evoca-se a suspeita pela conjunção do quadro clínico com a história epidemiológica do paciente, transcrita esquematicamente desta forma: Doença febril aguda (Síndrome febril aguda indiferenciada / febril aguda ictérica / febril aguda ícterohemorrágica) + História epidemiológica (Viagem ou residência em zona de transmissão) Outras: transfusão sanguínea, uso de drogas endovenosas e transmissão vertical DIAGNÓSTICO LABORATORIAL Dentre os exames complementares inespecíficos, destaca-se no hemograma o achado de anemia, leucocitose ou leucopenia e plaquetopenia. Hiperbilirrubinemia indireta é um marcador de hemólise também comum. Em convergência com a recomendação da OMS, temos como imperativo o diagnóstico parasitológico para a confirmação da malária em todos os casos antes de se iniciar o tratamento, independentemente da faixa etária e da intensidade de transmissão na área onde houve a infecção. Tratamento exclusivamente baseado na suspeita clínica deve ser considerado apenas quando o diagnóstico parasitológico não for acessível ou os resultados não estiverem disponíveis dentro de duas horas de apresentação do paciente com critérios de gravidade, contexto que se almeja evitar. Dentre os exames específicos, dispõem-se atualmente da microscopia, técnicas de imunodiagnóstico e diagnóstico molecular. A microscopia ainda se apresenta como padrão-ouro para o diagnóstico da malária, sendo abaixo listados aspectos relativos a ela os quais devem ser observados para o bom diagnóstico: • • • • • • • Técnica: punção venosa periférica ou polpa digital. Tubo: EDTA. Corante: Giemsa. Gota espessa (permite contar parasitemia / dificuldade para diferenciar espécies / maior sensibilidade, porém pode ser baixa em mãos inexperientes). Distensão sanguínea (permite diferenciar as espécies / menor sensibilidade). Pode detectar parasitemias de até 5-10 parasitas/ microL, em mãos experientes. Falhas na detecção ocorrem comumente entre 10-100 parasitas/ microL, mas podem ocorrer em níveis mais elevados. Avaliação deve incluir a leitura de 200-500 campos por lâmina. Se exame microscópico inicial for negativo e um diagnóstico alternativo ainda não foi estabelecido, esfregaços adicionais devem ser realizados a cada 6 a 12 horas até 48 a 72 horas, a depender da evolução clínica, gravidade e grau de suspeição. Desencorajamos o uso indiscriminado dos testes rápidos antigênicos disponíveis até o momento. Embora haja kits com boa sensibilidade e especificidade para infecções por P. falciparum, carecem do mesmo desempenho para infecções por P. vivax (mais prevalente em nosso país) e não permitem a contagem de parasitemia e controle de cura. Ademais, um resultado negativo em princípio deve ser confirmado por microscopia. Sorologia para detecção de anticorpos não possui acurácia adequada e, pois, aplicação clínica. O PCR é caro e de interesse restrito à pesquisa. TRATAMENTO Nosso serviço baseia-se nas recomendações presentes no manual do Ministério da Saúde (GUIA PRÁTICO DE TRATAMENTO DA MALÁRIA NO BRASIL 2010), o qual pode ser encontrado em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/guia_pratico_tratamento_malaria_ brasil_2602.pdf Para uma melhor compreensão da escolha dos esquemas terapêuticos, observam-se as resultantes da terapia no ciclo do parasita durante a infecção no homem, tendo como pontos-chaves: 1) interrupção da esquizogonia sanguínea; 2) destruição de formas latentes (hipnozoítas) das espécies P .vivax e P. ovale, evitando assim as recaídas tardias; 3) interrupção da transmissão do parasito pelo uso de drogas que atuam contra as formas sexuadas dos parasitos (gametócitos). ESQUEMAS DE ACORDO COM A ESPÉCIE: • Malária por P. vivax e P. Ovale Tratamento de escolha: Cloroquina durante 3 dias e primaquina, por 7 dias (esquema curto) ou Cloroquina durante 3 dias e primaquina, por 14 dias (esquema longo) OBS 1: Em pacientes provenientes de áreas de transmissão de P. vivax resistente à cloroquina, a terapia combinada com derivados de artemisina está indicada OBS 2: Ajustar a Primaquina de acordo com o peso do paciente e sempre dosar atividade de G6PD antes do tratamento. Nos casos de leve a moderada deficiência de G6PD, usar Primaquina 0,75mg base/kg uma vez por semana, durante 8 semanas. Nos casos de deficiência grave , o uso de Primaquina está contraindicado. Gestantes e crianças < 6 meses: Cloroquina durante 3 dias. Em seguida, dose semanal por 12 semanas. Tabela. Ajuste da dose e tempo de administração da primaquina para pacientes com peso igual ou superior a 70Kg Faixa de peso 70-79 80-89 90-99 100-109 110-120 • Dose total primaquina (mg) de 240 272 304 336 368 Tempo (dias) Tempo (dias) Esquema longo (15mg/dia) 16 18 20 22 24 Esquema curto (30mg/dia) 8 9 10 11 12 Malária não-complicada por P. falciparum Tratamento de primeira escolha (Terapia combinada com derivado da artemisina, por via oral, durante 3 dias): Artemeter com lumefantrina, Artesunato com mefloquina, Artesunato com amodiaquina ou Artesunato com sulfadoxina-pirimetamina. Somente os dois primeiros estão disponíveis no Brasil. Tratamento alternativo: Quinina + Doxiciclina + Primaquina, durante 6 dias Gestantes de 1º trimestre e crianças < 6 meses: Quinina por 3 dias associado a Clindamicina por 5 dias • Malária grave por P. falciparum Tratamento de escolha (IV): Artesunato IV 2,4mg/kg (ataque), seguida de 1,2mg/kg após 12 e 24h. Em seguida, dose diária 1,2mg/kg completando 7 dias. Assim que houver condições, dose diária VO. Associado à Clidamicina IV 20mg/kg/dia durante 7 dias. Tratamento alternativo (IM): Artemeter IM 3,2mg/kg (ataque), seguida de 1,6mg/kg diariamente completando 5 dias. Assim que houver condições, dose diária VO. Associado à Clidamicina IV 20mg/kg/dia durante 7 dias. Gestante 1º trimestre e crianças < 6 meses: Quinina IV 20mg/kg (ataque), seguida de 10mg/kg de 8/8h, até 7 dias. Associado à Clidamicina IV 20mg/kg/dia durante 7 dias. Atentar para efeitos arritmogênicos e hipoglicemia. • Malária mista (P.vivax e P.falciparum) Artemeter+lumefantrina durante 3 dias ( doses semelhantes as usadas p/ P.falciparum na infecção única) associado a Primaquina durante 7-10 dias • Malária por P. malariae Cloroquina, durante 3 dias (doses semelhantes as usadas p/ P.vivax) MALÁRIA GRAVE A apresentação grave da doença é definida pelo achado de parasitemia elevada (>5% das hemácias ou >200.000 parasitos/ µl) e/ou sinais importantes de disfunção orgânica. Sua ocorrência tem frequente correlação com a parasitemia intensa, todavia há casos graves com parasitemia baixa (sequestro) e parasitemia alta sem aparente gravidade clínica. Apresentam RISCO ELEVADO para doença grave: indíviduos não-imunes, crianças < 5 anos de idade, gestantes, idosos, esplecectomizados, pessoas vivendo com HIV/SIDA, neoplasias em tratamento e transplantados Sinais de disfunção orgânica: • • • • • • • • • Alteração da consciência, com ou sem convulsões Anemia grave Hipoglicemia Acidose metabólica (bicarbonato plasmático < 15 mmol/L de sanguíneo ou lactato > 5 mmol/L) Colapso circulatório Edema pulmonar ou síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) Insuficiência renal, hemoglobinúria Icterícia clínica Hemorragias, coagulação intravascular disseminada A malária grave é considerada uma emergência médica. Após avaliação inicial e diagnóstico, recomenda-se o pronto início de antimaláricos venosos. Se possível o paciente deve ser encaminhado para internação em unidade de terapia intensiva com monitorização e suporte intensivo (oxigênio, suporte ventilatório, monitorização cardíaca, oximetria de pulso, PVC, etc). Deve ser realizada avaliação clínica sistemática, a cada 2 a 4 horas, bem como avaliação laboratorial sistemática, incluindo parasitemia, hemoglobina/hematócrito, glicose e lactato, com intervalo de 6 horas. Manejo clínico por sistemas da Malária Grave: Manejo hídrico: - Contínua avaliação clínica do status volêmico (estado hipovolêmico X sobrecarga de volume) Hidratação parcimoniosa e individualizada (manutenção em torno de 2,5 L diários) Hipovolemia pode levar à IRA pré-renal Hiperidratação pode levar à edema pulmonar e cerebral Hipoglicemia: (glicemia <40 mg/dl) - Complicação comum da malária Deve ser suspeitada em qualquer paciente que está em coma ou que se deteriora repentinamente. A administração de quinina ou quinidina pode causar hipoglicemia iatrogênica. Tratamento: Bolus de glicose a 50% e medição estreita (até de 1515min) Manutenção: Soroterapia com 5 a 10% de glicose Comprometimento neurológico: • • • • Hipoglicemia Anemia severa Malária cerebral Crises convulsivas (hipoglicemia, malária cerebral, febre) Critérios para malária cerebral: - Escala de Blantyre coma ≤ 2 Parasitemia por P. falciparum (qualquer densidade) Nenhuma outra causa identificável de coma (hipoglicemia, meningite, estado pós-ictal) Fundoscopia: Retinopatia da malária é patognomônico da malária cerebral. Características incluem: hemorragias branco-centradas, alterações vasculares e áreas esbranquiçadas da retina Punção lombar: Pacientes com sensorium alterado devem ser submetidos à punção lombar (na ausência de contra-indicações) para excluir meningite bacteriana concomitante. Comprometimento respiratório: • • • • Congestão e edema pulmonar Síndrome de angústia respiratória aguda (SARA) Pneumonia bacteriana concomitante Hiperventilação secundária à acidose metabólica Anemia: - Pode se desenvolver rapidamente, atingindo níveis de Hb < 5,0 g/dl Em áreas endêmicas, pode ocorrer anemia crônica, com Hb até 2-3 g/dl. Transfusão sanguínea deve ser indicada de modo individualizado. Eritrocitaférese não é recomendada por consenso. Discrasia sanguínea: • • Plaquetopenia -> Reposição de plaquetas CIVD (<5%) -> Fatores de coagulação e crioprecipitado Referências 1. ww.dpd.cdc.gov/dpdx/html/ImageLibrary/Malaria_il.htm 2. http://cdc-malaria.ncsa.uiuc.edu/ 3. Guia prático de tratamento da maláriano Brasil, 2010 4. Parasitological confirmation of malaria diagnosis, WHO, 2009. whqlibdoc.who.int/publications/2010/9789241599412_eng.pdf 5. Guidelines for the treatment of malaria,WHO, 2 nd edition, 2010 www.who.int/malaria/publications/atoz/9789241547925/en/index.html