sobre algumas vicissitudes do marxismo na Europa Oriental

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34o ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
SEMINÁRIO TEMÁTICO 01: AS FONTES DOS MARXISMOS DO SÉCULO XX
UMA HEGEMONIA BLOQUEADA: SOBRE ALGUMAS VICISSITUDES DO
MARXISMO NA EUROPA ORIENTAL
PEDRO LEÃO DA COSTA NETO
2
UMA HEGEMONIA BLOQUEADA: SOBRE ALGUMAS VICISSITUDES DO
MARXISMO NA EUROPA ORIENTAL
O objetivo da presente comunicação é analisar a experiência teórica da
filosofia marxista na Europa Oriental, nos anos 1945-1989, procurando analisar,
em linhas gerais, o seu desenvolvimento, seus diferentes impasses e, por fim, a
impossibilidade de criação de uma alternativa teórica, que permitisse a
construção de uma nova hegemonia.
Toda investigação que tenha por objetivo analisar o desenvolvimento da
filosofia marxista nos países da Europa Oriental, deve necessariamente partir de
uma investigação de seus antecedentes teóricos, ou seja, da elaboração da
“filosofia marxista-leninista”1, que se transformou em filosofia oficial de estado e
partido na União Soviética e como tal transplantada para as “democracias
populares” após o final da II Guerra Mundial.
Com a vitória da revolução de outubro de 1917 abriu-se frente ao poder
soviético uma série de tarefas inéditas - dentre as quais, a de organizar a
educação e elaborar a cultura do novo estado, tarefas estas que seriam
realizadas em condições extremamente adversas, tanto em termos materiais
(atraso econômico e destruições provocadas pela Guerra Mundial e pela Guerra
Civil) quanto intelectuais (ausência de quadros bem preparados e oposição da
intelectualidade tradicional). Uma série de medidas coercitivas, tomadas pelo
novo poder, levaria a uma acentuação da referida oposição.
Boris Kagarlitsky observa:
O programa de erradicação da barbárie através de métodos
bárbaros foi objetivamente engendrado pelas condições russas.
Porém este programa ocultava dentro de si uma contradição
1
Oskar Nekt, em artigo publicado originariamente em 1970, destacava a importância
teórica e prática da análise dos debates que antecederam a sistematização da filosofia
soviética para a elaboração de uma concepção que permita a constituição de uma
alternativa teórica a síntese staliniana e seus diferentes sucedâneos. NEKT, Oskar.
Marxismo come scienza della legitimazione: sulla genesi della filosofia stalinista. In:
COPPELLOTTI, Francesco. Marx e La Rivoluzione. Milano: Feltrinelli, 1972, p. 122.
3
insolúvel, já que os meios possuem esta perigosa propriedade:
que podem alterar o fim perseguido.2
Entretanto,
como
constata
o
mesmo
Kagarlitsky,
citando
Zhores
Medvedev: “os anos que vão de 1922 a 1928 representam os anos de ouro da
ciência soviética”.3 E acrescenta algumas páginas adiante:
Não só houve um fortalecimento da vida espiritual no pais
depois do sangrento pesadelo da guerra civil, senão também um
novo renascimento. Os elementos da sociedade civil estavam
tomando forma na Rússia, e a esfera na qual prevalecia a maior
individualidade e liberdade social era a da cultura.4
No campo da teoria marxista, já em 1921, foi publicado o conhecido e
polêmico manual de divulgação teórica Tratado de Materialismo Histórico:
Ensaio popular de Sociologia marxista, da autoria de Nicolai Bukharin - que
tinha por objetivo suprir a ausência de “uma exposição sistemática (...)
fundamental da teoria marxista”5 – que seria objeto de contundentes críticas por
parte de György Lukács (1925) e Antonio Gramsci (primeira metade dos anos
1930). As críticas de Gramsci endereçadas à Bukharin nos Cadernos do
Cárcere6, já antecipavam uma série de questões que se tornariam,
posteriormente, de grande relevância. Destas, cabe destacar: as referentes à
filosofia marxista como uma filosofia independente, original e irredutível às
outras concepções filosóficas; as tentativas de combinar o marxismo com outras
2
KAGARLITSKY, Boris. Los intelectuales y El estado soviético de 1917 al presente.
Buenos Aires: Prometeo Libros, 2006, p. 65.
3
Ibid., p. 77.
4
Ibid., p. 85.
5
BUKHARIN, N. Tratado de Materialismo Histórico. Rio de Janeiro: Laemmert, 1970, p.
7; a tradução espanhola, BUJARIN, Nicolai I. Teoria del Materialismo Histórico. 2 ed.
Madri: Siglo XXI, 1974, ao lado de trazer uma informativa introdução de Aldo Zanardo,
reproduz as importantes críticas de Lukács e Gramsci endereçadas ao manual de
Bukharin.
6
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Volume I: Introdução ao Estudo da
Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce. 4 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2006, I. Introdução ao Estudo da Filosofia, 1. Caderno 11. II. Observações e notas
criticas sobre uma tentativa de “Ensaio popular de sociologia”.
4
correntes filosóficas e, ainda, quanto ao perigo de uma contínua recaída no
senso comum e a consequente incapacidade da construção de uma nova
hegemonia.
No referente à filosofia, ao longo da década de 1920, desenvolveu-se na
URSS uma acirrada luta, entre duas distintas correntes pela hegemonia
filosófica7: os mecanicistas e os dialéticos.
Os mecaniscistas (próximos a Bukharin) defendendiam a concepção de
que toda filosofia era supérflua e representava “uma forma de
metafísica
mística e escolástica se comparada as ciências particulares”8 - sendo que estas
ciências, em particular as ciências da natureza, possibilitariam um conhecimento
e a resolução dos diferentes problemas teóricos.
Os dialéticos (que tinham em Deborin9 seu principal representante) se
opunham a esta tese, afirmando a importância da filosofia como atividade
autônoma e defendendo o materialismo dialético como uma concepção de
mundo integral que englobaria a natureza e a sociedade.
Vranicki observa:
Deborin defendia que a filosofia marxista, o materialismo
dialético, consta de três partes essenciais: “A dialética
materialista como metodologia científica geral (incluindo a teoria
do conhecimento); a dialética da natureza como metodologia
7
Para uma reconstrução detalhada desta polêmica, consultar entre outros: ZAPATA,
René. Luttes Philosophiques en U.R.S.S. 1922-1931. Paris: PUF, 1983, que reproduz
uma antologia de textos; VRANICKI, Pedrag. História del Marxismo, Vol. 2. Salamanca:
Sigueme, 1977 e OCHOCKI, Kazimierz. Radzieckie Spory Filozoficzne (Debates
filosóficos soviéticos), Varsóvia: KAW, 1984. Para uma análise das criticas de Gramsci
a Bukharin e das eventuais relações com os debates filosóficos da década de 1920, cf.
BUCI-GLUCKSMANN,Christine. Gramsci y el Estado. Hacia uma teoria materialista de
La filosofia. 2 ed. Mexico: Siglo XXI, 1978, Tercera Parte: 1. Gramsci y Bujarin: un
extraño viraje e 2. Crítica filosófica y crítica política de Bujarin. Para uma biografia
seguida de uma pequena antologia de textos de Deborin, cf. OCHOCKI, Kazimierz.
Deborin i dyskusje w filozofii radzieckiej. (Deborin e discussões na filosofia soviética).
KUDEROWICZ, Zbigniew. (org.) Filozofia Wspólczesna. (Filosofia Contemporânea). 2
ed. Varsóvia: Wiedza Powszechna, Tomo I, 1990, pp. 126-139 e coletânea pp. 140-151
e antologia 140-151.
8
VRANICKI, P. História del Marxismo, op. cit., p. 85.
9
Como é sabido Deborin foi um dos principais críticos do livro de Lukács História e
Consciência de Classe, com seu artigo “Lukács e sua crítica do marxismo” publicado
em 1924 em Viena na revista Arbeiterliteratur.
5
das ciências naturais (materialismo científico-histórico); a
dialética da história (materialismo histórico)” (A. Deborin,
Dialética e Ciências Naturais).10
Podemos identificar aqui, portanto a redução da dialética a uma
metodologia e uma relação de subordinação do materialismo histórico à dialética
entendida como metodologia geral. Vranicki observa igualmente que a
concepção de Deborin seria, posteriormente, incorporada pela síntese filosófica
oficial.11
Este debate filosófico encerrou-se em 1929, com o êxito do grupo
dialético, que assumiu a direção das principais instituições filosóficas.
Entretanto, já em 1930, aparece primeiramente o artigo “Sobre as novas tarefas
da filosofia marxista-leninista”, assinado por três jovens filósofos, no qual
criticavam,
tanto
os
mecanicistas
como
os
dialéticos,
estes
últimos
caracterizados como “idealistas mencheviques”, destacavam o caráter partidário
da filosofia e a necessidade de procurar a raíz política e de classe de todo
fenômeno ideológico, seguido da resolução do CC do PCUS de janeiro de 1931,
que reafirmaria aquelas críticas; esta nova corrente se tornaria, a partir de
então, a filosofia oficial da URSS; esta decisão político administrativa, que
marcou
o
nascimento
oficial
da
nova
síntese
filosófica,
encontrará
posteriormente sua versão canônica no opúsculo de J. Stalin: Materialismo
Dialético e Materialismo Histórico.12
Esta situação teórica se agravará ainda mais, nos anos sucessivos a II
Guerra Mundial, com uma nova e importante ofensiva filosófica e ideológica
promovida por Andrei Zhdanov e que teria importantes conseqüências para o
desenvolvimento do marxismo no leste europeu.
Segundo Vranicki:
10
VRANICKI, P., op. cit., p. 86.
Idem Ibidem.
12
STALIN, Josef. Materialismo Dialético e Materialismo Histórico. São Paulo: Global,
s.d. Para uma análise critica, da versão canônica do Materialismo Histórico, cf.
MOURA, Mauro Castelo Branco. O lugar do Oriente em Marx e a concepção staliniana
dos “Cinco Estágios”. In DEL ROIO, Marcos (org..) Marxismo e Oriente: quando as
periferias tornam-se os centros. São Paulo/Marília: Ícone/Oficina Universitária, 2008, p.
69-89.
11
6
Com a finalidade de assegurar a hegemonia política sobre os
países do campo socialista e sobre os partidos comunistas de
todos os países, se proclama o estado soviético “modelo” de
toda a humanidade progressista e declara que a cultura e os
estados burgueses são apenas decadência e decrepitude.13
Desse modo, pode-se identificar algumas características gerais do
fenômeno que foi nomeado “marxismo russo”. Buci-Glucksmann aponta alguns
de seus traços mais gerais:
1. Desenvolvimento do aspecto filosófico do marxismo com a
finalidade de criar um sistema global.
2. Afirmação de que o materialismo filosófico é a filosofia
específica do marxismo e que há um nexo privilegiado entre o
materialismo e as ciências da natureza.
3. Unidade das posições filosóficas e políticas que desemboca
em uma “ingerência” do poder político nas questões filosóficas.14
Podemos, ainda, acrescentar como um importante desdobramento da
primeira característica, o caráter subalterno do Materialismo Histórico,
concebido como uma aplicação do Materialismo Dialético.15
13
VRANICKI, P., op. cit., p. 150, cf também p. 149-152. Consultar igualmente as
intervenções de Zhdanov: ZHDANOV, A. A. Literatura y Filosofia a la luz del Marxismo.
Montevidéu: Pueblos Unidos, 1948.
14
BUCI-GLUCKSMANN,Christine. Gramsci y el Estado. op. cit., p. 257. Sobre esta
questão consultar igualmente: ZANARDO, Aldo. El “Manual” de Bujarin visto por los
comunistas alemanes y por Gramsci. In: BUJARIN, Nicolai I. Teoria del Materialismo
Histórico, op. cit.
15
Lukács em seus Prolegômenos a uma Ontologia do ser social, desenvolve uma
crítica a esta concepção staliniana da relação entre Materialismo Dialético e
Materialismo Histórico: LUKÁCS, György. Wprowadzenie do Ontologia bytu
społecznego. Parte. III. Prolegomena. Varsóvia: PWN, 1985, pp. 452-453; 506-509.
Consultar igualmente: RAINKO, Stanislaw. Marksizm Stalina. In: RAINKO, Stanislaw.
Swiadomosc i Determinizm. Varsóvia: Czytelnik. 1981.
7
É esta filosofia, portanto, que através de diferentes métodos burocráticos e
coercitivos, será transplantada nos diferentes países do leste europeu e que, em
linhas gerais, como observou Georges Labica, perdurou até o colapso do
Socialismo Real, nunca tendo se constituído em objeto de uma crítica
rigorosa.16.
Para uma análise do desenvolvimento do marxismo no leste europeu (em
particular na Hungria, na Polônia e na Tchecoslováquia) nos anos 1945-1989
seria de grande utilidade, retomarmos algumas propostas de periodização e
classificação desta rica experiência.
Leszek Kolakowski em seu livro Główne Nurty Marksizmu17 (Tendências
Principais do Marxismo), propõe a seguinte periodização do desenvolvimento do
marxismo nos países do leste europeu:
i) os anos 1945-1949 se caracterizaram pela existência de elementos de
um pluralismo político e cultural, que se restringirá gradualmente no decorrer do
período, e que se expressava no pensamento filosófico e social na presença de
diferentes correntes e professores estranhos a tradição marxista nas diferentes
instituições universitárias - particularmente presentes na Polônia e na
Tchecoslováquia;
ii) 1949-1954 se caracteriza pela unificação do “campo socialista”, nos
aspectos políticos e ideológicos e acompanhados de uma stalinização da
cultura, através de diferentes métodos administrativos, entre os quais, o
afastamento e a proibição do ensino dos antigos professores;
iii) 1955-1968, sob o efeito da desestalinização surgem diferentes
tendências anti-stalinistas e revisionistas, surgimento de diferentes correntes
filosóficas.
16
LABICA, Georges. Dopo Il marxismo-leninismo (tra ieri e domani). Roma: Edizioni
Associate, 1991. Uma avaliação semelhante podemos encontrar no marxista polonês
Waclaw Mejbaum, que escreve em pleno momento do ocaso do “socialismo local”: “Até
o momento não existe uma caracterização satisfatória do fenômeno da “dogmatização”
ou “vulgarização” do marxismo no Período stalinista”. MEJBAUM, Waclaw.
Epistemologiczna Problematyka Marksizmu. Proba rekonstrukcji” (Problemática
Epistemológica do Marxismo. Tentativa de reconstrução). Szczecin: Uniwersytet
Szczecinski, 1990.
17
KOLAKOWSKI, Leszek. Główne Nurty Marksizmu. Vol. III. Varsóvia: Krąg –
Pokolenie, 1988, p. 923.
8
Poderíamos acrescentar a proposta de Kolakowski, um quarto período, a
partir do início dos anos 1970, que se caracterizaria pela derrota e expurgo das
diferentes correntes revisionistas e criticas ao stalinismo, com o afastamento da
vida pública e ou o exílio de seus principais representantes.
Uma segunda possível proposta de periodização poderia ser elaborada a
partir de critérios geracionais18, e identifica três distintas gerações que
compartem experiências históricas comuns:
i) a geração de Lukács e Bloch, autores que se aproximaram do marxismo
sob o impacto da Revolução Russa e que viveram a experiência da ascensão do
nazismo e da consolidação do stalinismo e que retornaram do exílio para a
Hungria e a RDA respectivamente;
ii) a geração de jovens teóricos formados nos anos sucessivos a II Guerra
Mundial
(dentre
os
principais
representantes
estão
Karel
Kosik
na
Tchecoslováquia, Leszek Kolakowski, Zygmunt Baumann, Bronislaw Baczko na
Polônia e Agnes Heller e outros membros da Escola de Budapeste na Hungria)
e que desempenharam um importante papel nos debates teóricos e políticos dos
anos 1950-1960.
iii) a geração dos “marxistas acadêmicos” que se formaram na década de
1960 e que passaram a desempenhar um papel no ensino e pesquisa –
principalmente nas Universidades - nas décadas 1970-1980.
Uma outra possibilidade de classificação das diferentes tendências
existentes no marxismo nos países do leste europeu ainda nos é oferecida pelo
húngaro György Markus19, que identifica quatro diferentes tendências:
i) “tendência extensional”, que poderíamos identificar com a síntese
filosófica oficial e que teria a “sua origem em Engels e em Lenin, mais
particularmente no Anti-Dühring e no Materialismo e Empiriocriticismo”20. É
designada por “extensional” porque “se aplica ao conjunto da realidade, ou seja
18
A presente proposta foi elaborada a partir de uma leitura do filósofo italiano Guido
Neri: NERI, Guido D. Aporie della realizzazione. Filosofia e Ideologia nel socialismo
reale. Milão: Feltrinelli, 1980, na qual analisa as obras de Lukács, Bloch, Kolakowski e
Kosik, estabelecendo uma distinção geracional entre os dois primeiros e os dois
últimos.
19
MARKUS, György. Teoria do Conhecimento no Jovem Marx, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1974: Capítulo: Discussões e Tendências na Filosofia Marxista, pp. 113-129.
20
Ibid., p. 114.
9
à natureza, à sociedade e ao pensamento”.21 O processo de desestalinização e
as criticas à síntese filosófica anterior permitiram o aparecimento de novas
correntes filosóficas:
ii) “corrente cientificista” que, segundo o autor, privilegiaria a “função
metodológica da filosofia, principalmente no que concerne às ciências naturais e
empíricas”.22
iii) tendência “ideologia crítica” que, em oposição a corrente anterior, “tem
como ponto de partida a critica marxiana das ideologias e declara que, em
princípio, a filosofia é uma visão do mundo que influencia as relações práticas
com a realidade”.23
iv) corrente “ontologia social”, que encontraria suas raízes na obra de
Lukács e nos debates filosóficos dos anos 1920 e que representaria uma
concepção “capaz de superar as antigas contradições da filosofia tradicional”24.
Estas três distintas propostas de periodização nos fornecem um conjunto
de indicações históricos e teóricas que nos ajudam a orientar-se no complexo
fenômeno dos diferentes marxismos da Europa Oriental.
Passemos agora a uma análise mais detalhada do fenômeno em questão.
A difusão da filosofia marxista na sociedade e na universidade (dos países
da Europa Oriental) se deparou com um conjunto de obstáculos, variáveis
segundo os diferentes países. Dentre estes obstáculos é importante destacar,
por um lado, uma forte tradição intelectual e filosófica estranha ao marxismo, e
por outro, a ausência de significativos intelectuais marxistas.
Na Tchecoslováquia, apesar da existência de um forte Partido Comunista, a
vida intelectual, nos anos 1920 e 1930, era dominada pela importante figura de
Thomas Masaryk, presidente da República durante o período entre guerras, e
que em fins do século XIX tinha publicado um livro anunciando a “crise do
marxismo”. Existiam ainda, na capital tcheca, duas importantes instituições
intelectuais: o Círculo Lingüístico de Praga que reunia o representantes do
estruturalismo lingüístico (entre os quais cabe destacar Roman Jakobson e Jan
21
Idem Ibidem.
Ibid., p. 119.
23
Ibid., p. 120.
24
Ibid., p. 121.
22
10
Mukarovský); e o Círculo Filosófico de Praga que refletia a forte presença em
Praga da fenomenologia husserliana (entre seus membros é importante lembrar
de Jan Patočka, aluno de Husserl e Heidegger, que desempenhará
posteriormente um importante papel na vida intelectual tcheca nos anos 19601970).
Na Polônia, a vida universitária era marcada pela existência da Escola de
Lvov e Varsóvia (Kazimierz Ajdukiewicz e Tadeusz Kotarbinski entre outros) que
exerceu uma grande influência nos estudos lógicos e filosóficos. Ao lado desta
Escola,
igualmente
importantes
eram
os
professores
Roman
Ingarden
(fenomenólogo, aluno de Edmund Husserl e autor de uma significativa obra) e
Wladislaw Tatarkiewicz, autor de uma importante História da Filosofia. A situação
polonesa era ainda mais agravada pela dissolução, em 1938, do Partido
Comunista Polonês e pela execução de muitos de seus dirigentes.
Foi nestas condições intelectuais, que se desenvolveria a ofensiva política
e teórica, para implantar o marxismo, em sua versão sistematizada na União
Soviética, na vida cultural e universitária, implantação esta acompanhada de
uma série de medidas de caráter coercitivos e burocráticos (entre os quais a
proibição do ensino e exclusão da universidade dos antigos professores).
Rapidamente estes professores serão substituídos por um conjunto de novos
professores. Ao lado do ensino da filosofia marxista e do desenvolvimento da
luta ideológica, de grande importância foram os diferentes projetos de pesquisa
voltados a resgatar as diferentes tradições democráticas e revolucionárias de
cada pais.
Com o início da desestalinização, posterior à leitura do Relatório Kruschev
no XX Congresso, a síntese filosófica oficial “marxista- leninista” então
dominante, passou a ser objeto de diferentes criticas. Os acontecimentos de
1956, assumem aspectos dramáticos na Hungria, com a Revolta de 1956 –
Lukács tomaria parte do Governo provisório de Imre Nagy e após a sua
deposição seria exilado na Romênia, igualmente importante foi a participação
dos intelectuais no Circulo Petöfi. Da mesma maneira, na Polônia, a participação
dos intelectuais também seria de fundamental importância nos acontecimentos
sucessivos ao “outubro polonês”.
11
As criticas endereçadas à síntese oficial levou rapidamente (como já vimos
anteriormente, quando nos referimos a classificação de Markus) ao surgirmento
de diferentes tendências filosóficas autônomas, algumas vezes, procurando
combinar o marxismo com diferentes correntes filosóficas dominantes na Europa
Ocidental, como o neo-positivismo e o existencialismo. Wladyslaw Krajewski25
caracterizou estas duas correntes como: scientific philosophers e antropological
philosophers, sendo que enquanto a primeira seguia a tradição materialista e
positivista e procuravam desenvolver o materialismo dialético, a segunda
prosseguia a tradição da filosofia clássica alemã e também em alguns casos o
existencialismo e a fenomenologia e procuravam desenvolver o materialismo
histórico.
Entretanto, como observam Mejbaum e Zukrowska, estas duas correntes
gradualmente se distanciaram tanto do materialismo dialético como do
materialismo histórico, abandonando todo projeto de reconstrução e elaboração
de uma filosofia marxista. Enquanto os scientific philosophers passaram a
ocupar-se de diferentes disciplinas cientificas e da metodologia das ciências, os
antropological philosophers se voltaram à Sociologia empírica e à história do
pensamento social.26 Assim, “salta aos olhos a dependência das idéias,
desenvolvidas pela filosofia polonesa no período pós-stalinista, em relação as
inspirações originadas da cultura burguesa do Ocidente.”27 Particularmente
importante, entretanto, é a tentativa de ambos autores de associar esta referida
dependência ao fenômeno que eles descrevem como a “não soberania da
cultura socialista” e o “fascínio pela cultura ocidental”. Esta “não soberania”
conduziria à reprodução das diferentes antinomias da filosofia e da cultura
ocidental (em particular a entre cientificismo e antropologia filosófica): ”Duas
25
KRAJEWSKI Wladyslaw. Introduction: Polish Philosophy os Sciences. In:
KRAJEWSKI Wladyslaw (Org.). Polish essays in the philosophy of the Natural Sciences.
Dordrecht: D. Reidel, 1966, p. XIV-XIX. Estas observações de Krajewski, são
retomadas e desenvolvidas por Mejbaum e Zukrowska em seu livro de critica a Leszek
Kolakowski: MEJBAUM, Waclaw e ZUKROWSKA, Aleksandra. Literat Cywilizowanego
Swiata. Leszek Kolakowski a krysys mysli mieszczanskiej. (Literato do mundo civilizado.
Leszek Kolakowski e a crise do pensamento burguês). Varsóvia: Ksiazka i Wiedza,
1985.
26
MEJBAUM, W. e ZUKROWSKA, A., op. cit. p. 252-253.
27
Ibid., p. 256.
12
formas fundamentais de entendimento do mundo, as duas filosofias da cultura
burguesa do ocidente são contraditórias e complementares entre si.”28
Dessa forma:
O caráter antinômico da cultura burguesa deveria ser analisado na tradição teórica marxista – como uma conseqüência da
contradição interna do modo capitalista de produção material.
(...) É de se esperar que toda tentativa de ir alem da dicotomia:
cientificismo – antropologia filosófica, não só uma vez
interessantes
e
ambiciosas,
possibilidade
de
sucesso,
não
apresentam
enquanto
a
nenhuma
estrutura
social
fundamental permaneça intocável”.29
É no interior desta atmosfera de intensa polêmica filosófica que se
gestariam, na década de 1960, os dois projetos filosóficos mais ambiciosos de
superar por um lado a síntese filosófica oficial e por outro lado, as recaídas no
neo-positivismo (filosofia científica) e existencialismo ou outras tendências
(filosofia antropológica)30 e permitissem a elaboração de uma verdadeira
alternativa teórica. Referimo-nos aqui tanto ao grande projeto intelectual do
“velho Lukács”, efetivado em sua obra Ontologia do Ser Social, quanto a Karel
Kosik, cuja principal obra - Dialética do Concreto31 - foi considerada como
“provavelmente o trabalho filosófico mais fecundo produzido na Europa Oriental
28
Ibid., p. 48-49.
Ibid. p. 49. É importante aqui lembrar as análise realizadas por Costanzo Preve sobre
o marxismo oriental e marxismo ocidental, partindo das indicações da Ontologia do Ser
Social de Lukács da existência de uma “solidariedade antitético polar na história
contemporânea entre o neo-positismo e o existencialismo”. PREVE, Costanzo. La
Filosofia Imperfetta Una proposta di ricostruzione Del marxismo contemporâneo.
Milano: Franco Angeli, 1984, p. 188; consultar também Parte V. 4: Una interpretazione
del pensiero borghese del Novecento, p. 187-192.
30
Seria interessante reproduzir aqui a relação de complementariedade, que MEJBAUM
e ZUKROWSKA estabelecem entre o “dogmatismo stalinista” e o revisionismo (dos
anos 1950-1960): “A posição que queremos aqui defender, nos faz conceber
“dogmatismo” e “revisionismo”, antes como dois aspectos relacionados dialeticamente
do afastamento da tradição marxista, do que tendências autônomas nas margens do
marxismo (...) Dogmatismo e revisionismo condicionam-se mutuamente, constituem
duas manifestações complementares da mesma deformação do pensamento marxista
vivo”. Ibid., p. 225-226.
31
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
29
13
após a guerra”.32 É importante destacar, também, que ambos autores
procuraram oferecer uma análise teórica das sociedades do “socialismo real” na
década de 1960, elaboradas sob o impacto da experiência da “Primavera de
Praga: Lukács através de seu O processo de democratização33 e Kosik com A
Nossa Crise Atual34.
Voltando-nos ainda à Ontologia do Ser Social e à Dialética do Concreto
podemos identificar, independente dos diferentes pontos de partida, algumas
proximidades entre ambos projetos filosóficos: a importância atribuída ao
conceito de totalidade, a critica à manipulação, a critica ao positivismo e ao
existencialismo e à toda separação entre teoria do conhecimento e ontologia35.
Lukács no primeiro volume de sua Ontologia do Ser Social, obra na qual
estabelece um fecundo diálogo com o grande projeto ontológico de Nicolai
Hartmann, desenvolve uma critica do Neopositivismo e Existencialismo,
mostrando a complementariedade entre ambos.36
Referindo-se ao pensamento de Heidegger, Lukács observa: “Temos aqui
aparentemente o máximo contraste com o neopositivismo. (...) Mas na verdade o
contraste é apenas aparente, trata-se aqui, antes, de uma integração
32
ARNASON, Johann P. Perspectivas e problemas do marxismo critico no Leste
europeu. In: Hobsbawm, Eric J. História do Marxismo Vol. XI. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989, p. 213. Arnason descreve da seguinte maneira o projeto critico de Kosik:
“O conteúdo positivo do livro é inseparável de uma polêmica travada em duas direções:
contra o marxismo soviético e contra o tipo de revisionismo que prevalecera na Polônia.
Kosik queria repor o centro da filosofia marxista em torno da pergunta “o que é o
homem?”, mas recusava seja a antropologia residual de Adam Schaff, seja o ultraantropologismo de Kolakowski.” p. 213-214. Aliás, o autor faz uma clara distinção entre
uma “antropologia” proposta por diferentes correntes e a “ontologia do Homem”
proposta por Kosik. Cf. p. 186, nota 14.
33
LUKÁCS, György. O processo de democratização. In: LUKÁCS, György. Socialismo e
democratização Escritos Políticos 1956 – 1971. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008, pp.
83-206.
34
KOSIK, Karel. La Nostra Crise Attuale. Roma: Riuniti, 1969.
35
Cf. OLDRINI, Guido: György Lukács e i problemi del marxismo del novecento. Napoli:
La Città Del Sole, 2009, p. 238 e 232, aonde destaca a proximidade existente ente os
dois últimos aspectos citados.
36
LUKÁCS, György. Wprowadzenie do Ontologia bytu społecznego. Parte I.
Wspólczesne stan problemu (O situação contemporânea do problema). Varsóvia: PWN,
1982, Cap. I: Neopozytywizm i egzystencjalizm, p. 36-176. A extensa, acessível e
competente bibliografia sobre a Ontologia em língua portuguesa (difundida graças aos
esforços incansáveis de Sérgio Lessa e do núcleo de investigação reunido em torno de
José Chasin e Ester Vaisman), torna desnecessária uma análise sistemática desta
obra, o que aliás iria além dos objetivos desta comunicação e das possibilidades do
autor.
14
recíproca.”37
E
esta
solidariedade,
como
observa
Lukács
se
dá
independentemente de uma leitura recíproca:
É totalmente indiferente que os maiores existencialistas o
tenham lido ou não [Wittgenstein] e quais foram as suas reações.
As mesmas condições e tendências sociais podem facilmente
uma série de pensamentos análogos, mesmo se os seus autores
não sabem ou não querem saber nada um do outro.38
A reflexão de Karel Kosik, por sua vez, representa uma tentativa de
estabelecer um diálogo orgânico com a tradição filosófica, que se destaca por
sua leitura criativa de Marx (do qual utiliza amplamente uma série de
referências, até então pouco usuais na bibliografia marxista como, por exemplo,
os Grundrisse, a 1a edição de 1867 de O Capital e as Notas Marginais sobre
Wagner) e, ainda, autores da tradição marxista, como Antonio Gramsci, Lucien
Goldmann e, sobretudo, Rosa de Luxemburg e Lukács de História e
Consciência de Classe. Igualmente importante é o seu recurso à filosofia
clássica alemã - em particular Schelling e Hegel -, e à fenomenologia
contemporânea, em particular Husserl39, Heidegger40 e do aluno de ambos,
Patočka. São igualmente importantes, na reflexão de Kosik, as constantes
referências à tradição literária européia e tcheca dos séculos XIX e XX.
Podemos afirmar que a influência de Husserl e Heidegger se acentuarão nos
textos posteriores a Dialética do Concreto em particular durante e após a
experiência da “Primavera de Praga”.
37
Ibid., pp. 64-65. Para a análise da integração recíproca entre existencialismo, cf.
Capítulo I. 3. Egzystencjalizm.
38
Ibid., p. 101.
39
Zeleny em sua análise da concepção de Husserl da crise da ciência e do seu impacto
na Tchecoslováquia nos anos 1960 observa: “A fenomenologia de Husserl foi,
fundamentalmente em sua reelaboração e transformação existencialista por Heidegger,
uma das principais fontes do revisionismo filosófico cuja influência na Tchecoslováquia
alcançou seu ponto culminante em meados dos anos 60”. ZELENY, Jindrich. “La
concepción marxista y fenomenológica de la llamada crisis de la ciencia”. In. ZELENY,
Jindrich. Dialéctica y Conocimiento. Madri: Cátedra, 1982, p. 119.
40
Para a crítica de Heidegger desenvolvida por Kosik, consulte o Capítulo II: Economia
e Filosofia de Dialética do Concreto.
15
Em seu artigo A Crise Atual, redigido no ano de 1968, porém só publicado
posteriormente, destacava a importância de algumas contribuições teóricas para
a compreensão do que chama “sistema de produção crescente e infinito”,
característico da realidade do século XX:
Este fenômeno determina o século XX, mas não foi ainda objeto
de uma análise sistemática. Mencionamos entretanto algumas
tentativas: aquelas de W. Rathenau (A mecanização total), E.
Jünger (O Estado Universal; A mecanização total), E. Husserl (A
Crise das Ciências Européias), M. Heidegger (Das Gestell).41
Se por um lado, este conjunto de referências problematiza de forma
radical, o problema da ciência e da técnica no mundo contemporâneo, por outro,
permanece a impressão que as análises do “socialismo real” realizadas em A
Nossa Crise Atual são excessivamente especulativas e correm o risco de não
captar a especificidade e a dinâmica das diferentes relações sociais de
produção.
Da mesma forma, em seus artigos posteriores à restauração capitalista de
1989 e dedicados à realidade do mundo contemporâneo, Kosik, utilizando os
concepções de manipulação, domínio autônomo e anônimo do “Supercapital”
resultado “da simbiose de ciência, técnica e economia”, retomaria as
observações de Rathenau sobre o “aprovisionamento de matérias primas”
durante a I Guerra Mundial que “ultrapassava seus objetivos e exigências”42,
bem como as reflexões de Jünger sobre o trabalhador que representa a
encarnação da “mobilização total que, com a ajuda da técnica moderna, se
apropriará do planeta com o objetivo de sua assujeição”, análises estas que se
encontrariam tambem nas investigações futuras de Heidegger sobre o Gestell.43
41
KOSIK, Karel. La Crise Actuelle. In: KOSIK, Karel. La Crise des Temps Modernes
Dialectique de la Morale, Paris: Les Éditions de la Passion, 2003. p. 78.
42
KOSIK, Karel. La Démocratie et lê Mythe de la Caverne. In: KOSÍK, Karel. La Crise
des Temps Modernes, op. cit., p. 183.
43
KOSIK, Karel. Sept escales d’automne. In: KOSÍK, Karel. La Crise des Temps
Modernes, op. cit., p. 216.
16
Karel Kosik inicia a sua obra Dialética do Concreto afirmando: “A dialética
trata da ‘coisa mesma’. Mas a ‘coisa mesma’ não se manifesta imediatamente
ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um
certo esforço, mas também um desvio.”44 A distinção entre coisa mesma e forma
fenomênica da realidade, entre representação e conceito da coisa conduz Kosik
a distinguir duas formas do conhecimento da realidade: a falsa consciência e a
compreensão real da coisa. Para ele a distinção entre mundo fenomênico e
essência é uma distinção central de toda filosófica.45
Da mesma forma que os outros conceitos da sua filosofia, o conceito de
práxis é pensado no interior da referida distinção, entre mundo fenomênico e
coisa mesma, entre o mundo da pseudoconcreticidade e a totalidade concreta;
neste mesmo sentido, a práxis humana é pensada, partindo da distinção entre
“o mundo do tráfico e da manipulação, isto é da práxis fetichizada dos homens”
e o da “práxis critica revolucionaria da humanidade”.46
Para Kosik, o conceito de práxis representa “a mais importante descoberta
de Marx” e deve portanto ser compreendido em seu duplo aspecto, ou seja: sob
a forma histórica da manipulação, da preocupação e da sórdida especulação,
como tambem uma
atividade que cria a situação, as circunstâncias e a
possibilidade da compreensão da realidade em geral.47 Estas distinções, entre
os dois aspectos da realidade e da práxis, não devem ser entendidas,
entretanto, como dois mundos separados e opostos, como no platonismo e no
cristianismo48, mas segundo o modelo do Bildungsroman, da “formação”,
modelo este que se expressaria na estrutura das obras Fenomenologia do
Espírito de Hegel e O Capital de Marx:
O Capital se manifesta como “a odisséia” da práxis histórica
concreta, a qual passa do seu elementar produto de trabalho
através de uma série de formas reais, nas quais a atividade
prático-espiritual dos homens é objetivada e fixada na produção,
44
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. op. cit., p. 9. (Tradução levemente modificada.)
Ibid., p.13.
46
Ibid., p. 11.
47
Ibid., p. 201.
48
Ibid., p.12.
45
17
e termina a sua peregrinação não com o conhecimento daquilo
que ela é por si mesma, mas como a ação prático-revolucionária
que se fundamenta neste conhecimento.49
E neste sentido, Kosik conclui:
O conhecimento ou a tomada de consciência da natureza do
próprio sistema, como sistema de exploração, é condição
necessária para que a odisséia da forma histórica da práxis
chegue a termo na práxis revolucionaria.50
O Capital representaria, portanto, para Kosik uma descrição do sistema
capitalista, que parte da sua forma elementar – a Mercadoria – para alcançar a
compreensão da totalidade, a sua crítica e superação revolucionária.
É relevante destacar que Kosik, em diferentes passagens de seu livro,
critica as diferentes tentativas de se reduzir o conceito de totalidade e de práxis
apenas ao seu momento epistemológico, tentativas que esquecem a unidade
entre ontologia e epistemologia: “a práxis tornou-se mera categoria e começou a
desempenhar a função de correlato do conhecimento e de conceito fundamental
da epistemologia”.51
Aliás, uma correta compreensão da relação entre ontologia e gnoseologia
permitiria a superação dos diferentes impactos filosóficos herdados pela
modernidade:
Mas só a concepção dialética do aspecto ontológico e
gnoseológico da estrutura e do sistema permite chegar a uma
49
Ibid., p. 166.
Ibid., p. 168.
51
Ibid., p.198. Kosik retorna em outras passagens da sua obra a esta mesma critica,
chegando mesmo a falar que esta redução do conceito de totalidade a seu aspecto
puramente metodológico representaria uma degeneração. Ibid., p. 34.
DK. p. 27-44;
33-54.
50
18
solução positiva e evitar os extremos do formalismo matemático,
de um lado, e do ontologismo metafísico, de outro.52
Kosik igualmente sublinhou as dificuldades e os mal entendidos que o
conceito de práxis poderiam suscitar, originários da pluralidade de sentidos a ele
atribuídas e dos perigos de banalização decorrentes de seu uso acrítico e
corrente.53
Talvez, em parte, estas dificuldades conceituais e aliadas à evolução
política a partir dos últimos anos da década de 1960, influenciaram que o
conceito em questão tivesse uma presença cada vez menor na obra posterior de
Kosik. Se por um lado, ao longo de Dialética do Concreto (e de outros textos do
mesmo período), o caráter emancipatório da práxis humana, a par
de seu
caráter fetichizado, foi sublinhado a partir dos seus escritos associados a
conjuntura de 1968, este conceito tende a ser substituído pelo de manipulação,
que adquire uma importância central para a interpretação das sociedades
capitalistas e dos países socialistas.54
Em A Nossa Crise Atual, Kosik analisa detalhadamente as diferentes
formas fenomênicas deste processo de manipulação, sublinhando as suas
diferentes expressões tanto na terminologia reificada da política oficial reveladora de um mecanismo de mistificação que reduziria o homem ao
anonimato (massa, correia de transmissão) – quanto nos políticos – que de
políticos pensadores tornaram-se políticos pragmáticos que concebem a
52
Ibid., p. 38.
Ibid., p. 197ss. Neste mesmo sentido consultar: KOSIK, Karel: Gramsci et la
philosophie de la “práxis”. In: KOSIK, Karel. La Crise des Temps Modernes pp. 89-90.
54
Arnason comparando os escritos de Kosik de 1968, com a Dialética do Concreto
observa “(...) A filosofia da práxis perdia muito de sua relevância original para os fins da
análise das estruturas e das forças sociais. Isto se tornava evidente nos artigos de
Kosik publicados em 1968. Embora devam ser contados entre os textos mais
interessantes da “primavera de Praga”, sua conexão com a Dialética do Concreto é
bastante tênue. (...) O pano de fundo da crise era um sistema de manipulação universal
e de irresponsabilidade geral, cuja lógica conduzira à dissolução ou à paralisia dos
sujeitos políticos e das classes sociais.” ARNASON, op. cit., p. 215. Sobre a passagem,
em Kosik, de uma filosofia da práxis, para uma concepção da “dominação anônima e
universal” e a centralidade da manipulação, tomamos a liberdade de remetermos ao
nosso artigo: DA COSTA NETO. Pedro Leão. A Questão da Manipulação e da
Dominação Anônima e Universal no Pensamento de Karel Kosik. In: SANTOS, Antônio
C.; PIRES, Cecilia; HELFER, Inácio (orgs.). História e Barbárie. Aracajú: Editora UFS.
2009, pp. 238-252.
53
19
realidade política como objeto de manipulação e que substituem a reflexão
política
pela
ideologia.
Kosik
procura
identificar
esta
situação
como
manifestação de uma crise mais profunda que afeta toda a modernidade:
O fundamento comum da ciência e da técnica moderna é uma
certa disposição da realidade, na qual o mundo prática e
teoricamente se transforma em objeto. Esta realidade assim
disposta pode tornar-se matéria de pesquisa exata e de
domínio. A ciência e a técnica representam portanto um tipo de
abordagem da realidade, na qual o sujeito se assegura que a
realidade apresentada é possível de ser investigada e disponível
por princípio. O fundamento da ciência e da técnica moderna é o
intelecto técnico o qual transforma a realidade (o ser) em um
objeto certo, analisável e manipulável.55
Para nosso autor, portanto, a questão da manipulação é entendida como
expressão do próprio processo constitutivo da modernidade. A natureza e o
homem tornam-se objetos disponíveis e possíveis de serem manipulados. Os
países socialistas, na medida que não romperam com esta concepção
característica da modernidade, passam eles mesmos a expressar esta mesma
realidade.
Por fim, desenvolve uma crítica contundente da concepção de “revolução
técnico científica”, então representada na Tchecoslováquia por um grupo de
pesquisadores dirigidos por Radovan Richta e que, segundo Kosik, tentavam
resolver os problemas da construção do socialismo no interior de uma
“metafísica do desenvolvimento das forças produtivas”.56
Como já destacamos anteriormente, quando falamos das referências
presentes no pensamento de Kosik, destacamos que estas indagações
teóricas, apesar das importantes questões levantadas, parecem conduzir à
substituição das análises realizadas a partir dos conceitos fundamentais do
materialismo histórico por um conjunto de conceitos abstratos e especulativos.
55
56
KOSIK, Karel. La nostra crisi attuale. op. cit., p. 79.
Ibid., pp. 75-82 (VI: Crisi del socialismo).
20
Destaque-se, comtudo, que mais uma vez os acontecimentos de caráter
político interromperam de forma violenta o debate teórico: março de 1968 na
Polônia e a derrota da experência da “Primavera de Praga” na Tchecoslováquia,
seguidos do afastamento de um grande número de professores das
universidades e institutos de pesquisa e o exílio de numerosos filósofos
marcaram definitivamente aquela intensa experiência teórica iniciada em 1956,
e caracterizada por um lado, por uma série de elaborações revisionistas, que
rapidamente abandonaram o marxismo57 e, por outro, por diferentes tentativas
de elaborar concepções teóricas que pudessem ir além dos estreitos limites da
filosofia oficial e das respostas. A morte de Lukács, por sua vez, interrompe a
grande obra tardia de sistematização de uma Ontologia e uma Ética. Nos anos
seguintes a grande maioria dos membros da Escola de Budapeste seriam
afastados dos seus empregos e escolherão o exílio.
Entretanto mesmo após esta fratura, ao longo dos anos 1970 e 1980, se
por um lado, podemos notar a ausência de grandes elaborações teóricas que
pudessem rivalizar com as reflexões anteriores e mesmo um gradual e
crescente afastamento do marxismo por parte de inúmeros intelectuais58, o
marxismo crítico continuou presente em diferentes marxistas acadêmicos
pertencentes a uma nova geração e manifestou-se em diferentes tentativas de
refletir sobre os problemas teóricos do marxismo e a necessidade da realização
de um esforço capaz de dotá-lo de uma concepção capaz de rivalizar com as
diferentes filosofias burguesas hegemônicas internacionalmente.
57
Para uma evolução do revisionismo polonês pós-1956, cf. MEJBAUM, W. e
ZUKROWSKA, A., op. cit., em particular o Capítulo IV: Kolakowski e o problema da
cultura socialista.
58
Um dos fenômenos de gravidade nos anos 1970-1980 é o que Rainko descreveu
como “marxismo cortesão”: “Um produto marginal será a elaboração de um marxismo
degenerado, o marxismo cortesão, que vive dos favores e da mesa dos senhores, e
cujo lema é o total e completo oportunismo, isto é a falta de qualquer convicção própria
e opção valorativa. Fenômeno este que não nos analisaremos. ele pertence as
patologias da vida ideológicas e para lá o remetemos.” RAINKO, Stanislaw. Kilka tez o
sytuacji marksizmu. (Algumas teses sobre a situação do marxismo). In: RAINKO,
Stanislaw. Swiadomosc i Krytyka. (Consciência e Critica). Varsóvia: Czytelnik. 1989, p.
186. Este lamentável fenômeno alcançará o seu paroxismo apos a “restauração
capitalista” quando diferentes teóricos e professores de marxismo-leninismo se tornarão
os mais destacados apologetas desta restauração.
21
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