Alto Contraste - Ministério da Justiça

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1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Faculdade de Serviço Social
Laura Freitas Oliveira
Questão social e criminalização da pobreza: aportes para a compreensão do
novo senso comum penal no Brasil
Rio de Janeiro
2010
2
Laura Freitas Oliveira
Questão social e criminalização da pobreza: aportes para a compreensão do
novo senso comum penal no Brasil
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Serviço Social, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Trabalho
e Política Social.
Orientadora: Profa. Dra. Silene de Moraes Freire
Rio de Janeiro
2010
3
Laura Freitas Oliveira
Questão social e criminalização da pobreza: aportes para a compreensão do
novo senso comum penal no Brasil
Dissertação apresentada, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Serviço Social, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Trabalho
e Política Social.
Aprovada em 16 de julho de 2010.
Banca examinadora:
_________________________________________
Profa. Dra. Silene de Moraes Freire (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social da UERJ
_________________________________________
Profa. Dra. Valeria Lucília Forti
Faculdade de Serviço Social da UERJ
_________________________________________
Profa. Dra. Tania Maria Dahmer Pereira
Secretaria de Administração Penitenciária - RJ
Rio de Janeiro
2010
4
AGRADECIMENTOS
Tanto e tantos a agradecer...
Aos colegas do curso de Mestrado em Serviço Social, de maneira especial à
Valquíria e Altineia, com as quais compartilhei mais do que angústias acadêmicas, a
vocês minha amizade e carinho;
Aos amigos desde o princípio desta caminhada, que tanto me apoiaram:
Anderson, Gerson e Pilar, todo o meu afeto;
À Profa. Silene, pelo comprometimento, confiança e compreensão nos
momentos mais difíceis nestes últimos tempos, a você minha admiração;
Aos meus pais: esta vitória é também fruto do seu empenho, dedicação e
apoio em todos os momentos da minha vida;
Ao Flavio, companheiro sempre, e também aqui, obrigada por tudo.
5
RESUMO
OLIVEIRA, Laura Freitas. Questão social e criminalização da pobreza: aportes para
a compreensão do novo senso comum penal no Brasil. 2010. 109 f. Dissertação
(Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
A política social, na atualidade, faz uma espécie de gerenciamento da
pobreza, que envolve um controle cada vez maior não só da pobreza em si, mas dos
próprios pobres, reeditando-se as antigas formas de controle social. Destaca-se,
neste processo, a instrumentalidade histórica da elaboração de determinados
conceitos e mitos, como o de classes perigosas, com o apoio, em grande parte, da
indústria midiática, que tem alimentado, no pensamento hegemônico, as bases de
legitimação deste tipo de política de controle. Neste sentido, a análise da questão
social e sua relação não casual com esta criminalização da pobreza ajudam a
compreender a construção do senso comum penal nos últimos tempos, sob a luz
dos conceitos historicamente levantados, a fim de verificar as rupturas e
continuidades no atual processo de legitimação das políticas de controle social. Em
meio a todas estas questões, o Assistente Social no campo do sistema penitenciário,
enquanto trabalhador assalariado que possui relativa autonomia, se esbarra em
inúmeros desafios, que o convidam a explorar as possibilidades que o cotidiano,
tomado criticamente, traz consigo, e assim fazer do seu exercício profissional uma
práxis propositiva, em que se coloque a serviço da construção e efetivação do
Projeto Ético-Político do Serviço Social.
Palavras-chave: Política Social. Pobreza. Sistema Penitenciário.
6
ABSTRACT
Social policy, in actuality, is a kind of management of poverty, with an
increasing control not only of poverty itself, but of the poor themselves, by reissuing
the old forms of social control. Stands out in this case, the instrumentality of the
historical development of certain concepts and myths, as the dangerous classes,
supported in large part on the media industry, which has fed the hegemonic thinking,
the basis of legitimation of this type of control policy. In this sense, the analysis of the
social issue and its not casual relation with the criminalization of poverty helps to
understand the construction of the criminal common sense in recent times under the
light of the concepts raised historically in order to check the breaks and continuities in
the current process legitimacy of policies of social control. Amid all these issues, the
Social Worker in the field of penitentiary system, while worker that has relative
autonomy, is hampered by many challenges that invite to explore the possibilities
that the everyday, taken critically, brings, and so do of their praxis purposeful, used in
service of the construction and realization of the Ethical-Political Project of Social
Work.
Keywords: Social Policy. Poverty. Prison System.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................ ......8
1
AS ARMADILHAS DA EXCLUSÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO
DA QUESTÃO SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE................................16
1.1
As manifestações da violência como expressões da questão social......16
1.2
A fetichização conceitual da exclusão social.............................................27
2
O CONCEITO DE CLASSES PERIGOSAS E A CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA.......................................................................................................38
2.1
O conceito de classes perigosas: um pouco de história... ......................38
2.2
A mídia e a difusão de uma “cultura do medo”..................................... ....44
3
A ATUAL POLÍTICA DE ENCARCERAMENTO NO BRASIL: A
RADICALIZAÇÃO DA SEGREGAÇÃO.........................................................72
3.1
Suportes da Construção do Novo Senso Comum Penal..........................78
3.2
Um processo de Inclusão às Avessas .......................................................86
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................101
REFERÊNCIAS ............................................................................................104
8
INTRODUÇÃO
Os problemas brasileiros de hoje, os fundamentais,
pode-se dizer que já estavam definidos e postos
em equação há 150 [200] anos atrás. E é da
solução de muitos deles, para que nem sempre
atentamos devidamente, que depende a de outros
em que hoje nos esforçamos inutilmente.
(PRADO Jr., 2004, p. 12)
O presente estudo de dissertação de mestrado tem como principal proposta
realizar uma reflexão crítica sobre a atualização recorrente de noções que
contribuem para a criminalização da pobreza na atual conjuntura. Deste modo,
buscamos realizar um estudo de caráter teórico interpretativo capaz de contribuir
para desvendar o significado destas atualizações e seus nexos com os rumos das
políticas sociais na contemporaneidade. Temos como hipótese que a análise da
questão social e sua relação não casual com a criminalização da pobreza ajudam a
compreender a construção do senso comum penal na atualidade.
Na condução da reflexão proposta foi considerado o fato – que motivou ainda
mais a realizar indagações sobre o tema sugerido – de que a política social, na
atualidade, faz uma espécie de gerenciamento da pobreza, que envolve um controle
social cada vez maior não só da pobreza em si, mas dos próprios pobres,
reeditando-se as antigas formas, como se verá à frente, de se lidar com esta
população no Brasil. Assim, a maneira como o Estado – diga-se de passagem,
formal e legitimadamente – lida com a pobreza, hoje, não supõe, como se sabe, a
sua superação, mas o seu controle, controle do pobre, dos vulneráveis, em situação
de risco, etc, velhas nomenclaturas que passam a ter usos cada vez mais frequentes
na elaboração e execução das políticas sociais, em plena consonância com a
Contra-Reforma1 do Estado que temos assistido no Brasil.
1
Para compreender o conceito de contra-reforma, que faz parte – mesmo que marginalmente, como nos lembra
Coutinho (2010, s.p.) – do aparato categorial de Gramsci, é necessário desvendar ao menos a diferença entre
este e o conceito de revolução passiva, instrumento-chave de que Gramsci se serve para analisar inicialmente
os eventos da formação do Estado burguês moderno na Itália e também “como critério de interpretação de
fatos sociais complexos e até mesmo de inteiras épocas históricas”. Uma revolução passiva, em Gramsci,
caracteriza-se sempre pela presença de dois momentos: “o da ‘restauração’ (trata-se sempre de uma reação
conservadora à possibilidade de uma transformação efetiva e radical proveniente ‘de baixo’) e da ‘renovação’
9
A partir daí, será possível apontar a instrumentalidade histórica da elaboração
de determinados conceitos e mitos, com o apoio, em grande parte, da indústria
midiática, que tem alimentado, no pensamento hegemônico, as bases de legitimação
deste tipo de política de controle. Na atualidade, por exemplo, tem-se o caso da
cidade do Rio de Janeiro, com a criação recente de uma Secretaria Especial de
Ordem Pública, responsável por políticas como a “Operação Choque de Ordem”,
que remonta à política de higienismo de Barata Ribeiro, em fins do século XIX.
Para chegar a esta proposta, partiu-se de um ponto um pouco diferente,
porém de modo algum estranho ao que se sugere neste momento: a situação de
“exclusão social”2 vivenciada pela população carcerária, e as implicações da retirada
destes indivíduos do convívio familiar sobre os seus familiares e, por sua vez, as
ausências decorrentes da distância do cotidiano familiar para esta população.
Esta temática, por sua vez, havia sido levantada a partir da experiência de
estágio curricular e extra-curricular do curso de graduação em Serviço Social da
Universidade Federal Fluminense, no município de Campos dos Goytacazes, interior
do estado do Rio de Janeiro, realizado no Presídio Carlos Tinoco da Fonseca,
localizado naquele mesmo município. Naquele momento, foi suscitada uma
discussão no Trabalho Final de Curso, intitulado “Além das estruturas do cárcere:
uma reflexão sobre as políticas de assistência social”3.
A este período se seguiu uma experiência profissional de quatro meses como
assistente social, naquele mesmo campo de atividades, a que se seguiu a
aprovação em concurso público realizado pelo Ministério da Justiça, para o cargo de
“Especialista em Assistência Penitenciária”, com a finalidade de compor equipe
multidisciplinar, contando com terapeutas ocupacionais, psicólogos, enfermeiros,
médicos, psiquiatras, dentistas, farmacêuticos, pedagogos e assistentes sociais, a
(no qual algumas das demandas populares são satisfeitas ‘pelo alto’, através de ‘concessões’ das camadas
dominantes)”. Seria, portanto, um reformismo “pelo alto”, como indica o autor. Segundo o autor, a diferença
essencial entre uma revolução passiva e uma contra-reforma reside no fato de que, “enquanto na primeira
certamente existem ‘restaurações’, mas que ‘acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo’,
como diz Gramsci, na segunda é preponderante não o momento do novo, mas precisamente o do velho.” O
autor continua: “uma outra importante observação de Gramsci refere-se ao fato de que a contra-reforma não se
define como tal, mas busca apresentar-se também ela como uma ‘reforma’”. É neste sentido que aqui se
deseja apresentar este conceito.
2
Este termo será retomado no decorrer do trabalho, mas já se pode adiantar que a utilização das aspas neste
momento tem o sentido de destacar o risco que se deseja evitar de, como denominou Martins (1977 apud
IAMAMOTO, 2008, p. 166) uma fetichização conceitual desta noção, como será visto à frente.
3
Trabalho apresentado aos 17 de julho de 2007, para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social pela
Universidade Federal Fluminense.
10
serem lotados nas Penitenciárias Federais de Segurança Máxima, localizadas em
Mossoró (RN), Catanduvas (PR), Campo Grande (MS) e Porto Velho (RN). Este
processo permitiu o aprofundamento da vivência profissional nesta área de atuação,
onde é possível perceber o acirramento de um processo que se inicia, para os
presos que ali se encontram, muito antes do próprio encarceramento, anterior à
execução de suas penas, quando passam, em sua maioria, pela realidade do
cumprimento de uma “pena de morte social”.
As experiências vivenciadas já naquele primeiro momento, no campo de
estágio, possibilitaram perceber as dificuldades enfrentadas por presos e seus
familiares, sobretudo no que diz respeito ao âmbito material (o que não significa que
não havia problemas em outras áreas, como a afetiva), nos atendimentos realizados
na seção de Serviço Social.
No cotidiano daquela instituição, chamava a atenção a angústia vivenciada
pelos presos por estarem cientes de que o seu encarceramento era motivo de
privações pelas quais passavam seus familiares (mãe, filhos, esposa/companheira),
assim como, nos atendimentos aos familiares de presos este tipo de angústia era
acompanhada pelo fato de se encontrar esta população duplamente estigmatizada:
pelo seu nível social e por ser familiar de um “preso”.
A apreciação inicial do presente trabalho, é importante destacar, incluiria uma
análise do SAIF (Serviço de Atendimento Integral à Família), serviço da Prefeitura
Municipal de Campos dos Goytacazes, baseado no Programa de Atendimento
Integral à Família (PAIF), que atende a famílias de usuários de diferentes
instituições, inclusive a familiares de presos do Presídio Carlos Tinoco da Fonseca,
residentes em Campos dos Goytacazes, através de duas instituições, que
administram recursos aprovisionados pela Prefeitura do município, atendendo a
necessidades destas famílias através de cursos de geração de renda, cestas
básicas e reparos na residência. Com o objetivo de promover a satisfação das
necessidades básicas de familiares de parcela desta população, o SAIF, verificavase, oferecia também ao preso certo alívio com relação à situação social de sua
família.
Esta proposta inicial, na medida em que demos início aos estudos e
aproximações de leituras voltadas à temática da criminologia, principalmente da área
11
da criminologia crítica4, foi dando lugar a uma crescente curiosidade com relação ao
modo como, no período anterior à prisão, esta população – assim como seus
familiares – passa por processos de “exclusão social”5, que estão diretamente
ligados ao tratamento que recebem do Estado, ao que este, ao invés de interferir
nos processos que engendram a pobreza, o desemprego, a miséria, cada vez mais
atua com mecanismos de controle e, como será visto, a criminalização da pobreza.
Assim, partindo das experiências profissionais vivenciadas, verificou-se a
importância da realização de uma reflexão mais aprofundada sobre os processos
pelos quais passa a população carcerária no período anterior ao aprisionamento,
buscando investigar as diversas mediações que provocam a radicalização e o
aprofundamento, na atualidade, da questão social, cujos impactos fazem surgir
novas expressões desta que se pode considerar a mesma “velha questão social”.
No decorrer da pesquisa, verificou-se também a importância do conceito de
classes perigosas, enquanto um dos conceitos-chave na leitura histórica das
relações entre o Estado e a população que vive em situação de pobreza, sobretudo
num momento em que se vivencia uma influência cada vez maior da mídia na
construção de um consenso em torno daquelas políticas segregadoras.
Deste modo, optamos, na dissertação de mestrado, por resgatar algumas das
principais ancoragens teóricas dos rumos da política social contemporânea a partir
de estudo/recorte de algumas questões que se apresentam cruciais para dar
legitimidade a ações de gerenciamento da pobreza com as quais nos deparamos na
4
A criminologia crítica é uma escola do pensamento criminológico que chega ao Brasil em fins do século XX, e
tem como alguns de seus principais representantes Alessandro Baratta, Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista.
De acordo com Pedrinha (2010, p. 5488), a criminologia crítica “define as estatísticas criminais como produtos
de conflitos sociais, lutas de classes, inerentes à sociedade capitalista.” Sendo assim, o crime não seria, “uma
qualidade do ato, mas um ato qualificado como criminoso por agências de controle social. Dessa maneira, não
é o crime que gera o controle social, ao revés, o controle social é que o cria.” Disponível em: <http://www.conpe
di.org/manaus/arquivos/anais/salvador/roberta_duboc_ pedrinha.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2010.
De acordo com Castro (2007, p. 133), “a criminologia crítica sepulta de vez a concepção liberal da
perquirição das causas da criminalidade e avança sobre a investigação das causas da criminalização,
entendida como seleção / estigmatização / segregação de pessoas determinadas na estrutura social desigual
estabelecida pelo modo de produção capitalista. O direito penal – continua – assume sua estrutura de
manutenção do stablishment, ou seja, de política tática de contenção do proletariado.”
Malaguti Batista (2003, p. 53) recorda que o conceito de criminologia crítica surge com Taylor, Walter e
Yong, em seu livro “Criminologia Crítica”, configurando-se esta obra, assim, um marco na área, com diversos
artigos de criminólogos ingleses e americanos que têm como base teórica comum as categorias do
materialismo histórico. Assim, a autora (2005, s.p.) irá esclarecer que a criminologia surge no Brasil junto com o
positivismo, e que o saber criminológico na história brasileira vai se construindo a partir da certeza da
inexorabilidade do fim da escravidão. Destaca, ainda, em defesa da necessidade de uma criminologia crítica,
que “a criminologia da periferia deve ter uma relação antropofágica com os originais que chegam da metrópole.
Os textos sagrados têm que ser profanados, mergulhados no saber local, na realidade nua e crua da história
dos nossos povos. Só assim poderemos reconstruir um pensamento crítico.”
5
Cf. nota 2.
12
atualidade. São essas questões que constroem o senso comum penal na
contemporaneidade. Deste modo, objetivamos com essa dissertação ultrapassar o
minimalismo conceitual que se expressa através das noções de exclusão social e
classes perigosas, que servem de fetichização para a invisibilidade da questão
social em nosso país. Visamos contribuir para a construção de abordagens
historicamente centrais, capazes de revelar o significado histórico da reedição de
determinados conceitos que aprofundam ainda mais os efeitos perversos
provocados pelo neoliberalismo na atualidade.
Objetiva-se também aclarar o sentido, o significado das novas formas de
criminalização da pobreza, sob a luz dos conceitos historicamente levantados em
nossa reflexão, a fim de verificar as rupturas e continuidades no atual processo de
legitimação das políticas de controle social. Desta forma, busca-se, ainda, desvelar
as reais dificuldades enfrentadas pela população-alvo destas políticas, numa
perspectiva crítica, procurando compreender os aspectos políticos, econômicos e
sociais que engendram e implicam nos processos que levam às situações que
fazem com que esta população se constitua a principal destinatária deste tipo de
intervenção do Estado. A partir do resgate destas novas formas de criminalização da
pobreza, tentaremos desvelar a sua relação com o sistema penal, enquanto parte
deste aparato de controle social dos pobres, e, com isto, localizar neste mesmo
sistema as contradições entre as previsões legais e propostas, e o modo como é
conduzido de fato o aparato penal.
Buscamos, a partir das reflexões apontadas acima, contribuir para que esse
debate possa ser aprofundado pelo Serviço Social, na medida em que o campo das
políticas públicas tem se constituído historicamente como área privilegiada de
atuação dos assistentes sociais. A importância, portanto, de se compreender as
estratégias desenvolvidas pelo Estado, em consonância com os interesses do
capital nesta sociedade, para que seja possível formular alternativas às propostas
apresentadas para o combate à violência – compreendida em sua concepção mais
ampla, enquanto violência de classe – e, sobretudo, à pobreza, o que supõe
compreender, assim, que a contra-reforma pela qual se passa na atualidade não é
apenas econômica, mas possui aspectos culturais e subjetivos que devem ser
levados em conta na análise da realidade vivenciada pelos sujeitos envolvidos em
nossa prática profissional.
13
Para o desenvolvimento destas propostas, tomamos como referência teóricometodológica a tradição marxista, a partir da qual se procura demonstrar a
prioridade ontológica das determinações econômico-políticas na dinâmica sóciohistórica. Netto (1998, p. XXX; grifos do autor) apresenta uma definição do método
em Marx:
o procedimento metodológico próprio a esta teoria consiste em partir do empírico (os
“fatos”), apanhar as suas relações com outros conjuntos empíricos, investigar a sua
gênese histórica e o seu desenvolvimento interno e reconstruir, no plano do
pensamento todo esse processo. O circuito investigativo, recorrendo
compulsoriamente à abstração, retorna sempre ao seu ponto de partida – e, a cada
retorno, compreende-o de modo cada vez mais inclusivo e abrangente. Os “fatos”, a
cada nova abordagem, se apresentam como produtos de relações históricas
crescentemente complexas e mediatizadas, podendo ser contextualizadas de modo
concreto e inseridos no movimento maior que os engendra. A pesquisa, portanto,
procede por aproximações sucessivas ao real, agarrando a história dos processos
simultaneamente às suas particularidades internas.
Assim, a aplicação do método do materialismo histórico dialético inaugurado
por Marx requer e determina uma atitude crítica sobre a realidade apresentada, em
que se apreenda a multiplicidade de significados do real, levando sempre em conta
a historicidade do social; é assim que “o pensamento dialético funda-se na
perspectiva da totalidade e da historicidade” (SIMIONATTO, 2008, s.p.). Esta
abordagem envolve a possibilidade de considerar, no momento em que se pesquisa,
na construção de conhecimento, os sujeitos envolvidos e a realidade que se
apresenta numa perspectiva histórica, que considera que “o indivíduo que conhece é
produto das relações sociais determinadas, históricas. É um ser histórico, inserido
numa sociedade histórica” (MAGALHÃES, 1998, p. 124).
Sob a ótica desta proposta metodológica, pretendemos realizar um
levantamento bibliográfico sobre a temática apresentada, e a pesquisa de leis,
artigos, sítios de pesquisa, buscando dados qualitativos e quantitativos, a fim de
enriquecer e fundamentar a nossa análise. Também a participação em seminários,
congressos, reuniões de grupos de pesquisa e estudos, ciclos de debates e a
própria experiência profissional, conforme apontado acima, contribuíram para a
elaboração e condução do presente estudo.6
6
Destacamos a participação no PROEALC – Programa de Estudos de América Latina e Caribe e no II Seminário
Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças e adolescentes na América Latina
hoje; a participação no XI ENPESS – Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social; a participação no
Ciclo de Debates Serviço Social na atualidade, promovido pelo Centro de Estudos Octavio Ianni, da Faculdade
de Serviço Social - UERJ; I Seminário Latino-americano de Pós-graduação em Serviço Social; entre outros.
14
Assim sendo, dividimos nossa proposta de estudo em três capítulos,
apresentados a seguir.
No primeiro capítulo, sob o título “as armadilhas da exclusão social para a
compreensão da questão social na contemporaneidade”, buscamos destacar o
debate sobre a questão social e sua relação orgânica com o que vem sendo
chamado exclusão social. Desta forma, neste capítulo tentaremos demonstrar, em
um primeiro momento, o modo como, especificamente na sociedade capitalista,
apresentam-se formas de violência que são próprias de um fenômeno que é inerente
a esta sociedade: a questão social.
Aprofundando-nos nesta temática, nos propomos a desvendar o sentido
histórico de alguns dos processos intrínsecos à questão social, com destaque para o
que ficou conhecido como “exclusão social”. Ingressando, então, no debate sobre
esta noção, tentaremos demonstrar a sua fetichização conceitual, tomando autores
que a apresentam como um processo que dividiria a sociedade entre os que
estariam integrados ao sistema e aqueles que seriam “supérfluos”, “inúteis para o
mundo”, e autores que buscam demonstrar os riscos de tais interpretações.
No segundo capítulo, apresentado sob o título “o conceito de classes
perigosas e a criminalização da pobreza”, nos propomos a realizar uma reflexão
sobre o conceito de classes perigosas, retomando historicamente sua formulação, a
partir de uma reflexão crítica sobre a sua adaptação à realidade brasileira como
justificativa para a implantação de políticas de controle social. O debate, neste
primeiro momento do capítulo, de retomada histórica do conceito, será realizado a
partir da busca pela identificação do modo como foi introduzido no ideário político
brasileiro, em finais do século XIX, fornecendo, já naquele momento, o suporte
ideológico necessário para a elaboração de políticas de controle social sobre
determinados setores da população.
Já num segundo momento do capítulo, a partir das reflexões abertas pelo
debate antecedente, será possível tratar a questão da mídia e a difusão de uma
“cultura do medo”, buscando identificar nos meandros das falas e discursos oficiais
os posicionamentos que levam à construção de uma hegemonia (“o lócus do
consenso”) que fornece legitimidade às políticas de controle social.
No terceiro capítulo, “a atual política de encarceramento no Brasil: a
radicalização da segregação”, a proposta que apresentamos se volta à investigação
da intensidade com que se coloca a realidade da criminalização da pobreza quando
15
se trata das políticas penais, permeadas pelas contradições entre suas propostas de
“recuperar”, “ressocializar”, “reeducar”, e a dura realidade que vivenciam os sujeitos
que passam pela experiência do encarceramento no Brasil, onde os “direitos
humanos” são menosprezados quando se trata de “direitos de presos”.
Buscamos, ainda, retomar o debate a respeito deste “novo senso comum
penal” e, a partir da reflexão sobre o mesmo, verificar as bases do aprofundamento
e legitimação desta concepção. Neste momento, apresentamos, de modo sucinto, o
Sistema Penitenciário Federal, composto por penitenciárias de segurança máxima,
que teriam por objetivo abrigar aqueles presos de “maior grau de periculosidade”,
isolando-os do seu convívio, retirando-os de seus estados de origem, com a
justificativa de evitar que continuem, de dentro dos presídios, comandando
organizações criminosas.
Ao fim do capítulo, procuramos apresentar um pouco do fazer profissional do
assistente social no campo do sistema penitenciário, apontando alguns dos fatores
que tornam esta área tão complexa e, a partir daí, destacamos os principais desafios
a serem enfrentados na busca pela realização do Projeto Ético-Político Profissional
do Serviço Social.
16
1
AS ARMADILHAS DA EXCLUSÃO SOCIAL PARA A COMPREENSÃO DA
QUESTÃO SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE
1.1 As manifestações da violência como expressões da questão social
[A questão social hoje] é caso de polícia, ao invés
de ser objeto de uma ação sistemática do Estado
no atendimento às necessidades básicas da classe
operária e outros segmentos trabalhadores
(IAMAMOTO, 2008, p. 163).
A violência tornou-se um tema de destaque nos últimos tempos, como se
pode verificar nos noticiários televisivos, na mídia impressa, e mesmo nas falas e
discursos com que se depara nos ambientes de convívio. Esta onda de notícias,
informações e histórias terminam por apresentar uma realidade marcada por
diversas formas de violência, o que faz com que a sociedade seja permeada pelo
medo e insegurança.
Desde a segunda metade do século XIX, quando Engels utiliza a expressão
“socialismo ou barbárie”, pode-se perceber uma compreensão da tendência da
sociedade capitalista ao irracionalismo, ao caráter antinômico desta sociedade. Nos
deteremos brevemente neste nível da formulação de Marx do conceito de barbárie,
tomando por base a reflexão de Menegat (2004, p. 147), que traz como elemento
distintivo da sociedade capitalista, em comparação a todas as outras sociedades
anteriores, o fato de que, mesmo sendo uma sociedade antinômica como as outras,
é a única em que “a destruição das forças produtivas faz parte do próprio modo de
produção, e isto demonstra por si mesmo a irracionalidade desta estrutura social”. A
imobilização, porém, “dos aspectos criativos da vida social [...] impele todos a uma
aceitação passiva deste processo” (id., p. 148), e a sociedade capitalista, assim, se
17
constitui como uma estrutura social amparada por um aparato jurídico que lhe
permite esconder sua congênita intenção de exclusão pela violência.7
Ao contrário, portanto, do que se pode imaginar a partir deste cenário que se
desenha, a violência não é novidade, não é um fenômeno recente, mas é parte e
apenas uma das expressões de um processo inerente à sociedade capitalista: a
questão social. Dessa forma, faz-se necessário refletir sobre o modo como se
originou a questão social e como a violência se apresenta enquanto parte desta
dinâmica.
Existem novos elementos e novos indicadores sociais, que constituem a
questão social, que seriam dela apenas novas expressões, já que os traços
essenciais da sua origem ainda têm vigência porque não foram superados. Não há,
porém, uma compreensão unívoca desta categoria8, e dentre os autores que trazem
uma concepção diferenciada da aqui apresentada, seria interessante destacar, de
maneira breve, dois deles, que partem do debate europeu, de grande influência na
literatura referente ao tema: Castel (1997; 1998) e Rosanvallon (1998).
Comecemos por Castel, que, em uma de suas obras centrais – “As
Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário” – apresenta como um dos
objetivos de seu estudo dimensionar “a presença, aparentemente cada vez mais
insistente, de indivíduos colocados em situação de flutuação na estrutura social e
que povoam seus interstícios sem encontrar aí um lugar designado” (1998, p. 23).
Para este fim, o autor remete a alguns conceitos e noções, dentre os quais
destacaremos alguns.
Antes, porém, lembramos que a obra foi escrita e pensada a partir do
contexto da França, onde vivenciou-se, há não muito tempo, a realidade de níveis
muito baixos de desemprego, por se tratar de um país rico e altamente
desenvolvido. Nos últimos anos, porém, conforme analisa o autor, verifica-se um
aumento gritante das taxas de desemprego e subemprego naquele país, onde desde
meados dos anos 1980, e principalmente nos anos 1990, estima-se que
aproximadamente setenta por cento das pessoas ingressam no mercado de trabalho
7
De acordo com Baratta (1999, p. 206-7), “quanto mais uma sociedade é desigual, tanto mais ela tem
necessidade de um sistema de controle social do desvio de tipo repressivo, como é realizado através do
aparato penal do direito burguês.”
8
Não há nem mesmo uma concordância quanto à classificação de “questão social” como uma categoria, como a
apresenta Pastorini (2004). “Questão social” seria não uma categoria teórica explicativa, mas sim uma noção
teórica.
18
sob formas “atípicas”, ou seja, não estão mais inserindo-se formalmente, o que
consistiria, nas palavras do autor, em uma “fragilização completa da condição
salarial”.
Oliveira (1997, s.p.) destaca que, no caso dos países ricos o que se denomina
exclusão social, conceito que será tratado a seguir, seria sobretudo
o resultado de um virtual esgotamento do modelo clássico de integração na
sociedade moderna pela via do pleno emprego e, consequentemente, da ampla
participação no mercado de consumidores; na situação brasileira, o fator tecnológico
inibidor da produção de novos empregos, mais recente, teria vindo agravar o modelo
tradicional do mercado urbano restringido, ele próprio já excludente.
Essa, como outras diferenças, entre a realidade da França e o contexto
brasileiro, devem, portanto, ser consideradas ao se trabalhar realidades tão distintas
como a destes países.
A obra de Castel, lembramos ainda, encontra-se inserida no debate sobre a
noção de exclusão social, e este é o primeiro conceito que gostaríamos de destacar
no estudo deste autor.
O debate sobre o assunto é intensificado nos anos 1990, quando se pode
verificar uma grande influência da França, destacando-se como colaboradores nesta
discussão autores como o próprio Castel e também Paugam. De acordo com Rohem
e Souza (2001, p. 5), “essa abordagem vincula a exclusão ao conceito de nãocidadania, e a analisa como um processo multidimensional que está além da
exclusão do emprego, mas perpassa toda a vida dos sujeitos e sua participação nas
atividades sociais.”
A exclusão contemporânea, de acordo com esta interpretação, seria diferente
das formas existentes anteriormente de discriminação ou mesmo de segregação, na
medida em que criaria “indivíduos inteiramente desnecessários ao mundo laboral,
sugerindo não haver mais possibilidades de inserção.” (id., p. 5) Assim, os excluídos
não seriam mais residuais nem temporários, mas contingentes populacionais que
não encontrariam lugar no mercado. “São os ‘inúteis para o mundo’, para usar uma
expressão de Castel.” (id., p.5)
Este conceito de “exclusão” – ou, talvez, melhor, o termo exclusão – não
seria, de acordo com este autor, adequado para designar o processo em curso na
sociedade atual, já que seria “estanque”, pois limita o pesquisador à constatação de
carências, o que impossibilita a recuperação dos processos que engendram estas
19
situações, designando apenas estados de privação. O autor propõe então o conceito
de “desfiliação” para substituí-lo, indicando – sem, porém, explicitar – que esta
substituição possibilita considerar o fenômeno como um processo, “reconstituir um
percurso”, ou seja, ampliaria o de exclusão ao não restringir esta noção a grupos
determinados. O autor afirma que a denominação sugerida pertence ao mesmo
campo semântico que a “dissociação”, “desqualificação” ou “invalidação social”.
É preciso destacar, porém, que mesmo trabalhando com outras noções em
substituição à de “exclusão”, o autor parte de uma idéia de “zonas” de integração
social e “zonas” de vulnerabilidade numa sociedade, tomando a composição dos
equilíbrios entre elas como indicador para avaliar a coesão de um conjunto social
num dado momento. É bom lembrar aqui que os supostos teóricos da análise do
autor se fundam na tradição durkheimiana, o que se explicita no conceito de questão
social apresentado pelo autor: “é um desafio que interroga, põe em questão a
capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligado por relações de
interdependência” (ibid., p. 30).
Apesar do autor ligar a questão social à problemática do pauperismo, destaca
que já se apresentava nas sociedades pré-industriais da Europa Ocidental, tendo,
porém, sua primeira formulação explícita no século XIX. Esta concepção, deve-se
recordar, remete a uma perda da particularidade histórica da questão social como
fruto da ordem burguesa.
Outros conceitos polêmicos do autor são os de “inúteis para o mundo”, e dos
“supérfluos” ou “supranumerários”. De acordo com o mesmo, com a formação destes
grupos, a questão social não se põe explicitamente às margens da vida social, mas
“questiona” o conjunto da sociedade. Estas noções, como nos recorda Iamamoto
(2008, p. 175), são inteiramente distintas da noção de superpopulação relativa em
Marx, na medida em que as pessoas inseridas nestes grupos “não têm lugar na
sociedade porque não são integradas e talvez nem sejam integráveis, no sentido de
Durkheim, de estar inseridos em relações de utilidade social, de interdependência
com o conjunto da sociedade.”
A análise do autor está centrada na sociedade francesa, como ele mesmo
destaca, onde se teria vivenciado a experiência do que ele denomina “sociedade
salarial”, na qual a definição da identidade social partia da posição ocupada na
“condição de assalariado”, generalizada por grande parte do século XX. Apesar de o
autor considerar que aquela sociedade mostrava uma estrutura relativamente
20
homogênea em sua diferenciação, destaca a existência de um bloco9 que denomina
“periférico” ou “residual”, formado por aqueles que se encontravam em ocupações
instáveis, sazonais, intermitentes.
Hoje, porém, a questão social ressurgiria, de acordo com Castel, sob a
condição de “questão do estatuto do salariado”, a partir de profundas
transformações na conjuntura do emprego, com o aumento do desemprego e da
precarização do trabalho, que ameaçariam questionar novamente a estrutura da
relação salarial. Surgiria, então, uma “nova questão social”, que teria a mesma
amplitude e a mesma centralidade da questão suscitada pelo pauperismo na
primeira metade do século XIX, porém com algumas especificidades: a
“desestabilização dos estáveis”, a “instalação na precariedade”, o surgimento dos
“inúteis para o mundo”. Nas palavras do autor:
a nova questão social hoje parece ser o questionamento da função integradora do
trabalho na sociedade. Uma desmontagem desse sistema de proteções e garantias
que foram vinculadas ao emprego e uma desestabilização, primeiramente da ordem
do trabalho, que repercute como uma espécie de choque em diferentes setores da
vida social, para além do mundo do trabalho propriamente dito. (CASTEL, 1997, p.
165)
A questão social, tanto segundo o pensamento de Castel quanto, como
veremos, de acordo com Rosanvallon (1998), traria consigo uma idéia de ruptura
com a sua configuração no passado, quando emergira. Seria como se a questão
social tivesse nascido, da forma que se apresenta na atualidade, na segunda
metade do século XX, com a crise do padrão do Estado de Bem-Estar social em
países da Europa e os Estados Unidos (ou, utilizando os termos de Castel, a crise
da sociedade salarial). Daí parte a noção de “nova questão social”, que seria
caracterizada por “novos problemas (novas formas de pobreza e nova exclusão
social) ou antigos problemas superdimensionados (desemprego, vulnerabilidade).”
(PASTORINI, 2004, p. 50) Entre esses autores uma diferença a ser registrada seria
o fato de que, em Castel, não haveria, como em Rosanvallon, uma separação
dicotômica entre o antigo e o novo na questão social, porém a sua busca por realizar
uma narrativa cronológica da evolução da questão social levaria a uma perda da
processualidade e das contradições imanentes ao movimento da realidade,
conforme nos indica esta mesma autora.
9
Lembramos que o autor não trabalha com a perspectiva da divisão da sociedade em classes sociais.
21
Rosanvallon considera que a expressão “questão social” no momento em que
foi criada, no fim do século XIX, referia-se às disfunções da sociedade industrial
emergente, e o desenvolvimento do Estado Providência, no século XX, quase teria
chegado a “vencer a antiga insegurança social e a eliminar o medo do futuro”. (1998,
p. 23) Os antigos métodos de gestão do social estariam, na atualidade, inadaptados,
o que configuraria o surgimento de uma nova questão social a partir dos anos 1970,
um problema, segundo o autor, de natureza filosófica, já que
além dos problemas lancinantes de financiamento, e das disfunções sempre
onerosas dos aparelhos estatais, são discutidos os princípios fundamentais da
organização da solidariedade e a própria concepção dos direitos sociais. (id., p. 23)
O autor apresenta, então, uma proposta de reinstituição do Estado
Providência a fim de manter a coesão social, mas não mais sob a perspectiva do
direito social, e sim da solidariedade que, segundo ele, tem como um de seus
princípios a ultrapassagem de um raciocínio em termos meramente econômicos dos
benefícios sociais em favor de encará-los como uma dimensão da cidadania10,
passando a constituir “uma das expressões do vínculo social” (id., p. 85);
testemunhariam, assim, a seu modo, uma forma de igualdade.
É assim que este autor constrói sua crítica aos padrões “tradicionais” de
proteção social do Estado: ao que ele denomina “Estado Providência passivo”
propõe a substituição pelo “Estado providência ativo”, que responderia de forma
mais eficiente às novas modalidades de insegurança que hoje se apresentam. A
insegurança social não pode mais ser percebida exclusivamente em termos de risco,
que se referia a situações de um possível desemprego futuro, ou de garantias
previdenciárias11, ou, ainda, riscos catastróficos como perigos naturais, acidentes
tecnológicos, agressões de grande amplitude ao meio ambiente, que afetariam
populações inteiras, e não indivíduos isolados. Deve ser agora percebida a partir do
conceito central da precariedade ou da vulnerabilidade, muito mais que do de risco,
o que levaria à necessidade de estabelecer um novo contrato social, baseado na
personalização dos meios de atuação do Estado Providência, “para adaptar-se ao
caráter específico das situações” (id., p. 26), afinal, em matéria de exclusão e de
10
Daí a proposta do autor de um Estado produtor de civismo.
11
Isto porque, segundo o autor, “a seguridade social não parece mais o centro agregador do progresso social e
passou a cobrir só uma parte do chamado ‘campo social’” (id., ibid., p. 41).
22
desemprego de longa duração, só existiriam de fato situações particulares, que
deveriam ser tratados na perspectiva de “individualização do social”, com a condição
de que certas garantias sejam concedidas aos sujeitos. Rosanvallon afirmará, então,
seguindo este raciocínio, que “os novos sujeitos da ação social não são mais as
classes, porém os indivíduos abordados em determinadas situações [...]” (ibid.,
p.164).
Cabe lembrar que, no Brasil, sobretudo o Governo FHC, de acordo com
Antunes (2004, p. 41-42), foi exemplar em exercitar sua dupla face: a primeira, da
manutenção de uma política econômica destrutiva, em conformidade com o que
interessa aos capitais globais. A segunda,
de resgatar, com plumagem nova, seu solene traço repressivo (...) O primeiro traço é
aquele que destaca o participante dos (des) encontros da terceira via, em que se é
capaz de detectar epidermicamente uma parcela de nossos problemas (por
exemplo, a exclusão, a pobreza, o desemprego), mas ao mesmo tempo se
implementa uma pragmática responsável por sua intensificação. Faz-se a frágil
diagnose e intensifica-se no receituário.
Assim, verificou-se naquele momento uma forte influência da elaboração de
Rosanvallon nas propostas governamentais.
Algumas sérias conseqüências deste tipo de abordagem da questão social
são apontadas por Iamamoto (2008, p. 181 – grifos da autora):
Como se pode atestar, o que fundamenta a existência de uma nova questão social é
a negação da existência das classes sociais, a naturalização da desigualdade social,
cujas manifestações são deslocadas para a esfera da gestão social. A sociedade é
isentada de responsabilidades na produção da questão social, cujas raízes devem
ser identificadas nas diferenças das biografias individuais.
Um outro risco de se pensar a questão social como “nova”, é o de negar ou
até mesmo desconstruir as conquistas já alcançadas pela classe trabalhadora, já
que isto envolveria buscar novas respostas, novos modos de enfrentá-la. Além
disso, considerar a existência de uma “nova questão social” não significa pressupor
que a questão social anterior teria sido resolvida e/ou superada, como recorda
Pastorini (2004)?
A concepção de questão social de acordo com esses autores guarda, ainda,
profundas diferenciações com relação à aqui apresentada no que diz respeito à
negação dos confrontos de interesses de classes, considerando-se que esta ideia
“não daria conta da realidade contemporânea onde a integração pelo trabalho não é
23
mais o eixo central para pensar o pertencimento dos indivíduos à sociedade,
passando a ocupar o lugar prioritário a inserção a partir de redes de sociabilidade.”
(PASTORINI, 2004, p. 98-99 – nota) Estas concepções tendem, como vimos acima,
a
naturalizar
as
desigualdades
e
conflitos
da
sociedade
capitalista12.
Compreendemos, ao contrário, que a questão social expressa “uma arena de lutas
políticas e culturais na disputa entre projetos societários, informados por distintos
interesses de classe na condução das políticas econômicas e sociais, que trazem o
selo das particularidades históricas nacionais.” (IAMAMOTO, op. cit., p. 156 – grifos
da autora)
Trata-se, portanto, de uma “velha questão social”, que tem origem na própria
natureza das relações sociais capitalistas, conforme indica a mesma autora (id., p.
161), cujas determinantes se expressam sobretudo pela lei geral da acumulação
capitalista – que traduz-se pelo “caráter coletivo da produção contraposto à
apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições
necessárias à sua realização, assim como de seus frutos” (id., p. 156) – e na
tendência do crescimento populacional em seu âmbito13. Esta lei geral da
acumulação capitalista é apresentada por Marx (1985, p. 210) como aquela que
“ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital”, e
caracteriza o antagonismo da acumulação capitalista, ou seja, do próprio modo de
produção capitalista.
A questão social, ao ser analisada a partir da lei geral da acumulação
capitalista, passa a ser percebida como dimensão indissociável da relação capital x
trabalho; é a partir desta reflexão que se pode compreender a radicalização do
obscurescimento do caráter alienado da relação do capital, sua fetichização, nos
dias atuais, a partir do capital que rende juros, que faz com que o dinheiro apareça
como “fonte misteriosa, como coisa autocriadora de juro, dinheiro que gera dinheiro
(D – D’). Obscurece as cicatrizes de sua origem, assumindo a forma mais coisificada
do capital, que Marx denomina de capital fetiche” (IAMAMOTO, op. cit., p. 93).
Assim, parece que o capital não depende do trabalho. É devido à importância de
12
Até porque, nestas abordagens, a reflexão se dá no âmbito da distribuição; melhor dizendo, a centralidade se
coloca no trabalho e não na classe operária, ou na classe trabalhadora, o que faz com que as contradições
sejam vistas no terreno do consumo de massa. Sendo assim, o problema está na esfera da distribuição, e o
modo de produção não é questionado, é considerado como natural, algo que já está dado.
13
Esta é a lei da população peculiar ao regime de produção capitalista: “ao produzir a acumulação de capital, a
população trabalhadora produz, também, em proporções cada vez maiores, os meios de seu excesso relativo.”
(MARX, 1975a, p. 34, t. I apud IAMAMOTO, 2008, p. 251)
24
compreender a origem da questão social que se apresenta como imperativo a
necessidade de historicizá-la, refletindo sobre suas configurações nos dias atuais
sem recusar a preocupação com a sua gênese.
A questão social surge na segunda metade do século XIX, quando se torna
uma questão eminentemente política, a partir da aparição da classe operária no
cenário político na Europa Ocidental. Pastorini (op. cit., p. 105), ao desenvolver uma
reflexão sobre o desenvolvimento da questão social neste período, afirma que esta
deve ser entendida “como conjunto de problemáticas sociais, políticas e econômicas
que se geram com o surgimento da classe operária dentro da sociedade capitalista”.
Dentro deste marco de análise a questão social pode ser compreendida, em
sua origem, como uma expressão que surge para dar conta do fenômeno que
eclode na Inglaterra, no último quartel do século XVIII, do pauperismo, de acordo
com Netto (2001, p. 42), e esta designação estaria relacionada diretamente aos
desdobramentos sócio-políticos deste fenômeno (o que nos remete à análise de
Pastorini (op. cit.), pois indica que a pauperização só se torna “questão social” na
medida em que surgem riscos efetivos de eversão da ordem burguesa, a partir de
movimentos dessas massas pauperizadas). A pauperização seria uma das
expressões da questão social que, naquele momento, era a novidade que
acompanhava a emergência e consolidação da sociedade capitalista, já que até
então não se havia visto uma pauperização massiva da população trabalhadora,
inclusive quando se aumentava, a partir da lei geral da acumulação capitalista, a
capacidade social de produzir riquezas.
É interessante anotar o fato de que Netto (op.cit.) utiliza o termo questão
social entre aspas, para identificar a tergiversação conservadora presente na
expressão. Esclarecendo, em suas palavras:
a partir da segunda metade do século XIX, a expressão questão social deixa de ser
usada indistintamente por críticos sociais de diferenciados lugares do espectro ídeopolítico – ela desliza, lenta mas nitidamente, para o vocabulário próprio do
pensamento conservador. (NETTO, op. cit., p. 43)
Esta passagem significou a naturalização da questão social, uma vez posta
em primeiro lugar a defesa da ordem burguesa, o que implicou a perda da estrutura
histórica determinada, tanto no âmbito do pensamento conservador laico quanto no
do confessional, de acordo com o autor. Assim, a questão social é convertida em
25
objeto de ação moralizadora, e o enfrentamento das suas manifestações reveste-se
de um “reformismo para conservar”.
A partir dos eventos de 184814, porém, fica claro que “a resolução efetiva do
conjunto problemático designado pela expressão ‘questão social’ seria função da
reversão completa da ordem burguesa, num processo do qual estaria excluída
qualquer colaboração de classes” (id., p. 44). As aspas são utilizadas, portanto,
como indicação do seu traço mistificador.
Verifica-se também um debate no âmbito profissional sobre a questão social,
considerada por grande parte dos pesquisadores da área, e pelos organismos de
pesquisa e representativos da categoria (ABEPSS, CFESS \ CRESS) como o objeto
de atuação do Serviço Social.15 Esta concepção encontra suas bases de
sustentação na compreensão de que sem a questão social não haveria sentido para
a profissão (NETTO, op. cit.); colocar a questão social como referência para a ação
profissional, como elemento central na relação entre profissão e realidade, de
acordo com Yazbek (2001, p. 33), significa colocar “a questão da divisão da
sociedade em classes, cuja apropriação da riqueza socialmente gerada é
extremamente diferenciada”; significa colocar em questão “a luta pela apropriação
da riqueza social.”
Netto (id., p. 41) nos lembra que a questão social é colocada para o Serviço
Social como “ponto saliente, incontornável e praticamente consensual” na medida
em que se verifica, no âmbito da prática profissional, uma pressão exercida pela
chamada “dívida social”, e, ainda, “porque a continuidade do processo de renovação
profissional
exigiu
uma
atualização
da
formação
acadêmica
que,
muito
corretamente, está ancorando o projeto formativo na intervenção sobre ‘a questão
social’”. É interessante lembrar, como afirma o autor, que em torno da questão
social, como pudemos verificar, registra-se compreensões diferenciadas e
atribuições de sentido muito diversas.
14
Destacamos aqui, naquele ano, os movimentos revolucionários de 1848, que, partindo de Paris, se
espalharam por outras grandes cidades da Europa, como Berlim. O conjunto destes eventos ficou conhecido
como “Primavera dos Povos”, e demonstrou o potencial do proletariado na luta contra o domínio da burguesia,
podendo ser considerada a primeira revolução, mesmo que por um curto período, de caráter potencialmente
global. Este ano também teve como marco, não por acaso, a publicação do “Manifesto Comunista” de Karl
Marx e Friedrich Engels.
15
Devido aos limites do presente trabalho, não aprofundaremos neste debate. Propomo-nos, entretanto, a
realizar algumas indicações sobre o assunto, como um breve parêntese – e muito apropriado – à nossa
reflexão.
26
De acordo com Ianni (1989, p. 147), “a sociedade em movimento se
apresenta como uma vasta fábrica das desigualdades e antagonismos que
constituem a questão social”, a partir de processos estruturais que se encontram na
base desta “fábrica”. Sua argumentação parte do mesmo raciocínio que aqui se
expõe, de que há um desencontro entre sociedade e economia, em que as
expansões do capital beneficiam-se das condições adversas sob as quais os
trabalhadores são obrigados a produzir; sendo assim, “a mesma sociedade que
fabrica a prosperidade econômica fabrica as desigualdades que constituem a
questão social” (id., p.154).
No caso brasileiro, de acordo com o mesmo autor, a questão social é
colocada16 a partir da Abolição, quando as diversidades e os antagonismos sociais
começam a ser enfrentados sob uma ótica em que se considerassem possibilidades
de debates, negociações, mudanças, controle. É, porém, somente ao longo das
décadas de 1920 e 1930 que passa a ser tratada como questão de política, não
mais (apenas) de polícia, já que, até aí, na prática predominavam “as técnicas
repressivas, a violência do poder estatal e a privada.” (id., p. 146)
Hoje, a questão social apresenta novas expressões, como o aumento da
pobreza e do desemprego, a crescente precarização das condições de trabalho, a
partir de um processo que se inicia no final dos anos 1970, quando se esgota a
longa onda expansiva do capital e desenvolvem-se propostas de “políticas de ajuste
estrutural”, que alteram profundamente as relações entre o Estado e a sociedade.
Um dos corolários deste processo é o retrocesso no que diz respeito às
conquistas da classe trabalhadora com referência aos direitos sociais, em
decorrência das seguintes concepções: de que o excessivo gasto governamental
com políticas sociais é nefasto para a economia; de que a regulação do mercado
pelo Estado é negativa, pois desestimula o capitalista a investir; de que a proteção
social pública garantida é perniciosa para o desenvolvimento econômico; de que o
Estado Social é paternalista e, por isto, moralmente condenável por incentivar a
ociosidade e dependência, entre outros. E é a partir desta lógica que se
desenvolvem as políticas neoliberais como proposta de revitalização do capitalismo
avançado – no que, segundo Anderson (1995), este teria falhado – que se
traduziram, no que diz respeito à América Latina, em uma
16
Colocada no sentido de ser enfrentada, pois já existia durante a vigência do regime de trabalho escravo,
porém, naquele momento, “estava posta de modo aberto, transparente” (ibid., p. 146).
27
maior abertura da economia para o exterior em nome da maior competitividade nas
atividades produtivas; racionalização da presença do Estado na economia, liberando
o mercado, os preços e as atividades produtivas; estabilização monetária, como
meio de controle dos processos inflacionários; e exigência de redução da dívida
pública, com elevados ônus para as políticas sociais. (IAMAMOTO, 2008, p. 146)
A defesa de um “Estado mínimo” é apresentada por Netto (1996) como uma
das transformações societárias no capitalismo tardio (configurado a partir dos anos
1970, momento em que também tem início a adoção das políticas acima
mencionadas por alguns governos, como o de Pinochet, no Chile) num processo de
mudanças no plano político, que envolvem, uma desqualificação do Estado como
parte da ideologia neoliberal, na busca por um “Estado máximo para o capital”
(NETTO, 1993, p. 81).
Antes de continuar, é importante que se reflita um pouco mais sobre a
“exclusão social”, este conceito tão “badalado” na atualidade, para não cairmos em
deslizes teóricos tão comuns quando se trata do mesmo, e assim possamos realizar
o debate sobre o conceito de classes perigosas e a população carcerária, que nos
interessa.
1.2 A fetichização conceitual da exclusão social
A verdadeira exclusão está na desumanização
própria da sociedade contemporânea, que ou nos
torna panfletários na mentalidade ou nos torna
indiferentes em relação aos seus indícios visíveis no
sorriso pálido dos que não têm um teto, não têm
trabalho e, sobretudo, não têm esperança.
(MARTINS, 2008, p. 21)
Costuma-se utilizar o termo exclusão social de modo indiscriminado, como
nos lembra Iamamoto (2008) focalizando consequências, efeitos de processos que
atravessam o conjunto da sociedade. Oliveira (1997) irá, neste sentido, mencionar
que, tanto por razões teóricas quanto práticas, o conceito de excluídos deveria ser
reservado para aqueles grupos que, no Brasil, seriam formados pelos moradores e
28
meninos de rua, os desempregados das favelas e periferias, muitas vezes
convertidos em “flanelinhas” e mesmo em delinquentes, os catadores de lixo etc.
Seriam aqueles que, mais do que pobres, simplesmente, estariam mais próximos do
que se pode designar miseráveis.
O autor busca realizar, então, uma “decantação terminológica” para o termo
“exclusão social”, levando em conta a situação acima mencionada. Assim, buscará
apontar as suas especificidades, analiticamente falando, o que o leva a destacar
alguns elementos que a definem. O primeiro deles seria o fato de tratar de “pessoas
sem inserção do mundo formal do trabalho” (id., s.p.). Mesmo assim, lembra o autor,
“o critério do emprego na sua forma clássica continuaria bastante problemático”;
segundo ele, “utilizá-lo implicaria dizer que a exclusão é um fenômeno permanente
na nossa história.” Essa afirmação, recorda porém, não é capaz de captar a
especificidade do que contemporaneamente chamamos exclusão.
Essa forma contemporânea de exclusão, portanto, segundo este autor,
apresenta dois traços específicos, ambos, como veremos, questionáveis. O primeiro
é que os excluídos teriam se tornado, por seu crescimento numérico e pelas novas
habilidades exigidas para o ingresso no mercado de trabalho, “desnecessários
economicamente” (NASCIMENTO, 1994, p. 36 apud OLIVEIRA, 1997, s.p.),
aparentemente postos, assim, à margem do processo produtivo e do circuito
econômico tradicional.
Já o segundo traço apresentado pelo autor diz respeito ao fato de que sobre
estes indivíduos “se abate um estigma, cuja consequência mais dramática seria a
expulsão da própria ‘órbita da humanidade’” (id., ibid., s.p. - grifo do autor), estando
os mesmos numa posição de “passíveis de serem eliminados” (NASCIMENTO, ibid.,
p. 36 apud OLIVEIRA, ibid., s.p.).
A partir destes questionamentos, o autor irá refletir sobre a hipótese de que “o
conceito de excluídos se constrói precisamente pela oposição a um ponto de vista
largamente hegemônico nas Ciências Sociais brasileiras desde os anos 70: a visão
antidualista” (id., s.p.), segundo a qual fala-se em “excluídos” e “incluídos”. A fim de
construir um argumento que se oponha a este tipo de visão, o autor lança mão da
visão antidualista de inspiração marxista, tomando como parâmetro a obra de
Francisco de Oliveira: Economia Brasileira: crítica à razão dualista. Assim, segundo
ele, o crescimento da subocupação e do subemprego já anunciavam a exclusão da
atualidade: “o crescimento do terciário, na forma como se dá [...] faz parte do modo
29
de acumulação urbano adequado à expansão do sistema capitalista do Brasil.”
(OLIVEIRA, 1981, p. 31 apud OLIVEIRA, ibid. s.p.)
Para Oliveira (1981), o lumpemproletariat seria não só gerado pelo processo
de acumulação, como ainda seria funcional ao sistema,
não apenas enquanto exército industrial de reserva, como queria Marx, mas
também, nas condições brasileiras, enquanto fator que vai permitir que os
segmentos integrados ao setor dinâmico da economia [...] se beneficiem da
existência de uma mão-de-obra superexplorada, que vai lhes prestar serviços a
custos baixíssimos, liberando, assim, mais recursos que serão realocados [...] no
setor dinâmico. (OLIVEIRA, 1997, s.p.)
Partindo deste raciocínio, o autor chegará então à conclusão de que não é
possível pensar em um mesmo processo econômico que produziria duas ordens de
realidade, dos incluídos e dos excluídos.
Um exemplo muito claro que sustenta o argumento do autor, que, mesmo
bem conhecido, consideramos importante apresentar neste momento, é o dos
catadores de lixo. Segundo estudos realizados pelo BNDES, em 198717,
aproximadamente 25 mil pessoas viviam da atividade de catar lixo, somente no
Brasil, e, em 1993, outro estudo18 demonstrou que apenas na região da grande
Recife quase 8 mil pessoas sobreviviam desta atividade. O autor continua:
Aparentemente, essas pessoas são literalmente supérfluas, pois, vivendo de restos,
a sua presença ou ausência não faria – do ponto de vista da acumulação global, é
evidente – nenhuma diferença. No entanto, esse estudo revela uma realidade
surpreendente: esses catadores estão atrelados a 120 intermediários que, por sua
vez, comercializam o material catado aproveitável junto a trinta indústrias. A grande
maioria dos catadores, trabalhando mais de oito horas por dia, consegue receber um
pouco mais de meio salário mínimo por mês. Entre o preço pago ao catador e
aquele pago pelas indústrias ao intermediário, em alguns casos se verifica uma
majoração de quase 1000%. Ou seja: pela via mais perversa possível, até os
catadores de lixo estão integrados à economia!
Francisco de Oliveira (2007) traz ainda uma interessante reflexão sobre o
assunto, ao tratar o Brasil dos últimos anos confrontando-o com os casos argentino
e colombiano (o primeiro, das manifestações do desenvolvimento – mesmo que
somente no início do século XX –, e o segundo, da “desinstitucionalização”, ou uma
17
Cf. LIMA, Tânia Cristina. Os Catadores de Lixo da Zona Sul do Recife. Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
1988.
18
Cf. ALENCAR, Bertrand Sampaio de. Diagnóstico do Sistema de Gestão Informal de Resíduos Sólidos do
Recife. Recife: Fundação Macarthur, 1993.
30
“gangrena” da sociabilidade). O Brasil da atualidade teria, então, traços da Argentina
de outrora e da Colômbia, ou seja, concilia desenvolvimento e altas taxas de
assassinatos e controle do narcotráfico sobre favelas e populações pobres nas
grandes cidades brasileiras. Interessa-nos o fato de que no Brasil, o fenômeno de
aumento da produtividade do trabalho através de um mecanismo de extração de
valor a partir de formas desorganizadas de trabalho é escondido pelo aumento do
desemprego, lembra o autor. Porém,
se se calcular a produtividade do trabalho levando-se em conta apenas a fração do
trabalho sob contrato formal, ressaltará de imediato o salto de produtividade obtido.
A contradição reside em que é esse salto na produtividade que alimenta o trabalho
informal, sobre o qual não se pode estimar a produtividade, justamente porque lhe
falta a relação com o capital. Trata-se de um novo processo no capitalismo mundial,
cujas expressões são ainda mais fortes na periferia. Nun tratou o fenômeno como
confirmatório da tese da “massa marginal”, quando o que está em curso é
justamente o contrário. (OLIVEIRA, 2007, p. 34; nota – grifos nossos).
Aqui podemos encontrar um interessante contraponto àquelas teses – como a
de Castel (1998) – que defendem a idéia de “inúteis para o mundo” ou sobrantes.
Estes trabalhadores informais estão inseridos de uma forma ou de outra no processo
de acumulação, na medida em que estão inseridos no ciclo reprodutivo do capital.
De qualquer forma, estes estão mais vulneráveis no que diz respeito às teias do
desemprego. É interessante a menção feita por Oliveira (2007) ao narcotráfico e o
crime organizado como um “escoadouro para o desemprego”, que funciona como
uma “empresa”, com ordens que baixam do topo à base, eliminando assim o acaso
e a iniciativa individual e com atuação através redes que se baseiam na telefonia
celular19.
José de Souza Martins é outro importante autor que denuncia a fetichização
conceitual da noção de “exclusão social”, que “tudo e nada explica”, conforme
lembra Iamamoto, e defende a concepção de que, sociologicamente, não existiria
exclusão, pois os dilemas seriam os da inclusão precária e marginal: “inclusão dos
que são alcançados pela nova desigualdade social provocada pelas grandes
19
Estas redes penetram os próprios muros dos presídios e penitenciárias, de onde saem ordens e entram
informações aos chefes do tráfico. Há pouco tempo, podia-se conferir através da mídia um intenso debate
sobre a possibilidade de tratar a entrada e o uso de aparelhos celulares naqueles locais como infração às
normas de segurança, o que não era previsto no Código Penal até 06 de agosto de 2009, quando foi incluído o
artigo 349 – A no Código Penal Brasileiro, que tipifica como crime aparelho telefônico, de comunicação móvel,
rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional. Assim, tornou-se agora legalmente
possível aplicar as sanções correspondentes (detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano) aos infratores.
31
transformações econômicas e para as quais só há, na sociedade, lugares residuais”
(MARTINS, 1977 apud IAMAMOTO, op. cit., p. 166).
Referindo-se a este mesmo autor, Freire (2005, p. 58) lembra que esta
exclusão se trata de uma exclusão integrativa, ou seja, uma inclusão que se faz pela
exclusão, “uma modalidade de inserção que se define paradoxalmente pela não
participação e pelo mínimo usufruto da riqueza socialmente construída.” Sendo
assim, é fundamental compreender o fato de que remeter-se à noção de exclusão
implica compreender a questão “das desigualdades sociais fruto da exploração do
trabalho, um dos aspectos da crise da sociedade de classes” (IAMAMOTO, op. cit.,
p. 166). Há, de acordo com Martins (2002, p. 34, grifos do autor) uma orientação
interpretativa conservadora da exclusão, que vê uma “diluição da identidade do
trabalhador na figura do excluído e a ampliação da categoria dos marginalizados”, o
que produz uma mudança social que “sobrepõe o excluído ao trabalhador” porque,
como foi mencionado acima, sociologicamente, o trabalhador perde em parte a sua
visibilidade como tal. É assim que, neste processo, afirma o autor:
os que se batem pela centralidade da categoria “exclusão”, em suas demandas e em
suas pelejas, para compreender e superar as anomias da sociedade
contemporânea, batem-se, ao mesmo tempo, sem o saber, pela anulação política da
classe operária e pelo acobertamento de sua contradição histórica com o capital.
(MARTINS, 2008, p. 18)
Mas esta não é a única armadilha de dualismo a que se expõem aqueles que
se propõem a trabalhar o conceito. De acordo, ainda, com este mesmo autor, não
estaríamos em face de um novo dualismo, que nos proponha as falsas alternativas
de excluídos ou incluídos. Segundo ele, “a sociedade que exclui é a mesma que
inclui e integra, que cria formas também desumanas de participação, na medida em
que delas faz condição de privilégios e não de direitos”. E continua:
Esse desenvolvimento manifesta-se, ainda, num radicalismo interpretativo ilusório e
superficial que se recusa a reconhecer a competência integradora e até
patologicamente includente, aliciadora, dos processos econômicos e do sistema
econômico que se nutrem da exclusão. (id., p. 11)
Na utilização do termo “exclusão”, portanto, haveria uma vitória dupla do
capitalismo:
enquanto modo degradado de inserção social (e o conformismo que, apesar de tudo,
ele pode gerar) e enquanto interpretação abrandada das contradições do capital e
dos problemas sociais que dele resultam, a que os militantes da causa da justiça
social podem sucumbir. (ibid., p. 19)
32
Não se pode deixar de mencionar no presente debate, conforme indicado
anteriormente, o fato destes indivíduos que poderiam ser “encaixados” na categoria
“exclusão” – os “excluídos” – serem identificados com a pobreza. Sobre isto, Martins
oferece a seguinte observação:
A pobreza nem sempre é exclusão e a pobreza de fato excludente é apenas o pólo
visível de um processo cruel de nulificação das pessoas, descartadas porque já não
conseguem submeter-se à contínua ressocialização que delas faz apenas objeto,
instrumento de um processo social de produção de riqueza que passou a usar as
pessoas como se elas fossem apenas matéria-prima da coisa a ser produzida, como
20
se fossem objeto e não mais sujeito. (ibid., p. 20)
Um outro ponto interessante diz respeito à grande diferença no modo como
esta população se situa no mundo e o modo como os acadêmicos, os militantes, os
religiosos vêem essa situação de adversidade e suas vítimas. Pode-se verificar que
o discurso sobre a exclusão é o discurso dos integrados, daqueles que aderiram ao
sistema, e, também por isto, “dificilmente se pode ver nele um discurso
anticapitalista, embora ele seja um discurso socialmente crítico.” (ibid., p. 31).
No que diz respeito aos “pobres”, ou aqueles que se denomina “excluídos”,
percebe-se que estes não se enxergam desta forma. O que se quer dizer é que a
forma da pobreza, hoje, mudou, e “o pobre aderiu ao mundo que o fez pobre”, e a
consequência principal deste processo, que aqui se deseja mostrar, é, conforme
lembra, ainda, Martins (ibid.), a negação no imaginário e na vivência da propalada
“exclusão social” de que falam aqueles militantes da classe média incomodada.
Assim, pode-se afirmar que é a classe média que fala em exclusão, e não o
“excluído”, o que leva aqueles que querem ajudar estes “excluídos” a defender
mudanças no modo espontâneo de inclusão, por ser este “insatisfatório não para os
‘excluídos’, mas para o domínio imaginário da classe média, para os valores que ela
proclama e para a sociedade que ela deseja.” (ibid., p. 41)
O autor resume da seguinte forma sua argumentação: a exclusão não diz
respeito aos “excluídos”, mas “é, antes, uma impressão superficial sobre o outro por
20
Aqui o autor está se referindo ao processo de personificação no trabalhador da condição de vendedor da força
de trabalho, no desenvolvimento do capitalismo, quando este trabalhador passa, assim, a estar sujeito às
injunções do mercado, invisível e impessoal. Na atualidade, porém, com o aumento de trabalhadores
desempregados e da dificuldade destes em ingressar no mercado de trabalho, este se torna cada vez mais
sujeito a entradas e saídas cíclicas deste mercado.
33
parte daqueles que se consideram ‘incluídos’ (humanizados) e não o são de fato”.
(ibid., p. 43)
A concepção de exclusão, então, viria da tradição conservadora, embora
sendo hoje um patrimônio do que se poderia chamar de “radicalismo da
modernidade, o radicalismo que não consegue chegar às verdadeiras raízes dos
problemas sociais graves que o motivam, senão por vias indiretas”. (ibid., p. 23)
Não seria possível, talvez, então, considerar que não existiria a exclusão, na
medida em que esta se constituiria, portanto, em uma categoria atemporal e não um
conceito teórico? Se partimos desta concepção, passamos a compreender que o
que existe são “vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes,
onde os indivíduos desses processos, pela via dos conflitos, anunciam sua revolta,
sua força reivindicativa e sua atuação na luta de classes.” (ROHEM e SOUZA, 2001,
p. 6)
Antes de passarmos ao próximo tópico, há, porém, uma outra face que deve
ser mencionada, referente àquele “incômodo” da classe média, apresentado acima,
que constitui-se em um dos traços da forma contemporânea de exclusão, aquela da
estigmatização dos sujeitos em questão e consequente colocação dos mesmos na
posição de passíveis de eliminação. Marcelo Coelho (1994, p. 112 apud OLIVEIRA,
1997, s.p.) menciona que este sentimento de culpa com relação aos pobres, ou de
compaixão pelos mesmos, tem sido, na atualidade, substituído “pelo da irritação, do
tédio, da impaciência face à multiplicação incansável da miséria.” Assim, o autor
apresenta exemplos claros desta concepção, como as palavras de uma publicitária
em carta escrita à revista Isto É (4 ago. 1993), a respeito dos meninos de rua da
Candelária: “Não quero saber onde está a causa. Os pivetes me incomodam e
prefiro viver sem eles.”
Além daqueles indivíduos mencionados acima que não se identificam mais
como trabalhadores há a tendência – já indicada anteriormente, e não muito recente
– a contrapor aos que seriam trabalhadores, ou seja àqueles que estão “incluídos”,
os que não apenas não são trabalhadores – ou os “excluídos” –, mas seriam
“bandidos”. E estes, como vimos acima, são profundamente identificados com a
pobreza, o que é difundido no cotidiano.
E se há, no imaginário social, a concepção de que o pobre – e não a pobreza
– deveria ser eliminado da sociedade, quanto mais se verifica esta noção no que diz
respeito àqueles que se envolvem em práticas ilícitas. Exemplos claros disto podem
34
ser apresentados, além das falas recorrentes que se pode ouvir no cotidiano, nos
grupos de amigos, nos mais diversos ambientes, também se verificam por outros
meios, e, sobretudo, através das cartas de leitores em revistas e jornais impressos
ou nos comentários deixados por leitores nos rodapés das reportagens de mídia
eletrônica.21
Como uma forma de controle social22, voltado a esta população que vivencia
as dificuldades engendradas pela pobreza, o Estado desenvolve políticas que
constituem o que D’Ellia Filho (2007, p. 29) denomina “controle punitivo” uma das
modalidades de controle social “para o qual o sistema penal presta relevante
serviço, ainda que de forma não exclusiva, uma vez que existem controles punitivos,
como certas práticas psiquiátricas [...]”. Estas políticas são legitimadas na medida
em que se processa uma naturalização da barbárie na sociedade, como vimos.
Há, pode-se afirmar, portanto, nos dias atuais, a construção de um “novo
senso comum penal visando criminalizar a miséria” (WACQUANT, 2001, p. 18 grifos do autor), como vimos23. Este consenso chega à população através da mídia,
das novas tecnologias disponíveis para a disseminação de informações, através das
quais os crimes mais bárbaros são veiculados, numa “operação planetária de
marketing ideológico” (ibid., p. 19) que provoca na população uma sensação cada
vez maior de insegurança e medo24. De acordo com o mesmo autor,
não foi tanto a criminalidade que mudou no momento atual, mas sim o olhar que a
sociedade dirige para certas perturbações da via pública, isto é, em última instância,
para as populações despossuídas e desonradas (pelo seu estatuto ou por sua
origem). (ibid., 2007, p. 29; grifos do autor)
21
Especialmente nesse meio, onde geralmente não há um controle do editor dos sítios de notícias do que é
escrito ali, é possível perceber de maneira muito explícita o modo como é considerada esta parte da
população, e, numa breve pesquisa em um sítio de buscas é possível verificar a quantidade de observações
do tipo “bandido tem que morrer” ou “bandido bom é bandido morto”, a defesa da redução da maioridade
penal, da pena de morte etc.
22
De acordo com D’Elia Filho (2007, p. 27), “o controle social, entendido como a ‘influência delimitadora do
âmbito da conduta do indivíduo’ [ZAFFARONI ; PIERANGELI, 1997], é fenômeno intrínseco a toda sociedade”.
23
O aumento do número de encarcerados é inegável, na atualidade, o que justificaria o fato do autor considerar
como novo este senso comum penal, porém Ianni (op. cit.) nos leva à lembrança, já mencionada acima, de
que a inclinação à culpabilização das vítimas da pobreza, da miséria, ou seja, à criminalização da miséria, já
se manifestava nítida no passado, como se pode verificar em textos do final do século XIX. (Mencionamos
como exemplo um texto de Tobias Barreto, de 1877, citado pelo autor, retirado do livro Um Discurso em
Mangas de Camisa. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1970. p. 20)
24
Neste sentido, é importante destacar que esta proposta junto à população constitui-se objeto de investimento
capitalista, no bojo da construção de uma “indústria da segurança”.
35
É mais do que válido lembrar, neste momento, como a mídia influencia,
especialmente nos dias atuais, no processo de construção de “vilões”. Segundo
Coimbra (2001), remetendo-se a um estudo (BARATTA, 1993) realizado na
Alemanha, “‘a criminalidade ocupa um lugar desproporcionalmente alto na
percepção do público’, desviando a atenção dos inúmeros problemas25 que geram
essa própria criminalidade” (COIMBRA, ibid., p. 59).
Este debate sobre a mídia e a construção dos “vilões”, porém, de acordo com
a proposta deste trabalho, será posto mais à frente. Retomemos, portanto, a reflexão
sobre a noção de exclusão social.
Ao se tratar da população carcerária, e o modo particular de como se vê
privada da participação, somos obrigados a aprofundar a proposição de Martins
(2008, p. 10), que afirma, quanto ao sistema capitalista de produção, ser muito difícil
“reconhecer a legitimidade de um modelo de desenvolvimento que exclui legiões de
seres humanos das oportunidades de participação não só nos frutos da riqueza, mas
até mesmo na produção da riqueza”. Desta forma, queremos afirmar que o grau de
vitimização desta população da questão social é tão alto, que poderíamos dizer que
esses seres humanos não seriam excluídos apenas da produção e do acesso aos
frutos da riqueza, mas da participação nas políticas produzidas ao se buscar gerir a
distribuição de renda.
De acordo com este mesmo autor (id., p. 13), a alternativa que tem sido
viabilizada num contexto em que “o modelo de desenvolvimento econômico leva
simultaneamente a extremos de progresso tecnológico e de bem-estar para setores
limitados da sociedade e a extremos de privação, pobreza e marginalização social
para outros setores da população”, é a elaboração de políticas sociais
compensatórias, “por meio das quais se procura atenuar os efeitos danosos do
modelo econômico.” (ibid., p.14). Essas políticas, porém, apenas “confirmam e
legitimam a exclusão por meio de benefícios que não constituem legítima
apropriação social dos resultados da economia.” Assim, de acordo com o autor,
constituem-se débito a fundo perdido.
Mas aqui estamos querendo tratar daqueles que não tem tido acesso nem
mesmo a estas políticas “pobres”, o que os coloca em posição de ainda maior
desvantagem, não só ao nível de reconhecimento enquanto cidadão, como
25
Problemas que estão direta e radicalmente ligados, conforme avaliamos aqui, à questão social.
36
sabemos, mas também a nível material, devido às possibilidades ainda mais restritas
de acesso a algum benefício social, se assim pudéssemos denominar.
A partir das reflexões realizadas, é possível perceber os impactos desta
“velha questão social”, cujas expressões – em especial, aqui, no que diz respeito às
mais diversas manifestações de violência – são atravessadas por diversas
mediações que provocam, hoje, a sua radicalização e aprofundamento.
Uma dessas mediações, aqui tratadas, é a própria criminalização da pobreza,
a partir do pensamento difundido na sociedade de que a miséria gera violência, o
que provoca um distanciamento cada vez maior entre os segmentos mais
empobrecidos da população e os segmentos de classe com rendimentos que
permitem um distanciamento do crime (miséria). Este processo pode ocorrer tanto
por esta “fuga” para condomínios fechados da população com rendimentos mais
altos, quanto pelo encarceramento da população empobrecida (ou das duas formas,
como temos verificado na atualidade)26.
Outra mediação deste processo, que tocamos levemente acima, diz respeito
ao desenvolvimento dos meios de comunicação, que levam à construção de uma
cultura atravessada pelo medo e pela insegurança27. Estes são utilizados, grande
parte das vezes, em prol de uma construção de “vilões” perante a opinião pública28,
possibilitando a ação controladora e repressiva do Estado. Esta ação, é possível
afirmar, caracteriza, hoje, uma das faces da administração da pobreza que
mencionamos anteriormente.
A partir das reflexões contidas no presente capítulo buscamos trazer,
conforme vimos, em sua primeira parte, um pouco do debate sobre a questão social
enquanto processo inerente à sociabilidade capitalista, e o modo como muitos
26
A autora Teresa Pires do Rio Caldeira (1997) faz uso da expressão “enclaves fortificados” para designar estes
espaços privados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho que, sobretudo em
função do medo da violência, vêm atraindo as classes média e alta, enquanto a esfera pública das ruas se
destinaria aos pobres.
27
Lembramos que a cultura proposta pelos apelos midiáticos envolve também a criação de novas necessidades
como campo de investimento do capital. Esta realidade perpassa a própria inserção de jovens no mundo do
crime, já que um dos motivos apontados por estes próprios jovens para o envolvimento com, sobretudo, o
tráfico de drogas, é a possibilidade de acesso a roupas de marca, celulares etc. Sobre o assunto, cf. Cruz
Neto, Otavio et al. Nem Soldados nem Inocentes: juventude e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: FIOCRUZ, 2001.
28
Gramsci nos recorda que “O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a
opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade civil. [...] A opinião
pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia ser discordante: por isto, existe luta pelo
monopólio dos órgãos da opinião pública - jornais, partidos, Parlamento [...]" (GRAMSCI, v. 3, 2007, p. 265).
37
teóricos tem interpretado as expressões desta questão social de forma a encobrir
suas origens mais radicais e, assim, ingressado em interpretações que escapam à
própria racionalidade capitalista. Estas interpretações levariam, entre outras, a uma
compreensão equivocada dos processos que levam ao empobrecimento de grande
parte da população, acabando por trazer a noção de “exclusão social” enquanto
privilegiada para explicar estes processos. A partir daí, em um segundo momento,
passamos à busca por desvelar as (in)compreensões conceituais que levariam a
estas interpretações, o que denominamos fetichização conceitual da noção de
exclusão social.
O debate aberto pelas indagações acima tem o objetivo de recuperar as
bases teóricas que permitirão, no próximo capítulo, tratar o modo como não se
perderam antigas propostas de políticas e, com elas, a garantia da sua legitimação
junto à população, das interpretações mais conservadoras sobre a questão social e
seus efeitos (violência, pobreza etc.), mas estas se renovam e são reeditadas na
atualidade, com a fundamental e, ousamos afirmar, determinante participação da
mídia. Buscamos compreender, assim, no capítulo que se segue, o modo como o
processo de contra-reforma do Estado, no sentido gramsciano do termo, segundo o
qual as coisas do passado são reeditadas sem traços de novidade, implica e reforça
a retomada de antigos ideários e concepções que buscam balizar propostas de
políticas de controle social.
38
2
O CONCEITO DE CLASSES PERIGOSAS E A CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA
2.1 O conceito de classes perigosas: um pouco de história...
“A violência que não se vê não reclama ações sobre ela.”
(Freire, 2009, p. 189)
Além dos processos mencionados acima e seus efeitos na atualidade, que
conformam a “nova roupagem” da questão social, destacamos – e, sobretudo aqui
nos interessa – uma outra expressão, outro aspecto desta questão social: sua
criminalização. É fundamental termos em mente o fato de que a criminalização da
questão social não é um fenômeno atual, e tem profunda conexão, no Brasil, com a
construção da noção de “classes perigosas” associada à pobreza. Coimbra (2001)
oferece uma importante contribuição ao debate sobre o tema.
A autora retoma o caso brasileiro a partir da época da escravidão, quando se
dava o controle das virtualidades – controle não somente sobre o que se é, mas
também sobre o que se poderá vir a ser –, que, neste caso, terá como aliadas as
teorias racistas do período, cujo apogeu se deu na Europa da segunda metade do
século XIX, segundo as quais o tratamento vil a que eram submetidos os negros
poderia ser justificado simplesmente por sua “natureza”, sua “índole preguiçosa e
negligente”. Pregava-se, assim, a superioridade dos brancos.29
No início do século XX, a partir dos ideais eugênicos30, muitas dessas teorias
ganham peso no Brasil, e cresce no imaginário social a crença nas “classes
perigosas”, termo utilizado já em 1857, por Morel, em seu trabalho “Tratado das
Degenerescências”, para designar aqueles que não possuiriam “nem a inteligência
do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível
29
De acordo com Chalhoub (1996, p.23), “o contexto histórico em que se deu a adoção do conceito de ‘classes
perigosas’ no Brasil fez com que, desde o início, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais.”
30
A eugenia foi definida pelo médico Dr. João Henrique da seguinte forma: “a eugenia não é outra coisa senão o
esforço para obter uma raça pura e forte.” (COIMBRA, 2001, p. 87)
39
de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa.”
(apud COIMBRA, ibid., p. 88).
É ancorado nestas teorias que surge o movimento higienista no Brasil, no final
do século XIX, e início do século XX, e penetra em toda a sociedade. A “degradação
moral” que era associada à pobreza era vista como uma epidemia cujo contágio era
considerado inevitável “pois está presente nas famílias pobres e coloca sob ameaça
toda a sociedade” (ibid., p. 89). Este movimento irá redefinir, segundo a autora, os
papéis que devem desempenhar em um regime capitalista a família, a criança, a
mulher, a cidade, as classes pobres. Uma dualidade se constrói a partir desta
redefinição de papéis: surgem os “pobres dignos”, que trabalham, mantém a família
unida, observam os costumes religiosos; e os pobres considerados “viciosos” que,
“por não pertencerem ao mundo do trabalho [...] e viverem no ócio, são portadores
de delinquência, são libertinos, maus pais e vadios” (ibid., p. 91). E para ambos os
“tipos” de pobres são utilizados dispositivos disciplinadores e moralizantes.
É interessante apresentar aqui um pouco da elaboração de Chalhoub (1996),
que traz uma importante colaboração sobre a constituição do conceito de classes
perigosas, e como este conceito é adotado no Brasil.31 O autor realiza esta reflexão
a partir da reconstrução da experiência dos negros escravos, libertos e livres nos
cortiços cariocas, tendo como um dos objetivos principais de sua pesquisa “explorar
os cortiços como esconderijos dentro da cidade, fatores de embaralhamento de
livres e cativos e, portanto, como rede de proteção a escravos fugidos e elemento
desagregador da instituição da escravidão” (id, p. 7).
De acordo com este autor, que se propõe a pesquisar, ainda, a suposta
relação entre os cortiços e as epidemias de febre amarela:
os cortiços supostamente geravam e nutriam 'o veneno' causador do vômito preto.
Era preciso, dizia-se, intervir radicalmente na cidade para eliminar tais habitações
coletivas e afastar do centro da capital as 'classes perigosas' que nele residiam.
Classes duplamente perigosas, porque propagavam a doença e desafiavam as
políticas de controle social no meio urbano. (id., p. 8. Grifos do autor)
Aí está um dos principais elos entre o combate às classes perigosas e o
higienismo mencionado acima: "A intervenção dos higienistas nas políticas públicas
parecia obedecer ao mal confessado objetivo de tornar o ambiente urbano salubre
31
Lembramos, porém, que a exploração do conceito de classes perigosas não é o objetivo principal do autor no
trabalho em questão; porém a sua reflexão sobre os cortiços e epidemias no Rio de Janeiro no período do
Império passa necessariamente por este debate, por isso a importância da sua contribuição.
40
para um determinado setor da população." (ibid., p. 9) Assim, conforme destaca o
autor, “higienistas e autoridades policiais estarão quase sempre do mesmo lado da
trincheira em se tratando de cortiços” (ibid., p. 37).
Antes de prosseguir, se faz necessário apresentar alguns exemplos de
formulações pautadas nos ideais higienistas, para que se compreenda melhor de
que se trata este movimento e o seu impacto na formulação de políticas na Corte
Imperial. Traremos, portanto, um episódio marcante na história dos cortiços no Rio
de Janeiro, oferecido, ainda, por Chalhoub em seu trabalho: a demolição do “Cabeça
de Porco”, o mais famoso cortiço brasileiro da época.
De acordo com o autor, em abril de 1892, “um higienista ascendeu à
presidência da Intendência Municipal, e posteriormente, em dezembro do mesmo
ano, foi nomeado para a prefeitura da Capital Federal: Cândido Barata Ribeiro.”
(ibid, p. 50) Em sua tese de doutoramento, Barata Ribeiro havia afirmado:
Todos sabem o que é o cortiço. [...] Alimenta-os a lubricidade do vício, que se
ostenta impudonorosa (sic), ferindo os olhos e os ouvidos da sociedade séria que
deles se aproxima, e a miséria andrajosa e repugnante, que faz da ociosidade um
trono, e por um contraste filho das circunstâncias peculiares à vida das grandes
cidades, ao lado [...] do vício e do lodaçal impuro do aviltamento moral, está também
o leito do trabalhador honesto, que respira à noite a atmosfera deletéria deste
esterquilínio de fezes! No cortiço acha-se de tudo: o mendigo que atravessa as ruas
como um monturo ambulante; a meretriz impudica, que se compraz em degradar
corpo e alma, os tipos de todos os vícios e até [...] o representante do trabalho [...]
Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demolição de todos eles, de
modo que não fique nenhum para atestar aos vindouros e ao estrangeiro, onde
existam as nossas sentinas sociais, e a sua substituição por casas em boas
condições higiênicas.
Conclui, então, Chalhoub, a partir da menção acima: “torna-se evidente,
portanto, que ao ordenar a demolição do Cabeça de Porco, entre outros cortiços,
Barata Ribeiro estava apenas colocando em prática a sua opinião histórica a
respeito desse tipo de habitação popular.” (ibid., pp. 50-51)
Assim, lembra o autor,
A destruição do cortiço carioca mais famoso da época não foi um ato isolado, e sim
um evento no processo sistemático de perseguição a esse tipo de moradia, o que
vinha se intensificando desde pelo menos meados da década de 1870, mas que
chegaria à histeria com o advento das primeiras administrações republicanas. (ibid.,
p.25)
Aquela “opinião histórica” retratada na fala de Baratta Ribeiro não se reduzia,
obviamente, apenas a esta personagem, mas é fruto de um processo que se iniciou
no seio dos debates parlamentares em meados do século XIX, quando se construía,
41
ou melhor, se buscava adaptar32 ao Brasil, o conceito de “classes perigosas”,
processo que, como mencionamos acima, está profundamente relacionado ao
ideário higienista. De acordo com Chalhoub (ibid.), o conceito de classes perigosas
foi um dos eixos do importante debate parlamentar ocorrido na Câmara dos
Deputados do Império do Brasil nos meses que se seguiram à lei de abolição da
escravidão, em maio de 1888. Segundo o autor, “preocupados com as
consequências da abolição para a organização do trabalho, o que estava em pauta
na ocasião era um projeto de lei sobre a repressão à ociosidade.” (ibid, p.20) Desta
forma, os parlamentares recorriam com frequência, por exemplo, a M. A. Frégier, um
alto funcionário da polícia de Paris que, segundo o autor, baseando-se em inquéritos
e estatísticas policiais, escreveu um livro influente, que foi publicado em 1840, sobre
“as classes perigosas da população nas grandes cidades”(ibid., p.20)
Frégier, no entanto, de acordo com a análise do autor, apesar do empenho e
cuidado na análise das estatísticas, não teria sido capaz de resolver um problema
que seria decisivo: o seu trabalho resultou então numa ampla descrição das
condições de vida dos pobres parisienses em geral, porém tendo falhado na
tentativa de determinar com qualquer precisão a fronteira entre as “classes
perigosas” e as “classes pobres”; e a consequência disto entre os nossos
parlamentares, na formulação de políticas pós-abolição já se pode imaginar.
É assim que, nos anais da Câmara dos Deputados, em sessão de 10 de
outubro de 1888 se encontra a seguinte menção a Frégier pela comissão
parlamentar encarregada de analisar o projeto de lei sobre a repressão à ociosidade,
conforme o autor transcreve:
As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão de ser
a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se
designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas –; pois quando o
mesmo vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no
mesmo indivíduo constitui justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social
cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua
condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade. (ibid., p.21)
32
É bom lembrar que este velho hábito de importação de teorias elaboradas em outros países e a tentativa de
adaptar à realidade brasileira, sem considerar suas particularidades, acompanha historicamente – pelo menos,
com maior força, até a primeira metade do século passado – a produção de conhecimento no Brasil, evitandose, talvez, o esforço de elaborar conhecimentos inovadores e que correspondam de modo mais específico e
fiel à realidade brasileira. De acordo com Malaguti Batista (2003, p. 95), historicamente, “a América Latina tem
sempre ‘adaptado’ os conceitos e técnicas que os especialistas dos países hegemônicos impõem. O preço tem
sido alto.”
42
De acordo com Chalhoub, o trecho supracitado é uma “babel de ideias”, que
foi produzida por Frégier e encampada pela comissão parlamentar. Verifica-se que
já se encontra, neste momento, distante a precisa ideia de “classes perigosas”
proposta por Mary Carpenter, que utilizou a expressão no sentido de um grupo
social formado à margem da sociedade civil, referindo-se apenas aos indivíduos que
já haviam abertamente optado por uma estratégia de sobrevivência que os colocava
à margem da lei, como afirma o autor. No caso anterior, porém, o conceito de
classes perigosas traz em si a seguinte concepção já mencionada, de que seriam
perigosas simplesmente por serem pobres, retomando as palavras de Chalhoub em
citação de Malaguti Batista (2003, p. 37 – grifo nosso): “perigosas porque pobres,
por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e também por serem
consideradas propagadoras de doenças.”
Chevalier (1973, p. 141 - tradução nossa), em seu trabalho, também realiza
uma crítica ao trabalho de Frégier, afirmando que este autor “se propôs sobretudo a
descrever malfeitores de todos os tipos, da classe trabalhadora ou não, vigaristas,
ladrões e prostitutas, e tentou identificá-los através de estatísticas, situando-os em
seu real contexto em Paris.”33 Assim, segundo este autor, seu estudo das classes
perigosas teria coberto uma grande parte das classes trabalhadoras, mas não teve
sucesso em determinar uma fronteira entre os dois grupos, o que Chevalier, por sua
vez, procura fazer em seu trabalho. Assim, também este autor (id., p. 141 – tradução
nossa) aponta, sobre a elaboração de Frégier, “a imprecisão de termos e sintaxe
confusa, que refletem não só a complexidade do assunto, mas a imprecisão e
confusão de pensamento.”34
Além disso, Frégier irá afirmar sobre a parte da classe trabalhadora que está
ligada a vícios audaciosos e maléficos: “gradualmente vertem seus hábitos
industriais remanescentes, pela influência maligna dos seus companheiros de
desordem e acabam abraçando suas vidas desocupadas e do crime.”35 (id., p. 142,
tradução nossa).
33
O texto em sua língua original é: “[Frégier] proposed mainly to describe evildoers of all sorts, whether of the
working class or not, crooks, thieves and prostitutes, and tried to identify them by means of statistics while
situating them in their actual setting in Paris.”
34
O texto em sua língua original é: “The imprecision of the terms and the confused syntax reflect the complexity
of the subject no less than the imprecision and confusion of thought.”
35
O texto em sua língua original é: “that part of the working class [...] gradually shed their remaining habits of
industry under the malign influence of their companions in disorder and ended by embracing their idle and
criminal life.”
43
O que principalmente irá, conforme destaca Chevalier, chamar a atenção
neste livro é a incapacidade de Frégier de encontrar algum modo de resolver a
confusão entre classes perigosas e classes trabalhadoras, apesar de haver em seu
trabalho declarado como seu objeto de estudo as classes perigosas.
De acordo com Chalhoub, retomando a reflexão acima, o raciocínio proposto
pelos deputados se teria desenvolvido a partir de uma abstração, o que leva a
conclusões que, mesmo obtidas através de uma lógica pela comissão parlamentar,
dizem respeito a coisa nenhuma, a um vazio, ao nada. Vejamos como se
desenvolveu aqui no Brasil esta lógica:
36
os pobres carregam vícios , os vícios produzem malfeitores, os malfeitores
são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção
de que os pobres são, por definição, perigosos. Por conseguinte, conclui
decididamente a comissão: ‘as classes pobres [...] são [as] que se designam
mais propriamente sob o título de – classes perigosas – ‘” (op. cit., p.22)
Desta forma, conclui o autor, “é que a noção de que a pobreza de um
indivíduo era fato suficiente para torná-lo um malfeitor em potencial teve enormes
consequências para a história subsequente de nosso país.” (id., p.23). Pode-se dizer
que é a partir daí, inclusive, que se desenvolveu aquilo que o autor descreve como a
“teoria da suspeição generalizada” que seria, segundo o mesmo, a essência da
expressão “classes perigosas”.
Quando falamos de uma “teoria da suspeição generalizada”, não podemos
deixar de nos reportar ao fato de que, tanto naquele momento, ainda de Brasil
Império, de abolição da escravidão no Brasil, quanto na atualidade, até mesmo
como produto deste passado de segregação no Brasil, verifica-se a busca pela
construção de uma cultura que legitima, ou mais, leva mesmo à defesa de políticas
de controle como as mencionadas acima.
Por isso a necessidade de refletirmos, a partir de agora, sobre a construção
da chamada “cultura do medo” na sociedade e a mídia enquanto instrumento
determinante neste processo.
36
Aqui, esta palavra já parte de uma abstração, já que “pobres” e “viciosos”, como visto acima, acabam por
significar a mesma coisa, sendo assim, todos os pobres seriam, necessariamente, viciosos.
44
2.2 A mídia e a difusão de uma “cultura do medo”
“Sociedades assombradas produzem políticas
histéricas de perseguição e aniquilamento.”
(MALAGUTI BATISTA, 2003, p. 26)
Retomando a tradição histórica do país, podia-se verificar, num passado não
muito distante, que as taxas de mortalidade da escravaria no Brasil, conforme indica
Guimarães, “exprimiam o enorme descaso pela preservação do cabedal de
escravos”, e a mortalidade infantil chegava à absurda percentagem de 88%. Assim,
a população escrava, no século XIX, sofrera uma diminuição de 5% ao ano. Além
disso, podia ser constatada uma completa despreocupação pelas medidas mais
comuns de higiene, falta de providências de defesa sanitária, que começava já nos
transportes negreiros, e tudo isto agravava e tornava mais frequentes os surtos
epidêmicos de cólera-morbo, de febre amarela, de varíola.
Chalhoub (1996, p. 24 – grifos nossos) apresenta a opinião de um deputado,
opinião dominante entre os parlamentares, diga-se de passagem, a respeito dos
libertos, no final do século XIX:
Há o dever imperioso por parte do Estado de reprimir e opor dique a todos os vícios
que o liberto trouxe de seu antigo estado, e que não podia o efeito miraculoso de
uma lei fazer desaparecer, porque a lei não pode de um momento para o outro
transformar o que está na natureza.
E como parte de uma solução para a situação destes recém-libertos, pode-se
constatar o seguinte pensamento nos anais da Câmara dos Deputados, também no
período em questão:
[A] lei produzirá os desejados efeitos compelindo-se a população ociosa ao trabalho
honesto, minorando-se o efeito desastroso que fatalmente se prevê como
consequência da libertação de uma massa enorme de escravos, atirada no meio da
sociedade civilizada, escravos sem estímulo para o bem , sem educação, sem os
sentimentos nobres que só pode adquirir uma população livre.’” (id., pp.24-25 –
grifos nossos)
E de quem seria constituída esta população livre? De pessoas da cor branca,
que não fossem pobres, e que não residissem nos locais considerados “perigosos”.
45
De acordo com Coimbra (2001, p. 101), a “relação entre pobreza e ‘classes
perigosas’ é levada às últimas consequências nas reordenações urbanas ocorridas
na Europa quanto no Brasil”; assim ocorria “a expulsão dos pobres do centro do Rio
para os subúrbios ou para as encostas dos morros, aumentando as favelas
cariocas.” Estes argumentos higienistas eram, portanto, utilizados desde o início do
século XX, como justificativa de “eliminação das favelas sob a ótica da ‘ordem
social’, ‘segurança’ e ‘higiene da cidade’” (id., p. 109).
Apesar dos argumentos serem higienistas, as razões estariam vinculadas
sobretudo ao controle social dessas populações. Neder (1997, s.p.), em um artigo
publicado em 1997, intitulado “Cidade, identidade e exclusão social”, afirma que o
contexto de modernização das cidades, sobretudo o Rio de Janeiro, na virada do
século XIX ao século XX, esteve ligado à passagem do regime escravo para o
trabalho livre, o que trouxe a necessidade de reforma das instituições de controle
social (polícia e justiça). Assim foi que se articulou, paralelamente às reformas
urbanísticas, que maquiaram e embelezaram a capital federal, uma “estratégia de
controle social a ser projetada face à massa de ex-escravos”, que “era o ‘medo
branco’ [grifos da autora], manisfestado diante das possibilidades de alargamento do
espaço (político e geográfico) da população afro-brasileira.”37
Naquele período, o medo já poderia ser apontado como uma das razões de
se investir na busca pelo controle dos ex-escravos, e este medo aparecia, segundo
aquela mesma autora, de forma explícita na grande imprensa carioca quando era
clara
a ênfase dada ao debate sobre o aumento da criminalidade na imprensa carioca do
início do século, que pontuava, de um lado, a ineficácia e a precariedade da polícia
e, de outro, sua arbitrariedade [...] Enfim, a grande imprensa fazia a campanha da lei
38
e da ordem.
A autora reflete, naquele artigo, sobre a reformulação espacial da cidade do
Rio de Janeiro, e traz algumas considerações importantes sobre o modo como se
deu este processo, e as suas repercussões na atualidade.
37
Analisando a obra de Chalhoub, Borges (2010) irá destacar que o que aquele autor denominou na época da
passagem do Rio Imperial para o Rio República “Medo Branco das Almas Negras”, hoje poderia ser
denominado “medo da classe média de almas perigosas”.
38
Iremos tratar do papel da mídia na construção e legitimação destas políticas de controle social, sobretudo a
partir da difusão da ideologia do medo.
46
De acordo com a autora, o que denomina “medo branco aparece com fortes
manifestações de subjetividade e, ao que tudo indica, a ideia de que o ‘morro pode
descer’, que povoa a fantasmagoria do imaginário carioca hoje, tem origens
históricas que não podem ser desconsideradas nos estudos sobre a cidade do Rio
de Janeiro” (NEDER, 1997, s.p. – grifos da autora)
Segundo ela, ao buscar demonstrar como se deu a segregação naquela
cidade, ligada sempre às políticas de segurança, além dos vários edifícios ligados às
instituições de controle social que foram erguidos no início do século passado, cabos
subterrâneos de comunicação foram construídos para a instalação de caixas de
aviso policial nos postes de iluminação pública, que já haviam sido implantadas em
cidades européias, e produziriam uma multiplicação dos efeitos inibidoresrepressivos de quartéis, delegacias e presídios, e estavam localizados em locais que
confirmam a ideia de que teria sido construído, assim, um efetivo “paredão da
ordem”39, mesmo que subterrâneo, nos termos da autora.
Assim foi que
as fronteiras erigidas entre a “ordem” e a “desordem” ganharam concretude no
imaginário social e político carioca e disciplinaram, portanto, o deslocamento e a
sociabilidade urbanos. Estabeleceram, de forma sutil e alegórica, o território de cada
grupamento étnico-cultural e apontaram o padrão hegemônico de atitudes e
comportamentos face à problemática da alteridade. Assim que, pela exclusão e pela
segregação, a cidade européia pouco conhece a cidade quilombada. (id., s.p. –
grifos da autora)
A autora, porém, lembra que apenas a cidade européia não conhecia a outra
cidade, já que os trabalhadores pobres eram obrigados a se deslocar e a transitar
pela cidade em função do trabalho e este teria sido mais um dos motivos pelos quais
teriam sido construídos mecanismos de controle social repressivos:
cabia à polícia realizar “expedições” e estabelecer um relacionamento de controle
sobre os moradores da cidade quilombada. As ‘batidas nos morros’ (algumas vezes
chamadas de ‘invasões’), feitas por policiais aos locais de moradia dos
trabalhadores urbanos pobres não tinham qualquer objetivo investigativo de busca
de indícios criminais ou mesmo de policiamento ostensivo, levando segurança aos
seus moradores. Tinham (e ainda têm) papel inibidor-repressivo para efeito de
39
O “paredão da ordem”, é importante destacar, não era construído apenas a partir da construção de edifícios
propriamente policiais, mas o controle social do espaço urbano também se caracterizava pela demarcação de
espaços próprios para determinadas atividades. Por exemplo: o espaço tolerado para manifestações políticas
era a Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco); o espaço demarcado para a malandragem, a Lapa e o
Estácio – duas áreas de passagem entre a cidade quilombada e a cidade européia, nas palavras de Neder (op.
cit.).
47
controle e disciplina, vale dizer, para efeito de uma vigilância permanente das ruas e
40
dos espaços públicos. (ibid., s.p. – grifos da autora)
No cenário de disputas entre as duas cidades, Chalhoub (1988 apud
BORGES, 2010, s.p.), convenientemente, aponta a luta de classes enquanto fio
condutor deste embate, em que o medo acabaria por conduzir algumas das políticas
de implementação da ordem burguesa.
É fundamental ter em mente o fato de que o racismo e o medo (do Outro)
permanecem acentuados na atualidade, por mais que tenham esmaecido as
referências à escravidão. Assim, a conjuntura histórica recente apresenta as
mesmas preocupações do período acima referido. E se afirmamos que a construção
de uma cultura do medo está – e sempre esteve, no Brasil – intimamente ligada, e,
ainda, motivou processos de “intervenção cirúrgica”, nas palavras de Neder, do
espaço urbano, entendemos que hoje também isto ocorre. Para sermos mais claros,
retomando as palavras de Neder, esta intervenção espacial
ao rasgar avenidas e remover os trabalhadores pobres para as periferias das
cidades coloca o saber técnico de arquitetos e urbanistas, bem como o saber
médico sanitarista [como vimos acima], acima de qualquer crítica humanista das
opções políticas realizadas. (op. cit., s.p.)
É possível, portanto, verificar como, na atualidade, são reeditadas políticas
com os mesmos objetivos destacados acima, com cunho punitivo, policialesco e
segregacionista. E aqui buscamos demonstrar como as políticas de segurança
elaboradas são legitimadas pela população (e não só a população com maior renda,
mas também as populações pobres, principais alvos destas políticas), através de
uma cultura do medo, como veremos à frente, com maior cuidado.
Neste sentido é que Malaguti Batista (2003, p.34 – grifos da autora) afirma
que “a ocupação dos espaços públicos pelas classes subalternas41 produz fantasias
40
Mais à frente será apresentada a política de pacificação de favelas cariocas, utilizada na atualidade, no sentido
acima apresentado, como veremos.
41
Mencionamos acima, de forma breve, o que compreendemos e queremos dizer ao mencionar o termo “classes
subalternas”, porém se faz necessário, considerando a sua proximidade e correlação com o tema aqui
proposto, tratá-lo com um pouco mais de profundidade. Este termo retoma a categoria gramsciana de
subalternidade, que busca dar conta de um processo de obstaculização da possibilidade dessas classes
“elaborarem uma visão de mundo de corte anticapitalista e articular alianças e estratégias em defesa dos seus
interesses”.(SIMIONATTO, 2001, p. 11) De acordo, ainda, com Gruppi (1978, p. 91), para Gramsci “uma
cultura é subalterna precisamente enquanto carece de consciência de classe, enquanto é cultura de classes
ainda não conscientes de si. Com efeito, Gramsci sublinha como tal cultura é heterogênea, como “nela
convivem a influência da classe dominante, detritos de cultura de civilizações precedentes, ao mesmo tempo
que sugestões provenientes da condição da classe oprimida.”
48
de pânico do ‘caos social’, que se ancoram nas matrizes constitutivas da nossa
formação ideológica”. Chalhoub (apud BORGES, op. cit.), irá apresentar o confronto
entre a cidade branca (planejada, idealizada) e a cidade negra (instituída, real), e o
medo como um poderoso condutor da subjetividade branca, o que envolve dois
processos:
a
postura
dos
negros
enquanto
associada
a
estratégias
de
sobrevivência, e o fato de a cidade branca, assim, visar a desconstrução da outra.
Malaguti Batista (2003, p. 21), expõe ainda que “no Brasil a difusão do medo
do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de
neutralização e disciplinamento das massas empobrecidas”, as ondas de medo “são
necessárias para a implantação da política de lei e ordem.”
Estes tipos de política são, segundo a autora, frutos das matrizes ibéricas do
nosso país, e de acordo com ela “nem o fim da escravidão e nem a República
romperam com o legado da fantasia absolutista do controle social, da obediência
cadavérica.” (id., p. 32) Assim é que a autora afirma que a atuação da polícia nas
favelas cariocas nos dias de hoje seria a prova viva deste legado.
De acordo, ainda, com esta autora, “os novos inimigos da ordem pública
(ontem terroristas, hoje traficantes) são submetidos diuturnamente ao espetáculo
penal, às visões de terror dos motins penitenciários e dos corredores da morte”,
assim como, para Loïc Wacquant (apud MALAGUTI BATISTA, 2003, p. 96), da
mesma forma que no passado o índio bom seria o índio morto, hoje o bom pobre é o
pobre invisível, que não reivindica, que sofre em silêncio.
Gramsci, validamente, afirmará o seguinte sobre o assunto, ao buscar esclarecer a questão dos
costumes e o modo como são encarados como “naturais”: “Nos grupos subalternos, por causa da ausência de
autonomia na iniciativa histórica, a desagregação é mais grave e é mais forte a luta para se libertarem dos
princípios impostos e não propostos, para obter uma consciência histórica autônoma.” (GRAMSCI, 2007, p. 52)
A referência a estes grupos em Gramsci passa necessariamente pela compreensão, ou melhor, pela
defesa e crença na elevação da vida cultural-política daqueles estratos sociais que, antes de obtê-la, viviam
passivamente e, portanto, não haviam superado o limiar da consciência histórica. Sair da passividade, para
Gramsci, é deixar de aceitar a subordinação que a ordem capitalista impõe a amplos estratos da população, é
deixar de ser ‘massa de manobra’ dos interesses das classes dominantes.” (SIMIONATTO, 2008, s.p. grifo
nosso).
É neste sentido que aquele autor afirma ainda, referindo-se a este grupo: “é a concepção de um grupo
social subalterno, sem iniciativa histórica, que se amplia continuamente, mas de modo inorgânico, e sem poder
ultrapassar um certo grau qualitativo que está sempre aquém da posse do Estado, do exercício real da
hegemonia sobre toda a sociedade, que, só ele, permite um certo equilíbrio orgânico no desenvolvimento do
grupo intelectual.” (GRAMSCI, op. cit., p. 37-38)
O conceito de classes subalternas poderia ser, assim, considerado mais intenso que trabalhador, de
acordo com Iamamoto (2008, p. 188.), ao refletir sobre a obra de Yazbek, pois incluiria, além dos
trabalhadores, “desempregados e grupos sem condições de obtenção dos meios de subsistir, que são alvo
prioritário da assistência social”, ou seja, inclui-se no conceito de subalternidade “a exploração, a dominação e
a resistência, incluindo os dilemas da produção da subjetividade” (YAZBEK, 1993, p. 68 e 70 apud
IAMAMOTO, ibid., p. 189).
49
Outro exemplo marcante estritamente relacionado ao pensamento higienista
no Brasil ainda no período do Império, conforme apresentado na seção anterior , é o
de empresários que se apropriavam do discurso da Higiene para justificar sua opção
de investimento. Numa passagem em que o empresário Arthur Sauer apresenta a
justificativa de seu projeto de investimento na construção de casas para operários
que substituiriam os cortiços, este afirma que
o principal inconveniente dos cortiços estaria na ‘ameaça constante aos moradores
próximos’; isto é, a utilidade do projeto não se assentaria na melhoria das condições
de vida das classes populares em si, mas sim na vantagem de torná-las menos
perigosas para a classe dominante. (CHALHOUB, op. cit., p. 53)
De acordo com Coimbra (op. cit., p. 100), “as estratégias de ordenação dos
espaços urbanos têm se caracterizado, portanto, pela segregação, exclusão e
isolamento das classes subalternizadas, corroborando a crença de que com elas
estão as doenças, os perigos as ameaças, a violência.” E a atualidade da
compreensão da favela, ou da comunidades pobres enquanto locais “proibidos”,
“arriscados”, “violentos”, está presente no cotidiano, como se pode acompanhar
detalhadamente, através da mídia impressa e televisiva nacional, nos discursos que
tratam das incursões em comunidades pobres.
As reformas urbanas realizadas na então capital federal do Brasil, no início do
século passado, como a Pereira Passos (1902-1906), implicaram “procedimentos
políticos autoritários, típicos de processos de modernização conservadora42,
empreendidas por uma república autoritária e excludente, cujos efeitos de
segregação do espaço urbano fazem-se ainda presentes” (NEDER, op. cit., s.p.).
Este tipo de intervenção no espaço urbano leva a uma perda de referências
identitárias, criando barreiras psico-afetivas levando, de acordo com esta autora, a
efeitos ideológicos de distanciamento cultural. Estas barreiras estão vinculadas ao
processo apresentado por Chalhoub (1988 apud BORGES, op. cit.) em que, na
tentativa de estabelecimento da cidade idealizada e planejada – branca –
constituem-se como peças fundamentais a implementação de códigos de postura43 e
42
Uma obra de referência sobre o modo como as mudanças, no Brasil, historicamente, se dão “pelo alto”, é “A
Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de uma interpretação sociológica”, de Florestan Fernandes.
43
Como exemplo destes códigos de postura o autor cita as penas estabelecidas pela “Posturas da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro” (ano 1830, título sexto, parágrafo 11, AGCRJ), de multa e prisão a todo aquele
que for pego com casa de negócio que comprar objetos que se julguem furtados, pelo diminuto preço de seu
valor e por pessoas que julguem não possuírem tais objetos (grifos do autor). Destaca a semelhança com, já
na década de 1990, a relação das administrações municipais com os vendedores ambulantes. Assim,
50
os relatos jornalísticos, que auxiliava na transformação de todos os negros em
suspeitos.
Não é por acaso, portanto, que a difusão da cultura do medo, a segregação e
a participação da mídia neste processo são elementos que não podem ser
considerados separadamente, pois, como afirma Malaguti Batista (op. cit., p. 96): “a
luta pela hegemonia do discurso criminológico se dá na esfera das comunicações, e
o que se observa é a subordinação do discurso político às agências de
comunicação.”
Assim percebemos, historicamente, a ênfase dada ao debate sobre o
aumento da criminalidade na imprensa carioca no início do século passado,
pontuando-se, ao mesmo tempo, a ineficácia e a precariedade da polícia e sua
arbitrariedade. Como consequência, “reivindicavam-se melhorias generalizadas, que
incluíam o reaparelhamento da polícia, mais repressão e mais controle sobre os
espaços da cidade” (NEDER, op.cit., s.p.), numa resposta às necessidades de
reforma das instituições de controle social. De fato, repetimos, não há como negar a
reedição destes processos na atualidade, quando se reclama pelo aumento do
número de vagas nos presídios, modernização, reaparelhamento da justiça criminal
etc. É muito clara a continuidade destes processos que, naquele período, já, ao
mesmo tempo, moldaram os padrões de conduta e sociabilidade no espaço carioca,
além de definir o lugar de cada grupamento étnico-cultural e\ou social, conforme
lembra a autora.
Neste sentido, quando partimos para a análise da construção do medo na
sociedade brasileira, é interessante destacar a seguinte reflexão de Chauí (2006, p.
104):
Em uma sociedade como a brasileira, podemos falar em uma divisão social do
medo, isto é, as diferentes classes sociais têm medos diferentes. A classe dirigente
teme perder o poder e seus privilégios; a classe dominante teme perder riquezas,
(...); a classe trabalhadora teme o desemprego, a morte cotidiana a violência
patronal e policial, a queda vertiginosa na marginalidade, na miséria absoluta,(...), os
medos dos que estão no baixo político, econômico e social são de queda na
desumanização, medos de perder a condição humana e por isso medos que dizem
respeito aos seus direitos. As classes populares não chegam a falar em nome dos
direitos, falam em nome de algo que é pressuposto pelos direitos e que por estes
deve ser concretizado; falam em nome da justiça.
constroem-se espaços – os camelódromos, não à toa denominados, em muitos lugares, de shoppings
populares – que, ao mesmo tempo, irão centralizar os vendedores ambulantes, facilitando as intervenções
policiais, quanto separarão a população que irá transitar por aquele espaço e aquela que irá transitar pelos
shoppings centers.
51
Aqui não se pode deixar de acrescentar a atualidade deste modo de
compreensão da realidade, muito viva e presente no nosso cotidiano, como se pode
perceber a partir do que é apresentado, como mencionamos, na mídia, impressa ou
televisiva. Citaremos aqui apenas duas reportagens extraídas d’O Globo On Line,
cujos títulos já denotam o cunho segregacionista apresentado pela mídia.
A primeira, publicada no sítio de notícias da rede globo44, em 18 de novembro
de 2009, por Jorge Antonio Barros, do Globo, tem como título: “Balas atingem prédio
na vizinhança de favela na Tijuca”, e apresenta o seguinte texto:
O intenso tiroteio que ocorre esta madrugada no Morro da Formiga, na Tijuca, põe
em risco também a vizinhança da favela, com acesso pela Rua Conde de Bonfim.
Numa rua próxima, balas já atingiram dois apartamentos de um edifício residencial.
Uma das moradoras contou que acabou de localizar uma bala cravada na parede.
Segundo os moradores, o clima é de terror, pela segunda noite consecutiva, e
ninguém está conseguindo dormir.
É possível perceber aqui a ausência de menções às balas que podem ter
atingido residências no interior da favela, onde, de fato, ocorria o tiroteio. Relata-se a
angústia vivenciada pelos moradores da vizinhança, porém há um silêncio sobre a
situação dos moradores residentes na favela.
Outra reportagem, sobre um acontecimento recente, muito divulgado pela
mídia, também no município do Rio de Janeiro, extraída da mesma fonte45,
publicada em 17 de outubro de 2009, por Ana Claudia Costa, Edilane Merola, Flavia
Lima e Jacqueline Costa, do Globo, e Ana Paula Vianna, Marcelle Carvalho, Marcos
Nunes e Mariana Muller, do ExtraCBN possui as mesmas características, no que se
refere ao modo de conceber as população residentes em favelas, e aquelas
residentes no “asfalto”. Esta possui o seguinte texto:
Doze pessoas morreram - sendo dez bandidos e dois policiais - durante um intenso
tiroteio no Morro dos Macacos, que começou na madrugada, estendeu-se por toda a
manhã deste sábado e continua causando pânico em moradores de Vila Isabel, do
Grajaú e de outros bairros próximos. Os tiros atingiram uma escola municipal e
provocaram curto-circuito e incêndio em duas salas. À tarde, o clima de guerra se
espalhou pela cidade e oito ônibus foram incendiados em várias comunidades. Até o
momento, três pessoas foram presas.
44
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/11/18/balas-atingem-predio-na-vizinhanca-de-favela-natijuca-914812570.asp>. Acesso em: 20 dez. 2009.
45
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/10/17/tiroteio-no-morro-dos-macacos-leva-panicomoradores-de-vila-isabel-grajau-derruba-helicoptero-da-pm-768099949.asp>. Acesso em: 20 dez. 2009.
52
Estas reportagens, assim, são apenas algumas entre muitas outras que
podem ser referidas aqui, que refletem o modo como as favelas – cortiços da
contemporaneidade46 – são encaradas: como áreas de risco apenas para a
população que habita em seu entorno, e não para os próprios moradores das
favelas; estes só podem ser os algozes, ou seja, aqueles que se deve temer e, em
consequência, os que se deve combater.
Esta concepção de risco tem ainda outro aspecto, como lembra Pereira
(2008, s.p. – grifo nosso), segundo o qual
a inserção de jovens pobres na criminalidade passa a ser para a sociedade a
representação da “classe perigosa”, dos “locais de risco” habitados pelos pobres não
do risco para eles próprios, mas do perigo e consequente medo que ocupam no
imaginário da sociedade.
É segundo este raciocínio que se pode concluir, conforme indica Freire (2009,
p. 189) que ser morador de áreas pobres é um risco e, no que diz respeito à
influência da mídia nos processos de criminalização desta população, afirma que o
direito à vida “é reivindicado e denunciado na mídia só para grupos pertencentes às
classes mais privilegiadas, sobrando aos pobres o encarceramento ou o extermínio.”
Esta realidade, da mesma forma que no período imperial, é encarada e
tratada de forma semelhante pelo poder público, conforme destaca Freixo (2009,
s.p.). Segundo este autor, uma
prática que consolida a criminalização da pobreza é o mandado de busca genérico
ou coletivo. Contrariando a lei brasileira, estes não especificam endereços ou
pessoas, mas abrangem toda a comunidade. Este é o momento onde todos os
moradores são criminalizados pela polícia e pelo judiciário. Evidentemente estes
mandados são exclusivos para as favelas, consolidando assim o etiquetamento
penal dos setores mais pobres da sociedade. É verdade que a polícia sempre
invadiu as casas das favelas sem qualquer necessidade de mandado judicial. O que
assistimos, então, é a adequação da justiça à ação opressora da polícia sobre os
guetos. É a legitimação da ação ilegal e truculenta da polícia.
Hoje, pode-se perceber, então, um processo segundo o qual
os setores pobres e favelados do Rio de Janeiro se tornaram a nova classe
perigosa. Durante o regime militar, o discurso da segurança pública se voltava para
a ameaça comunista, subversiva. No decorrer da década de noventa verificamos um
46
Ao retratar o final do século XIX, Chalhoub (op. cit., p. 17) menciona: "com efeito, trata-se de algo
inesquecível: nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio já entrava no século das
favelas." Isto se configura como mais um exemplo do processo de continuidade nas rupturas que marca
fortemente a história do Brasil.
53
forte processo de criminalização dos setores que sobraram da sociedade de
47
mercado. (Freixo, s.d., s. p.)
Retomando rapidamente o pensamento de Chalhoub sobre o momento
vivenciado no Rio de Janeiro sob o governo de Barata Ribeiro, é interessante
destacar também a participação da imprensa nesse processo desde aquele período,
quando o próprio Jornal do Brasil destacou-se como parte do ideário que justificou e
mesmo legitimou a demolição de vários cortiços, mas sobretudo o mais famoso, já
mencionado anteriormente, o Cabeça de Porco. É neste sentido que o autor relata:
A moral da história do JB é que Barata Ribeiro, homem pequeno e magricela, devia
ser um Hércules dos 'novos tempos', e sua missão era purificar a cidade, livrando-a
definitivamente daquele 'mundo de imundície' [...] Mas e a aclamação da imprensa,
com suas metáforas de guerra e de masculinidade, e seu regozijo na eliminação de
um 'outro' tão unanimemente indesejado? (1996, p. 19 - grifos do autor)
É assim que, como afirma Malaguti Batista (2003, p. 52-53), “no Brasil, a
difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar
estratégias de neutralização e disciplinamento planejado do povo brasileiro [...] O
medo é a porta de entrada para políticas genocidas de controle social”.
Apesar de estarmos tratando aqui sobretudo do início da construção do
conceito de classes perigosas no Brasil e, por isto, focarmos a discussão no período
de finais do século XIX, início do século XX, traçando um paralelo com os dias
atuais, é fundamental ter em mente o fato de que, se refletirmos sobre as décadas
de 1950 - 1980, veremos que houve um novo processo de intensificação da
ocupação e, em decorrência disto, do aumento de favelas no Rio de Janeiro – assim
como ocorreu em outros grandes centros do país – com a intensificação da
migração das pessoas que moravam nas áreas rurais para as cidades à procura de
melhores condições de vida, num momento em que se vivia uma euforia e otimismo
que, conforme lembra Rolim (2007), recolocavam para políticos, intelectuais e para a
sociedade em geral, as questões da construção de um Estado moderno no Brasil.
Este período, portanto, marcou-se pelo desenvolvimento de novas políticas de
“limpeza da cidade”, como a construção do Conjunto Habitacional Cidade de Deus,
na década de 1960, que tinha por objetivo remover as pessoas que ocupavam
favelas para conjuntos habitacionais distantes do centro. Não por acaso, como
47
Disponível em: <http://www.pagupsol.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id= 15&Itemid=30>.
Acesso em 12 dez. 2009.
54
estamos buscando demonstrar aqui, a partir de 1953, de acordo com Zuenir Ventura
(1994, p. 20 apud ROLIM, op. cit., s.p.), “a percepção da violência urbana começou
a se fazer sentir com mais destaque na imprensa”. Ora, percebemos que esta não
foi, então, a primeira vez que se buscou apresentar na imprensa os perigos da
violência urbana, mas se pode verificar que a mídia lançou mão daquele que acaba
sendo um de seus propósitos: a construção de ideários sociais que irão justificar
políticas como, neste caso, a da construção da Cidade de Deus, por exemplo;
políticas de segregação e controle social travestidas de políticas habitacionais ou
mesmo de combate à violência crescente.
Juntamente, portanto, como se pode perceber, com a elaboração deste tipo
de política segregacionista, sempre se buscou difundir este ideário do medo,
segundo o qual a “demonização da ‘ralé’ que se desvinculou do campo é inseparável
da criminalização da ‘multidão urbana’, a que vai se somar à patologização dos
escravos e de suas descendências” (MALAGUTI BATISTA, op. cit., p. 9)
A intervenção do Estado, desta forma, sobre as diferentes formas de
violência, numa perspectiva de controle social, é efetivada enquanto violência do
Estado sobre as classes subalternas como forma de controle, repressão e até
mesmo de extermínio, como vimos48. Neste sentido, pode-se verificar uma
tendência, não só no Brasil, mas de caráter mundial, à intolerância49, que passa pela
mídia, e provoca um inchaço do sistema penitenciário.
Não só através dos meios de comunicação verifica-se um amplo debate sobre
a questão da violência urbana, mas também na produção acadêmica50, e esta tem
48
Não se pode esquecer que este controle social se dava também de maneira mais sutil, porém não menos
eficaz, como ocorreu na entrada do século passado, quando, conforme nos recorda Neder (1994, p. 24), o
serviço militar obrigatório – antes mesmo de instituir-se a educação básica obrigatória – passou a ser a “escola
da vida” onde “os filhos das classes subalternas passam por uma ressocialização”, sendo esta a “escola”
possível para uma massa de ex-escravos “biologicamente inferiores”.
49
O programa “Tolerância Zero”, levado a cabo pelo governo dos Estados Unidos da América e copiado por
governos em vários outros países é um exemplo de uma orientação, ou mais, um “projeto político”
(WACQUANT, 2007, p. 18) que “permite efetuar uma ‘limpeza de classe’ no espaço público, afastando o
pobres ameaçadores à ordem (ou percebidos como tais) das ruas, dos parques, dos trens etc,” (id., 2003,
s.p.). No Rio de Janeiro, quando se coloca na ordem do dia um projeto como o “Choque de Ordem”, no
governo do prefeito Eduardo Paes, não é por mera coincidência.
50
Uma variedade de estudos têm sobre as diferentes expressões da violência elaborados, como se pode
verificar no âmbito da produção acadêmica que apresenta interfaces com o Serviço Social, como aponta Silva
(2008, p. 266). Pode-se indicar os seguintes eixos de análise da categoria violência nos estudos de Serviço
Social realizados no período que vai do ano 2000 a 2007, padronizados e sistematizados pelo o autor da
seguinte forma: violência e gênero – 20,10%; violência, Estado, violação de direitos e questão urbana –
19,59%; violência doméstica – 14,43%; violência, juventude, criminalidade e drogadição – 12,37%; violência e
relações familiares – 8,25%; violência sexual – 8,25%; violência e instituição – 4,64%; violência e exercício
profissional do assistente social – 3,61%; violência e idosos – 3,61%; violência e educação – 2,58%; violência
55
suas origens na formação do país, marcada por uma história de criminalização da
pobreza, que perpassa, ou melhor, é alimentada por uma história de construção
ideológica do medo, que segundo Malaguti Batista (2003, p. 23), difundida pela
hegemonia conservadora, tem como motivação induzir e justificar políticas
autoritárias de controle social, desde o período de colonização, tornando o medo
“fator de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico, político ou
social”.
Além disso, quando se reflete sobre a violência nos dias atuais – e, como
veremos, políticas penais – não se pode deixar de pensar a realidade do tráfico de
drogas, que justifica, hoje, grande parte das políticas de repressão, mas, por um
outro lado, que é mantida e sustentada pelo grande capital51. E estas políticas de
repressão se traduzem, como nos mostra a grande mídia, diariamente, em genocídio
e encarceramento, como forma de controle social.
Retomaremos esta questão à frente, porém ainda antes de entrarmos na
reflexão sobre o sistema penal, se faz necessário retomar o debate sobre a
violência. De acordo com Malaguti Batista (id., p. 38), “a violência é um elemento
constitutivo da realidade social brasileira”, tendo o liberalismo aqui chegado em
consonância com o autoritarismo. De acordo com Fernandes (1976, p. 32),
a natureza e o alcance revolucionários da Independência [e, como nos mostra a
história, dos outros decisivos movimentos, como o fim da escravidão e a
Proclamação da República] não se objetivaram através de manifestações de
grandes massas [...] Objetivaram-se, porém, na obstinação e eficácia com que
aquelas elites se empenharam na consecução de fins políticos.
Isto significa que, historicamente, quem dispunha dos meios para fazer
história e alterar o “rumo normal das coisas” (id., p. 153) eram os estratos sociais
privilegiados e dominantes; sendo assim, a massa da população (e aqui queremos
destacar que esta população, mesmo pelo próprio desenvolvimento social e
e religião – 1,03%; violência estrutural-econômica – 1,03%; violência e meios de comunicação de massa –
0,51%.
51
Malaguti Batista (2003, p.83) lembra que os lucros extraídos do comércio ilícito passam a fazer parte do
comércio lícito e institucional. O maior exemplo disso, segundo a mesma, é o comércio da cocaína, mercadoria
altamente valorizada que tem na manutenção de sua ilegalidade o aumento de sua lucratividade. Segundo a
mesma, a própria política de repressão acaba dinamizando esses circuitos econômicos, e a “economia de
mercado funciona perfeitamente para o lucro dos fornecedores que controlam o tráfico de drogas proibidas.” O
capital financeiro internacional, hegemônico nos últimos tempos, revigora-se com os “narcodólares” a partir da
crise dos “petrodólares” e assim tem-se uma “simbiose” entre capital de origem lícita e capital de origem ilícita.
D’Ellia Filho (2007, p. 25) acrescenta: “a atual política criminal de ‘combate’ às drogas, longe de eliminar o
comércio das substâncias consideradas entorpecentes, acaba por reforçar e concentrar o grande negócio nas
mãos dos grandes grupos econômicos e financeiros”.
56
econômico do país, é pobre e, em sua grande maioria, negra) é vítima de “uma
modernidade exterminadora e segregadora, cuja dinâmica tenta destruir as redes de
solidariedade tão cuidadosamente mantidas em séculos de colonização e barbárie”
(MALAGUTI BATISTA, 2003, p. 40). Estes sujeitos contrapõem-se às classes
burguesas, aquelas detentoras do poder de “fazer a história”, como vimos, sendo por
elas percebidos, de acordo com Fernandes (op. cit.) em função de uma estreita
alternativa: ou meros tutelados ou inimigos irreconciliáveis. A segunda opção
aparece, nos dias atuais, como mais convincente, na medida em que o inimigo é
bem fácil de ser identificado: é pobre, jovem, negro.
A fim de partir para uma reflexão mais especificamente sobre o sistema penal
é preciso identificar a população que se encontra como parte (ou vítima)52 deste
aparato repressivo do Estado.
Ainda de acordo com Malaguti Batista (2003, p. 36), de acordo com o que
havíamos mencionado, há um estereótipo53 do bandido que se constitui
na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de
drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de
poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que
o circunda.
E é nesse “outro” assustador – como lembra esta mesma autora (ibid., p. 10),
“uma massa enxameada e sem rosto de marginais de pele escura” – que, ontem
como hoje, se irá desatar a violência física e simbólica concentrada do Estado .
Os criminosos autuados e presos pela conduta descrita como tráfico de
drogas, de acordo com D’Ellia Filho (2007, p. 11), como relata a partir de sua
experiência de pouco mais de seis anos como delegado de polícia no Rio de
Janeiro, “são constituídos por homens e mulheres extremamente pobres, com baixa
52
Quando utilizamos o termo “vítima”, gostaríamos de esclarecer que estamos nos referindo a esta população
enquanto parte dos processos de criminalização da miséria, já mencionados, típicos do sistema capitalista de
produção, o que os torna vulneráveis, em virtude, sobretudo da dificuldade de acesso aos direitos sociais.
Assim, ressaltamos que o uso deste termo não deve levar a uma interpretação que relegitime posicionamentos
positivistas ou idealistas sobre a população em questão, em que se aceitaria uma concepção ontológica do
delito e etiológica da criminalidade atribuída, exclusivamente, à pobreza, à miséria etc., como nos lembra
Zaffaroni (1991, p. 51). Segundo este autor, este tipo de interpretação implica “a construção de um círculo
fechado, pois supõe-se que, suprimidas a pobreza e outras ‘causas’ semelhantes, o delito que subsistir
derivará de livre decisão do autor, relegitimando-se, assim, um direito penal retributivo.”
É importante mencionar, não cabendo aqui uma avaliação crítica sobre a proposta, apenas a título de
curiosidade, que Lola Aniyar de Castro (2007), autora de destaque nos anos 1980, com a proposta da
“Criminologia da Libertação”, nos fala de uma “vitimologia”, que trataria das vítimas das leis e das vítimas das
instituições, que deve ser necessariamente parte do campo de investigação da criminologia, integrada à
mesma, ao considerar-se sobretudo a proposta de garantia dos direitos humanos.
53
É importante ressaltar que a autora trata especificamente da cidade do Rio de Janeiro.
57
escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos com drogas sem portar
nenhuma arma.” E são esses os apontados como os principais agentes da violência
urbana, sobretudo pela mídia, um dos mais importantes instrumentos sociais, no
sentido de produzir esquemas de significação e interpretação do mundo (cf. Freire,
2009), que tem um papel fundamental na construção de ideia acima apresentada
através de seus discursos e denúncias-notícias, das classes ou sujeitos
estereotipados como “bandidos” ou “perigosos”.
É desta forma que “aos poucos, a imprensa procura formar uma opinião
favorável a uma intervenção policial e militar de grandes proporções em áreas
pobres” (id, p. 4) e não só a este tipo de intervenção mais localizada, mas também
acaba por fundar concepções que dão origem a discursos em defesa à redução da
maioridade penal, penas mais severas etc. (estes discursos, ressaltamos, tendem a
surgir a partir de crimes cometidos contra classes média e alta e sobretudo quando
os que praticam o ato são de classes mais baixas).54
É bom lembrar que, nas periferias, o usuário se confunde com o “traficante” (o
usuário proveniente das periferias tem, normalmente, que trabalhar para o tráfico
para pagar pelo seu uso), enquanto os jovens das denominadas classes média e
alta não necessitam ingressar no tráfico – e, normalmente nunca se enquadram na
categoria “traficante” ao serem pegos com drogas.
Desta forma, constata-se que a criminalização e a punição dependem do
lugar social ocupado pelo infrator, sendo possível verificar os diferentes modos como
são tratados os jovens provenientes de áreas pobres e os de áreas nobres, no caso
da cidade do Rio de Janeiro, no próprio sítio da Secretaria de Segurança do governo
do Estado do Rio de Janeiro55. Em um dos projetos implantados “para combater
irregularidades em eventos noturnos realizados no território fluminense”, o “Noite
Legal”, foi realizada uma ação em quatro boates da Zona Sul, conforme noticia o
sítio, nas quais foram encontradas várias irregularidades, tais como: “problemas
54
Veja-se o modo como se deu o tratamento dos jovens que participaram da morte do menino João Helio, em 07
de fevereiro de 2007, e aqueles que participaram da agressão da empregada doméstica na Barra da Tijuca/RJ,
em 23 de junho de 2007. Enquanto os primeiros, com exceção do menor, foram condenados, em 30 de janeiro
de 2008, a prisão (com sentenças de prisão diferenciadas) em regime fechado de 39 a 45 anos de reclusão
(fonte:<http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/01/30/materia.2008-01-30.9282512482/vi ew>, acesso
em: 19 nov. 2008), dos que agrediram a empregada doméstica, apenas dois tiveram pena fixada em regime
inicial fechado, os outros três foram condenados a prisão em regime inicial semi-aberto e pagamento de
multa. (Fonte: <http://www.jusbrasil.com.br/ noticias/50433/justica-condena-jovens-acusados-de-roubar-eagredir-domestica-na-barra>. Acesso em 19 nov. 2008).
55
Disponível em: <http://www.seguranca.rj.gov.br/>. Acesso em: 27 fev. 2010.
58
como alimentos estragados, uso irregular de área pública e cobrança indevida de
consumação mínima”. Algumas destas boates foram notificadas pelo PROCON (é
bom recordar que este é um projeto da Secretaria de Segurança do Estado).
No mesmo sítio, porém, ao mencionar os bailes funk, eventos realizados em
favelas cariocas, lembra a importância da lei estadual 5.265, de autoria do exdeputado estadual Álvaro Lins, para o fortalecimento do mesmo projeto – “Noite
Legal” – pois estabelece várias regras para se obter uma autorização para a
realização de um baile funk, tais como: pedir autorização com 30 dias de
antecedência; ter comprovante de tratamento acústico; ter câmeras no local; ter
comprovante de instalação de detectores de metal; ter nada consta da Delegacia
Policial, do Batalhão de Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e do Juizado de
Menores da área.
Comentando a proibição de bailes funks em várias áreas do Rio de Janeiro, o
MC Leonardo, presidente da APAFunk (Associação dos Profissionais e Amigos do
Funk), em entrevista ao sítio da rede Globo56, afirma o seguinte: a proibição vai abrir
uma lacuna na cultura da sociedade, sobretudo nas comunidades. Em suas
palavras, “o funk cabe no bolso delas. O que essa molecada vai fazer? Quando os
brigões da Zona Sul começaram a se pegar nas boates, rapidamente tomaram uma
providência, mas ninguém proibiu as boates.”
Neder (1997) recorda a repressão da polícia, no período entre 1890 e 1900,
primeira década do regime republicano, à prática da capoeiragem, o que leva, mais
uma vez, à comprovação de que, no Brasil, as rupturas sempre vieram
acompanhadas de permanências e continuidades, a partir de um processo de
modernização conservadora57, que sempre acompanhou a história brasileira.
Também se pode perceber, no modo como são denominados os
“contraventores”, as diferenças de tratamento entre aqueles provenientes das áreas
pobres, e os provenientes de áreas nobres. Um exemplo disso é o fato de ser raro
encontrar na mídia a denominação “suspeitos” ou “condenados” referindo-se a
jovens pertencentes aos grupos da população com maiores rendas, enquanto, por
sua vez, aqueles provenientes de áreas pobres raramente são denominados jovens.
56
Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1227775-5606,00-POLICIA+VAI+PROIBIR+BAILES+
FUNK+EM+LOCAIS+DE+MAIOR+VIOLENCIA+NO+RIO.html> Acesso em: 27 fev. 2010.
57
Cf. nota 40.
59
Ainda nesta linha de argumentação, Freire (2009) também nos recorda que
em vários noticiários sobre o envolvimento de jovens de classe média que se
envolvem com o crime pode-se verificar uma justificativa que se pauta em uma “crise
da família” ou então à “dependência química” e até mesmo à influência
(culpabilização) da população de áreas consideradas perigosas, “deixando
subentendido aos pais o perigo representado, inclusive pela possibilidade de
cooptação de seus filhos e filhas para a prática de atos criminosos.” (Id., p. 187).
Ora, não há aí então uma reedição do que se verificou no Brasil Imperial,
como destacou Chalhoub, conforme as citações abaixo?
As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas
porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a
manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contágio.
Por um lado, o próprio perigo social representado pelos pobres aparecia no
imaginário político brasileiro de fins do século XIX através da metáfora da doença
contagiosa: as classes perigosas continuariam a se reproduzir enquanto as crianças
pobres permanecessem expostas aos vícios de seus pais. (CHALHOUB, op. cit.,
p.29)
E, ainda:
E houve então o diagnóstico de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos
à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de
epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de
todos os tipos. (op. cit., p.29)
Por isso se deve cuidar para que seus filhos não subam à favela, pois isto só
poderia – claro, quando não aponta a tentativa, normalmente realizada por meio de
organizações não-governamentais, de levar “cidadania” à favela – indicar o
envolvimento com o mundo do crime, ou melhor, a busca por manter um vício, o
que, quando se trata deste jovem, não significará tráfico, apenas “compra para uso”
(recorde-se da diferença apontada anteriormente entre o traficante e o usuário).
Chauí (2006, p. 117 apud FREIRE, 2009, p. 189) nos adverte, neste sentido,
sobre “como a mídia, ao identificar socialmente a violência como obra do bandido,
mantém a separação entre ‘nós, brasileiros de bem’, e ‘eles’, reforçando a idéia de
que a violência se localiza em determinados grupos sociais.” Assim é que, segundo
Freire (id., p. 189), “o direito a vida é reivindicado e denunciado na mídia só para
grupos pertencentes às classes mais privilegiadas, sobrando aos pobres o
cerceamento ou o extermínio.”
60
Cecília Coimbra, assim como o fez Malaguti Batista, traz em seu trabalho uma
importante contribuição sobre o papel da mídia para a construção das
subjetividades, inclusive – e será este aspecto o mais enfocado pela autora – no que
diz respeito à produção da imagem do crime, do criminoso e dos locais perigosos, o
que faz com que a criminalidade ocupe “‘um lugar desproporcionalmente alto na
percepção do público’ desviando a atenção dos inúmeros problemas que geram
essa própria criminalidade como ‘a distribuição de riquezas e a marginalidade
social.’” (BARATTA apud COIMBRA, 2001, p. 59)
Segundo a autora, “a mídia é atualmente um dos mais importantes
equipamentos sociais no sentido de produzir esquemas dominantes de significação
e interpretação do mundo” (id, p. 29) e o que Debord (1997) denomina “sociedade
do espetáculo” emergirá juntamente com o que este mesmo autor denomina
“sociedade do controle”.
Borges (2010, s.p.), refletindo sobre as intervenções militares ocorridas no Rio
de Janeiro no primeiro quadriênio da década de 1990, irá destacar, como um dado
de extrema relevância para o nosso estudo, que, ao tomar os índices divulgados
pela grande imprensa58, não houve aumento nos índices de crimes ocorridos na
cidade, para que se pudesse justificar estas intervenções. O fato, porém, da
imprensa divulgar estes dados em determinado momento, e focar em determinado
tipo de notícia, leva à construção de uma opinião favorável no que diz respeito às
políticas que se deseja implementar. Prova disto é o apoio dado pela população
carioca a estas intervenções naquele momento, mais curioso, sobretudo, por estar
vivendo um período de redemocratização.59 Neder (2009, s.p.) lembra, neste
sentido, que na transição política da ditadura militar para o Estado de Direito, o
Brasil teria conhecido uma experiência histórica de formulação e insitucionalização
da Constituição-Cidadã sem, porém, “alterar substancialmente o perfil autoritário e
excludente das instituições relacionadas à justiça criminal.”
Tem-se, ainda, para mencionar novamente um exemplo atual de como a
mídia desempenha um papel determinante, muitas vezes, na construção e
58
É importante lembrar que o autor denomina grande imprensa os principais jornais que circulavam na cidade do
Rio de Janeiro no período estudado pelo mesmo e que serão tomados como fontes de pesquisa no seu
trabalho: O Dia, O Globo, Jornal do Brasil.
59
Um outro destaque dado pelo autor no texto em questão se relaciona ao fato de o Exército só atuar, no Rio de
Janeiro, contra uma parte da população – dos morros e das favelas e, além disso, para combater crimes, o
que estaria ligado à criminalização de determinado segmento da população.
61
legitimação de políticas, uma reportagem, publicada em 12 de agosto de 200960, por
Carla Rocha, Fábio Vasconcelos, Selma Schmidt e Vera Araújo, que remete a um
exemplo emblemático deste processo, com o título: “Democracia nas favelas. Além
das fronteiras: vizinhanças de comunidades pacificadas atraem indústrias e
moradores”.
Apesar de o texto da reportagem ser um pouco longo, é interessante
transcrevê-lo integralmente aqui, para demonstrar como se constroem e são
legitimadas pela mídia as políticas formuladas no sentido de desempenhar um
controle social sobre a população das favelas.
RIO - A imagem de janelas blindadas num apartamento com fundos para o Morro
Santa Marta, em Botafogo, é o símbolo do que era a delicada relação entre asfalto e
favelas, onde a presença do poder paralelo levava a constantes tiroteios. A
instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), porém, provoca aos poucos
um "efeito borboleta" na região, ou seja, mudanças e benefícios para além das
fronteiras das comunidades ocupadas. O aumento da sensação de segurança em
Botafogo fez crescer em 30% a procura por imóveis de classe média na vizinhança
do Santa Marta.
Para atrair nova clientela, corretores usam a imagem da "comunidade pacificada".
Em Jacarepaguá, que amargou a saída de indústrias por causa dos episódios de
violência na Cidade de Deus, vislumbra-se a chegada de empresas do ramo
farmacêutico e a implantação de uma fábrica de cosméticos.
Na análise do presidente da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis
(Abadi), Pedro Carsalade, compradores em potencial que não admitiam nem dar
uma olhadinha num apartamento de frente para a "comunidade" - como as favelas
são tratadas nos anúncios de jornal - agora já aceitam tal possibilidade. O presidente
da Abadi lembra que em Botafogo, nos últimos meses, houve poucos lançamentos,
o que acaba elevando o valor dos imóveis, por conta da lei da oferta e da procura:
- Por isso, aqueles que não podem pagar muito caro por um apartamento em
Botafogo têm como solução os imóveis com fundos para o Santa Marta, de preços
mais em conta.
Os moradores do condomínio Promenade, na Rua São Clemente, que dá fundos
para o Santa Marta, sofreram com a vizinhança nos últimos anos. A cobertura do
prédio tem placas de aço blindado na fachada, mas agora os moradores estão
entusiasmados com a ocupação do morro. Apesar disso, ninguém quer aparecer,
porque, no passado, traficantes determinaram várias vezes que moradores não
fizessem fotos ou deixassem qualquer pessoa usar suas janelas para registrar
imagens da favela.
Diante da nova realidade, o prefeito Eduardo Paes decidiu que é hora de retirar o
vidro blindado da janela de seu gabinete, no Palácio da Cidade, voltada para o
morro. O vidro foi colocado há dez anos, para evitar balas perdidas.
" Agora, posso inclusive trabalhar de janela aberta " diz Paes.
Ele revela que até os serviços públicos melhoraram no entorno de favelas com
UPPs. A Praça Corumbá, no acesso ao Santa Marta, passou a ser mais bem
cuidada, já que a presença de servidores públicos ficou mais fácil. Para Paes, houve
valorização e requalificação da área.
Já o vice-presidente de Assuntos Condominiais do Sindicato da Habitação (Secovi
Rio), Leonardo Schneider, concorda com o presidente da Abadi. Mas ele diz que
ainda é cedo para fazer um prognóstico da valorização dos imóveis:
- As pessoas já podem transitar no entorno dessas comunidades sem risco de bala
perdida. Os corretores mostram um apartamento em Botafogo e exploram bem essa
imagem.
No Leme, hotel vai ser reinaugurado
60
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/08/11/alem-das-fronteiras-vizinhancas-de-comunidadespacificadas-atraem-industrias-moradores-757363130.asp>. Acesso em: 18 dez. 2009.
62
Morador do Leme e gerente de Marketing da rede Windsor de hotéis - que comprou
o Méridien -, Paulo Marcos Ribeiro está duplamente otimista. Para ele, a pacificação
valoriza a região. Tanto é que, em um ano, ele vai reinaugurar o hotel.
Mas há os que preferem a cautela e querem ficar neutros, sem dar opiniões a
respeito dos efeitos no asfalto das comunidades pacificadas. Caso do Leme Tênis
Clube, na Rua Gustavo Sampaio, e do frei Antônio Lacerda, da Igreja Nossa
Senhora do Rosário, na Rua General Ribeiro da Costa, que tem uma filial no
Chapéu Mangueira.
Na Zona Oeste, cercado pelo Campo de Gericinó, do Exército, e pelas comunidades
do Fumacê e Vila Vintém, até hoje controladas por traficantes, o Jardim Batam virou
um oásis de tranquilidade. Ter um imóvel na favela passou a ser o sonho de
consumo de vizinhos. Morador do Fumacê, C. conta que antes os traficantes do
Batam não permitiam visitas de moradores de outras favelas. Mas, desde a
inauguração da UPP, ele passou a frequentar o local para soltar pipa, conversar com
os amigos e participar de orações. A tranquilidade da favela vizinha virou objeto de
desejo:
- Nossos amigos do Batam vivem uma realidade que pressentimos estar bem perto
de nós.
Esta reportagem descreve a atual política que vem sendo realizada pelo
Governo do Estado do Rio de Janeiro, de “Pacificação de Favelas”, que engloba a
proposta de uma “Polícia Pacificadora”.
No sítio oficial da UPP – Unidades de
Polícia Pacificadora, pode-se encontrar a seguinte descrição das mesmas: “Hoje, as
UPPs representam uma importante ‘arma’ do Governo do Estado do Rio e da
Secretaria de Segurança para recuperar territórios perdidos para o tráfico e levar a
inclusão social à parcela mais carente da população.”61 Lê-se, ainda, no referido
sítio: “Criadas pela atual gestão da secretaria de Estado de Segurança, as UPPs
trabalham com os princípios da Polícia Comunitária. A Polícia Comunitária é um
conceito e uma estratégia fundamentada na parceria entre a população e as
instituições da área de segurança pública. O governo do Rio está investindo R$ 15
milhões na qualificação da Academia de Polícia para que, até 2016, sejam formados
cerca de 60 mil policiais no Estado. Até o fim de 2010, 3,5 mil novos policiais serão
destinados às Unidades Pacificadoras.”
Uma outra reportagem – também um pouco extensa, porém reveladora da
realidade que buscamos retratar aqui – sob o título “Sob vigilância mundial, Rio se
concentra em segurança”, esta retirada do New York Times e apresentada também
no sítio da rede Globo62, apresenta os planos de ação das UPPs para a Copa do
Brasil de 2014.
RIO DE JANEIRO — A polícia irá invadir 40 das favelas mais violentas da cidade
61
Disponível em: <http://upprj.com/wp/?page_id=20>. Acesso em: 16 jan. 2009.
62
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/reporterdecrime/posts/2010/01/19/deu-no-new-yorktimes-policia-de-pacificacao-de-favelas-258946.asp>. Acesso em: 01 mar. 2010.
63
antes da Copa do Mundo de 2014 ser sediada no Brasil, com o objetivo de
estabelecer uma presença policial permanente em comunidades agora controladas
por facções narcotraficantes muito bem armadas, afirmaram autoridades do Estado
do Rio.
Os planos incluem a ocupação da Rocinha, uma das maiores e mais fortificadas
favelas da cidade, no que especialistas em crime locais dizem poder se tornar uma
enorme e sangrenta batalha que definirá os esforços da cidade em expulsar grupos
traficantes que tomam conta da cidade há três décadas.
A campanha é uma expansão do "programa de pacificação" da polícia, que teve
início no final de 2008. Ela entra em vigor conforme as autoridades brasileiras
sentem o peso do escrutínio internacional depois que o país foi escolhido para
sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
As forças policiais, principalmente, têm lidado com alguns retrocessos embaraçosos.
Em outubro, duas semanas depois que o Rio conquistou os Jogos Olímpicos, um fim
de semana de confrontos sangrentos entre facções rivais deixou 12 mortos,
incluindo dois policiais assassinados quando narcotraficantes derrubaram seu
helicóptero com armas de calibre pesado. Além disso, o corpo de um jovem foi
encontrado dentro de um carrinho de supermercado em uma rua movimentada.
No mês passado, o grupo de direitos humanos Human Rights Watch divulgou um
extenso relatório que detalha a história das execuções extrajudiciais da polícia do
Rio. O relatório afirma que uma porção significativa das 2,467 mortes por
"resistência" no Estado do Rio em 2007 e 2008 foram ilegais e que raramente os
assassinos foram levados à justiça.
Especialistas em direitos humanos afirmam temer que as invasões policiais
planejadas resultem em ainda mais mortes executadas pela polícia.
"O Rio precisa encontrar uma maneira de controlar não apenas suas gangues
violentas, mas também sua polícia", disse Daniel Wilkinson, vice-diretor do Human
Rights Watch para as Américas. Se tentar fazer um sem o outro, então este
programa de pacificação certamente irá resultar no derramamento de sangue."
A polícia diz que o programa de pacificação busca levar ordem para as favelas que
circundam as áreas mais ricas no sul e oeste da cidade, onde a maioria das
competições Olímpicas será sediada.
Narcotraficantes fortemente armados controlam centenas de bairros do Rio e são
amplamente responsáveis pela região metropolitana ter um dos índices de
assassinato mais altos do hemisfério, em quase 35 para cada 100 mil moradores.
Autoridades do Estado do Rio dizem estar concentrando seus esforços nas favelas
nas quais as gangues têm armas mais perigosas, o que permite que aterrorizem os
moradores e evitem incursões policiais.
"Estas 40 favelas que nós escolhemos são os braços, pernas, tronco e cérebro do
tráfico de drogas no Rio de Janeiro", disse Dirceu Silviana, porta-voz da Secretaria
de Segurança Pública, que supervisiona a polícia do Rio. "Mas o objetivo central não
é o tráfico de drogas, é acabar com as armas de guerra"
As autoridades do Rio dizem que eventualmente ampliarão o programa para 100
favelas, mas não sabem dizer ao certo quando isso acontecerá. Durante os
próximos quatro anos, pelo menos, o plano é ocupar em média 10 comunidades por
ano.
As autoridades do Rio dizem que parte da campanha será para tentar reduzir a
mortalidade policial e que oficiais que escolherem trabalhar nas favelas receberão
treinamento especial em direitos humanos e gratificações que quase dobram o
salário policial de cerca de US$ 620 por mês.
Desde o início do programa em novembro de 2008, a polícia do Rio tomou mais de
nove comunidades que somam aproximadamente 120 mil moradores, disseram as
autoridades. Esta é apenas uma pequena porção das cerca de 600 favelas que têm
problemas sérios com o tráfico de drogas e facções traficantes; as favelas têm cerca
de um milhão de pessoas, afirmam as autoridades cariocas.
O programa envolve a colocação de um grande contingente policial em uma área de
favela de forma permanente para interagir com os moradores e impedir que os
narcotraficantes voltem a ocupar a região e ajam como um "poder paralelo", disse
Sérgio Cabral, governador do Estado do Rio. (por Fabrizia Granatieri)
E, na mesma página, continua abaixo a reportagem, sob o título “Morador
passa próximo a carro da PM no acesso ao Morro Santa Marta”:
64
Depois que ocupa uma favela, a polícia controla sua segurança por tempo integral,
evitando a necessidade da invasão destas áreas por esquadrões de elite do Rio, que
geralmente fazem incursões violentas para apreender narcotraficantes ou conter
invasões de facções rivais.
Até agora a "pacificação" foi instalada em favelas pequenas, como a Santa Marta,
que tem aproximadamente 6 mil moradores.
"Os relatos que eu recebi de pessoas que foram libertadas deste 'poder paralelo' são
incríveis", disse Cabral. "'Agora nós estamos livres do terrorismo', elas me dizem.
'Finalmente, governador, eu posso dormir à noite'".
Silviana, o porta-voz da segurança pública, afirmou: "O momento e a decisão sobre
quais favelas iremos ocupar depende da nossa capacidade de treinar novos
policiais. Cada ocupação é uma experiência de aprendizagem".
As autoridades cariocas estão acrescentando 3.300 policiais este ano e pelo menos
4 mil outros até 2011 à força policial de 45 mil do Rio de Janeiro. Quase todos os
agentes novos serão empregados como pacificadores nas favelas, disse Silviana.
Agentes policiais do Rio de Janeiro estão entre os mais mau remunerados do Brasil,
com alguns vendedores de drogas das favelas ganhando mais do que os novos
agentes, de acordo com o grupo Human Rights Watch. O governo federal prometeu
dobrar os salários dos policiais do Rio até os Jogos Olímpicos de 2016.
Sob o aumento da vigilância internacional, Cabral também pediu recentemente ajuda
ao ex-prefeito de Nova York, Rudolph W. Giuliani. "Nós estamos discutindo a
possibilidade de Giuliani se tornar consultor do Rio para assuntos de segurança",
63
disse Cabral.
Expulsar os narcotraficantes exigirá batalhas que podem atingir áreas mais ricas da
Zona Sul do Rio, que atraem a maioria dos turistas internacionais para a cidade.
No mês passado, durante o segundo dia da ocupação das favelas PavãoPavãozinho e Cantagalo, narcotraficantes responderam com uma série de ataques
terroristas em Copacabana e Lagoa, forçando a polícia a enviar reforços. Um ônibus
foi queimado e granadas detonadas em áreas ocupadas dos bairros, inclusive na
Avenida Atlântica, de acordo com reportagens do jornal carioca O Dia.
A ocupação da Rocinha e de Vidigal perto dali, que junto têm cerca de 100 mil
moradores, será um desafio muito maior. A Rocinha fica no alto de um morro que
circunda áreas críticas como a Zona de Sul, São Conrado e Barra da Tijuca. É uma
fortaleza natural sob o controle de uma facção narcotraficantes poderosa.
"As logísticas são muito ruins", disse Silviana.
(Por Alexei Barrionuevo)
É importante não deixar de mencionar aqui, conforme referido nas
reportagens acima, o fato de a primeira favela a ser pacificada no Rio de Janeiro, em
dezembro de 2008 – o Morro Santa Marta – estar localizada num Bairro da Zona
Sul, o bairro Botafogo, onde agora, finalmente, a população pode sentir-se segura.
Uma reportagem, de 09 de dezembro de 2009, de Marília Gonçalves e Vitor
Castro, com um cunho um pouco mais crítico a este tipo de política pode ser
encontrada no sítio da ONG “Observatório de Favelas”64, sob o título “Pacificação
em favelas”.
63
Não se pode deixar de recordar que o ex-prefeito de Nova York, mencionado na reportagem, Giuliani, foi quem
inaugurou a política de “tolerância zero“ naquela cidade. De acordo com Wacquant (1999), “esta política
permite efetuar uma ‘limpeza de classe’ no espaço público, afastando os pobres ameaçadores à ordem (ou
percebidos como tais) das ruas, dos parques, dos trens, etc. Para aplicá-la, o Chefe de polícia transformou sua
administração em verdadeira ‘empresa de segurança’ com a contratação de 12.000 agentes a mais, atingindo
um total de 48.000 empregados, cifra esta que vale comparar com a dos 13.000 empregados dos serviços
sociais da cidade depois do corte de 30%.”
64
Disponível em: <http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?
id_content=704>. Acesso em 01 mar. 2010.
65
Na última semana, a polícia iniciou a ocupação de mais duas favelas no Rio de
Janeiro. Desta vez, Pavão-Pavãozinho e Cantagalo são os alvos do governo
estadual para receberem a chamada UPP – Unidade de Polícia Pacificadora. Já são
quatro UPPs instaladas no Rio – nas favelas do Batam, Dona Marta, Chapéu
Mangueira e Cidade de Deus – e foi a primeira vez que a polícia encontrou
resistência dos traficantes. Na tarde do dia primeiro, um ônibus foi incendiado em
Copacabana,
supostamente
como
resultado
da
ação
policial.
No projeto de ocupação de favelas, notadamente foi dada preferência às da Zona
Sul da cidade. Segundo o comandante geral da Polícia Militar, Mário Sérgio Duarte,
era preciso pacificar as favelas da Zona Sul, por ser uma “área turística”. A ideia é
formar o “cinturão de segurança turístico”, que inclui as favelas de Santa Marta,
Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, Morro dos Cabritos, Rocinha
e Vidigal. A previsão é que se pacifique a Ladeira dos Tabajaras e o Morro dos
Cabritos ainda em 2009, faltando apenas a Rocinha e o Vidigal para fechar o
“cinturão”.
Além de área turística, tem-se dado ênfase à valorização dos imóveis nas favelas e
nos bairros próximos, causada pela “pacificação”. Segundo o jornal O Globo, a
valorização de uma casa no Santa Marta chegou a 400%. Um corretor que
trabalhava em Botafogo, por exemplo, hoje pode expandir seus negócios ao morro.
Além disso, um apartamento que custava R$60 mil em Botafogo custaria hoje não
menos que R$90 mil.
O coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o
jornalista Itamar Silva pergunta: “o benefício é pra quem mesmo? O ganho imediato
dessas ocupações é pra classe média, para a população do entorno, pela questão
da especulação imobiliária”.
Para o professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj)
Luis Antônio Machado a preferência por áreas na Zona Sul do Rio é histórica e há
um certo sentido político na proposta. “É na Zona Sul onde se forma o imaginário
urbano no Rio, é onde estão os formadores de opinião, onde se tem a visibilidade da
mídia”, comenta. O professor afirma, no entanto, que as ações das UPPs são uma
continuidade da política de segurança pública do estado de confronto. “Eles usam a
lógica da guerra. Entram, limpam e depois colocam uma polícia pacificadora”,
afirma.
Já o secretário de segurança pública José Mariano Beltrame, em entrevista do jornal
O Globo, afirmou que foram criadas “condições necessárias para que a democracia
se desenvolva” nessas favelas. Itamar questiona essa intenção. “Acreditar que a
polícia é condutora da democracia é perigoso. A força policial já estava presente nas
favelas há mais tempo, e continua presente em outras comunidades. Portanto, ao
afirmar que esses policiais especialmente formados para as UPPs levam a
democracia, estamos dizendo que os outros não levam”, disse.
Itamar nasceu e cresceu no Santa Marta, onde vive até hoje. O que mudou na vida
da comunidade, segundo ele, é a ausência do traficante armado nas ruas. Por outro
lado, tudo se tornou questão de polícia. Sobre as ações policiais, Machado diz que é
preciso ter cuidado para que essas não se transformem em autoritarismo das forças
policiais, caso isso aconteça, “o que teremos é a saída do tráfico ou da milícia e a
entrada da polícia, para exercer o mesmo papel”, questiona.
Sobre a ação no Santa Marta, Itamar faz uma crítica à forma como está sendo
tratada a comunidade: “Tudo foi transformado em questão de polícia. A dinâmica
social da favela não pode estar subordinada a uma questão de polícia. Outras
políticas sociais precisam estar no mesmo patamar de importância. Do jeito que
está, a polícia não permite debate – o que ela diz é lei. A democracia pressupõe
debate numa esfera coletiva”. Essa crítica é recorrente. Machado diz que todo o
processo depende de como a polícia vai ocupar o espaço. “Como será a ação da
polícia que determina se a atividade vai ser melhor ou pior. E a atividade policial é
apenas uma das ações do poder público, que não pode vir sozinha”, explica.
Machado fala ainda que as UPPs se pretendem como políticas exemplares, porque
é impossível pensar em instalar unidades em todas as favelas que têm tráfico ou
milícia. “Essa é uma política que tem o objetivo de ser exemplar e tentar reduzir o
medo da população. Além da Zona Sul, algumas outras áreas que têm visibilidade
na mídia não poderão ser deixadas de lado, como o Alemão por exemplo”, finaliza.
(grifos nossos)
Como outro dado referente às UPPs, destaca-se o lançamento da “Cartilha
Popular do Santa Marta sobre Abordagem Policial”, em vinte de março de 2010.
66
Esta cartilha foi elaborada com o objetivo de evitar abusos da Polícia Militar nas
suas ações, e informar os moradores sobre seus direitos e sobre o que estabelece a
lei sobre mandados de busca, realização de revistas corporais etc. Esta iniciativa
representa, ao mesmo tempo, a necessidade de realizar uma conscientização tanto
da população quanto dos profissionais da segurança ali presentes, com relação aos
seus diretos, com a finalidade de conter os abusos realizados por estes últimos, o
que talvez não fosse necessário caso os investimentos em prol da “pacificação”
destas comunidades estivessem sob a responsabilidade de instituições públicas
voltadas realmente à condução de políticas de cunho social e educativo, numa
perspectiva pedagógica e de viabilização de direitos e não apenas de controle
social. O que se deseja afirmar é que, para que se realize a “pacificação” de
comunidades do Rio de Janeiro, talvez seja mesmo necessário um “braço” da
segurança, porém não se pode exigir de uma instituição cuja função é garantir a
segurança pública, que esta trabalhe em prol da viabilização de direitos e da criação
de “condições necessárias para que isso [a democracia] se desenvolva”, nas
palavras do secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro.65 Ora, sendo assim,
é necessário investimentos também na educação, na área social, e em outras
políticas, e não apenas na política pública de segurança.
Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo, professor titular do Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor associado da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista ao sítio “Comunidade
Segura”66, afirma que um grande risco das UPPs, é o do controle da intimidade das
pessoas nas localidades onde estão instaladas unidades, além do que o mesmo
denomina “policialização” da política, processo que estaria relacionado ao momento
de enfraquecimento das associações de moradores, por exemplo, o que faz com
que o próprio sucesso das UPPs, juntamente com sua proximidade dos demais
órgãos governamentais de prestação de serviços e proteção social, segundo ele,
esteja reorientando para as UPPs boa parte dos pedidos, reclamações e
expectativas da população moradora.
65
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/08/15/uma-virada-que-cabe-no-bolso-upps-em-todasas-favelas-custariam-em-media-um-milesimo-do-pib-carioca-757425597.asp>. Acesso em: 06 abr. 2010.
66
Disponível em: <http://www.comunidadesegura.org.br/pt-br/MATERIA-upps-pacificacao-ou-controleautoritario>. Acesso em: 06 abril 2010.
67
Outro aspecto deste processo é o que Wacquant (1999, s.p.) denomina
“banalização do recurso ao aparelho repressivo do Estado”, que levaria à diminuição
de seu efeito estigmatizante e dissuasivo; por isso, tornar-se-ia necessário, então,
segundo ele, aumentar, sem cessar, as doses desse recurso para obter um mesmo
resultado. Em uma palavra, a
“policialização” dos bairros segregados pode mesmo alimentar a delinqüência,
perpetrando uma cultura de resistência à autoridade. [...] Mas, eis aí a dificuldade: a
utilidade das políticas repressivas nem é criminal, nem é penal; ela é puramente
eleitoral. Consiste em seduzir franjas autoritárias do eleitorado, reafirmando, no
plano simbólico, o papel do Estado como fiador da ordem.
Assim, se pode perceber que as políticas colocadas em prática no Brasil, no
que se refere à busca, quando não por uma segregação e extermínio das classes
perigosas, por uma tentativa de silenciá-las através de políticas que colocam a
segurança em primeiro lugar, como “fonte de todo bem”, numa proposta de
transformação de questões de política em questões de polícia, seguem um padrão a
esse respeito, de se colocar em prática, a partir de ideários promovidos pela mídia,
as propostas de sempre, no que se refere ao mesmo público de sempre: a
população empobrecida.
Malaguti Batista (2003, p. 33) afirma, neste sentido, sobre o modo como são
tratadas as classes subalternas no Brasil, que “a grande política social da
contemporaneidade neoliberal é a política penal.” Neste sentido, afirma, “a qualquer
diminuição do seu poder os meios de comunicação de massa se encarregam de
difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a população e aproveitam para
se reequipar para os ‘novos tempos’”. Estes meios de comunicação trabalham,
assim, “seja através da fabricação de realidade para produção de indignação moral,
seja pela fabricação de estereótipo do criminoso”.
Já mencionamos anteriormente que Malaguti Batista (2003, op. cit.) destaca
que a difusão do medo se constitui num mecanismo indutor e justificador de políticas
autoritárias de controle social e seria trabalhada pela hegemonia conservadora na
nossa formação social, mas o que estamos querendo dizer quando falamos de uma
hegemonia? É bom realizar aqui uma breve reflexão sobre este conceito, novamente
tomando Gramsci para tal.
Gramsci traz como uma de suas contribuições fundamentais, de acordo com
Freire (2009, pp. 184-185), a vinculação entre o conceito de hegemonia, os
68
aparelhos privados de hegemonia, que são os responsáveis por sua formulação e
execução, e os temas que seriam relacionados à “grande política”. A hegemonia, de
acordo com Gramsci, seria, exatamente, “a capacidade de unificar através da
ideologia67 e de conservar unido um bloco social que não é homogêneo, e sim
marcado por profundas contradições de classe.” (FREIRE, 2009, p. 186) Um
exemplo claro desta função temos quando nos deparamos com falas de moradores
de comunidades pobres, em defesa de políticas de controle social, como a defesa
da redução da maioridade penal, aplicação de penas mais severas, como vimos.
A autora destaca ainda o fato de muitos autores considerarem o conceito de
hegemonia como o conceito-chave dos Quaderni del Cárcere de Gramsci, e que
seria esta a sua mais importante contribuição à teoria marxista; lembra, porém, que
não foi Gramsci quem inaugurou este conceito, que já existia no movimento social
russo de 1890 a 1917, como um de seus lemas políticos centrais.
De acordo com Vianna (2004), hegemonia social seria o lócus do consenso,
enquanto a coerção seria função do governo político. O consenso seria, portanto,
parte de uma disputa a partir da qual se pode obter a hegemonia, ou seja, a
hegemonia adquire o sentido de um consenso ativo e direto, de participação dos
indivíduos, “em nome de uma falsa visão universal da realidade social”
(SIMIONATTO, 2008, s.p). Este processo pode ser verificado na atualidade, como
afirma a autora, enquanto ação do Estado “pelo alto”, “a partir do consentimento
ativo das classes que formam a base de constituição da hegemonia, que abrem mão
de seus projetos em nome de um projeto universal abstrato” (ibid, s.p).
É na sociedade civil que estão organizados os interesses das classes
subalternas, mas também da classe dominante cuja hegemonia se exerce via
aparelhos privados, reproduzindo seu domínio para além dos aparatos do Estado e
dos meios de produção, pelos meios de comunicação responsáveis pela enorme
visibilidade dos programas de transferência de renda, caucionada pelas estatísticas
baseadas precisamente no aspecto distributivo, sem, no entanto, provocar
alterações mais drásticas na desigual estrutura social.
Na concepção de Gramsci, há uma relação sine qua non entre a hegemonia
política e opinião pública, sendo, esta última, ponto de contato entre sociedade civil
67
A ideologia, segundo a autora (id., ibid., p. 186), tem um papel fundamental em Gramsci, no que diz respeito à
orientação prática dos homens, na medida em que “transforma a crítica ideológica – a batalha cultural – num
momento decisivo na luta para agregar uma nova ‘vontade coletiva’ nacional – popular na luta para superar
uma velha relação de hegemonia e criar uma nova (COUTINHO, 1980, p. 84)”.
69
e sociedade política, entre consenso e força, sendo necessário ao Estado a criação
prévia da opinião pública, seja para iniciar uma ação pouco popular, seja para atrair
segmentos poucos valorizados da sociedade e fortalecer seu poder de grupo,
processo que Semeraro (1999) denomina de “cesarismo moderno”.
De acordo com FREIRE (2009, p. 186):
Processos de construção e manutenção da hegemonia são na sua essência projetos
pedagógicos, daí podermos falar numa pedagogia do capital que atravessa os
aparelhos privados de hegemonia, como é o caso dos meios de comunicação que
formam a chamada mídia.
De acordo com Coutinho (1994 apud FONSECA, 2010, s.p.), em Gramsci, os
aparelhos privados de hegemonia poderiam ser assim sintetizados:
[...] são organismos sociais ‘privados’, o que significa que a adesão aos mesmos é
voluntária e não coercitiva, tornando-os assim relativamente autônomos em face do
Estado em sentido estrito [no contexto, portanto, de sua configuração ampliada, isto
é, sociedade política + sociedade civil, possível nas conformações sociais do tipo
“ocidental” — FF]; mas deve-se observar que Gramsci põe o adjetivo ‘privado’ entre
aspas, querendo com isso significar que — apesar desse seu caráter voluntário ou
‘contratual’ — eles têm uma indiscutível dimensão pública, na medida em que são
parte integrante das relações de poder em dada sociedade.
A mídia está, portanto, claramente inserida na concepção de aparelhos
privados de hegemonia em Gramsci, a partir do que foi afirmado acima, e mais,
quando tratamos da grande mídia, de massa, aquela que atinge a maior parte da
população, podemos afirmar que esta trabalha em prol da manutenção do
capitalismo,
através
da
divulgação
de
“códigos
ideológicos
privados
de
compreensão do mundo, como se os mesmos fossem gerais” (FREIRE, 2009, p.
178)
Ao tratarmos o modo como a mídia interfere na legitimação dos processos de
criminalização da pobreza, chegaremos a um ponto chave no que diz respeito à
transição, que será à frente abordada, do Estado Social ao Estado Penal. De acordo
com Freire (ibid., p. 187), o “discurso discriminador generalizado na mídia [...] possui
elementos que servem de defesa do Estado Penal (WACQUANT, 2002) como
caminho para a resolução da questão social no país, em detrimento de maiores
investimentos na área social”. Segundo a autora,
dois elementos se destacam nesse discurso; o primeiro diz respeito à vinculação
implícita e reincidente da associação entre pobreza e criminalidade, destacando os
números crescentes de uma ‘escalada’ da violência e a falta de condições do poder
70
público para controlar essa situação. O segundo legitima uma ampla mobilização
social em torno do endurecimento do aparato policial-judicial, que é ‘atrapalhado’ por
um grupo minoritário de defensores dos ‘direitos dos bandidos’, ‘confundidos’ com os
direitos humanos (MALAGUTI BATISTA, 2003). (FREIRE, op. cit., p. 187)
É assim, então, que as causas sociais, de acordo com a autora, da escalada
da violência, na maioria das vezes não são lembradas e mesmo se diluem na forma
sensacionalista como são relatadas pela mídia. Conforme afirma Freire (2009, s.p.):
entendemos que as repetidas falas da mídia sobre a cobertura do fenômeno da
violência, em detrimento de outros fatos sociais capazes de revelar os nexos da
questão social e da omissão do Estado frente a mesma na contemporaneidade, não
é uma escolha aleatória, ao contrário induz o próprio interesse do leitor pelo assunto,
e o estimula a consumir seu conteúdo, que se torna um produto lucrativo.
Assim, deve-se recordar que, na atualidade, “não é possível entender a
produção de sentidos e significados, que reproduzem os esquemas de dominação,
sem compreender a mediação dos meios de comunicação na interpretação da
realidade falando ‘pelos’ e ‘para’ os indivíduos.” (FREIRE, 2009, p. 177).
O papel dos aparelhos midiáticos, ontem como hoje, como se pode perceber,
pode ser definido da seguinte forma, no que diz respeito à produção do ideário do
“medo” e conseguinte legitimação das políticas de controle social:
Assim sendo, a matriz edificada pela mídia acaba inspirando, orientando ou
ajudando a construir a legitimidade de políticas sociais voltadas para o controle dos
pobres, vistos como classes perigosas pela mídia. Nesse campo os discursos
defendidos pela mídia se bifurcam: de um lado surgem aqueles voltados para as
políticas assistenciais que buscam impedir \ evitar que as populações “vulneráveis”
e\ou pertencentes a “grupos de risco” sejam interceptadas pela emergência da
violência enquanto principais autores propulsores e vítimas da mesma. De outro lado
estão os discursos direcionados para o aumento e maior efetivação das políticas de
segurança, que buscam justificativas para legitimar a criminalização da pobreza
através da coibição e punição severa dos atos que definem como violentos. (Freire,
op. cit., p. 188)
Neste capítulo, foi possível verificar a forma como a mídia trabalha em prol da
formação de um ideário que justifique a formulação de políticas voltadas ao controle
social das chamadas “classes perigosas”, perigosas, como visto, porque pobres.
Este processo, como veremos no próximo capítulo, culminará nas propostas de
encarceramento, que levam ao limite a segregação destas populações. Buscaremos,
desta forma, apontar as contradições inerentes ao sistema penitenciário, assim
como, ao mesmo tempo, se tem investido neste tipo de política, muitas vezes
privatizada, como em alguns países, o que, retomando os argumentos do primeiro
capítulo contra o tipo de interpretação que considera determinados indivíduos como
71
“inúteis para o mundo”, comprova que, no sistema capitalista de produção, tudo
pode ser fonte de lucro e acumulação de capital.
72
3
A
ATUAL
POLÍTICA
DE
ENCARCERAMENTO
NO
BRASIL:
A
RADICALIZAÇÃO DA SEGREGAÇÃO
No limiar entre o [século] XX e XXI, o medo é um
projeto estético, que entra pelos olhos, pelos
ouvidos e pelo coração.
(MALAGUTI BATISTA, 2003, p. 75)
A partir das argumentações que procuramos desenvolver no decorrer do
presente trabalho, foi feito um esforço por demonstrar como, no Brasil, desde o
século XIX, se apresenta, a partir da adaptação e utilização do conceito de classes
perigosas, com a colaboração determinante da mídia neste processo, o fenômeno
da criminalização da questão social. É importante, porém, lembrar que estratégias
de controle social – no que se refere à população pobre – são registradas desde o
século XV, como em Portugal, quando uma série de medidas no sentido de impedir
a mendicância, com este cunho, haviam sido tomadas por D. João I.
De acordo com Iamamoto (2008, p. 163), a noção de “classes perigosas”,
como vimos, é retomada na atualidade, e estas estariam sujeitas à repressão e à
extinção. Com isso, as classes subalternas passam a ser alvo tanto de programas
assistenciais focalizados de “combate à pobreza” – que se efetivam como lembra
Freire (2007, p. 147) como “políticas pobres para pobres” –, quanto de políticas de
“segurança pública”68, que se manifestam através da repressão e mesmo do
extermínio69, que aparece como face de uma concepção de “limpeza social”; ao
68
Esta dicotomia no trato a esta população revela as noções de “pobre bom” e “pobre mau”, segundo as quais o
“pobre bom” seria alvo das políticas sociais de combate à pobreza e o “pobre mau” seria alvo de políticas de
repressão.
69
O jornal “Le Monde Diplomatique Brasil”, do mês de janeiro de 2009, traz, em seu editorial, o retrato de como,
na cidade do Rio de Janeiro, a política de segurança – a partir da ação sobretudo da polícia militar, por estar
na ponta, e pela qual são responsáveis os governos dos estado e federal – se revela como uma política de
extermínio, legitimada por estes mesmos governos, que se orientam a partir da herança totalitária, que é
compartilhada por vários segmentos da sociedade, o que traz à mesma uma base de legitimidade. Esta
política tem como características a imposição do medo, da desconfiança da sociedade, e do terror aos mais
pobres, e isto pode ser revelado a partir de alguns números: entre 2003 e 2007, as polícias fluminenses
mataram 5.669 pessoas, 1.330 somente em 2007, com uma média de 3 a 4 pessoas por dia, isto sem a
concordância do comando.
Neder (1994, p. 12) apresenta, ainda, partindo de uma pesquisa realizada por Caco Barcelos (In: Rota
66. Editora Globo, RJ), dados do início da década de 1990, que indicam a morte de uma pessoa a cada sete
horas pela polícia no estado de São Paulo, o que indicaria “a pena de morte aplicada por uma das instituições
do sistema penal (a Polícia Militar) que tem atribuições constitucionais de prevenção da criminalidade”.
73
eliminar os “bandidos” promove-se o bem da comunidade. De acordo com o editorial
do Le Monde Diplomatique, de janeiro de 2009:
Ela [a política de extermínio] é a expressão de um projeto político de grupos que se
arrogam o direito e o poder de selecionar camadas da sociedade a ser eliminadas,
expulsas ou circunscritas. A política de confronto, que promove execuções sumárias
por parte da polícia, está presente [...] em todos os estados da Federação. Mas só
onde se concentram as camadas pobres da população. (grifo nosso)
Em sua pesquisa sobre a ação policial no Rio de Janeiro e o pensamento
jurídico-penal da época, em inícios do século XX, Rolim (2007) afirma, referindo-se
ao local de moradia das classes populares, que a ideia de situação de déficit cultural
das classes empobrecidas, segundo a qual se acreditava que as mesmas estavam
fadadas a viver na criminalidade, acabava por resultar “em comportamentos e
condutas anti-sociais e anti-jurídicas.” Segundo o autor, um dos mais importantes
criminalistas do período “afirmava enfaticamente que esses segmentos sociais
viviam em perenes focos criminógenos e áreas de delinquência endêmicas” (id.,
s.p.). Portanto, destaca que havia a pregnância de culpabilizar fortemente estas
classes pelas suas condutas e comportamentos, além da menção frequente aos
locais de origem destes indivíduos, que eram vítimas de ações policiais, como se
percebe em um relato circunstanciado em que consta a trajetória de vida de uma
vítima de ação policial, naquele período: destaca-se que era morador de um local
“que sempre teve lugar de destaque nos anais do crime da capital” e, ainda, nesta
tentativa de culpabilizar a vítima pelo seu próprio assassinato por um policial, relatase que a mesma teria sido “rebelde desde pequeno”, que jamais teria trabalhado ou
freqüentado a escola, conforme consta nas peças processuais pesquisadas pelo
autor.
Não se pode esquecer, ao mencionar a ação policial junto às classes
subalternas, que, como nos lembra Coimbra (2001, p. 104) desde que as polícias
foram criadas tinham por missão defender os “cidadãos” (“respeitáveis”) e não
policiá-los. Ao contrário, o alvo do policiamento sempre foram as camadas médias e,
sobretudo pobres da população.70 Daí se pode compreender uma dupla missão, se
70
Retomando o papel da mídia neste processo, nos lembra Freire (2009, p. 187): “As assíduas violências
policiais contra pobres, favelados, negros e outras minorias recebem tratamento diferenciado na mídia quando
esta mesma polícia (mais raramente) pratica violência contra pessoas das camadas médias urbanas e de
bairros de maior prestígio social.” Um exemplo disso foi a morte do menino João Roberto Amaral, de três anos
de idade, em uma perseguição policial na Tijuca – Zona Norte do Rio – que estava no carro com a mãe, e este
teria sido confundido com o carro de assaltantes sendo, assim, baleado. A notícia teve grande repercussão
nacional.
74
assim podemos chamar, da polícia: de proteger e, ao mesmo tempo, de controlar as
desordens, os tumultos urbanos e a criminalidade, vinculados tradicionalmente,
como vimos, à pobreza.
Ainda nos dias atuais (e com uma força renovada pelos meios de
comunicação) a tese de que a miséria gera violência vem sendo defendida e
disseminada. No caso do Rio de Janeiro, indica esta mesma autora, tem-se como
exemplo claro desta concepção a construção dos grandes condomínios fechados na
Barra da Tijuca, cuja promessa de segurança – leia-se: distância da população
empobrecida (e perigosa) que reside nas favelas e periferias e também nas próprias
ruas, viadutos e pontes das cidades – é comercializada por altos preços.
O sentimento de medo e insegurança para as chamadas classes médias e
para a classe trabalhadora em geral está diretamente ligado, na atualidade, ao
modelo neoliberal, de acordo com Coimbra, ao mesmo tempo e na medida em que
se produz mais desemprego, pobreza, exclusão e miséria. Sendo assim, retoma-se
a idéia de que questão social é “caso de polícia, ao invés de ser objeto de uma ação
sistemática do Estado no atendimento às necessidades básicas da classe operária e
outros segmentos trabalhadores” (IAMAMOTO, 2008, p. 163).
Na formulação e condução das políticas públicas se pode perceber a marca
do modo como é tratada a questão social pelos setores hegemônicos: orienta-se
geralmente pela teoria da integração social, o que levaria à naturalização das
desigualdades sociais,
e as políticas sociais perdem seu caráter de conquista passando a ser concebidas
como concessões do Estado e do capital, reproduzindo a “ideologia do favor”,
caracterizada por formas paternalistas e clientelísticas de relação que se combinam
com um tipo de atendimento, por parte do Estado, orientado pela benevolência e a
filantropia (PASTORINI, 2004, p. 93).
As ações estatais terão, assim, como meta primordial o enfrentamento das
situações que possam colocar em cheque a sociedade burguesa, e este
enfrentamento é feito de modo fragmentado, pois se orienta para manifestações
específicas da questão social, como é o caso da violência urbana. De acordo com
Wacquant, esta violência é a manifestação de um processo de decomposição do
trabalho assalariado, desemprego e subemprego crônicos, que pesam sobre a
juventude dos bairros pobres, que não têm acesso a uma rede de proteção social, e
buscam no que Weber denominou “capitalismo de pilhagem”, da rua, “os meios de
75
sobreviver e realizar seus valores do código de honra masculino, já que não
consegue escapar da miséria do cotidiano” (WACQUANT, 2001, p. 08).
De acordo com Ianni (1989), algumas expressões (baderna, violência, caos,
desemprego, miséria, ou paz social, harmonização capital/trabalho, ou então
movimento social, saque, revolta, revolução) povoam o pensamento dos mais
diversos profissionais, como cientistas sociais, jornalistas, polícia, políticos,
apanhando determinados aspectos básicos das desigualdades sociais que
atravessam a sociedade brasileira, porém sempre repondo a questão social como
uma importante dimensão dos movimentos desta sociedade. A dificuldade em lidar
com as demandas das classes subalternas pelos setores dominantes acaba por
gerar reações que revelam intolerância tanto no trato às situações apontadas,
quanto nas suas explicações.
A violência – tanto no que diz respeito à criminalidade quanto ao seu
enfrentamento – como uma destas múltiplas expressões da questão social, tem sido
fruto do processo de diminuição do “Estado social”, que, por sua vez, é substituído
por uma política de endurecimento da intervenção penal do Estado, que é parte
deste tratamento violento à população empobrecida, inaugurada nos Estados Unidos
a partir da década de 1980. Segundo Wacquant (2001, p. 74) “à violência da
exclusão econômica, ele [o Estado] oporá a violência da exclusão carcerária”;
substitui-se, assim, utilizando as expressões do próprio autor, o Estado-Providência
pelo Estado-Penitência71.
Este autor realiza um interessante estudo sobre a “reforma do bem-estar” nos
Estados Unidos, onde houve uma substituição do welfare pela política do workfare,
ou seja, o Estado passou a exigir dos pobres, sob o argumento de que o auxílio
material provoca uma dependência e acomodamento das populações empobrecidas,
o trabalho – mesmo que seja “sujo” e mal-pago – deve ser uma “obrigação de
cidadania”. Desta forma, “atirar os pobres à própria sorte permite às elites do
Estado, portanto, reafirmar o primado ideológico do individualismo meritocrático”
(WACQUANT, 2007, p. 192). Assim,
a construção do Estado neoliberal envolve a produção de dois locais, não apenas
um: ao mesmo tempo em que estava convertendo o welfare em workfare, os
71
Nunca é demais recordar, conforme lembra Forti (2010, p. 93), que não houve, no nosso país, nem um Estado
de Bem-Estar que pudesse ser substituído por um Estado Penal. Neste sentido, recordamos mais uma vez a
necessidade de levar em conta a realidade onde foram desenvolvidos os estudos que geraram determinadas
teorias, como, no caso de Wacquant, quando trata desta substituição, França e Estados Unidos.
76
Estados Unidos também estava ocupado em fortalecer e ampliar o braço carcerário
do Estado. (ibid., p.193).
Um outro aspecto deste investimento em uma política de workfare é apontado
por Forti (2010, p. 93) como parte da lógica mercantil perversa de certos países de
economia avançada, segundo a qual a questão social é encaminhada para
atividades prósperas, como o mercado de segurança “que triunfou ao longo das
últimas décadas porque mercantilizou a assistência aos encarcerados e utilizou o
trabalho dos presos de modo precarizado (workfare).”
Em meio a este quadro se expande o sistema penitenciário brasileiro72,
historicamente marcado por oferecer aos presos “condições de vida e de higiene
abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação [...] negação
de acesso à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde [...] violência
pandêmica entre detentos” (Wacquant, 2001, p. 11).
Este autor, assim como Santos, alude a descontratualização como
característica da atual autonomização do mercado, marcada inclusive pela
financeirização dos Estados nacionais, que envolve riscos e incertezas similares
àqueles que se pode encontrar no narcotráfico e no contrabando. Este processo
redundará, em última instância, de acordo com o autor, nos países periféricos, em
um retorno a todas as formas de violência primária nas relações afetivas, primárias,
familiares, assim como nas solidariedades que poderiam ser chamadas, com Émile
Durkheim, de mecânicas. Esta violência se evidencia de formas diferentes nas
diferentes camadas das classes sociais: enquanto os pobres se matam entre si, as
classes médias andam de vidros levantados em seus carros para evitarem assaltos
mesmo à luz do dia e os grandes empresários se locomovem, dentro das cidades,
de helicóptero.
Assim, estas formas de violência nos territórios habitados pela pobreza
representam perigos ainda mais próximos, já que seus moradores não possuem as
possibilidades de proteção a que têm acesso as outras camadas da população. É
importante ressaltar que esta violência se dá entre os mais pobres, cuja
socialização, em sua juventude, acaba dependendo do tráfico, ou seja, não se pode
72
Somente entre os anos de 1988 e 2003, a população carcerária no Brasil aumentou de 88.041 para 308.304
presos, sendo que a taxa de presos por 100.000 habitantes passou de 65,2 para 181,5, segundo dados do
Ministério da Justiça, que apontam também que o país ocupava, em 2006, a quarta posição entre os países
que mais encarceram no mundo.
77
deixar de levar em consideração a questão do pertencimento a um grupo para que
se tenha uma aceitação social, sobretudo na adolescência, e o ingresso no tráfico de
drogas não exclui esta dimensão.
Lembramos que a dinâmica do crime e, mais especificamente, o mundo do
tráfico, apresenta as mesmas características do capitalismo enquanto modo de
produção: sua causa essencial é a obtenção de lucros, da mesma forma que nas
empresas, bancos etc. No que diz respeito à questão do ingresso no mundo do
tráfico, tem-se, ainda, o fato de, diferente das necessidades para o ingresso no
mundo formal, digamos assim, do trabalho, o tráfico de drogas não exige nenhum
tipo de preparo ou formação anterior, o que facilita ainda mais o ingresso deste
jovem.
Os indivíduos envolvidos no mundo da criminalidade convivem ainda com a
violência do Estado, como analisa Wacquant. As populações dos bairros e
comunidades pobres são os mais atingidos por essa política de trato à pobreza73 e,
quanto a isto, não é de se surpreender o fato de, nas favelas do Rio de Janeiro,
serem freqüentes os ingressos violentos da Polícia Militar e o investimento na
“política do ‘Caveirão’” (veículo blindado utilizado para incursão em favelas). Apesar
das campanhas contra esta política, como a “Campanha Internacional contra o
Caveirão”, apoiada por diversas ONGs e movimentos, como a “Justiça Global” e o
“Observatório de Favelas”, mantém-se os investimentos neste tipo de trato à
pobreza, tendo o governo do estado do Rio de Janeiro adquirido, em maio de 2009,
oito novos veículos, ampliando, assim, a frota do Batalhão de Operações Especiais
da Polícia – BOPE.
Além disso, há atualmente a construção de um “novo senso comum penal
visando criminalizar a miséria” (ibid., p. 18; grifos do autor), conforme já foi apontado
acima. E este consenso chega à população através da mídia, das novas tecnologias
disponíveis para a disseminação de informações, através das quais os crimes mais
bárbaros são veiculados, numa “operação planetária de marketing ideológico” (ibid.,
p. 19) que provoca na população uma sensação cada vez maior de insegurança e
medo. De acordo com o mesmo autor,
não foi tanto a criminalidade que mudou no momento atual, mas sim o olhar que a
sociedade dirige para certas perturbações da via pública, isto é, em última instância,
73
Fonte: Terra Notícias – disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI2877489-EI5030,00.html>
Acesso em 15 jul. 2008.
78
para as populações despossuídas e desonradas (pelo seu estatuto ou por sua
origem). (id., 2007, p. 29; grifos do autor)
Malaguti Batista (2005, s.p.) lembra, nas palavras de Darcy Ribeiro, que “os
sistemas penais alimentam os moinhos de gastar gente que botam o capital para
funcionar”, referindo-se, assim, à apropriação dos corpos humanos, de seu trabalho,
para a produção da acumulação do capital, ou seja, à integração do sistema penal
ao processo de acumulação. Este processo, de acordo com a autora, envolve o que
Foucalt denominou bio-poder, que seria “um colossal dispositivo de apropriação que
conjugaria o disciplinamento dos corpos e o assujeitamento das almas de uma forma
massiva, contemporânea, mas instituída historicamente a partir da Inquisição
moderna.”
Ocorre, nas três últimas décadas, porém, um redimensionamento da função
do cárcere, conforme lembra Amorim (2007, p. 89), segundo o qual
o ensinamento disciplinar para o trabalho perde seu sentido por não haver mais
‘ensinamento’ a propor. Os projetos de disciplinamento deixam de existir por deixar
de se constituir como categoria central no processo produtivo, considerando a
significativa ampliação do exército industrial de reserva (Melossi, 2006). A ação e o
discurso se voltam agora para a contenção e neutralização da pobreza, de
manifestações da ‘questão social’ que ‘incomodam a burguesia’, explicitando
claramente o fim da ideologia da reabilitação/reinserção social.” (AMORIM, 2007, p.
89)
3.1 Suportes da construção do novo senso comum penal
Como é amplamente reconhecido, a originalidade de Gramsci, como marxista,
fundamenta-se em parte no seu conceito da natureza do domínio burguês (e, como
observou Carnoy (1986), de qualquer ordem estabelecida anterior). Assim sendo,
em seu argumento a força verdadeira do sistema não reside apenas na violência da
classe dominante ou no poder coercitivo do seu aparelho de Estado, mas na
aceitação por parte dos dominados de uma concepção de mundo que pertence aos
dominadores. Isso ocorre porque a
filosofia da classe dominante atravessa todo um tecido de vulgarizações complexas
para aparecer como ‘senso comum’: isto é, a filosofia das massas, que aceitam a
moral, os costumes e o comportamento institucionalizado da sociedade em que
vivem. Portanto, o problema para Gramsci é compreender como a classe dominante
79
procurou conquistar o consentimento das classes subalternas desse modo; e assim
entender como as últimas procederam para derrubar a ordem antiga e produzir uma
nova ordem de liberdade universal. (FIORI,1970,p.238)
O que Gramsci quer destacar é o processo de construção do consenso,
elemento fundamental da hegemonia. No caso analisado neste estudo, o que
chamamos de senso comum penal conta com um conjunto de elementos que
constroem o consentimento da necessidade de radicalização da segregação que
observamos na atual conjuntura. Melhor dizendo, constroem sentidos que legitimam
um sistema penal ainda mais perverso.
É fundamental termos em conta, para compreender o processo de formação
deste “novo senso comum penal”, a questão da construção da subjetividade dos
sujeitos, que não é autônoma deste processo. Finelli (2010, s.p.) irá tratar esta
questão, lembrando que
uma subjetividade, para Gramsci, não pode nunca ser pressuposta, mas apenas
produzida, posta. Porque ela é sempre o fruto de um longo e complexo processo de
crítica e de elaboração de formas de consciência ingênuas e desagregadas e de sua
superação com formas representativas adequadas e coerentes.
Este
processo
de
construção
da
subjetividade
deve
ser,
portanto,
compreendido como
o resultado da passagem de um grupo ou de uma classe social desde uma condição
desagregada e subalterna a uma condição de iniciativa primeiramente apenas
econômico-corporativa, em seguida cultural-política, até o estabelecimento
intelectual e moral de uma hegemonia. (id., s.p.)
A subjetividade tratada por Gramsci, portanto, segundo este autor, é aquela
que é capaz de uma ação na história, e, devido a isto, será resultado, e não
princípio. Deveríamos aqui, então, considerar que as classes subalternas, sob esta
perspectiva, não estariam imbuídas desta subjetividade, não tendo, ainda uma
consciência corporativa, já que esta seria uma fase em que em que este grupo
estaria disposto a lutar contra grupos já dominantes, combatendo sua “luta cultural e
moral pela hegemonia” (id., ibid., s.p.).
Assim, esta concepção atribuirá à ideologia uma “função fundamental de
consciência e de verdade, em vez de mistificação”, o que faz da ideologia “a função
constitutiva, ‘transcendental’ (para usar a expressão de Kant), da subjetividade
histórico-política”. Desta forma é que Gramsci irá inovar a tradição do marxismo,
80
conforme lembra o autor, teorizando o próprio conceito de “sociedade civil” como
“âmbito de encontro/confronto de hegemonias ideológicas” (ibid., s.p.).
A partir destas considerações, podemos sugerir, tomando ainda este autor,
que tanto os jovens envolvidos com o crime, quanto as classes subalternas, de
forma geral, vivenciariam formas falsificadas de autoconsciência, em sua vida
imediata, quanto a si mesmos e como sujeitos subalternos a classe e idéias
dominantes.
Ao tratar a questão da educação a partir de Mészáros, Souza (2007, p. 3)
lembra que “os problemas que envolvem as instituições educacionais são reflexos
de uma crise da totalidade dos processos sociais, ou seja, uma crise estrutural de
todo sistema da ‘interiorização’74 capitalista.” Um destes processos sociais, assim
compreendemos, seria esta construção do novo senso comum penal, que passa
pela aceitação pelos indivíduos da necessidade inconteste de uma estrutura como a
do sistema penitenciário, com a finalidade principal de punir e, sobretudo, isolar,
segregar os indivíduos “desviantes”. Mas não seria esta uma “solução” apenas
parcial para questões que são parte de uma estrutura que traz em sua própria
constituição o problema? É a isto que se refere este autor (id., p. 3 – grifos do autor),
como se pode verificar abaixo:
Nesta perspectiva, podemos entender que, as estruturas reificadas e alienadas que
envolvem as relações sociais no mundo do capital, oferecem remédios meramente
parciais para problemas globais. Como os problemas em jogo são amplos, surge
uma contradição entre o caráter global dos fenômenos sociais criticados e a
parcialidade. O gradualismo dos remédios que são os únicos compatíveis com a
lógica sócio-metabólica do capital. Há nesta lógica, um princípio de abstração dos
problemas que envolvem as instituições e relações sociais em geral. Nenhuma
novidade nisso, tendo em vista o ‘espírito comercial’ levar a quase perfeição a
divisão social do trabalho.
Ora, estas reflexões nos levam à questão da consciência, ou da ausência de
consciência de classe, o que estaria ligado ao debate sobre a teoria da alienação75.
74
Muito interessante o conceito de “interiorização” trazido por Mészáros (1981, p. 270 apud SOUZA, 2007, p. 3):
de acordo com o autor, “essa ‘interiorização’, desnecessário dizer, não pode ocorrer sem o efeito combinado
de várias forma de ‘falsa consciência’ , que representam as relações sociais alienadas de produção de
mercadorias como expressão direta, ‘natural’, dos objetivos e desejos do indivíduo”. Interiorização seria,
portanto, “um processo pelo qual os indivíduos adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias
como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações, contribuindo desta forma para a manutenção de
uma concepção de mundo e de uma forma específica de intercâmbio social.” (SOUZA, 2007, p. 3 – nota).
75
Mészáros (2009, s.p.), ao mencionar a questão da alienação, lembra que esta significa “a perda de controle
sobre as atividades humanas que poderíamos e deveríamos controlar. O sistema social é uma construção
humana e deveria ser controlado pelos homens, mas está longe de nós, fora de nosso alcance, está alienado
[...] A alienação não é algo mágico, que cai do céu, mas é parte fundamental do que chamo metabolismo
81
Moura (2010, s.p.) menciona que a alienação pode ser compreendida como a
ausência de consciência do homem, que
não sabe que seus desejos são determinados pelo sistema capitalista; não percebe
a submissão do homem a outro homem ou a venda da força de trabalho, perdendo
seu caráter de realização e libertação; não enxergando de fato toda a expressão de
poder que impregna a sociedade.
Ainda de acordo com a autora, “pensar a sociedade tendo como parâmetro o
ser humano, exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no
individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos”, e é esta lógica, não
podemos esquecer, que dirige atividades como o tráfico de drogas, e outras ilícitas,
que também são movidos pela busca do lucro, como vimos acima.
Não só, portanto, esta grande parcela da população que defende os ideais
segregacionistas do sistema penitenciário estaria “submetida”, se assim podemos
afirmar, a estes processos de alienação, mas também os indivíduos que realizam
atividades ilícitas, como fonte de lucro e rentabilidade.
A novidade que se põe, quando nos remetemos à funcionalidade do sistema
penal em relação ao capitalismo é a privatização do sistema penal, processo que se
inicia nos Estados Unidos, a partir do início da década de 1980. De acordo com
Wacquant (1999), quando Clinton chegou ao poder, a administração penitenciária do
país atingiu a marca de terceiro maior empregador do país, com 600.000
assalariados. A quadruplicação dos efetivos carcerários, segundo o autor, em
apenas vinte anos, não teria sido possível sem o surgimento do setor privado;
Assim, o aprisionamento com fins lucrativos açambarcaria, rapidamente, a décima
segunda parte do "mercado" nacional, ou seja, cerca de 150.000 detentos, três
vezes a população penitenciária da França. As empresas responsáveis pela
administração destes presídios, cotadas em bolsa de valores, propalam taxas
recordes de crescimento e de lucro. Em suas palavras,
social de humanidade. A alienação é um tipo de controlador do capital, que não se preocupa com o destino do
planeta, mas com sua própria reprodução, infinita. A ironia da humanidade é que conseguiu desenvolver
instrumentos suficientes para manter-se, para que todos tenham o que comer, mas são usados para estimular
uma realidade destrutiva. A lógica do capital é estimular a alienação, pois faz com que a população aceite esse
paradoxo. A alienação leva à racionalização da insanidade, o que cria a ilusão de ser a ordem correta das
coisas. É o modo como se gera a ideologia dominante.” Assim “a alienação só pode ser vencida com
educação. Há uma relação dialética, é claro. Não se acaba com a alienação simplesmente passando uma lei:
a alienação está proibida. Isso gera mais alienação. A educação precisa ser orientada para uma humanidade
sustentável. É uma pedagogia com clara intenção política, a de libertar o povo, mas não é dogmática, pois
emana do próprio povo. Ressalto que essa educação é emergencial. É preciso assumir a responsabilidade
sobre a transformação dessa perspectiva, não tão distante, de um mundo prestes a desaparecer. O primeiro
passo é parar a competição destrutiva e estimular uma interação positiva entre os homens”.
82
a “nova economia” americana, não é apenas a da internet e a das tecnologias de
informação: é também, a que industrializa o castigo. A título de ilustração, vale
lembrar que as prisões do Estado da Califórnia empregam duas vezes mais pessoas
do que a Microsoft (WACQUANT, 1999, s.p.)
Outro território em que este processo vem se destacando é o da GrãBretanha, onde, não por acaso, lembra o autor, se expõe, ao mesmo tempo,
o mercado de trabalho como o mais desregulado, o crescimento de sua população
carcerária como a mais intensa dentre os grandes países da Europa (mais de
cinquenta por cento em cinco anos) e a privatização do sistema penitenciário como a
mais avançada (id., s.p.).
Não se pode deixar de lembrar que, mesmo nos países em que não ocorreu
esta privatização do sistema penal – caso do Brasil –, este cumpre um importante
papel para a lucratividade da “economia lícita”. Assim, sobre a produção da
criminalidade é estabelecida uma grande indústria que envolve desde a importação
de armamentos, carros e equipamentos de proteção até a fabricação de uniformes
para os trabalhadores da área. Assim, lembra Pereira (2006, p. 340-341):
É ainda importante reconhecer que, na sociedade ocidental, mais do que serem uma
grande chaga, a criminalidade e as prisões alimentam uma plena economia,
geradora de riquezas, bens e serviços. Uma parcela da sociedade sobrevive e
enriquece graças a esta florescente atividade econômica. Ela se objetiva na criação
de maior número de empregos nos poderes executivo, legislativo ou judiciário. [...]
No sistema prisional, este mercado se expande pela demanda contínua por aumento
de vagas, o que se traduz na construção e remodelação de estabelecimentos
penais, na contratação de pessoal, na realização de contratos com empresas
fornecedoras de serviços e produtos para reprodução da vida cotidiana de presos e
funcionários. São equipamentos de segurança (camburões, algemas, armas, rádios,
uniformes), assim como remédios, alimentos, roupas, material de escritório. São
inúmeros os itens que necessitam de reposição para que a vida diária possa se
reproduzir.
Wacquant recorda, ainda, que um Estado penal forte poderia parecer
contraditório em relação ao enfraquecimento do Estado pregado pelo neoliberalismo, mas, segundo o mesmo, na realidade, uma "liberalização" da economia
e a organização penal da sociedade pela precariedade andariam lado a lado, uma
reforçando a outra, na medida em que se estaria inventando uma nova forma
política, um “Estado-centauro” que ele denomina “liberal-paternalista”:
de um lado, ele é liberal numa tendência ascendente, porque pratica a doutrina do
‘laissez-faire’ ao nível dos mecanismos geradores das desigualdades sociais; de
outro lado, ele é paternalista e punitivo quando trata de gerar com aval as suas
83
conseqüências, notadamente, nos bairros pobres açoitados pela des-regulação do
mercado de trabalho e pelo recuo da proteção social. (WACQUANT, 1999, s.p.)
O aumento do Estado penal teria ainda uma outra consequência, apontada
por Wacquant, que seria a de ensinar aos pequenos delinquentes, sobretudo, a se
tornarem melhores criminosos, além de desestabilizar seriamente as famílias e as
zonas pobres submetidas ao seu campo de ação, tornando-se, assim, realmente,
uma formidável fábrica de produção de uma precariedade sui generis. Conclui o
autor: “no fim das contas, o fracasso programado da gestão penal da miséria servirá
de justificação... à sua extensão indefinida que o discurso inesgotável sobre a
‘responsabilidade individual’ e a ‘reincidência’ acabará por naturalizar.” (id., s.p.)
Retomando a reflexão de Malaguti Batista (2005, s.p.), no que diz respeito ao
caso do Brasil, o discurso do direito penal estaria permanentemente produzindo
sentidos que viabilizariam a expansão do sistema penal, “expansão que também se
orienta na direção das mentalidades e da vida privada”, segundo a autora.
Historicamente, se pode verificar no Brasil, uma herança jurídico-penal da
Inquisição ibérica, em que se produz um
direito penal de intervenção moral baseado na confissão oral e no dogma da pena.
Essa ordem jurídica intolerante e excludente não tolera limites, transforma-se num
sistema penal sem fronteiras, com a tortura como princípio, o elogio da delação e a
execução como espetáculo. (MALAGUTI BATISTA, 2005, s.p.)
Essas marcas da Inquisição e suas devassas gerais sobre delitos incertos
pontuariam até os dias atuais os noticiários sobre crime no Brasil, assim como “os
corações e mentes da direita e da esquerda punitiva.” De acordo com Neder (1994),
junto com a Inquisição, foram trazidas para o Brasil toda uma gama de práticas
ideológicas que desdobraram-se em práticas jurídicas fundadas, como descrito
acima, na tortura, delação, suspeição, até a condenação sem defesa do acusado.
Estas características, que à época marcavam a teatralidade dos autos-de-fé nas
praças públicas, hoje podem ter como correspondentes as estampas nas bancas de
jornal de corpos mutilados, de uma imprensa sensacionalista que irá atingir,
conforme destaca a autora, sobretudo as classes subalternas, suas consumidoras
preferenciais. O efeito destes elementos é, como no período da Inquisição, a
construção de um terror político através destas imagens que difundem medo e
horror, “elementos de controle social informal, de alguma forma eficaz” (NEDER,
1994, p. 20 – grifos nossos).
84
A violência institucional, no Brasil, está, portanto, presente em toda a sua
formação social, tendo raízes históricas profundas. E esta relação que, fora dos
muros de instituições penais já se constitui como baseada – assim como foi com os
escravos e pobres livres – na arrogância e no descaso, tanto mais dentro dos muros
de cadeias públicas, presídios e penitenciárias, onde – como o episódio que ficou
conhecido como o “Massacre do Carandiru” provou – nem mesmo as vidas desta
parte da população importam (muito menos os direitos humanos).
Ao tratar o desenvolvimento do sistema penitenciário no Brasil, esta mesma
autora ressalta que, a partir do código de 1890, o sistema penal adotado foi o da
Filadélfia, combinado com o de Auburn e modificado pelo método irlandês, segundo
o qual “o isolamento celular não poderia exceder dois anos76; é o primeiro período
da execução da sentença [...] O segundo período se caracteriza pela segregação
noturna, pelo trabalho comum e o pelo silêncio durante o dia.” (ibid., p.26)
Pode-se perceber, na história do sistema penitenciário brasileiro, a marca do
confinamento e do extermínio, em que mesmo o programa mínimo apontado no
inciso 21 do artigo 179 da Constituição de 1824 – “As prisões serão seguras, limpas
76
Interessante lembrar a semelhança com a recente proposta (Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) inserida na Lei
de Execução Penal (LEP), do RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado, assim disposto na referida Lei: “A
prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou
disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime
disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias,
sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena
aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças,
o
com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. § 1
O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou
estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da
o
sociedade. § 2 Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado
sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações
criminosas, quadrilha ou bando.”
Esta proposta está ligada à criação, no mesmo período, do Sistema Penitenciário Federal, onde as
celas são individuais, o período de banho de sol é de duas horas por dia, e as Penitenciárias são classificadas
como de Segurança Máxima. Criado em 2006, conforme apresenta o sítio do Ministério da Justiça, “o SPF é
uma iniciativa do Governo Federal para apoiar os estados no combate ao crime organizado” e “foi concebido
para ser um instrumento contributivo no contexto nacional da segurança pública, a partir do momento que isola
os presos considerados mais perigosos do País. Isto significa que tal institucionalização veio ao encontro
sociopolítico da intenção de combater a violência e o crime organizado por meio de uma execução penal
diferenciada.“ (Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/reforma/data/Pages/MJ887A0EF2ITEMID5AC72BD609F
649AEBDB09A5A1D5A28B9PTBRIE.htm>. Acesso em: 12 abr. 2010)
É importante lembrar, porém, que em muitos estados do Brasil, os presos acabam tendo direito a duas
horas de banho de sol por semana, quando têm, o que significa que, em algumas situações, o preso
submetido ao RDD acaba tendo maior acesso a este direito que aqueles que não estão submetidos a este
regime. O que se verifica, de modo geral, é uma negação diária dos direitos – não só ao banho de sol diário,
mas tantos outros direitos, inclusive, nem seria necessário lembrar, humanos – que preconiza a LEP. Pereira
(2006, p. 134) menciona um exemplo desta situação em um presídio do Rio de Janeiro, com um efetivo
carcerário de 1.100 presos: “eles só têm permissão para sair das celas coletivas, em dias de visitas (quando
as recebem); uma vez por semana, quando não chove, por duas horas, para banho de sol; ou, então, para
comparecer esporadicamente aos atendimentos dos técnicos. A carga horária semanal de aprisionamento na
cela é de 168 horas, podendo ser reduzida, no máximo, a 162 horas, descontados os possíveis eventos acima
enumerados.”
85
e arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas
circunstâncias e natureza de seus crimes” – até hoje não se conseguiu cumprir,
conforme indica a autora.
Neder (2009, s.p.), ainda tratando o sistema penitenciário brasileiro,
apresenta a herança das tradições de punição ancoradas em penas muito antigas,
como o degredo e a pena de morte, buscando demonstrar como a violência e a
crueldade presentes no sistema não se constituem um fato excepcional, mas um
acontecimento maior, que tem vínculos com a cultura jurídica e a cultura religiosa
sobre punição. Neste sentido, a autora irá afirmar:
Com base nos tantos esforços do campo democrático em relação à luta pelos
direitos humanos, no contexto da discussão e aprovação da Constituição de 1988,
sublinhamos que se afirmou a ideia de que os réus condenados deveriam cumprir a
pena em presídios próximos de sua região de moradia, tendo em vista a
proximidade de seus familiares. [...] No entanto, a situação é um pouco mais
complexa. Não se trata propriamente de distância (no sentido físico), que afasta os
familiares dos que cumprem pena de privação de liberdade no Brasil; e
consequentemente acentuam a ineficácia do sistema. O mais grave em tudo isso é o
processo (ideológico) que, cravado na cultura política e religiosa, possibilita a
desumanização (dos presos) – o que facilita a indiferença quanto aos maus-tratos,
ou a execução sumária em brigas de grupos rivais dentro dos presídios, que
ocorrem com frequência – fortalecendo os argumentos de que aqueles
predestinados (ao mal) não carecem da proteção do Estado (mesmo quando estão
sob sua tutela e guarda, como é o caso dos presidiários). Ao mesmo tempo, a
ausência de condições e garantias mínimas para que haja manutenção de vínculos
familiares indicam que a pena de degredo, ausente da codificação penal brasileira
republicana, segue sendo aplicada. As mulheres e filhas dos presidiários (sobretudo
elas) são aconselhadas a evitar a visita, pois não são dadas garantias de integridade
física e moral pelas autoridades da justiça criminal. (NEDER, 2009, s.p.)
Todas as demandas já apontadas aqui pelo endurecimento das penas, pela
ferocidade penal, e a seletividade da clientela do sistema penal são, de acordo com
Malaguti Batista (2005, s.p.), permanências históricas no país, que se verificam
desde o Brasil do início do século XIX, quando já eram editadas leis com raízes no
medo branco de insurreições escravas, como a de 1835, em que qualquer delito
contra o senhor, o feitor ou seus familiares cominava em pena de morte para o
escravo.
Nesta conjuntura histórica, marcada por este tipo de tratamento aos escravos
que cometiam determinados crimes77, Malaguti Batista e Zaffaroni (apud MALAGUTI
BATISTA, ibid., s.p.) apontam as raízes das matrizes daquele autoritarismo policial
apontado anteriormente e do vigilantismo brasileiro, além “do sentido histórico da
77
Naquele momento, há que se recordar, eram considerados crimes eventos como a circulação e movimentação
de escravos e pretos forros; lundus, batuques e algazarras; aluguel de casa a escravos etc.
86
crueldade de um conjunto de leis liberais que permitiam ‘o retorno ao poder de uma
senhora, de uma escrava achada com a língua cosida com o lábio inferior’”.
Esses elementos ajudam a compreender como o novo senso comum penal
traz em suas raízes uma herança que é permanentemente acionada na construção
de novos consensos.
3.2 Um processo de inclusão às avessas
“Para os profissionais que trabalham na ‘ponta’,
junto aos presos e familiares, a banalização do mal é
a matéria principal que emoldura o cotidiano. Ela
está estampada nos rostos e corpos dos jovens
presos, arrestados pelo processo político-ideológico
da criminalização da pobreza, antecipada pela
exclusão de qualquer oportunidade de vida, que
aponte uma esperança de futuro”.
(PEREIRA, 2006, p. 340)
O cárcere, devemos lembrar, é uma forma de controle social onde não se
encontra quase nenhum tipo de programa social governamental, o que faz com que
a população carcerária se torne um dos segmentos “mais excluídos da
implementação de políticas públicas e de programas sociais” (FRAGA, s.d., p. 26).
Considere-se o fato de que as políticas públicas devem ser consideradas
como frutos de demandas que emergem da sociedade, e que esta vê o presidiário,
de forma geral, como alguém que merece a “cadeia”, ou seja, apenas a sua
segregação e punição, cujas dificuldades enfrentadas não são tomadas em
consideração, pelo contrário, são vistos como pessoas que apenas dão prejuízos à
sociedade, que “se alimentam e vivem à custa dos impostos que saem do seu
bolso”. Seguindo este raciocínio, não há grandes perspectivas de serem criadas
políticas que venham ao encontro das urgências da população carcerária. Esta
incongruência existente na sociedade vem reafirmar e justificar a profundidade da
negação de direitos em que se encontra esta população.
É claro que diante da “opinião pública”, de modo geral, como vimos, além da
liberdade, o acesso a políticas públicas por esta população deve ser cerceado, mas
87
não devemos deixar de recordar que, grande parte das vezes, a população
carcerária só terá acesso a saúde, educação, alimentação, no momento em que se
encontram nesta condição, o que sugere aquilo que Pereira (2006, p. 340) denomina
“inclusão às avessas”, conforme explicita:
mesmo as ações frágeis e pontuais da política governamental penitenciária podem
ser vistas como uma forma de operacionalizar, às avessas, a “inclusão” daquela
parte dos presos que, minimamente, passa a usufruir de serviços médicoodontológicos, profissionalização, alimentação necessária e suficiente, oferecidos
por uma parte das prisões brasileiras.
Como parte de sua pesquisa sobre a política de execução penal no estado do
Rio de Janeiro, Julião (2009, p. 288) entrevistou a coordenação de Serviço Social no
período, que mencionou que os profissionais do Serviço Social compreenderiam que
a cadeia hoje teria como objetivo “transformar essas pessoas, na sua grande
maioria, excluídas dos seus direitos sociais básicos”. Segundo esta coordenação,
ainda, “por incrível, ilógico e contraditório que possa parecer, hoje, para a grande
maioria dos apenados, estão somente sendo ‘incluídos nas políticas sociais básicas
dentro de uma política penitenciária’”.
É importante destacar, ainda, que em determinados governos, como os dois
governos Brizola (1983-1986 e 1991-1994), a política penitenciária foi encaminhada
de forma diferenciada, ultrapassando “o mero esforço do ‘eficientismo penal’ de
aprisionar, inibir fugas e obscurecer a transparência do sistema penal para a
sociedade”, conforme nos lembra Pereira (2006, p. 136).
Recorda a autora que Brizola, em seus governos, buscou mudar a cultura
policial das corporações78, compreendendo a violência como uma expressão da
questão social (apud SENTO SÉ, 1999, p. 288) e, desta forma, atacaria outras de
suas expressões. É importante lembrar que aquela postura incluiria um discurso
político de respeito “aos lares dos pobres” pelas autoridades policiais, conforme
ressalta a autora, o que acabou por ser utilizado pelos opositores de Brizola como
um dos aspectos motivadores da assunção ao poder de grupos criminosos, já que,
após retirar dos locais onde a pobreza era acentuada a presença ostensiva – e
agressiva – da força policial, não se teria “tapado os buracos”, se assim podemos
78
Recorde-se que o seu primeiro governo estava muito próximo do período mais violento da ditadura militar no
Brasil, e parte daí o fato de, naquele momento, verificar-se uma “banalização da violência” (PEREIRA, op. cit.),
herança daquele período.
88
afirmar, ou seja, outras instituições do Estado não teriam assumido seu papel junto
àquelas populações.
De qualquer modo, o que se deseja demonstrar aqui é que houve momentos
em que alterações significativas no modo de conduzir as políticas referentes ao
aparato penal, ao menos em nível estadual, foram propostas e surgia um novo modo
de tratar o preso: enquanto cidadão, numa perspectiva de defesa dos direitos dos
presos, e é nesta mesma perspectiva que surgirá a LEP, apenas um ano e meio
após o início deste primeiro governo de Leonel Brizola.
No que diz respeito a esta questão da elaboração de políticas penais, ou
melhor, o avanço nas inovações voltadas à legislação no sistema de justiça criminal,
Adorno (1996, p. 190), contudo, nos recorda que
essas inovações não contribuem para alterar o desequilíbrio entre o crescimento da
criminalidade – mais particularmente da chamada criminalidade urbana violenta – e
as taxas de produção da justiça criminal, sempre a reboque dos acontecimentos e
da superpopulação dos presídios.
O que se tem verificado, segundo este autor, é que estas inovações
legislativas tendem a ser quase sempre impulsionadas por pressões da “última
hora”, mesmo que os problemas a serem encarados estejam se arrastando por
décadas, atendendo, assim, às “demandas da ‘opinião pública’ e os requisitos do
controle social eficaz”, o que leva a um resultado quase sempre “frustrante porque
parece não atacar o mal pela raiz” (ADORNO, 1996, p. 190).
Este pode ser considerado o caso da própria criação do Sistema Penitenciário
Federal – SPF (cf. nota 76), que teve como principal proposta o isolamento de
lideranças – que envolve tanto o ingresso de presos provisórios como condenados –
após o agravamento da ocorrência de rebeliões em vários estados brasileiros. De
fato, pode-se registrar uma redução considerável no número de rebeliões pelo país
(após dois anos e seis meses em funcionamento, desde que as unidades de
Catanduvas (PR) e Campo Grande (MS) foram inauguradas, em 2006, houve
redução de cerca de 70% nas ocorrências de rebeliões, motins e mortes nas
penitenciárias dos estados que mandaram detentos às penitenciárias federais).
De acordo com Pacheco (2008, p. 10 - grifo nosso),
após os eventos ocorridos em 2003 e 2006, de extravasamento da violência interna
das penitenciárias, com ações organizadas no interior das prisões buscando
atentados fora de seus muros, o governo brasileiro foi atrás de uma espécie de
89
higienização carcerária, tirando os membros que pudessem gerar uma
‘contaminação’ por sua aludida periculosidade. Neste sentido foi a criação do
chamado Regime Disciplinar Diferenciado em 2003, que é levado a cabo pelo
confinamento solitário, mas dentro da própria instituição.
O autor continua, em contraposição aos dados acima apresentados: “este
esforço não surtiu o efeito esperado, não diminuindo o grau de desordem carcerária,
continuando a ocorrência de rebeliões e de atentados.”
Segundo ele, a busca por solucionar a crise no sistema penitenciário, com a
criação do Sistema Penitenciário Federal, tornou-se uma proposta de solução de
segurança pública, e não apenas penitenciária. Neste sentido, o intento de
maximizar ainda mais a visibilidade e o controle sobre o preso [...] em locais isolados
de seus meios de convivência com outros indivíduos de fora da instituição,
separados dos demais presos, submetidos a toda uma rotina constante e
formalizada de sujeição.
Verificamos que, em uma penitenciária federal, ocorre uma segregação
extrema do preso, a partir do afastamento de seu estado de origem, de seus
familiares, como podemos perceber.
As penitenciárias federais têm um projeto padronizado, cada uma com 12 mil
metros quadrados de área construída, construídas em terrenos de 16 hectares,
cercados de arame farpado com sofisticado sistema de alarme e as unidades são
monitoradas por um forte esquema de segurança externo e interno. A um custo
individual de R$ 35 milhões, cada penitenciária tem em seu interior quatro pavilhões,
chamados de vivências, nos quais são distribuídas as 208 celas, isoladas em quatro
alas, cada uma das quais se subdivide em 13 unidades de encarceramento.
O projeto segue os parâmetros das unidades do antigo modelo do Sistema
Penitenciário Filadélfico, que evocava o isolamento e o silêncio absoluto e consistia
em retribuição absoluta imposta ao condenado. Pedrinha (2009, p. 32) recorda que o
SPF partiu de um caso que foi erigido para ser célebre (a prisão de Luiz Fernando
da Costa, o “Fernandinho Beira-Mar”), e que motivou a reação social, a qual permitiu
a criação da norma do RDD, “direcionada àquele eleito o maior inimigo criminoso do
Brasil, o inimigo número um do Estado.”
O preso submetido ao RDD, por falta grave, não recebe visita íntima nem
assistência espiritual e religiosa, entre outros impedimentos, e, assim, muitos
criminólogos alertam que este regime de cumprimento da pena,
90
embora cumprido em local limpo, higiênico e moderno, consagra uma forma de
tratamento desumano, por atuar como aplicação de tortura psicológica, com
questionável ruptura com a individualização da pena, com os direitos do preso, com
o trabalho remunerado, até então previsto pela Lei de Execução Penal, pelo Código
Penal, pela Constituição da República Federativa e pelos Tratados Internacionais,
dos quais o Brasil é signatário. (ibid., p. 32)
É importante recordar que uma das diferenças entre o RDD e o confinamento
nas prisões de segurança máxima especial, de acordo com Pacheco (op. cit.) é que,
enquanto o primeiro tem natureza disciplinar, ou seja, para que o preso seja
submetido a este regime deve ter praticado fato previsto como crime doloso e/ou
ocasionar subversão da ordem interna penitenciária, no segundo caso, não há
exigência de qualidade jurídica concreta, ou seja, apenas o sentimento de que o
preso possa ser enquadrado na categoria abstrata de “alta periculosidade”,
oferecendo risco à segurança pública ou ao próprio interno é motivo de inclusão do
mesmo no Sistema Penitenciário Federal. A Lei nº 11.671, de 8 de maio de 2008,
que dispõe sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais
federais de segurança máxima, determina, assim, em seu artigo 3º: “serão
recolhidos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima aqueles cuja
medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio preso,
condenado ou provisório.”
A admissão do preso no Sistema Penitenciário Federal depende de decisão
prévia e fundamentada do juízo federal competente, após o recebimento dos autos
de transferência enviados pelo juízo responsável pela execução da pena ou pela
prisão provisória.
No que diz respeito ao período de permanência em uma Penitenciária
Federal, a referida Lei estabelece, no artigo 10, o seguinte: “A inclusão de preso em
estabelecimento penal federal de segurança máxima será excepcional e por prazo
determinado”, e em seu parágrafo 1º: “O período de permanência não poderá ser
superior a 360 (trezentos e sessenta) dias, renovável, excepcionalmente, quando
solicitado motivadamente pelo juízo de origem, observados os requisitos da
transferência.” Como não se estabelece um limite de renovações deste prazo – e aí
surge um polêmico debate no meio jurídico – ocorre a prorrogação “indefinida” deste
período em alguns casos, a partir da solicitação dos juízes dos estados de origem
dos internos, como é o caso de alguns provenientes do estado do Rio de Janeiro,
principalmente, que se encontram nestas unidades há quase quatro anos.
91
O SPF possui, ainda, características como a presença de filmadoras
permanentemente acionadas, que vasculham todo o tipo de movimento realizado
pelo apenado, o que remonta ao modelo Panoptico, porém com maior refinamento e
sofisticação na vigilância, que é maximizada pelas tecnologias desenvolvidas na
área, claro. Assim, percebe-se claramente o desenvolvimento de um Estado que
prima por investimentos em tecnologias de ponta, das mais sofisticadas, na área
penal, porém omite-se no que diz respeito às despesas com políticas sociais,
educacionais, de saúde etc.
Retomemos um pouco mais das raízes deste sistema, a partir de experiências
mais recentes, que têm inspirado a formulação de políticas penais no Brasil, como,
nos anos 197079, a da unidade de controle do presídio de Marion, nos Estados
Unidos da América, que, em 1973, recebeu os presos mais problemáticos de 50
estados da federação. Pacheco (op. cit.) ressalta que as experiências vivenciadas
neste presídio levaram à proposta de construção das supermaxes (penitenciárias de
segurança máxima especial)80. Neste sentido, em 1983, após um preso ter agredido
cerca de quarenta vezes um agente de custódia, este estabelecimento foi fechado e
o Federal Bureau of Prisons converteu esta que era apenas uma unidade de
controle na conformação do regime de confinamento adotado pelo presídio no
modelo do estabelecimento, como um todo. As críticas que este mesmo autor
destaca, a este modelo, são que a frustração destes presos levará a ataques contra
outros presos quando retornarem ao ambiente carcerário normal; que a sua saúde
mental é negativamente afetada pelo confinamento solitário prolongado; e, por fim,
que, quando liberto, a sua raiva ou seus danos mentais serão causa de uma conduta
extremamente violenta. Uma das premissas tácitas que norteiam estes modelos de
isolamento celular é a ideia de que “o controle não é mais visto enquanto questão
disciplinar, mas como um meio de manter a segurança nas instituições através da
pura segregação.” (PACHECO, op. cit., p. 61)
79
Alguns autores defendem que as raízes do desenvolvimento das penitenciárias supermaxes estão localizadas
um pouco mais atrás no tempo, com a inauguração de Alcatraz, em 1934, que tinha como características a
concentração, em uma mesma unidade, de presos considerados de alta periculosidade, “não buscando a
ressocialização do delinquente por meio do isolamento, mas a sua mera anulação”. (PACHECO, 2008, p. 51)
80
De acordo com Pacheco (ibid., p. 65), “supermax” seria “um elemento de resposta militarizada para um
suposto inimigo (tanto interno quanto externo), sendo que este deve ser colocado longe do contato com
qualquer um, bem como do direito. O prisioneiro é gerenciável tanto mais quanto for eficiente a tecnologia de
controle disponível.”
92
Não se pode deixar de mencionar, no que diz respeito ao Sistema
Penitenciário Federal, o fato de que o perfil dos seus internos é um pouco
diferenciado dos internos das unidades penitenciárias dos estados como, no caso da
Penitenciária Federal em Catanduvas, em relatório referente ao ano de 200781,
contar-se, por exemplo, com uma maioria pertencente à faixa etária entre 26 e 40
anos de idade (correspondente a 78,67% do total de internos), uma predominância
de internos que se autodefinem como brancos (54,41% do total) e com escolaridade,
em sua maioria, de Ensino Fundamental incompleto (58,09%).
O que acaba acontecendo, então, é que a
construção do Estado Penal, cuja visibilidade não é de fácil reconhecimento,
desresponsabiliza o Estado no enfrentamento da questão social via políticas sociais
e acaba consentindo a criminalização da pobreza. A naturalização desse aviltamento
dos direitos, sem dúvida alguma, no Brasil, conta com a ajuda da mídia. (Freire,
2008, s.p.)
Com o neoliberalismo, lembramos, não houve uma redução dos gastos
públicos, mas sim um deslocamento do fundo público. E a política de
encarceramento é um exemplo do aumento do gasto público em determinadas
áreas.
Já nos remetemos à questão do cárcere enquanto expressão da
criminalização da pobreza na atualidade, porém a negação de direitos que sofre a
população carcerária82 é anterior ao cárcere. A pobreza, assim, não só se reproduz,
no cárcere, mas se revela como uma face de desumanização pela qual passam
estes sujeitos.
É interessante apontar neste momento, portanto, o período de vida anterior ao
cárcere de grande parte da sua população, já mencionado acima por Wacquant,
marcado por uma realidade de subalternidade e criminalização; na realidade,
vivencia-se, na maior parte das vezes, um processo de recriminalização no cárcere.
Com isto queremos dizer que os presos de presídios e penitenciárias estão privados
81
Fonte: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ887A0EF2ITEMID0174EA9FA2624D3F969E091076FD45F5PT
BRIE.htm>. Acesso em: 29 jun. 2010.
82
Carência que era antes a impossibilidade de acesso à rede de esgoto, à educação, a uma moradia satisfatória,
a partir do ingresso no cárcere, que deveria ser negação, apenas, do “direito de ir e vir”, passa a ser, no Brasil,
negação dos direitos de cidadania, com o impedimento à participação nas eleições, e até mesmo, em muitas
instituições, negação do acesso ao mais básico: roupas, alimentação, material de limpeza. De acordo com
D’Ellia Filho (2007), o sistema penal no Brasil restringe direitos e garantias constitucionais, atuando, portanto,
para além da legalidade e conta com a construção de uma naturalização da barbárie.
93
não só da liberdade, mas também da própria existência, já que, uma vez retirados
do convívio social, tornam-se invisíveis, a tal ponto que, para a própria sociedade,
não faria diferença (ou até mesmo seria considerado interessante para o bem “de
todos”) o extermínio físico dos que ali estiverem. Mas devemos refletir sobre como
estes sujeitos eram vistos antes de serem presos, ou melhor: eram eles vistos?
Malaguti Batista (2003, p. 125 – grifos nossos) recorda que os objetivos da
“ressocialização”, “reeducação” e profissionalização preconizados pela Lei de
Execução Penal (LEP) acabam por ser apenas aparentes, na medida em que
“encobrem com sua negação os seus verdadeiros objetivos: manter sob controle
uma parcela bem determinada da população.”
Verifica-se, ainda neste sentido, uma dissonância entre os objetivos propostos
pela LEP e o modo como é conduzida de fato a execução da pena no país.
Conforme destaca Julião (2009, p. 17),
podemos supor que o objetivo de recuperação enfaticamente é primordial, ainda que
não se abandone a meta punitiva. Examinando, entretanto, os procedimentos
disciplinares e pedagógicos dos seus presídios, evidencia-se a incompatibilidade
entre os dois tipos de atribuições penitenciárias. Para Foucault (2000, p.20), “as
prisões não se destinam a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a
neutralizar a sua periculosidade, a modificar as suas disposições criminosas”.
E o autor continua:
Sensíveis a uma análise científica profunda, tais objetivos, punição e
ressocialização, explicitados como finalidades do sistema penitenciário nas
sociedades contemporâneas são passíveis de críticas e caracterizam-se por ações e
metas completamente antagônicas, devido à impossibilidade de se recuperar
punindo.
De acordo com Pacheco (op. cit., p. 68), a criação das penitenciárias de
segurança máxima especial (Supermax), reflete o abandono daquelas filosofias “re”,
“assumindo apenas o caráter negativo da defesa social”. O que verificamos, porém,
no cotidiano profissional, é que, ao mesmo tempo em que se busca “isolar
lideranças” através de um sistema que prima por esta “Segurança Máxima”,
percebe-se também um esforço institucional em prol do cumprimento dos objetivos
preconizados pela LEP, objetivos estes que se voltam à viabilização de “condições
para a harmônica integração social do condenado e do internado” e, ainda, “orientar
o retorno à convivência em sociedade”, como se pode verificar em seus artigos 1º e
10, assim como no decorrer do seu texto.
94
Não nos deteremos aqui no debate legal sobre a penalização, porém é
importante recordar, conforme já foi mencionado acima, que filosofia (ou filosofias) é
esta que busca “re”integrar, “re”inserir, “re”ssocializar, um indivíduo.
Muito interessante a abordagem de Chies e Varela (2009, p. 21-22), que,
apesar de trazer a mesma conclusão sobre esta ambigüidade. De acordo com estes
autores, ao se caracterizarem pelo prefixo “re”, as palavras dão-nos a idéia de que
algo falhou, e isto justificaria uma intervenção “corretora” da falha (daquele que
falhou). Sendo assim,
As filosofias “re”, em que pesem suas diferenças, têm em comum a capacidade de
mascarar não só as contradições sociais inerentes à sociedade moderna, mas,
também, a seletividade do sistema de justiça criminal e a conseqüente
vulnerabilidade de categorias sociais nesse contexto de contradições e
seletividades.
Ainda de acordo com estes autores,
A ambigüidade do sistema prisional e das práticas de “tratamento” penitenciário está
diretamente vinculada à crença nas filosofias “re” e à negação acrítica de todo o
arsenal de conhecimentos que já se construiu sobre os efeitos perversos do
encarceramento, [...] a prisionização, como um processo de assimilação aos
padrões sociais carcerários (CLEMMER, 1970), e que atinge inclusive os agentes
penitenciários (CHIES et al., 2001); as características peculiares das privações e
adaptações prisionais (SYKES, 1958); entre outros elementos e efeitos
indissociáveis das instituições penitenciárias, já estão suficientemente demonstrados
pela ciência, numa comprovação de total incompatibilidade entre o discurso “éticoteleológico” da(s) política(s) criminal(is) e a modalidade punitiva da privação da
liberdade. O grau de ambiguidade, portanto, é tanto maior quanto maior for a crença
nas filosofias “re” e a negação dos paradoxos prisionais.
Os autores trabalham, porém, com a mesma perspectiva – que exclui esta
ambiguidade no que se refere ao Sistema Penitenciário Federal – de Pacheco,
supracitado:
Neste contexto, por mais paradoxal que pareça ser, as atuais práticas do Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD) e a própria Prisão Federal de Catanduvas (PR) –
recentemente inaugurada – assim como os presídios tecnológicos americanos,
deixam de ser ambíguos. Como práticas e fábricas de exclusão e imobilização não
se vinculam às promessas das filosofias “re”; escancaram e explicitam seu objetivo
de controle, descomprometido com qualquer outra promessa que não seja a
expectativa de segregação segura.
Não é demais destacarmos quatro objetivos ou motivações que justificam a
existência das prisões como as conhecemos na modernidade: 1) uma motivação
ético-teleológica, segundo a qual, através do castigo recorda-se a lei, educa-se o
criminoso, protege-se a sociedade; 2) econômica, na medida em que se utiliza o
95
trabalho dos condenados para fins econômicos; 3) política criminal e penalógica, de
acordo com a qual é elaborada uma “nova economia dos castigos”, capaz de tornálos mais toleráveis sem que se perca a capacidade de contenção das “classes
perigosas”; 4) enfim, a motivação disciplinar, que, conforme apontado anteriormente,
envolve um adestramento da mão-de-obra.
Os objetivos declarados da prisão, como se sabe, são a retribuição, a
prevenção, e a promoção da (re)inserção harmônica e, para tal, submete-se o
indivíduo a um controle total, ou quase total, em que há uma impossibilidade de
fuga, que não é somente física; uma imobilidade vertical e a limitação do número de
papéis que um indivíduo pode assumir, além da limitação e condicionamento das
possibilidades que este tem para selecionar o seu papel. Todos estes processos
acabam por gerar a “desindividualização” dos sujeitos, que acabam por se adequar
à cultura prisional (“prisonização”).
O sistema penal, hoje, parte então do princípio do “controle social punitivo
institucionalizado”,
cuja
expectativa
de
racionalidade
se
dá
a
partir
do
desenvolvimento do fluxo: aparato legislativo – aparato policial – aparato judicial –
aparato prisional, mas que acaba por apresentar no seu real funcionamento um
excesso de burocracia, seletividade, a questão da “cifra negra”83, a rotulagem etc.
Esta realidade remete ao fato de o discurso jurídico-penal revelar-se como
falso, sendo inclusive reproduzido por aqueles que se colocam em posições
“progressistas”, conforme elucida Zaffaroni (1991, p. 14), na medida em que é
sustentado, em boa parte, “pela incapacidade de ser substituído por outro discurso
em razão da necessidade de se defenderem os direitos de algumas pessoas.”
Segundo este mesmo autor,
a realidade operacional de nossos sistemas penais [como descrita acima] jamais
poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e [...] todos os sistemas
penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder
que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua
essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas
penais.
Assim, destacamos,
a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores
condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a
83
Em poucas palavras, a chamada “cifra negra” seria a diferença entre o número real de crimes cometidos e
aqueles que chegam ao conhecimento dos órgãos da justiça criminal.
96
verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são
características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os
sistemas penais. (ibid., p. 15 – grifos do autor)
As características apontadas acima são inerentes ao sistema de justiça
criminal, cujo papel, no Brasil, apresenta como um dos fatores que põem em relevo
esta imanente contradição aquela “inclusão às avessas”, mencionada acima. Assim,
propostas que estão legalmente presentes no discurso jurídico-penal, como a da
Assistência
Penitenciária
Coordenação-Geral
de
(LEP),
ou
Tratamento
institucionalmente
Penitenciário
(no
definidas,
âmbito
do
como
a
Sistema
Penitenciário Federal), fazem com que, ao mesmo tempo em que dentro de uma
unidade penal o preso se sinta, de certo modo, mais protegido, pois não está sujeito
aos riscos a que se expõe na rua, além de ter acesso a políticas as quais não teria
acesso extramuros, como saúde, educação etc. Sendo assim, é preciso levar em
conta o fato de que, mesmo tendo como funções principais a segregação e a
punição, demandas emergem do ambiente carcerário, na medida em que é
composto por indivíduos com necessidades humanas e sociais.
Em meio a esta realidade, quando refletimos sobre o trabalho do assistente
social na área, podemos perceber a importância de um profissional que esteja atento
às possibilidades em meio a tantos desafios impostos pelo cotidiano. Conforme
afirma Pereira (2005, p.13):
O contato diário com a população presa nos remete às questões mais gerais
debatidas noutros campos, quando se discute a vulnerabilidade da população, a
face amarga do escasso acesso aos direitos sociais; é quando se percebe a
inserção dos jovens no crime, desprovidos de uma leitura da correlação de forças, o
instrumento útil que cada jovem representa para os dois lados da indústria citada.
Esta discussão é longa, especialíssima, que devemos aprofundar, para que
tenhamos cada vez mais claro este movimento de forças – Estado/sociedade,
exclusão/penalidade,
penalidade/produção
do
clamor
público,
coerção/repressão/aprisionamento.
Forti (op. cit., p. 122) nos recorda que mesmo que se destaque a importância
dos Princípios e/ou referências contidas no Código de Ética Profissional do Serviço
Social em vigor, deve-se levar em conta o fato de que “esses só ganham significado,
só podem ser objetivados, no âmbito das situações concretas, ou seja, no cotidiano
do exercício profissional.”
Esta autora nos lembra, ainda, que o Assistente Social é um trabalhador
assalariado que possui relativa autonomia, imposta pelos limites das instituições
empregadoras, o que permite que dirija o sentido – permeado pelas propostas de
97
controle social e difusão de ideologias oficiais junto às classes trabalhadoras – do
seu exercício profissional para que direitos sociais sejam efetivados, para que seja
construída a cultura do público, para o exercício democrático, levando-se em
consideração o caráter contraditório das relações sociais na sociedade capitalista.
É importante, para que compreendamos a peculiaridade do trabalho do
assistente social no campo do sistema penitenciário, mencionar alguns dos dilemas
que determinam esta “relativa autonomia” profissional. Neste sentido, faz-se
necessário destacar o peso de uma cultura da discricionariedade e onde a lógica do
poder se manifesta de modo profundo e explícito sobre os profissionais que atuam
neste campo. Para que seja possível construir, ao menos na esfera de atuação do
Serviço Social, uma cultura que seja pautada na garantia de direitos, é necessário
que o profissional tenha uma postura que, naturalmente, irá de encontro aos
direcionamentos definidos pelo instituição, que normalmente priorizam as “questões
de segurança”. Segundo Pereira (2006, p. 135):
Ainda que a esfera legal seja, por vezes, repudiada, desconsiderada pelos sujeitos,
por exemplo, da área de segurança, ela ainda é, a nosso ver, o instrumento pelo
qual, institucionalmente, pode-se buscar suporte para o embate, bem como
encontrar estratégias para, junto ao escalão superior de chefias, discutir estas e
84
outras proibições. Portanto, entendemos que a gestão penitenciária, exercida pelos
agentes públicos nas distintas instâncias da instituição, pode vir a concretizar esta
mediação.
Não se pode pensar, porém, com isto, que os profissionais que atuam com as
políticas públicas que dizem respeito às assistências garantidas pela LEP (à saúde,
jurídica, educacional, social) não estão sujeitos às inflexões da cultura acima
caracterizada; pelo contrário, também, em seu cotidiano, têm seus posicionamentos
e atuação marcados por esta “inserção na função disciplinadora”, como afirmou
Pereira (id., p. 345), o que torna ainda mais complexa esta realidade.
Acreditamos ser possível, ainda assim, mesmo com as dificuldades impostas
pelo cotidiano profissional, realizar um trabalho consoante com as propostas do
Projeto Ético-Político Profissional do Serviço Social, conforme destaca a autora (id.,
p. 339):
vivenciar a ‘ponta’, ainda permite uma certa autonomia, o gerenciamento de alguma
parcela do espaço profissional, quando estamos face a face com os presos, mesmo
84
A autora havia citado como exemplo destes embates institucionais o caso do chefe de segurança que impedia,
sob o “argumento”: “isto é proibido”, o preso de ser atendido juntamente com a sua família, na sala do Serviço
Social.
98
que não comunguemos com as linhas mais gerais da política penitenciária
implementada.
A coordenação de Serviço Social, em entrevista a Julião (2009, p. 172),
supracitada, destacava que
o Serviço Social hoje no sistema penitenciário está mais voltado para as garantias
dos direitos individuais e coletivos dos apenados, do que propriamente a uma
complementação do atendimento social oferecido pela área de saúde. As mudanças
não se restringiram ao campo da estrutura, mas sim no político e ideológico [...] O
serviço social sempre teve um viés muito político. Porque a gente sempre está
questionando via política social, via política pública às questões sociais que se
apresentam, de acordo com o que está estabelecido na macro-estrutura. Ainda
estamos com um caráter muito assistencialista, envolvido em uma atuação muito
burocrática, de culpabilização, tanto dele (interno) quanto da família. O serviço social
hoje no sistema penitenciário como um todo, no Brasil inteiro, tem como missão
provocar nos nossos apenados uma reflexão sobre o porquê dele estar na prisão.
Mas não o porquê do castigo, do delito, do crime. Não aquela coisa lombrosiana de
que ele é o culpado, não. Uma reflexão de porquê dentro de uma população, dentro
de uma sociedade, ele de repente está naquela situação.
Segundo o autor, ainda,
o coordenador afirmou que o papel do serviço social é promover a reflexão do
indivíduo para a sua realidade social, principalmente sobre o papel das instituições
sociais na sociedade contemporânea. Enquanto o serviço social está mais voltado
para as questões sociais que envolvem o apenado, a psicologia, ao contrário, está
mais voltada para o indivíduo propriamente dito. (id., p. 172)
Consideramos, de fato, a importância de se ter em mente a realidade que
envolve não só o momento do cárcere na vida dos sujeitos ali presentes, os presos,
mas também, como visto, o período que antecedeu o aprisionamento, numa
perspectiva crítica e propositiva, e que leve a uma atitude contrária ao que se
verifica nas posturas adotadas pela maior parte dos funcionários das instituições
penais, negadoras do acesso a direitos como extensão da punição.
Pereira recorda a recorrência de se veicularem notícias, quando ocorre algum
evento crítico no interior de alguma penitenciária ou presídio, que são comentadas
por estudiosos da temática da violência e segurança pública, convidados a opinar
sobre possíveis soluções e prevenções de episódios do gênero. Afirma a autora
(2006, p. 343):
afinal, a indústria lícita decorrente do combate à criminalidade necessita deste
combustível, desta encenação para alimentar sua máquina. Estampa-se a crueldade
visível, efetivamente ocorrida nos incidentes prisionais, mas omitem-se as reais
condições que a fomentaram e colhem-se os dividendos para acirrar, ainda mais, o
combate “aos inimigos” confinados e a outros futuros habitantes das prisões. São
99
“ervas daninhas” (BAUMAN, 1998), impossibilitadas de sobreviver no jardim da
sociedade. Para aqueles jovens presos, faltou um eficaz aparato de proteção social
e sobeja um vigilante sistema de justiça criminal.
Importa destacar a importância do Serviço Social atentar para aquelas
recentes construções de um novo senso comum penal, na medida em que,
conforme pudemos constatar, vários são os desafios que se colocam na prática
cotidiana do assistente social. Assim, ao compreendermos o modo como se
desenvolvem algumas das questões que nos são trazidas como demandas destes
usuários, presos e seus familiares, teremos maiores possibilidades de, com um olhar
crítico, perceber as questões que estão por detrás destas demandas.
O Serviço Social possui uma especificidade enquanto profissão que atua
“sobre todas as necessidades humanas de uma dada classe social, ou seja, aquela
formada pelos grupos subalternos, pauperizados ou excluídos dos bens, serviços e
riquezas dessa mesma sociedade”, e que, assim, “atuam basicamente na trama das
relações de conquista e apropriação de serviços e poder pela população excluída e
dominada” (Carvalho; Netto, 2007, p. 52). Considerando isto, queremos afirmar que
é imperativo que o assistente social compreenda as mediações dos processos que
informam as demandas das atividades no cotidiano profissional, sobretudo ao atuar
como “mediador privilegiado” (id., p. 51) na relação entre a população usuária e o
Estado.
Ressalte-se que a direção social dada à prática é de fundamental importância
no nosso cotidiano profissional, esta, porém, normalmente é força contrária à força
da direção social dada pela sociedade capitalista transnacional, que conta como um
de seus instrumentos poderosos a informação, conforme temos verificado até aqui,
lembram Carvalho e Netto (id., p. 56).
Assim, considerando que toda a prática social é determinada, a diferença
pode – e deve – estar na direção desta prática profissional, que pode tomar “uma
direção mais profunda e global”, e é aí que ela passa a ser denominada práxis
social,
supõe um processo de reflexão / ação em espiral e, sobretudo, supõe uma atividade
humana que se despojou da consciência comum, da prática utilitária, espontaneísta,
e galgou um nível superior de consciência, que se expressa em ação criadora,
transformadora, realizante (produtiva) e gratificante (expõe o sujeito como ser total
no mundo e com o mundo). (ibid., p. 59)
100
O assistente social que trabalha nesta área precisa, portanto, estar ciente das
questões que se apresentam cruciais para dar legitimidade às ações de
gerenciamento da pobreza com as quais nos deparamos na atualidade, pois são
estas questões que constroem o senso comum penal na contemporaneidade.
Nesta conjuntura em que os direitos dos presos são constantemente
negados, e a realidade de violência apresentada pelos instrumentos midiáticos
provoca uma reação da sociedade que se pauta no ideal de segregação e no anseio
pela punição e mesmo por vingança contra alguns, é mais do que um desafio, é um
dever buscar alternativas de ação no cotidiano profissional, conforme lembra Torres
(2001, p. 76-77):
Ao Serviço Social como profissão cabe a tarefa de confrontar-se com a realidade
das prisões brasileiras, de modo crítico e ético, por meio de uma prática competente
teórica e politicamente, viabilizando respostas que superem, também pela atuação
profissional, este sistema punitivo violador incessante dos direitos humanos.
101
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência, na atualidade, tem sido tema de destaque nos noticiários, na
mídia impressa e televisiva, o que tem provocado uma onda de medo e insegurança
na sociedade.
Em nossa proposta, buscamos realizar uma reflexão crítica sobre a reedição
de noções que contribuem para a criminalização da pobreza na atual conjuntura.
Assim, buscamos desvendar o significado destas reedições e seus nexos com os
rumos das políticas sociais na contemporaneidade, considerando-se o fato de a
política social ser hoje parte de um projeto de gerenciamento da pobreza, que
envolve um controle social não só da pobreza, mas também dos pobres.
Procuramos, no decorrer desta dissertação, demonstrar que esta realidade
não é novidade, tanto no que diz respeito às formas de violência que se apresentas,
considerando-as como expressões da questão social, que é fenômeno que
acompanha o capitalismo desde o seu nascimento, quanto no que se refere a esta
construção de vilões e a vinculação da violência à pobreza, através de um processo
de criminalização da pobreza, pela construção de mitos como o de classes
perigosas, temática abordada no segundo capítulo.
Desta forma, verificamos, ao trazer estas questões por um viés histórico, por
meio de abordagens historicamente centrais, que o que ocorre na atualidade é uma
reedição perversa do ideário que constituirá as bases de legitimação de
determinadas políticas de controle social das classes subalternas. Nos dias atuais a
construção daquele ideário, como tentamos demonstrar, tem como forte aliada uma
mídia que traduz os anseios da classe dirigente, atuando como instrumento para a
obtenção do consenso da população. Ou seja, a instrumentalidade histórica da
elaboração de conceitos como o de classes perigosas, e de mitos que garantiram e
ainda garantem o encaminhamento de políticas higienistas no Brasil, como vimos,
tem, portanto, o apoio determinante da indústria midiática, que alimenta no
pensamento hegemônico as suas bases de legitimação.
Antes de abordar estes processos, porém, foi necessário desvendar o sentido
histórico de alguns dos processos intrínsecos à questão social, com destaque para o
que ficou conhecido como “exclusão social”, noção ainda exposta a imprecisões no
seu trato, o que levou a uma fetichização conceitual. A polêmica em torno desta
102
noção envolve, como vimos, diferentes posicionamentos acadêmicos sobre o tema,
o que nos remete àqueles autores que a apresentam como um processo que
dividiria a sociedade entre os que estariam integrados ao sistema e aqueles que
seriam “supérfluos”, “inúteis para o mundo”, e autores que buscam demonstrar os
riscos de tais interpretações. A partir da análise deste conceito, foi possível enxergar
e elaborar com maior clareza a reflexão sobre estes que são retirados da sociedade
– em favor de uma maior segurança dos “cidadãos de bem” – os presos.
Para compreender a ofensiva do Estado no investimento em construção de
novos presídios e penitenciárias, em instrumentos e equipamentos de segurança,
como armas, algemas, camburões e “caveirões”, entre outros, é imperativo desvelar
as reais dificuldades enfrentadas pela população-alvo das políticas de controle
social, sob um viés crítico, que leve em conta os aspectos políticos, econômicos e
sociais que permeiam os processos que engendram as situações que levam esta
população a se constituir a principal destinatária deste tipo de intervenção do
Estado. Assim, a partir do resgate destas novas formas de criminalização da
pobreza, procuramos desvelar a sua relação com o sistema penal, enquanto parte
deste aparato de controle social dos pobres, e, com isto, localizar neste mesmo
sistema as contradições entre as previsões legais e propostas, e o modo como é
conduzido de fato o aparato penal.
As reportagens que trouxemos no decorrer do segundo capítulo apresentam
um pouco dessas estratégias que difundem uma “cultura do medo”, buscando
identificar nos meandros das falas e discursos, oficiais ou não, os posicionamentos
que levam à construção da hegemonia (“o lócus do consenso”) acima mencionada.
Como foi possível verificar no último capítulo, consolida-se com a construção
do Sistema Penitenciário Federal, com as penitenciárias federais de segurança
máxima, a proposta de segregação radical de determinados indivíduos e, ao mesmo
tempo, revela-se a situação caótica do sistema penitenciário na maior parte dos
estados brasileiros. Este processo está diretamente ligado, e encontra a sua
viabilidade, sobretudo, a partir do novo senso comum penal, que visa criminalizar a
miséria e banalizar a violência.
Esta realidade revela, como visto, a intensidade com que se coloca a
realidade da criminalização da pobreza quando se trata das políticas penais,
permeadas pelas contradições entre suas propostas de “recuperar”, “ressocializar”,
“reeducar”, e a dura realidade que vivenciam os sujeitos que passam pela
103
experiência do encarceramento no Brasil, país onde os “direitos humanos”, conforme
vimos acima, são menosprezados quando se trata dos “direitos de presos”.
Buscamos, com a presente dissertação, contribuir para aprofundar este
debate no âmbito do Serviço Social, considerando o campo das políticas públicas
lócus privilegiado de atuação deste profissional, não só por ser, ainda hoje, uma das
áreas que mais empregam assistentes sociais no país, mas também porque aí o
profissional tem a possibilidade de atuar enquanto mediador entre o usuário e o
Estado, através da garantia do seu acesso a direitos assegurados legalmente.
No que diz respeito ao campo do sistema penitenciário, como vimos, o
assistente social trabalha no âmbito das políticas públicas, evidentemente, porém
uma série de questões conferem a esta área uma complexidade e uma
especificidade que a tornam ao mesmo tempo desafiadora e um valioso – e
necessário – terreno de investigação.
Por fim, vale registrar que chegamos ao final deste estudo com a certeza que
todo final é sempre um começo de novos e infinitos começos.
104
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