1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO A FILOSOFIA DA DIFERENÇA DE GILLES DELEUZE NA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL Supervisor: Prof. Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Pesquisadora: Cristiane Maria Marinho Campinas - SP 2012 2 CRISTIANE MARIA MARINHO Relatório apresentado ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – como requisito parcial para obtenção do título de pós-doutora na Área de Concentração Filosofia e História da Educação. Supervisor: Prof. Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Campinas – SP 2012 3 4 CRISTIANE MARIA MARINHO A FILOSOFIA DA DIFERENÇA DE GILLES DELEUZE NA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL _________________________________________ Prof. Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo 5 Ao meu pai, por tudo. 6 AGRADECIMENTOS Aos professores Eduardo Triandópolis e José Expedito Passos pelo incentivo dado na elaboração do projeto e na liberação das aulas. À professora Tereza Callado, pela confiança de sempre e pelo material indicado. Aos alunos componentes do GEF – Grupo de Estudos Foucaultianos – que tanto me apoiaram quanto tão bem conduziram o grupo na minha ausência. Ao Curso de Filosofia da UECE, pela liberação. À UECE, parceira intelectual. À professora Marise D’Almeida, minha amiga Baía, pelo carinho e pela amizade e quem, um dia, me deu a Filosofia da Educação de presente. À minha amiga Toinha, que sempre cuidou de tudo para que eu me “alimentasse de letrinhas” com a tranquilidade necessária. Aos amigos professores Natal e Dorgival, pelas discussões, solidariedade, amizade e pelos materiais indicados. Ao Robson e ao Chano, guardiões e companheiros. À minha amiga Vanda Tereza, pelo companheirismo, pela colaboração na revisão do trabalho e pelo incentivo na concretização desse projeto, a quem também dedico o resultado dessa realização. À minha amiga Carolina Rocha, assistente maravilhosa nos trabalhos de transcrição, formatação, inspiração, tradução, a quem também dedico este trabalho. À minha amiga Cristina, da Pousada Solar dos Pássaros, que tão carinhosamente me acolheu em Barão Geraldo, Campinas. Aos professores entrevistados: Prof. Dr. Paulo Ghiraldelli (UFRRJ); Prof. Dr. Sylvio Gadelha (UFC); Prof. Daniel Lins (UFC); Prof. Dr. Walter Kohan (UFRJ); Prof. Dr. Sílvio Gallo (UNICAMP); Prof. Dr. Nuno Fadigas (Universidade do Porto - Portugal), com quem muito aprendi e que muito me inspiraram. Ao Prof. Dr. Sílvio Gallo, pela confiança da aceitação do projeto, pela liberdade de pesquisa e pela generosidade do compartilhamento do saber. 7 Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Gilles Deleuze – Diferença e repetição [...] não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida. Gilles Deleuze – O que é a filosofia? 8 RESUMO O presente trabalho, A Filosofia da diferença de Gilles Deleuze na Filosofia da Educação no Brasil, tem por objetivo central apresentar o pensamento filosófico educacional de alguns pensadores brasileiros sob a inspiração da filosofia da diferença deleuzeana, realçando o que distingue esta produção da Filosofia da Educação tradicional regida pela filosofia da Representação. Para tanto, a pesquisa se divide em quatro capítulos: o primeiro capítulo, De Deus à Diferença: trajetória das matrizes filosóficas na educação brasileira, elenca as matrizes filosóficas mais expressivas no nosso país, bem como as práticas e as teorias educativas resultantes delas; o segundo capítulo, A Filosofia da Educação no Brasil, expõe a trajetória de constituição da Filosofia da Educação como campo de saber específico e apresenta três obras brasileiras representativas desse percurso; o terceiro capítulo, A Filosofia da Diferença de Deleuze, explicita os contornos principais do pensamento deleuzeano no que diz respeito à sua Filosofia da Diferença; o quarto e último capítulo, Filosofia da Diferença deleuzeana na Filosofia da Educação no Brasil ou para uma (não)-teoria da quebradura da vara, apresenta a emergência da Filosofia da Diferença deleuzeana no Brasil e sua posterior intercessão na Filosofia da Educação, com ênfase em quatro nomes representativos: Tomaz Tadeu, Daniel Lins, Walter Kohan e Sílvio Gallo. Em anexo, o trabalho trás, ainda, as entrevistas com estes filósofos brasileiros, somadas a mais duas entrevistas de professores brasileiros e uma de um português: Paulo Ghiraldelli, Sylvio Gadelha e Nuno Fadigas, os quais também falam da intercessão deleuzeana na educação. RESUMEN El presente trabajo, La Filosofia de la Diferencia de Gilles Deleuze en la Filosofia de la Educación en Brasil, tiene por objecto central presentar el pensamiento filosófico educacional de algunos pensadores brasileños con la inspiración de la filosofia de la diferencia deleuzeana, realzando lo que diferencia esta produción de la Filosofia de la Educación tradicional regida por la Filosofia de la Representación. Para tanto, la pesquisa se divide en cuatro capítulos: el primero capítulo, De Diós hasta la Diferencia: trayectoria de las matrizes filosóficas en la educación brasileña, elenca las matrizes filosóficas más expresivas en nuestro país, tal como las práticas y las teorias educativas resultante de ellas; el segundo capítulo, La Filosofia de la Educación en Brasil, expone la trayectoria de constitución de la Filosofia de la Educación como campo de saber específico y presenta tres obras brasileñas representativas de esto trayecto; el tercero capítulo, La Filosofia de la Diferencia de Deleuze, explica los contornos principales del pensamiento deleuzeano, con relación a su Filosofia de la Diferencia; el cuarto y último capítulo, Filosofia de la Diferencia deleuzeana en la Filosofia de la Educación en Brasil o para una (no)- teoria de la quiebra de la vara, presenta la emergência de la Filosofia de la Diferencia deleuzeana en Brasil y su posterior interceción en la Filosofia de la Educación, con énfasis en cuatro nombres representativos: Tomaz Tadeu, Daniel Lins, Walter Kohan e Silvio Gallo. En anexo, el trabajo tiene, aún, las entrevistas con estos filósofos brasileños, as de más tres e la de uno portugués, Paulo Ghiraldelli, Sylvio Gadelha e Nuno Fadigas, los cuáles hablan de la interceción deleuzeana en la educación. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 – DE DEUS À DIFERENÇA: TRAJETÓRIA DAS MATRIZES FILOSÓFICAS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA ....................................................... 16 1. Matrizes filosóficas da educação brasileira ...................................................................16 2. Colônia (1500-1822): de Deus à ciência mitigada ........................................................ 17 2.1. A matriz filosófica aristotélica-tomista dos Jesuítas .................................................. 17 2.2. A matriz filosófica empirista e iluminista das reformas pombalinas ........................ 24 2.3. O surgimento da matriz filosófica Eclética Espiritualista no Período joanino ........... 36 3. Império (1822-1889): entre o Ecletismo e o Cientificismo ........................................... 40 3.1. A matriz filosófica Eclética Espiritualista do Império ............................................... 43 4. República (1889-2012): do Positivismo à Filosofia da Diferença ................................ 52 4.1. Primeira República (1889-1930): ciência, crença, prática e liberdade ...................... 53 4.2. Segunda República (1930-1937): missão francesa e pragmatismo versus neotomismo ....................................................................................................................... 75 4.3. Quarta República (1945-1964): liberalismo e socialismo cristão .............................. 86 4.4. Regime militar (1964-1985): metodologismo, tecnicismo, reprodutivismo-crítico e anarquismo ........................................................................................................................ 93 4.5. Décadas de 1980-2012: Capital, Razão Instrumental, Redescrição e Diferença....... 104 CAPÍTULO 2 – A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL .............................. 118 1. Breve histórico da Filosofia da Educação no Brasil ..................................................... 118 2. Anísio Teixeira: pioneirismo e modernidade na Filosofia da Educação ...................... 125 2.1. Pequena introdução à filosofia da educação – a escola progressiva ou a transformação da escola ..................................................................................................132 3. A Filosofia da Educação de Paulo Freire: diálogo da educação como prática da liberdade ........................................................................................................................... 149 3.1. Pedagogia do oprimido ............................................................................................. 154 4. Dermeval Saviani e Filosofia da Educação: os condicionamentos sociais da educação . ........................................................................................................................................ 168 4.1. Escola e democracia ..................................................................................................174 CAPÍTULO 3 – A FILOSOFIA DA DIFERENÇA DE DELEUZE .......................... 196 1. Breve Histórico da Filosofia da Diferença ...................................................................196 1.1. A Filosofia da Diferença e seus filósofos ..................................................................198 1.2. Deleuze: o filósofo da Diferença ............................................................................... 202 2. Deleuze: o eterno retorno da repetição da diferença .................................................... 210 2.1. Repetição ................................................................................................................... 212 2.2. Diferença ................................................................................................................... 219 2.3. Eterno retorno ............................................................................................................ 227 3. A Filosofia da Filosofia da Diferença........................................................................... 233 4. A Filosofia da Educação na Filosofia da Diferença ..................................................... 243 4.1. Deleuze: aprendizagem como intermediação entre saber e não-saber ..................... 247 10 CAPÍTULO 4 – FILOSOFIA DA DIFERENÇA DELEUZEANA NA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL OU PARA UMA (NÃO)-TEORIA DA QUEBRADURA DA VARA .......................................................................................... 251 1. A diferença deleuzeana na Filosofia da Educação em terras brasileiras ...................... 252 2. Tomas Tadeu: implicações do pensamento da diferença para uma teoria do currículo257 3. Daniel Lins e Mangue’s School: pedagogia rizomática, escola do acontecimento, do devir e do afecto ............................................................................................................... 269 4. Walter Kohan: o devir-criança do ensino, da infância e da Filosofia........................... 284 5. Sílvio Gallo: “educação menor” como aposta nas minorias e na possibilidade das diferenças .......................................................................................................................... 303 CONCLUSÃO................................................................................................................. 319 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 332 ANEXOS ......................................................................................................................... 339 Entrevistas: .................................................................................................................... 340 - Daniel Lins – UFC – CE ............................................................................................. 340 - Walter Kohan – UFRJ – RJ ....................................................................................... 366 - Sílvio Gallo – UNICAMP – SP ................................................................................... 373 - Paulo Ghiraldelli – UFRRJ – RJ ............................................................................... 392 - Sylvio Gadelha – UFC – CE ........................................................................................ 424 - Nuno Fadigas – Universidade do Porto – Portugal ................................................... 450 11 INTRODUÇÃO A partir da década de1990, a perspectiva filosófica que embasa a reflexão educacional brasileira tendenciou para o que se chama, mais amplamente, de pensamento pós-moderno, questionando radicalmente a centralidade do sujeito, rejeitando o discurso filosófico da modernidade, colocando sob suspeita todo o projeto iluminista da modernidade racionalista, acusando o saber de arma de poder, condenando a prepotência das metanarrativas modernas, afirmando que a história é pura contingência e defendendo a importância do desejo e do corpo. Assim, no final do Século XX e com maior celeridade no Século XXI, a literatura produzida no Brasil sobre a Filosofia da Educação vem recebendo forte influência dessa perspectiva pós-moderna. Com isso, temos visto o surgimento de uma crítica desconstrutiva dos paradigmas do conhecimento, da ciência e da filosofia da modernidade, embasados na centralidade da razão. Os grandes teóricos dessa perspectiva são: Michel Foucault, Derrida, Barthes, Lyotard, Baudrillard, Deleuze e Guatarri. Esses pensadores são tidos como pósmodernos ou pós-estruturalistas ou pós-críticos e trazem, em comum, a crítica ao Projeto Emancipatório Iluminista da Modernidade, que postulava, dentre outras coisas, a libertação do homem por intermédio do aperfeiçoamento de sua racionalidade. O conceito tido como central nesse pensamento é o da Diferença, daí este ser conhecido, também, como Filosofia da Diferença. O conceito de Diferença se fortaleceu ainda mais quando o fundamento do Ser foi negado em sua estrutura estável, foi declarada a morte da metafísica e foram postas em xeque as conquistas políticas, econômicas e filosóficas da Modernidade . Assim, se para as vertentes filosóficas educacionais, inspiradas no pensamento pós-moderno, o saber, a razão e o conhecimento não são mais sinônimos de liberdade como o fora na Modernidade, e agora significam poder, então a educação não pode ser somente transmissão de saber, aperfeiçoamento da razão e produção de conhecimento. Agora, é exigido dela um pensamento criativo e contestador e uma prática libertadora dos desejos e afetos em relação aos poderes estabelecidos. Nesse contexto histórico, filosófico e educacional, o presente trabalho, A Filosofia da diferença de Gilles Deleuze na Filosofia da Educação no Brasil, tem por objetivo central apresentar o pensamento filosófico educacional de alguns pensadores brasileiros sob a inspiração da filosofia da diferença deleuzeana, realçando o que 12 distingue esta produção da Filosofia da Educação tradicional que é regida pela filosofia da Representação. De forma mais ampla podemos dizer que o presente texto apresenta o resultado de uma investigação sobre a influência da Filosofia da Diferença de Deleuze na Filosofia da Educação no Brasil, na contemporaneidade. Por um lado, o interesse pessoal por essa temática resulta de um longo processo de pesquisa e atividades afins, desenvolvidas ao longo dos vinte e seis anos de magistério superior, na Universidade Estadual do Ceará – UECE, onde ocupo o cargo de Professora Adjunta, ministrando, dentre outras, as Disciplinas Filosofia da Educação e História da Filosofia no Brasil, a partir das quais desenvolvi um interesse crescente em torno de assuntos que cruzam esses dois universos. Outra razão para o interesse nessa pesquisa é a minha trajetória teórica. Na Monografia de Graduação, pesquisei sobre o pensamento de Foucault para responder a uma insatisfação diante do pensamento metafísico que predominou na formação inicial. Na Academia e no Mestrado, adveio outra insatisfação: o pensamento foucaultiano não conseguia responder às angústias diante das desigualdades sociais e política, bem como a posição teórica de indiferença de alguns pesquisadores diante da problemática social. Esse conjunto de elementos me conduziu a buscar novos rumos filosóficos. Parti, então, para um estudo aprofundado do marxismo, linha de investigação predominante no Mestrado. Mas, o aprofundamento nos estudos marxianos e o convívio com certos radicalismos, inerentes a alguns estudiosos dessa seara, me levaram de volta ao início das minhas pesquisas de juventude. Já na maturidade intelectual, cursando o Doutorado, pude perceber que os radicalismos teóricos não respondiam, de fato, aos problemas complexos da realidade, por que a própria realidade é complexa e múltipla, não comportando segmentações ou exclusões que ela própria não contém. Nem tampouco os pensadores pesquisados traziam em seu pensamento esses radicalismos excludentes. O fruto dessa reflexão foi a Tese de Doutoramento, na qual procurei me distanciar de uma posição extremista entre as fronteiras do marxismo e o pensamento pós-moderno, buscando compreender a validade de ambos e o que cada um possibilita para o desvelamento e intervenção da/na realidade do mundo e da vida. Outro motivo que me direcionou a empreitada dessa investigação foi a compreensão da importância de fazermos a memória da nossa história, ou seja, no nosso caso, a memória da Filosofia no Brasil. O registro e a atenção dessa história no âmbito 13 da Filosofia têm sido descuidados sistematicamente, seja pela nossa subserviência aos grandes referenciais europeus que marcaram a nossa formação filosófica, seja pelo nosso parâmetro de considerar filosofia somente o exercício exegético do conjunto de obras clássicas. A importância do registro do nosso fazer filosófico é fundamental para constituirmos minimamente o exercício autônomo da Filosofia. O último elemento que justifica a presente investigação é relativo à Educação. O primeiro critério é o exercício em si da atividade no magistério, onde exerço a minha militância e interfiro no mundo de forma mais apaixonada. O segundo critério se refere à longa pesquisa em torno da Filosofia da Educação, tanto na História da Filosofia quanto na História da Filosofia no Brasil, com expressiva leitura e uma produção teórica expressa em forma de livro, artigos, palestras e mini-cursos. O terceiro critério é relativo à volta obrigatória da Filosofia no Ensino Médio, ponto crucial para dimensionar o meu interesse em torno do assunto. O interesse pela volta da Filosofia ao Ensino Médio foi determinado por vários fatores: é importante um pensamento gestado pela/na Filosofia sobre o assunto, para que não somente profissionais ligados a outras áreas tenham o poder de decisão sobre os fatos e a condução do processo; é fundamental que os próprios filósofos interfiram na produção de materiais didáticos e na sua utilização em sala de aula; é necessário o conhecimento e a compreensão dos referenciais teóricos que norteiam os rumos do ensino da Filosofia, para que se possa extrair deles o que de melhor podem oferecer para o seu ensino. Por outro lado, para além do interesse pessoal, há razões objetivas que determinaram a nossa investigação. A grande produção bibliográfica, tanto no mercado editorial quanto nos muros da Academia (papers, artigos, monografias, dissertações e teses), resultante da influência da Filosofia da Diferença Deleuziana, merecem uma reflexão acurada. Ressalte-se, ainda, que não é somente a grande quantidade de produção de material sob essa vertente filosófica que justifica a importância da pesquisa, pois há, também, uma vasta produção sobre ela que demonstra a sua expressividade no cenário filosófico contemporâneo brasileiro. Alguns marxistas, por exemplo, contestam, criticam e, principalmente, deslegitimam a filosofia deleuzeana. Como receber essa vasta produção bibliográfica? Como algo positivo, por um lado, por trazer novas propostas para além das habituais que as escolas marxistas e lukacscianas trazem? As quais se alicerçam na centralidade ontológica do trabalho e, 14 muitas vezes, encerram o pensamento sobre a educação na necessidade inadiável de formação de consciência crítica para o enfrentamento das desigualdades sociais, através da formação política? Ou seja, tendo por horizonte somente a macropolítica e desqualificando a importância da micropolítica. Ou, por outro lado, como falam os chargões acadêmicos, deve ser recebido como algo extremamente negativo, por representarem o acirramento de um “pensamento alienado”, “pró-capitalista”, “subjetivista”, “distante dos projetos coletivos”, “relativista”, “fruto do comportamento do capital contemporâneo” ou, ainda, como afirma Habermas se referindo à Filosofia da Diferença em geral, “consiste em uma filosofia neoconservadora”. Outro viés problemático diz respeito a todas essas questões, mas transita por uma preocupação específica: a Filosofia da Diferença e sua influência na Filosofia da Educação no Brasil configura, efetivamente, um quadro conservador no que concerne à formação dos estudantes que se apropriam dessa produção teórica? Há, de fato, como dizem alguns marxismos, um esvaziamento da ideia de um projeto coletivo que contemple a perspectiva da luta de classes e um fortalecimento de uma consciência acrítica e, consequentemente, apropriada pelo mercado? Inversamente a essas posturas, é possível contemplar abordagens extremamente positivas no pensamento da Diferença? Principalmente se pensarmos a partir das reflexões do pensamento pós-moderno, no que diz respeito à certa truculência do pensamento metafísico e até mesmo do pensamento marxista-dialético. Truculências e prepotências que hipostasiaram a realidade em conceitos abstratos, principalmente no que diz respeito à imposição da cultura europeia ao resto do mundo civilizado como tendo caráter de universalidade. A consequência maior dessa imposição foi a prevalência das bandeiras do projeto emancipatório Iluminista, com pretenso caráter universal, em detrimento das culturas particulares e resultando em atrocidades das mais diversas ordens. Outra questão muito importante é relativa às possibilidades e limites da influência da Filosofia da Diferença deleuziana na prática do ensino da Filosofia no Ensino Médio, pois a nova conjuntura política educacional ainda se abre de forma lenta às soluções dos problemas advindos dessa nova realidade. O desenvolvimento dessas questões foi exposto em quatro capítulos. O primeiro capítulo, De deus à Diferença: trajetória das matrizes filosóficas na educação 15 brasileira, faz a exposição das diversas matrizes filosóficas europeias e norteamericanas que influenciaram a educação, tanto na prática quanto na teoria, ao longo da trajetória histórica do Brasil. O propósito deste capítulo, ao elencar as matrizes filosóficas mais expressivas no nosso país, é possibilitar uma melhor observação das influências filosóficas contemporâneas e suas inserções na atualidade educacional, bem como as distinções dessas matrizes filosóficas. A exposição dessas vertentes filosóficas seguiu os períodos cronológicos de Colônia, Império e República. O segundo capítulo, A Filosofia da Educação no Brasil, demonstra que, apesar da diversidade de influências de matrizes filosóficas na educação em terras brasileiras, isso não representou ou produziu desde o início uma Filosofia da Educação como pensamento sistematizado, o que só aconteceu posteriormente. Assim, o capítulo faz uma breve exposição da trajetória de constituição da Filosofia da Educação em terras brasileiras, como campo de saber específico, inclusive retomando o histórico europeu, e apresenta três obras consideradas representativas da Filosofia da Educação no Brasil, em seu percurso constitutivo: Pequena introdução à filosofia da educação – a escola progressiva ou a transformação da escola, de Anísio Teixeira; Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire; Escola e democracia, de Dermeval Saviani. O terceiro capítulo, A Filosofia da Diferença de Deleuze, explicita os contornos principais do pensamento deleuzeano, no que diz respeito à sua Filosofia da Diferença, material decisivo para a compreensão da influência deleuzeana na Filosofia da educação no Brasil. A apresentação da filosofia deleuzeana é feita distribuída em quatro tópicos: Breve Histórico da Filosofia da Diferença – mostra os filósofos mais representativos da diferença e enfatiza Deleuze como o filósofo da Diferença; Deleuze: o eterno retorno da repetição da diferença – detalha o universo conceitual da Repetição, da Diferença e do Eterno retorno; A Filosofia da Filosofia da Diferença – explica por que a Filosofia da filosofia da diferença deleuzeana é diversa da Filosofia da filosofia da representação; A Filosofia da Educação na Filosofia da Diferença – demonstra, também, por que uma Filosofia da Educação da filosofia da diferença é diversa da Filosofia da Educação da filosofia da representação. O quarto e último capítulo, Filosofia da Diferença deleuzeana na Filosofia da Educação no Brasil ou para uma (não)-teoria da quebradura da vara, apresenta a emergência da Filosofia da Diferença deleuzeana no Brasil e sua posterior intercessão na Filosofia da Educação, com ênfase em quatro nomes representativos: Tomaz Tadeu, 16 Daniel Lins, Walter Kohan e Sílvio Gallo. A exposição do pensamento de cada um desses filósofos é feita a partir de entrevista concedida à pesquisadora e também pela exposição de livros e/ou artigos de suas produções bibliográficas, considerados representativos na intercessão entre filosofia da diferença deleuzeana e filosofia da educação. Ressalte-se, ainda, que o único a não ser entrevistado pela pesquisadora foi Tomaz Tadeu da Silva, pela impossibilidade de manter contato com o estudioso. Contudo, a ausência dessa entrevista pessoal foi suprida por outra, Mapeando a [complexa] produção teórica educacional – Entrevista com Tomaz Tadeu da Silva, publicada na Revista Currículo sem Fronteiras. Em anexo, o presente trabalho trás, ainda, a íntegra dessas entrevistas utilizadas no corpo do texto, além de mais três entrevistas com nomes significativos na Filosofia da Educação: Paulo Ghiraldelli, que faz uma retrospectiva histórica da Filosofia da Educação no Brasil, questiona a filosofia deleuzeana da diferença frente a perspectiva rortyana neopragmática, que pesquisa e reforça o esgotamento das teorias críticas; Sylvio Gadelha, representante dessa vertente deleuzeana na Filosofia da Educação contemporânea, discorre longamente sobre os motivos que legitimam a importância do pensamento de Deleuze no pensamento filosófico sobre a educação frente ao esgotamento da filosofia da representação; e, finalmente, Nuno Fadigas, professor português da Universidade de Porto, Portugal, para quem é necessário inverter a educação, tal como Deleuze o fez com relação ao platonismo. 17 CAPÍTULO 1 – DE DEUS À DIFERENÇA: TRAJETÓRIA DAS MATRIZES FILOSÓFICAS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Ao longo da trajetória histórica do Brasil, diversas matrizes filosóficas europeias e norte-americanas influenciaram a educação, tanto no seu direcionamento prático quanto na sua produção teórica. O propósito do presente capítulo é, precisamente, elencar essas matrizes filosóficas mais expressivas no nosso país, bem como as práticas e as teorias educativas resultantes delas, a fim de melhor observar as matrizes filosóficas contemporâneas e suas inserções na atualidade educacional. A exposição dessas matrizes filosóficas seguiu os períodos cronológicos de Colônia, Império e República. 1. Matrizes filosóficas da educação brasileira O breve histórico sobre as principais influências das matrizes filosóficas estrangeiras na educação no Brasil, aqui traçado, não se pretende definitivo ou único, mas sim tem a intenção, tão somente, de oferecer uma perspectiva ampla para melhor situar as tendências contemporâneas das influências filosóficas e dimensionar, assim, seus impactos e suas características nas práticas e teorias que giram em torno da educação brasileira. A recomposição histórica é importante para maior clareza e localização do nosso principal objeto de estudo: a influência da categoria da diferença deleuziana na Filosofia da Educação no Brasil contemporâneo. Essa recomposição histórica é, também, metodologicamente necessária no percurso aproximativo de nosso objeto de investigação. Da mesma forma, o segundo capítulo, Filosofia da Educação no Brasil, implica na compreensão dessas grandes matrizes filosóficas que nortearam o caminho da Educação brasileira, seja na sua prática institucional, seja na sua produção teórica. A exposição dessas matrizes filosóficas foi feita de forma cronológica a partir dos respectivos períodos históricos em que elas estiveram inseridas. Essa opção metodológica tem por objetivo didático propiciar uma visão geral, na qual a ênfase é dada às vertentes filosóficas e às suas características que marcaram os fatos e as teorias educacionais brasileiras. Dessa forma, seguem os períodos Colônia, Império e República e seus respectivos segmentos. 18 2 - Colônia (1500-1822): de Deus à ciência mitigada As três principais fases da época colonial (1500-1822), nas quais se destacam nitidamente algumas matrizes filosóficas que influenciaram os rumos da educação brasileira da época, são: presença dos Jesuítas – de 1550 a 1759; reformas pombalinas – de 1759 a 1807; período joanino – de 1808 a 1822. 2.1. A matriz filosófica aristotélica-tomista dos Jesuítas A atuação pedagógica dos jesuítas pode ser dividida em duas etapas: a primeira teve início em 1549, com a chegada de um pequeno grupo de jesuítas chefiado pelo padre Manoel da Nóbrega, que veio ao Brasil acompanhando o Governador-Geral Tomé de Sousa, e vai até o final do século XVI; a segunda corresponde à presença jesuítica no Brasil no século XVII até o ano de 1759, com a expulsão desses religiosos pelo Marquês de Pombal. Azevedo (1958, p. 9) avalia que “a vinda dos padres jesuítas [...] marca o início da história da educação no Brasil”. Os discípulos de Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, que tinham por missão combater a Reforma Protestante em defesa dos valores da Igreja Católica, desenvolveram uma atividade política e educadora entre “povos infiéis”, pois, para os jesuítas, a função educadora assumia um papel primordial em suas atividades, sendo considerada como um dos “mais poderosos instrumentos de domínio espiritual e uma das vias mais seguras de penetração da cultura europeia nas culturas dos povos conquistados, mas rebeldes, das terras descobertas” (Azevedo, p. 11). Assim, a primeira etapa da presença dos jesuítas no Brasil teve um caráter pedagógico mais voltado para o ensino elementar, com as escolas de ler e escrever voltadas para a catequese dos índios e para a expansão e fortalecimento de um sistema de ensino que se estendeu por grande parte do território brasileiro. Azevedo (1958) resume essa etapa nos seguintes termos: Se os jesuítas atacaram, no século XVI, a missão civilizadora a que se propunham, começando, como era natural onde tudo faltava, pelas escolas de ler e escrever, não se detiveram, porém, no ensino elementar nem mesmo no primeiro século, em que já mantinham, nos colégios do Rio de Janeiro e de Pernambuco, aulas de humanidades, e conferiam, no colégio da Bahia, os graus de bacharel, em 1575, e em 1578 as primeiras láureas de mestres em artes. O ensino elementar não 19 lhes servia senão de instrumento de catequese e como base para a organização do seu sistema que, ao se encerrar o século XVI, já havia atingido na Bahia o curso de artes, com quarenta estudantes em 1598 e que, menos de um século após a sua chegada, alcançara quase o maximum de expansão pelo território do país. O primeiro século foi, pois, o de adaptação e construção, e o segundo, o de desenvolvimento e extensão do sistema educacional que, adquirida a altura necessária, foi alargando progressivamente, com unidades escolares novas, a sua esfera de ação (p. 27). No segundo século de atuação pedagógica, os jesuítas expandiram seu sistema de ensino e mudaram o plano pedagógico: “A pedagogia aplicada nesses colégios evoluiu do plano de Nóbrega para a adoção do sistema do Ratio Studiorum” (Ghiraldelli, 2006, p. 25). Esse sistema tinha o pensamento aristotélico-tomista como matriz teórica e filosófica norteadora da prática educacional. Saviani (2007) afirma que a educação colonial pode ser dividida em três etapas: a primeira corresponde ao “período heroico” que vai desde 1549, data da chegada dos primeiros jesuítas, até 1570, ano da morte de Manuel da Nóbrega, ou até 1597, ano da morte de José de Anchieta e promulgação do Ratio Studiorum, em 1599; a segunda etapa vai de 1599 a 1759 e representa a organização e consolidação da educação jesuítica baseada no Ratio Studiorum; a terceira etapa, de 1759 a 1808, é marcada pelo declínio dos jesuítas e sua expulsão pelas reformas pombalinas que inauguraram um período de modernização da nossa sociedade. A chamada institucionalização da pedagogia jesuítica aconteceu em condições mais confortáveis devido a um imposto criado pela Coroa para subsidiar a manutenção dos colégios jesuítas. O Ratio Studiorum, plano de estudos da Companhia de Jesus, oferecia um sistema de ensino composto pelos cursos de Humanidades, Filosofia e Teologia e foi fortemente influenciado pelo pensamento filosófico escolástico aristotélico-tomista no período colonial: “a Companhia de Jesus deu início à elaboração de um plano geral de estudos a ser implantado em todos os colégios da Ordem em todo o mundo, o qual ficou conhecido como Ratio Studiorum” (Saviani, 2007, p. 50). Era um código pedagógico composto por 467 regras a serem seguidas por professores, alunos, diretores etc. e que se dividia em orientações por áreas de conhecimento, inclusive a filosofia. Esse plano pedagógico da Igreja católica fazia parte de um plano maior para fazer frente a Contra- 20 Reforma1. Uma tentativa católica bem sucedida de retomar o terreno perdido para os protestantes. Segundo Saviani (2007) esse plano tinha um caráter universalista e elitista: Universalista porque se tratava de um plano adotado indistintamente por todos os jesuítas, qualquer que fosse o lugar onde estivessem. Elitista porque acabou destinando-se aos filhos dos colonos e excluindo os indígenas, com o que os colégios jesuítas se converteram no instrumento de formação da elite colonial (p. 56). Dessa forma, no plano elitista de ensino do Ratio Stutiorum foram suprimidos os estágios iniciais da proposta educacional de Manoel da Nóbrega. Ou seja, o ensino de português e a escola de ler e escrever foram substituídos pelos chamados “estudos inferiores” e “estudos superiores”. Os estudos inferiores eram compostos por um curso de humanidades, correspondente ao atual nível médio, com o currículo formado pelas disciplinas de retórica, humanidades, gramática superior, gramática média e gramática inferior. Os estudos superiores davam prosseguimento à formação com os cursos de filosofia e teologia, que no Brasil, segundo Saviani (2007), eram limitados à formação dos padres catequistas, tendo prevalecido os chamados estudos inferiores de humanidades. O Ratio Studiorum, método pedagógico dos jesuítas, foi elaborado no final do século XVI como resultado de outras constituições da Companhia de Jesus, existentes desde 1552 e que regiam outras paróquias jesuítas em diversas partes do mundo. Teve a aprovação de sua “forma definitiva nos começos do século XVII e [...] sintetiza a experiência pedagógica dos jesuítas, regulando cursos, programas, métodos e disciplinas das escolas da Companhia” (Paim, 1984, p. 210). Seu objetivo mais abrangente e elevado era: “[...] ensinar ao próximo todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo a levá-lo ao conhecimento e amor do Criador e Redentor nosso”. 1 “A Contra-Reforma, projetada no Concílio de Trento (1545-64), foi a resposta da Igreja à Reforma. Primeiramente, a Igreja Católica condenou a Reforma e depois providenciou a reorganização das escolas católicas com base nas antigas tradições, pondo tudo sob o controle dos bispos. Internamente, atacou a ignorância dos padres instituindo os seminários com a finalidade de educar e instruir rigorosamente na disciplina eclesiástica, modificando cuidadosamente a herança humanista. Assim, a luta contra os católicos e protestantes deu-se basicamente no campo educacional, em que as ordens religiosas recentemente formadas, especialmente a Companhia de Jesus, fundada em 1540 por Inácio de Loyola, constituíram-se no maior instrumento de luta da Igreja Católica contra a Reforma. [...]. pode-se dizer que a Contra-Reforma caracterizou-se pela defesa intransigente da prerrogativa da Igreja Católica sobre a educação, sobre toda a inovação cultural na tentativa de recobrar sua hegemonia abalada pelo Renascimento e pela Reforma” (Lago, 2002, p. 58-59). 21 Essa finalidade maior do Plano de Estudos da Companhia de Jesus busca se realizar através de 467 regras que devem nortear a conduta e/ou pensamento de: provincial; reitor; prefeito de estudos superiores; professores de escritura, hebreu, teologia, teologia moral das faculdades superiores; professores de Filosofia (Filosofia Moral e Matemática); prefeito de estudos inferiores; dos exames escritos; para a distribuição de prêmios; professores das classes inferiores (Retórica; Humanidades; Gramática); estudantes da Companhia; repetentes de Teologia; bedel; estudantes externos; das academias (gerais; prefeito; Academia de Teologia e Filosofia; prefeito da Academia dos Teólogos e Filósofos; Academia de Retórica e Humanidades; Academia dos Gramáticos) 2. Como a matriz filosófica norteadora do Ratio Studiorum era aristotélica-tomista, o curso superior de Filosofia, a ser feito em três anos, era subordinado ao de Teologia, a ser realizado em quatro anos, tendo como guia a doutrina tomista. Saviani (2007) informa o seguinte sobre o currículo dos cursos de filosofia e teologia: O currículo filosófico era previsto para a duração de três anos, com as seguintes classes ou disciplinas: 1º ano: lógica e introdução às ciências; 2º ano: cosmologia, psicologia, física e matemática; 3º ano: psicologia, metafísica e filosofia moral. O currículo teológico tinha a duração de quatro anos, estudando-se teologia escolástica ao longo de quatro anos; teologia moral durante dois anos; Sagrada Escritura também por dois anos; e língua hebraica durante um ano (p. 56). A segunda regra do professor de Teologia era: “Em teologia escolástica sigam os nossos religiosos a doutrina de Santo Tomás; considerem-no como seu Doutor próprio, e concentrem todos os esforços para que os alunos lhe cobrem a maior estima”. Da mesma forma, a regra de número dois do professor de Filosofia deixa claro qual seu eixo filosófico norteador: Em questão de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé. Semelhantes argumentos de Aristóteles ou de outro filósofo, contra a fé, procure, de acordo com as prescrições do Concílio de Latrão, refutar com todo vigor (Cf. Ratio Studiorum). 2 As edições do Ratio Studiorum aqui consultadas foram a tradução de Padre Leonel Franca a partir da versão disponível no site www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/r.html HISTEDBR e a versão espanhola Ratio Studiorum Oficial 1599 disponível no site www.puj.edu.co/.../Documentos_Corporativos_Compania_Jesus.pdf. Procedeu-se a um cotejamento de ambas as versões para se obter um resultado mais adequado da consulta. 22 Nas Regras do Reitor, a de número trinta também enfatiza esse eixo aristotélicotomista ao especificar quais os livros que deveriam ser dados aos alunos de Teologia e Filosofia, além da Bíblia e do Concílio de Trento: Nas mãos dos estudantes de teologia e filosofia não se ponham todos os livros, mas somente alguns, aconselhados pelos professores com o conhecimento do Reitor: a saber, além da Suma de Santo Tomás para os teólogos e de Aristóteles para os filósofos um comentário para consulta particular [...] (Cf. Ratio Studiorum). Reforçando essas informações sobre a matriz filosófica do Ratio, relativas ao ensino da filosofia sob a influência aristotélica-tomista, afirma Saviani: A expressão mais acabada dessa vertente é dada pela corrente do tomismo, que consiste numa articulação entre a filosofia de Aristóteles e a tradição cristã; tal trabalho de sistematização foi levado a cabo pelo filósofo e teólogo medieval Tomás de Aquino [...]. É justamente o tomismo que está na base do Ratio Studiorum, que estipulou na regra de número 2 do professor de filosofia que ‘em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles’ [...]. e a regra de número 6 recomendava falar sempre com respeito de Santo Tomás, “seguindo-a de boa vontade todas as vezes que possível” [...]. Por sua vez, a regra de número 30 do prefeito dos estudos recomenda que se coloque nas mãos dos estudantes a Summa Theologica de Santo Tomás, para os teólogos, e Aristóteles, para os filósofos [...] (Saviani, 2007, p. 58-59). A obediência a essas matrizes filosóficas permeia todo o código pedagógico jesuítico. Assim, a filosofia se submete à teologia e lhe serve de auxiliar. Pode-se constatar essa posição com muita clareza na regra 16, no conjunto de Regras do provincial quando se reporta aos dotes do professor de Filosofia. Este deveria ter a formação em teologia para melhor ensinar filosofia que, por sua vez, deve se orientar para ser útil à teologia. Aqueles que forem rebeldes a essa subserviência não possuem um bom perfil para o cargo: Dotes do professor de filosofia. – Os professores de filosofia (exceto caso de gravíssima necessidade) não só deverão ter concluído o curso de teologia senão ainda consagrado dois anos à sua revisão, afim de que a doutrina lhes seja mais segura e mais útil à teologia. Os que foram inclinados a novidades ou demasiado livres nas suas opiniões, deverão, sem hesitações, ser afastados do magistério (Cf. Ratio Studiorum). Nas diversas regras do Ratio Studiorum é possível perceber que sua matriz filosófica impunha e valorizava uma filosofia pautada na retórica, apoiada em disputas lógicas formais a partir da obra aristotélica e nas disputas medievais tão ao gosto da 23 obra tomista. A realidade terrena ficava preterida em função dos estudos sobre os anjos, os sacramentos e a encarnação, em busca do conhecimento e amor do criador. Era uma filosofia voltada para o ensino da doutrina cristã e exercida sob uma forte estrutura hierárquica, com vistas à salvação das almas da danação do inferno. Seu objetivo maior era, de fato, o fortalecimento de uma Inquisição tardia portuguesa. Assim, ressalta Paim se referindo ao aspecto político subjacente ao sistema filosófico do Ratio Studiorum: A rigidez desse sistema combina-se com o advento da Inquisição para imprimir ao pensamento português rumo diverso ao empreendido pela Europa Ocidental. Os Tribunais do Santo Ofício, estabelecidos no século XIII e que instituíram o sistema de queimar em fogueiras os acusados de heresias, achavam-se praticamente extintos em fins do século XV, época em que são restabelecidos na Espanha, estendendose a Portugal nos meados do seguinte (1984, p. 212). Dessa forma, Correr (2006) realça que no século XVI, nessa busca de formar o homem para Deus, a visão de Aristóteles tornava-se o instrumento de formação intelectual plena para a teologia cristã, pois representava a máxima autoridade filosófica. A essa perspectiva somava-se o pensamento de Santo Tomás, que sobre a teoria aristotélica, “desenvolve a teoria da ordem natural, em que a natureza humana, com suas próprias forças, é capaz de fortalecer-se, disciplinar-se e ‘produzir’ boas obras” (Correr, 2006, p. 52). Aos jesuítas coube alcançar esse objetivo através da educação. Nessa perspectiva, as filosofias de Aristóteles e Tomás de Aquino possibilitavam o alcance seguro para o caminho que leva à fé cristã, que seria fortalecido no curso de Teologia, finalidade última da reflexão filosófica. No Brasil, essa orientação predominou no ensino e nos meios filosóficos por dois séculos, até 1759, data da expulsão dos Jesuítas de Portugal e de suas colônias pelo marquês de Pombal, primeiro ministro de Dom José I. Assim, Severino (1997) afirma que não há dúvida de que a marca do modo metafísico de pensar é profunda na cultura brasileira: “Foi assim que toda nossa experiência pedagógica até o primeiro quartel deste século desenvolveu-se sob a influência direta ou difusa dos pressupostos éticos e metafísicos da escolástica agostiniano-tomista” (p. 36). Contudo, é necessário esclarecer que não há unanimidade entre os estudiosos que essa prevalência do pensamento metafísico aristotélico-tomista dos jesuítas tenha, de fato, representado tão somente um atraso. Para Saviani3 (2007), apesar de sua 3 “Mas se os jesuítas se reportavam fortemente a Santo Tomás de Aquino e a Aristóteles, não parece procedente a visão que se difundiu segundo a qual, por se situar na vanguarda da Contra-Reforma, os 24 referência filosófica central, esses religiosos teriam trazido traços da modernidade como o livre-arbítrio que teria repercutido em uma pedagogia inovadora. Já para Paim4 (1986), o que houve foi a absorção das teses da Escolástica clássica e o repúdio aos avanços da modernidade do século XVI, já fortemente presentes na Europa, caracterizando uma postura filosófica atrasada e conservadora. Da mesma forma, não há também unanimidade quanto à prevalência de uma corrente única de filosofia nesse período. Para Paim, outras correntes filosóficas teriam acompanhado a presença aristotélica-tomista dos jesuítas nesses primórdios coloniais. O pensamento do período dos jesuítas ou período colonial (séc. XVII e XVIII), conhecido também por Saber de salvação, classificação feita por Luiz Washington Vita inspirado em Max Scheler, visava caracterizar “aqueles pensadores de formação escolástica ou de tendência mística, ou outros, cuja especulação filosófica ou teológica se acha dentro dos dogmas católicos, sendo a filosofia mera ancilla theologiae” (Paim, 1986, p. 22). Paim caracteriza esse período pelo “desprezo do mundo”: O mundo é aqui identificado, sobretudo, com a dimensão corpórea, na qual se integra o próprio homem. Concebe-se a este como ser corrompido precisamente pela circunstância. O mundo não estaria aí para que os homens nele erigissem algo digno da glória de Deus, [...] mas para tentá-lo. Desse modo, a resistência jesuítas voltaram as costas para a modernidade, buscando fazer prevalecer as ideias características da Idade Média. De fato, eles pretendiam, sim, defender a hegemonia católica contra os ataques da Reforma protestante. Mas, para isso, eles procuraram compatibilizar a liderança católica com as exigências dos novos tempos apoiando-se firmemente na herança clássico-medieval. Ao mesmo tempo, reformularam a escolástica absorvendo elementos próprios da época que respirava o clima da Renascença, em especial a questão do livre-arbítrio, uma das ideias centrais da doutrina elaborada por Francisco Suárez, o principal teólogo jesuíta [...]. E o Ratio Stutiorum, talvez, a expressão mais clara desse esforço que se traduziu na prática pedagógica dos colégios jesuítas, como reconheceu Durkheim [...], para quem, ao mesmo tempo em que os jesuítas podiam lançar mão dos clássicos da Antiguidade para promover a instrução cristã, em lugar da literatura que lhe era contemporânea, já que esta se encontrava impregnada de anticatolicismo, a ‘pedagogia ativa’ por eles propugnada constituía uma verdadeira revolução [...], situando-os na linha de superação das práticas educativas medievais em direção à pedagogia moderna. Com efeito, é própria dos tempos modernos a emergência do indivíduo associado à ideia do livre-arbítrio, o que conduz ao entendimento de que o homem em geral e, por consequência, também o homem cristão deve ser ativo, isto é, necessita traduzir em ações a fé que professa, não lhe bastando meditar e orar. Daí o fervor missionário, de caráter militante e combatente que moveu os inacianos levando-os a considerar a cruz e a espada como faces da mesma moeda. Para isso, certamente contribuiu a experiência prévia e a mentalidade militar do fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola” (Saviani, 2007, p. 59). 4 “Ao longo do século XVII e até a primeira metade do século XVIII, os jesuítas lograram isolar a cultura portuguesa do resto da Europa. Em nome da Contra-Reforma foram reintroduzidas as teses da Escolástica clássica e abandonados os intentos reformadores do século XVI, iniciados por Pedro da Fonseca (1528/1599) e Francisco Suarez (1548/1617). O novo tipo de saber da natureza, constituído no período, foi solenemente ignorado. Permanecia insuspeitada a necessidade de reforma da monarquia, em nome das novas doutrinas que refutavam a origem divina do poder do monarca. O ciclo em apreço foi batizado, por Joaquim de Carvalho, de Segunda Escolástica Portuguesa” (Paim, 1985, p. 20). 25 à tentação equivale ao comportamento ético por excelência (Paim, 1985: 22). Paim assinala uma multiplicidade de tendências filosóficas que teria marcado o período do saber de salvação: existiriam obras apologéticas dirigidas aos ateus, baseadas no Pensamentos, de Pascal; outras de cunho mais espiritualistas, místicas e edificantes, como os sermões e “obras de cunho moralizador, casuístico e intenção pedagógica, tendo em vista a formação das almas e a direção das consciências; e, finalmente, as obras teológicas propriamente ditas” (Paim, 1985, p. 24). Assim, para Paim, nesse período, a filosofia no Brasil não teve o predomínio de uma corrente filosófica única. Geralmente se aponta a Segunda Escolástica Portuguesa como a corrente filosófica exclusiva, mas se encontra até indício da presença de certa tradição platônica na Ordem dos beneditinos. Mas o certo é que houve um predomínio da influência no pensamento filosófico colonial brasileiro da Segunda Escolástica Portuguesa5. Nomes representativos desse período são: Nuno Marques Pereira (1652 / 1735); Feliciano Joaquim de Sousa Nunes (1730 / 1808); Frei Gaspar da Madre de Deus (1715/ 1800). A temática filosófica recorrente e predominante nesses pensadores e período foi a da reflexão moral. 2.2. A matriz filosófica empirista e iluminista das reformas pombalinas A segunda fase do período colonial é relativa às reformas pombalinas, entre os anos de 1759-1807, efetuadas a partir da expulsão dos jesuítas de Portugal e do Brasil pelo Marquês de Pombal. Essas reformas visavam adequar os interesses de Portugal e de suas colônias à modernidade europeia. Tratava-se de substituir as ideias religiosas e metafísicas dos jesuítas pelas ideias de cunho mais racionalista e científico próprias ao 5 “A denominação de Segunda Escolástica, para o período da filosofia portuguesa que se inicia com Pedro da Fonseca (1528/1597) e se estende até a metade do século XVIII, foi sugerida a Joaquim de Carvalho pela obra de Carlo Giacon (La Seconda Scolastica [...]). Tem o mérito de chamar a atenção para a necessidade de a distinguir da grandiosa sistematização empreendida por Tomás de Aquino no século XIII sem lhe atribuir a condição de simples prolongamento da chamada escolástica decadente dos séculos XIV e XV. Ao mesmo tempo, torna patente que não se esgota com a escolástica barroca (1550/1650), assim batizada por Ferrater Mora para ressaltar a peculiaridade desta fase da Contra-Reforma, cuja influência sobre a filosofia moderna já foi comprovada à saciedade por vários estudiosos. Assim, a Segunda Escolástica Portuguesa compreenderia duas fases: o período barroco (meados do século XVI às primeiras décadas do século XVII) e o período escolástico propriamente dito (meados do século XVII a meados do XVIII)” (Paim, 1984, p. 206). 26 Iluminismo, com predominância dos ideais liberais, seculares e democráticos (conf. Ghiraldelli, 2009, p. 3). A atmosfera portuguesa do século XVIII se mostrava paradoxal, nos diz Saviani (2007, p.77) e expressava uma tensão entre Razão e religiosidade; mudança e tradição; fé e ciência. As ideias de influência iluminista chegavam a Portugal através de portugueses residentes no exterior, os quais eram chamados de “estrangeirados”. Dentre esses, ressaltamos os nomes de Luís Antônio Verney e do próprio Marquês de Pombal 6. Saviani relata que esses homens [...] defendiam o desenvolvimento cultural do Império português pela difusão das novas ideias de base empirista e utilitarista; pelo “derramamento das luzes da razão” nos mais variados setores da vida portuguesa; mas voltaram-se especialmente para a educação que precisaria ser libertada do monopólio jesuítico, cujo ensino se mantinha [...] preso a Aristóteles e avesso aos métodos modernos de fazer Ciência (Saviani, 2007, p. 80). O “despotismo esclarecido” português, idealizado por Pombal, com o apoio de Dom José I, condizente com os novos interesses burgueses, decretou reformas em diversos âmbitos, como o urbano, o político, o econômico etc. As modificações impostas à educação foram determinadas pelo Alvará de 28 de junho de 1759, que impunha o fechamento dos colégios jesuítas que deveriam ser substituídos pelas aulas régias mantidas pela Coroa com o imposto chamado de “subsídio literário”, criado especificamente para isso. Basicamente, foram três as reformas educacionais: Reforma dos estudos menores, primário e secundário (1759); Reforma dos estudos maiores, referente à Universidade de Coimbra (agosto de 1772); e Reforma das escolas de primeiras letras (novembro de 1772). A principal modificação nos estudos menores, inspirada pelo viés iluminista, foi quanto ao método de estudar: o Alvará da reforma criticava o método de estudo jesuítico por ser obscuro, fastidioso, sem resultado e distanciado da prática da vida cotidiana. Um bom exemplo é quanto ao estudo da gramática latina que era ensinada no mesmo idioma que se desconhecia e somente pela memorização. O novo método 6 “Sebastião José de Carvalho e Melo (1699 / 1782), o famoso Marquês de Pombal, pretendeu efetivar uma ruptura radical com a tradição da cultura portuguesa. Pôs fim ao domínio da filosofia escolástica e expulsou aos jesuítas que, em nome daquela, exerciam verdadeiro monopólio do pensamento. Abriu as portas da Universidade para a ciência, até então proibida em Portugal por motivos religiosos. Promoveu a primeiro plano o ideal de riqueza, em contraposição à prática de exaltar as virtudes da pobreza vigente durante séculos. E cuidou, finalmente, de combinar essa autêntica revolução com o status quo em matéria ético-política” (Paim, 1985:25). 27 sugerido por Verney era baseado no ensino prático e a partir de coisas úteis e práticas (Cf. Saviani, 2007, p. 86). Assim, a diretriz filosófica presente nas reformas pombalinas da instrução pública instituídas no Reino de Portugal e em suas colônias era de cunho tendencialmente iluminista, empirista e de crítica à Escolástica, tendo por figura central Antônio Verney e seu livro epistolar Verdadeiro método de estudar7, que significativamente influenciou a reforma dos estudos superiores dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, buscando orientar a vida cultural portuguesa pela ideologia iluminista. a) A influência de Locke no pensamento de Verney Verney foi um português iluminista estrangeirado. Nascido em Lisboa (17131792), estudou Teologia na Universidade de Évora e, em 1736, também concluiu Direito ao se transferir para Roma. Viveu na Itália desde os 23 anos de idade, onde ampliou seu universo cultural, influenciou fortemente nas mudanças do pensamento de Portugal “ao criticar, em suas famosas cartas, todo o sistema pedagógico dos jesuítas, arrastando a intelectualidade portuguesa a um debate prolongado e que prepararia a reforma pombalina da Universidade” (Paim, 1984, p. 224). O livro Verdadeiro método de estudar constitui o conjunto de 16 cartas editadas, inicialmente, em dois volumes. Posteriormente, já no século XX, o livro foi organizado em cinco volumes8, “agrupando as cartas na sequencia de sua numeração, mas procurando assegurar uma unidade temática em cada volume” (Saviani, 2007, p. 100). Essa obra teve uma atribulada história editorial. Sua primeira edição foi publicada com pseudônimo e confiscada pela Inquisição. Para fugir da perseguição e da censura do Santo Ofício, Verney abre o livro com um elogio à Companhia de Jesus, apesar de ser um tratado contra a pedagogia e o pensamento escolástico dos jesuítas. Conforme Salgado Júnior, essa crítica que move o pensamento de Verney tem por 7 Outro grande expoente inspirador dessas reformas foi Antonio Nunes Ribeiro Sanches com os livros Cartas sobre a educação da mocidade e Método para aprender a estudar a medicina. As propostas dessas obras fundamentaram, principalmente, os “novos Estatutos da Universidade de Coimbra [e] tiveram o sentido de orientar a vida cultural portuguesa pela ideologia iluminista” (Saviani, 2007, p. 90). 8 Vol. I – Estudos Linguísticos (carta 1 a 4); Vol. II – Estudos Literários (carta 5 a 7); Vol. III – Estudos Filosóficos (carta 8 a 11); Vol. IV – Estudos Médicos, Jurídicos e Teológicos (carta 12 a 14); Vol. V – Estudos canônicos, Regulamentação e Sinopse 28 matriz filosófica a teoria empirista lockeana, formulada a partir do combate à doutrina das ideias inatas e metafísicas (Cf. Prefácio Verney, 1952, p. xix). Apesar da principal obra de Locke dirigida à educação, Alguns pensamentos sobre a educação9 (Thoughts concerning education), conter elementos próximos à proposta da educação jesuítica, como os relativos à moral, outros elementos se distanciavam diametralmente da proposta pedagógica desses religiosos. Para Salgado Júnior, é impossível separar o Locke pedagogo do Locke filósofo (Verney, 1952, p. xvi). Assim, em concordância com seu empirismo gnosiológico, “Locke buscava uma formação de homem útil e premunido de conhecimentos que lhe garantissem essa utilidade” (Idem). Nesse mesmo sentido, para Verney, a realidade cultural daquela época exigia uma transformação radical dos estudos e o critério era o da utilidade da cultura: “o caso presente implica reforma geral do ensino. Assim, há que começar por ajustar os estudos superiores todos às necessidades culturais, e tornar seus diplomados cada vez mais úteis à sociedade. O resto serão consequências” (Verney, 1952, p. xx). Médicos, juristas e teólogos deveriam interferir de forma útil na vida civil e religiosa. Para tanto, era necessário adequar as respectivas formações educacionais, que deviam seguir os fundamentos científico-naturais ao invés das superstições e especulações. O critério da educação, portanto, deveria ser o da utilidade. Dessa forma, salienta Salgado Júnior em Prefácio do livro de Verney: Locke repetia muito essa norma, tanto nos aspectos filosóficos como pedagógicos: este e aquele conhecimento pode não ser seguro; mas obtenha-se, se é útil. Foi assim que ele sempre justificou a Física. Foi nesse critério de utilidade que ele elegeu as disciplinas para instrução do gentleman. Por essa mesma norma se norteará Verney e denunciálo-á desde logo na portada do Verdadeiro Método: para ser útil à República e à igreja. Repete-o depois, na primeira carta, quando diz que o seu correspondente lhe pediu que lhe dissesse seriamente se o método vigente lhe parece racionável para formar homens que sejam úteis para a República e a Religião. Depois ainda, faz disso fiel de balança para avaliar os estudos: isto não serve para nada, aquilo para nada serve; mas este e aquele outro estudo devem acrescentar-se porque esses, sim, servem para isto e aquilo. Enfim: o que Verney 9 “A obra de Locke sobre a educação deriva das várias cartas escritas a seu amigo Edward Clarke, durante os anos de 1684-1686, aconselhando-o sobre a educação do primogênito. Estas foram publicadas em 1693 em função de vários pedidos de amigos, sob o título de Alguns Pensamentos sobre a Educação. Nela visa mostrar como se deve conduzir um jovem cavalheiro desde a infância, pois acredita que os homens são ‘[...] bons ou maus, úteis ou inúteis, pela educação que têm recebido’ [...]. Entende também que a educação deve estar voltada para a vida e ‘não consiste em aperfeiçoar os jovens em alguma das ciências, senão em abrir suas mentes, preparando-os para que possam utilizar qualquer delas quando necessitarem’” (Lago, 2002, p. 93-94). (grifos nossos). 29 procura é, portanto, [...], uma maior eficiência, ou utilidade, dos homens formados pela Universidade (Verney, 1952, p. xx). Ainda conforme Salgado Júnior, Verney considerava importante levar em conta a complementaridade das reflexões presentes no Ensaio acerca do entendimento humano e no Alguns pensamentos sobre a educação. Assim: A reflexão que exerceu sobre esses documentos deve-o ter levado, antes de mais à compreensão [...] da íntima conexão existente entre o Locke filósofo do Essay e o Locke pedagogo dos Thoughts. Ele parece ter compreendido, efetivamente, que ambos eles se harmonizam em função da criação dum novo tipo humano, cujas características são definíveis dentro dos limites fixados ao conhecimento no Essay. [...]. O novo tipo humano será, portanto, o que realize uma vida assente em tais limites de conhecimento e nela procure um máximo de valorização social e individual, quer dizer, alicerçada em fundamentação positiva e realizada em atividade útil (Verney, 1952, p. xxiii-xxiv). Para Verney, a proposta educacional lockeana para o gentil-homem dos Pensamentos serviria também para a formação das novas profissões do seu tempo. Salgado Júnior afirma que para o pensador português, seguindo a perspectiva lockeana, a educação ao se guiar pela utilidade dos conhecimentos deveria dispensar os hábitos mentais da especulação pura e se entregar às atividades experimentais e positivas: “Quem via ele que realizasse filosoficamente esse aspecto senão Locke, tanto no Essay com o nos Thoughts? De fato, Locke minara a confiança nas construções metafísicas, - e apontara as vantagens utilitárias dos conhecimentos cuja origem estivesse tão próxima da experiência sensível, que nisso tivessem garantia” (Verney, 1952, p. xxiv). Assim, a nova lógica a ser seguida nos estudos não deveria ser mais a “lógica da abstração pura (a lógica formal), mas a da atividade científica (a lógica da experiência), única que se adaptava àquele objetivo” (Verney, 1952, p. xxvii). É dessa forma que a influência da filosofia de Locke sobre a pedagogia de Verney é enfaticamente reafirmada por Salgado Júnior, ao final da apresentação do Verdadeiro Método de Estudar: “[...] acabamos de ver, [...], como o sistema pedagógico de Verney é, de fato, aquele em que se prolonga o sistema filosófico-cultural a que aderira – e, sempre que possível, é esse sistema pedagógico baseado na própria obra de Locke” (Verney, 1952, 30 p. xlii). Também ressalta fortemente a confluência dos livros Ensaio e Pensamentos de Locke na obra pedagógica de Verney10. b) O iluminismo de Genovesi A Reforma da Universidade, de 1772, oficializou a influência empirista com outra grande influência representada por um dos compêndios do filósofo italiano Antônio Genovesi (1713- 1769), Instituições de Lógica de 1773 (Cf. Paim, 1985; 1984). Assim, surge uma nova corrente oficial denominada de empirismo mitigado: O adjetivo visa indicar que se trata de um empirismo que evitou ciosamente todas as dificuldades que essa espécie de filosofia vinha enfrentando nas ilhas britânicas. A partir mesmo da tese de que o conhecimento origina-se na sensação. Nesse aspecto essencial, o empirismo mitigado não estabeleceu nenhuma definição mais precisa. A preocupação maior não se dirigia à precisão conceitual, mas à simples exaltação do conhecimento experimental e à condenação frontal da metafísica tradicionalmente cultivada em Portugal. Mesmo da acepção de ciência elimina-se qualquer compromisso com a busca da verdade, que lhe é conatural, para reduzi-la à aplicação (Paim, 1985, p. 26). Antônio Genovesi ensinou na Universidade de Nápoles, marco europeu da influência iluminista, reformada depois da expulsão dos jesuítas em 1767, que se caracterizava pelo ensino de disciplinas científicas, de direito e de economia. Nessa mesma universidade, Genovesi foi aluno de Vico, em 1748; escreveu os Elementa theologiae, defendendo a distinção entre poder eclesiástico e poder civil, bem como a infalibilidade da Igreja circunscrita à fé. Genuense, como também era conhecido, foi contrário à atitude antirreligiosa de alguns iluministas, pois a religião e a ideia de divindade fazem parte da essência humana. Contudo, “estava firmemente convencido de 10 E prossegue Salgado Júnior na reafirmação da influência lockeana sobre a pedagogia de Verney: “Aí está, pois, o aproveitamento agora direto, agora amplíssimo do Essay, para onde se saltava logicamente, partindo dos Thoughts. Aí estaria Verney perfeitamente à vontade, porque estava no campo que lhe era grato, o da fundamentação filosófica do sistema cultural a que tinha aderido. A Carta da Lógica fala por si mesma. Depois é a da Metafísica, com a sua dissolução pela Lógica e pela Física: sempre uma ideia de Locke. Depois ainda a da Física, para que Locke, se não dava as soluções necessárias, dava, pelo menos, as sugestões, [...], apontando o Newtonianismo como prolongamento adequado das suas ideias, tanto no Essay como nos Thoughts. Para mais, estes exigiam que para cultura do gentleman se lhe ministrassem, de menino, esses conhecimentos fundamentais da Aritmética, da Astronomia, da Geometria, - o que, por fim, viria a coroar-se com a Física, dividida nos dois setores já conhecidos da Física do corpo e Física do Espírito. Não há, ainda neste ponto, senão uma perfeita adesão ao pensamento filosófico e pedagógico lockeano. Por fim, ainda desenvolvendo sugestões da mesma origem, vem a considerar-se a Ética como estudo fundamental, desde que estabelecida a partir do Direito Natural das Gentes, e tudo com possibilidade de ser aprofundado nos mesmos autores que já Locke apontara nas páginas dos Thoughts” (Verney, 1952, p. xli- xlii). 31 que a liberdade e a autonomia da razão eram os meios indispensáveis para qualquer progresso civil” (Reale, 1990, p. 854). Paim (2008, p. 1) se refere ao empirismo mitigado como via de superação do aristotelismo escolástico português e o caracteriza a partir do texto Instituições de Lógica de Genovesi: Essa denominação foi sugerida por Joaquim de Carvalho (1892/1958), tratando-se de uma expressão muito feliz porquanto destaca o essencial, isto é, ausência de problematização do empirismo. Enquanto nessa corrente, tanto na Inglaterra como na França, no mesmo período, a problematização do conceito-chave iria fecundar a meditação posterior, em Portugal, [...], evitou-se ciosamente tudo aquilo que pudesse desviar da rota principal - difusão pura e simples de uma nova doutrina -, a começar da crítica ao aristotelismo até então dominante. Conforme Paim (2008), Genovesi poderia ser denominado de filósofo da experiência, por sustentar que a filosofia se move a partir da experiência e a ela se refere, mas seria necessário admitir e enfatizar o papel da crítica dos dados empíricos pela razão. Sua classificação das ideias admite somente alguns graus de certeza, por isso a percepção direta não pode prescindir da razão. Da mesma forma, é impossível resolver a questão da origem das ideias e conhecer a natureza última da percepção em virtude de não se poder conhecer a natureza da alma. Deste modo, afirma Paim, o empirismo mitigado de Genovesi procura incorporar certas premissas do empirismo lockeano à tradição racionalista. Tratava-se de um empirismo mitigado, atenuado, exatamente por não minimizar o papel da razão, bem como por não levar às últimas consequências políticas liberais que acompanhavam o empirismo. A esse propósito, relata Paim (2008, p. 1): Lamentavelmente, o seu compêndio foi entendido entre nós como um conjunto de afirmações dogmáticas, que deveriam substituir a tradição escolástica, substituição essa que prescindia de qualquer avaliação crítica. Mais grave é que o novo sistema, destinado a substituir o antigo, se completava por uma defesa inconsistente do absolutismo monárquico. O imperativo de substituir esse sistema político, que logo adiante surgiria, levava facilmente à aceitação sem crítica das chamadas “ideias francesas”, o que aconteceu com quase todos aqueles que formaram seu espírito a partir do empirismo mitigado, de que seria exemplo dramático os padres radicais e belicosos egressos do seminário de Olinda. Por isto mesmo, a necessidade de demolir o empirismo mitigado, peça por peça, tornar-se-ia o grande desafio das gerações que, tanto em Portugal como no Brasil tornado independente, tiveram a incumbência de conceber todo um conjunto de instituições sociais e políticas. 32 Paim (2008) enfatiza outros graves limites presentes no empirismo mitigado de Genovesi: não consegue estabelecer de forma radical a distinção entre a ciência aristotélica e a ciência moderna; incapacidade de vislumbrar a incompetência da ciência moderna por questões ontológicas; certo cientificismo11 que levaria ao desinteresse pela Filosofia. Dessa forma, essas “questões não estavam ali para permitir que a cultura portuguesa se renovasse no contato com autores modernos, mas para substituir as antigas teses escolásticas por um novo dogmatismo” (Paim, 2008, p. 1). c) A reforma pombalina do ensino superior português e o Iluminismo sertanejo: Seminário de Olinda, Azeredo Coutinho e a filosofia das brenhas e dos sertões Em Portugal, a Faculdade de Filosofia12, que na época englobava as ciências naturais, e a Faculdade de Matemática, assumiram o caráter tipicamente moderno e iluminista. Assim, os reformadores executaram as transformações: Partindo de uma crítica incisiva ao espírito escolástico predominante no período em que a universidade esteve sob o controle jesuítico; desenvolvendo uma longa, minuciosa e contundente análise crítica da ética de Aristóteles, os reformadores decidiram-se a transformar radicalmente a tradicional universidade portuguesa. Para isso, substituíram as disputas escolásticas e o ensino verbalístico pelos estudos históricos nas Faculdades de teologia, de Direito e de Cânones; em lugar do método de ensino baseado no estudo livresco expresso nos comentários dos tratados antigos, introduziram o método experimental, valorizando o contato entre os alunos e doentes dos hospitais públicos nos cursos de medicina e instalando laboratórios de física e química associados a instrumentos científicos para demonstração prática (Saviani, 2007, p.93). 11 Paim chama a atenção para o fato de que a redução da filosofia à ciência já remontava a Verney: “Na Carta Oitava afirmara: ‘Eu suponho que a Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos Peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas, chamem-lhe como quiserem, vem a significar o mesmo [...]: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acesa em uma mina, despedaça um grande penhasco é Filosofia; outras coisas a esta semelhante, em que pode entrar a verdadeira notícia das causas das coisas, são filosofia’” (Paim, 1984, p. 235). 12 “O curso tinha a duração de quatro anos e era constituído por quatro cadeiras, frequentadas, pela ordem, uma em cada ano: filosofia racional e moral, história natural, física experimental e química teórica e prática. No segundo ano os alunos deviam seguir, juntamente com história natural, as aulas de geometria elementar na Faculdade de Matemática” (Saviani, 2007, p. 92). 33 A Reforma da Universidade de 1772, fiscalizada por Pombal, requeria a obrigatoriedade de que o conhecimento fosse baseado no método newtoniano e nas leis da natureza. Assim, essa Reforma Introduziu na Universidade as novas Faculdades de Matemática e Filosofia, incumbidas de formas naturalistas, botânicas, mineralogistas, metarlugistas, enfim, homens familiarizados com a ciência de seu tempo, dirigindo tais conhecimentos para a aplicação. A orientação utilitária vigente na reforma dos cursos completa-se pela criação das seguintes instituições: Horto Botânico; Museu de História Natural; Teatro de Filosofia Experimental (Gabinete de Física); Laboratório de Química; Observatório Astronômico, Dispensário Farmacêutico e Teatro Anatômico. É importante assinalar que a ciência assim entendida devia estar voltada para o ideal de promover novo período de apogeu e riqueza para Portugal (Paim, 1985, p. 2627). Contudo, ressalta Saviani (2007), a reforma da Universidade de Coimbra, ao incorporar o progresso das investigações empíricas no campo da medicina, da filosofia e da matemática, bem como os avanços do método histórico, hermenêutico e crítico na Teologia e no Direito, correspondia aos propósitos políticos do governo de Dom José I. Uma questão central foi a tentativa de conciliação entre os interesses da Igreja e os do Império. Era necessário evitar que os jesuítas identificassem quaisquer indícios doutrinários contrários à fé católica na adesão iluminista do governo, na qual fé e religião se subordinavam ao poder secular. Para tanto, foi criada a Real Mesa Censória para substituir o Conselho Geral do Santo Ofício na censura e publicação dos livros. Dessa forma, a Inquisição foi secularizada e se respaldou a reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra. Essa conciliação entre Governo e Igreja exigiu um tipo de filosofia que abarcasse certo relativismo, e foi justamente a filosofia eclética que se ajustou a essa realidade política: Evitando as consequências mais radicais do pensamento iluminista, a ‘Junta da Providência Literária’ inclinou-se para o ecletismo, conforme se pode ler no livro II [...] dos estatutos, onde se considerou não haver qualquer sistema filosófico que o professor “inteiramente subscreva na exploração e demonstração das leis naturais: antes pelo contrário a filosofia que ele deverá seguir será precisamente a eclética” [...]. O componente da filosofia eclética possibilitou, assim, ao pombalismo erigir-se como o Iluminismo real e historicamente possível em terras lusitanas (Saviani, 2007, p. 95). 34 Contudo, no período pombalino, a busca de harmonizar fé e ciência não se radicalizou em favor do empirismo13. Da mesma forma, apesar do rompimento com os jesuítas e de sua expulsão, não houve uma ruptura definitiva com a Igreja. Assim, Sob Pombal, a questão dos vínculos entre a religião católica e a física aristotélica foi resolvida com base na tese de Verney de que a doutrina dos Santos Padres não podia ficar na dependência de uma obra, a de Aristóteles, que não era de seu conhecimento. Vale dizer: a física peripatética não foi refutada. Algo de semelhante ocorre com a ideia de riqueza, que não se podia conciliar com o conjunto que constituía a Contra-Reforma e com a qual o Marquês de Pombal não desejava romper. A luta com a Igreja esgotou-se com a expulsão dos jesuítas e o posterior fechamento da Ordem pelo Papa. Com o afastamento de Pombal, em 1772, voltam a estreitar-se os vínculos entre a monarquia portuguesa e a Cúria Romana. Mas não se renunciou ao ideal de riqueza nem à crença de que a ciência seria o instrumento hábil para conquista-la. Apenas a riqueza se entende como do Estado e não dos cidadãos. Tampouco se revoga o princípio em que fôramos educados, durante séculos, segundo o qual mais fácil é passar um calabre pelo fundo de uma agulha que entrar um rico no Reino do Céu (Paim, 1985, p. 28-29). Ou seja, em Portugal, a reação contra a escolástica não foi um movimento burguês para acompanhar o espírito do século que venerava a razão e a ciência como grandes conquistas humanas, pois ela própria já nascera limitada ao ter surgido amparada pelo absolutismo monárquico. Assim, quando D. José I morreu, em 1777, e iniciou a Viradeira de D. Maria I, o máximo que a renovação simbolizada por Verney alcançou foi a adotação do empirismo mitigado de Antônio Genovesi, sem os devidos avanços políticos liberais presentes no empirismo clássico inglês (Cf. Paim, 1984, p. 231). Daí a necessidade de uma filosofia eclética. De qualquer forma, em 1759, com a expulsão dos jesuítas, tanto em Portugal como no Brasil, o Estado assume a educação e realiza concursos, libera ou censura a literatura a ser utilizada e estabelece as aulas régias no lugar das aulas ministradas pelos jesuítas: “Eram aulas avulsas de latim, grego, filosofia e retórica. Os professores (certamente formados pelos jesuítas) ministravam aulas, em geral em suas casas, e recebiam do Estado para tal” (Ghiraldelli, 2009, p. 4). O desatrelamento da estrutura de ensino das rédeas dos jesuítas e a assunção do Estado na condução educacional não deixa de ser um avanço político dentro dos moldes da modernidade, apesar de pífio e conveniente ao poder. 13 Para se ter uma ideia da posição conciliatória do governo português, Paim relembra que a censura efetuada pela Real Mesa Censória proibiu, em 1768, “a venda, no original ou em tradução, do Ensaio sobre o entendimento humano, de Locke” (Paim, 1984, p. 221). 35 Por aqui, a implantação das aulas régias ocorreu de forma lenta, em meio às grandes resistências e ausência de recursos financeiros. Depois da criação do imposto destinado a esse fim, chamado de subsídio literário, houve um incremento no estabelecimento dessas aulas. Mas, somente em 1777, no Reinado de Dona Maria I, ocorreu, de fato, uma maior expansão no número das aulas avulsas. A explicação mais plausível para esse aumento foi o retorno dos religiosos como professores ao ensino. Contudo, as aulas régias tiveram uma expansão maior ainda no reinado de Dom João VI, quando este substituiu sua mãe Dona Maria I, acometida de demência, e retomou o projeto pombalino de reformismo ilustrado, em 1792. Contudo, “o funcionamento das aulas régias não impediu os estudos nos seminários e colégios das ordens religiosas, tendo sido, inclusive, criadas algumas dessas instituições no espírito das reformas pombalinas” (Saviani, 2007, p. 108). Nesse sentido, três instituições se destacam nas últimas décadas do século XVIII: Convento de Santo Antônio do Rio de janeiro, onde os franciscanos organizaram cursos de Filosofia e Teologia; Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, mais conhecido como Seminário de Mariana; Seminário de Olinda. Esses estabelecimentos seguiam os moldes iluministas dos Estatutos da Universidade de Coimbra e preparavam leigos e religiosos para os estudos superiores em Portugal. Eles foram representativos também quanto ao papel na formação intelectual de várias gerações. Aqui damos destaque ao Seminário de Olinda por representar, para vários estudiosos, uma das melhores escolas secundárias do Brasil da época, bem como devido à sua importância na absorção das diretrizes da filosofia iluminista norteadora da reforma pombalina. O Seminário de Olinda, que orientava seu ensino pelas ideias das reformas pombalinas presentes, especialmente, em O verdadeiro método de estudar, de Verney, foi fundado em 1800, pelo bispo da Igreja Católica Azeredo Coutinho, formado pela Universidade de Coimbra. Contrapunha-se, portanto, às ideias religiosas e, baseado nas ideias laicas inspiradas no Iluminismo, defendia o direcionamento do Estado na educação. Seus estatutos buscavam ensinar não uma ciência universal, mas princípios elementares, adequados aos padres e aos leigos para uma formação de cidadãos indagadores da Natureza: Por isso o Plano de Estudos concedia um espaço importante para a filosofia na qual ocupava lugar especial a filosofia natural, com os estudos de física experimental, história natural e química. Tudo isso 36 presidido por um espírito primordialmente prático, afastando-se do caráter especulativo de que se revestia o ensino jesuítico de filosofia (Saviani, 2007, p. 110). Azeredo Coutinho, politicamente tradicionalista, a favor do absolutismo e da escravidão, foi estudioso de Economia Política, área na qual publicou alguns livros. Em 1794 foi nomeado bispo de Olinda, aonde chega em 1798 “para tomar posse de sua diocese trazendo consigo, já impressos, os Estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, educandário para moças que fundará em Recife, e do Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça, que será conhecido como o Seminário de Olinda” (Saviani, 2007, p. 110). Para Azeredo Coutinho, o padre14 deveria se formar simultaneamente em sacerdote e filósofo da natureza e por isso acrescentou os estudos eclesiásticos aos estudos das ciências naturais nos estatutos do Seminário de Olinda. Para ele, o filósofo naturalista deveria deixar de ser somente um homem de gabinete, tornar-se um homem prático para complementar e enriquecer o conhecimento limitado do homem silvestre e ignorante, pois: Os produtos da natureza encontram-se em lugares inóspitos, nas brenhas, aonde o filósofo naturalista nunca vai, ou só vai de passagem [...]. Portanto, para se ter a pessoa adequada à descoberta dos tesouros da natureza, seria preciso que o habitante das brenhas e dos sertões fosse filósofo ou que o filósofo habitasse as brenhas e os sertões. Ora, conclui Azeredo Coutinho: ‘o ministro da religião, o pároco do sertão e das brenhas, sábio e instruído nas ciências naturais é o homem que se deseja’ [...] (Saviani, 2007, p. 112). Contudo, é necessário enfatizar que, politicamente, o resultado obtido na formação dos seus alunos foi contraditório, pois, apesar de visar o fortalecimento do reino português unificado sob a bandeira de um déspota esclarecido, o Seminário de 14 “Esse pároco que por ofício, vai à procura de suas ovelhas percorrerá caminhos nunca trilhados, examinará diretamente os mais diversos produtos da natureza em todas as estações do ano: ‘o animal, o mineral, o vegetal, a planta, a raiz, a flor, o fruto, as sementes, tudo será analisado’ [...]. Conhecerá, pelas experiências dos paroquianos sertanejos, os poderes medicinais das ervas silvestres que ele, versado nas ciências naturais e no desenho, descreverá e desenhará; conhecedor dos princípios da mineralogia, ele detectará as minas e os mais diversos metais como a prata, o ouro e o ferro, ‘esse metal indispensável para os trabalhos da lavoura e da escavação das minas’ [...]; instruídos na sabedoria dos químicos, dos hidráulicos e dos geômetras, analisará e decomporá os fenômenos da natureza extraindo os sais, identificando as águas termais e ensinando a abrir canais, a controlar, represar e conduzir as águas até as lavouras; como sábio físico conhecedor das leis mecânicas ensinará a potencializar a força humana por meio das máquinas; e ‘como geógrafo inteligente, ele descreverá a extensão da sua paróquia, não só quanto às suas confrontações e dimensões, mas também quanto à natureza de que é, ou não, capaz o seu terreno e o para que é mais ou menos próprio’ [...]” (Saviani, 2007, p. 112). 37 Olinda também formou republicanos e se tornou um centro que abrigou a liderança da revolução pernambucana de 1817 na luta por um Brasil independente e republicano (Cf. Saviani, 2007, p. 113). No Brasil, a reforma pombalina, com seu aporte filosófico iluminista, resultou na formação de numerosos naturalistas, com reconhecimento na Europa como, por exemplo, José Bonifácio de Andrada e Silva e Alexandre Rodrigues Ferreira, além de constituir uma elite formada com uma nova mentalidade que, posteriormente, inspiraria nossa formação cultural. Isso ocorreu no Brasil Metrópole, principalmente, quando da transferência da família real e Dom João VI para o Rio de Janeiro, no qual foi construído um conjunto de instituições voltadas para a ciência aplicada, aos mesmos moldes de Portugal (Cf. Paim, 1985). A reforma pombalina tenta modernizar a sociedade brasileira com a inserção dos parâmetros científicos exatos, mas não o faz com relação à política, pois os pensamentos filosóficos liberais que caracterizavam a Europa da época não foram contemplados nessa modernização: Toda a questão resume-se na conciliação que se buscou estabelecer entre eliminação da Escolástica, entronização da ciência e exaltação da riqueza, de um lado, com a manutenção, de outro lado, de doutrinas e instituições como a monarquia absoluta e a defesa da origem divina do poder do monarca; o monopólio estatal de numerosas atividades econômicas e as doutrinas mercantilistas, entre outras, que conflitavam abertamente com o propósito de incorporar a modernidade, expresso na mudança de posição em face da ciência (Paim, 1985, p. 27). Tratava-se de inserir os aspectos modernos da Ciência, mas preservando o tradicionalismo ético, político e econômico, bem como rechaçando a filosofia com a condenação da Escolástica e da Metafísica. Ou seja, foi modernizado somente o que beneficiava a Monarquia. O ideal de produção foi perseguido, assim como a crença na ciência, mas na perspectiva de que “a ciência seria o instrumento hábil para conquistála. Apenas a riqueza se entende como do Estado e não dos cidadãos” (Paim, 1985, p. 29). 2.3. O surgimento da matriz filosófica Eclética Espiritualista no Período joanino O último período da fase colonial do Brasil é marcado pela vinda da família real, 1808, em fuga das tropas napoleônicas e liderada pelo príncipe regente Dom João de Bragança, que se tornará, em 1816, o rei Dom João VI. Este período ficou conhecido 38 como joanino. Saviani (2007, p. 113) afirma que “nessa nova fase as ideias pedagógicas oriundas do pombalismo continuaram inspirando as iniciativas de Dom João, ainda que sua motivação principal tenha sido de caráter administrativo”, pois havia a necessidade de formar quadros para administrar e defender militarmente o reino que transferiu sua sede para o Rio de Janeiro. A formação dessa mão-de-obra ocorreu a partir da criação de cursos organizados nos moldes das aulas régias. Os cursos criados foram eminentemente técnicos: Assim, já em 1808 foi criada a Academia Real de Marinha e, em 1810, a Academia Real Militar, destinadas a formar engenheiros civis e militares. Também em 1808 foram instituídas a aula de cirurgia na Bahia e de cirurgia e anatomia no Rio de Janeiro, organizando-se, em 1809, a aula de medicina, cujo objetivo era formar médicos e cirurgiões de que necessitavam o Exército e a Marinha. Ainda em 1808 surgem, na Bahia, as aulas de economia. Em 1812 temos a escola de serralheiros, oficiais de lima e espingardeiros em Minas Gerais, de agricultura e de estudos botânicos na Bahia e o laboratório de química no Rio de Janeiro, onde também foi criada em 1814 a aula de agricultura. Em 1817 surge o curso de química que englobava as aulas de química industrial, geologia e mineralogia e em 1818 o de desenho técnico, ambos na Bahia (Saviani, 2007, p. 113). Azevedo (1958, p. 71) afirma que, apesar de todos os seus limites, a fase joanina representa um marco de superação completa e radical do programa escolástico e literário do período colonial, mesmo que impelido tão somente pelo cuidado de utilidade prática e imediata. a) Silvestre Pinheiro Ferreira (1769 / 1846) O entusiasmo prático, inspirado pela vertente filosófica empirista, não teve equivalência nas teorias filosóficas que rondavam a intelectualidade da época. Contraditoriamente, a matriz filosófica que teve mais expressão nesse período buscava questionar os limites e obstáculos do empirismo mitigado. Pode-se até afirmar que é um momento de transição do empirismo mitigado para o ecletismo espiritualista. Silvestre Pinheiro Ferreira foi um dos representantes desse período: Coube a esse pensador, no plano teórico, conceber um sistema filosófico que permitisse à cultura luso-brasileira integrar-se à Época Moderna e superar as insuficiências do empirismo mitigado. No plano prático, foi incumbido de realizar o trânsito da monarquia absoluta para a constitucional, como chefe do último governo de D João VI no Brasil. Mais tarde radicado em Paris, tornou-se, em seu tempo, um dos principais teóricos europeus do liberalismo político (Paim, 1985:33). 39 Silvestre Pinheiro Ferreira nasceu em Portugal, teve formação seminarista, foi professor de filosofia na Universidade de Coimbra, tornou-se diplomata e exerceu várias funções pela Europa. Em 1810 vem para o Brasil, onde retoma a condição de professor de filosofia. Suas aulas foram editadas com o título de Preleções Filosóficas15 e traziam uma concepção geral de suas ideias. Em 1821, torna-se chefe de governo, pastas do Exterior e da Guerra. Retorna com o monarca a Portugal, deixando o governo logo em seguida, devido à tendência absolutista do Governo. Exila-se voluntariamente em Paris e, aos 73 anos, volta a Portugal para aí morrer, em 1846. Segundo Paim (1985, p. 34), para Silvestre Pinheiro Ferreira, o direito constitucional, como na época se chamava o liberalismo político, fazia parte de um amplo sistema filosófico. Defensor das causas liberais, já no fim de sua vida em Paris estudou, comentou e criticou as constituições brasileira e portuguesa. Em 1834, publicou uma síntese de suas ideias no Manual do cidadão em um governo representativo, em três tomos. Em 1826, também no período parisiense, elaborou Essai sur la psychologie, que mais tarde resumiria no compêndio Noções elementares de filosofia geral e aplicada às ciências morais e políticas: ontologia, psicologia e ideologia, em 1839. Com essa produção bibliográfica, Silvestre Pinheiro tentou resgatar a filosofia da prisão do conhecimento positivo da natureza, efetuado por Verney, que, ao tentar se contrapor ao verbalismo escolástico da cultura portuguesa, acaba por fechar a filosofia num âmbito cientificista, no qual a moral e a política ficavam a margem. Para Silvestre, Verney teria radicalizado a importância do conhecimento prático e científico e sufocado, dessa maneira, o mérito das coisas do espírito. Dessa forma, relata Paim (1985, p. 34): Luís Antônio Verney escrevera que “saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é filosofia”. A partir dessa concepção é que a Faculdade de Filosofia, criada na Universidade renovada, iria dedicar-se à formação de naturalistas, botânicos, mineralogistas, enfim, homens voltados para o conhecimento das condições adequadas de exploração das riquezas naturais. Compreende-se que Verney pretendera exaltar o conhecimento positivo da natureza, em contraposição ao verbalismo da cultura portuguesa. Mas de semelhante entendimento resultava o 15 “As aulas de Silvestre Pinheiro Ferreira, durante largo período, constituíram o único texto filosófico, em português e atualizado, ao alcance dos que, porventura, se viessem a interessar pelo tema” (1984, Paim, p. 255). 40 amesquinhamento da filosofia e o abandono do propósito de fundar a Moral e a Política. Silvestre Pinheiro Ferreira, consciente das novas urgências culturais do seu tempo e na busca de ampliar o espaço de reflexão filosófica, concebe um sistema grandioso que abrangia três grandes domínios: a teoria do discurso e da linguagem; o saber do homem; e o sistema do mundo. Dessa forma, a filosofia não correria mais o perigo de ser confundida com qualquer ciência particular e, assim, ocupar-se-ia dos princípios gerais da ordenação do saber, sua verdadeira vocação16. O balanço final que Paim (1985, p. 35) faz da importância da filosofia de Silvestre Pinheiro Ferreira no Brasil pode ser condensado da seguinte forma: [...] no seu afã de coerência e de harmonia sistemática, não logrou dar uma solução plenamente satisfatória à questão da liberdade, que chegou a adquirir enorme relevância quando se pretendia fosse o liberalismo político parcela integrada no todo. Contudo, não apenas apresentou, à intelectualidade da jovem nação em emergência, uma opção superadora do empirismo mitigado, mas igualmente a conduziu ao tema crucial da liberdade humana. Desse modo, preparou os espíritos para a aceitação das ideias de Maine de Biran que tinham o atrativo adicional de se terem formulado na busca da coerência do empirismo e facultava uma solução nessa linha de pensamento. Por tudo isto, a obra do grande filósofo português corresponde, no pensamento brasileiro, ao momento de transição para o ecletismo (Paim, 1985:35). Paim (1984, p. 254) ainda afirma que esse estudioso foi “o primeiro pensador a atacar frontalmente o empirismo mitigado, despreocupado da defesa da filosofia tradicional, em nome da própria coerência do empirismo”. À filosofia restrita do empirismo e confundida com ciência, contrapunha a ideia de filosofia como sistema. E “graças a tudo isto e ao magistério de filosofia que exerceu no Rio de Janeiro, ao longo da segunda década do século, lançou as bases para o debate dos temas modernos, que iria empolgar parte da intelectualidade nas décadas de trinta e quarenta” (idem). Inspirando, inclusive, a consciência filosófica e política brasileira da época no seu traço conservador de índole liberal (idem, p. 275). 16 No entanto, afirma Paim (1984), “O pensador decidiu-se [...] por uma tarefa bem mais árdua. Lançou-se a uma reformulação tomando como ponto de partida as ideias consolidadas pela tradição. Reinterpreta Aristóteles segundo cânones empiristas e situa a Locke e Condillac como seu desdobramento natural. Pretende harmonizá-los num sistema que tenha a grandiosidade da Escolástica, preserve as conquistas de Verney e lhes assegure desenvolvimento coerente no plano ético. Enfim, não deseja interromper o diálogo com o passado nem apresentar a modernidade como algo de chocante e inusitado. Semelhante objetivo perseguiria durante cerca de quatro decênios, no magistério ou na política, em sua pátria ou fora dela” (p. 256). 41 Urge registrar aqui, também, a penetração do Kantismo em terras brasileiras. Segundo Paim, “movidos pela mesma insatisfação que Silvestre Pinheiro Ferreira manifestara em relação à filosofia dominante, intelectuais brasileiros são levados a se interessar pelas ideias de Kant, no mesmo ciclo” (1985, p. 37). Tendo sido um dos irmãos Andrada, Martins Francisco, o primeiro pensador brasileiro a trazer essas ideias filosóficas alemãs para solo brasileiro. 3 - Império (1822-1889): entre o Ecletismo e o Cientificismo Em 1823, alguns meses após a Proclamação da Independência, D. Pedro I convocou a Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa, visando à reforma da estrutura administrativa do novo país independente. Em todo o período imperial vai predominar, em termos de orientação teórica e filosófica, o Ecletismo Espiritualista e, em termos políticos, o reformismo. Somente a partir de 1870 é que o Ecletismo Espiritualista começa a entrar em declínio, sendo substituído lentamente pelo Positivismo que, por sua vez, vai permanecer influente no Brasil, até mesmo depois da Proclamação da República, a qual serviu de fonte de inspiração. Tanto o Ecletismo filosófico quanto o reformismo político eram extremamente convenientes à nova fase política brasileira, ou seja, suas posições conciliatórias impediam o acirramento das contradições políticas e econômicas. Saviani (2007) relata que foi nesse contexto histórico e político que o Imperador constatou a necessidade de se elaborar uma legislação especial sobre instrução pública, até então inexistente no país. Para tanto, inicialmente foi promovido, pela Comissão de instrução Pública da Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa, um projeto que instituiria um prêmio para a melhor proposta de um “Tratado Completo de Educação da Mocidade Brasileira”. A proposta vencedora foi a de Martim Francisco, um dos irmãos Andrada, inspirada quase que literalmente nas Cinco memórias sobre instrução pública, um livro de 1791, de autoria de Condorcet, tido como um dos últimos filósofos iluministas da França. Conforme Saviani, a preferência por esse projeto foi expressiva: Como se vê, a concepção laica de escola, na forma como começava a ser formulada pela burguesia triunfante, tendeu a ser apropriada pela elite que esteve à testa do processo de independência e da organização do Estado brasileiro, ajustando-a, porém, às peculiaridades dessa situação particular. E o recurso a Condorcet não deixa de ser 42 significativo, pois é, com certeza, nele que encontramos a expressão mais elaborada da íntima relação entre Estado e escola na perspectiva liberal (2007, p. 121). Condorcet, a partir do âmbito iluminista, defende que a instrução é necessária para o bom exercício da liberdade e constitui a possibilidade de evitar os erros. O conhecimento através da instrução é que legitima a decisão e justifica a submissão do homem a ela. Assim, o indivíduo esclarecido, ao delegar suas decisões em assembleias, terá maior possibilidade de acerto. É isso que respalda a independência de um povo soberano e possibilita a autonomia do indivíduo. Em outras palavras, a ignorância não promove a independência. Contudo, tanto a proposta de Martim Francisco quanto o projeto de elaboração de uma política de instrução pública para o Brasil foram postos de lado. A Assembleia Constituinte e Legislativa foi dissolvida por Dom Pedro I, em novembro de 1823. Em março de 1824, o imperador outorgou a primeira Constituição do Império do Brasil, que, sobre a educação, afirmava tão somente que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”. A discussão sobre o problema nacional da instrução pública foi retomada em 1826, quando da reabertura do Parlamento. O projeto que teve mais adesão dos parlamentares era também respaldado pelas ideias iluministas de Condorcet. Mas, da mesma forma que o anterior, esse projeto também não foi adiante. Afinal, o projeto de instrução pública que vigorou foi o da criação de “Escolas de Primeiras Letras” resultante da lei de 15 de outubro de 1827: Essa primeira lei de educação do Brasil independente não deixava de estar em sintonia com o espírito da época. Tratava ela de difundir as luzes garantindo, em todos os povoados, o acesso aos rudimentos do saber que a modernidade considerava indispensáveis para afastar a ignorância (Saviani, 2007, p. 128) 17. 17 Quanto ao currículo da Escola de Primeiras Letras, prossegue Saviani: “O modesto documento legal aprovado pelo Parlamento brasileiro contemplava os elementos que vieram a ser consagrados como o conteúdo curricular fundamental da escola primária: leitura, escrita, gramática da língua nacional, as quatro operações de aritmética, noções de geometria, ainda que tenham ficado de fora as noções elementares de ciências naturais e das ciências da sociedade (história e geografia). Dada a peculiaridade da nova nação, que ainda admitia a Igreja católica como religião oficial e estava empenhada em conciliar as novas ideias com a tradição, entende-se o acréscimo dos princípios da moral cristã e da doutrina da religião católica no currículo proposto” (Saviani, 2007, p. 128). Pela lei de 1827 também é adotado por decreto o método de ensino mútuo ou monitorial criado pelo pedagogo Lancaster e que tinha o objetivo de colocar estudantes na atividade de professores, que por sua vez eram responsáveis pelo custeio de sua própria formação pedagógica. 43 Essa lei, contudo, não obteve êxito nos seu objetivo de instalar escolas elementares em todas as cidades, vilas e lugares de grande população, inviabilizando uma política que poderia ter frutificado em um sistema nacional de instrução pública. Em 1934, foi feita uma reforma na qual “o ensino elementar, o secundário e o de formação de professores foram descentralizados, passando para a iniciativa e responsabilidade das províncias” (Aranha, 2006, p. 223). A descentralização do ensino, promovida por essa reforma, atribuiu também à Coroa a função de promover e regulamentar o ensino superior. Assim, a educação da elite ficou a cargo do poder central e a do povo confiada às províncias, assevera Aranha (2006). No entanto, afirma Aranha, com relação ao ensino secundário, o que de fato ocorreu foi uma pseudodescentralização: [...] pois em 1837 foi fundado no Rio de Janeiro o Colégio D. Pedro II, que ficou sob a jurisdição da Coroa. Destinado a educar a elite intelectual e a servir de padrão de ensino para os demais liceus do país, esse colégio era o único autorizado a realizar exames parcelados para conferir grau de bacharel, indispensável para o acesso aos cursos superiores (Aranha, 2006, p. 224). Dessa forma, pode-se inferir que o descaso com a educação elementar da população brasileira, fruto de uma política elitista, foi uma das razões que impediram a absorção das ideias liberais e iluministas de Condorcet por duas vezes seguidas. A noção iluminista de escola pressupunha a distribuição das Luzes por todos os habitantes de um país, o que não podia se realizar com a “descentralização” acima referida que, na verdade, era uma regra que não valia para o custeio do colégio que formava a elite do país, o colégio secundário Pedro II. A mesma restrição à distribuição das luzes a alguns poucos cidadãos ocorre com relação aos escravos negros, conforme reflexão de Saviani (2007), referindo-se ao Regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do Município da Corte, instituído pela Reforma Couto Ferraz de 1854: Se as ditas luzes deveriam derramar-se a todos os habitantes, deve-se entender que se restringia a todos os habitantes ‘livres’, pois os escravos estavam explicitamente excluídos, já que, nomeados no parágrafo 3º do artigo 69, estavam entre aqueles que ‘não serão admitidos à matrícula, nem poderão frequentar as escolas’ (Saviani, 2007, p. 132). Todo esse quadro nos oferece a compreensão dos limites políticos que caracterizou o período imperial. As posições liberais eram aceitas pela metade, segundo 44 as conveniências do poder imperial; as bandeiras iluministas eram aceitas e acatadas, mas somente para a parte rica da população. Daí, então, o Ecletismo Espiritualista ter encontrado forte aceitação nos círculos intelectuais da elite política e educacional dessa época, haja vista que a sua capacidade de reunir elementos diferenciados sob um mesmo matiz viabilizava a conciliação necessária aos interesses políticos e econômicos do império. 3.1. A matriz filosófica Eclética Espiritualista do Império As reflexões filosóficas associadas à prática docente e política de Silvestre Pinheiro Ferreira, de certa forma, prepararam o terreno da corrente filosófica do Ecletismo Espiritualista. No Brasil, esse pensador português representa um período de transição do Empirismo Mitigado para o pensamento espiritualista eclético, estruturado nas décadas de 1830 e 1840, dominante na década de 1850 e predominante até 1870, época em que começou a ser contestado pelos líderes da Escola do Recife, com base no pensamento Positivista. A base inspiradora do pensamento eclético foi a filosofia de Victor Cousin, professor de filosofia na Escola Normal de Paris desde 1814, filósofo oficial do reinado de Luiz Filipe (1830-1848), reitor da universidade e ministro da Instrução Pública. Quanto ao seu pensamento filosófico, Paim elucida sua busca de mediação entre o empirismo e o idealismo: Cousin parte da necessidade de empregar, na filosofia, os métodos da observação e da experimentação, segundo o espírito do século. Recusa, não obstante, as conclusões do sensualismo e, simultaneamente, a possibilidade de uma intuição direta do absoluto, afirmada pela filosofia alemã. Quer uma observação interior que conduza ao estabelecimento de leis tão rigorosas como as formuladas pela física (Paim, 1984, p. 285). Da mesma forma, Paim ressalta a influência hegeliana no pensamento cousianiano: “Cousin manteve relações pessoais com Hegel e foi por este influenciado, compartilhando da opinião do filósofo alemão de que a história da filosofia representaria etapas na formação do espírito” (Paim, 1984, p. 286). No Brasil, o Ecletismo Espiritualista foi adotado como filosofia oficial no Colégio Pedro II e, por isso, tornou-se obrigatório nas demais instituições de ensino secundário e nos cursos anexos de faculdades, com a adesão de professores e de 45 intelectuais como Mont’Alverne e Gonçalves de Magalhães no Rio de Janeiro, Eduardo Ferreira França na Bahia e Antonio Pedro de Figueiredo em Pernambuco (Cf. Saviani, 2007, p. 118) Para Paim, “o ecletismo consiste na primeira corrente filosófica rigorosamente estruturada no país, tendo logrado ganhar a adesão da maioria da intelectualidade e manter uma situação de domínio absoluto da década de quarenta à de oitenta do século passado” (Paim, 1985, p. 40). Mais especificamente de 1830 a 1880. Ou seja, praticamente atravessa todo o período imperial. Paim divide o ecletismo em três períodos: formação; apogeu; declínio e superação. O período de formação é situado no período de 1833 a 1848. As duas figuras marcantes na formação da escola eclética foram Salustiano Pedrosa e Domingos Gonçalves Magalhães. Como a maioria, eles estudaram na França e eram discípulos de Cousin. Salustiano Pedrosa era baiano e publicou dois livros, Esboço de história da filosofia, de 1845, e Compêndio de filosofia elementar, de 1846. Domingos Gonçalves de Magalhães, nasceu no Rio de Janeiro, e teve como sua obra mais significativa Fatos do espírito humano. Outros nomes importantes desse período foram Frei José do Espírito Santo, franciscano da Bahia, foi o primeiro a difundir as ideias da escola eclética; Pedro de Figueiredo que traduziu o curso de História da filosofia moderna, de Victor Cousin, publicado em 1843 (vol. I) e 1844 (vol. II e III), em Recife; Eduardo Ferreira França e seu marcante livro Investigações psicológicas de 1845; Monte Alverne e seu livro Compêndio de filosofia, escrito em 1833. No ciclo de formação do Ecletismo Espiritualista, ocorre animado debate filosófico entre naturalistas e espiritualistas, e a busca da solução conciliatória do problema da liberdade conquista a maioria da elite intelectual (Cf. Paim, 1985, p. 40). Eduardo Ferreira França encabeça essa discussão e acrescenta as reflexões de Maine de Biran18 ao pensamento de Cousin: 18 “Ao caracterizar como fato primitivo da consciência ao esforço voluntário – decorrente da iniciativa do sujeito, sem que haja sido instado por estímulos externos – e assim se apreender como causa e como liberdade, o espiritualismo eclético punha na balança um argumento que então se considerava como correspondendo plenamente às exigências da observação científica. Como Biran nunca se propusera refutar o empirismo, mas apenas torná-lo coerente, introduzia-se a psicologia no caminho da ciência moderna. A afirmativa da realidade espiritual se fazia incorporando as conquistas da Época Moderna e, ao mesmo tempo, ampliando o campo de aplicação do que se entendia como a metodologia de eficácia comprovada. É certo que a passagem do que se poderia denominar, contemporaneamente, de capacidade do espírito humano de criar sínteses ordenadoras do real, a exemplo da ideia de causalidade, para a 46 Na Bahia, na década de quarenta, à luz dos debates então travados, entre os que tudo pretendiam explicar pela economia animal, e os que não viam outra realidade além do espírito, é que descobre a obra de Maine de Biran e elabora trabalho substancioso para evidenciar que o aprofundamento da perspectiva empirista conduz a descoberta do espírito e à fundamentação da liberdade. Seu livro – Investigações de psicologia (1854) – corresponde a uma síntese magistral desse momento de grande efervescência do debate filosófico em nosso país (Paim, 1985, p. 41). O debate filosófico suscitado pelo ecletismo espiritualista se deu em uma circunstância política de ascensão do liberalismo moderado “dando início, no começo dos anos quarenta, à reforma política que iria pôr fim ao ciclo das revoluções armadas” (Paim, 1985, p. 44). Na Bahia, no início da década de quarenta do século XIX, essa efervescência cultural, dada à flexibilidade política, possibilitou a fundação de várias agremiações: Sociedade Instituto Literário, Sociedade Instrutiva e Sociedade Filosófica. O debate filosófico dessa época sobre o ecletismo também foi acirrado pelo aparecimento de vários periódicos: O Musaico, Periódico Mensal da Sociedade Instrutiva da Bahia; O Crepúsculo, Periódico Instrutivo e Moral da Sociedade Instituto Literário da Bahia. No Rio de Janeiro, a Revista Minerva Brasiliense, de 1845, teve presença marcante. Em Recife fez sucesso outra revista, O Progresso, comandada por Antônio Pedro de Figueiredo em 1848. Para Paim, os ecléticos impulsionaram um animado debate filosófico, levando uma novidade que os credenciou a granjear amplas adesões, até mesmo entre aqueles que os hostilizavam. O que os ecléticos brasileiros traziam de novo não era tanto a reflexão sobre a supremacia da ciência, mas sim como conciliar a liberdade na condição empírica do homem: A questão para o pensamento brasileiro não consistia no reconhecimento da ciência, que se efetivara desde Pombal e até se vira colocada numa posição hegemônica, equiparável à que desfrutara a filosofia escolástica. O problema consistia em integrar a liberdade e assim incorporar o liberalismo político num sistema empirista coerente (Paim, 1985, p.46). afirmativa da possibilidade de demonstrar racionalmente a existência da divindade não chega a ser satisfatoriamente equacionada na filosofia de Cousin, mas essa dificuldade somente iria aparecer no ciclo posterior de ascendência e maturidade da escola. No momento que se considera, sobressaía a integração numa doutrina harmônica, dos momentos- afirmação do espírito e afirmação da ciência.” (Paim, 1985, p. 47). 47 O período de apogeu do Ecletismo Espiritualista se situa entre 1850-1880 e corresponde à sua posição como filosofia oficial, tornada obrigatória no colégio Pedro II e nos liceus estaduais. A sua posição é de prestígio inconteste no seio da intelectualidade e da elite política (Cf. Paim, 1985, p. 48). Assim se refere Paim a esse período e ao seu novo objeto de reflexão, a moral: [...] nessa fase de maturidade, a problemática em discussão sofre alteração significativa. Os pensadores ecléticos passam a colocar em primeiro plano o problema da moral, que Biran não resolvera de forma satisfatória e permanecia como um desafio para o espiritualismo em seu conjunto, inclusive os intentos de restauração da escolástica. Precisamente essa circunstância faz sobressair a importância do livro Fatos do Espírito Humano (1885), de Gonçalves de Magalhães, logo traduzido ao francês e recebido em Paris como contribuição relevante à solução do problema que a todos preocupava (Paim,1985, p. 41). Assim, no ciclo de apogeu, nas discussões filosóficas, o tema do conhecimento perde posição para a busca dos fundamentos da moral. Para Pedro de Figueiredo, por exemplo, é fundamental a problemática ético-política, apoiada no historicismo cousiniano de inspiração hegeliana: A estrada gloriosa do progresso, que a Época Moderna abriu à humanidade, encontra seus fundamentos na circunstância de que se trata de simples desabrochar do que estava em germe na mensagem cristã. É um projeto de cunho pedagógico a serviço do aprimoramento dos homens e da convivência social (Paim, 1985, p. 51). Outro aspecto importante do período do Ecletismo Espiritualista para a cultura brasileira é o que Roque Spencer Maciel de Barros chama no título de seu livro: A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de Magalhães. O romantismo literário que acompanha o período eclético representou a consciência crítica de uma nacionalidade nascente. Segundo Maciel de Barros, os românticos teriam sido os educadores de uma consciência nacional, que existia mais como aspiração do que como realidade. Tratava-se da construção de uma nacionalidade que era suprimida pela assunção de ideias e sentimentos estrangeiros. Mais que uma tarefa política e econômica, era também uma obra espiritual e um trabalho de formação, “que é obra de poetas, de literatos e de ‘filósofos’, e tanto quanto de estadistas, e que tem, antes e acima de tudo, um sentido eminentemente ‘pedagógico’, no mais alto significado dessa expressão” (Paim, 1985, p. 52). Nessa perspectiva, Magalhães se dispunha “a lançar os alicerces de uma forma nacional de sentir, de querer e de pensar” (Paim, 1985, p. 52). 48 a) Colégio Pedro II: a hegemonia da corrente eclética espiritualista Em 1837, é instalado o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, voltado para a formação das elites dirigentes do país e, como tal, oferecia um ensino de cunho universalista, literário e enciclopédico, com alguma concessão aos estudos científicos. Dessa forma, os estadistas do Império, inspirados no bacharelismo e “penetrados de cultura europeia” criaram um instituto de ensino secundário aristocrático, afastado das questões práticas da ciência e da vida prática, com o intuito de servir “como um instrumento de seleção e de classificação social” (Cf. Azevedo, 1958, pp. 78-80). Segundo Azevedo, essa educação elitista correspondia perfeitamente à estrutura social de então, marcada fortemente pelas diferenças econômicas: Essa educação de tipo aristocrático, destinada antes à preparação de uma elite do que à educação do povo, desenvolveu-se no Império, seguindo, sem desvio sensível, as linhas de sua evolução, fortemente marcadas pelas tradições intelectuais do país, pelo regime de economia patriarcal e pelo ideal correspondente de homem e de cidadão. O tipo de cultura a que se propunha servir, não se explica apenas pela tradição colonial. De fundo europeu, que de certo modo o preparou, mas se liga estreitamente às formas e aos quadros da estrutura social que persistiram por todo o Império. De fato, com a mudança do estado político, de colônia para nação, e com a fundação, em 1822, da monarquia constitucional, não se operou modificação na estrutura da sociedade, que se manteve, como na Colônia, organizada sobre a economia agrícola e patriarcal, de base escravocrata, desde os engenhos de açúcar no Norte, até as fazendas de café no Sul, já pelos meados do século XIX, em pleno desenvolvimento (Azevedo, 1958, p. 80). É, precisamente, nessa estrutura econômica-social, marcada pelos grandes atrasos liberais, que a filosofia Espiritualista Eclética cabia como uma luva ao Império, e que, por seu caráter conciliador, se tornou a filosofia oficial do Império. Da mesma forma que se tornou também a filosofia oficial do colégio imperial responsável pela formação dos filhos das elites dirigentes. Conforme Paim, ao ciclo de apogeu da Escola eclética corresponde sua condição de filosofia oficial, que se torna “obrigatória no Pedro II e nos liceus estaduais. Desfruta de incontestável prestígio no seio da intelectualidade e da elite politica” (Paim, 1985, p. 48). O Colégio Pedro II formava bacharéis em humanidades, cujo diploma dispensava os exames para ingresso nas Academias. Contudo, o programa de ensino de filosofia adotado nesse Colégio, estabelecido pelos ecléticos, era obrigatório em todos os exames gerais de preparatórios a que deveriam submeter-se os candidatos ao ensino superior. Um dos pontos desse programa era: “Resumo de todos os sistemas de filosofia 49 contemporâneos e sua influência no Brasil”, o que denotava a necessidade de conhecimento da própria doutrina eclética. Assim, pode-se asseverar que os ecléticos do Pedro II foram os principais responsáveis pelo conteúdo do programa de filosofia em nível nacional, pois: Estruturaram o ensino de filosofia, ao nível do Colégio Pedro II e dos Liceus Provinciais e também nos Cursos Anexos das escolas superiores e mesmo nestas, ainda que não tivessem aquela denominação, mas direito natural ou introdução às disciplinas físicas e biológicas. O espírito geral desses cursos é o de que a filosofia enfatiza problemas teóricos, de natureza permanente, sendo transitórios os sistemas (Paim, 1999, p. 272). Coube à Domingos de Magalhães a regência da primeira cadeira de filosofia do Colégio Imperial Pedro II, mas o curso somente seria inaugurado no ano letivo de 1942, com a aula inaugural intitulada Discurso sobre o objeto e importância da filosofia. Quanto aos outros professores de orientação eclética, nos informa Paim: Segundo os registros preservados no próprio colégio (Expediente do externato. Ofícios do Reitor), a 24 de outubro de 1842 Magalhães foi substituído por Santiago Nunes Ribeiro, chileno de nascimento que veio para o Rio de Janeiro muito jovem, tendo falecido em 1847. Era lente de Retórica e poética no mesmo colégio. Foi um dos principais redatores da ‘Minerva Brasileira’, tendo lhe cabido redigir a notícia do concurso para provimento da cadeira de filosofia, que regia interinamente, no Pedro II, realizado em julho de 1844. O concurso seria ganho por Francisco de Sales Torres Homem (1812-1876) que, mais tarde, se tomaria panfletário famoso, e, posteriormente, político influente. [...]. Magalhães, Nunes Ribeiro e Torres Homem consagram, no Pedro II, a hegemonia da corrente eclética (Paim, 1999, p. 36). Para se ter uma ideia da prevalência prolongada do ecletismo no Colégio Pedro II, ainda em 1874, foi adotado como manual de filosofia o livro A Moral de Paul Janet (1823-1899), filósofo ao qual recorreram os ecléticos Antonio Pedro de Figueiredo e Domingos Gonçalves de Magalhães para suprirem a fundamentação moral que não encontraram em Biran e Cousin. Para Janet, a categoria ética fundamental seria a do dever kantiano, admitindo-se que as pessoas poderiam tender para ele de forma espontânea. Em 1880, no Colégio Pedro II, houve concurso para provimento da Cadeira de Filosofia “de que resulta a nomeação de Silvio Romero (1851-1914), interrompendo a tradição de preenchê-la com partidários do ecletismo espiritualista. A mudança de orientação não parece, entretanto, ter sido automática” (Paim, 1999, p. 30). Paim indica 50 que há indícios de que a orientação eclética do Pedro II e nos Liceus Estaduais tenha prevalecido até a República19. b) Escola do Recife: o surto de ideias novas do cientificismo O período final do Ecletismo Espiritualista começa com o seu declínio a partir de 1870, com o surgimento da Escola de Recife e a ascensão do Positivismo, até sua posterior e total superação no início da República. Conforme Paim: “A fase final do ecletismo confunde-se com o período de emergência das correntes cientificistas, a partir do movimento que Sílvio Romero batizou de ‘surto de ideias novas’, iniciado na década de setenta” (Paim, 1985, p. 42). Os espiritualistas-ecléticos, representantes da filosofia oficial do Segundo Império, não se curvaram diante dessas novas ideias. Magalhães chega mesmo a combatê-los: “Essa resistência não parece ter sido de todo infrutífera, em que pese o completo abandono do espiritualismo no novo ciclo que se vai iniciar. Ao menos a atitude valorativa da filosofia, que a animava, iria ser apropriada pela Escola do Recife” (Paim, 1985, p. 54). O movimento chamado Escola do Recife nasce do processo de crítica ao Ecletismo Espiritualista, chamado ‘surto de ideias novas’ dos anos setenta do século XIX. Inicialmente combateu a monarquia, tida como obstáculo ao progresso, a partir de obras de Comte, Darwin, Taine, Renan e outros, compondo uma espécie de “frente” cientificista. É nesse movimento que surge o positivismo como corrente filosófica expressiva no Brasil (Cf. Paim, 1985, p. 86-87). Entretanto, a Escola do Recife, foi multifacetada. Apesar de sua significativa reflexão na área filosófica, fez incursões no Direito, na história da cultura brasileira, na poesia, na política e muito contribuiu na modernização de instituições, como é o caso do Código Civil. Mas “a filosofia é que se constituiu o elemento unificador de ação tão variada e dispersa, precisamente o que faz sobressair a figura de Tobias Barreto” (Paim, 1985, p. 87). 19 A esse respeito, esclarece Ghiraldelli: “O destaque da época imperial foi, sem dúvida, a criação do Colégio Pedro II. Inaugurado em 1838, seu destino era servir como modelo de ensino. Tal instituição nunca se consolidou realmente como modelo de ensino secundário, mas como uma instituição preparatória ao ensino superior. Ao longo do Império, ela sofreu várias reformas curriculares, que ora acentuaram a formação literária dos alunos em detrimento da sua formação científica, ora agiram de modo oposto, segundo as disputas entre o ideário positivista e o ideal humanista-jesuítico. Quando o ideário positivista levava vantagem, na medida em que crescentemente tangenciava os gostos intelectuais da época, o Colégio Pedro II passava a incorporar mais disciplinas científicas. Quando os positivistas perdiam terreno, voltava-se a uma grade curricular de cunho mais literário” (Ghiraldelli, 2009, p. 7). 51 A produção filosófica do grupo teve início em 1875, quando Sílvio Romero escreve o texto, até hoje desaparecido, “Deve a Metafísica ser considerada Morta?”. O texto foi fruto de sua participação num Concurso da Faculdade de Direito, no qual defendeu a morte da Metafísica pelo Positivismo20. Tobias Barreto, juntamente com Silvio Romero e outros, estabeleceu os alicerces de criação do grupo da Escola de Recife. Sua obra, tal qual a própria Escola, não obedeceu somente a uma única orientação filosófica. Ao contrário, mudou de referencial teórico ao longo de sua trajetória intelectual. Inicialmente se filiou à filosofia monista de Ernest Haeckel, em seguida acaba por se opor ao caráter mecanicista do monismo haeckeliano. Depois, ainda considerando válido alguns desses princípios, “pretendeu que a filosofia devia limitar-se a uma inquirição sobre o conhecimento científico, abdicando de qualquer pretensão de aumentar o saber operativo (científico), já agora sob influência de representantes dos primórdios do neokantismo” (Paim, 1985, p. 88), pois este não se distinguia do positivismo, na medida em que atribuía também à filosofia a função de síntese das ciências21. Por fim, a pesquisa que privilegiou nos últimos anos de sua vida foi em torno da cultura. Conforme Paim, uma das ideias significativas no pensamento de Tobias Barreto consistiu “na abordagem do homem como consciência, a seu ver a única forma de retirá-lo do determinismo a que o havia cingido o positivismo. Tal é o tema central da parcela última de sua obra filosófica” (Paim, 1985, p. 88). Nesse sentido, a cultura seria a antítese da natureza, uma mudança do natural, tornando-o belo e bom (Cf. Paim, 1985, p. 88). Enquanto tal, a natureza é algo originário que não se modifica nem pela influência humana, já “a particularidade do mundo da cultura consiste no fato de que se 20 A metafísica que Sílvio Romero considerava morta em 1875 “era a metafísica dogmática, apriorística, inatista, meramente racionalista, a metafísica velho estilo, feita à parte mentis , a pretensa ciência intuitiva do absoluto, palácio de quimeras fundado em hipóteses transcendentes, construído dedutivamente de princípios, imaginados como superiores a toda verificação.[...]. A metafísica que se pode considerar viva é a que consiste na crítica do conhecimento, como a delineou Kant nos seus Prolegômenos, e, mais, a generalização sintética de todo o saber, firmada nos processos de observação e construída por via indutiva” (Romero apud Paim, 1985, p. 91). 21 “Assim, Tobias Barreto suscitou a hipótese do monismo e, sem abandoná-la, difundiu o conceito neokantiano de filosofia. Artur Orlando é o único dos seguidores que se dá conta da incompatibilidade das suas posições e busca aprofundar a ideia da filosofia como epistemologia. Os demais integrantes da Escola não se dispuseram a abdicar da sua acepção como síntese das ciências e supunham que a disputa era entre monismo mecanicista e monismo teleológico ou entre monismo e evolucionismo” (Paim, 1985, p. 88). 52 subordina à ideia de finalidade, escapando a todo esquema que se proponha resolvê-lo em termos de causas eficientes” (Paim, 1985, p. 89). Pode-se afirmar que Tobias Barreto, na fase final de seu pensamento, buscava um equilíbrio entre o espiritualismo dos ecléticos e a materialidade dos naturalistas, principalmente no que diz respeito à liberdade humana. Para a liberdade humana existir não é necessário que a ação seja imotivada, ela tem que ser compreendida a partir da cultura, pois o exercício da liberdade requer motivos para tal: A chave para a solução do problema será encontrada no entendimento da cultura como um ‘sistema de forças combatentes contra o próprio combate pela vida’, isto é, radicalizando a oposição entre o império das causas finais e o império das causas eficientes, entre o mundo da criação humana e o mundo natural. [...]. A natureza [...] pode ser apontada como a fonte última de toda imoralidade e não foi certamente inspirando-se nela que o homem criou a cultura. [...]. Nessa luta por erigir algo de independente da natureza, o homem criou a sociedade (Paim,1985, p. 89-90). Para o filósofo sergipano, a verdadeira característica humana é a capacidade de conceber um fim e conduzir as suas ações na sua realização, mediante a submissão às normas necessárias para tanto: “Trata-se, em síntese, de um animal que se prende, que se doma a si mesmo: ‘Todos os deveres éticos e jurídicos, todas as regras da vida acomodam-se a esta medida, que é a única exata para conferir ao homem o seu legítimo valor’” (Paim,1985, p. 90). Para Sílvio Romero, o conceito de cultura deixa de ser um problema filosófico, pois é inadequada uma contraposição entre natureza e cultura. À antítese posta por Tobias Barreto, propõe uma conciliação entre naturalismo e o espiritualismo, à luz do evolucionismo monístico spenceriano (Cf. Paim, 1985, p. 91). Da mesma forma, também, contrapõe ao culturalismo filosófico de Tobias Barreto seu culturalismo sociológico: Em contrapartida, Silvio Romero imaginou a possibilidade de uma investigação da cultura segundo pressupostos científicos. Acreditava que, partindo dos fatos, chegar-se-ia a uma visão totalizante, razão pela qual recomendava que o método se aplicasse à cultura brasileira. [...]. Tal é o culturalismo sociológico, que teve o mérito de facultar diversos estudos e levantamentos sistemáticos sobre a cultura brasileira [...] (Paim, 1985, p. 94). A Escola do Recife revolucionou a Faculdade de Direito do Recife, de onde surgiu, promovendo discussões acirradas em torno de disputas filosóficas e jurídicas que iam desde a recusa do ecletismo espiritualista e a recepção do pensamento 53 cientificista, até o questionamento da influência filosófica francesa em prol da filosofia alemã. Contudo, sua influência extrapolou as terras pernambucanas, tendo ramificações em todo o Brasil, inclusive em Fortaleza, com o grupo denominado Academia Francesa do Ceará, fundado em 1972, liderado por Raimundo Antônio da Rocha Lima, inspirado na Escola do Recife, que conheceu ao viajar para Pernambuco no ano anterior 22. 4 - República (1889-2012): do Positivismo à Filosofia da Diferença A organização de um sistema nacional de ensino foi a questão educacional que predominou nos últimos anos do Império e continuou por toda a Primeira República. Nesse âmbito, já no final de 1860, a discussão que interessava a todos era relativa à substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalho livre, “atribuindo-se à educação a tarefa de formar o novo tipo de trabalhador para assegurar que a passagem se desse de forma gradual e segura, evitando-se eventuais prejuízos aos proprietários de terra e de escravos que dominavam a economia do país” (Saviani, 2007, p. 159). A educação foi chamada a participar do processo da substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, no período que vai de 1868 até a Abolição e a Proclamação da República, em virtude da ideia de que haveria uma ligação entre emancipação e instrução. Dessa forma, era necessário educar as crianças negras, nascidas dos ventres livres, para lhes inviabilizar uma indolência que seria natural: “a emancipação do escravo exigia a difusão da instrução de modo que, diminuindo o ‘abismo da ignorância’, fosse afastado o ‘instinto da ociosidade’” (Bastos apud Saviani, 2007, p. 163). No entanto, nem a discussão sobre o treinamento da mão-de-obra assalariada se realizou na prática, nem a questão educacional sobre a necessidade de uma organização nacional da educação teve desdobramentos. A imigração europeia fluiu normalmente 22 O grupo da Academia era composto pelos nomes de João Capistrano de Abreu, Tomás Pompeu de Souza Filho, João Lopes Ferreira Filho, Xilderico Araripe de Faria e Araripe Júnior. Posteriormente, figuras do porte de Clóvis Beviláqua, Joaquim Catunda, Farias Brito e outros se agregaram a esta associação. Posteriormente, Alcântara Nogueira e João Alfredo Montenegro se tornaram grandes estudiosos e divulgadores desse movimento. Em nível nacional, de diversos Estados, podem-se citar, dentre outros, os seguintes nomes: Afonso Cláudio (1850-1889); Alcides Bezerra (1891-1938); Graça Aranha (1868-1931); Fausto Cardoso (1864-1906); Artur Orlando (1858- 1916); Estelita Tapajós (1860). 54 para os cafezais, em substituição à mão-de-obra escrava que foi simplesmente sendo posta a margem, tal qual a discussão sobre um sistema nacional de ensino23: “Seria preciso esperar o período final da República Velha com a crise dos anos de 1920 para retomarem-se as reformas estaduais da instrução pública e recolocar o problema do sistema de ensino que passará a ter um tratamento em âmbito nacional após a Revolução de 1930” (Saviani, 2007, p. 166). É fato que o sistema nacional de ensino não foi implantado nessa época e o resultado foi o acúmulo de um enorme déficit educacional. Contudo, assevera Saviani (2007, p. 167), a não implantação do sistema nacional de ensino no Brasil não se deveu somente pelas limitações materiais, como falta de verba ou insuficiência de financiamento. A questão teve também justificativas relacionadas à “mentalidade pedagógica” baseada em concepções filosófico-educativas então predominantes e que impossibilitaram uma articulação nacional do sistema educativo: [...] a mentalidade cientificista de orientação positivista, declarando-se adepta da completa ‘desoficialização’ do ensino, acabou por converter-se em mais um obstáculo à realização da ideia de sistema nacional de ensino. Na mesma direção comportou-se a mentalidade liberal que, em nome do princípio de que o Estado não tem doutrina, chegava a advogar o seu afastamento do âmbito educacional (Saviani, 2007, p. 168). 4.1. - Primeira República (1889-1930): ciência, crença, prática e liberdade Para Saviani, a Primeira República é atravessada, em seu pensamento pedagógico e em sua política educacional, por uma tensão característica das diversas vertentes do pensamento liberal presente naquele contexto histórico brasileiro, qual seja, a importância do Estado no desenvolvimento da sociedade e sua simultânea recusa desse papel (Saviani, 2007, pp. 168-169). Aqui se compreende que Saviani está se referindo aos limites e impossibilidade da política burguesa em resolver as contradições sociais de base do capitalismo. 23 “Do mesmo modo, também não produziram resultados práticos os debates sobre a importância da educação e a necessidade de sua organização em âmbito nacional que se intensificaram nas duas últimas décadas do Império. Pode-se dizer que a ideia de sistema nacional de ensino se fez presente em todos os projetos de reforma apresentados desde o final da década de 1860 assim como nos textos preparados para o Congresso de Instrução que deveria ser realizado em 1883, mas que por falta de verbas (o Senado negou a concessão dos recursos) não se realizou” (Saviani, 2007, p. 164). 55 A não assunção da instrução pública como responsabilidade do governo central é oficializada na primeira Constituição republicana, em 1891, quando incumbe o Congresso Nacional, mas não exclusivamente, da criação do ensino superior e secundário nos Estados e da instrução secundária no Distrito Federal. Houve omissão quanto à responsabilidade do ensino primário, mas ao mesmo tempo delegou aos Estados a função de legislar e oferecer a instrução primária (Saviani, 2007, p. 171). Em 1892, São Paulo inicia esse ciclo de reformas estaduais com o objetivo de promover uma reforma geral da instrução pública paulista, mas se concentrando somente na escola primária, com a inovação da criação dos grupos escolares substituindo as escolas isoladas que, “uma vez reunidas, deram origem, no interior dos grupos escolares, às classes que, por sua vez, correspondiam às séries anuais. Portanto, as escolas isoladas eram não-seriadas, ao passo que os grupos escolares eram seriados” (Saviani, 2007, p. 172). A partir de então, os grupos escolares foram sendo criados em todo o Estado de São Paulo e, já no início do século XX, por todo o Brasil: “Trata-se, pois, de um modelo que foi sendo disseminado por todo o país, tendo conformado a organização pedagógica da escola elementar que se encontra em vigência, atualmente, nas quatro primeiras séries do que hoje se denomina ensino fundamental” (Saviani, 2007, p. 174-175). Contudo, a reforma paulista que teve um cunho educacional mais popular foi a de 1920, realizada por Sampaio Dória. Mesmo que ela não tenha alcançado a maioria de seus objetivos para a educação primária, como universalização, obrigatoriedade, etc., sua importância se dá em virtude de ter inaugurado o importante ciclo de reformas estaduais24 na década de 1920 que iria promover mudanças significativas na educação brasileira: Esse processo alterou a instrução pública em variados aspectos como a ampliação da rede de escolas; o aparelhamento técnico-administrativo; a melhoria das condições de funcionamento; a reformulação curricular; o início da profissionalização do magistério; a reorientação 24 “Cabe registrar, além da reforma paulista de 1920: a reforma cearense, em 1922, encabeçada por Lourenço Filho; no Paraná a reforma de Lysimaco Ferreira da Costa e Prieto Martinez, em 1923; a reforma de José Augusto iniciada em 1924 no Rio grande do Norte; a reforma baiana, dirigida por Anísio Teixeira em 1925, que, segundo Nagle [...], fecha o primeiro ciclo das reformas da década de 1920, representando ‘a consolidação das normas já estabelecidas’. Após essa reforma, abre-se um novo ciclo marcado pela introdução mais sistemática das ideias renovadoras: a reforma mineira de 1927, realizada por Francisco Campos e Mário Casasanta; a reforma do Distrito Federal, liderada por Fernando de Azevedo em 1928; e a reforma pernambucana, em 1929, de iniciativa de Carneiro Leão” (Saviani, 2007, p. 177). 56 das práticas de ensino; e, mais para o final da década, a penetração do ideário escolanovista (Saviani, 2007, pp. 176-177). (Grifo nosso). Nesse contexto educacional brasileiro, várias matrizes filosóficas foram marcantes e determinaram certos aspectos institucionais ou teóricos da realidade educacional brasileira. Salientemos aqui o Positivismo, o Catolicismo, o Pragmatismo e o Anarquismo. a) A matriz filosófica Positivista Paim (1984, p. 375) relata que, no Brasil, o conhecimento das obras de Comte é anterior aos anos de 1870, época de formação da Escola do Recife e da eclosão do “bando de ideias novas”. Desde a década anterior, o Positivismo já respaldava a crítica à politica imperialista, bem como à sua filosofia oficial, o Ecletismo Espiritualista. Nesse período a Sociedade Positivista é fundada no Rio de Janeiro e “começam a aparecer as primeiras obras daqueles que seriam mais tarde os líderes teóricos das duas alas de comtismo, a ortodoxa e a dissidente: Miguel Lemos, Teixeira Mendes e Pereira Barreto” (Paim, 1984, p. 376). Nessa época, segundo Paim (1984, p. 377), no campo educacional, o Positivismo oferece suporte para uma reforma do Colégio Pedro II; possibilita a organização da Escola Politécnica e a fundação da Escola de Minas, em Ouro Preto; desencadeia a contratação de um expressivo grupo de professores estrangeiros e, ainda, influencia na estruturação da Biblioteca Nacional e do Museu Nacional. Essa antessala da ascensão do Positivismo no Brasil, principalmente encarnada na Escola do recife, não se caracterizava por uma unidade doutrinária, mas “havia, talvez, unidade de objetivos: a crítica ao pensamento e às instituições vigentes” (Paim, 1984, p. 377). A Escola Politécnica, por sua vez, surgiu do desdobramento da Real Academia Militar, fundada em 1810 por Dom João VI, com o intuito de formar militares, engenheiros, técnicos e viabilizar o ensino das ciências exatas. É precisamente nessa Academia “que a intelectualidade brasileira toma contato com a obra de Comte” (Paim, 1984, p. 433). Contudo, “a peculiaridade essencial do pensamento brasileiro, no período da denominada República Velha (1890/1930), corresponde à ascensão do positivismo” (Paim, 1984, p. 437). 57 Pode-se caracterizar o Positivismo no Brasil, a partir da divisão feita por Paim (1985, p. 112), em quatro vertentes: positivismo religioso; filosofia da ciência; positivismo ilustrado; filosofia política. Os positivistas religiosos eram encabeçados por Miguel Lemos e Teixeira Mendes e tinham na Igreja Positivista, cada vez mais próxima ao catolicismo, seu centro de atuação, “tendo Comte se transformado em pai Supremo, digno do mesmo respeito que os católicos devotavam a Cristo, erigiram barreira intransponível entre a instituição e o meio social brasileiro” (Paim, 1985, p. 109). A reflexão positivista sobre filosofia da ciência, por sua vez, era bastante controversa. Paim ressalta dois dos seus aspectos: o primeiro diz respeito ao entendimento da filosofia como síntese das ciências, ideia que se alastrou no Brasil tanto pelo monismo quanto pelo evolucionismo, sendo superada quando o neopositivismo avança como corrente filosófica; o segundo aspecto é referente à compreensão da ciência. Para Comte, a sua construção teria se esgotado com a explicação dada pela mecânica celeste, fim da sua evolução. No entanto, assevera Paim: O desenvolvimento da matemática e da física iria contrariar frontalmente essa hipótese. Ainda assim, a exemplo do que ocorria na medicina, os positivistas brasileiros deram as costas à ciência, para manter-se fieis à doutrina de Comte. E o faziam tendo em suas mãos as cátedras de matemática e o ensino de engenharia, tanto civil como militar. Em que pese a circunstância, acabaram fragorosamente derrotados, segundo se comprovou, graças à reconstituição da atividade do chamado grupo da Escola Politécnica do rio de Janeiro, capitaneado por Oto de Alencar (1874/1912) e Amoroso Costa (1885/1928) (Paim, 1985, p. 110). Dessa forma, para Otto de Alencar, a concepção de ciência presente na obra de Comte estava sendo refutada pela evolução da matemática. Criou-se, então, um grupo de estudiosos de física que em duas décadas libertou o pensamento científico brasileiro da influência comteana. O fechamento desse processo ocorreu em 1925, quando a Academia de Ciências trouxe Albert Einstein ao Brasil, que com sua teoria da relatividade isolou de vez os positivistas dos círculos científicos no país. Segundo Paim: [...] a ascensão do positivismo não pode ter decorrido de uma situação de prestígio nos círculos científicos. Se desfrutavam dessa posição nos começos da República, vieram a perde-la logo nos primeiros decênios. Precisamente a essa derrota do positivismo entre os cultores da ciência no país deve-se a criação da Universidade, na década de trinta (Paim, 1985, p. 111). O positivismo ilustrado, para Paim, se caracterizou pela ênfase dada ao aspecto pedagógico do comtismo a partir da mudança das mentalidades. Fazia oposição ao 58 autoritarismo político e defendia as instituições liberais (Paim, 1984, p. 456). Seus principais representantes foram Luís Pereira Barreto, Pedro Lessa e Ivan Lins que “partiam de uma inspiração política fundamental. Seu afã de instruir, de ilustrar, pedagógico, enfim, era o meio da conquista de um Estado em que a tônica consistisse na racionalidade” (Paim, 1984, p. 467). A quarta e última vertente do positivismo brasileiro, referida por Paim, é a da filosofia política. A filosofia política de inspiração positivista “é a componente do comtismo brasileiro que granjeou a adesão de parcela substancial da elite, impondo a presença marcante de Augusto Comte na cultura brasileira do período republicano” (Paim, 1985, p. 112). Essa corrente afirmava que o início da política científica implicava o fim do sistema representativo e o começo do regime ditatorial, bem como que o homem é determinado simplesmente pela alteração das condições sociais: “Neste contexto, desaparece de todo a componente pedagógica que o positivismo ilustrado iria reivindicar. Mais explicitamente, prescinde de ganhar as consciências desde que incumbe, num primeiro momento, impor-se pela força” (Paim, 1985, p. 112). Conforme Paim, a versão mais representativa da filosofia política de inspiração positivista é o castilhismo, doutrina criada por Júlio de Castilhos (1860/1903) e por líderes políticos do Rio Grande do sul, estando à frente Borges de Medeiros (1864/1961), Pinheiro Machado (1851/1915) e Getúlio Vargas (1883/1954) 25. Por outro lado, se aproximarmos Positivismo e educação, teremos que as reformas de ensino primário e secundário, a permanência do ensino superior veiculado ao nível profissional e a inviabilização da fundação de uma Universidade no Brasil formam outro aspecto marcante do positivismo no período republicano. A reforma mais importante do ensino primário e secundário na Primeira República foi de autoria de Benjamin Constant, chefe militar do movimento republicano e adepto do positivismo, do qual foi grande difusor no meio militar. Ao longo de toda a República, essa reforma permaneceu praticamente intacta, sofrendo apenas pequenos reajustes. O essencial dessa nova filosofia educacional consistia “na crença de que o real 25 “Castilhos manteve o poder até 1898, transmitindo-o a Borges de Medeiros que governou até 1928. Seu afastamento deveu-se à guerra civil de 1923, terminada com a intervenção federal. Assegura-se, contudo, a continuidade do sistema desde que o novo governante, Getúlio Vargas, havia dado sobejas provas de fidelidade ao castilhismo. Com a Revolução de 1930, incumbe-lhe trazê-lo ao plano nacional, o que não se lograra nos decênios anteriores” (Paim, 1985, p. 113). 59 se esgota nas ciências e que a própria organização social, por seus elementos básicos, a política e a moral, pode ser estruturada em bases científicas” (Paim, 1984, p. 447). O positivista Pereira Barreto defendia que uma das fórmulas para o progresso era a instrução. Mas não se tratava do ensino pelo ensino, mas de uma educação de caráter eminentemente científico e técnico, na qual a preparação para o nível secundário era mais importante que o universitário: A reforma essencial deveria incidir sobre o secundário, fazendo-o repousar ‘nas noções positivas fornecidas pela astronomia, pela física, pela química, pela biologia e pela ciência social positiva’. Semelhante programa, de caráter enciclopédico, deveria ser ministrado genericamente, deixando a parte concreta das ciências para os especialistas. Constituir-se-ia, assim, uma base sólida e padronizada para o ensino superior, a ser orientado no sentido técnico e profissionalizante. Contam-se, entre os resultados a serem auferidos, o desaparecimento dos títulos universitários como simples sucedâneos da nobreza de sangue; a dissipação das ‘trevas teológicas e das ilusões metafísicas’ e o encaminhamento do povo na direção de tais problemas e interesses, substituindo a massa informe por uma verdadeira população organizada (Paim, 1984, p. 461). Contudo, Paim defendia a tese de que a valorização positivista do ensino técnico-científico não correspondia a nenhuma novidade, pois significava, na verdade, a retomada da tradição pombalina. Na reforma do ensino de Benjamin Constant as ideias comteanas foram incorporadas a partir do ideário pombalino. Assim, “a elite republicana preservou igualmente o desapreço que sua congênere pombalina nutria pela Universidade e acentuou o sentido profissionalizante dos estabelecimentos de ensino superior existentes no país” (Paim, 1984, p. 449). A argumentação positivista contra a Universidade era extemporânea, pois “dissociada tanto da realidade nacional como da época Moderna, na qual a Universidade, nos mais importantes países do Ocidente, perdia as características de instituição medieval para tornar-se centro de investigação científica, ao lado do preparo de especialistas” (Paim, 1984, p. 450). As teses positivistas contra a Universidade surgiram tanto dos positivistas ilustrados, quanto dos positivistas religiosos. Luiz Pereira Barreto, por exemplo, às vésperas da República, abordou especificamente o tema da Universidade, numa série de artigos que, resumidamente, consistia no fato da Universidade ser uma instituição “puramente nominal”, pois seria serva dos três estados de desenvolvimento da 60 humanidade - teológico, metafísico e científico – sem, no entanto, poder conciliar os três estados em um só organismo, por serem antagônicos (Cf. Paim, 1984, p. 450). Teixeira Mendes, da mesma forma, escreveu uma série de artigos, mais tarde reunidos no folheto A Universidade, para combater a opinião popular que crescia em favor da criação da Universidade. Para o chefe da Igreja positivista: A grandeza nacional exige a Reforma do ensino. Mas a Universidade não é a solução adequada para promover aquela grandeza, eis a premissa maior. [...] a Universidade não se inclui entre os elementos requeridos pela grandeza nacional. [...]. A grandeza nacional, [...], depende da redução ao mínimo da massa de parasitas, que exploram o trabalho proletário; da redução ao indispensável dos indivíduos úteis que, mantidos pelo proletariado, colaboram para o bem-estar deste; enfim, da educação e moralização deste mesmo proletariado, para que possa possuir seu domicílio inviolável e uma verdadeira família, em que a mulher não seja obrigada a descuidar dos filhos para cuidar do sustento da casa. Portanto, a Universidade não é requerida pela grandeza nacional (Paim, 1984, pp. 451-452). Mendes aborda também outro aspecto importante, relativo ao posicionamento do positivismo com relação à educação, o da implantação de um sistema nacional de ensino. Segundo ele, somente os positivistas teriam a capacidade de implantar um sistema nacional de ensino, mas na impossibilidade da realização dessa tarefa naquele momento, o Estado deveria abandonar a ideia e se preocupar mais detidamente com a instrução primária: O governo brasileiro [...] deve renunciar ao estabelecimento de um sistema de educação nacional, que só os positivistas seriam capazes de empreender, no momento oportuno. Enquanto tal oportunidade não se apresente, deve limitar-se a assegurar a instrução elementar, sem compromisso com qualquer das ‘filosofias’ existentes, e a desenvolver o ensino especial (profissional) sem conceder privilégios aos que o cursaram (Paim, 1984, p. 452). Dessa forma, segundo Paim, os positivistas também são responsabilizados diretamente pelo abandono sistemático da implantação da Universidade, nos decênios iniciais da república, e pela inviabilização do estabelecimento de um sistema nacional de ensino, por terem influenciado a maioria dos componentes dos órgãos decisórios (Paim, 1984, p. 452). Mas o fato é que a adesão ao comtismo, na Primeira República, não se deu somente pelos componentes dos órgãos decisórios. Os professores de matemática e de ciências na escola Politécnica, no Colégio Pedro II, na Escola Militar, na Escola Naval, 61 etc., no Rio de Janeiro e em diversas outras capitais, também aderiram à doutrina positivista (Paim, 1984, p. 454). Assim, então, podem ser apontados os três aspectos mais marcantes da influência positivista na educação brasileira: a realização de reformas do ensino primário e secundário, norteadas pela hipótese comteana de que o real se esgota na ciência, à qual também devem ser submetidas a política e a moral; a recusa pela elite política da implantação da Universidade, desnecessária por não produzir saber prático, e a conservação do ensino superior como formação profissional; e, por fim, a adesão do professorado de ciências à compreensão positivista de que a ciência teria concluído sua evolução (Paim, 1984, p. 456). b) A matriz filosófica Católica Para alguns estudiosos, a hegemonia católica no campo educacional em terras brasileiras não ficou abalada nem pelo ideário iluminista, com a expulsão dos jesuítas por Pombal, nem pelo conflito entre a Igreja e o Império. Até mesmo a exclusão do ensino religioso nas escolas públicas, com a implantação do regime republicano que previa a separação entre o Estado e Igreja, desencadeou uma reação espiritualista ao longo da República (Cf. Saviani, 2007, p. 178-179). Para Vilaça (Cf. Paim, 1985, p. 120), depois da expulsão dos jesuítas em 1759, houve um momento de restauração da espiritualidade, com o Ecletismo Espiritualista e um momento de dissolução da espiritualidade, representado pelo período da Escola do Recife. Um terceiro momento seria representativo de uma nova restauração da espiritualidade, em 1873, com a figura de Dom Vital e a chamada Questão Religiosa26. Para Vilaça, esse episódio representou uma primeira afirmação antipombalina e católica na história da espiritualidade no Brasil, pois “nunca antes o catolicismo reivindicara um lugar ao sol, uma situação definida na paisagem brasileira. Nesse sentido, D. Vital é [...] 26 “O avanço das ideias laicas associado ao regime do padroado desembocou, no final do Império, numa crise de hegemonia cuja expressão mais ruidosa foi a ‘questão religiosa’. Essa denominação reporta-se ao episódio em que os bispos de Olinda, Dom Vital, e do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, determinaram, em 17 de janeiro de 1873, que em suas dioceses ‘os maçons fossem afastados dos quadros das Irmandades, Ordens Terceiras e quaisquer Associações Religiosas’ [...]. Recusando-se a acatar essa determinação, várias associações recorreram ao imperador, que acolheu o recurso e, diante do não acatamento de sua decisão, determinou, em 1874, a prisão dos bispos que foram julgados e condenados pelo Supremo Tribunal a quatro anos de reclusão, sendo anistiados depois de um ano” (Saviani, 2007, pp.178-179). 62 o primeiro esforço para uma volta àquela unidade ideológica anterior à ruptura pombalina” (Cf. Paim, 1985, p. 120). Conforme Vilaça, essa terceira retomada da espiritualidade traz dois desdobramentos significativos para o pensamento católico brasileiro. O primeiro é representado pela Pastoral de 1916, liderada por Dom Sebastião Leme, na época Arcebispo de Olinda, e, posteriormente, Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro. A intervenção de Dom Leme consistia em denunciar a fragilidade da fé católica dos brasileiros e conclamar para ações que visassem mais diretamente à cultura e à inteligência. Paim afirma que o religioso reivindicava que a renovação se fizesse em bases doutrinárias por intermédio de instrumentos pedagógicos: “nos sermões e nas escolas, chegando inclusive a sugerir o tema da Universidade Católica. Os intelectuais são instados a ocupar o seu lugar na busca da autenticidade” (Paim, 1985, p. 121). O segundo desdobramento dessa terceira retomada espiritual é a realização das grandes expectativas do primeiro, com a criação do Centro Dom Vital e a Revista A Ordem, em 1922, por Jackson Figueiredo e, após a sua morte, a expansão do Centro sob a liderança de Alceu Amoroso Lima, em novembro de 1928. Dessa forma, assevera Paim, começava a fase cultural do movimento católico no Brasil. Assim, por exemplo, em 1932, é fundado o Instituto Católico de Estudos Superiores no Rio de Janeiro, germe da Universidade Católica criada em 1941 (Paim, 1985, p. 121): Nesse Instituto Católico houve o primeiro núcleo de uma vida universitária católica no Brasil. E a influência de Maritain e de revistas como ‘Esprit’, ‘La Vie Intelectuelle’, ‘Revue Thomiste’ foi enorme. O tomismo chegava através de Maritain. E através de um conferencista brilhante, Leonel Franca, mestre e confessor de Alceu durante vinte anos (Paim, 1984, p. 424). Para Vilaça, a perspectiva filosófica predominante nesse período de restauração católica é a do tomismo na versão mais modernizada de Jacques Maritain. Essa perspectiva seria mais apropriada para os novos tempos, haja vista que o maritainismo criava, “no sistema tomista, um lugar para a ciência moderna”, para a intervenção política e para a valorização da cultura (Paim, 1985, p. 122). Paim demonstra que outro aspecto filosófico importante, retomado por Vilaça, é a chamada questão teórica da filosofia católica: “Trata-se, em suma, de saber se há de fato – e até mesmo se pode haver – uma filosofia católica elaborada ou se consiste numa simples perspectiva” (Paim, 1985, p. 123). Sem aprofundar essa questão, por 63 compreender que aqui não é relevante, será citado apenas um trecho elucidativo de Paim, relativo a essa problemática: Em relação à filosofia católica, suponho que Maritain teve o grande mérito de suscitar um ponto de vista estreitamente filosófico ao propor a distinção entre conhecimento noético (ontológico) e perenoético (científico). Ao fazê-lo criou um espaço no seio do tomismo para a ciência moderna, justamente o que permitiu que tantos intelectuais brasileiros, nos anos trinta, se reconciliassem com a religião católica. Mas é fora de dúvida que esse aspecto do maritainismo brasileiro acabou sufocado pela relevância assumida por outros temas, em especial os de caráter político (Paim, 1984, p. 357). Apesar da propalada influência tomista, via Maritain, sobre esse grupo, Fontes (1998) conclui em seus estudos que o grande articulador da renovação espiritualista católica da primeira era republicana, Jakson de Figueiredo, teria, de fato, sofrido uma influência maior de Santo Agostinho. Jackson de Figueiredo nasceu em Aracaju, em 1891, e morreu no Rio de Janeiro, em 1928. Foi advogado (bacharelou-se na Faculdade Livre de Direito da Bahia), professor, jornalista, crítico, ensaísta, filósofo e político. Foi grande boêmio na juventude, mas em 1918, em virtude de um grande vazio que lhe cingia a alma e influenciado pela amizade de Farias Brito, converteu-se ao catolicismo e, a partir daí, passou a organizar o movimento católico leigo no Brasil. Articulou essa atividade de divulgação da doutrina católica a partir do Centro Dom Vital e também por intermédio da Revista A Ordem, fundados por ele em 1922. Nessas trincheiras, combateu tanto o liberalismo quanto o comunismo. Apoiou o governo Arthur Bernardes e opôs-se ao tenentismo, colaborando na repressão desse movimento que desencadearia a Revolução de 30. Entre 1922 e 1925, escreveu na Gazeta de Notícias e em O jornal contra movimentos revolucionários e a favor da ordem pública e da legalidade. A sua proposta era: Reunir a elite intelectual cristã para as lutas apostólicas, defender a Igreja e a ordem social e combater os pruridos revolucionários no plano da inteligência e dos fatos. Estava-se no ano do Centenário, dos 18 do forte, do Modernismo, dos grandes surtos de transformação do Brasil espiritual, literário e político (Fontes, 1998, p. 70). Com relação à influência tomista, nos diz Fontes (1998): “Apesar das suas boas intenções, Jackson de Figueiredo não era um tomista. Pertencia antes à linguagem espiritual de Santo Agostinho, daquele filósofo de Hipona, cujo pensar era ambivalente, dividido entre o essencialismo e a sede de experiência interior” (p. 88). Depois de 64 transitar certo tempo pela influência bergsoniana, Jackson se aproxima de Agostinho via Pascal27. Fontes assegura que: Para o pensador sergipano, Pascal era um símbolo da alma moderna, distendida entre a dúvida e a afirmação. Encontrava certa afinidade entre a sua evolução espiritual e a de Pascal. Dos prazeres à dúvida, da dúvida à angústia – ou sofrimento – e daí à convicção de que o homem é o maior problema para o homem: o ser precário e estéril, diante de Deus absoluto e incognoscível. Esse mistério da queda do espírito, que é reverberação de Deus, nas procelas deste mundo, levou-o à seguinte situação: ‘Descrer de si, absolutamente, para só crer em Deus, através de Jesus Cristo’ [...]. De modo semelhante, Pascal é o ‘sistematizador da dúvida humana... procurava, mesmo através do excesso e dúvida, a razão de descrer da razão, para sentir-se mais seguro de sua fé, não o satisfazendo o gosto amargo de destruir em si mesmo toda possível verdade. Entretanto, porque descreu da razão não a abandonou jamais nem foi jamais abandonada por ela’ [...]. Já então, convertido, não professava concepção puramente filosófica da fé. Acrescentava que à tomada de consciência do eterno se ajuntava a graça divina. Mas a tarefa reflexiva de Pascal era vista como um esforço para compelir ‘o espírito humano a confessar a sua miséria, para que o coração ganhasse mais força de amor e fosse capaz de maior caridade, único sinal do que é divino em nossa degradação, pois só as correntes de dor nos ligam a todos, nós que nos estraçalhamos, que nos combatemos, na febre de viver o mais possível as loucuras de nosso egoísmo e da nossa sensualidade’ [...] (Fontes, 1998, p. 121-122). Assim, foi com Pascal, inspirado em Agostinho, foi que o filósofo sergipano definiu o amor e o coração humanos como a “percepção imediata do conhecimento espontâneo, o que há de absoluto em nosso conhecimento, anterior a qualquer construção filosófica” (Figueiredo apud Fontes, 1998, p. 122). Para ele, diante de um Deus desconhecido e ignorado, mas pleno de bondade e misericórdia, só restava assumir uma atitude de assombro e de submissão, para nos entregarmos aos pensamentos e à vontade de Deus. Em consequência disso, a atitude própria do cristão deveria ser de inteira submissão à Autoridade divina e, em decorrência, à autoridade da Igreja do divino Jesus. Esse deveria ser o centro da vida humana, e por esse caminho se criaria uma alma justa, para a qual todo o resto seria mera aparência a ser desprezada. Quanto a esse propósito nos afirma Figueiredo: Ao crente e ao filósofo pouco importa o mundo das aparências sensíveis no que diz respeito ao que mais deseja conhecer. A voz moral que nos guia, através deste mundo ilusório e passageiro, está no fundo mesmo de nossa própria natureza, que, unicamente pode sentir 27 “Reflexão tão próxima a Sto. Agostinho, sem o perceber, que o levaria inevitavelmente a entregar-se ao agostianiano Pascal e ao encontro de uma nova linha de platonismo” (Fontes, 1998, p. 121). 65 essa realidade imutável e imperativa, escondida no seu infinito mistério (Figueiredo apud Fontes, 1998, p. 122). Portanto, com Agostinho e Pascal, Figueiredo acredita que Deus, diante da razão, é o Bem, pois de outra forma seria injusta a condenação eterna se não houvesse a certeza do Deus que oferece salvação a todos. Essa salvação seria trilhada pelo caminho do amor a Deus e aos homens, pela ordem do coração e das ações e pela submissão a autoridade instituída por Deus, Jesus Cristo e sua Igreja, que ordena os raciocínios vacilantes dos homens. À razão competia descobrir sua fragilidade e insuficiência e sujeitar-se a Deus, presente na ordem do coração, para que pudéssemos amar aos homens. Para Jackson: Os sinais externos de credibilidade e a voz da Igreja e das Escrituras teria o sentido de evocar aquilo que está impresso na alma, embora vindo de Deus, por Jesus Cristo. Como em Santo Agostinho, isso pressupunha a distinção não entre natureza e sobrenatureza, mas entre um estado natural, próprio do homem decaído, e um estado sobrenatural, próprio do homem restaurado pela graça de Deus (Fontes, 1998, p. 150). Ressalte-se, por fim, que Jackson foi mentor intelectual de Alceu Amoroso Lima, que literariamente tinha o pseudônimo de Tristão de Athayde, o mais importante pensador católico do Brasil no século XX e um dos fundadores do Instituto Católico de Estudos Superiores (1932), da Universidade Católica do Rio de Janeiro (1941) e do Movimento Democrata Cristão na América Latina (1948). Alceu Amoroso Lima tornou-se herdeiro intelectual de Jackson de Figueiredo e também assumiu a presidência do Centro Dom Vital, tornando-se um líder na condução do pensamento católico no Brasil. De forma mais ampla, é possível resumir a influência do pensamento católico e suas matrizes filosóficas na educação, no período da Primeira República, afirmando com Saviani (2007) que a mobilização da Igreja tomou uma forma de resistência ativa através de atitudes práticas: [...] a pressão para o restabelecimento do ensino religioso nas escolas públicas e a difusão de seu ideário pedagógico mediante a publicação de livros e artigos em revistas e jornais e, em especial, na forma de livros didáticos para uso nas próprias escolas públicas assim como na formação de professores, para o que ela dispunha de suas próprias Escolas Normais (Saviani, 2007, p. 179). Da mesma forma, por considerarem a educação uma área estratégica, os católicos organizaram, em 1928, nas diversas unidades da federação, Associações de 66 Professores Católicos (APCs) que, posteriormente, comporiam a Confederação Católica Brasileira de Educação. Assim, a partir dessas práticas políticas organizadas, “os católicos constituíram-se no principal núcleo de ideias pedagógicas a resistir ao avanço das ideias novas, disputando, palmo a palmo com os renovadores, herdeiros das ideias liberais laicas, a hegemonia do campo educacional no Brasil a partir dos anos de 1930” (Saviani, 2007, p. 181). c) A matriz filosófica Pragmatista Como foi visto anteriormente, o governo central não assumiu a instrução pública como responsabilidade sua, explicitando esse fato já na primeira Constituição republicana de 1891. Apesar dessa omissão, teve a preocupação de delegar aos Estados a função de oferecer a instrução primária. Em 1892, São Paulo inicia esse ciclo de reformas estaduais, promovendo uma reforma geral na instrução pública paulista, mas se concentrando somente na escola primária e inovando com a criação dos grupos escolares para substituir as escolas isoladas. Um dos fatores que justifica a importância da reforma paulista é que ela inaugurou um importante ciclo de reformas estaduais na década de 1920 que, por sua vez, promoveu expressivas mudanças na educação brasileira. Entre essas mudanças, destacamos aqui a resultante da influência filosófica pragmatista, que orientou todo o ideário escolanovista, no final da década de 20. Dentre outros fatos que expressam essa influência pragmatista ou foram marcados pelo pragmatismo, nesse período, pode-se indicar a publicação do livro Introdução ao estudo da Escola Nova, de Lourenço Filho, em 1929; a fundação da ABE (Associação Brasileira de Educação), em 1924; a primeira Conferência Nacional de Educação, em 1927; as três principais reformas estaduais com Lourenço Filho, em 1922, Anísio Teixeira, em 1925 e Fernando Azevedo, em 1928. Saviani (2007, p. 177) resume esse período das primeiras décadas do século XX, pelo debate das ideias liberais, “sobre cuja base se advogou a extensão universal, por meio do Estado, do processo de escolarização considerado o grande instrumento de participação política”. Até a década de vinte teria predominado a concepção tradicional do liberalismo, que busca a “transformação, pela escola, dos indivíduos ignorantes em cidadãos esclarecidos, que esteve na base do movimento denominado por Nagle [...] de ‘entusiasmo pela educação’, o qual atingiu seu ponto culminante na efervescente década de 1920” (Saviani, 2007, 177). Contudo, prossegue Saviani (2007, p. 177), essa 67 concepção tradicional do liberalismo foi suplantada pela concepção humanista moderna do liberalismo, ainda nessa mesma década, com a criação da ABE. Essa Associação, apesar de ter surgido com a intenção de congregar várias tendências da educação, acabou se constituindo “num espaço propício em torno do qual se reuniram os adeptos das novas ideias pedagógicas” que se propagaram ainda mais por intermédio da criação da Conferência Nacional de Educação, em 1927 e em suas edições subsequentes. O que está subjacente ao que Saviani chama de ideias liberais conservadoras é o pensamento filosófico de Herbart. Da mesma forma, é a filosofia de Dewey que está na base das chamadas ideias liberais modernas. Ghiraldelli (2009, p. 11-12) explicita esse embate, de forma mais filosófica, ao afirmar que todo esse período foi marcado pela disputa entre a influência filosófica de Herbart e Dewey, com o avanço da proposta do filósofo americano sobre as ideias do filósofo alemão. O avanço das ideias de Dewey se justifica em função das condições históricas da época republicana: “expansão da lavoura cafeeira, fim do regime escravocrata, adoção do trabalho assalariado, remodelação material do país, incluindo o surgimento da rede telegráfica, novos portos e ferrovias. Além disso, havia a crescente absorção de ideias mais democráticas vindas do exterior” (Ghiraldelli, 2009, p. 10). A industrialização crescente era outro fator determinante do anseio e recepção de novas ideias. Esses novos ventos trouxeram a urbanização do país e a ampliação da classe média que, para evitar o trabalho braçal que tanto havia marcado o Império, buscava a escolarização dos filhos como forma de ascensão social. Nessas circunstâncias, apareceram dois grandes movimentos que apontavam para a necessidade de abertura e aperfeiçoamento de escolas, “entusiasmo pela educação”, quantitativo e reivindicatório da abertura de escolas, e “otimismo pedagógico”, quantitativo e preocupado com os métodos e conteúdos do ensino 28 . Esses movimentos se alternaram ou se somaram no transcorrer da Primeira República (Ghiraldelli, 2007, p.10). Diante dos fracassos sociais da República, mais de 75% da população em idade escolar era analfabeta, a década de 1920 trouxe uma forte movimentação de grupos intelectuais a favor da efetivação do ensino público brasileiro. Nesse período, marcado também pelo fim da Primeira Guerra, os Estados Unidos da América emerge como potência mundial, substituindo a Inglaterra em importância cultural-econômica: 28 Essas expressões foram consagradas na historiografia da educação brasileira por Jorge Nagle. 68 Nós, brasileiros, tínhamos como credores os ingleses, mas logo passamos a ter como tais também os norte-americanos. Mas não só: por intermédio da imprensa, do cinema, da literatura, das relações comerciais etc., passamos a ter certo apreço pelo que veio a ser conhecido mais tarde como American way life. Então, começamos a absorver de modo mais intenso a literatura pedagógica norteamericana. Essa literatura foi, em parte, o conteúdo do movimento do otimismo pedagógico (Ghiraldelli, 2009, p. 10). Segundo Ghiraldelli (2009, p. 11), além da abertura de escolas, os livros norte americanos nos despertaram para a necessidade de modificarmos os métodos pedagógicos, a arquitetura e a administração escolares, a relação ensino-aprendizagem, a forma de avaliação etc. A pedagogia que utilizávamos até esse período, conforme Ghiraldelli, Era uma espécie de fusão da pedagogia formalizada pelo alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841) com a tradição deixada pela pedagogia que vigorou no passado, na época da Companhia de Jesus, a dos princípios do Ratio Studiorum. Junto a isso, passamos também a ler livros de autores norte-americanos e europeus em geral e, posteriormente, os escritos dos mais envolvidos ao movimento da educação nova (Ghiraldelli, 2009, PP. 11-12). Foi na metade dessa década de 1920 que os brasileiros puderam ler John Dewey (1859-1952) e sua proposta de educação nova ou pedagogia nova, também conhecida como pedagogia da escola nova, desenvolvida em 1896, nos Estados Unidos na University Elementary School, criada por ele e acoplada à Universidade de Chicago. Segundo Ghiraldelli (2009, p. 13), o termo pedagogia da escola nova “gerou entre nós o termo escolanovismo, para identificar a doutrina dessa experiência e de outras, semelhantes ou não”. Herbart (1776-1841), por sua vez, centralizou os seus estudos no “cérebro” e tentou compreender o funcionamento psicológico e empírico desse aparato intelectual que tomou o lugar da “razão” moderna (Ghiraldelli, 2002, p. 13). Por isso é possível afirmar que a posição filosófica de Herbart é neokantiana. O sujeito racional kantiano era transcendental, com propriedades necessárias e universais, “agente ideal dotado de sensibilidade (aparato preceptor e intuidor), entendimento (aparato já formado de categorias e formador de conceitos) e razão (aparato formado e formador de ideias, ideais e de vontade – vontade racional, [...] e não mero desejo)” (Ghiraldelli, 2002, p. 14). Diversamente, a ideia de sujeito que se inaugura no século XIX se cobre de uma nova roupagem kantiana, tem-se ainda “um indivíduo com aparato sensível-perceptivo, intelecto e razão, mas efetivamente um indivíduo empírico, corporal, passível de ser 69 estudado cientificamente através de metodologia empírica psicológica” (Ghiraldelli, 2002, p. 14). Herbart foi tido como um “intelectualista”, pois compreendia que as percepções e os conceitos eram guiados e unificados pela razão e comandavam a vida psíquica. As motivações e os interesses eram dirigidos racionalmente em um aparato psíquico que comandava o aprendizado e formação de conceitos no cérebro humano (Ghiraldelli, 2002, p. 15). Dessa forma, o ensino e o aprendizado seguiam essa vertente intelectualista: [...] segundo o esquema herbartiano, deveriam partir dos conceitos morais e intelectuais, expostos e aprendidos segundo sua forma lógica ou histórica (conforme o caso). Estes se incumbiriam de ir despertando cada vez mais o cérebro para outros conceitos, por atração das “massas intelectuais” movidas por esses conceitos. Enfim, o que se dizia é que o intelecto era o carro-chefe dos interesses e motivações no processo de aprendizagem e do conhecimento, em geral e especificamente (Ghiraldelli, 2002, p. 15). Contudo, se Herbart era um neokantiano, Dewey, ao contrário, era um crítico de Kant, afirma Ghiraldelli (2002, p. 15). Assim, o projeto deweyano Invertia o postulado básico de Herbart: não era o intelecto – em um sentido estrito – o carro-chefe de funcionamento do aparato psíquico humano, mas os “interesses”. Esses “interesses”, na teoria de Dewey, eram de base psicológica. Mas gerados por situações da experiência humana com o meio ambiente – a experiência da vida, ou seja, a experiência psíquica e social diversificada (Ghiraldelli, 2002, p. 15). Influenciado por Hegel e por Darwin, para Dewey, o homem era um ser histórico em evolução, tanto em nível individual, quanto em nível coletivo, e, por isso, concebia a criança como sendo uma etapa do adulto, que pensava diferente dele até se transformar em um deles. Já a influência nietzschiana, marcou o pensamento de Dewey com a desconfiança sobre a filosofia racionalista e a valorização da contingência e do acaso (Ghiraldelli, 2002, p. 16). No entanto, “o que seria necessário para a criança e para o adulto seria o aprendizado de como lidar com a mudança, com a mudança constante. Assim, para Dewey o aprendizado da resolução de problemas valia mais do que propriamente os problemas em si e cada uma de suas soluções” (Ghiraldelli, 2002, p. 17). Dessa forma, para o filósofo norte americano, a democracia era a forma política que possibilitaria aquelas transformações humanas. Dessa forma, somente Em um mundo natural e democrático, histórico e não teleológico, onde as experiências humanas são alteradas continuamente, mais 70 valeria estar de posse de esquemas de solução de problemas do que ter a ilusão de deter um conhecimento único de solução de problemas. Dewey acreditava que o conhecimento que resolve problemas era o conhecimento do conhecimento de resolver problemas (Ghiraldelli, 2002, p. 17). As diferenças teóricas entre os dois filósofos repercutiam em suas posições relativas à educação. Herbart esperava formar “pessoas capazes de dominar e reproduzir um determinado saber – um saber intelectual e principalmente moral” (Ghiraldelli, 2002, p. 25). Em Dewey, ao contrário, “a educação era a organização de experiências de crescimento em benefício da possibilidade de mais ricas experiências, aumentando a diversidade e a capacidade de inventidade humana” (Ghiraldelli, 2002, p. 19). d) As matrizes filosóficas Anarquista, Socialista e Comunista Além das ideias filosóficas educacionais ligadas ao catolicismo e ao escolanovismo, Saviani (2007) e Ghiraldelli (2009) enfatizam que, no período da Primeira República, houve também experiências pedagógicas inspiradas nas filosofias socialistas e anarquistas. A esse respeito, Ghiraldelli sintetiza o universo educacional dessa época: Cabe registrar a presença da literatura pedagógica do espanhol Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909), de caráter libertário, e que motivou vários professores de tendências anarquistas e socialistas, ligados ou não às movimentações sociais operárias das décadas de 1910 e 1920. Tais professores estiveram à frente das chamadas escolas modernas, que existiram em várias capitais do país, em um trabalho às vezes associado a centros de cultura libertários de imigrantes italianos, franceses e mesmo de brasileiros que haviam aderido ao anarquismo ou formas deste (Ghiraldelli, 2009, p. 14). Saviani (2007, p. 181) se reporta às ideias pedagógicas pautadas no socialismo e no anarquismo como sendo não hegemônicas, pois “oriundas dos grupos socialmente não dominantes, elaboradas a partir da perspectiva dos trabalhadores”. Tais ideias filosóficas e pedagógicas, ligadas ao movimento operário, também marcaram a Velha República: “Em termos gerais, cabe observar que o desenvolvimento do movimento operário nesse período se deu sob a égide das ideias socialistas, na década de 1890, anarquistas (libertárias) nas duas primeiras décadas do século XX, e comunistas, na década de 1920” (Saviani, 2007, p. 181). As ideias socialistas estavam presentes no Brasil desde a segunda metade do século XIX, advindas do movimento operário europeu de raiz utópica e representado 71 por Saint Simon, Fourier, Owen e Proudhon. A sua presença na América Latina ocorreu em função da queda da Comuna de Paris, que trouxe diversos foragidos para cá. Aqui, encontraram uma nascente sociedade republicana e uma classe operária em formação, que lhes possibilitava a expansão de suas ideias políticas através da criação de partido29 e centros socialistas, mas sem, contudo, terem marcado mais fortemente a educação. Em torno dessas questões, Saviani afirma: Os vários partidos operários, partidos socialistas, centros socialistas assumiram a defesa do ensino popular gratuito, laico e técnicoprofissional. Reivindicando o ensino público, criticavam a inoperância governamental no que se refere à instrução popular e fomentaram o surgimento de escolas operárias e de bibliotecas populares. Mas não chegaram a explicitar mais claramente a concepção pedagógica que deveria orientar os procedimentos de ensino (Saviani, 2007, p. 182). As ideias anarquistas também estavam presentes no Brasil desde o século XIX e se materializaram em forma de publicações, colônias, sindicatos e ligas. As duas principais correntes dos ideais libertários difundidos no Brasil foram: a anarquista, mais próxima dos meios literários; a anarcossindicalista, mais identificada com o movimento operário. A maioria dos seus integrantes eram imigrantes europeus. No centro dos ideais libertários estava a educação que propunha uma “crítica à educação burguesa e a formulação da própria concepção pedagógica que se materializava na criação de escolas autônomas e autogeridas” (Saviani, 2007, p. 182). Gallo (1990) afirma que, embora existam características tidas por anarquistas em diversos períodos históricos, da Antiguidade Clássica ao século dezoito, só se pode falar propriamente em Anarquismo como uma teoria conscientemente organizada a partir das atividades e da obra de Proudhon. Para Piotr Kropotkin, um dos clássicos da teoria anarquista, o Anarquismo tem origem no povo e na sua organização espontânea para a construção da sociedade e da liberdade, “e os grandes teóricos que lhe deram o estofo filosófico nada mais faziam do que sistematizar e racionalizar o que já estava implícito na ação autodeterminante das massas que lutavam por sua libertação” (Gallo, 1990, p. 22). Para Gallo (1990), o princípio básico do Anarquismo é a liberdade e é nele que se estrutura a teoria anarquista: “sua concepção de homem, de mundo e da sociedade, a identificação dos problemas econômicos e as formas de resolvê-los, seu método de luta 29 A fundação do Partido Socialista Brasileiro, por exemplo, data de 1902. 72 e a planificação de uma nova sociedade, estruturada sobre os princípios da liberdade e da solidariedade” (Gallo, 1990, p. 23). Assim, afirma Gallo (1990), é do seu princípio básico de liberdade, a ser construído socialmente, que o Anarquismo se denomina Socialismo Libertário ou Libertarismo e constata que historicamente o homem nunca foi livre, mas sim escravizado pelo seu principal senhor, o Estado: A teoria Anarquista passa então a fazer a genealogia da dominação, procurando as bases da opressão, e encontra na máquina política e no Estado a personificação máxima do algoz que mantém o homem em seu histórico cativeiro. É o Estado que transforma a sociedade em uma teia por onde se dissemina o poder, envolvendo a todos em um sistema de desigualdade e injustiças. Deste modo, qualquer ação de transformação social deve visar, antes de tudo, a destruição da máquina estatal; qualquer processo revolucionário que se comprometa com a tomada do Estado e sua gestão, do ponto de vista libertário estaria na verdade garantindo a manutenção do sistema de dominação, apenas mudando-lhes algumas características não essenciais, como a classe que exerce o poder e as que a ele estão submetidas. Uma revolução que não dissolvesse o Estado não criaria as condições básicas para a conquista da liberdade, e não poderia, portanto, construir uma sociedade justa. (Gallo, 1990, pp. 22). Para complementar o Programa Anarquista redigido por Malatesta, no início de 1920, Gallo (1990) oferece uma visão dos princípios básicos do Anarquismo, resumidos em seis pontos, sendo três princípios teóricos e três relativos às atitudes práticas. Os três princípios teóricos são: autonomia individual, autogestão social e Internacionalismo. Para o Anarquismo, a autonomia individual implica que a liberdade é fundamental, “e uma sociedade que não seja a realização da liberdade plena dos indivíduos não pode ser admitida; o socialismo libertário vê no indivíduo a célula fundamental de qualquer grupo ou associação, e que não pode ser preterido em nome do grupo” (Gallo, 1990, p. 25). Em virtude da supremacia do princípio da liberdade individual, o Anarquismo se opõe a qualquer tipo de poder institucionalizado, autoridade ou hierarquização. Assim, para os anarquistas, a autogestão social significa que a gestão da sociedade deve ser direta, pois são contrários à democracia representativa. Em seu lugar, “os libertários propõem uma democracia participativa, na qual cada pessoa participe ativamente dos destinos políticos de sua comunidade” (Gallo, 1990, p. 27). O Internacionalismo, por sua vez, se coloca na perspectiva de que, historicamente, todos os nacionalismos sempre estiveram ligados a projetos de dominação e exploração, enquanto a liberdade deve ser para todos. Dessa forma, 73 “mesmo que uma sociedade anárquica fosse construída em um determinado país ela não seria completa, em meio à opressão dos trabalhadores restantes do planeta” (Gallo, 1990, p. 27). Já os três princípios anarquistas relativos à prática, são: a ação direta, as associações operárias e a greve geral. A ação direta é a prática de luta anarquista, na qual o processo revolucionário deve ser resultado das massas. As duas principais atividades de ação direta são a propaganda e a educação, “destinadas a despertar nas massas a consciência das contradições sociais a que são submetidas, fazendo com que o desejo e a consciência pela necessidade da revolução surja em cada um dos indivíduos” (Gallo, 1990, p. 28). As associações operárias, por sua vez, resultam do repúdio anarquista ao partido político e às organizações que reproduzem a política estatal. Assim, as associações e organizações operárias criadas pelos libertários procuravam ser “a livre expressão da cooperação e solidariedade, sem autoridade e hierarquização, com a participação e a gestão direta dos próprios operários” (Gallo, 1990, p. 30). Por fim, a Greve geral coroava a luta anarquista “como a principal forma de luta do operariado contra seus opressores, e como ótima tática de treinamento para a organização solidária e a ação direta” (Gallo, 1990, p. 31). Contudo, para Gallo (1990), o Anarquismo não podia ser visto como uma doutrina ou como um sistema filosófico, compondo um sistema fechado de ideias, pois o Anarquismo era, antes de tudo, uma atitude que negava a autoridade e afirmava a liberdade. Transformar essa atitude radical em uma teoria com pressupostos universais e doutrinários seria negar o princípio básico da liberdade, “negar sua principal força, a afirmação da liberdade, e a negação radical da exploração” (Gallo, 1990, p. 36). Passetti e Augusto (2008, p. 55) informam que quando os anarquistas chegaram ao Brasil, em 1888, não havia escolas para pobres. Foi quando alguns anarquistas se uniram e fundaram algumas escolas e colônias, na quais não havia uma preocupação específica com a educação escolar, mas sim com as maneiras livres de viver e de educar, com a superação das condições monogâmicas do amor e do sexo, com a propriedade privada e com o deslocamento do poder central para autoridades em assuntos e técnicas de produção. Contudo, Foi com a propagação do ideário anarquista que as associações de classe propuseram escolas para operários e seus filhos. Além das experiências em colônias na zona rural, aconteciam as discussões próprias à formação da classe operária. Saber ler e escrever passava a ser a condição para conhecer, pressionar, modificar e expandir com 74 mais força o ideário e a luta anarquista. As associações de classe foram as primeiras a organizar escolas para alfabetização. Já em 1895, no Rio Grande do Sul, aparecia a Escola União Operária e, com a passagem do geógrafo anarquista Elisée Reclus por Porto Alegre, era fundada uma escola com seu nome. Desde o início do século 20, a relação entre escola, associação de classes e jornais nas regiões sul e sudeste, mas também no nordeste, principalmente no Ceará, foram fortalecidas e seus idealizadores eram os articulistas mais presentes na imprensa libertária (Passetti e Augusto, 2008, p. 55-56). Foi então que, à revelia do estado, foram criadas as escolas populares no Brasil, informam Passetti e Augusto (2008, p. 56). Essas primeiras escolas de trabalhadores livres foram: Escola Libertária Germinal, fundada em 1903; Escola Livre, em Campinas, criada pela Liga Operária, em 1908; as Escolas Modernas apareceram em 1910, inspiradas na proposta de escola racionalista de Ferrer i Guàrdia: Em pouco tempo, a proposta da escola racionalista de Francesc Ferrer i Guàrdia era incorporada por esses anarquistas com uma pequena ressalva. Enquanto o educador catalão propunha um método de educar que ele considerava neutro, pois se posicionava equidistante do Estado monárquico e do clero espanhol, no Brasil um pensador anarquista como Florentino de Carvalho estabelecia uma diferença marcante. Para ele, as escolas do Estado e do clero moldavam as crianças; em nenhuma escola havia ensino neutro; e, portanto, a educação anarquista, dentro e fora da escola, devia preparar para a vida livre (Passetti e Augusto, 2008, p. 56). Os próprios jornais anarquistas da época, a outra ponta da educação libertária além da escola, constatavam a forte influência da proposta da escola racionalista de Francesc Ferrer i Guàrdia nas Escolas Modernas, que no início dos anos de 1920 “foram identificadas pelo governo como escolas de terroristas dispostos a desestabilizar a ordem” (Passetti e Augusto, 2008, p. 58). No entanto, essas Escolas se transformaram em associações, ligas e sindicatos e, posteriormente, em centros culturais, intensificando “os esforços na formação cultural e política dos trabalhadores anarquistas e diferenciavam-se dos sindicalistas vinculados ao Estado e dos que aderiram ao comando do partido Comunista, a partir de 1922” (Passetti e Augusto, 2008, p. 58). Os anarquistas compreendiam a educação como um processo amplo. Assim, a alfabetização deveria ser uma prática que deveria ir da escola à universidade, e não um “mero domínio elementar da escrita e da leitura oferecido em nome da devoção à desobediência, à integração econômica, à ascenção social e à adesão política no processo de moldagem da criança para a vida conformista” (Passetti e Augusto, 2008, p. 56). Nessa perspectiva é que “fundaram em 24 de julho de 1904, no Rio de Janeiro, e 75 onze anos depois em São Paulo, a Universidade Popular, em companhia de outros intelectuais simpatizantes, e avessos ao governo oligárquico” (Passetti e Augusto, 2008, p. 56) e, assim, tentavam estabelecer uma relação mais estreita entre escola e anarcosindicalismo e doutrina e método de luta (Passetti e Augusto, 2008, p. 56). O jornal, da mesma forma que a escola, era um importante instrumento de luta libertária para os anarquistas brasileiros. Aqui, os trabalhadores muitas vezes eram estrangeiros, analfabetos que “desconheciam minimamente as leis e eram os alvos principais das medidas de deportação, repressão policial diária e da discriminação social. Eram tratados como caso de polícia” (Passetti e Augusto, 2008, p. 57). Essa situação de exploração e opressão geravam congressos operários, ligas, associações e greves, apoiados pelos intelectuais. Todo esse movimento libertário foi acompanhado da criação de uma imprensa própria, fundamental para dar sustentação ao próprio movimento educacional no seu sentido amplo de formação cultural (Passetti e Augusto, 2008, p. 58). Assim, A imprensa era a divulgadora da escola libertária e ao mesmo tempo o seu material escolar, pois trazia, além de informações de ciência e arte, notícias atuais sobre a situação dos trabalhadores, seus filhos, habitações, saúde, e informava sobre as variadas sociabilidades anarquistas. (Passetti e Augusto, 2008, p. 58). Segundo Passetti e Augusto (2008), para os libertários, jornal e escola compunham duas faces de uma mesma moeda educacional, na qual a escola era um espaço físico de formação e informação e, também, de aglutinação de diversas ideiasforça libertárias. Assim, “educação, escola e revolução eram indissociáveis e simultâneos; aconteciam no momento em que o jornal era escrito, quando era distribuído, ao inflamar os leitores para a luta imediata, e ao sinalizar para a utopia igualitária” (Passetti e Augusto, 2008, p. 64). Dessa forma, segundo os anarquistas, “a escola estava nos jornais e nos jornais estava o mundo” (Passetti e Augusto, 2008, p. 59). Os anos de 1920 trazem um declínio das ideias libertárias na condução do movimento operário que, por sua vez, acaba seguindo as orientações comunistas. O acontecimento histórico responsável por esse deslocamento é a experiência soviética, que, no Brasil, determinou a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, com a participação dos anarcossindicalistas (Saviani, 2007, p. 183). 76 4.2. - Segunda República (1930-1937): missão francesa e pragmatismo versus neotomismo As matrizes filosóficas que marcaram as teorias e as instituições educacionais na Segunda República foram praticamente as mesmas do primeiro período republicano. Ou seja, Positivismo, Catolicismo, Pragmatismo e Anarquismo. Sendo que o Positivismo teve um papel menos relevante e o marxismo ganhou um vulto maior no panorama filosófico brasileiro. Aqui, no entanto, optamos por enfatizar três matrizes filosóficas mais próximas da presente pesquisa, por terem influenciado fortemente os seguintes acontecimentos da educação brasileira: o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a fundação da USP e o surgimento das PUCs. Com relação ao Manifesto, vamos averiguar em que medida houve de fato uma influência decisiva do pensamento deweyano, sobre ele e a efetiva marca do pensamento norte americano sobre um dos seus signatários, Anísio Teixeira. A fundação da USP exige que se faça uma reflexão em torno da influência filosófica francesa sobre os rumos do estudo da Filosofia no Brasil, a partir da criação dessa instituição. As Pontifícias Católicas, por sua vez, são representativas da forte influência do pensamento católico que se sustenta na tradição aristotélico-tomista e se tornaram um forte instrumento educacional no Brasil. a) A matriz filosófica deweyana e o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova Uma das marcas do segundo período republicano foi o tratamento dado à educação como sendo uma questão nacional, através de regulamentação do governo central, que, por meio de diversos decretos, promoveu a Reforma Francisco Campos (Saviani, 2007, p. 196). O momento inicial da Segunda República foi marcado pelo conflito filosófico entre aristotélico-tomistas e pragmatistas, representados por católicos e escolanovistas: Eles participavam, lado a lado, na Associação Brasileira de Educação (ABE). O conflito emergiu no apagar das luzes de 1931, na IV Conferência Nacional de Educação, vindo a consumar-se a ruptura com a publicação do “Manifesto da Educação Nova”, no início de 1932. Em consequência, os educadores católicos retiraram-se da ABE e fundaram, em 1933, a Confederação Católica Brasileira de Educação (Saviani, 2007, p. 197). No Brasil, os escolanovistas foram responsáveis pelo desenvolvimento e divulgação das ideias filosóficas pragmatistas e pedagógicas da Escola Nova. Lourenço 77 Filho, além de exercer diversas atividades institucionais ligadas à educação, foi um dos primeiros brasileiros a escrever uma reflexão mais voltada para a Filosofia da Educação, ao mesmo tempo em que divulgava o ideário renovador educacional, no seu livro Introdução ao estudo da Escola Nova, publicado no início dos anos de 1930. Contudo, suas preocupações teóricas foram mais representativas no âmbito das “bases psicológicas do movimento renovador”, conforme Saviani (2007, p. 198 e ss.). O jornalista, professor e homem público Fernando de Azevedo, por sua vez, estava mais voltado em pensar as “bases sociológicas” das reformas produzidas pelo movimento renovador da Escola Nova (Saviani, 2007, p. 206 e ss.). Ele não foi propriamente um estudioso de Dewey e minimizava a influência da filosofia americana sobre a Escola Nova, que teria sofrido outras influências teóricas (Saviani, 2007, p. 211). Para Saviani (2007, p. 214), os estudos de Azevedo acentuaram o “aspecto social, o que está em consonância com sua condição de catedrático de sociologia que encontrou em Durkheim sua inspiração principal, complementada por Mannheim”. Anísio Teixeira, professor, escritor e homem público, foi quem efetivamente mais se debruçou sobre as “bases filosóficas e políticas da renovação escolar” (Saviani, p. 216) e esteve mais próximo do pensamento deweyano: Na formação pedagógica de Anísio Teixeira, foram decisivas as duas viagens que fez aos Estados Unidos. Da primeira, em 1927, resultou o livro Aspectos americanos da educação, publicado em 1928, no qual relata os resultados de sua viagem, apresentando comentários sobre estabelecimentos de ensino, órgãos de administração, edifícios, métodos práticos de ensino, currículo flexível e variado, vida estudantil, além de uma primeira sistematização da concepção de Dewey. Com certeza foi essa experiência que o motivou a retornar aos Estados Unidos em 1929 para realizar o mestrado na Universidade de Columbia, ocasião em que fez estudos com Dewey. Após seu retorno ao Brasil, traduziu dois ensaios de John Dewey, “A criança e o programa escolar” e “Interesse e esforço”, reunidos no livro Vida e educação, publicado em 1930 com uma introdução por ele redigida. E em 1933 publicou o livro Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação, declaradamente filiado ao pensamento pedagógico de Jonh Dewey. A partir da 5ª edição, publicada em 1968, o título do livro foi invertido, passando a ser Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola (Saviani, 2007, p. 227-228). Em 1935, ano em que criou a Universidade do Distrito Federal, Anísio Teixeira publicou Em marcha para a democracia: à margem dos Estados Unidos. Neste livro é destacada a prosperidade material desse país e apresentada a adequação da filosofia pragmática à nova ordem científica. São apresentadas, ainda, as sugestões de Dewey e 78 Walter Lippmann para a teoria democrática e a importância da educação pública para a democracia (Saviani, 2007, p. 219). Ao final de 1935, com o golpe do Estado Novo, Anísio se demitiu dos cargos que ocupava e se afastou da vida pública, em protesto contra o autoritarismo político que ia se estabelecendo com o governo Vargas. Em seguida publicou o livro Educação para a democracia: introdução à administração educacional e prosseguiu fazendo a divulgação da filosofia norte americana por intermédio de traduções, principalmente das obras de Dewey. Contudo, esse trabalho de divulgação do pensamento democrático norte americano foi interrompido em 1938, em função de ter sido considerado subversivo pela Ditadura do Estado Novo (Saviani, 2007, p. 219-220). A admiração de Anísio pela democracia estadunidense, não implicava em simplesmente transportar as experiências americanas para as terras brasileiras. Ao contrário, ele sempre procurou, “a partir das condições brasileiras, encaminhar a questão da educação pública na direção da construção de um sistema articulado” (Saviani, 2007, p. 226), inclusive em termos de reflexões teóricas presentes em suas diversas obras. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, escrito em 1932, por Fernando de Azevedo, representou um marco na história da educação brasileira: Apesar de representar tendências diversas de pensamento – como as do filósofo John Dewey e a do sociólogo francês Émile Durkhein [...] – compunha numa autêntica e sistematizada concepção pedagógica, indo da filosofia da educação a formulações pedagógico-didáticas, passando pela política educacional (Ghiraldelli, 2009, p. 22-23). Como se pôde constatar na citação precedente, não havia uma influência filosófica única a nortear o Manifesto de 32. A sua proposta mais abrangente, A reconstrução educacional no Brasil, explicita os fundamentos filosóficos e sociais da educação apresentando as “finalidades da educação” e os “valores mutáveis e valores permanentes” de uma sociedade. No primeiro tópico, é apresentado que “toda educação varia sempre em função de uma ‘concepção de vida’” (Azevedo, 2006, p. 230), a qual é determinada pela estrutura da sociedade. O mestre deve se orientar por um ideal que deve ser seguido pelos educandos. Alguns consideram esse ideal abstrato e absoluto, outros o julgam concreto e relativo, mas, na verdade, esse ideal sempre variou historicamente e foi sempre inspirado na natureza da realidade social. Assim, a Educação Nova seria “uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço 79 educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida” (Azevedo, 2006, p. 231). Esta concepção tradicional, ligada a interesses de classes, deverá ser substituída pela nova concepção fundada no caráter biológico, que permite ao indivíduo se educar conforme suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A educação Nova sustenta sua feição social na “hierarquia das capacidades”, pela qual todos os grupos sociais teriam seus membros contemplados com as mesmas oportunidades educacionais. Enquanto a escola tradicional concebia o indivíduo isolado, a nova educação vincula a escola ao meio social, formando homens cooperativos e solidários (Azevedo, 2006, p. 232). O segundo tópico, “Valores mutáveis e valores permanentes”, afirma que foi a partir das fábricas que se plasmou o trabalho como base da formação da personalidade moral e também como único meio para tornar os indivíduos humanos seres cultivados e úteis sob todos os aspectos (Azevedo, 2006, p. 232). É do trabalho, portanto, que advém o equilíbrio entre os valores humanos mutáveis e permanentes, pois “se se quer servir à humanidade, é preciso estar em comunhão com ela” (Azevedo, 2006, p. 232). Saviani (2007) também é assertivo quanto ao teor múltiplo e até mesmo contraditório das influências filosóficas do Manifesto: Como documento doutrinário, o texto declara-se filiado à Escola Nova. De fato, o conjunto do trabalho é atravessado implícita ou explicitamente pela perspectiva escolanovistas. Implicitamente, na medida em que se insere no movimento de renovação e que se propõe a tarefa de reconstrução educacional. Explicitamente, quando se empenha em enunciar as bases, princípios e procedimentos próprios da Escola Nova, opondo-se à escola tradicional. No entanto, não se trata de um texto homogêneo, sendo possível, mesmo, considera-lo um tanto contraditório. Isso é explicável seja pelo caráter de manifesto que procura angariar adeptos junto à opinião pública, o que geralmente implica concessões em detrimento da pureza doutrinária; seja pelo seu redator, Fernando de Azevedo, cuja adesão à Escola Nova, [...], foi marcada por certa heterodoxia ou ecletismo (Saviani, 2007, p. 251). Saviani também ressalta que, além da própria formação filosófica contraditória de Fernando de Azevedo, havia a multiplicidade de diversas correntes filosóficas próprias aos integrantes do movimento escolanovista, que, certamente, marcou as influências filosóficas díspares que incidiram sobre o Manifesto (Saviani, 2007, p. 251 e ss.). 80 b) A matriz filosófica francesa, a missão francesa filosófica e a criação da USP 30 Alguns estudiosos apontam a fundação da USP – Universidade de São Paulo – em 1934, como sendo resultante da Revolução Constitucionalista de 1932, consequência dos conflitos entre os tenentes ligados à ditadura getulista e a elite intelectual paulista, que, derrotada, viu a necessidade da criação de uma universidade, em São Paulo, para a formação de quadros dirigentes no Estado e no País. Outros estudiosos apontam a fundação da USP como resultado da conciliação entre esses grupos dominantes, com o objetivo de formar uma elite dirigente: “Segundo esta concepção, só a elite devidamente esclarecida e formada teria condições de propor um projeto para a nacionalidade que estivesse acima dos interesses partidários” (Cf. Costa de Paula, 2002). Nesse sentido, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP ocupava uma posição fundamental, pois a ela era delegada a função de organizar a universidade e constituir um sentimento de nacionalidade. Dessa forma, a criação de uma universidade em São Paulo deve ser compreendida dentro de um contexto amplo de efervescência cultural que marcava a década de 30 no Brasil e, mais particularmente, a capital paulista: Em ensaio já clássico sobre o período, Antônio Cândido aponta para as novidades que têm lugar na época, e que se aglutinam em torno de um movimento de unificação cultural: “rotinização” dos ideais estéticos modernistas; engajamento político, religioso e social dos intelectuais e artistas; expansão da participação na instrução pública, na vida artística e literária, ampliação de meios de difusão como o livro e o rádio etc. Todos esses fatores contribuem, segundo ele, para a configuração de uma mentalidade mais democrática em relação à cultura (Peixoto, 2000, p. 159). A participação da chamada missão francesa no Brasil, que veio com a fundação da USP, foi decisiva, portanto, para a renovação e modernização dos estudos das ciências humanas no país. A palavra “missão” era oficial e a explicação que Fernando Novais oferece é que, possivelmente, éramos vistos como uma terra de índios que deviam ser catequizados. A palavra traduziria certa atividade messiânica. Mas essa não 30 A temática uspiana aqui abordada, bem como o tópico também referente à USP na Quarta República, consiste em uma adaptação de um artigo da autora com a seguinte referência de publicação: MARINHO, Cristiane Maria. A importância da Missão Francesa para a Filosofia brasileira na fundação da USP. In: Ressonâncias: a civilização francesa revisitada. Ana Cláudia Giraud [et al] (Orgs.). Fortaleza, CE: EdUECE, 2009. 81 foi a única missão francesa que aportou no Brasil: a primeira missão francesa foi a artística, vinda com Dom João VI; a segunda veio no período republicano para instruir os oficiais do Exército; a terceira foi a dos professores que vieram auxiliar na estruturação da USP e da Faculdade de Filosofia (Cf. Novais, 1994). Os componentes dessa missão hoje são nomes reconhecidos, mas na década de 30, eram jovens de vinte e poucos anos e recém-formados. Entre eles estão nomes como: Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide, Braudel, Levis-Strauss, Pierre Monbeig, Jean Maugüé e outros. Fernando Novais relata que o critério para a seleção desses professores foi um tanto quanto aleatório: Lévi-Strauss conta, no primeiro capítulo de Tristes trópicos, que era formado em filosofia, mas desejava ser antropólogo. Relembra que, num certo dia, recebeu um telefonema de um filósofo, seu professor, perguntando se continuava com a ideia de estudar índios. Diante da confirmação, esse professor disse: “Então, você precisa falar com Georges Dumas, pois ele está organizando uma missão que vai para uma Universidade em São Paulo, recém-criada; e nos arredores dessa cidade enxameiam índios” (Novais, 1994, p. 1). Em 1934, era Georges Dumas, professor de Sociologia da Sorbonne, o encarregado de enviar, anualmente, ao Brasil professores de várias universidades francesas para compor o corpo docente da USP. Costa de Paula informa, ainda, que Dumas foi responsável pela contratação de professores franceses para a Federal do Rio de Janeiro: “a diferença é que, na Capital Federal, a contratação era feita através do Ministro Capanema, após autorização de Getúlio Vargas, e obedecia fundamentalmente a critérios ideológicos, sobretudo o vínculo com a Igreja Católica” (Costa de Paula, 2002, p. 155). Talvez por esse motivo, o impacto da missão francesa foi maior na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que na Faculdade Nacional de Filosofia da URJ. Dessa forma, durante quarenta anos, o departamento de filosofia da USP teve professores franceses com pagamento subsidiado pela França e com boa parte das aulas ministradas em francês. Renato Janine Ribeiro nos relata, no seu texto Filósofos franceses no Brasil: um depoimento, que antes da fundação do departamento de filosofia da USP, a filosofia brasileira era predominantemente tomista ou eclética. A predominância da formação teológica, ou meramente erudita, no cenário filosófico brasileiro, impossibilitava uma leitura científica e rigorosa dos textos clássicos. A missão francesa uspiana da filosofia veio possibilitar uma sistematicidade aos estudos filosóficos: 82 O rigor se devia a mestres franceses, como Martial Guéroult e Victor Goldschmidt, que haviam formado seus alunos brasileiros segundo regras que, mais tarde, viriam a ser chamadas de estruturalistas. Um cássico era o Descartes selon l’ordre des raisons, de Guéroult, que efetuava uma leitura rigorosamente interna do texto e mostrava como viável uma abordagem científica da filosofia. Daí que lêssemos os clássicos e, bem pouco, os comentadores. Esse procedimento teve uma grande vantagem, porque treinou bem os alunos (Ribeiro, 2007, p. 2). Assim, podemos afirmar que o pensamento franco-uspiano veio inaugurar uma nova fase nos estudos filosóficos brasileiros, prevalentemente, realizados em leituras de segunda mão. Impõe-se um limite ao amadorismo e à mera erudição filosóficas, que são substituídos pelo acesso aos clássicos em um primeiro período, década de 30, e em seguida pela adesão ao método estrutural, em um segundo período, década de 60, possibilitando uma leitura exegética das grandes obras. A atuação dos professores franceses na USP pode ser dividida em dois períodos: década de 30 e década de 60 do século XX. No primeiro período destacavam-se nomes como os dos jovens Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss no ensino das Ciências Sociais e o de Jean Mangüé na Filosofia. O professor Mangüé predominou nessa primeira etapa, de 35 a 44 e foi sucedido por João Cruz Costa, a qual teve características mais culturais do que científicas. Segundo Ribeiro (2007), o professor Mangüé convidava seus estudantes a uma imersão na cultura através de filmes, peças de teatro, romances e, por isso, essa etapa, foi vital para a formação de uma geração extremamente criativa. No depoimento de Gilda de Mello, aluna do mestre e depois professora de Estética da USP, bem como grande estudiosa da cultura brasileira, também podemos observar algumas particularidades das aulas de Mangüé: [...] o mundo que então nos foi revelado não se insinuou apenas por meio das aulas e dos livros, mas de uma infinidade de pequenas brechas: os intervalos dos cursos, a troca de opiniões, a confissão mútua de projetos e dúvidas, tudo o que foi cimentando o respeito e a amizade que nos fez tão companheiros pelos anos afora [...]. Essa sociabilidade não tinha propriamente um perfil. Era uma figura de muitas faces, complexa, muita rica... Começava a se desenrolar na frequência dos cursos, sobretudo nas aulas do professor Mangüé, em que todo o mundo se encontrava, calouros, veteranos, ouvintes interessados na matéria e senhoras da sociedade. Foi ali que nasceu espontaneamente o nosso grupo [Clima] 31, fruto de um conjunto de 31 O grupo tinha uma vasta atividade cultural que envolvia cinema, teatro, filosofia, mas levou adiante, como carro chefe, a Revista Clima no início dos anos 40 que foi um dos marcos da vida intelectual brasileira. Antônio Cândido, um dos ícones posteriores da intelectualidade brasileira, também fazia parte do grupo e da revista, tendo sido também marido de Gilda de Mello e Souza. Essa filósofa também 83 afinidades e circunstâncias. Em primeiro lugar, éramos todos discípulos de Mangüé [...] (Gilda de Mello e Souza apud Peixoto, 2000, p.163) Em fevereiro de 1935, o navio Mendoza, da Compagnie des Transports Maritimes, trouxe a bordo o jovem normalien Jean Mangüé para substituir Etienne Borne, primeiro professor responsável pelo curso de Filosofia da recém fundada USP: Convidado a fixar as condições do ensino filosófico na recém fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Mangüé resumiu-as numa fórmula cujo aspecto paradoxal pareceria além do mais involuntariamente talhado para desarmar desde logo o futuro requisitório das vocações municipais contra os professores oficiais e diplomados de Filosofia: filosofia não se ensina, quando muito ensina-se a filosofar (Arantes, 2000, p. 63). Essas diretrizes para o ensino da Filosofia vão determinar todo o posterior modo de ensino filosófico uspiano, sendo levadas a uma radicalização no período seguinte da década de 60, por intermédio dos adeptos do método estrutural. Por isso, costuma-se falar que Mangüé teria feito a “certidão de nascimento” do modo de ensinar filosofia no Brasil. Assim, ficou abolida, no país, a forma de estudar filosofia a partir dos manuais que costumavam oferecer visões panorâmicas de sistemas de pensamentos e que nem sempre eram feitos a partir dos clássicos ou de uma boa tradução. Mangüé instituiu os chamados cursos monográficos como diretriz imprescindível nos estudos filosóficos. Ou seja, agora deveriam fazer estudos que contemplassem as próprias obras dos autores clássicos. Por tudo isso, Arantes (2000) reputa Mangüé como tendo desenvolvido um papel decisivo na nossa formação filosófica. O velho mestre teve o reconhecimento declarado de grandes expoentes da cultura brasileira, principalmente pelo modo irreverente de se comportar dentro da academia. Oswald de Andrade, por exemplo, crítico confesso do mundo acadêmico, o achava brilhante. Antônio Cândido, aluno e discípulo, reconhece a importância do antiacademicismo do mestre que: “[...] utilizava largamente reflexões e análises sobre literatura, pintura, cinema. As suas aulas eram extraordinárias como expressão e criação, sendo assistidas por várias turmas sucessivas de estudantes já formados que não conseguiam se desprender do seu fascínio” (Arantes, 2000, p. 65). participou da criação da Revista Discurso na década de 70 que se constituiu uma referência dos estudos filosóficos brasileiros. 84 Com a missão francesa, encarnada na figura de Mangüé, veio então uma “transformação capital em nossos hábitos intelectuais. Pela primeira vez estávamos aprendendo a estudar, a começar pela descoberta do que vinha a ser uma aula de verdade” (Arantes, 2000, p. 67). Nesse sentido, é precioso outro depoimento de Gilda de Mello Souza a respeito das aulas do grande mestre: Não mais a repetição mecânica de um texto, vazio e inatual, cujas fontes eram cuidadosamente escamoteadas da classe, mas a exposição de um assunto preciso, apoiado numa bibliografia moderna, fornecida com lealdade ao aluno. Ao contrário da tradição romântica de ensino, baseada na improvisação e no brilho fácil, que ainda imperava na Faculdade de Direito, por exemplo, o professor consultava disciplinadamente as suas anotações, aumentando com isso a confiança dos alunos na seriedade do ensino (Arantes, 2000, p. 67). Essa etapa da década de 30 é muito pouco lembrada, prevalecendo a memória da década de 60, na qual predominaram características mais científicas na formação propiciada pelos mestres franceses, como veremos adiante, bem como sua decisiva marca com a método estrutural, tido como o “mais adequado” para se estudar filosofia. c) A matriz filosófica aristotélico-tomista e a criação das Pontifícias Universidades Católicas Como visto acima, a partir da divulgação do Manifesto de 1932, ocorre uma ruptura entre os renovadores escolanovistas e os católicos: “A Igreja católica armou uma trincheira e centrou fogo na filosofia do pragmatismo americano e nos teóricos do movimento da Escola Nova no Brasil, principalmente nos que haviam incorporado alguma coisa das leituras que fizeram de John Dewey” (Ghiraldelli, 2009, p. 41). Em virtude do rompimento, os católicos saem da ABE e fundam a CCBE (Confederação Católica Brasileira de Educação), em 1933. Essa Confederação se espalha em uma rede nacional através de Congressos, Associações, Colégios e Revistas, multiplicando seguidores e fortalecendo o poderio político e educativo da Igreja Católica32. 32 Miceli (1979, p. 53), citado por Saviani, informa que no campo religioso a Ação Católica desenvolveu uma militância para aglutinar a juventude que abarcava as cinco vogais: Juventude Agrária Católica (JAC); Juventude Estudantil Católica (JEC), para estudantes secundaristas; Juventude Independente Católica (JIC); Juventude Operária Católica (JOC) e Juventude Universitária Católica (JUC). Além dessas associações havia outras tantas para cada seguimento da sociedade. 85 À frente dessa movimentação estava Alceu Amoroso Lima que, como visto, substituiu Jackson de Figueiredo na liderança do pensamento católico, em 1928, em virtude de sua morte. Juntamente com Amoroso Lima, estavam também Padre Leonel Franca e o Cardeal Leme, na liderança católica. A preocupação e necessidade da Igreja em formar líderes intelectuais nos moldes do espírito católico levou à fundação da Associação dos Universitários Católicos que desembocaria na criação do Instituto Católico de Estudos Superiores, em 1932, que, por sua vez, daria surgimento às Faculdades Católicas e às Pontifícias Universidades Católicas 33 (Saviani, 2007, p. 256). A bandeira da luta dos católicos contra os renovadores escolanovistas consistia, principalmente, no combate à laicização do ensino. Para a Igreja, religião e pedagogia são inseparáveis. Esta ideia fica plenamente explicitada na seguinte passagem do livro do Padre Leonel Franca: “Se a educação não pode deixar de ser religiosa, a escola leiga que, por princípio, ignora a religião, é essencialmente incapaz de educar. Tal é o veredicto irrecusável de toda sã pedagogia” (Franca apud Saviani, 2007, p. 257). Portanto, a escola leiga, defendida pelos escolanovistas, não educava, pois “somente a escola católica seria capaz de reformar espiritualmente as pessoas como condição e base indispensável à reforma da sociedade” (Saviani, 2007, p. 257). Para os católicos haveria um “naturalismo pedagógico”, expresso na encíclica do papa Pio XI, Divini illius magistri, de 1929, que estabeleceu a hierarquia Família, Igreja e Estado como responsáveis pela educação. Haveria, portanto, uma precedência da Família e da Igreja sobre o Estado, ou seja, a naturalidade e a sobrenaturalidade deveriam prevalecer sobre a instituição do Estado, criada culturalmente, tanto em termos filosóficos quanto em termos históricos. Assim, [...] para os católicos, tanto a laicidade como o monopólio estatal do ensino atentam contra a ordem natural e divina. Eles reconhecem a importância do Estado, mas entendem que seu papel, no interesse do bem comum, é o de orientar, articular e coordenar ações da Igreja e da família no exercício da tarefa educativa. E justificam sua posição com duas ordens de argumento. A primeira ordem era de caráter filosófico-teológico, tendo, pois, sentido universal, fundamentado na filosofia perene sistematizada, a partir de Aristóteles, por Santo Tomás de Aquino. A segunda ordem de argumento é de caráter empírico e histórico: a laicidade e o monopólio estatal do 33 A primeira PUC a ser criada foi a do Rio de Janeiro em 1947; a PUC-SP em 1947; a PUC Rio Grande do sul em 1948; PUC Campinas em 1941; PUC-MG em 1958; dentre outras. 86 ensino chocam-se com a moral e os sentimentos católicos da maioria do povo brasileiro (Saviani, 2007, p. 258) (Grifo nosso). Ghiraldelli (2009, p. 44) afirma que os intelectuais católicos brasileiros seguiam o que se convencionou chamar de tomismo, ou neotomismo, que tem na filosofia de Tomas de Aquino a filosofia oficial da Igreja, como ficou decidido após a Encíclica Aeterni Patris, do papa Leão XIII em 1879. Assim, pode-se observar que os neotomistas brasileiros tiveram um peso decisivo na organização do ensino superior particular, principalmente a partir dos anos 1930, apesar de terem começado esse trabalho desde 1910: Do ponto de vista histórico, data do início deste século a explicação mais sistemática do neotomismo como modelo filosófico autônomo, rompendo os círculos restritamente eclesiásticos e adquirindo expressão acadêmica e cultural mais consistente. Com efeito, em 1908, os beneditinos fundaram em São Paulo a Faculdade de Filosofia São Bento – por sinal, o primeiro curso regular de filosofia no Brasil e embrião da futura Universidade Católica de São Paulo – que se tornou um vigoroso centro de cultivo e de irradiação da filosofia neotomista, sobre a influência direta da Universidade de Louvaina, na Bélgica (Severino apud Ghiraldelli, 2009, p. 44). O belga Leonardo Van Acker e o brasileiro Alexandre Correia, que estudaram em Louvaina, “se tornaram reconhecidos expoentes do neotomismo em São Paulo. Passariam a integrar, depois, o corpo docente da PUC-SP, marcando o curso de filosofia dessa Universidade com essa orientação teórica, até praticamente a reforma universitária de 1970” (Severino apud Ghiraldelli, 2009, p. 44). Mas o grande “iniciador da renovação tomista no Brasil” foi o Pe. Leonel Franca, tido como “um dos grandes sistematizadores da escolástica tomista no Brasil” (Acerboni apud Ghiraldelli, 2009, p. 44). No entanto, adverte Ghiraldelli (2009, p. 41-42), havia uma diferença entre o combate dos educadores católicos contra os educadores escolanovistas e a “fúria da hierarquia católica contra as pedagogias libertárias dos anos 1910, aqueles grupos seguidores de Ferrer e outras formas de pedagogias ligadas ao anarquismo e afins” (Ghiraldelli, 2009, p. 41- 42). Nesse ano, a Igreja Católica procurou, radicalmente, inviabilizar a disseminação das pedagogias libertárias ou qualquer outra tendência pedagógica de cunho socialista, mas na década de 30 o combate à proposta escolanovista arrefeceu a partir de determinada altura: “Não a rechaçaram em bloco. Disputaram com a intelectualidade laica o que começaram a ver como possíveis virtudes 87 do ideário da escola nova que, afinal, ganhava adeptos velozmente na vanguarda do professorado” (Ghiraldelli, 2009, p. 42). O que acabou criando um escolanovismo católico. É necessário ressaltar que a condução pedagógica do emergente escolanovismo católico seguia a tradição do aparato filosófico do pensamento católico tradicional. Ou seja, “com uma visão hierarquizada, buscando restaurar o princípio de autoridade e privilegiando a ordem sobre o progresso, a visão católica considerava o povo como elemento a ser conduzido por uma elite responsável, formada segundo princípios da ‘reta moral cristã’” (Saviani, 2009, p. 259). Essa elite responsável pela condução das massas teria seu locus privilegiado de formação nas PUCs, criadas precisamente com essa finalidade. É uma das facetas que constituiu o que ficou conhecido como “modernização conservadora”. Contudo, Leonardo Van Acker, mesmo reconhecendo a validade dos princípios da escola nova, afirmava que “tais princípios já estavam presentes na concepção pedagógica de Santo Tomás de Aquino” (Saviani, 2007, p. 299). 4.3. - Quarta República (1945-1964): liberalismo e socialismo cristão O período inicial da segunda metade do século XX foi marcado pela polêmica entre a primazia da escola pública ou da escola particular. A polêmica teve início a partir da Conferência “A escola pública, universal e gratuita”, proferida por Anísio Teixeira, então diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - INEP, no Primeiro Congresso Estadual de Educação Primária, em 1956. Os católicos, que tiveram interesses contrariados no Congresso, deturparam o teor do discurso com a acusação de comunismo, tentando “aproximar o pragmatismo de Dewey do marxismo” (Saviani, 2007, p. 287). A ABE saiu em defesa de Anísio Teixeira, argumentando que as colocações feitas na exposição foram, primeiro, compatíveis com os ideais democráticos ocidentais e, segundo, extremamente relevantes em virtude de seu teor inovador, expresso nos princípios e métodos deweyanos. A Igreja contra atacou com o Memorial dos Bispos, no qual reiterou as acusações de comunismo contra o palestrante. Contudo, em resposta a esse memorial, “529 intelectuais educadores, cientistas e professores reconhecidos em todo o país lançaram um abaixo-assinado protestando contra o memorial e em defesa de Anísio Teixeira, que foi mantido no cargo por Juscelino Kubitschek” (Saviani, 2007, p. 88 287). Anísio Teixeira, por sua vez, realizou inúmeras declarações demonstrando o seu distanciamento da filosofia marxista: Mostrando a diferença entre sua visão de educação e a dos marxistas; evidenciando suas convicções contrárias às diferentes formas de violência na vida social e política; manifestando sua discordância do postulado da luta de classes; reiterando à exaustão que jamais defendeu o monopólio estatal da educação; insistindo em seu respeito pela escola particular (Saviani, 2007, p. 287). Em 1958, a tramitação do Substitutivo Lacerda, no Congresso Nacional, que contemplava os interesses da escola particular, tornou a polêmica entre escola particular e escola pública ainda mais acirrada. O fato é que a discussão tomou proporções nacionais: de um lado, os defensores da escola particular: a Igreja e os proprietários de escolas privadas; de outro, os defensores da escola pública: intelectuais das mais diversas formações teóricas e ligados às mais diferentes instituições. a) As matrizes filosóficas da polêmica entre escola pública e escola particular O grupo de intelectuais defensores da escola pública pode ser identificado em suas posições diferenciadas a partir da aproximação com três correntes filosóficas (Saviani, 2007; Ghiraldelli, 2009): Do ponto de vista da filosofia da educação, podemos dizer que três grupos dirigiram a Campanha de Defesa da Escola Pública. Esses grupos, que no desenrolar do processo se interpenetraram e souberam trabalhar em consonância, em nenhum momento deixaram de manter intactas suas fronteiras teóricas. O primeiro grupo girou em torno de Anísio Teixeira e inspirava-se no ideário liberal e na filosofia pragmatistas americana de John Dewey. O segundo grupo, de Roque Spencer Maciel de Barros, Laerte Ramos de Carvalho, João Villa Lobos e outros, pautava-se pelas diretrizes de um ideário liberal de cunho mais conservador, cuja filosofia da educação filiava-se a tendências idealistas – com Roque Spencer Maciel de Barros como leitor do filósofo alemão Immanuel Kant [...]. Para o terceiro grupo – os socialistas – tratava-se apenas de instituir uma escola capaz de “socializar a cultura para as classes trabalhadoras”. O próprio Florestan Fernandes, em 1960, colocou de público que a luta não era por princípios socialistas, mas apenas por conquistas já alcançadas nos “países capitalistas avançados” (Ghiraldelli, 2009, pp. 79 a 81). Saviani (2007) se estende de forma mais demorada na análise filosófica dessas vertentes que nortearam esses três grupos defensores da escola pública frente à Igreja e aos proprietários das escolas privadas. Ele se refere ao grupo inspirado na filosofia de Dewey como sendo liberal-pragmatista, filiados aos educadores do movimento 89 renovador dos Pioneiros da Educação Nova. Dentre eles destacam-se: Anísio Teixeira, Fernando Azevedo, Almeida Júnior e Lourenço Filho. Este grupo aglutinou diversas forças favoráveis ao movimento em defesa da escola pública, no manifesto Mais uma vez convocados, redigido por Fernando de Azevedo, em 1959, escrito quase trinta anos depois do Manifesto da Educação Nova, e com o mesmo teor de resistência política. Com relação às questões filosóficas, Saviani assim analisa esse grupo: Essa corrente abstém-se de considerar o homem como um valor absoluto. Situa-se no terreno das necessidades práticas, seguindo o princípio enunciado por William James: para o pragmatismo o “único teste de verdade provável é o que trabalha melhor no sentido de conduzir-nos, o que se adapta melhor a cada parte da vida e combina com a coletividade dos reclamos da experiência” [...]. No campo da educação essa concepção tem como um de seus maiores formuladores John Dewey, que teve em Anísio Teixeira o seu principal divulgador no Brasil (Saviani, 2007, p. 290). Saviani (2007, p. 289) denomina um segundo grupo de liberal-idealista, representado pelo jornal O Estado de S. Paulo, sob a direção de Júlio de Mesquita Filho, e por professores da área de filosofia e história da educação da USP, como Roque Spencer Maciel de Barros, Laerte Ramos de Carvalho e João Eduardo Rodrigues Villalobos. Na perspectiva filosófica kantiana, pela qual esse grupo se orientava, o homem, a educação e liberdade eram definidas da seguinte forma: [...] o homem é entendido como um ser racional e livre. A liberdade é concebida como ausência de constrangimento, tendo por fim a autonomia ética. A base dessa concepção remonta à ética kantiana, em que o homem é definido pela moralidade. A tarefa da educação consiste, pois, em converter o homem num ser moral, transformando sua animalidade em humanidade. O homem é considerado um valor supremo que se afirma na sua individualidade e originalidade, independentemente de suas condições sociais e históricas em que vive (Saviani, 2007, p. 289). Em conformidade com o pensamento kantiano, Roque Spencer Maciel de Barros afirma que o homem é sagrado, seja por sua origem divina, seja por sua própria liberdade; é divino e é fundamento do mundo. A ordem política que possibilita a realização dessa supremacia do indivíduo é o liberalismo, a única capaz de realizar a sua ordem moral. Isso ocorre porque na ordem liberal, os indivíduos valem por serem indivíduos, independentemente do coletivo, seja ele sociedade, Estado, partido, Igreja, seita ou classe. Dessa forma, os indivíduos devem ser tratados como pessoas morais e não como instrumentos de um todo; os indivíduos devem ser fins em si mesmos. Para 90 Roque Spencer, “a igualdade social é uma falácia; deve restringir-se aos limites jurídicos. E mais: a igualdade, isto é, a ausência de uma hierarquia, é perversa, pois acaba com a diversidade e leva à desarticulação da vida social e à autodestruição’ (Orso apud Saviani, 2007, p. 289). A terceira corrente que compôs a frente de defesa da educação pública era de tendência socialista e teve como seu principal líder o professor Florestan Fernandes. Segundo Saviani (2007, p. 290), esse grupo se diferenciava tanto da visão liberalidealista kantiana, para quem a educação formava o indivíduo autônomo sem considerar as suas condições sociais; quanto da visão liberal-pragmatista deweyana, que tinha como principal missão da educação ajustar os indivíduos à realidade social em mudança. Diversamente, “a tendência socialista procura compreender a educação a partir de seus determinantes sociais, considerando-a um fator de transformação social provocada” (Saviani, 2007, p. 290). Ghiraldelli (2009) arremata com muita clareza a explicação das bases filosóficas que nortearam a polêmica na educação brasileira desse período entre escola pública e escola particular: De ponto de vista da filosofia da educação, o que estava em jogo era uma visão kantiana de educação e uma visão pragmatista. Em suma, do lado kantiano, havia a busca de legitimidade da educação a partir da ideia de que o homem se torna homem, no sentido pleno da palavra, isto é, sujeito – ser consciente de sua fala e responsável por seus atos –, pelo esclarecimento (o iluminismo), em termos práticos modernos, em uma sociedade de massas, pela escolarização. Do lado pragmatista, essa necessidade de encontrar a legitimidade da escolarização em uma filosofia que diga que o homem se torna homem pela educação é secundária, pois o que basta é saber que historicamente as democracias são lugares de convivência social e os lugares de convivência social são convencer os outros de que ela é uma peça da democracia ou, melhor dizendo, uma peça insubstituível da vida moderna (Ghiraldelli, 2009, p. 80). b) As matrizes filosóficas da Educação Popular de Paulo Freire No campo educacional, entre a Revolução de 1930 e o final do Estado Novo, predominou um equilíbrio entre as influências filosóficas do aristotelismo-tomista e o pensamento de Dewey, representadas, por um lado, pelos católicos e seu humanismo tradicional e, por outro lado, pelos Pioneiros da Educação Nova e seu humanismo moderno, que passa a predominar. No final da década de 1950 e início dos anos 1960, em função do incremento da industrialização, da aglomeração urbana, do direito de voto 91 condicionado à alfabetização, dentre outros elementos, há um aumento da mobilização popular, principalmente no que diz respeito à cultura e educação populares. Os movimentos mais expressivos da educação popular foram o Movimento de Educação de Base (MEB) e o Movimento Paulo Freire de Educação de Adultos, que é muito próximo do ideário da pedagogia nova. O MEB foi criado e dirigido pela Igreja católica e o Movimento Paulo freire, mesmo sendo um movimento laico, tinha uma orientação fortemente católica, a maioria de seus componentes vinha do movimento estudantil vinculada à JUC. Mas nesse âmbito, pode-se afirmar que houve uma espécie de modernização dos referenciais filosóficos da Igreja: Se o movimento escolanovista se inspira fortemente no pragmatismo, o MEB e o Movimento Paulo Freire buscam inspiração predominantemente no personalismo cristão e na fenomenologia existencial. Entretanto, pragmatismo e personalismo, assim como existencialismo e fenomenologia, são diferentes correntes filosóficas que expressam diferentes manifestações da concepção humanista moderna, situando-se, pois, em seu interior. É lícito, portanto, afirmar que sob a égide da concepção humanista moderna de filosofia da educação acabou por surgir também uma espécie de ‘Escola Nova Popular’, como um outro aspecto do processo mais amplo de renovação da pedagogia católica que manteve afinidades com a corrente denominada ‘teologia da libertação’ (Saviani, 2007, p. 302). Nesse período, para boa parte da Igreja, a educação não era mais sinônimo de catequese, mas de conscientização e politização do povo, ou seja, de educação popular. Esta expressão não mais significava, como nos períodos anteriores da história brasileira, uma preocupação com o desenvolvimento da instrução pública como implantação de um sistema nacional de ensino, universalização da educação elementar e erradicação do analfabetismo. Agora, educação popular passava a significar e abarcar outras questões: A mobilização que toma vulto na primeira metade dos anos 1960 assume outra significação. Em seu centro emerge a preocupação com a participação política das massas a partir da tomada de consciência da realidade brasileira. E a educação passa a ser vista como instrumento de conscientização. A expressão ‘educação popular’ assume, então, o sentido de uma educação do povo, pelo povo e para o povo, pretendendo-se superar o sentido anterior, criticado como sendo uma educação das elites, dos grupos dirigentes e dominante, para o povo, visando a controla-lo, manipulá-lo, ajustá-lo à ordem existente (Saviani, 2007, p. 315). O clima político que possibilitou essa mobilização popular e essas mudanças de referenciais filosóficos foi possível devido, principalmente, a três fatores: análises da realidade brasileira efetuadas pelo ISEB e CBPE; reflexões desenvolvidas por 92 pensadores cristãos e marxistas no pós-guerra europeu; mudanças no ideário do Concílio Vaticano II mais próximo a uma doutrina social da Igreja. As iniciativas mais representativas dessa nova proposta político-filosófico-educacional foram os Centros Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de Culturas Popular (MCPs) e o MEB (Saviani, 2007, p. 315). Dessa forma, a educação popular, a nova Igreja e os aparelhos culturais pretendiam: [...] desenvolver uma educação genuinamente brasileira visando à conscientização das massas por meio da alfabetização centrada na própria cultura do povo. A prática que se buscou implementar visava a aproximar a intelectualidade da população, travando um diálogo em que a disposição do intelectual era a de aprender com o povo, despindo-se de todo espírito assistencialista (Saviani, 2007, p. 316). Foi nesse cenário que emergiu e floresceu o pensamento de Paulo Freire que propõe a educação como uma prática da liberdade, que pode libertar o homem oprimido através de um processo de conscientização, seguido de uma práxis libertadora. A transformação de uma consciência ingênua em consciência crítica, que possibilita essa práxis transformadora, implica necessariamente uma comunicação dialógica de respeito e igualdade, na qual educando e educador estão no mesmo nível. Respeitar o educando, tê-lo em pé de igualdade, é respeitar sua cultura. Esse procedimento tem uma força libertadora e transformadora e se constitui em uma pedagogia como prática de liberdade. Vários estudiosos (Saviani, 2007; Severino, 1997; Paiva, 1980) são unânimes em afirmar que uma grande diversidade de correntes filosóficas influenciou o pensamento freiriano, mas que há uma prevalência do existencialismo cristão. Para Severino (1997, p. 132), a questão dos fundamentos filosóficos da obra freiriana é complexa e polêmica em virtude do contexto de sua formação, do caráter prático de sua proposta pedagógica e da multiplicidade de influência que sofreu. Contudo, Sem dúvida, é na esfera de influência do humanismo existencialista que se encontra a matriz filosófico-educacional do pensador educador Paulo Reglus Freire [...]. No entanto, a linha matriz dessa inspiração parece mesmo proveniente do existencialismo cristão, sob as formulações de Jaspers e Marcel, à luz do qual recebe e reelabora elementos inspiradores provenientes de outras vertentes – personalismo mounierista, vitalismo orteguiano, culturalismo, sociologismo mannheimiano, nacionaldesenvolvimentismo isebiano, fenomenologia e hegelianismo. (Severino, 1997, p. 132). (Grifo nosso). 93 Dessas diversas vertentes filosóficas, surge o que Severino chama de “síntese humanista, no plano filosófico-educacional, que serve de base para a prática pedagógica” (Severino, 1997, p. 132). Ou o que Vanilda Paiva (1980) denomina de “‘síntese pedagógica existencial-culturalista’ que articula as ideias filosóficas do personalismo cristão com as análises sóciopolíticas do isebianismo” (Paiva, 1980, p. 28). Contudo, é necessário observar que houve certa mudança de referencial filosófico ao longo de sua reflexão. Enquanto as referências teóricas do livro Educação como prática da liberdade remetem, filosoficamente, ao existencialismo cristão personalista (Karl Jaspers; Erich Fromm; Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima); Gabriel Marcel; Jacques Maritain; Emmanuel Mounier) (Saviani, 2007, p. 323), as referências teóricas de Pedagogia do Oprimido se aproximam da filosofia dialética e do marxismo, ausentes nas obras anteriores (Saviani, 2007, p. 328). Todavia, a aproximação aos referenciais filosóficos marxistas, segundo Saviani (2007), não significa adesão ao marxismo: Vê-se que em Pedagogia do Oprimido os autores que integram, de algum modo, a tradição marxista constituem maioria. Além de Marx, Engels e Lênin, temos Rosa Luxemburgo, Lukács, Mao Tse-Tung, Lucien Goldmann, Althusser, Kosik, Marcuse, Debret, Guevara, Fidel Castro, Sartre. No entanto, isso não significa que Paulo Freire tenha aderido ao marxismo ou, mesmo, tenha incorporado em sua visão teórica de análise da questão pedagógica a perspectiva do marxismo. Na verdade, é possível reconhecer a matriz hegeliana em sua análise da relação opressor-oprimido, calcada na dialética do senhor e do escravo que Hegel explicita na Fenomenologia do espírito. Quanto aos autores marxistas, eles são citados incidentalmente, apenas para reforçar aspectos da explanação levada a efeito por Freire, sem nenhum compromisso com a sua perspectiva teórica. Se algum conceito é apropriado, isso ocorre deslocando-o da concepção de origem e dissolvendo-o num outro referencial (Saviani, 2007, pp. 328329). Apesar do grande número de referências a autores marxistas, a concepção freiriana permanece sendo a filosofia personalista na versão política do solidarismo cristão (Saviani, 2007, pp. 329). Um solidarismo próximo ao radicalismo católico que se transformou na ‘teologia da libertação’, correlata, em termos educacionais, a pedagogia libertadora de Freire (Saviani, 2007, pp. 330). Para Saviani, o método de Paulo freire “é apenas um aspecto de uma proposta pedagógica mais ampla enraizada na 94 tradição mais autêntica do existencialismo cristão, em diálogo com algumas contribuições do marxismo” (Saviani, 2007, p. 332). 4.4. Regime militar (1964-1985): metodologismo, tecnicismo, reprodutivismocrítico e anarquismo Em função da ditadura militar, o período de 1960-70 foi marcado por um arrefecimento do debate propriamente filosófico no campo educacional. No lugar do debate filosófico sobre a educação, predominou uma discussão mais psicologizada e pedagogizada, no campo da educação. Ghiraldelli se pronuncia de forma esclarecedora sobre esse período: O debate Skinner vs Rogers ou Skinner vs Piaget centralizou as atenções do professorado. Na medida em que transcorria a década de 1970, os escritos em psicopedagogia foram se tornando menos filosóficos. Ganharam um sentido menos aberto às dúvidas filosóficas e mais diretamente articulado ao que se deveria fazer no campo da metodologia do ensino-aprendizagem. Em determinado momento, esse tipo de literatura pedagógica – com características bastante próprias – passou a ser adotado como uma espécie de pedagogia oficial, compondo a maior parte das bibliografias dos concursos públicos para o ingresso na carreira do magistério em diversos níveis (Ghiraldelli, 2009, p. 120). Nos anos de 1980, o debate entre filosofia da educação e psicologia da educação prossegue nessa tendência psicologizante. Só que agora “os debates Rogers vs Piaget e Skinner vs Piaget foram substituídos pelos debates Vygotsky vs Piaget” (Ghiraldelli, 2009, p. 155). Mas essa tendência não era especificamente brasileira, já vinha se pronunciando na Europa e nos Estados Unidos. Mario Aliguiero Manacorda, historiador italiano marxista, retoma esse debate em seu livro História da educação, publicado no Brasil em 1989, com enorme repercussão entre nossos educadores (Ghiraldelli, 2009, p. 155). Nesse mesmo período dos anos 1980, paralela à tendência psicologizante, ocorre também um predomínio de uma reflexão marxista norteada por uma tendência sociologizante e de crítica à ideologia. Dessa forma, nos anos 1970, por um lado, a vertente psicológica predominou no debate sobre educação, “quase abafando a própria existência da filosofia da educação como polo articulador do debate entre teorias educacionais” (Ghiraldelli, 2009, p. 155), por outro lado, nos anos de 1980, a crítica 95 marxista teve um espaço quase hegemônico em alguns centros de estudo articuladores da filosofia com a educação. Aqui serão mostradas as influências filosóficas relativas à missão francesa filosófica uspiana na década de 60; à educação tecnicista; à Teoria críticoreprodutivista; e à Pedagogia libertária de A.S. Neill e Maurício Tragtenberg. a) A matriz filosófica francesa da missão francesa filosófica uspiana na década de 1960 Os grandes expoentes da missão francesa filosófica uspiana do período de 60 foram: Martial Guéroult, Victor Goldschmidt, Gilles-Gaston Granger e Gérard Lebrun, que trouxeram novas convicções sobre a forma de estudar Filosofia: o estudo da Filosofia devia ser rigorosamente o estudo da História da Filosofia e o procedimento metodológico devia se guiar pelo método estrutural, que primava pela explicitação rigorosa da estrutura dos textos clássicos. Essa foi uma das grandes contribuições da missão francesa desse período, haja vista que, até a sua chegada, predominava certo amadorismo e impressionismo no estudo e no ensino da Filosofia no Brasil, com a utilização dos comentadores ao invés dos textos originais: Na perspectiva estruturalista de Guéroult e Goldschmidt, não cabia mais o enveredar por um caminho filosófico original; o importante era conhecer as estruturas do pensamento filosófico, e o conhecimento das estruturas não pode ser conseguido senão pelo estudo das obras dos filósofos e pela descoberta das lógicas que as estruturam (Porchat, 2000, p. 122). Muitos professores franco-uspianos também tiveram uma expressiva atuação cultural na vida paulistana, contribuindo inclusive para as discussões sobre os limites da vida política do país, inaugurados pelo golpe militar de 64. Outro resultado da presença desses intelectuais foi a viabilização de visitas ao país de figuras exponenciais da Filosofia da época: Sartre e Simone de Beauvoir vieram e pronunciaram a famosa Conferência de Araraquara, tendo a companhia de Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso; em 1966, veio o então jovem professor Michel Foucault para ministrar um curso sobre um livro que seria lançado no ano seguinte, As palavras e as coisas, e que, posteriormente, se tornaria um clássico do pensamento foucaultiano. Sobre esse episódio, nos relata Ribeiro (2007, p. 5): “Dessa época, data a sua [de Foucault] definição do curso da USP como um ‘bom departamento francês de ultramar’, que seria o título (sem o bom) de um livro de Paulo Arantes, publicado em 1994”. Esse livro, 96 aliás, independente de toda a controvérsia e a polêmica que tenha causado, tornou-se uma referência para os estudos sobre a influência francesa na USP e sobre a própria Filosofia Brasileira. Em conformidade com o balanço feito por Ribeiro, podemos ressaltar que os professores franceses cumpriram um papel muito importante, a partir da USP, na formação filosófica brasileira em dois planos: “O primeiro foi o da formação técnica de alunos capacitados a lidar com textos difíceis. O segundo foi o de uma idéia ou ideal de intelectual, que exige dele a presença na cena pública, numa ágora que faz deles cidadãos em contato com sua sociedade” (Cf. Ribeiro, 2007, p. 6). Podemos ressaltar, ainda, como desdobramento do que precede, que a missão francesa foi, também, a responsável pela formação dos futuros formadores do pensamento filosófico no Brasil. Trata-se da formação de quadros, compostos pelos primeiros alunos da USP, que posteriormente marcaram a cena filosófica brasileira, desenvolvendo atividades tais como: traduções, publicações de originais clássicos, e articulações sociais. Enfim, uma enorme gama de atividades que possibilitam o estudo, a pesquisa e a divulgação da Filosofia no Brasil. Arantes se refere à iniciativa de Pessanha em publicar a Coleção Os pensadores, por exemplo, como um dos grandes resultados dessa formação de quadros: Pessanha fez a coleção e arregimentou praticamente todo o Departamento de Filosofia da USP para traduzir, compilar e prefaciar os fascículos. Esta foi a primeira manifestação pública de hegemonia da USP. (...). Ele veio para São Paulo e recorreu aos uspianos, ou seja, foi o reconhecimento tácito que tinha se formado ali algo de importante. Pessanha recorreu a esses professores para realizar um empreendimento industrial, porém como garantia do bom nível dos fascículos, das traduções, das antologias e assim por diante. Imagine o salto que foi dado com essa coleção, principalmente em relação ao acesso a traduções de qualidade, bem feitas e bem anotadas. O Rubinho [Rubens Rodrigues Torres Filho] “inventou” um Nietzsche no Brasil, pela primeira vez ao alcance de um público que não conhecia mais língua estrangeira, e ao alcance da massa de estudantes que os militares estavam colocando nas universidades. E o que iria fazer com essa massa? Filosofia em grego não dava. Foi preciso colocar Platão e Aristóteles na Abril. E isto foi uma revolução (2000, p. 342). É inquestionável a importância de todos os aspectos elencados até aqui, mas compreendemos, contudo, que uma das influências mais marcantes e polêmicas das ressonâncias francesas no estudo da filosofia no Brasil, a partir do pensamento franco- 97 uspiano, foi a prevalência do método estrutural. Por isso, nos deteremos, mesmo que rapidamente, na explicitação desse método. A obra de referência da metodologia estruturalista, trazida para a USP pelos franceses da década de 60, é o texto Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos, de Victor Goldschmidt, apresentada originalmente em Bruxelas, em um Congresso Internacional de Filosofia e publicado no Brasil como apêndice no livro Platão e a religião, do mesmo autor. As palavras-chaves do estruturalismo filosófico são: estrutura interna, interpretação, movimento do pensamento na obra, tempo lógico, tempo histórico, sistema filosófico. Para Goldschmidt existiriam dois métodos diferentes para se interpretar um sistema filosófico: o método dogmático, que pergunta sobre suas verdades e razões, busca abordar uma doutrina conforme a intenção do autor e prioriza o problema da verdade. É considerado filosófico por ser regido por um tempo próprio, interno, que Goldschmidt chama de “tempo lógico”; o método genético, que investiga as origens e as causas, prioriza a etiologia do objeto e o seu contexto exterior. É considerado um método científico que se rege pelo tempo externo. No entanto, nenhum desses dois métodos, isoladamente, atenderia às exigências hegelianas, que defendiam um método que fosse filosófico e científico simultaneamente. Por isso, com o intuito de atender a essa exigência hegeliana, foi que Bréhier, Guéroult e Goldschmidt, historiadores de filosofia, desenvolveram a ideia de “estrutura” nos métodos para leitura e estudo filosóficos. Trata-se de efetivar uma aproximação entre a filosofia e sua história, prevalecendo, portanto, uma historiografia filosófica: É para atender a exigência de cientificidade e relevância filosófica que Goldschmidt propõe então uma terceira opção: um método filosófico e ao mesmo tempo científico, dogmático e genético ao mesmo tempo, não regido pelo tempo histórico, mas por um tempo ‘lógico’. Um método, diz Goldschmidt, que leva em conta as razões e verdades apresentadas pelo autor, mas também suas origens e causas no interior da própria obra. Dessa forma, supõe o historiador francês, o intérprete estaria menos vulnerável a interpretar um sistema pelo seu tempo e origem, a compreendê-lo passando por cima da intenção e estruturação que o autor deu a ela. É na ideia de estrutura que Goldschmidt estrutura a concepção do seu método. Partindo do princípio de que “filosofia é explicitação e discurso”, Goldschmidt se rende ao fato de que a explicitação principia numa intuição original – que chama também de “motor primeiro de um sistema”. Para se tornar explícita, a intuição original passa por uma série de movimentos sucessivos, onde o autor “produz, abandona e ultrapassa teses ligadas 98 umas às outras numa ordem de razões” [...], até que se transforme em um raciocínio encadeado ou em tese ou pensamento explícito. São esses movimentos que devem ser pesquisados porque são eles que dão à ‘obra escrita sua estrutura’ [...]. Compreender uma obra segundo a estrutura que o autor deu a ela, significa, então, que o pesquisador ou intérprete refaça o caminho dos movimentos que o autor percorreu até chegar à tese (Dumas, 2006, p. 19). Mas, a ideia de estrutura como sendo central no estudo das obras filosóficas não se encontrava presente somente na reflexão de Goldschmidt. Já estava presente na tradição francesa e no pensamento filosófico francês de sua época, principalmente em Bréhier e Guéroult, para quem compreender uma obra filosófica implicava em refazer sua estrutura para lhe compreender as razões. Em outras palavras, fazer filosofia é estudar a História da Filosofia. Oswaldo Porchat, aluno e futuro professor da USP, foi o principal incentivador da adesão ao método estrutural. Ele traduziu, prefaciou e publicou, em 1963, o já referido estudo de Goldschmidt, que já se encontrava ensinando na Universidade paulista. Porchat viabilizou, também, a divulgação do material de Guéroult, referente ao tema do método da História da Filosofia. A ideia que norteava esse método, de que fazer filosofia é estudar a história da Filosofia, tornou-se dominante na época entre os discípulos paulistas, como sendo “o momento mais alto da metodologia científica em História da Filosofia, uma jovem disciplina que o método dito ‘estrutural’ afinal elevara à real objetividade das ciências rigorosas e em torno da qual gravitaria o ensino da filosofia entre nós” (Arantes, 2000, p. 17). É precisamente sobre essa predominância do método estrutural no ensino da Filosofia no Brasil, como herança da missão francesa filosófica uspiana, que se desenvolverá diversas críticas por toda a História da Filosofia no Brasil. É importante ressaltar que, apesar da grande importância da influência da missão francesa no que diz respeito à seriedade, criatividade, brilhantismo e profissionalismo das aulas ministradas por Mangüé, na década de 30, e da importância do método estrutural, trazido pela missão francesa, composta pela geração da década de 60, relativamente à instauração de um rigor na leitura e interpretação dos textos filosóficos, é imperativo dizer que existe toda uma leitura crítica em torno dessa influência. Principalmente com relação ao método estrutural. Com relação à influência filosófica francesa, há críticas que indicam que ela teria sido mais uma das influências estrangeiras sobre o nosso modo de filosofar. 99 Mudamos somente de senhores intelectuais, de fontes filosóficas, mas permanece a subserviência de repetir os grandes filósofos vindos de fora. Sílvio Romero foi um dos primeiros pensadores brasileiros a fazer essa crítica, mas essa reflexão continua até hoje na figura de nomes como Roberto Machado, Roberto Gomes, Renato Janine Ribeiro, Oswaldo Porchat, Paulo Arantes, entre outros. Como expressão dessas reflexões críticas, há um grande número de material produzido no país. Um dos mais expressivos e que se tornou antológico é o livro de Roberto Gomes, intitulado sugestivamente Crítica da razão tupiniquim. Para esses filósofos brasileiros (denominação severamente discutida pela academia) teríamos nos moldado ao método estrutural trazido pela missão francesa e faríamos filosofia somente se estudássemos História da Filosofia, inibindo: a criatividade, a autonomia de pensamento, os objetos de reflexão, o material filosófico, etc., o que transforma a Filosofia em uma mera repetição dos pensamentos filosóficos trazidos do exterior e, entre eles, o pensamento francês, que teria decretado o método por excelência para estudar filosofia e que nós, de bom grado, devido à cabeça colonizada, teríamos tomado como a única forma de fazer filosofia. Essa subserviência se mostraria na precária produção acadêmica que consiste em repetir ad infinitum sempre os mesmos temas nas monografias, dissertações e teses. A recusa a uma forma de fazer filosofia que não siga o método estrutural determina a repressão acadêmica à escolha de temáticas não-convencionais, o que empobreceria em demasia as pesquisas filosóficas que, seguindo o método estrutural, compreendem que fazer filosofia é estudar história da filosofia. Há que se considerar a inegável contribuição da missão francesa filosófica não só na USP, mas também em toda a cultura brasileira. A filosofia muito ganhou em rigor, em método, no acesso aos clássicos, em formação de quadros que posteriormente fizeram todo um trabalho de ensino e divulgação da filosofia que norteou várias gerações de diversas áreas do conhecimento. Hoje, se é possível falar em centros de excelência de pesquisa filosófica, muito se deve tributar à contribuição da missão francesa no Brasil desde a década de 30, mormente no que diz respeito à criação da USP. Grandes nomes que foram e são representativos da Filosofia no nosso país foram gestados no ensino uspiano, tais como: Cruz Costa, Lívio Teixeira, Gilda de Mello Souza, José Arthur Giannotti, Oswaldo 100 Porchat, Ruy Fausto, Bento Prado Júnior, Paulo Eduardo Arantes, Marilena Chauí, entre outros, de geração mais recente, mas que também são fruto dessa missão francesa. Até mesmo aqueles que fazem a crítica ao fazer filosofia como História da Filosofia, questionando a centralidade do método estrutural, também são crias da USP e de toda a sua história relativamente à missão francesa filosófica que determinou a prevalência desse método no estudo da Filosofia no Brasil. b) A matriz filosófica cientificista liberal da educação tecnicista O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi fundado em novembro de 1961, por empresários ligados à Escola Superior de Guerra (ESG) e ao Instituto Brasileiro de Ação democrática (IBAD), com o objetivo de combater a mobilização popular e suas organizações culturais e esteve atuante durante quase dez anos do Regime Militar. Outro objetivo era, também, o de fazer oposição às propostas mais avançadas do governo Goulart. Para tanto, o IPES atuou em diversas áreas: Em suas ações ideológicas, social e político-militar, o IPES desenvolvia doutrinação por meio de guerra psicológica fazendo uso dos meios de comunicação de massa como o rádio, a televisão, cartuns e filmes em articulação com órgãos da imprensa, entidades sindicais dos industriais e entidades de representação feminina, agindo no meio estudantil, entre os trabalhadores da indústria, junto aos camponeses, nos partidos e no Congresso, visando a desagregar, em todos esses domínios, as organizações que assumiam a defesa dos interesses populares (Saviani, 2007, p. 339). Contudo, a atuação mais decisiva e de maior repercussão desse instituto foi no âmbito da educação, com a proposta pedagógica em uma perspectiva Tecnicista. Os dois grandes eventos em que foram pensados e propostos os novos rumos educacionais brasileiros, para atender às expectativas dos militares, foram o Simpósio sobre a reforma educacional e o Fórum intitulado “A educação que nos convém”. O Simpósio sobre a reforma educacional, realizado em 1964, tinha o objetivo de discutir uma política educacional que viabilizasse o desenvolvimento econômico e social do país. A partir do documento “Delineamento geral de um plano de educação para a democracia no Brasil”, as discussões foram pensadas a partir do desenvolvimento econômico, tendo por suporte teórico a economia da educação que compreende o investimento no ensino, voltado para o aumento da produtividade e da renda: 101 O texto considerava, então, que a própria escola primária deveria capacitar para a realização de determinada atividade prática. Na sequencia, o ensino médio teria como objetivo a preparação dos profissionais necessários ao desenvolvimento econômico e social do país, de acordo com um diagnóstico da demanda efetiva de mão-deobra qualificada. E, finalmente, ao ensino superior eram atribuídas duas funções básicas: formar a mão-de-obra especializada requerida pelas empresas e preparar os quadros dirigentes do país (Saviani, 2007, p. 340). O Fórum, por sua vez, foi “uma resposta da entidade empresarial à crise educacional escancarada com a tomada das escolas superiores pelos estudantes, em junho de 1968” (Saviani, 2007, p. 341). Nele prevaleceram as mesmas propostas do Simpósio, ou seja, a subordinação da educação aos interesses do desenvolvimento econômico do capital. Outro aspecto importante é a ligação que os empresários brasileiros, via IPES, estabeleceram com os norte-americanos, tanto em termos financeiros quanto ideológicos. Daí os Estados Unidos celebrarem acordo de financiamento da educação brasileira, por intermédio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), que ficou conhecido como o acordo MEC-USAID, balizado pelas diretrizes da economia da educação. Mas o fato é que a grande teoria econômico-filosófica, que norteava todos esses acontecimentos a favor de uma educação tecnicista, era a Teoria do Capital Humano de Theodore Schultz, um liberalismo que se pautava pelos princípios de racionalidade e eficiência com um mínimo de dispêndio e o máximo de produtividade. Os livros de Schultz que traziam essas ideias foram O valor econômico da educação (1963) e O capital humano: investimento em educação e pesquisa (1971), que logo em seguida foram traduzidos no Brasil. Aranha (2006) caracteriza a educação tecnicista defendida no capital humano da seguinte forma: [...] a educação tecnicista encontrava-se imbuída dos ideais de racionalidade, organização, objetividade, eficiência e produtividade. As reuniões de planejamento deveriam definir objetivos instrucionais e operacionais rigorosamente esmiuçados, estabelecendo o ordenamento sequencial das metas a serem atingidas a fim de evitar ‘objetivos vagos’, que dessem margem a interpretações diversas. Nessa perspectiva, o professor é um técnico que, assessorado por outros técnicos e intermediado por recursos técnicos, transmite um conhecimento técnico e objetivo (Aranha, 2006, p. 317). Aranha (2006, p. 316) ressalta, ainda, que também “os pressupostos teóricos do tecnicismo podem ser encontrados na filosofia positivista e na psicologia behaviorista”. 102 Tanto o positivismo quanto o behaviorismo superestimam o valor do conhecimento científico, por ser um conhecimento objetivo e, por isso, passível de verificação, observação e experimentação e quando aplicados à educação, visam ao comportamento. Assim, “coerente com esse princípio, o ensino tecnicista buscava a mudança do comportamento do aluno mediante treinamento, a fim de desenvolver suas habilidades” (Aranha, 2006, p. 316), privilegiando os recursos da tecnologia e as técnicas behavioristas de condicionamento. Segundo Saviani (2007), essa tendência produtivista se alastrou por toda a década de 1970, a todas as escolas do país, por meio da pedagogia tecnicista, “convertida em pedagogia oficial. Já a partir da segunda metade dos anos de 1970, adentrando pelos anos 1980, essa orientação esteve na mira das tendências críticas, mas manteve-se como referência da política educacional” (Saviani, 2007, p. 363). Prossegue vigorando ainda na década de 1990 e, segundo Saviani, marcou profundamente a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional), bem como o Plano Nacional de educação (PNE), de janeiro de 2001. c) A matriz filosófica marxista da Teoria crítico-reprodutivista Na década de 1970, foi criada, no Brasil, a pós-graduação, dentro dos parâmetros da pedagogia tecnicista e do modelo norte americano, com o objetivo de formação de quadros que viabilizassem as metas econômicas e científicas do governo militar. Contudo, por influência dos seus professores originários da Europa e de sua formação mais teórica que técnica, como os americanos, a pós-graduação brasileira conseguiu formar um pensamento mais crítico do que operativo. Dessa forma, “[...] a pós-graduação, refletindo as contradições da sociedade brasileira, acabou constituindose num espaço importante para o desenvolvimento de uma tendência crítica que, embora não predominante, gerou estudos consistentes e significativos sobre a educação” (Saviani, 2007, p. 391). Assim, em plena Ditadura Militar, a tendência hegemônica pedagógica tecnicista, marcada pela vertente filosófica liberal, era acompanhada de uma tendência pedagógica crítica, influenciada pela filosofia e sociologia34 marxistas francesas. Era a 34 “O pensamento pedagógico brasileiro, se é que podemos usar tal expressão, nunca foi dominado pela psicologia ou pela filosofia. O pensamento pedagógico brasileiro sempre foi (da maneira que deve mesmo ser o caso de uma área aplicada como é a educação) o campo de confluência de saberes. Assim é que a sociologia, que já no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, pela influência de Durkheim, 103 tendência crítico-reprodutivista, que teve seu locus privilegiado de reflexão na pósgraduação. Essa denominação foi dada por Saviani, que assim a descreve: Tal denominação se justifica nos seguintes termos: trata-se de uma tendência crítica porque as teorias que a integram postulam não ser possível compreender a educação senão a partir dos seus condicionantes sociais. Empenham-se, pois, em explicar a problemática educacional remetendo-a sempre a seus determinantes objetivos, isto é, à estrutura socioeconômica que condiciona a forma de manifestação do fenômeno educativo. Mas é reprodutivista porque suas análises chegam invariavelmente à conclusão que a função básica da educação é reproduzir as condições sociais vigentes (Saviani, 2007, p. 391). As teorias crítico-reprodutivistas são: teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica; teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Estado; e teoria da escola dualista. A teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica se encontra na obra A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, de 1970, traduzido no Brasil em 1975. A teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Estado está presente no texto do filósofo marxista francês Louis Althusser, também de 1970, intitulado Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. A teoria da escola dualista, por sua vez, se encontra no livro L’école capitaliste em France, de autoria de Christian Baudelot e Roger Establet, de 1971, com tradução parcial brasileira em 1974. Essas teorias inspiraram muitos intelectuais da época que trabalhavam com a educação brasileira. A partir delas foram feitas denúncias de como o regime autoritário manobrava a educação para inculcar a ideologia dominante e reproduzir a estrutura social capitalista. Portanto, (Saviani, 2007; Ghiraldelli, 2009) o mérito da tendência crítico-reprodutivista foi oferecer suporte teórico para a resistência ao autoritarismo, para a crítica à pedagogia tecnicista e para demonstrar a inserção da educação nas relações sociais. Outro grande mérito da tendência crítico-reprodutivista foi, a partir da segunda metade dos anos de 1970, ter referenciado análises críticas da política educacional estava tão presente quanto a filosofia, representada por John Dewey, reapareceu no debate dos anos 1960 e 70. Tratava-se, como no passado, da sociologia francesa e, como no passado, ela surgiu diretamente envolvida com o campo educacional” (Ghiraldelli, 2009, p. 130). 104 brasileira, concebidas em forma de artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado: A visão crítico-reprodutivista desempenhou, pois, um papel importante na década de 1970. Suas análises constituíram-se em armas teóricas utilizadas para fustigar a política educacional do regime militar, que era uma política de ajustamento da escola utilizada como instrumento de controle da sociedade visando a perpetuar as relações de dominação vigentes. Aquelas teorias foram assimiladas com essa finalidade de caráter prático-político. (Saviani, 2007, p. 395). Apesar da importância dessa teoria, ela sofreu algumas críticas por parte de estudiosos. A mais significativa delas foi a de Luiz Antônio Cunha, que também era um estudioso da tendência crítico-reprodutivista. Para Cunha, o aspecto de reprodutivismo da teoria foi fortemente salientado por Saviani, o que “teria levado os educadores ao sentimento de impotência” (Ghiraldelli, 2009, p. 131). Para além das críticas à educação vigente, não eram apresentadas alternativas e a teoria se apresentou como sendo insuficiente. d) A matriz filosófica anarquista de Maurício Tragtenberg Nas décadas de 1970-80, ressurge no Brasil o interesse pela pedagogia libertária que, como visto, deixou uma marca expressiva na Primeira República. A proposta anarquista ressurge com a intenção de criticar e se contrapor à escola formal existente. A grande receptividade dessa oposição teórica também se justificava devido ao fato dela servir para protestar contra o autoritarismo do regime militar, bem como se opor à educação tecnicista. O não-diretivismo de A. S. Neill e o seu livro Liberdade sem medo tiveram uma boa aceitação na comunidade educacional brasileira desse período. A obra relatava a experiência autogestionária da escola-comunidade Summerhill, na Inglaterra, onde os alunos é quem decidiam sobre as regras de seu funcionamento. Segundo Ghiraldelli (2009, p. 125), Erich Fromm externa, em um dos prefácios escrito para aquele livro, o que teria de essencial na experiência não-diretiva daquela experiência educacional: “a escola deveria estar mais voltada para o cuidado com as relações interpessoais e menos preocupada com a problemática da apreensão desta ou aquela matéria escolar em específico”. Nesse sentido, para Neill, a educação deveria ter um só objetivo: a cura da infelicidade (Ghiraldelli, 2009, p. 125). 105 Outro indicador da retomada das ideias libertárias no Brasil foi a publicação, em 1978, do texto Francisco Ferrer e a pedagogia libertária, de autoria de Maurício Tragtenberg, que foi reeditado em 1982, como parte do seu livro Sobre educação, Política e sindicalismo (Gallo, 2007, p. 102). Para Ghiraldelli (2009, p. 133), essa obra “se constituiu em peça-chave para a rearticulação, ou mesmo reconstrução, de uma linha libertária no pensamento pedagógico brasileiro”. Dentre outras questões, o pensamento de Tragtenberg dinamizou críticas à burocratização da escola; promoveu o fortalecimento do marxismo heterodoxo; inseriu a discussão sobre a pedagogia libertária no meio acadêmico, revitalizando, assim, o universo das discussões em torno da liberdade humana, base primordial do anarquismo. Bem como trouxe à luz a discussão em torno de princípios tais como: “autogestão, autonomia do indivíduo, solidariedade operária, autogestão do ensino; tais princípios deveriam se acoplar com educação gratuita e total liberdade sindical” (Ghiraldelli, 2009, p. 134). 4.5. Décadas de 1980-2010: Capital, Razão Instrumental, Redescrição e Diferença De uma forma ampla e generalizada, podemos caracterizar esses paradigmas filosóficos contemporâneos da educação no Brasil como filosofias que põem em xeque algumas das grandes conquistas da modernidade, fazem críticas à modernidade iluminista. Alguns teóricos o fazem de forma mais radical, outros nem tanto. O fato é que a herança iluminista ora é contestada pela sua pretensão universalista, ora é questionada pelos resultados intrumentalizadores da razão. Fonte (2003), em seu artigo Filosofia da educação e “agenda pós-moderna”, coloca algumas indagações centrais que mobilizam a pesquisa educacional na atualidade brasileira a partir desses parâmetros filosóficos: A prática educativa pode se guiar por valores com pretensão de validade universal? É legítimo aspirar uma fundamentação racional para a educação? Quais princípios devem nortear a seleção de conteúdos e métodos de ensino? O discurso pedagógico encontra sentido na malha de crenças de uma cultura ou na realidade objetiva? O projeto de formação de um sujeito livre, responsável e autônomo ainda se sustenta como ideal educativo? (Fonte, 2003, p. 1). No centro dessas perguntas está o questionamento sobre os valores modernos. Para Fonte (2003), uma “parcela significativa do debate contemporâneo na área 106 educacional tangencia, de alguma maneira, o tema da modernidade e da herança iluminista e, não raramente, respostas são dadas em uma perspectiva de educação ‘pós’ moderna”. Para a autora, a “agenda pós-moderna/pós-condição” não se reduz ao pensamento pós-moderno clássico, o Lyotard do final dos anos de 1970 e o Baudrillard de 1990. A questão pós-moderna inclui a perspectiva desses filósofos, mas não se restringem a eles, pois “abarcam outras diferentes perspectivas (multiculturalismo, neopragmatismo, construcionismo social...) que, apesar de suas diferenças [...], são perpassadas por motivações e matrizes filosóficas convergentes e/ou aproximadas” (Fonte, 2003, p. 5). A perspectiva questionadora da modernidade enfatiza a importância da categoria da “diferença”, trabalha com a noção de sujeito descentrado e fragmentado, identifica que as identidades são locais e contingentes. Ou seja, contrariamente ao conhecimento moderno totalizante e universal, afirma a identidade do sujeito em termos de etnia, sexo, representação, etc. (Cf. Fonte, 2003). Severino (1997, 2007), também como um estudioso da filosofia na educação no Brasil, compartilha da mesma posição de Fonte (2003). Nesse sentido, em um artigo intitulado A filosofia da educação no Brasil: círculos hermenêuticos (2007), o autor assevera: Sem dúvida, parece estar superada, na reflexão filosófica mais recente sobre a educação, a visão essencialista da mesma, tanto sob sua versão metafísica quanto sob suas versões teológicas, que estiveram marcando, de modo subjacente, a prática educacional nos períodos colonial e imperial do Brasil. O pensamento filosófico-educacional, que vem se construindo neste século entre nós, se exerce numa perspectiva geral, de fundo antropológico, numa visão totalmente dessacralizada e imanente à realidade humana. Mesmo as concepções ainda influenciadas por suas raizes religiosas ou metafísicas, buscam se expressar atualmente numa perspectiva mais antropológica, retirando de suas coordenadas teóricas as referências ao providencialismo divino ou ao apriorismo metafísico abstrato e idealista. Ninguém mais pretende estar falando de transcendências que norteariam a história real da humanidade, todas as abordagens filosóficas da educação assumem a condição histórica e social da existência humana. Agora a construção da história é responsabilidade exclusiva dos homens: não se trata mais de construir a Cidade de Deus, mas a pólis, a cidade dos homens (Severino, 2007). Para Severino (2007), a produção filosófica sobre educação no Brasil tem se caracterizado por uma crítica desconstrutivista, questionadora dos modelos e paradigmas 107 do conhecimento científico e filosófico fundados na razão. Segundo o autor, os principais pensadores, nos quais essa crítica se apoia, são: Michel Foucault, Derrida, Barthes, Lyotard, Baudrillard, Deleuze e Guattari, “pensadores que são considerados pósmodernos, ou pós-estruturalistas, no sentido que vêm questionando o projeto iluminista da modernidade” (Severino, 2007). Severino (1997) denominou essas correntes filosóficas de arqueogenealógicas, as quais norteiam suas pesquisas filosófico-educacionais em torno dos seguintes temas: a valorização da imanência e do estar no mundo; a desvalorização das questões epistemológicas e antropológicas; a ênfase na denúncia do caráter sistêmico e repressivo dos saberes e aparelhos sociais; a busca da expansão dos afetos e da diluição dos poderes; a revalorização do singular concreto contra a dominação do universal abstrato, normativo e legislador; o questionamento da subjetividade iluminista excessivamente racionalista e a busca de uma subjetividade que privilegie o imaginário, o emocional e o corporal. Dessa forma, pode-se afirmar que os anos de 1990 inauguram novos referenciais filosóficos para a abordagem da questão educacional, mas que não se tornam unânimes, pois continuam a vigorar outros referenciais filosóficos que não eles, como, por exemplo, os da década de 1980, como o marxismo, que aqui, dentre outros, será focado em Saviani. Diversos estudiosos (Ghiraldelli, 2009; Severino, 1997, 2007; Silva, 2002; Pagni & Cavalcanti, 2007; Paraíso, 2004) concordam que as vertentes filosóficas mais expressivas que passaram a influenciar o pensamento educacional brasileiro, a partir da década de 1990 do século XX, e entrando pela primeira década do século XXI, foram: a Escola de Frankfurt; os neopragmatistas norte americanos, principalmente Rorty; e os contemporâneos franceses Foucault e Deleuze. a) A matriz filosófica marxista da Filosofia da Educação de Saviani Para os marxistas da década de 1980, “o papel da filosofia na educação era o de criar uma passagem, através de algo nem sempre bem definido – o ‘método dialético’ – do pensamento do ‘senso comum’ a uma possível ‘consciência filosófica’, que seria capaz de pensar a educação de modo ‘mais concreto’” (Ghiraldelli, 2009, p. 158). (Grifo nosso). O grupo representativo dessa tendência teórica marxista era, e continua com muito vigor até hoje, capitaneado por Dermeval Saviani. 108 O final dos anos 1970 foi marcado por vários fatores que irão consolidar o longo processo de redemocratização do Brasil, que teve início com a chamada Abertura, em 1985. Dentre outros fatores pode-se ressaltar: a Anistia Política; a volta das eleições diretas em 1982, em alguns Estados da federação; a denúncia das atrocidades do autoritarismo militar; o fortalecimento da pós-graduação, criada no início da década de 1970, com a fundação de várias associações, centros de estudo, encontros e o aumento considerável de publicações acadêmicas, inclusive na área da educação35. Foi nesse quadro marcado por fortes contradições políticas que o pensamento marxista no Brasil, no campo da educação, teve uma enorme efervescência, com o nome de Saviani mostrando-se expressivo nesse segmento: O pensamento marxista no Brasil, especificamente no campo pedagógico, ganhou espaço especial e estilo próprio. Não é exagero dizer que ele obteve nos escritos do professor Dermeval Saviani um polo de aglutinação bastante significativo, de modo que podemos até falar de Saviani, pelo menos durante um determinado período, como um criador de escola de pensamento pedagógico (Ghiraldelli, 2009, p. 135). Inicialmente influenciado pela fenomenologia existencialista, Saviani acaba migrando para o marxismo, por considerar esta teoria mais adequada para analisar o momento sócio-político do país. Da mesma maneira, o clima da abertura democrática, em marcha no Brasil, propiciou o desenvolvimento das suas reflexões marxistas. Além da aproximação aos referenciais clássicos do marxismo, Saviani tinha também a preocupação de compreender a realidade brasileira a partir desses parâmetros: Reinterpretando para o caso brasileiro as teorizações do educador francês Georges Snyders e do italiano Mário Manacorda (ambos ligados ao movimento do Eurocomunismo) e, concomitantemente, desenvolvendo uma análise própria da política educacional, da filosofia da educação, da teoria didática e da economia da educação, Saviani provocou um impacto no pensamento pedagógico nacional (Ghiraldelli, 2009, p. 136). Para Saviani, as pedagogias liberais, que ele chamava de não-críticas, e as teorias denominadas por ele de crítico-reprodutivistas estavam distantes de uma educação democrática, sendo necessário recorrer à categoria de luta de classes para uma 35 Dentre outras, pode-se citar: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), em 1977; Centro de Estudos & Educação (Cedes), em 1978; Associação Nacional de Educação (Ande), em 1979. Todas essas três entidades tinham suas respectivas revistas e encontros anuais. 109 compreensão efetiva dos fenômenos educacionais, pois a luta de classes existia também na escola. Segundo Ghiraldelli (2009, p. 136), Saviani redimensionou o trabalho do magistério ao entender a escola como um campo de batalhas político-pedagógicas pela socialização da cultura operária subordinada à cultura hegemônica burguesa. Era necessário, portanto, lutar a favor da hegemonia operária. Inicialmente, Saviani chamou essa proposta de pedagogia revolucionária, e depois passou a ser denominada pedagogia histórico-crítica, tal como apresentada pela primeira vez no livro Escola e democracia. A sua filiação era ao que ele denominou de concepção dialética de Filosofia da Educação brasileira, a partir da qual ela passou a examinar outras áreas da reflexão educacional. Assim, na introdução de seu livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, de 1980, Saviani “desenvolveu o que ele entendia ser os fundamentos epistemológicos implícitos na concepção histórico-crítica, seguindo de um modo particular as diretrizes do texto de Karl Marx [...], O método da economia política” (Ghiraldelli, 2009, p. 138). Saviani (2007) relata com as suas próprias palavras o surgimento da sua pedagogia histórico-crítica: As ideias que vieram a constituir a proposta contra-hegemônica denominada “pedagogia histórico-crítica” remontam às discussões travadas na primeira turma do doutorado em educação da PUC-SP em 1979. A primeira tentativa de sistematização deu-se no artigo “Escola e democracia: para além da teoria da curvatura da vara”, publicado no número 3 da Revista da Ande, em 1982, que, em 1983, veio a integrar o livro Escola e democracia. Esse livro, conforme foi assinalado no prefácio à 35ª edição [...], redigido em agosto de 2002, pode ser lido como o manifesto de lançamento de uma nova teoria pedagógica, uma teoria crítica não-reprodutivista ou, como foi nomeada no ano seguinte após seu lançamento, pedagogia histórico-crítica, proposta em 1984 (Saviani, 2007, p. 418). (Grifo nosso). Saviani (2007) especifica o teor de manifesto do livro Escola e democracia a partir das seguintes ideias centrais: diagnóstico das principais teorias pedagógicas, suas contribuições, limites e a necessidade de uma nova teoria; denúncia do conservadorismo da Escola Nova e a indispensabilidade de uma alternativa superadora; apresentação das características básicas e o encaminhamento metodológico da nova teoria; esclarecimento das condições de sua produção e operação em sociedades em que a política predomina sobre a educação (Saviani, 2007, p. 419). 110 No processo de maturação dessa teoria, outros trabalhos foram sendo gestados e publicados, até que, em 1991, eles apareceram reunidos no livro intitulado Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. A apresentação dessa obra esclarece que aqueles estudos constituíam uma primeira aproximação ao significado da pedagogia histórico-crítica, em plena elaboração processual e coletiva. Numa síntese bastante apertada, pode-se considerar que a pedagogia histórico-crítica é tributária da concepção dialética, especificamente na versão do materialismo histórico, tendo fortes afinidades, no que se refere às suas bases psicológicas, com a psicologia histórico-cultural desenvolvida pela escola de Vigotski. A educação é entendida como o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Em outros termos, isso significa que a educação é entendida como mediação no seio da prática social global. A prática social põe-se, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí decorre um método pedagógico que parte da prática social em que professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando, porém, posições distintas, condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e no encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social. Aos momentos intermediários do método cabe identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse) (Saviani, 2007, pp. 419-420) (Grifos nossos). Dessa forma, fica muito clara a fundamentação teórica da pedagogia históricocrítica. Saviani afirma que: “nos aspectos filosóficos, históricos, econômicos e políticosociais propõe-se explicitamente a seguir as trilhas abertas pelas agudas investigações desenvolvidas por Marx sobre as condições históricas de produção da existência humana que resultaram na forma da sociedade atual dominada pelo capital” (Saviani, 2007, p. 420). Sua proposta é a elaboração de uma concepção pedagógica em consonância com a concepção de mundo e de homem inerente ao materialismo histórico marxista. b) A Escola de Frankfurt no Brasil O questionamento da hegemonia da racionalidade e dos valores da modernidade já estava presente na reflexão crítica dos pensadores da Escola de Frankfurt. Nessa perspectiva, para Freitag (1986, p. 32), três temas são recorrentes na Teoria Crítica: a dialética da razão iluminista e a crítica à ciência; a dupla face da cultura e a discussão da 111 indústria cultural; e a questão do Estado e suas formas de legitimação na moderna sociedade de consumo. No Brasil, a influência da Teoria Crítica vem deste o final da década de 1960, com Marcuse e a contracultura, na perspectiva de que “a herança cultural iluminista da modernidade, fundada na razão e na ciência, se transformava em força de opressão e de alienação” (Severino, 1997, 181). Nos anos de 1970 e 1980, a vertente da Escola de Frankfurt a influenciar o pensamento brasileiro vem diretamente de Adorno, Horkheimer e Benjamin com a questão da produção cultural numa sociedade de massas (Severino, 1997, 183). O terceiro momento da influência frankfurtiana brasileira é da retomada e incorporação da dialética negativa, a partir da perspectiva habermasiana, na qual “se impõe superar o ‘modelo unilateral de racionalidade, comportando unicamente uma dimensão cognitivo-instrumental’” (Severino, 1997, p. 184). É nesse terceiro momento que se encontra uma interface significativa de produção bibliográfica na área de filosofia da educação: “[...] as categorias e perspectivas de abordagem filosófica da Teoria Crítica [...] têm contribuído também para o surgimento de abordagens filosófico-educacionais próprias sobre a condição da educação como prática inserida numa sociedade marcada por profundas mudanças na sua constituição política, econômica e cultural” (Severino, 2007, p. 7). Dentre outros, pode-se citar os seguintes estudiosos brasileiros de Filosofia da Educação que tem tomado o pensamento frankfurtiano como referência: Bruno Pucci; Antônio Alvaro Zuin; Newton-Ramos de Oliveira; Nadja Hermann Prestes; Marilu Fontoura de Medeiros; José Pedro Boufleuer (Ghiraldelli, 2009; Severino, 1997). c) O neopragmatistas rortyana de Paulo Ghiraldelli 36 Paulo Ghiraldelli vem se destacando no cenário brasileiro de estudiosos da Filosofia da Educação com o objetivo acadêmico de aproximar filosofia e educação que, segundo ele, andavam distanciadas desde 1960. Após identificar uma série de limitações dos movimentos marxistas na abordagem filosófica da educação, bem como do 36 Esse trecho é uma parte de um artigo que tem a seguinte referência de publicação: MARINHO, C. M.; ROCHA, V. T. S. A filosofia da educação em Rorty através dos textos de Ghiraldelli. In: Redescrições Revista on-line do GT Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana da ANPOF. Ano 1, n. 3. Suplemento: Memória do 1º. Colóquio Internacional Richard Rorty – 2009. Disponível em: www.redescrições.com 112 pedagogismo que predominava no Brasil, depois de ter feito a crítica à abordagem marxista de Saviani da filosofia da Educação e sua recusa infundada à pósmodernidade, Ghiraldelli se volta para a filosofia que havia marcado seu período inicial de formação, Horkheimer e Adorno e a crítica à metafísica. Essa empreitada foi inspirada por Foucault e por alguns conceitos centrais em seu pensamento: importância do corpo, crítica à subjetividade moderna. Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein também cunharam esse período principalmente pelo antifundacionismo e pela centralidade da linguagem. Contudo, a Velha Escola de Frankfurt via a crise da subjetividade moderna como um subproduto da reificação capitalista, o que fez Ghiraldelli se aproximar da posição do neopragmatismo, que via a crise da noção moderna de indivíduo de forma mais ampla e menos conservadora. Nas palavras do próprio Ghiraldelli: Interessei-me pela literatura filosófica neopragmatista na medida em que ela conseguiu abrir meus olhos para o naturalismo, até então demasiadamente presos a uma teoria social que, dando importância excessiva à noção de reificação, me impedia de um melhor aprofundamento nos problemas metafísicos que, desde o começo dos meus estudos filosóficos, nos anos 1970, eu queria ver equacionados de um modo mais elegante do que até então eles me haviam sido apresentados. O neopragmatismo me possibilitou traçar um quadro mais plausível de um problema intelectual com o qual a Velha Escola de Frankfurt nunca conseguiu lidar de modo razoável, a saber: se não confiamos mais no “sujeito moderno”, se não nos consideramos mais como indivíduos (que é a expressão da filosofia social para a ideia de sujeito moderno), o que devemos colocar no lugar? Que nova descrição das relações entre “nós” e o “mundo” poderia ser assumida, sem deixar de respeitar essa naturalização inevitável de toda e qualquer descrição filosófica que os nossos tempos, a época pósmetafísica, nos vinha solicitando? (2001, pp. 77-78). E foi dessa forma que o neopragmatismo chegou a Ghiraldelli: trazido pelas mãos de Rorty e sem qualquer pretensão de reconstruir o sujeito como ponto arquimediano metafísico. O neopragmatismo se propunha a tratar da subjetividade não por uma “metafísica da subjetividade” com predomínio epistemológico e fundacionista, mas o sujeito “como uma auto-imagem de nós mesmos na relação com o mundo” (2001, p. 78). Ou seja, uma redescrição do sujeito metafísico moderno que possibilite uma “imagem de como acontece a interação entre ‘nós’ e o ‘mundo’” (idem). Esse procedimento redescritivo neopragmático, diz Ghiraldelli, foi um enorme ganho filosófico, pois possibilitou mais coerência à filosofia contemporânea em crise 113 depois das críticas feitas à metafísica pela ciência, por Nietzsche, por Wittgenstein e por Quine à filosofia analítica: Além disso, para a satisfação de meu gosto pessoal – e isto me impulsionou a voltar com mais motivação à filosofia da educação – o neopragamatismo, em sua visão “fisicalista não-redutivista”, ofereceu impulso para novas teorias educacionais – teorias que eu via como mais condizentes com os nossos tempos e, talvez, mais capazes de desafiar os problemas postos por um mundo que, de alguns anos para cá, às vezes, temos chamado mundo pós-moderno, atendendo à denominação de Lyotard para uma época de “descrença nas metanarrativas modernas” (Ghiraldelli, 2001, p. 80). Outro conceito central presente no neopragamtismo rortyano e utilizado por Ghiraldelli para as reflexões filosófico-educacionais é o conceito deflacionista de verdade. Essa concepção de verdade neopragmática rortyana é holística, naturalista, anti-representacional e historicista. A descrição holística rortyana possibilita ao filósofo político prescindir do fundacionismo iluminista presente no liberalismo naturalista. Ou seja, ficamos libertos de qualquer teoria que nos impõe sermos liberais ou conservadores devido a uma certa Verdade que nos constitui: Não temos de ser conservadores. Seremos apenas aquilo que conseguirmos ser a partir das nossas descrições do mundo e de nós mesmos. [...]. Não tendo mais nenhuma noção de natureza de caráter essencialista, finalmente podemos usar nosso comportamento linguístico livremente (Ghiraldelli, 2001, pp. 123-124). Para Rorty, portanto, há uma fusão entre filosofia e filosofia política. Assim, “fazer filosofia é promover redescrições da filosofia. Fazer filosofia política é promover redescrições das relações sociais e políticas” (Ghiraldelli, 2001, p. 125). Nesse sentido, os novos movimentos sociais e as suas novas metáforas (“black is beautiful” e “gay is good”) são representativos dessas redescrições relacionais e antiessencialistas (Ghiraldelli, 2001, p. 126 e ss). É dessa forma que a teoria naturalista não-reducionista do neopragamatismo explica como o homem se relaciona com o meio ambiente sem recorrer a essencialismos, e, por isso, pode-se pensar que: [o] homem, não tendo essência, é aquilo que ele se dispuser a ser, e que sua capacidade de criar linguagens e posturas adequadas a essas linguagens é infinita. Assim, podemos nos motivar a acreditar que na Terra, se tivermos sorte, encontraremos sempre muitas pessoas suficientemente motiváveis e motivadas a alterar suas crenças e comportamentos a partir de convencimentos racionais, em vez de pela força (Ghiraldelli, 2001, p. 127). 114 É essa perspectiva que acentua o caráter íntimo da filosofia rortyana com a educação: “O homem assim visto é infinitamente educável” (2001, p. 127). Há uma simbiose da filosofia rortyana com a filosofia da educação: A filosofia, para Rorty, torna-se, no máximo, um instrumento para sugerir soluções para problemas contingentes, e no geral a confecção de narrativas que se envolvem na solução de novos problemas – gerando outros, inclusive! E ela é uma filosofia da educação, em um sentido lato, na medida em que, a cada problema que enfrenta, o faz a partir da crença de que, se tivermos sorte, muita gente há de se convencer da nossa solução através de educação (convencimento racional) e não através da força (convencimento não racional) (2001, p. 128) (Grifos nossos). As reflexões de Paulo Ghiraldelli em torno da influência rortyana na teoria da educação teve um papel central aqui, não por ele ser o único no cenário brasileiro, mas por ser uma figura extremamente expressiva na sua produção intelectual e se mostrar, de fato, um grande divulgador das ideias rortyanas no Brasil. Assim, além desse filósofo, merece destaque a filósofa Suzana de Castro, com uma expressiva produção bibliográfica e uma atividade significativa de divulgação do pensamento neopragmático norte americano, sendo atualmente coordenadora do GT-Pragmatismo da ANPOF e editora da revista Redescrições, juntamente com Paulo Ghiraldelli. Os nomes de Altair Alberto Fávero e Etinete A. do Nascimento Gonçalves também tem se projetado na pesquisa do pensamento rortyano em torno da educação. d) A Filosofia da Diferença francesa deleuzeana e foucaulteana no Brasil Os filósofos brasileiros se referem com diversas denominações à filosofia francesa contemporânea de Foucault e Deleuze, dentre outros, pode-se apontar as seguintes: arquegenealógica (Severino, 1997); pós-moderna (Fonte, 2003); pós-crítica, pós-estruturalista (Silva, 2002); filosofia da diferença (Gallo, 2003); neo-estruturalista (Ghiraldelli, 2009). Contudo, todas essas denominações são sinônimas e, apesar de diferenciações conceituais, significam uma recusa à identidade e do universal abstrato e uma busca da multiplicidade do singular. Paraíso (2004), no artigo intitulado Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um mapa, oferece uma ideia bastante clara do início da intercessão Foucault/Deleuze e educação: Tracei um marco: o início de apresentação de trabalhos que adotam perspectivas pós-críticas na ANPEd em 1993, e analisei todo o 115 percurso até 2003. Até 1992 não encontrei nas programações da ANPEd referências às questões colocadas pelas teorias pós-críticas. Em 1993, na 16ª Reunião Anual da Associação, dois trabalhos são apresentados (Silva, [...]; Santos [...]). O primeiro, discute as questões centrais do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista, mostrando as continuidades e as rupturas em relação à pedagogia e à sociologia críticas. O segundo, por sua vez, discute as relações entre poder e conhecimento com base na noção poder-saber de Michel Foucault (Paraíso, 2004, p. 285). Os trabalhos aos quais a autora faz referencia são: “Sociologia da educação e pedagogia crítica em tempos pós-modernos”, apresentado por Tomaz Tadeu da Silva e baseado em Deleuze, e “Poder e conhecimento: a constituição do saber pedagógico”, apresentado por Lucíola Licínio de C. P. Santos e baseado em Foucault. Da mesma forma, o artigo “Construtivismo pedagógico como significado transcendental do currículo”, de 1994, de Sandra Corazza e inspirado em Derrida, é também um marco na emergência dos estudos pós-críticos no Brasil. E no dizer de Paraíso (2004): “Desde então, trabalhos que adotam perspectivas pós-críticas expandiram, contagiaram, proliferam”. Paraíso (2004) identifica outro marco para o momento inaugural da filosofia pós-crítica e sua influência no pensamento educacional brasileiro. Trata-se da publicação do livro Teorias educacionais críticas em tempos pós-modernos, em 1994, organizado por Tomaz Tadeu da Silva. O livro se constituiu de oito ensaios versando sobre o debate das relações entre o pós-modernismo e a teoria educacional e revisa “as contribuições de autores como Baudrilhard, Derrida, Foucault, Lyotard, Rorty, entre outros, os ensaios mapearam as diferentes formas pelas quais o questionamento pósmoderno e pós-estrutural afeta o pensamento crítico em educação” (Paraíso, 2004, p. 285). No ensaio de Tomaz Tadeu, entre outras coisas, ele avalia os limites e um considerável esgotamento da teoria crítica, principalmente a de viés marxista, o que implicaria na necessidade de novos paradigmas filosóficos para a interpretação dos processos educacionais. É, então, que aponta os princípios da teoria pós-crítica e da filosofia da diferença deleuziana como novos referenciais contra-hegemônicos para se pensar a educação. Alfredo Veiga-Neto é outro nome importante no surgimento desses novos referenciais teóricos pós-modernos na educação. É um estudioso de Foucault e do neoestruturalismo. O seu artigo “Foucault e Educação: outros estudos foucaultianos” é 116 representativo no Brasil. Tal artigo foi publicado em uma coletânea expressiva do pensamento filosófico educacional baseado em Foucault, O sujeito da educação, organizada por Tomaz Tadeu da Silva, de 1994. Dois nomes cearenses também são significativos na recepção e divulgação e produção de ideias deleuzianas: Daniel Lins e Sylvio Gadelha. Daniel Lins é estudioso de Nietzsche e Deleuze, tem diversas obras publicadas nessa área, fez seu pósdoutorado com Jaques Ranciére, na França e, através do Simpósio Internacional de Filosofia Nietzsche e Deleuze, tem atuado de forma expressiva na divulgação desses referenciais teóricos. O artigo “Mangue’s school ou por uma pedagogia rizomática”, segundo o autor, traz a seguinte proposta: Uma pedagogia rizomática, que tem como axioma primordial uma ciência nômade ou itinerante está inserida na ética e na estética da existência, na imanência, pois como vida emerge como pura resistência, puro devir. Eis um dos eixos do projeto de uma escola inserida numa dinâmica do rizoma: resistir, infectar e vitalizar o instituído (Lins, 2005, p. 1229). Sylvio Gadelha, por sua vez, recentemente é que tem se dedicado às conexões entre a filosofia deleuziana e a educação. Seus escritos anteriores seguiram a trilha foucaultiana nessa intercessão. Na sua tese de doutorado, na Universidade Federal do Ceará, já se dedicou a pesquisar essa vertente: Educação e subjetivação: elementos para uma escuta extemporânea. Sua produção bibliográfica também é substantiva nesse aspecto: Subjetividade e menor-idade: acompanhando o devir dos profissionais do social (1998); Biopolítica, Governamenalidade e Educação: introduções e conexões a partir de Michel Foucault (2009). Nos últimos tempos, o autor tem se dedicado a pesquisar sobre a cultura do empreendedorismo na educação, tomando conceitos foucaultianos e deleuzianos, tais como governamentalidade, biopolítica e sociedade do controle. Walter Omar Kohan, argentino naturalizado brasileiro, trabalha principalmente nas áreas de filosofia da educação, filosofia para crianças e ensino de filosofia. Dedicase também a vários projetos voltados para a formação de professores de filosofia. Seus principais referenciais filosóficos são Deleuze, Foucault e Ranciére e as categorias mais presentes em seus escritos são as categorias da Diferença, infância, subjetivação e ensino/aprendizagem, que recebem uma abordagem filosófica a partir da postura crítica sobre a modernidade racionalista. Tem uma vasta produção bibliográfica, entre livros, artigos e coletâneas organizadas por ele, da qual ressaltamos a Coleção Filosofia na 117 Escola, com seis títulos37, organizados por ele em parceria com outros estudiosos, que muito tem contribuído para os professores de filosofia no Brasil nessa nova perspectiva pós-crítica de abordagem do ensino de Filosofia. Salientamos que a importância dessa coleção se dá, primeiro, pela abordagem filosófica da categoria da infância, e, segundo, com a teorização sobre o ensino da filosofia, dois assuntos praticamente ausente na cena brasileira da Filosofia da Educação. Silvio Gallo é outro filósofo de peso e imprescindível nesse universo de teorizações pós-modernas ligadas à educação. Inicialmente, enveredou pelas trilhas do anarquismo, depois seguiu o caminho de Foucault e atualmente investiga o ideário deleuziano, sempre na perspectiva de relacionar essas filosofias com a educação. Como publicações significativas desses marcos filosóficos por quais passou, pode-se indicar: O livro Pedagogia Libertária: anarquistas, anarquismos e educação (2007); o artigo “Repensar a Educação: Foucault”, publicado no número 1 da revista Filosofia, Sociedade e Educação,” ; e mais recentemente Deleuze & a educação (2003). Em todos os seus escritos há uma preocupação com o aprofundamento do diálogo entre a Filosofia e a Educação, principalmente as filosofias de Foucault, Nietzsche e Deleuze e os conceitos diferença, poder, verdade, saber e suas interferências no universo pedagógico. Esse breve traçado de mapeamento da influência filosófica sobre a educação no Brasil contemporâneo é, obviamente, delimitado pelos objetivos da pesquisa aqui em curso, portanto, ele é maleável e processual. Nesse sentido, deleuzianamente, roubo aqui as palavras de Paraíso (2004) ao abrir seu artigo Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um mapa, no qual a autora expressa tão bem esse devir: Um mapa, segundo Deleuze [...], é aberto, conectável, composto de diferentes linhas, suscetível de receber modificações constantemente. Isso significa dizer que um campo que está sendo mapeado não se encontra fechado, acabado. Ele está sempre aberto a outras construções e significações. Nesse sentido, enquanto faço esse esboço de mapa, as pesquisas pós-críticas em educação no Brasil estão movimentando-se, e podem estar fazendo outros contornos e atribuindo outros sentidos às questões educacionais brasileiras (Paraíso, 2004, p. 284). 37 Os títulos que compõe essa coleção são os seguintes: Filosofia para crianças: A tentativa pioneira de Matthew Lipman, Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch (orgs.); Filosofia para criança na prática escolar, Walter Omar Kohan e Vera Waksman (orgs.); Filosofia e infância: Possibilidade de um encontro, Walter Omar Kohan e David Kennedy (orgs.); Filosofia para criança em debate, Walter Omar Kohan e Bernardina Leal (orgs); Filosofia na escola pública, Walter Omar Kohan, Bernardina Leal e Álvaro Ribeiro (orgs); Filosofia no ensino médio, Walter Omar Kohan e Silvio Gallo (orgs); 118 Dessa forma, esse breve mapeamento da influência filosófica sobre a educação no Brasil é, obviamente, delimitado, portanto, maleável e processual, mas cumpre o objetivo de realçar os contornos, nem sempre reconhecidos, das matrizes filosóficas na educação brasileira a partir de sua multiplicidade, heterogeneidade e força de animação das práticas e teorias educativas. As matrizes filosóficas da educação brasileira não fizeram um percurso linear e progressivo. Pelo contrário, variaram em seu movimento entre idas e vindas, fortalecimentos e fragilidades, recuperações e perdas definitivas, simultaneidades e solidões. Assim, esse breve histórico não se pretende definitivo e muito menos exaustivo, pois tanto a influência recebida é transformada quanto o seu fluxo é contínuo. A trajetória continua. Nesse contexto, se a Filosofia sempre foi uma influência presente na prática e na teoria educacionais brasileiras desde o século XVI, a Filosofia da Educação, por sua vez, como um campo de saber específico somente foi se delineando, no Brasil, no início do século XX, como veremos a seguir. 119 CAPÍTULO 2 – FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL A influência das matrizes filosóficas na educação em terras brasileiras não representou ou produziu, desde o seu início, uma Filosofia da Educação como pensamento sistematizado, o que só aconteceu muito tardiamente. Mais especificamente, na década de 1930. Dessa forma, o presente capítulo se propõe a fazer uma breve exposição dessa trajetória de constituição da Filosofia da Educação como campo de saber específico em terras brasileiras, a partir de uma retomada do histórico europeu, bem como apresentar três obras consideradas representativas da Filosofia da Educação, no Brasil, em seu percurso constitutivo: Pequena introdução à filosofia da educação – a escola progressiva ou a transformação da escola, de Anísio Teixeira; Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire; Escola e democracia, de Dermeval Saviani. 1. Breve histórico da Filosofia da Educação no Brasil A educação esteve presente como objeto de reflexão desde o início da Filosofia. Por vezes como reflexão central, por vezes como categoria subjacente. Segundo Tomazetti (2003, p. 15), “a relação da Filosofia com a educação é, portanto, muito antiga. Ela nasce com a própria filosofia, enquanto uma preocupação com a formação do homem – paidéia”. Este conceito vai se modificando historicamente e se reveste de várias denominações que expressam as respectivas épocas e as reflexões filosóficas aí constituídas. Assim, além da paidéia grega, temos a humanitas, na Renascença, a Bildung, no Iluminismo e um novo conceito contemporâneo ainda não definido, mas que questiona a ideia central presente nesses outros conceitos, o de formação humana. Ao longo desse processo histórico, diversos filósofos imprimiram sua marca reflexiva nesses conceitos, através de diversas obras que marcaram a trajetória do conceito de formação humana, nas quais foram se desdobrando e dando origem a outros conceitos filosóficos educacionais. Contudo, por muito tempo, a Filosofia da Educação não foi tida como uma reflexão mais sistematizada e de composição mais autônoma. Para o filósofo alemão Herbart (1776-1841), por exemplo, a pedagogia seria uma ciência filosófica voltada para a formação integral do homem harmônico e responsável. A Pedagogia, assim, estaria pautada em uma cientificidade filosófica que conjuga teoria, 120 prática, ciência e arte em uma reflexão filosófica voltada para uma filosofia prática (Tomazetti, 2003, p. 22). Da mesma forma, Na França, até o final do século XIX e início do século XX, a filosofia da Educação esteve associada à Pedagogia geral; o saber filosófico sobre educação era parte integrante dos estudos de Pedagogia. Para exemplificar, Nanine Charbonell afirma que Marion, em sua lição de abertura em 1883, na Sorbonne, utilizou, indiferentemente de uma linha a outra, expressões: filosofia da educação, ciência da educação, pedagogia, pedagogia geral, pedagogia filosófica. Da mesma forma Compayré, em suas obras, utilizava como sinônimos as expressões teoria racional da educação, pedagogia científica, Filosofia da Educação (Tomazetti, 2003, p. 21). Tomazetti, em seu excelente estudo Filosofia da Educação – um estudo sobre a História da Disciplina no Brasil (2003, p. 21), acrescenta, ainda, que na França, durante o século XX, até a década de 1970, a expressão Pedagogia Geral era utilizada como sinônimo de Filosofia da Educação. Para Lorenzo Luzuriaga, importante educador espanhol, a Filosofia da Educação era uma pedagogia teórica que poderia ser chamada de pedagogia Filosófica e que se configurava como uma continuidade da tradição filosófico-pedagógica do final do século XVIII e início do século XIX, a partir das reflexões de filósofos como Kant, Fichte, Scheling, Schleiermacher, Herbart, Nietzsche, Schopenhauer e Dilthey. Assim, para Luzuriaga, a pedagogia, enquanto filosofia da educação, toma da filosofia geral os fundamentos últimos da vida, do homem, do conhecimento e do saber e procura realizálos na prática educativa. Na Itália, também, o filósofo neo-hegeliano Giovanni Gentile, reagindo à concepção naturalista, também compreendia e defendia o primado da Filosofia na pedagogia (Tomazetti, 2003, p. 23). Dessa forma, foi a importância que teve os fundamentos da Filosofia para a constituição da Pedagogia que aproximou estes dois universos teóricos e deixou para a Filosofia da Educação o legado de um conjunto de saberes relacionados à prática educativa. Somente quando a Pedagogia deixa de se sustentar nos fundamentos filosóficos, em uma busca de totalidade científica, é que a Filosofia da Educação se torna autônoma como pensamento mais sistematizado: A filosofia era considerada um saber fundamental na constituição dos estudos pedagógicos e, mesmo, da ciência pedagógica, entendendo-se ciência como a expressão máxima da Filosofia. Por isso a indistinção gerada com o uso dos termos filosofia pedagógica, pedagogia teórica e pedagogia deixaria, como herança, à Filosofia da educação, a característica de saber-síntese, no conjunto dos diferentes saberes considerados importantes para a reflexão sobre a educação e para a 121 formação de professores. Quando a Pedagogia, enquanto resultado de um conjunto de saberes, se extinguiu, a expressão Filosofia da Educação passou a ser utilizada (Tomazetti, 2003, p. 24). Ou seja, foi o abandono do discurso filosófico como fundamento principal do saber pedagógico que possibilitou a constituição das ciências da educação e fez com que a Filosofia da Educação se sistematizasse com um discurso próprio, mas inferior. Essa hierarquia se impõe no século XX, quando o Positivismo inaugura uma diferenciação entre “um discurso científico sobre a educação, representado pela Pedagogia (científica), e um discurso generalista/totalizante sobre a educação: o discurso filosófico sobre a educação” (Tomazetti, 2003, pp. 25, 28). Dessa forma, a Pedagogia tornou-se uma ciência experimental orientada pelas disciplinas humanas e sociais empíricas, e se distanciou da filosofia normativa da educação e da pedagogia tradicional. A partir daí, “a reflexão filosófica, considerada até então como uma Pedagogia Geral, começava a ser classificada como menos importante que uma reflexão científica sobre a educação, a partir da emergência das ciências da educação como a Biologia, a Psicologia, e a Sociologia” (Tomazetti, 2003, p. 28). O resultado foi a separação entre o discurso pedagógico e o discurso filosófico, bem como o rebaixamento deste último a discurso pré-científico, lugar inferior para quem já tinha sido fundamento do primeiro. Durkheim foi, em grande parte, o responsável pela cientificização sociológica do discurso da educação e do rebaixamento do conhecimento filosófico. Para ele haveria uma hierarquia nos campos de saber, na qual História da Educação, Psicologia da Educação e Sociologia da Educação são consideradas ciências da Educação, mas Filosofia não é considerada como ciência. Dessa forma, a Sociologia seria o saber legítimo para se pensar a educação, pois esta é obra da sociedade. Assim, “ao situar o discurso pedagógico no campo sociológico, um campo científico e, por isso, qualificado e competente, Durkheim retira da Filosofia a condição de saber-fundamento da educação” (Tomazetti, 2003, p. 28). Para esse pensador, as teorias pedagógicas baseadas na reflexão filosófica seriam especulativas e sem objetividade, pois visavam como deveria ser a educação e não como a educação é. A Sociologia é que era a ciência legítima para a análise da educação, com a Psicologia e a História como ciências auxiliares. Nesse âmbito, [...] a Filosofia foi excluída do discurso educacional ou considerada saber de menor importância. As temáticas da educação, a partir de 122 então, seriam objetos das diferentes ciências da educação e a Filosofia, com a perda de sua hegemonia, passaria a disputar espaço para proferir o seu discurso sobre a educação (Tomazetti, 2003, p. 30). A valorização da Filosofia da Educação, segundo Tomazetti (2003, p. 34), juntamente com a Psicologia, a Sociologia e a História da Educação, ocorreu na década de 1960, na Inglaterra, onde professores, premidos pela sobrecarga do ensino de todo o conteúdo dessas disciplinas desde o início do século XX, se articularam na defesa de um ensino mais específico de cada uma dessas matérias. Dessa luta resultou um enorme desenvolvimento da Filosofia e da Sociologia da Educação no campo da Filosofia Analítica. A Filosofia da Educação, por sua vez, “abandonou o estudo do pensamento e da vida dos grandes educadores para se fixar de maneira metódica e meticulosa, [...], sobre o exame dos conceitos e das questões éticas e epistemológicas no coração da empresa educativa” (Tomazetti, 2003, p. 35). Contudo, posteriormente, nos meios educacionais ingleses, houve um forte movimento de crítica sobre os desdobramentos dessa abordagem analítica da Filosofia da Educação, posto que ela teria se tornado extremamente distanciada da prática educativa e docente. Dessa nova realidade, resultou um movimento que reivindicava uma volta às questões mais ligadas à prática educativa (Conf. Tomazetti, 2003, pp. 34 a 37). No Brasil, na perspectiva de uma construção disciplinar da Filosofia da Educação, a relação da Filosofia com a Educação faz o mesmo percurso europeu, ou seja, primeiramente apresenta-se como “um saber conjugado com a Pedagogia Geral e, mais tarde, enquanto disciplina autônoma, vinculada à cadeira História e Filosofia da Educação” (Tomazetti, 2003, p. 42). Em nosso país, a Revista de Ensino (1902 a 1918), da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, é considerada por Tomazetti como representativa dos “debates acerca da cientificidade do discurso educacional e a relação entre as ciências da educação e a Filosofia da Educação” (2003, p. 38). Por um lado, a Pedagogia científica criticava na Pedagogia tradicional a falta de fundamentação científica, a ausência de atividades práticas, a erudição supérflua e o enciclopedismo inútil. Pode-se afirmar que a temática sobre a cientificidade pedagógica estava ligada ao surgimento das ideias de formação para a vida e do aprendizado a partir da prática que caracterizavam a Escola Nova. Por sua vez, aqueles “conhecimentos que 123 sustentavam a cientificidade do discurso pedagógico provinham do conhecimento físico propiciado pela Biologia e do conhecimento psicológico propiciado pela Psicologia, todos voltados para a criança” (Tomazetti, 2003, p. 39). Por outro lado, a Filosofia da Educação tornou-se um saber independente com a consolidação das ciências da educação, deixando de se identificar com a Pedagogia teórica ou Pedagogia filosófica, mas trazendo como herança algumas de suas principais características, tais como a preocupação com a história das ideias da educação dos grandes filósofos e suas concepções de homem, de conhecimento e de valor. Assim, caberia, então, à Filosofia da Educação a reflexão sobre os fins e os valores da educação, a partir de uma determinada teoria filosóficopedagógica. Permaneceria sua caracterização como um saber teórico e especulativo, de menor importância em relação ao saber científico da educação (Tomazetti, 2003, p. 41). No contexto do avanço das ciências da educação, o interesse da Filosofia da Educação eram as ideias sobre educação dos filósofos como, por exemplo, Platão, Locke, Rousseau, Kant, e o conhecimento dos principais sistemas filosóficos, dos quais se deduziam os conceitos de educação, de homem, de escola etc. Já o objetivo principal da disciplina Filosofia da Educação, nesse contexto, passou a ser “a definição dos fins que deveriam ser alcançados pelo processo educativo e os valores que deveriam ser transmitidos aos alunos” (Tomazetti, 2003, p. 191). Dessa forma, a disciplina se transformou em uma reflexão abrangente sobre educação, indo muito além da instrução das teorias psicológicas e da moralização social proposta pela Sociologia (Cf. Tomazetti, 2003, p. 191). Quanto ao ensino da Filosofia da Educação na tradição educacional brasileira, é possível afirmar que transcorreu, prioritariamente, a partir do estudo das ideias sobre educação de importantes filósofos no contexto da história da Filosofia. O professor, partindo de seus conhecimentos em História e Filosofia, aproximava as duas áreas e definia os conteúdos a serem ensinados a partir de uma dimensão histórica da Filosofia que, por sua vez, era complementada pelo estudo de pensadores clássicos e das principais correntes filosóficas. Assim, a Filosofia da Educação era a apresentação do pensamento dos filósofos e suas ideias acerca da educação e ensinar Filosofia da Educação era descrever a história desse pensamento educacional/filosófico, extraindo daí as temáticas características do saber filosófico da educação (a ética, a estética, o 124 homem, o conhecimento, os valores e os fins) e sua relação com a educação (Cf. Tomazetti, 2003, pp. 196-197). Assim, assevera Tomazetti: [...] conceitos clássicos de educação, educação e ciência, natureza do ato pedagógico, fins e valores da educação, possibilidades da educação e correntes da Filosofia da Educação, entre outros, marcaram, em grande medida, a tradição dos estudos de Filosofia da Educação [no Brasil] (Tomazetti, p. 249). Já o perfil que foi se delineando na constituição da cadeira de História e Filosofia da Educação mostrou que saber filosófico e saber histórico eram indissociáveis na compreensão das questões educacionais e da concepção de educação como formação geral do homem e da cultura, mas não dos métodos e técnicas para a eficiência do ensino (Cf. Tomazetti, 2003, p. 197-198). A Filosofia da Educação, por sua vez, era um estudo sobre as ideias dos grandes filósofos da educação, situadas na História da Educação e na Pedagogia, demonstrando que os limites entre um saber e outro eram muito tênues. Atualmente houve um redimensionamento desses estudos, ficando mais demarcados os limites entre História da Educação e Filosofia da Educação (Cf. Tomazetti, 2003, p. 196). As disciplinas Filosofia da Educação e História da Educação eram tidas como estruturantes do curso de Pedagogia, no qual a História da Filosofia acompanhava a História da Educação e vice versa: A justificativa para tal complementariedade de saberes estava na compreensão de que a ideia de formação era a espinha dorsal dos cursos de Pedagogia. Concebia-se formação nos moldes da Paideia grega ou da Bildung, no modelo alemão. A História da Educação era concebida como história da cultura, história dos grandes ideais da formação humana (Tomazetti, 2003, p. 198). Por muito tempo a disciplina Filosofia da Educação não teve autonomia de existência, pois pertencia à cadeira de História e Filosofia da Educação. Somente a partir dos anos 30, com o escolanovismo, passou a integrar o currículo da escola normal como disciplina independente: em 1932, na reforma do sistema educacional do Distrito Federal; em 1933, na reforma do Instituto de Educação de São Paulo; em 1943 no Instituto de Educação Flores da Cunha, no Rio Grande do Sul. Para Tomazetti (2003, p. 64), deve-se esse pioneirismo a Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, grandes expoentes do movimento renovador. Assim: O ideário escolanovista, em sentido amplo, possibilitou e sustentou o surgimento e a institucionalização da disciplina Filosofia da Educação no contexto das reformas das escolas normais, a partir dos anos 30 e 125 de uma nova concepção de educação, de escola, de aluno, de conhecimento, etc. Ganhava espaço, gradativamente, o campo da Filosofia da Educação. Em seu interior passaram a ocorrer as disputas entre filósofos da educação de orientação pragmática, norte-americana e os filósofos da educação com tradição católica/tomista e, de forma geral, francesa/alemã, pela definição e orientação de teorias e práticas educacionais (Tomazetti, 2003, p. 90-91). Contudo, se o objetivo de Tomazetti é compreender historicamente “o percurso do saber filosófico sobre educação no campo educacional, mais tarde institucionalizado como disciplina denominada Filosofia da Educação, no ensino normal e no curso de Pedagogia de universidades brasileiras” (Tomazetti, 2003, p. 145), o objetivo do presente capítulo é destacar três obras brasileiras que, segundo a nossa compreensão, simbolizam o período de sistematização de um pensamento filosófico educacional no Brasil. Assim, dentre as diversas fases da trajetória da construção disciplinar da Filosofia da Educação no Brasil analisadas por Tomazetti, destacamos três importantes momentos que são significativos para o desenvolvimento da presente pesquisa, com o objetivo refletir sobre a Filosofia da Educação, em sua análise e produção filosóficas. São eles: institucionalização na universidade com os estudos de Filosofia da Educação feitos pela Escola Nova, com Anísio Teixeira, nas décadas de 1920-30; predominância da relação entre História e Filosofia na disciplina e produção bibliográfica da Filosofia da Educação, entre os anos 1940-1960; problematização da identidade da Filosofia da Educação e seu objeto de estudo a partir da fragilização do marxismo, em virtude das reordenações mundiais, como referencial dominante no final dos anos 1980 e durante os anos de 1990 (Cf. Tomazetti, 2003, pp. 42,43 e 196). Esses momentos são importantes e fundamentais para o percurso do presente trabalho, considerando que houve três pensadores e três grandes obras que foram fundamentais na elaboração de um pensamento sobre Filosofia da Educação no Brasil: Anísio Teixeira, com Pequena introdução à filosofia da educação – a escola progressiva ou a transformação da escola (1934); Paulo Freire, com Pedagogia do oprimido (1968); e Dermeval Saviani, com Escola e democracia (1983). A produção filosófica dos três pensadores citados foi norteada por distintas orientações filosóficas: Anísio Teixeira foi marcadamente inspirado pelo pragmatismo norte americano de Dewey; Paulo Freire teve uma variada influência filosófica, fruto de uma confluência de diversos pensadores, mas nitidamente marcado pelo existencialismo 126 cristão e uma aproximação da filosofia dialética e do marxismo sem, contudo, significar adesão ao marxismo; Dermeval Saviani, por sua vez, assume explicitamente que seu referencial filosófico é a dialética marxista. 2. Anísio Teixeira: pioneirismo e modernidade na Filosofia da Educação Nos anos 1930, por intermédio de educadores e intelectuais, principalmente, Fernando Azevedo e Anísio Teixeira, a Filosofia da Educação se institucionalizou como disciplina de formação pedagógica. Assim, quando esta disciplina entrou no currículo dos cursos normais, através das Reformas, as temáticas mais presentes eram as que faziam parte do universo filosófico escolanovista: “experiência, vida, democracia, auto atividade, liberdade, autoridade, as quais tinham o sentido de possibilitar a compreensão, em última instância, dos fins e dos valores da educação nova” (Tomazetti, 2003, p. 75). Todavia, não é possível generalizar que todos os programas de Filosofia da Educação de escola normal do país, na época, seguiram a orientação pragmatista de estudos da escola nova e as questões relativas à sua filosofia. Tomazetti averiguou que em outros institutos ocorria uma orientação nos moldes da História da Filosofia tradicional/europeia, bem como a inexistência de conteúdos relativos à filosofia da escola nova, do pragmatismo de Dewey ou mesmo de temáticas escolanovistas (Cf. Tomazetti, 2003, p. 76). Dessa forma, A institucionalização da disciplina Filosofia da Educação no ensino normal, portanto, ocorreu somente nos anos 30 do século XX por conta das reformas inspiradas no ideário escolanovistas que se afirmava no período. Disso não decorre, entretanto, que a orientação dada à disciplina tenha sido essencialmente pragmatista. Variando as instituições e a formação recebida pelos professores responsáveis pela disciplina, oscilou, também, a sua orientação (Tomazetti, 2003, p. 79). Da mesma forma, afirma Tomazetti, a partir da análise dos programas de Filosofia da Educação das universidades da década de 1930 (USP, UFRGS, UB e PUCRS), também no ensino superior era muito “modesta a presença de conteúdos referentes às temáticas da ‘escola nova’ e raros, também, os estudos de obras de Dewey ou sobre ele, escritas e divulgadas, principalmente, por Anísio Teixeira” (Tomazetti, 2003, p. 80). Segundo a pesquisadora, só foi possível constatar mais fortemente a presença de conteúdos próprios da Filosofia da escola nova no contexto da disciplina Filosofia da Educação em décadas mais recentes (Tomazetti, 2003, p. 80). Contudo, 127 mesmo não sendo majoritária a presença do ideário pragmatista da escola nova nos programas de Filosofia da Educação no Brasil, há que se enfatizar a sua enorme influência na constituição e disseminação dessa disciplina “que, embora parcialmente institucionalizada, foi muito importante no contexto político-educacional a partir dos anos 20” (Tomazetti, 2003, p. 81). A relevância da nova orientação filosófica da educação do escolanovismo no processo de constituição do campo da Filosofia da Educação no Brasil ficou visível nas ideias e diretrizes norteadoras de outra forma de organização escolar, na nova maneira de ensinar e de conceber a criança a ser educada, as quais já vinham sendo defendidas por educadores e políticos brasileiros, mesmo que de forma muito tímida, desde o final do período imperial (Cf. Tomazetti, 2003, p. 81). Além da Escola Nova se basear em novos conceitos filosóficos educacionais a partir do pragmatismo (atividade, vitalidade, liberdade, individualidade, sociabilidade, interesse, espontaneidade, autonomia e infância), as reformas também priorizaram a questão metodológica, enfatizando o processo do ensinar-aprender, do concreto, da observação e da atividade do aluno. Consequentemente, a escola normal também passou a sofrer o impacto renovador, uma vez que era a responsável pela formação dos professores primários, aos quais cabia imprimir uma nova concepção de ensino, de escola e de aluno (Tomazetti, 2003, p. 83). A consequência mais geral da influência da concepção filosófica de educação e de sociedade, sustentada pelo ideário escolanovista e caracterizada por um humanismo científico-tecnológico, foi a ruptura com a tradição filosófica humanista/católica que marcava a tradição filosófica educacional brasileira. Os fundamentos pragmáticos dessa nova educação e dessa nova escola se pautavam na Filosofia de John Dewey e na Sociologia de Durkheim. Dessa forma, As ideias destes dois autores possibilitaram aos intelectuais e educadores renovadores compreender o processo de modernização da sociedade brasileira da época e, consequentemente, a necessidade de um novo ensino e de uma nova escola. À democracia, à liberdade e à ciência como valores da sociedade moderna correspondia um estudo científico dos problemas educacionais brasileiros, abandonados até então, a sua própria sorte (Tomazetti, 2003, p. 84). É possível, então, afirmar que a nova concepção de educação propunha novos métodos educacionais, novos princípios filosóficos e uma nova Filosofia da Educação. Conforme Tomazetti (2003, p. 84), Lourenço Filho se refere à proposta de revisão dos 128 meios de educar, dos fins da escola, e da problemática da educação ou Filosofia educacional da nova educação em um contexto social que buscava se modernizar. A Filosofia da Educação proposta pelos renovadores, principalmente por Anísio Teixeira, o que mais pensou sobre a importância da Filosofia para a educação, pode ser rastreada no Manifesto dos Pioneiros da Educação. Nele estão expressas, com muita clareza, a consciência dos renovadores de que a educação era um problema fundamental e de cuja mudança dependia a modernização de toda a sociedade; a constatação da inexistência de um sistema de organização escolar brasileiro e a falta de uma Filosofia da Educação que determinasse os seus fins, juntamente como uma forma de operacionaliza-los. Referindo-se à inexistência de um sistema de organização escolar que estivesse à altura das necessidades modernas do país e enfatizando sua característica de fragmentação e desarticulação, o Manifesto apontava como causa a falta “em quase todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins da educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de educação. Ou, em poucas palavras, na falta de espírito filosófico e científico, na resolução dos problemas da administração escolar” (Tomazetti, 2003, p. 85). Dessa forma, para os renovadores da educação era necessário oferecer um tratamento científico para a educação brasileira, algo que nunca havia existido em nossa história da educação. O Manifesto também defendia a educação pública e uma escola única, laica, gratuita e obrigatória para todos os brasileiros. No entanto, os educadores descartavam o monopólio da educação pelo Estado, que deveria agir para organizar e estabelecer as diretrizes da educação, desde que não fosse de forma centralizadora e uniformizadora (Cf. Tomazetti, 2003, p. 86). Diante da constatação da falta de uma organização da educação brasileira em um sistema, os renovadores propunham uma base comum de cultura geral durante três anos, seguida de duas seções, intelectual e manual. A seção intelectual era composta de humanidades modernas, ciências físicas e matemáticas e ciências físicas e químicas. A seção manual abrangia as escolas agrícolas, de mineração e de pesca, as escolas industriais e profissionais e a escola de comunicações e transportes (Cf. Tomazetti, 2003, p. 86). Nessa proposta, o ensino superior brasileiro deveria estar a serviço das profissões liberais, tais como Engenharia, Direito e Medicina, pois “o espírito universitário” deveria ultrapassar a formação apenas profissional e ampliar-se aos campos de saber desenvolvidos na sociedade moderna e vinculados ao universo da 129 pesquisa científica desinteressada. Assim, afirmavam os renovadores, “a pesquisa deveria ser o sistema nervoso da universidade” (Tomazetti, 2003, p. 87). Outro aspecto decisivo nas reflexões filosófico educacionais do Manifesto era com “a preocupação com os cursos de formação de professores por conta de uma coerência com toda a ideologia liberal que aqui se enraizava: a educação como alavanca do ingresso da sociedade brasileira em um processo de modernização” (Tomazetti, 2003, p. 88), haja vista que o Estado não tinha uma política voltada para a formação de professores. Nesse sentido, os escolanovistas foram extremamente inovadores e previdentes, pois como desenvolver o sistema educacional se não há professores? Como universalizar a educação se não há quem ensine? Anísio Teixeira foi um dos renovadores que mais esteve atento para a importância da Filosofia para a educação nos seus diversos aspectos. Segundo Tomazetti (2003, p. 43): Destaca-se a importância que os estudos de Filosofia da Educação, na vertente da Escola Nova, tiveram para a consolidação do campo da Filosofia da Educação e de sua institucionalização na universidade, a partir da figura expressiva da Anísio Teixeira. Portanto, um estudo da Filosofia da Educação no Brasil não pode deixar de mencionar o pensamento e a prática de Anísio Teixeira, pois são fundamentais na história educacional brasileira, tanto como aproximação da identidade cultural com as ideias pragmatistas norte-americanas, principalmente do filósofo John Dewey, quanto como na sistematização do pensamento filosófico educacional brasileiro (Tomazetti, 2003, p. 90). Teixeira foi reconhecido por Fernando Azevedo como o primeiro brasileiro a sistematizar um pensamento no âmbito da Filosofia da Educação, mesmo com um exercício profissional bem maior como administrador educacional, que como professor daquela disciplina. Conforme Tomazetti: Em um artigo sobre os estudos pedagógicos no Brasil, Lourenço Filho afirmou que depois de 1930 os estudos educacionais adquiriram maior sentido de especialização e aprofundamento. Surgiam nesse período os primeiros trabalhos de Biologia, Psicologia Educacional, bem como os primeiros ensaios de História e Filosofia Educacional. Como exemplo da literatura na área da Filosofia Educacional ele assinalava a obra Educação Progressiva: uma introdução à filosofia da educação, de Anísio Teixeira, publicada em 1934 e Educação para a democracia, do mesmo autor, de 1937. Tais obras inauguraram, segundo ele, a constituição dos estudos filosóficos sobre educação no Brasil de forma sistemática (Tomazetti, 2003, pp. 70-71). 130 Contudo, para Tomazetti, “a importância da nova orientação dada à Filosofia da Educação por Anísio Teixeira, no contexto de constituição do campo da Filosofia da Educação no Brasil, deve ser compreendida dentro de uma perspectiva ampla” (Tomazetti, 2003, pp. 105). Assim, apesar de ter exercido por pouco tempo o magistério de Filosofia da Educação, muito contribuiu no âmbito da produção editorial, da tradução e da divulgação do pensamento e da obra de John Dewey e da filosofia pragmatista. Através da administração pública educacional, disseminou novas ideias acerca da escola, do ensino e de suas relações com a sociedade, contribuindo para a divulgação e popularização da expressão “Filosofia da Educação” e do próprio campo de saber, até então restrito a um pequeno grupo de intelectuais (Cf. Tomazetti, 2003, p. 106). Todavia, a influência propriamente dita do pensamento e da obra de Anísio Teixeira, na disciplina de Filosofia da Educação, foi moderada. Ghiraldelli (2000, p. 20) ressalta que: o discurso de filosofia da educação de Anísio Teixeira era simples e direto. Em geral ele parafraseava Dewey, mas de modo inédito, pois filtrava seu deweyanismo para as condições locais. Anísio Teixeira tinha clara consciência de que a força de seu discurso vinha da retórica democrática, e não de qualquer teoria científica. Seu lema era: mais política e menos ciência. Porém, Tomazetti ressalta que, mesmo com a inovação no pensamento filosófico educacional brasileiro, trazida por Teixeira, o pragmatismo era apenas um item a mais no programa da disciplina, pois o que de fato predominou, até os anos 1960, foi a tradição clássica europeia, tanto na Filosofia da Educação quanto na Filosofia pura. Assim, a importância da Filosofia da Educação nova “representou muito mais uma ruptura em termos de concepção geral de educação e de ensino, que passou a dominar o discurso pedagógico da época, do que propriamente a reorientação dos conteúdos e autores a serem estudados na disciplina” (Tomazetti, 2003, pp. 105-106). E tudo isso aconteceu em um universo político e cultural de “tentativas de modernização da sociedade brasileira” (Cf. Tomazetti, 2003, p. 90). Para Anísio Teixeira, a Filosofia e a Filosofia da Educação tinham “o papel de refletir sobre o tipo de educação que melhor conduziria a uma sociedade democrática e sobre quais seriam os valores necessários à construção dessa sociedade” (Tomazetti, 2003, p. 195). Tendo por referencial teórico a Filosofia pragmatista, para Anísio a função da Filosofia na sociedade moderna era a de: 131 contribuir para a solução dos embates sociais e morais que o homem moderno enfrentava e que, portanto, a tarefa de todo pensador deveria ser exercida no sentido de mergulhar nas preocupações e temas correntes de sua época e daí extrair, através de uma cuidadosa e sistemática análise, um programa de ação capaz de aprimorar o estado de coisas do aqui e agora (Teixeira apud Tomazetti, 2003, p. 195). Para Teixeira, somente o estudo dos grandes pensadores da educação e de suas teorias educacionais e suas concepções de homem, de conhecimento e de educação era insuficiente. Era necessário, portanto, pensar sobre a educação do tempo presente e sua relação com a sociedade. E o filósofo da educação, por sua vez, deveria constantemente revisar o processo de construção da sociedade democrática sem se aferrar aos modelos dominantes do sistema educacional brasileiro. As ideias de Anísio no campo da Filosofia da Educação foram inspiradas em John Dewey, e marcaram profundamente sua conduta de educador, administrador e escritor. O seu livro Pequena introdução à Filosofia da Educação: escola progressiva ou transformação da escola, publicado pela primeira vez em 1934, é uma coletânea de textos escritos anteriormente, conferências e textos de aula para o ensino de Filosofia da Educação (Cf. Tomazetti, 2003, p. 96): No livro Anísio apresenta o quadro de transformações da sociedade conseguido pelo avanço da ciência e da tecnologia e a necessidade de a escola se colocar ao tempo de tais transformações. A constatação de uma civilização em mudança e a exigência de homens esclarecidos encaminha o autor para determinar a necessidade de um estudo científico da educação e, consequentemente, da reconstrução educacional do nosso tempo. Tal reconstrução deveria ser realizada a partir da consolidação de uma escola progressiva e democrática (Tomazetti, 2003, p. 96). O livro citado retrata, também, a compreensão de Anísio sobre as transformações que estavam ocorrendo e as que ainda viriam a ocorrer no Brasil, bem como as suas consequências éticas e sociais. Para Tomazetti (2003, p. 97), Anísio vislumbrou, antecipadamente, novos tempos, nova sociedade e uma nova escola no Brasil. O principal fator dessa transformação era a ciência, a partir da qual Anísio tinha grandes e otimistas expectativas de uma vida melhor. O otimismo com a ciência, com o método científico e com suas aplicações técnicas o conduziu a um otimismo, também, em relação a essa nova escola. À mudança da sociedade deveria implicar, necessariamente, uma mudança na escola para que se preparasse o novo homem, o homem moderno que iria viver na sociedade democrática, fruto dessa nova realidade científica (Cf. Tomazetti, 2003, p. 97). 132 Essa nova escola era a escola progressiva, que pressupunha um novo conceito de aprendizagem, na qual aprender significava ganhar um modo de agir, pois para Anísio, “o ato de aprender depende profundamente de uma situação real de experiência onde se possa praticar tal qual na vida” (Teixeira apud Tomazetti, 2003, p. 98), mas não aprendemos tudo que praticamos, mas somente o que nos dá prazer ou satisfação (Cf. Tomazetti, 2003, p. 98). Para Anísio, se, por um lado, a ciência moderna representou um grande salto de desenvolvimento humano, ao conciliar saber prático ou empírico e saber racional ou especulativo, por outro, a ciência não responde pelos fins considerados superiores, como a liberdade, a fraternidade, a felicidade pessoal e coletiva (Tomazetti, 2003, p. 99). O saber capaz de unir essas duas dimensões seria a nova filosofia do pragmatismo, com Dewey e William James (Tomazetti, 2003, p. 100). A filosofia de Dewey, mesmo apresentando questões entre corpo e alma, espírito e matéria, por exemplo, sempre partia da prática social dos homens em uma época determinada. Foi a partir da filosofia deweyana que Anísio compreendeu que a filosofia deveria se ater à solução dos conflitos sociais e morais do homem moderno e propor um programa de ação para melhorar o aqui e o agora: “Deixando de lado ‘a vã metafísica e a inútil epistemologia’, dizia Dewey, devia a filosofia dedicar-se à mais importante e fundamental tarefa de cooperar, ativa e deliberadamente, no desenrolar dos acontecimentos humanos’” (Tomazetti, 2003, p. 101). Assim, para Anísio, que seguia Peirce, James e Dewey, o pragmatismo era a filosofia adequada aos tempos modernos, “pois partindo de estudos científicos da realidade social o filósofo apresentaria as soluções possíveis, do pensar chegava-se à ação” (Tomazetti, 2003, p. 101). Para Dewey, a concepção de conhecimento e de homem derivada da tradição grega, devido ao seu afastamento da vida prática, devia ser superada. Bacon teria sido o primeiro a elaborar uma revolta contra o conhecimento racional/especulativo, lançando as bases da experimentação científica (Cf. Tomazetti, 2003, p. 103). Para Anísio, aquela tradição especulativa filosófica, que também influenciava a educação, estava presente em Descarte e em Kant, filósofos, que: [...] se mantiveram atrelados à posição plantonista/cristã, pois permaneceram fiéis ao dualismo dos mundos. Kant manteve sua convicção pelo dualismo entre a coisa em si e o fenômeno e Descartes entre a alma e o corpo, embora todas as contribuições e rompimentos realizados com a tradição metafísica. Para Anísio, “toda essa tradição 133 se reflete na educação, com sua organização intelectualista e a sua prevenção contra o técnico” (Tomazetti, 2003, pp. 103-104). Segundo Anísio, essa divisão prevaleceu na hierarquia de saberes na escola até o fim do século XIX, nas formas de saber contemplativo/saber científico-experimental e ensino prático/ensino teórico. Só recentemente houve um avanço da nova concepção, mas ainda não generalizado e sem a incorporação dos novos conceitos pela escola: (Tomazetti, 2003, p. 104). Foi com a Filosofia da Educação de John Dewey, conforme Anísio, que aconteceu uma conciliação entre os velhos dualismos e, assim, a educação foi levada a um constante movimento de revisão e reconstrução. Dessa forma, Ante a nova realidade propiciada pelos conhecimentos científicos seria necessário uma nova filosofia capaz de determinar “a educação adequada à nova sociedade democrática em processo de formação”. No entanto esse pensamento, constatava Anísio, ainda não fora aceito e implantado nas escolas. A educação institucionalizada nas escolas “resiste, de todos os modos, à ação das novas ideias e novas teorias, e só lentamente se irá transformando até chegar a constituir verdadeira aplicação da nova filosofia democrática da sociedade moderna”. A educação no Brasil ainda refletia os modelos dos quais havia se originado; a filosofia da Educação dominante permanecia, em grande medida, atrelada a valores pré-científicos (Tomazetti, 2003, p. 105). Assim, apesar da pouca influência de Dewey e do pragmatismo norte-americano nos programas de ensino de Filosofia da Educação durante o escolanovismo, é inegável a sua influência na educação desse período. Da mesma forma, Anísio Teixeira é vinculado, no campo educacional, a uma concepção nova de Filosofia, de educação e de sociedade, tornando-se um nome expressivo da Filosofia da Educação no Brasil. Nesse contexto, de um lado, houve a consolidação da Filosofia da Educação como disciplina e campo de saber. De outro lado, ocorreu uma enorme influência da Filosofia da Educação pragmática no direcionamento de um novo projeto educacional na sociedade brasileira que se modernizava. 2.1. Pequena introdução à filosofia da educação – a escola progressiva ou a transformação da escola O livro Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola foi publicado pela primeira vez em 1934, com o título Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação. A nova edição com o título modificado é de 1967 e traz uma nota introdutória que explica, dentre outras 134 coisas, o motivo da inversão na ordem do título. Anísio argumenta que na época da reedição, a designação de progressiva havia perdido a prioridade no título porque deixara de ser novidade, pois toda a educação moderna havia adotado a teoria da experiência como base filosófica. Contudo, a referência ao termo escola progressiva continuou como registro histórico do período inicial de implantação das novas concepções que transformaram a escola e fizeram da educação do século XX uma educação em mudança permanente, que buscava acompanhar a dinamicidade da vida moderna (Teixeira, 2007, pp. 25-26). Ainda na apresentação do livro, Anísio indica que seu objetivo é “expor em forma simples, quase coloquial, os fundamentos da teoria da educação baseada na experiência” que dirige todo o movimento de reconstrução educacional de seu tempo (Teixeira, 2007, p 25). Confessa não ter nenhuma preocupação com originalidade de pensamento, pois está explicitamente filiado ao pensamento do filósofo John Dewey, bem como se sente profundamente devedor de Kilpatrick. A obra é composta de seis capítulos: Reacionários e renovadores; A transformação da escola; Diretrizes da educação e elementos de sua técnica; A educação e a sociedade; A conduta humana; Filosofia e educação. A seguir serão apresentados os capítulos, para que possamos melhor aquilatar a contribuição da Anísio Teixeira para o pensamento da Filosofia da educação no Brasil, através de seu livro. No capítulo 1, Reacionários e renovadores, Anísio reflete sobre o período de transição da época, constituído de crises e inquietações que trazem transformações sociais e mudanças de valores. Nessa insegurança, o homem, que é um animal de hábitos, busca culpados que, quase sempre, localiza nas escolas. Essas, segundo os conservadores, é que seriam as responsáveis pela decadência dos valores e, por isso, era necessário reformá-las. No âmbito da recepção dessas mudanças, Anísio identifica três grupos de pessoas: os reacionários, os falsos renovadores e os renovadores. Para os reacionários, a transformação da juventude é uma crise de caráter promovida pela escola, que não sabe mais ensinar disciplina, obediência e cumprimento do dever, características das gerações anteriores, que deveriam ser seguidas. Assim, comentam os reacionários: “estranhas teorias percorrem as escolas – de autodisciplina e autogoverno, de programas voluntários, de liberdade de escolha e de recusa, de expressão das próprias 135 personalidades, de respeito por essas personalidades e de subordinação dos interesses reais da vida” (Teixeira, 2007, p. 28). Os falsos renovadores, que propõem uma falsa escola nova, vão para o extremo da repressão dos reacionários com sua escola tradicional. Para eles, tudo seria permitido de forma indiscriminada, mas “seria substituir o regime do compulsório, desagradável e deseducativo da escola tradicional pelo regime do caprichoso, extravagante e igualmente deseducativo de uma falsa escola nova” (Teixeira, 2007, p. 30). Os alunos ficariam a mercê de si mesmos, sem nenhuma autoridade que os conduzisse, o que, certamente, conduzirá a uma educação desastrosa. Contudo, os reacionários e os falsos renovadores têm em comum o conceito errôneo de natureza humana, ambos acreditam que a natureza humana é: Refratária à disciplina, ao progresso, à marcha normal do saber e do aperfeiçoamento pessoal. Ou impomos tudo isso, mal e compulsoriamente, ou largamos a brida ao homem para que ele se entregue aos seus caprichos, suas desordens, sua ignorância e sua indisciplina (Teixeira, 2007, p. 31). Os renovadores, por sua vez, com a sua teoria da educação nova, buscam orientar a escola para a mudança social e para a revisão de velhos conceitos que predominavam na sociedade: “a teoria dos educadores busca ajustar a escola às necessidades dessas transformações, procurando retificá-las e harmonizá-las mutuamente” (Teixeira, 2007, p. 29). Essa revisão de conceitos, adverte Teixeira, não representa concessão a uma vida menos séria ou menos forte, mas sim a busca de novos conceitos mais condizentes com a nova sociedade. Nesse sentido, é modificada a ideia de educação. Agora, é mais correto falar de uma autoeducação, que resulta na assunção direta e integral da responsabilidade dos próprios atos e experiências, pois só a própria pessoa se educa (Cf. Teixeira, 2007, p. 30). Não se trata, porém, de propor gratuitamente uma liberdade pela liberdade, pois ao final da proposta de livre escolha de atividades, de planejamento e de execução está a preocupação com a disciplina e a responsabilidade. Somente a livre escolha estimula a disciplina: É porque o educador veio a verificar que só por esse meio eles [alunos] se disciplinarão, só por esse meio eles ganharão o hábito do esforço tenaz e continuado, só por esse meio assumirão a plena responsabilidade dos seus atos, só por esse meio terão caráter e integridade, habituando-se à unidade de propósitos, retidão de vontade e leal aceitação das limitações e sacrifícios da vida (Teixeira, 2007, p. 30). 136 Então, é fácil compreender que a teoria moderna em educação tem também uma posição diferenciada com relação à natureza humana que, para os renovadores, tem uma forte tendência a se realizar a si mesma. Por sua vez, essa realização “exige disciplina, controle de si mesmo e do meio ambiente – e para isso esforço, tenacidade, paciência, coragem e sacrifício -, o homem tende a essas virtudes pelas próprias características de sua natureza” (Teixeira, 2007, p. 31). Segundo Teixeira, para realizar essa natureza humana, para além de ser uma tendência natural, o homem precisa também de um meio favorável no qual se desenvolverá de forma correta e harmônica. Por tudo, assevera Teixeira, essa realização da natureza humana é uma tendência e não uma fatalidade: “E tender é inclinar-se, é ter disposição para alguma coisa, mas de que se pode ser desviado, como se é pelo regime de licença e desordem de uma falsa escola nova” (Teixeira, 2007, p. 32). A verdadeira escola nova busca formar homens esforçados e resistentes: [...] os homens formados nessa escola provaram, em sua plenitude, o prazer de conquistar, passo a passo, o caminho de sua emancipação. Emancipação do desordenado, do incerto, do não planejado, da ignorância, da prisão dos seus desejos e de suas paixões, para a liberdade da disciplina e si mesmos e para a força e o poder de execução e realização que lhes deu o hábito de controlar o meio externo, subordinando-o aos seus fins e aos planos lúcidos e voluntários (Teixeira, 2007, p. 32). Por isso, a escola progressiva é, exatamente, aquela que oferece atividades contínuas que propiciem o crescimento e o desenvolvimento do homem, a partir da coordenação, direção e comando das próprias forças do desejo, do pensamento e do corpo. Em um crescente, sairemos das origens primitivas até o homem educado, aquele que “sabe ir e vir com segurança, pensar com clareza, querer com firmeza e executar com tenacidade, o homem que perdeu tudo que era desordenado, informe, impreciso, secundário em sua personalidade, para tê-la definida, nítida, disciplinada e lúcida” (Teixeira, 2007, p. 33). E a escola renovada e eficiente é que deve ser a grande promotora dessa transformação. Anísio inicia o segundo capítulo, A transformação da escola, com um esclarecimento em torno do nome da escola, nova ou progressiva. Explica que a designação escola nova já estaria ultrapassada, pois teria sido necessária no início do movimento para demarcar uma fronteira, mas agora deveria ser chamada de escola progressiva como o é nos Estados Unidos. E a adjetivação progressiva é “porque se 137 destina a ser a escola de uma civilização em mudança permanente (Kilpatrick) e porque, ela mesma, como essa civilização, está trabalhada pelos instrumentos de uma ciência que ininterruptamente se refaz” (Teixeira, 2007, p. 35). Mas todo avanço e desenvolvimento desse instrumento que é a ciência ainda não alcançou a reconstrução escolar. Por isso, é necessário lutar por uma escola nova que se transforme também em função dos progressos científicos, tal qual aconteceu com a sociedade. Dessa forma, pondera Anísio: “Transforma-se a sociedade nos seus aspectos econômicos e sociais, graças ao desenvolvimento da ciência, e com ela se transforma a escola, instituição fundamental que lhe serve, ao mesmo tempo, de base para sua estabilidade, como de ponto de apoio para a sua projeção” (Teixeira, 2007, p. 37). A partir da aplicação da ciência à civilização humana, ocorreu o progresso espiritual, da mentalidade, que trouxe uma nova ordem de coisas, mais dinâmica que a anterior, imprimindo transformações mais rápidas tanto no mundo material quanto no mundo espiritual. E são as transformações nesse mundo espiritual que Anísio reputa como as mais importantes da época: Com a nova civilização material, [...], começou a velha ordem social e moral a se abalar. Muda a família. Muda a comunidade. Mudam os hábitos do homem e seus costumes. E raciocina-se. Se em ciência tudo tem o seu porquê e a sua prova, prova e porquê que se encontram nos resultados e nas consequências dessa ou daquela aplicação; se em ciência tudo se subordina à experiência, para, à sua luz, se resolver, por que também não subordinar o mundo moral e social à mesma prova? (Teixeira, 2007, p. 39). Assim, o homem que reconstrói continuamente o ambiente material deve também reconstruir o ambiente moral e social em que vive, tomando como parâmetro os mesmos processos da experiência científica. Essa nova ordem, continuamente em transformação, findou por apontar dois aspectos que necessitam de revisão na escola tradicional: “a) precisamos preparar o homem para indagar e resolver por si os seus problemas; b) temos que construir a nossa escola, não como preparação para um futuro conhecido, mas para um futuro rigorosamente imprevisível” (Teixeira, 2007, p. 40). Dessa forma, apesar da transformação contínua resultante da experimentação científica, é possível traçar diretrizes e tendências do mundo e do homem modernos pelos quais estão se processando a nossa evolução. Assim, Anísio distingue três diretrizes da vida moderna. A primeira está relacionada com a nova atitude espiritual do homem: “A velha atitude de submissão, de medo e de desconfiança na natureza 138 humana foi substituída por uma atitude de segurança, de otimismo e de coragem diante da vida. O método científico experimental reivindicou a eficácia do pensamento humano” (Teixeira, 2007, p. 40). Ou seja, a ciência tornou possível o progresso humano e temos a responsabilidade de promovê-lo, esse novo homem, independente e responsável, será preparado pela escola progressiva. A segunda diretriz da vida moderna é a expansão da indústria, que promove riqueza e miséria, potencializa o trabalho e altera a família, promove uma unidade planetária e torna o trabalhador um especialista. Assim, Dessa desintegração das pequenas unidades anteriores – o trabalho individual, o lar, a cidade e a própria nação – até a vinda da grande integração da ‘grande sociedade’, muitos problemas têm de ser resolvidos e mais uma vez se há de exigir do homem mais liberdade, mais inteligência, mais compreensão, se é que não queremos ficar em uma simples interdependência mecânica e degradante. [...]. E todos esses problemas são problemas para a educação resolver (Teixeira, 2007, p. 43). A terceira diretriz da vida moderna é a tendência democrática e sua ideia central de respeito à pessoa que, segundo Anísio, se aproxima fortemente da ciência e reflete profundamente na educação: “o homem deve ser capaz, deve ser uma individualidade, e o homem deve sentir-se responsável pelo bem social. Personalidade e cooperação são os dois polos dessa nova formação humana que a democracia exige” (Teixeira, 2007, p. 44). Na nova civilização não há mais espaço para autoritarismos exteriores, a autoridade interna é que resolve os conflitos do indivíduo, que agora deve se nortear pelas luzes da razão. Assim sendo, há necessidade de uma nova escola, que é a progressiva, pois a escola tradicional não mais se coaduna com o novo espírito da civilização. A escola tradicional partia da ideia de que a educação era algo suplementar à formação familiar; era uma educação para uma ordem estática do mundo. A escola deveria defender os valores estabelecidos; não deveria se preocupar em ensinar coisas inovadoras, pois o futuro já era conhecido. Nessa escola tradicional, aprender era decorar, memorizar, ensinar era doutrinar em alguns fatos e conceitos. Na escola progressiva, pelo contrário, a criança se educa vivendo na família e na vida social. No mundo contemporâneo, a escola deve trazer a vida para a escola, diz Anísio, e tornar a escola um lugar de vida plena e integral. Somente a vivência pode 139 possibilitar a aquisição de novos hábitos necessários ao novo mundo dinâmico e flexível: A escola precisa dar à criança não somente um mundo de informações singularmente maior do que o da velha escola – só a absoluta necessidade de ensinar ciência fora bastante para transformá-la – como ainda lhe cabe o dever de aparelhar a criança para ter uma atitude crítica de inteligência, para saber julgar e pesar as coisas, com hospitalidade, mas sem credulidade excessiva; para saber discernir na formidável complexidade da integração industrial moderna as tendências dominadoras, discernimento que há de habituá-la a não perder a sua individualidade e a ter consciência do que vai passando sobre ela pelo mundo afora; e, ainda, para sentir, com lúcida objetividade, a interdependência geral do mundo e a necessidade de conciliar o nacionalismo com a concepção mais vigorosa da unidade econômica e social de todo o mundo (Teixeira, 2007, p. 48). Outro aspecto da escola progressiva é a sua missão de promover a prática da democracia, da independência, da tolerância, da individualidade, da liberdade, enfim, “ajudar os nossos jovens, em um meio social liberal, a resolver os seus problemas morais e humanos” (Teixeira, 2007, p. 49). O último ponto que compõe esse segundo capítulo da Pequena introdução à filosofia da educação se refere aos fundamentos psicológicos de transformação escolar, no qual Anísio aborda uma nova visão do ato de aprender que se distancia da escola tradicional. Aprender era memorizar, decorar e depois passou a ser também repetição com as próprias palavras do que foi aprendido. Contudo, A nova psicologia veio provar não ser isso suficiente. Aprender é alguma coisa mais. Fixar, compreender e exprimir verbalmente um conhecimento não é tê-lo aprendido. Aprender significa ganhar um modo de agir. [...]. Aprendemos quando assimilamos uma coisa de tal jeito que, chegado o momento oportuno, sabemos agir de acordo como o aprendido (Teixeira, 2007, p. 50). Anísio insiste que o aprendizado depende de uma situação real de experiência: “Logo, não se aprende senão aquilo que se pratica. Aprender é um processo ativo de reagir a certas coisas, selecionar reações apropriadas e fixa-las depois no organismo. Não se prende por simples absorção” (Teixeira, 2007, p. 51). Dessa forma, essa nova psicologia de aprendizagem faz da escola um centro onde se vive, e não um centro onde se prepara para viver, em que é fundamental que se tenha interesse ou prazer no que é feito (Cf. Teixeira, 2007, p. 52). A educação progressiva acredita em uma vida cada vez melhor e busca mais liberdade e mais felicidade. É essa a filosofia que norteia o movimento progressivo da 140 educação como “processo de assegurar a continuidade do lado bom da vida e de enriquecê-lo, alargá-lo e ampliá-lo cada vez mais” (Teixeira, 2007, p. 57). Dessa forma, na escola progressiva “não se busca outra coisa senão a permanente reconstrução da vida para maior riqueza, maior harmonia e maior liberdade, dentro do ambiente de transformação e de progresso que a era industrial inaugurou” (Teixeira, 2007, p. 57). O terceiro capítulo, Diretrizes da educação e elementos de sua técnica, é subdivido em três tópicos. O primeiro trata da criança como centro da escola e aborda a importância da liberdade na escola e na sociedade a partir da visão kantiana: Percorreu a escola o mesmo sopro impetuoso de filosofia individualista que varreu da sociedade restrições religiosas espirituais e políticas opostas à liberdade dos homens. Considerai, dizia Kant, toda a pessoa sempre como um fim em si mesma e nunca como um meio. Esse velho princípio caracteriza uma das diretrizes mais essenciais do movimento de reconstrução escolar. A criança não mais como um meio, mas como um fim em si mesma. A personalidade infantil aceita, respeitada, ouvida, e não mais ignorada ou conscientemente, reprimida (Teixeira, 2007, pp. 59-60). Assim, diversamente da escola tradicional, a escola progressiva tem como uma de suas diretrizes centrais a criança como origem e centro da atividade escolar. E com a perspectiva da liberdade conduzindo essa formação, acredita fortemente que “o homem se desenvolve naturalmente para um ajustamento social perfeito” (Teixeira, 2007, p. 60). O segundo item faz uma reflexão sobre a necessidade da reconstrução dos programas escolares, criticando o intelectualismo dos programas da escola tradicional e o distanciamento dos seus conteúdos da vida da criança: Foi esse isolamento da atividade escolar que a veio perverter e inutilizar. Nem se aprendia realmente na escola, nem, muito menos, se transferiam posteriormente para a vida os resultados laboriosamente ganhos naquele trabalho. Daí condenar-se a orientação de preparação especializada e artificial para a vida. E condenar-se a orientação puramente informativa e intelectualista (Teixeira, 2007, p. 65). Contrariamente, a escola progressiva propõe um programa que seja integrado às atividades da vida, ou se, “o currículo ou o programa deve ser, assim, a série de atividades educativas em que a criança se vai empenhar para progredir mais rapidamente, de acordo com a sabedoria da experiência humana, em sua capacidade de viver” (Teixeira, 2007, p. 68). Outro aspecto fundamental na composição do novo programa é que ele deve ser estruturado a partir de atividades que sejam aceitas, 141 desejadas e planejadas pelos alunos. Atividades essas que “levem os alunos à aprendizagem dos conhecimentos, hábitos e atitudes para resolver os problemas de sua própria vida” (Teixeira, 2007, p. 70). O último item que compõe o terceiro capítulo traça outra diretriz fundamental para a educação, segundo Anísio, a organização psicológica das matérias escolares. A apresentação desse tópico é feita a partir de uma reconstituição do pensamento de Dewey e de Kilpatrick sobre a relação da criança e o programa escolar. A proposta da escola progressiva é de uma organização psicológica, ao invés de uma organização lógica das matérias escolares, a qual representa o último estágio de aperfeiçoamento do aprendizado infantil. A educação da criança atravessa três fases distintas: primeiro, a criança aprende a fazer as coisas; segundo, a criança aprende através das experiências alheias; e, por último, esses conhecimentos são enriquecidos e aprofundados até receberem uma organização lógica, racional e sistemática (Cf. Teixeira, 2007, pp. 73-74). A escola tradicional desconhece a progressão desse processo e vai diretamente à última fase que é a organização lógica do que foi aprendido. Assim, as matérias escolares devem passar “do seu lugar de honra para o de simples servas do crescimento infantil, contribuindo para ele quando chamadas. A organização lógica dará lugar à organizações psicológicas pessoais dos conhecimentos adquiridos” (Teixeira, 2007, p. 85). No quarto capítulo, A educação e a sociedade, Anísio desenvolve uma reflexão mais filosófica em torno dessas temáticas. Primeiramente, analisa a educação e a sociedade como dois processos fundamentais da vida humana que se influenciam mutuamente. Há uma ênfase na palavra processo para indicar as suas contínuas transformações: “Não existe sociedade. Existe um processo de sociedade. Não existe educação. Existe um processo de educação” (Teixeira, 2007, p. 87). Portanto, existem sociedades e educações, sobre as quais ele quer pensar filosoficamente. Essa percepção filosófica da sociedade e da educação visa compreender a processualidade das contínuas transformações, nas quais os fins se convertem em meios que, por sua vez, se transformam em novos fins, incessantemente. Muitas das confusões e obscuridades contemporâneas são devido à não compreensão do caráter processual da sociedade e da educação. Mas a ciência moderna, que tem mostrado a dinamicidade da natureza, tem ajudado na percepção dessa processualidade. 142 Conceber o movimento das coisas não tornará a vida humana um mar de incertezas e de infelicitações. Quando dermos adeus às “velhas certezas de quatro pés, sólidas e inflexíveis” (Teixeira, 2007, p. 88) surgirão novas capacidades criativas e novas formas de lidar com as certezas. A processualidade físico-química da natureza produziu os seres inanimados e depois os seres biológicos. Adiante produziu os seres com estrutura psicofísica e, rumo a um estágio mais complexo, fez surgir os organismos psicofísico com atividade mental, como Dewey os denomina (Cf. Teixeira, 2007, p. 89). Entre as gradações desses organismos, afirma Teixeira, não há nenhum mistério, a não ser seus graus de complexidade que dificultam as suas respectivas investigações. Todas as gradações têm mais ou menos as mesmas reações, mas “é só no nível mental que surge essa nova qualidade: o homem não somente sente e age, mas sente, age e sabe que sente e age” (Teixeira, 2007, p. 90). Esse fato novo redimensiona a realidade. Há uma autopercepção dos organismos psicofísicos, na qual eles acompanham a própria atividade, possibilitando uma condução de si mesmos. Assim, arremata Anísio, “o esforço da natureza para se governar outra coisa não é senão educação, no sentido mais amplo do termo” (Teixeira, 2007, p. 90). Nas fases anteriores à fase mental, nos diversos graus de evolução da natureza, não havia como a própria natureza se conduzir e as coisas, então, aconteciam ao acaso e de forma acidental. Será, portanto, essa autopercepção inteligente que possibilitará a existência da educação: Educação é, com efeito, o nome que recebe a série de fenômenos decorrentes do aparecimento da inteligência no universo. E inteligência é a qualidade que assumem certas ações e reações de se verem a si mesmas, acompanhando a própria história ou processo, percebendo os seus termos e relações e tornando-se, deste modo, capazes de reproduzi-los em novas combinações, para novos ou idênticos resultados. As experiências dos animais, que eram apenas tidas e sentidas, podem agora ser conhecidas” (Teixeira, 2007, pp. 9091). Foi o surgimento do fato mental que permitiu as transformações da natureza e, assim, uma condução mais racional e planejada da realidade, uma ação menos precária e acidental. A educação seria o coroamento dessa condução consciente do mundo: “Educação é o permanente esforço de redireção da própria natureza. É a natureza na sua 143 grande aventura de ordem, de utilidade e de beleza, em uma permanente reconstrução de si mesma. Educação é a natureza que se faz arte” (Teixeira, 2007, p. 92). Após analisar a educação e a sociedade como dois processos fundamentais da vida humana que se influenciam mutuamente, Anísio prossegue sua análise filosófica abordando a educação como um fenômeno individual e social. A educação inicia sendo um processo individual e pessoal, mas transborda para a coletividade em um processo social. Assim o é porque os resultados da educação, como pensamento e experiência, se concretizam em instrumentos e conhecimentos que se objetivam no meio social, nas instituições, às quais o homem se adapta sempre por um processo de educação, de reconstrução das próprias experiências: “o ato do pensamento perde, então, toda a sua qualidade individual para se tornar, a essa altura, eminentemente social. Social é, de tal jeito, o seu conteúdo; sociais, os seus modelos; sociais, os seus objetivos e resultados” (Teixeira, 2007, p. 94). Depois de ter refletido sobre a educação como um fenômeno natural e social, Anísio reflete sobre a especificidade da educação escolar e suas modificações frente ao desenvolvimento científico. Antes a escola era “a instituição que velava para que se não perdessem os esforços de conhecimento e de cultura, que não podiam facilmente ser transmitidos na vida direta imediata dos homens” (Teixeira, 2007, p. 99). Agora, com as aceleradas mudanças do mundo moderno, “a escola teve que deixar de ser a instituição isolada, tranquila, do outro mundo, que era, para se impregnar do ritmo ambiente e assumir a consciência de suas funções. Se depressa marcha a vida, mais depressa há de marchar a escola” (Teixeira, 2007, p. 100). A escola não pode permanecer como era antes, perpetuadora de um presente estagnado. A transformação da escola no mundo moderno impõe que ela se transforme em um “instrumento consciente, inteligente do aperfeiçoamento social”. A sua tarefa é “preparar o homem novo para o mundo novo que a máquina e a ciência estão exigindo” (Teixeira, 2007, p. 101), pois “a ciência está em vésperas de resolver os problemas econômicos, os problemas sociais, e o homem pode ser educado de modo a evitar a maior parte dos seus problemas de desajustamento moral e social” (Teixeira, 2007, p. 102). A ciência trouxe e trará mais ainda a riqueza material e o progresso, mas o progresso não consiste somente nesse avanço econômico e sim, também, em um progresso espiritual baseado no conhecimento e em novas experiências. Dessa forma, 144 diz Anísio: “Esse progresso é possível por meio da educação, e só por ela, desde que nos utilizemos da escola como uma instituição inteligentemente planejada com o fim de preparar o homem para uma existência em permanente mudança da qual ele fará permanente progresso” (Teixeira, 2007, p. 102). A abordagem realizada no quinto capítulo, A conduta humana, é referente à temática ética e desenvolve, primeiro, uma análise da moral científica e moral tradicional; segundo, uma análise de três premissas fundamentais da moral tradicional; e, terceiro, uma reflexão sobre a alternativa à moral tradicional. Na análise da moral científica e moral tradicional, Anísio afirma, inicialmente, que a nova ciência da moral, baseada no estudo objetivo da natureza humana, deve influenciar também a escola, que desenvolve papel fundamental na formação humana. Até então, devido a preconceitos e pressupostos falsos, a conduta humana não pôde se basear nos novos conceitos positivos e experimentais, impossibilitando um maior progresso humano e uma maior felicidade. Esse preconceito com a ciência é uma perda imensurável, pois “é o estudo recente da natureza biológica e social do homem, em bases positivas e científicas, que nos deverá dar, afinal, uma ciência da saúde, da eficiência e da felicidade do homem” (Teixeira, 2007, p. 109). Mas Anísio adverte que não se trata de uma suposição ingênua de que acreditar que todos os problemas serão resolvidos. Trata-se simplesmente de substituir a moral “espiritual”, marcada por preconceitos imutáveis e eternos, por uma moral experimental baseada na ciência do homem: A grande transformação estará em fazer da conduta moral do homem uma consequência dos conhecimentos positivos a que o homem vai chegando em fisiologia e em psicologia. Quando chegarmos a conceber o mal como um simples funcionamento anormal dos órgãos biossociais do homem – digamos assim –, e tivermos para com ele a mesma atitude experimental que temos para com os males físicos, teremos dado o primeiro passo para uma ciência moral (Teixeira, 2007, p. 109). A não incorporação dos avanços da ciência à conduta moral implica, segundo Anísio, em uma prática tradicional de costumes divididos em quadro grupos que compõe o panorama moral do mundo: o primeiro grupo é o “grande rebanho humano servido por uma moral convencional”, baseada em aparências e preconceitos; o segundo grupo é o dos homens de ação, que utilizam essa moral convencional para realizar seus objetivos e, por isso, defendem uma “moral cômoda”; o terceiro grupo é composto pelos 145 rebeldes “que buscam numa forma inferior de libertação a revelação de suas individualidades”; o quarto grupo é formado pelos “idealistas inumanos que desprezam a ‘natureza’ e a ‘ação’ e se fecham em um egoísmo espiritual, fanático e ardente” (Conf. Teixeira, 2007, p. 113). Para Anísio, os quatro grupos cometem o mesmo erro, qual seja, consideram a “moral como um domínio estranho à natureza, e governado por princípios, em essência, inadaptáveis às nossas condições de vida” (Teixeira, 2007, p. 113). A grande saída, portanto, estaria na moral científica que tem como fundamento a experiência humana (Cf. Teixeira, p. 128). Na sequencia do texto se encontra a análise dos erros contidos nas três premissas fundamentais da moral tradicional. A primeira premissa é relativa à ideia de que “a natureza humana é corrompida e indigna de nossa confiança”; a segunda premissa dos moralistas “considera a atividade humana, em si, como simples meio de atingir o bem”; e a terceira premissa tem em seus princípios “um caráter extra-humano ou, pelo menos, puramente espiritual ou ideal” (Teixeira, 2007, pp. 115,119 e127). Ao final desse quinto capítulo, Anísio desenvolve uma reflexão sobre a alternativa à moral tradicional, a moral científica que se baseia no avanço da ciência e na experiência humana: “Os princípios que regulam a conduta têm de ser refeitos à luz dessa nova realidade. Tenhamos a coragem de refazê-los, fundando a moral nas mesmas bases experimentais que permitiram o progresso de todas as demais ciências” (Teixeira, 2007, p. 129). A consequência dessa adesão será “a de que a vida será boa ou má, conforme a vontade humana”, ou seja, a vida será boa se a nossa atividade for agradável ou satisfatória. A vida tem que valer no presente e não depender de objetivos futuros, longínquos e abstratos: “A atividade não será [...] uma preparação para um bem futuro e remoto, mas, ela mesma, esse bem. Não vamos ser felizes no futuro. Ou seremos felizes agora ou não o seremos nunca. Vivemos no presente e só no presente podemos governar a vida” (Teixeira, 2007, p. 128). (Grifo nosso). No sexto e último capítulo, Filosofia e educação, Anísio prossegue sua análise de cunho mais filosófico sobre essas duas temáticas. Em um primeiro momento, apresenta a origem da filosofia; em seguida se reporta a aspectos modernos da filosofia e conclui o capitulo e o livro demonstrando a relação entre filosofia e educação, sempre na perspectiva deweyana. 146 Ao abordar a origem da Filosofia, seguindo as pegadas de Dewey, o autor parte do princípio de que o homem não é meramente um animal especulativo, não é um animal racional, mas sim “o homem é um animal capaz de ser racional” (Teixeira, 2007, p. 132). Ao invés de ser natural, a especulação filosófica foi algo inventado e aprendido e alguns homens se disciplinaram nessa forma de pensar. Diversamente, “de modo geral, o homem é uma criatura de desejos, de receios e esperanças, de ódios e afeições. O homem primitivo, mais ainda do que o semidisciplinado homem moderno, era esse animal de emoções e fantasias” (Teixeira, 2007, p. 131). A memória era o que o distinguia substancialmente dos outros animais, ampliava o seu universo e o levava para além do mundo material. Essa, assim chamada, quarta dimensão no homem primitivo tinha a capacidade de preservar as experiências passadas de forma mística e fantasiosa, com drama e poesia. Este homem, quando não estava empenhado na luta pela sobrevivência ou envolto pela vida prática, recordava os seus feitos como se fossem sonhos (Cf. Teixeira, 2007, p. 132). Dessa forma, diz Anísio baseado em Dewey, a tradição, com suas mitologias, religiões e superstições, não era, inicialmente, “ensaios de análise filosófica do universo, mas o resíduo consolidado das histórias que os homens de imaginação contavam aos companheiros, nos momentos amáveis de lazer e folguedo” (Teixeira, 2007, p. 132). Portanto, não havia na época primitiva o hábito escolástico de considerar o homem um animal racional que buscava em suas lendas e mitologias a interpretação do universo. Não havia aí uma interpretação filosófica, mas sim poética (Conf. Teixeira, 2007, p. 132). Paralelo a essas atividades ligadas aos ritos, às lendas e à poesia, subsistia também um mundo de homens mais práticos, mais ligados à sobrevivência e com conhecimentos mais empíricos e positivos. Através de uma contínua distinção social histórica, os dois grupos não se misturavam e os conflitos entre eles tendiam a se acirrar. Enquanto os homens práticos promoviam as modificações, a ação e o progresso, os homens poéticos promoviam a conservação das crenças, dos costumes e dos modos de viver. É esse o cenário da origem da filosofia, segundo Dewey: “O filósofo surgiu para reconciliar os dois mundos distintos, o do conhecimento empírico e positivo e o do conhecimento tradicional e religioso – em essência poético – da humanidade” (Teixeira, 2007, p. 134). 147 Contudo, à revelia da existência da filosofia que tentou a conciliação, o conflito continuou existindo, representado pelo lado prático, racional dos homens e o lado poético, religioso, místico, tradicional humano. A filosofia, assim, ao tentar resolver o conflito e não conseguindo, acabou por “justificar e racionalizar crenças e preceitos intrinsecamente desprovidos de fundamentos racionais” via um formalismo lógico, explicações universalistas e verdades últimas e totalizantes (Cf. Teixeira, 2007, p. 137) . Vem daí o seu caráter obscuro, enigmático e ambicioso. Portanto, para Anísio, apoiado em Dewey, a filosofia não teve uma origem desinteressada e sem preconceito. Nem tampouco “a filosofia não se iniciou para a busca pura e simples da verdade, fosse ela qual fosse. A filosofia se iniciou para reconciliar produtos mentais já existentes” (Teixeira, 2007, p. 136). Depois da exposição sobre a origem da filosofia, Anísio prossegue sua análise apresentando agora alguns aspectos modernos da filosofia, também sob a mesma perspectiva deweyana. Desde que o método experimental da ciência moderna demonstrou a sua eficácia e foi adotado pelo homem, tornou-se sem sentido que a filosofia seja a busca e o conhecimento das causas últimas e finais. Além disso, a própria contingência das coisas e dos homens inviabiliza a existência das grandes verdades definitivas (Cf. Teixeira, 2007, p. 138). Aliás, essas verdades e essências imutáveis e fixas foram criadas pela filosofia para suprir a insegurança das incertezas de um universo em permanente mudança, transformação e movimento. Advém daí o velho conflito entre ser (não movimento) e não ser (movimento), no qual se estabeleceu uma hierarquia de valores entre imutável, sendo superior, e mutável, sendo inferior. Esse dualismo espalha-se por várias instâncias da nossa cultura moderna: corpo/alma, intelectual/manual, homem/natureza, etc. O fato é que a atitude moderna da experimentação e da valorização das contingências desbancou a atitude do antigo filósofo: A velha atitude do filósofo, fundador do último sistema, e esse, afinal certo e permanente, deu lugar à atitude muito mais razoável e modesta do filósofo moderno que busca auxiliar a estabelecer o mais compreensivo método de julgar, com integridade e coerência, os valores reais da vida atual, para o efeito de dirigi-la para uma vida cada vez melhor e mais rica (Teixeira, 2007, p. 140). Os conceitos de totalidade, universalidade e causalidade última não foram descartados, mas sim reinterpretados à luz da modernidade e da existência da ciência. Na modernidade, filosofia e ciência se distinguem. A ciência investiga a verdade no 148 sentido da sua objetividade verificável e a filosofia busca o sentido íntimo e profundo das coisas, ou seja, “a filosofia não busca verdades no sentido estritamente científico do termo, mas valores, sentido, interpretações mais ou menos ricas da vida” (Teixeira, 2007, p. 141). Anísio, citando Dewey, reafirma que atualmente a filosofia é a investigação sobre o conjunto de conhecimentos que temos e remete esse pensamento ao conceito de filosofia de William James, qual seja, filosofia é a busca do significado da vida e todo mundo tem uma filosofia. Segundo Anísio, com esse conceito de filosofia jamesoniano é possível “mostrar a relação íntima e profunda entre a filosofia e a educação” (Teixeira, 2007, p. 142). Nesse sentido, a própria filosofia educa para a vida e, por isso, precisamos dela: “Se a filosofia é a indagação da atitude que devemos tomar diante das incertezas e conflitos da vida, filosofia é, realmente, como o queriam os antigos, a mestra da vida. É exatamente porque há dúvidas e incertezas e perplexidades que temos necessidade de uma filosofia” (Teixeira, 2007, p. 142). (Grifo nosso). Mas filosofia sempre no sentido de um conjunto de pensamentos que norteiam a vida prática da experiência e não a filosofia das causas últimas. A relação entre filosofia e educação deve ser pensada dessa mesma forma imanente. Para Anísio, no mundo moderno, transformado continuamente pela ciência, a falta de interesse pela filosofia denota uma vida à margem da própria vida, “sem interesses e sem paixões, sem amores e sem ódios”, pois somente uma vida superficial não levaria em conta tanta riqueza das “solicitações diversas e antagônicas das diferentes fases do conhecimento humano, e os conflitos e perplexidades atordoantes da hora presente” (Teixeira, 2007, p. 142). Nessa perspectiva, construímos uma filosofia e nos amoldamos a ela. São filosofias individuais que não cabem nos sistemas filosóficos que são “criações pedantes de gabinete”, mas filosofia “no sentido realístico” que expressa a experiência de cada um. Assim, o que esperamos da filosofia é que ela nos “dê um programa de ação e de conduta, isto é, uma interpretação harmoniosa da vida e das suas perplexidades” (Cf. Teixeira, 2007, p. 143). É essa, precisamente, a proximidade existente entre filosofia e educação, afirma Anísio citando expressamente Dewey: Está aí a grande intimidade entre filosofia e educação. “Se educação é o processo pelo qual se formam as disposições essenciais do homem – emocionais e intelectuais – para com a natureza e para com os demais homens, filosofia pode ser definida como a teoria geral da educação”, diz Dewey (Teixeira, 2007, p. 143). 149 Anísio continua citando Dewey e mostrando seu pensamento de que a filosofia deve servir para nortear a vida prática dos homens e que esse processo tem a sua culminância na educação. Para Dewey, se a filosofia não for simples oratória, mera predileção ou um dogma arbitrário, “o seu julgamento da experiência e o seu programa de valores deve concretizar-se na conduta e, portanto, em educação” (Dewey apud Teixeira, 2007, p. 143). Da mesma forma, a educação não pode prescindir da filosofia, pois se a educação não se pretende rotina ou mera empiria, “deve permitir que os seus fins e os seus métodos se deixem animar pelo inquérito largo e construtivo da sua função e lugar na vida contemporânea, que à filosofia compete prover” (Dewey apud Teixeira, 2007, p. 143). Nesse sentido, filosofia e educação não podem ser separadas. Anísio retoma uma citação de Dewey para melhor explicitar essa forte ligação já apontada acima e reforçar a ideia deweyana que a filosofia pode ser definida como a teoria geral da educação: Filosofia se traduz, assim, “em educação, e educação só é digna desse nome quando está percorrida de uma larga visão filosófica. Filosofia da educação não é, pois, senão o estudo dos problemas que se referem à formação dos melhores hábitos mentais e morais em relação às dificuldades da vida social contemporânea” (Dewey apud Teixeira, 2007, p. 143-144). Anísio relembra que devido à importância da filosofia na compreensão da vida contemporânea, ela, tal qual a educação, dependerá da sociedade que tiver em vista. Como a sociedade que modernamente se pretende alcançar é a sociedade democrática, a filosofia e a educação, elaboradas para tal sociedade, também deverão ser democráticas. Assim, quanto a essa filosofia, diz Anísio: “A filosofia de uma sociedade em permanente transformação, que aceita essa transformação e deseja torná-la um instrumento do próprio progresso, é uma filosofia de hipóteses e soluções provisórias” (Teixeira, 2007, p. 144). E da mesma forma, a educação dessa sociedade democrática deverá ter uma escola que ouça a todos e sirva a todos, mas “essas aspirações e esses ideais serão, porém, uma farsa, se não os fizermos dominar profundamente o sistema publico de educação” (Teixeira, 2007, p. 144). Dessa forma, o método filosófico deverá ser experimental, para que sempre possa questionar as conclusões a que cheguem as investigações e se preserve a provisoriedade delas; o sistema social democrático almejado deve promover a 150 felicidade, a igualdade de oportunidades para todos e o fim das desigualdades sociais; a escola, peça fundamental nessa paisagem filosófica e social, deve se transformar acompanhando e promovendo, assim, as mudanças sociais, bem como deve também envolver seus pares nessa transformação, o servidor e o professor (Cf. Teixeira, 2007, p. 144-145). O professor é uma peça chave em todo esse processo. No entanto ele não poderá ser um mero técnico, e sim um estudioso dos problemas modernos, da civilização, da sociedade e do homem. O professor “tem que ser, enfim, um filósofo...” (Teixeira, 2007, p. 145). Dessa forma, assevera conclusivamente Anísio: “o educador não pode ser equiparado a nenhum técnico, no sentido usual e restrito da palavra. Ao lado da informação e da técnica, deve possuir uma clara filosofia da vida humana, e uma visão delicada e aguda da natureza do homem” (Teixeira, 2007, p. 145). Ficando reafirmada a relação estreita entre filosofia e educação. 3. A Filosofia da Educação de Paulo Freire: o diálogo da educação como prática da liberdade Severino (1997) e outros estudiosos (Saviani, 2009, p. 61; Ghiraldelli, 2000 a) são unânimes em afirmar que o humanismo existencialista cristão se encontra na matriz filosófico-educacional do pensador e educador Paulo Reglus Freire. Contudo, também é consenso que a questão dos fundamentos filosóficos da obra freiriana é complexa e polêmica, pois não existiria uma única corrente filosófica na base de suas reflexões e sim multiplicidade de influências, dado ao próprio contexto de sua formação e ao caráter prático de sua proposta pedagógica (Cf. Severino, 1997, p. 132). Todavia, além de outras vertentes, a linha central filosófica inspiradora de Freire teria sido mesmo o humanismo existencialista cristão, com Karl Jaspers e Gabriel Marcel nas fontes principais. A partir dessas vertentes teóricas, Paulo Freire elabora uma “síntese humanista, no plano filosófico-educacional, que serve de base para a prática pedagógica” (Severino, 1997, p. 132). Esta educação, por sua vez, é proposta como prática de liberdade, uma práxis para libertar o homem oprimido de sua opressão. Essa prática de liberdade é uma libertação precedida de um processo de conscientização da opressão. 151 Há uma exigência de consciência e prática, teoria e ação, para que se construa a liberdade, tanto na situação existencial quanto na práxis social coletiva. Trata-se da superação da consciência ingênua para a consciência crítica, que ao se vincular com a prática, transforma a realidade. Para tanto, é imprescindível a comunicação dialógica, em uma relação horizontal entre educando e educador. Somente dessa forma a cultura se transformará em potencial libertador com uma pedagogia também libertadora e comprometida com a transformação social (Cf. Severino, 1997, p. 132). Para Saviani (2009), é nesse âmbito que surgem tentativas de constituição de uma espécie de Escola Nova Popular, tais como a Pedagogia Freinet na França e o Movimento Paulo Freire de Educação no Brasil: Com efeito, de modo especial no caso de Paulo Freire, é nítida a inspiração da “concepção ‘humanista’ moderna de filosofia da educação”, através da corrente personalista (existencialismo cristão). Na fase de constituição e implantação de sua pedagogia no Brasil (1959-1964), suas fontes de referência são principalmente Mounier, G. Marcel, Jaspers [...]. Parte-se da crítica à pedagogia tradicional (pedagogia bancária) caracterizada pela passividade, transmissão de conteúdos, memorização, verbalismo etc. e advoga-se uma pedagogia ativa, centrada na iniciativa dos alunos, no diálogo (relação dialógica), na troca de conhecimentos. A diferença, entretanto, em relação à Escola Nova propriamente dita, consiste no fato de que Paulo Freire se empenhou em colocar essa concepção pedagógica a serviço dos interesses populares. Seu alvo inicial foi, com efeito, os adultos analfabetos (Saviani, 2009, p. 61) Para Ghiraldelli (2000 a, p. 41), no final do século XX, Paulo Freire teria substituído John Dewey, “tanto no pertencimento às diretrizes da sociedade do trabalho quanto nas críticas a esta”, sempre voltado para os povos pobres, os desenraizados e o fim do neocolonialismo. Enfim, a partir de um discurso humanista, Freire seguiu falando do que se chamou de Terceiro Mundo e assim foi ouvido em todo o Ocidente. Dessa forma, Freire ao enfatizar a educação como ato político, Teria sido mais herdeiro de Dewey do que ele mesmo quis admitir em alguns momentos de sua vida, principalmente naqueles em que o liberalismo e a postura democrática de Dewey estavam em baixa, no Brasil. Mas Paulo Freire, no final da vida, declarando-se seguidor de Anísio Teixeira, redimiu-se e mostrou uma face mais justa de sua teoria educacional: sua herança em relação ao pragmatismo norteamericano (Ghiraldelli, 2000 a, p. 49-50). Conforme Ghiraldelli, a influência deweyana em Freire implica a perspectiva da educação imbricada na política e os pressupostos do ensino ativo em termos didáticos. Contudo, diversamente de Dewey, Freire pensou uma teoria educacional não a partir de 152 um Welfare State keynesiano, “mas a partir de um descaminho de um possível Welfare State que se insinuou em vários países do Terceiro Mundo, mas que, até hoje, não se tornou realidade” (Ghiraldelli, 2000 a, p. 50). Por isso, a teoria educacional freiriana foi extremamente crítica do industrialismo e da sociedade do trabalho. E é nesse sentido social que os passos didáticos da teoria educacional freiriana devem ser entendidos, pois a educação bancária talvez tenha sido “uma primeira tentativa, depois de Dewey, de identificar o que estaria ocorrendo com a pedagogia e a didática na derrocada do humanismo e na emergência da sociedade do trabalho” (Ghiraldelli, 2000 a, p. 50). Para Freire, o homem possuía uma vocação para sujeito da história e não para objeto, mas as condições de exploração do Terceiro Mundo inviabilizavam esta vocação, inclusive pela manipulação das consciências das populações pobres, vítimas de paternalismo, autoritaritarismo, colonialismo e escravismo. Por tudo isso, era necessário ultrapassar essa condição de servilismo e libertar o homem popular de seu mutismo. A educação deveria ser responsável pela construção de uma nova consciência nos homens do Terceiro Mundo, visando seu engajamento na luta política: Tal concepção denunciou a educação vigente como colaboradora do mutismo do povo. A escola oficial, além de autoritária, estaria a serviço de uma estrutura excessivamente burocratizada e anacrônica incapaz de colocar-se “ao lado dos oprimidos”. Procurando identificar-se com os oprimidos – aqueles que “não têm voz” na sociedade, mas que, obviamente, ao contrário do que diziam as elites, “também produzem cultura” –, Freire buscava uma educação comprometida com a solução dos problemas da comunidade. A ideia de comunidade permaneceu, então, como um ponto de partida e um ponto de chegada da teoria educacional freireana (como em Dewey e Anísio Teixeira). Daí as teses do ensino articulado aos regionalismos, ao comunitarismo, aos costumes e à cultura do local de vida da população a ser educada (Ghiraldelli, 2000 a, p. 51). Paulo Freire compreendia que os povos oprimidos, vitimados pela demagogia dos políticos e pela manipulação dos meios de comunicação de massa, deveriam se libertar, se desalienar da sua condição de exploração. Para tanto, segundo Freire, era necessário uma pedagogia do diálogo, que deveria seguir uma relação horizontal entre educador e educando, ambos educando e sendo educados. Esse diálogo seria amoroso, um encontro de homens que amam e desejam transformar o mundo. O ponto de partida desse diálogo deveria ser as situações vividas pelo educador e pelo educando, que depois seriam aprofundadas em problematizações, visando à construção de uma visão crítica da realidade, em um processo contínuo de conscientização. Esta conscientização 153 para uma educação libertadora seria o antídoto da educação bancária, opressora, que desqualificava qualquer saber do aluno e, por isso mesmo, só serviria como depósito de outros saberes do professor: “Assim, como Dewey, Paulo freire visou à educação contra o dogmatismo. Também como Dewey, recusou a ideia de uma educação onde os alunos fossem passivos diante da ação pedagógica” (Ghiraldelli, 2000 a, p. 53). Severino (2002), por sua vez, situa a grande influência filosófica de Paulo Freire no enfoque hermenêutico, específico de uma marcante tendência da prática da Filosofia da Educação no Brasil, cuja característica é buscar “o sentido total da educação, compreendendo-a como processo de formação do humano no homem, mediante a transformação pessoal do próprio sujeito” (Severino, 2002, p. 297). Nessa perspectiva, afirma Severino, a filosofia é processo de conhecimento que articula a mediação entre interioridade e a exterioridade, entre o íntimo e o público. O exercício do filosofar hermenêutico consiste em um exercício de interpretação, descoberta e compreensão, mas não manipulação (Cf. Severino, 2002, p. 297). A tradição hermenêutica da educação valoriza a autonomia subjetiva, que é sempre feita pelos próprios sujeitos, a partir da exterioridade, visando o desenvolvimento da interioridade subjetiva. Por isso, é que a fenomenologia tem tanta repercussão na discussão filosófica da temática educacional, a qual se desdobra em epistemologia, discutindo a presença da ciência na cultura contemporânea e o seu alcance nas ciências humanas, e em metodologia filosófica de correntes neo-humanistas existencialistas, subsidiando a reflexão ético-antropológica das mesmas (Cf. Severino, 2002, p. 298). É mais precisamente nessa vertente fenomenológica existencialista que Severino situa a reflexão filosófico educacional freiriana: É também sob marcante influência do existencialismo que se pode compreender a filosofia da educação de Paulo Reglus Freire para quem a educação é prática da liberdade e a pedagogia, processo de conscientização. Vê a educação também como um ato político, uma vez que nunca é neutra: ou ela desvela ou esconde as relações sociais. Por isso, a educação deve promover a conscientização, investindo na construção da autonomia intelectual do educando. A reflexão e seu aprendizado devem ocorrer exercendo-se sobre a prática, retornandose os resultados do conhecimento para ela, com vistas a sua transformação. Assim, o filosofar deve voltar-se sobre o concreto, sobre o real, não se fazendo pensamento sobre pensamento (Severino, 2002, p. 303). É também nessa perspectiva de uma posição filosófica voltada para o concreto que Zitkoski (2010) situa Paulo Freire, o qual teria submetido “à análise e reflexão 154 crítica, ao longo de sua trajetória enquanto educador e filósofo da educação, [...] a problemática da concreta libertação das pessoas de suas vidas desumanizadas pela opressão e pela dominação social” (Zitkoski, 2010, p. 15). Essa foi a grande luta de Freire, traduzida em sua proposta pedagógica e que marcou sua vida e sua atuação prática como educador e intelectual, bem como a humanização do mundo, da sociedade e da cultura, por meio da ação cultural libertadora. Um projeto humanista e libertador da sociedade para que repensemos a cultura e os modelos de racionalidade que cultivamos até hoje (Cf. Zitkoski, 2010, p. 15). Zitkoski chama a atenção para a afirmação histórica do ser humano como ser esperançoso e em busca de liberdade, em Paulo Freire, bem como para a sua visão ética e política indispensável ao projeto de transformação social e à reinvenção do paradigma emancipatório de sociedade (Zitkoski, 2010, p. 15), mas é muito importante também o aspecto da renovação das bases marxistas que Zitkoski aponta: A revisão das teses marxistas partindo da proposta freiriana inaugura, então, a concepção de uma nova antropologia que supere a cosmovisão mecanicista muito presente nas análises da vida em sociedade na segunda metade do século XX. [...] Freire avança por meio de uma visão antropológica inovadora, ao valorizar a subjetividade, o papel da conscientização, a problematização da consciência crítica nas relações de poder e interesses de classe, a interação do sujeito na realidade social e o sentido da educação e da transformação cultural (Zitkoski, 2010, p. 19). Com esse suporte marxiano, em Freire, é possível compreender que a dialogicidade, a ação dialógica ou a ação cultural para a liberdade é um caminho de reconstrução da vida em sociedade, na defesa de um projeto maior, articulado com uma visão de sociedade igualitária. Assim, a realização de uma concepção de vida humana dialógica e dialética é viável, através de uma proposta de educação radicalmente libertadora, pautada em uma racionalidade dialógica que, por sua vez, desafia a realidade sociocultural que desumaniza e coisifica (Cf. Zitkoski, 2010, p. 23). Há em freire a defesa radical da relação entre educação e política e transformação da sociedade: “A necessária e indispensável posição política do educador, para ser coerente com sua ética profissional, é um dos grandes princípios fundantes da pedagogia freiriana e perpassa toda sua obra como educador e filósofo da educação” (Zitkoski, 2010, p. 42). 155 3.1. Pedagogia do oprimido O livro Pedagogia do oprimido foi publicado em 1968, no exílio chileno, período precedido por uma intensa atuação política e educacional de Paulo Freire, até o golpe militar de 1964 no Brasil, de onde partiu inicialmente para Bolívia e, depois do golpe militar boliviano, posteriormente para o Chile. Segundo Freire, Pedagogia do oprimido foi escrito de maneira artesanal e estruturado a partir de fichas, bilhetes e anotações, fruto de quatro anos de trabalho no exílio chileno. Foi esse livro que tornou o trabalho de Paulo Freire mundialmente conhecido, mas que só obteve a permissão de ser publicado no Brasil em 1975 (Cf. Zitkoski, 2010, pp. 73-74). Na apresentação do livro, Freire se apoia em Hegel para falar do medo da liberdade que é necessário ultrapassar por meio da conscientização que possibilita a inserção do homem no processo histórico e no exercício da liberdade. Freire lembra, ainda, que o conteúdo desse ensaio não é resultado de meros devaneios intelectuais ou de leituras, apesar da importância dessas. O ensaio, ao contrário, está ancorado em situações concretas: “Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, diretamente ou indiretamente, em nosso trabalho educativo” (Freire, 2001, p. 33). A sua intenção é dar continuidade a essas observações, refletindo sobre a libertação dos homens. Pretende-se um ensaio aproximativo e não conclusivo, destinado a homens radicais, sejam cristãos ou marxistas, mas sem serem sectários, pois enquanto o radicalismo liberta, o sectarismo é um obstáculo à emancipação dos homens. A radicalização é revolucionária, a sectarização é reacionária. Seja o sectarismo de direita, seja o sectarismo de esquerda. O livro Pedagogia do oprimido se compõe de quatro capítulos: Justificativa da pedagogia do oprimido; A concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica; A Dialogicidade: essência da educação como prática da liberdade; A teoria da ação antidialógica. Cada título é acompanhado de subitens que desdobram a ideia central. Em seguida, passaremos a expor as ideias centrais de cada um dos capítulos desse livro para fazermos uma apreciação dessa nova reflexão filosófica educacional que Paulo Freire trouxe para o pensamento da Filosofia da Educação no Brasil. 156 No primeiro capítulo, Justificativa da pedagogia do oprimido, Freire já alerta que pretende aprofundar, dada a importância e amplitude do tema, aspectos que já estavam presentes de forma introdutória em Educação como prática da liberdade, sua obra anterior. A humanização é posta como preocupação e problema central a ser discutido, pois a desumanização é uma realidade histórica e, por isso, ambas perfazem um processo em constante movimento: “Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão” (Freire, 2011, p. 40). Mas a humanização, além de ser possibilidade, é também uma vocação dos homens, por vezes afirmada na liberdade, por vezes negada na opressão. A desumanização, presente também no opressor, é distorção da vocação de ser mais do homem, “não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos” (Freire, 2011, p. 41), tanto de opressores quanto de oprimidos. A contradição entre opressores e oprimidos leva esses últimos a buscar a superação da condição de ser menos, tanto deles quanto dos opressores, em busca da restauração da humanidade de todos, como um ato de amor que se opõe ao desamor da violência dos opressores. Essa generosidade, segundo Freire, só é possível de ser realizada pelos “condenados da terra”, “oprimidos”, “esfarrapados do mundo”, sejam povos ou homens, juntamente com aqueles que lhes são solidários. É essa luta que o livro busca mostrar, como assegura Freire: A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o que vimos chamando de pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará (Freire, 2011, p. 43). Outra questão importante a ser tratada no ensaio é a reflexão sobre as dificuldades de se realizar a pedagogia da libertação diante do problema do “hospedeiro” do opressor no oprimido. Mas é a própria pedagogia da libertação que possibilita a descoberta crítica pelos oprimidos desse “hospedeiro” e sua desumanidade, mesmo que seu reconhecimento não signifique uma luta concreta pela superação dessa contradição. Pois, dessa forma, o oprimido liberto ou consciente pode se transformar em 157 um novo opressor e isso não lhe possibilita “a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe oprimida” (Conf. Freire, 2011, p. 44-45). Nessa estrutura, há que se pensar também sobre o “medo da liberdade” que se apodera dos oprimidos, “que tanto pode conduzi-los a pretender ser opressores também quanto pode mantê-los atados ao status de oprimidos” (Freire, 2011, p. 46). Esse medo da liberdade é determinado e imposto ao oprimido pelo opressor como uma prescrição, “imposição da opção de uma consciência a outra” (Freire, 2011, p. 46), a partir da qual os oprimidos introjetam a figura do opressor e passam a temer a liberdade. Faz-se necessário, portanto, superar concretamente a situação opressora: “Isto implica o reconhecimento crítico, a ‘razão’ desta situação, para que, através de uma ação transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que possibilite aquela busca do ser mais” (Freire, 2011, p. 46). Apoiado em Hegel, Freire afirma que o simples reconhecimento da condição de oprimido não significa a sua libertação, para tanto é necessário a práxis libertadora. Algo que vale também para o opressor, o qual não deixa essa condição somente através da solidariedade com os oprimidos: Se o que caracteriza os oprimidos como ‘consciência servil’ em relação à consciência do senhor, é fazer-se quase ‘coisa’ e transformar-se, como salienta Hegel, em ‘consciência para o outro’, a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este ‘ser para outro’ (Freire, 2011, p. 49). No entanto, a ênfase na necessidade da transformação da realidade objetiva não significa negar o papel da subjetividade na luta pela libertação, pois “não se pode pensar em objetividade sem subjetividade” (Freire, 2011, p. 50). Apoiado em Marx, Freire condena tanto o subjetivismo, quanto o objetivismo, e defende uma relação dialética entre ambas. Assim, compreende que “a realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso” (Freire, 2011, p. 51). Dessa forma, pondera Freire apoiado em Lukács, a consciência crítica da opressão desempenha papel fundamental na transformação dessa realidade objetiva. Ou seja, a práxis, como reflexão e ação humanas na transformação do mundo e na superação da contradição opressor-oprimido (Cf. Freire, p. 52). Segundo Freire, a relação opressora inaugura a violência, o desamor, o terror, a tirania, o ódio, a negação humana e a força que são de total responsabilidade dos opressores e jamais dos oprimidos. É assim que “na superação da contradição 158 opressores-oprimidos, que somente pode ser tentada e realizada por estes, está implícito o desaparecimento dos primeiros, enquanto classe que oprime” e não simplesmente a troca de papéis que estabelece um novo poder (Conf. Freire, 2011, p. 60). A segunda parte do primeiro capítulo trata da situação concreta da opressão e dos opressores. Freire se detém em uma análise sobre a condição dos opressores em uma situação revolucionária concreta, que não se reconhecem livres e sim oprimidos. A explicação para tal fato é a herança de sua experiência de opressores, e de que nada que lembre “o seu direito antigo de oprimir significa opressão a eles” (Freire, 2011, p. 61). Esses antigos opressores herdaram também a ideia de que as únicas pessoas são eles próprios, e os antigos oprimidos são meras coisas, o que os leva a querer transformar tudo em objeto de seu domínio, como antigamente. Freire constata, nessa herança, a permanência de uma “concepção estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas. E o lucro, seu objetivo principal” (Freire, 2011, p. 63). A desapropriação de suas riquezas teria sido uma injustiça, pois muito teriam trabalhado para tê-la. Da mesma forma, os antigos oprimidos são injustos por terem direito à riqueza, pois o povo não a merece, na medida em que não é capaz de pensar, querer ou saber. A terceira parte do primeiro capítulo trata, por sua vez, da opressão e dos oprimidos em uma situação concreta. As dificuldades que eles teriam em uma situação revolucionária são diversas. Uma delas já foi abordada e se refere à introjeção das ideias dos opressores. Outra dificuldade decorre dessa, e se trata do fato de, ao não conseguir identificar o opressor exteriormente, acaba compreendendo a realidade a partir de certo fatalismo que, muitas vezes, é acompanhado de certa docilidade. Uma terceira dificuldade consiste em tratar os companheiros como era tratado antigamente pelos opressores, em uma nítida denúncia da atração que sente por estes, bem como uma vontade de se parecer com eles. Todas essas dificuldades são representativas de uma “consciência colonizada” que se reveste de uma auto repulsa: “A autodesvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles têm os opressores” (Freire, 2011, p. 69). O desconhecimento do seu valor, segundo freire, é fruto do seu pensamento baseado na opinião (doxa) e em uma crença mágica no poder do opressor. Daí, então, a importância para os oprimidos da tomada de consciência das causas da opressão, para que se possa praticar uma ação para a liberdade. 159 A quarta e última parte do primeiro capitulo se refere ao fato de que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, pois os homens se libertam em comunhão. Para tanto, é necessário: a consciência da existência do opressor; a ação prática para essa libertação; o diálogo crítico e libertador com os oprimidos; e o auto reconhecimento do valor do oprimido como homem. É necessário, ainda, estar atento ao conteúdo desse diálogo para que não seja domesticação e imposição, principalmente por parte das lideranças revolucionárias. Assim, a reflexão deve conduzir à prática e à ação política como “ação cultural” para a liberdade (Cf. Freire, 2011, pp. 71 a 78). O segundo capítulo, intitulado A concepção “bancária” da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica, trata sobre o caráter “narrador”, “dissertador” da educação, seja escolar ou não. O traço marcante e preponderante da educação tem sido a narração de conteúdos “que implica um sujeito – o narrador – e objetos pacientes, ouvintes – os educandos” (Freire, 2011, p. 79). Esses conteúdos falam da realidade “como algo parado, estático, compartimentado e bemcomportado” ou como alheia à experiência existencial do educando. Nessa educação narradora, o educador ocupa papel central como único sujeito que “enche” os alunos através das narrações, como se eles fossem vasos a serem preenchidos. Na “educação dissertadora” interessa mais a sonoridade das palavras que a sua força transformadora: “o educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significam quatro vezes quatro” (Freire, 2011, p. 80). A narração feita pelo sujeito educador só leva à memorização mecânica pelos educandos do conteúdo narrado. Estes são transformados em “‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vai ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão” (Freire, 2011, p. 80). Esta é, precisamente, a concepção “bancária” de educação. O mais cruel, diz Freire, é que esse contínuo depósito de narrações, realizado pelos educadores nos educandos, vai matando a criatividade, o saber e o processo de busca que deveriam nortear a verdadeira educação, pois “na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (Freire, 2011, p. 81). Como se a ignorância se encontrasse sempre no outro. Assim, em contraposição, a proposta da educação libertadora é superar a contradição educador-educandos, de forma que todos sejam educadores e educandos, todos aprendam e ensinem simultaneamente. 160 Na educação bancária, o educador tem as seguintes prerrogativas: educa; sabe; pensa; diz a palavra; disciplina; opta e prescreve a opção; atua; escolhe o conteúdo programático; tem a autoridade do saber; e é o único sujeito do processo educativo. Os educandos, na educação bancária, sofrem as seguintes ações: são educados; não sabem; são pensados; escutam docilmente; são disciplinados; seguem as prescrições do educador; acomodam-se a um programa do qual não participaram na elaboração; adaptam-se ao saber do educador; são meros objetos (Cf. Freire, 2011, p. 83). O resultado dessa educação “bancária”, portanto, é a simples adaptação e ajustamento dos educandos que, por isso, não desenvolvem sua consciência crítica, fruto da ação de sujeitos inseridos no mundo. Assim, diz Freire, a propósito dos alunos da educação bancária: “Quanto mais se lhes imponha passividade, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos” (Freire, 2011, p. 83). Esse estímulo à ingenuidade no lugar da criticidade é favorável aos interesses dos opressores, na busca da manutenção da situação de opressão. Por isso, jamais essa educação pode se orientar no sentido da conscientização, objetivo da educação libertadora. Na primeira parte desse segundo capítulo, Freire fala sobre os pressupostos da concepção problematizadora e libertadora da educação. Dessa forma, a educação libertadora parte do princípio de que os oprimidos sempre podem se libertar, pois sua condição de “ser que busca” e sua “vocação ontológica para a humanização” permitem que os oprimidos percebam as contradições da educação “bancária” e lutem pela sua própria libertação. Assim, o educador humanista e revolucionário deve buscar a humanização de si e dos educandos, orientar a ação educativa para um pensar autêntico no lugar da doação de conhecimento e inspirar sua ação em profunda crença nos homens (Conf. Freire, 2011, p. 86). A segunda parte desse segundo capítulo trata sobre a concepção bancária e a contradição educador-educando. Às características já referidas dessa educação freire acrescenta outras, tais como: dicotomia entre homem-mundo; a consciência como algo apartado do homem, como mero depósito; o papel do educador é disciplinar o educando, torná-lo ainda mais passivo para melhor adaptá-lo ao mundo; dificultar o pensamento autêntico; ministrar aulas verbalistas. Baseado em Fromm, Freire aponta que existe na educação bancária uma necrofilia, contrária a uma biofilia, pois os homens são coisificados com a concepção 161 mecânica de consciência em que se funda. Esta educação “não se deixa mover pelo ânimo de libertar o pensamento pela ação dos homens uns com os outros na tarefa comum de refazerem o mundo e de torna-lo mais e mais humano” (Freire, 2011, p. 91). O seu objetivo é precisamente o contrário: “[...] controlar o pensar e a ação, levando os homens ao ajustamento ao mundo. É inibir o poder de criar, de atuar” (Freire, 2011, p. 91). Freire acrescenta, ainda, que o seu objetivo ao denunciar a educação “bancária” e o seu anti-humanismo é, em primeiro lugar, “chamar a atenção dos verdadeiros humanistas para o fato de que eles não podem, na busca da libertação, servir-se da concepção ‘bancária’, sob pena de se contradizerem em sua busca” (Freire, 2011, p. 92). Em segundo lugar, é necessário evitar que esta concepção se torne um legado da sociedade opressora à sociedade revolucionária. Na terceira parte do segundo capítulo, Freire trata sobre o fato de que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2011, p. 95). Nesse aspecto, Freire salienta a dimensão coletiva do conhecimento e da educação que tem o diálogo como base: “É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas educador-educando com educando-educador” (Freire, 2011, p. 95). Ou seja, a educação não é algo dirigido a alguém ou recebido de alguém, mas sim um processo que é construído na simultaneidade do encontro educacional mediado pelas relações concretas do mundo. Nesse sentido, os argumentos de autoridade perdem seu valor, pois “para ser-se, funcionalmente autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas” (Freire, 2011, p. 96). Dessa forma, reafirma Freire: “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2011, p. 96). Nesse contexto, é destacado também que a prática educativa libertadora constitui uma situação gnosiológica, onde o papel do educador é proporcionar, juntamente com os educandos, “as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos” (Freire, 2011, p. 97) (Grifo nosso). Enquanto a prática bancária cerceia a criatividade dos educandos, “a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade” (Freire, 2011, p. 97) (Grifo nosso). 162 A reflexão proporcionada pela educação libertadora, e que se exerce sobre o mundo, os homens e a relação entre eles, implica em uma consciência que se dá simultaneamente ao desvelamento do mundo. Merece que se destaque que as referências à consciência são de cunho existencialista e fenomenológico embasadas em Sartre e Husserl: Na verdade, não há eu que se constitua sem um não eu. Por sua vez, o não eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Desta forma, o mundo constituinte da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona. Daí, a afirmação de Sartre, [...]: ‘consciência e mundo se dão ao mesmo tempo’ (Freire, 2011, p. 99). Dessa forma, enquanto os homens vão refletindo simultaneamente sobre si e sobre o mundo, diz Freire em uma perspectiva husserliana: “Vão aumentado o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua ‘mirada’ a ‘percebidos’ que, até então, ainda que presentes ao que Husserl chama de ‘visões de fundo’, não se destacavam, ‘não estavam postos por si’” (Freire, 2011, p. 99). Ou seja, “as visões de fundo” ressaltam coisas antes não percebidas que são agregadas à reflexão do eu constituinte que vai se exercendo sobre a relação entre o mundo e os homens: “O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se ‘destaca’ e assume o caráter de problemas, portanto, de desafio” (Freire, 2011, p. 100). O resultado desse processo cognoscitivo e reflexivo faz da educação problematizadora “um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham” (Freire, 2011, p. 100). Na última parte do segundo capítulo, Freire trata, a partir do critério da historicidade, do homem como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão e seu permanente movimento de busca de ser mais. Diversamente dos animais, que são também seres inacabados, mas não se sabem inacabados, o homem tem consciência do inacabamento. E é exatamente a consciência dessa inconclusão que o faz um ser histórico e o único a ser educado em um processo permanente: Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente. Permanentemente, na razão 163 da inconclusão dos homens e do devenir da realidade (Feire, 2011, p. 102). A educação libertadora, no entanto, é a única capaz de promover a realização da busca do ser mais, de possibilitar o aprofundamento da tomada de consciência rumo a uma práxis transformadora e de oferecer a visão do mundo como mediador dos sujeitos da educação e sua consequente humanização. O terceiro capítulo, intitulado A Dialogicidade: essência da educação como prática da liberdade, aborda a importância fundamental da dialogicidade para a educação transformadora, em contraposição à educação bancária que é antidialógica. Freire inicia fazendo considerações mais universais em torno da essência do diálogo, retomando e aprofundando alguns pontos que teriam sido já abordados na obra Educação como prática da liberdade. O diálogo como fenômeno humano tem na palavra não só seu meio de existência, mas um dos seus elementos constitutivos centrais. A palavra tem as dimensões da ação e da reflexão radicalmente solidárias e em interação radical entre si, ao ponto de a ausência de uma dessas dimensões comprometer a outra: “Não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo” (Freire, 2011, p. 107). Ou seja, a palavra é constituída da ação e da reflexão que, por sua vez, resultam na práxis. A palavra inautêntica não transforma o mundo e é resultado da cisão entre a ação e a reflexão. O sacrifício da ação na palavra resulta em verbalismo. O sacrifício da reflexão na palavra resulta em ativismo. Em ambos os casos, respectivamente, a palavra não denuncia o mundo e impede a ação transformadora, bem como a palavra é negadora da práxis verdadeira que tem por base o diálogo. Dessa forma, não há pronúncia do mundo: A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (Freire, 2011, p. 108). Os componentes do fazer-se homem, segundo Freire, são a palavra, o trabalho e a ação-reflexão que não são privilégio de alguns poucos homens, mas sim direito de todos os homens: “Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra 164 aos demais” (Freire, 2011, p. 109). O diálogo, portanto, é o encontro entre os homens dialógicos mediatizados pelo mundo buscando a libertação deles. Na primeira parte deste terceiro capítulo, Freire trata da educação dialógica e do diálogo. O diálogo, que se baseia no amor e possibilita pronunciar o mundo, não é encontrado na relação de dominação. Por isso, a única educação dialógica é a libertadora e não a bancária. A educação dialógica traz um diálogo baseado na humildade, na consciência de que todos sabem e não somente alguns iluminados, na fé nos homens e na sua vocação de ser mais, na crença de que toda relação deve ser horizontal e baseada na confiança e na esperança. A segunda parte traz o fato de o diálogo começar na busca do conteúdo programático. Para a educação como prática da liberdade, a dialogicidade não começa somente “quando o educador-educando se encontra com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes” (Freire, 2011, p. 115). Assim, para o educador-educando dialógico o conteúdo programático da educação não é doado, imposto ou depositado, mas sim “a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada” (Freire, 2011, p. 116). Na terceira parte são abordados as relações homens-mundo, os temas geradores e o conteúdo programático da educação libertadora. Uma questão crucial a ser evidenciada é que o conteúdo programático da educação ou da ação política deve partir da situação concreta das aspirações do povo de forma problematizante e desafiadora na busca de resposta teórica e prática: “Nunca apenas dissertar sobre ela e jamais doar-lhe conteúdos que pouco ou nada tenham a ver com seus anseios, com suas dúvidas, com suas esperanças, com seus temores” (Freire, 2011, p. 120). Assim, a escolha do conteúdo programático não pode ser feita somente pelos políticos e educadores, mas também pelo povo e a partir da realidade mediatizadora e da consciência que se tem dela. É a partir desse exercício democrático que se descobre o universo temático com seus temas geradores: “O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores” (Freire, 2011, p. 121). Só é possível compreender a existência e o significado de universo temático a partir da condição histórica do homem que, diversamente do animal, tem consciência 165 das coisas e de si, transforma a natureza pelo trabalho e cria ideias e instituições sociais. O conjunto dessas atividades históricas dos homens e seus resultados constituem o que Freire chama de temas da época que, por sua vez, são constitutivos do universo temático. Podemos ver essa explicação nas palavras de Freire: Estes [os temas da época], não somente implicam outros que são seus contrários, às vezes antagônicos, mas também indicam tarefas a serem realizadas e cumpridas. Desta forma, não há como surpreender os temas históricos isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, seus opostos. Como também não há outro lugar para encontra-los que não seja nas relações homens-mundo. O conjunto dos temas em interação constitui o ‘universo temático’ da época (Freire, 2011, p. 129). Diante desse universo de temas contraditoriamente dialéticos, expressões da realidade, os homens conduzem suas práticas também contraditoriamente dialéticas, às vezes transformadoras, às vezes conservadoras. Os temas constitutivos desse universo temático podem ser chamados de temas geradores porque “contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas” (Freire, 2011, p. 130). Podem-se localizar os temas geradores em círculos concêntricos, que partem do mais geral ao mais particular, do geral ao particular, em conjuntos de unidades e subunidades. Mas, segundo Freire, o tema fundamental de uma unidade mais ampla da nossa época é a libertação, que traz implícita o contrário da dominação. Assim, É este tema angustiante que vem dando à nossa época o caráter antropológico [...]. para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das ‘situações-limite’ em que os homens se acham quase coisificados (Freire, 2011, p. 131). Nesse contexto, Freire salienta que a “situação-limite” do subdesenvolvimento e da dependência caracteriza o Terceiro Mundo. Sendo assim, a tarefa principal sugerida por este universo temático e pelo tema gerador é a superação dessa desumanidade e exploração. Tendo localizado o tema gerador e definido o que ele é, Freire segue na quarta parte investigando os temas geradores e sua metodologia de forma mais específica. Então, explica que a consciência dominada tem dificuldade de apreender a “situaçãolimite” em sua globalidade, ficando somente na captura de suas manifestações periféricas e confundindo o que é principal por secundário: 166 A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem conhecê-la. E não podem porque, para conhecêla, seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja cisão voltariam com mais claridade à totalidade analisada (Freire, 2011, p. 133). Esta é, portanto, a metodologia da investigação temática conscientizadora que norteia a educação problematizadora. Trata-se de descodificar uma realidade codificada, em um movimento que conduz do abstrato ao concreto. A análise crítica e a consequente compreensão da realidade advinda daí possibilita uma postura crítica diante das “situações-limite”. Os homens são levados a perceber que eles, o mundo e a compreensão do mundo formam um todo que pode ser transformado rumo à liberdade e à humanização. Assim, diz Freire, “investigar o tema gerador é investigar [...] o pensar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis” (Freire, 2011, p. 136). A quinta e última parte do terceiro capítulo reflete sobre a significação conscientizadora da investigação dos temas geradores e seus vários momentos constitutivos. Serão ressaltados aqui alguns aspectos centrais dessa reflexão freiriana. Além de ser importante seguir o movimento do abstrato ao concreto no desvelamento a realidade, enfatizado anteriormente, é necessário ter atenção para que não se caia no erro de “elaborar roteiros de pesquisa do universo temático a partir de pontos prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação” (Freire, 2011, p. 139). É imprescindível que investigadores profissionais e povo sejam sujeitos deste processo, pois a investigação temática implica na própria investigação da forma de pensar do povo e “educação e investigação temática, na concepção problematizadora da educação, se tornam momentos de um mesmo processo” (Freire, 2011, p. 142), bem como, a tarefa do educador dialógico é problematizar as questões do universo temático e não dissertar ou narrar como o faz a educação bancária. Freire finaliza o capítulo fazendo uma longa reflexão e sugestões para um exemplo prático de coordenar um plano de educação para adultos em uma área camponesa com um alto índice de analfabetismo. 167 O quarto e último capítulo, A teoria da ação antidialógica, se compõe somente de duas partes, antecedidas de uma pequena introdução mais geral. A introdução estabelece, inicialmente, que o objetivo é analisar as teorias da ação cultural que se desenvolvem a partir da matriz antidialógica e da dialógica para depois se deter longamente em torno de uma reflexão sobre a necessidade da liderança revolucionária se pautar na dialogicidade, pois uma liderança revolucionária “que não seja dialógica com as massas, ou mantém a ‘sombra’ do dominador ‘dentro’ de si e não é revolucionária, ou está redondamente equivocada e, presa de uma sectarização indiscutivelmente mórbida, também não é revolucionária” (freire, 2011, p. 170). A liderança revolucionária não pode repetir os procedimentos da elite opressora, por isso urge ser dialógica. A primeira parte do último capítulo do Pedagogia do oprimido investiga a teoria da ação antidialógica e suas características que são: a conquista, o ato de dividir para oprimir, a manipulação e a invasão cultural. A conquista é uma ação antidialógica movida por um sujeito que conquista um objeto conquistado, determinando suas finalidades a esse objeto que passa a ser simplesmente um objeto possuído pelo conquistador. Freire (2011, p. 186) define a conquista como algo reificante, necrófilo e mitificador, pois torna os homens coisas, lhes tira vida e sua capacidade de crítica. Desta feita, a antidialogicidade da conquista não se baseia na “comunicação” e sim nos “comunicados” que, por sua vez, se sustentam na criação de mitos (todos são livres, todos podem ficar ricos trabalhando, direito de todos à educação, igualdade de classes, heroísmo, bondade e caridade das classes opressoras, rebelião da classe trabalhadora ser pecado contra Deus, propriedade privada, operosidade dos opressores, inferioridade ontológica dos oprimidos) que são introjetados pela massa oprimida como se fossem verdades, resultando no fortalecimento da opressão. Na verdade, o ato de dividir para oprimir, a manipulação e a invasão cultural são instrumentos de efetivação e perpetuação da conquista. O ato de dividir para oprimir implica na fragilização da massa que se torna, assim, vulnerável à conquista: “O que interessa ao poder opressor é enfraquecer os oprimidos mais do que já estão, ilhando-os, criando e aprofundando cisões entre eles, através de uma gama variada de métodos e processos” (Freire, 2011, p. 190). 168 A manipulação, por sua vez, é utilizada pelas elites dominadoras para conformar as massas populares a seus objetivos e é realizada de forma satisfatória através da criação de mitos. Assim, “quanto mais imaturas, politicamente, estejam [as massas] (rurais ou urbanas), tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites dominadoras que não podem querer que se esgote seu poder” (Freire, 2011, p. 198). O antídoto da manipulação, segundo Freire (2011, p. 200), seria a organização criticamente consciente que poderia evitar a anestesia das massas que lhes impossibilita de pensar. Já a invasão cultural, como característica da ação antidialógica e instrumento da conquista, “é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão” (Freire, 2011, p. 205). Assim, a invasão cultural é alienante e violenta com a cultura invadida que perde sua originalidade, ou se acha na iminência de perder. Os invasores culturais são atores e sujeitos do processo, e os invadidos sofrem simplesmente a ação e se tornam seus objetos. A segunda parte do quarto capítulo trata da teoria da ação dialógica e suas características, que são: a co-laboração, a união, a organização e a síntese cultural. A colaboração implica, na teoria dialógica da ação, no encontro dos sujeitos para a transformação do mundo tendo a frente um sujeito dialógico: O eu dialógico [...] sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu (Freire, 2011, p. 227). Na teoria da ação dialógica é necessário unir para libertar. Os líderes revolucionários devem se unir à massa e a massa deve ser unida entre si, no âmbito da práxis. Um dos passos mais importantes para que a união se realize autenticamente é a desmistificação da falsa unidade manipulada e imposta pela ação antidialógica. Outro passo fundamental é a existência de “uma forma de ação cultural através da qual conheçam o porquê e o como de sua ‘aderência’ à realidade que lhes dá um conhecimento falso de si mesmos e dela. É necessário desideologizar” (Freire, 2011, p. 237). Por um lado, se a teoria da ação dialógica necessita da união dos oprimidos para a realização da liberdade, por outro a organização das massas populares é 169 imprescindível para essa união: “[...] ao buscar a unidade, a liderança já busca, igualmente, a organização das massas populares, o que implica o testemunho que deve dar a elas de que o esforço de libertação é uma tarefa comum a ambas” (Freire, 2011, p. 240). Segundo Freire, o testemunho da liderança revolucionária é fundamental na organização das massas, pois “este testemunho constante, humilde e corajoso do exercício de uma tarefa comum – a da libertação dos homens – evita o risco dos dirigismos antidialógicos” (Freire, 2011, p. 240). Para tanto, o testemunho da liderança deve ser ousado, radical, amoroso, autêntico e crítico, posto que a liderança deve comandar com as massas e não para as massas, sua autoridade não pode ser autoritária (Cf. Freire, 2011, p. 241 a 245). A ação cultural é sempre uma forma de intervenção sobre uma estrutura social, ou para conservá-la ou para transformá-la. A invasão cultural, como visto, não se baseia no diálogo e não busca a libertação dos homens. A síntese cultural, ao contrário, é uma ação cultural baseada no diálogo e busca “superar as contradições antagônicas de que resulte a libertação dos homens” (Freire, 2011, p. 246). Na síntese cultural, os atores vêm conhecer com o povo e não ensinar, transmitir, entregar ou depositar. Ou seja, “na síntese cultural, os atores se integram com os homens do povo, atores, também, da ação que ambos exercem sobre o mundo”, “como ação histórica, se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante” (Freire, 2011, p. 247). 4. Dermeval Saviani e Filosofia da Educação: os condicionamentos sociais da educação Como foi exposto no primeiro capítulo deste trabalho, o final dos anos 1970, no Brasil, foi marcado por vários fatores que consolidaram o longo processo de redemocratização do Brasil. Foi nesse ambiente político que o pensamento marxista no Brasil, no campo da educação, teve uma enorme agitação, com Saviani na liderança desse movimento. Conforme recordação de Saviani: “No plano político nacional, havíamos conquistado a anistia, as eleições diretas para governadores dos estados e estávamos às vésperas da campanha das Diretas Já para a presidência da República e do fim formal da ditadura militar” (2009, p. XI). 170 Lançando mão do ideário marxista, Saviani concluiu que as pedagogias liberais não-críticas e as teorias crítico-reprodutivistas estavam distantes de uma educação democrática, sendo necessário recorrer à categoria de luta de classes para uma compreensão efetiva dos fenômenos educacionais, pois a luta de classes existia também na escola. Para Saviani o trabalho do magistério e a escola deveriam ser compreendidos no campo das batalhas político-pedagógicas visando à socialização da cultura burguesa através da escola, elemento fundamental nessa transmissão. Inicialmente, Saviani chamou essa proposta de pedagogia revolucionária, pedagogia dialética e depois a denominou de pedagogia histórico-crítica, tal como apresentada em suas linhas básicas no capítulo III – “Escola e democracia II: para além da teoria da curvatura da vara” – do livro Escola e democracia, tendo suas reflexões sido aprofundadas posteriormente no livro Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. A origem da pedagogia histórico-crítica é do ano de 1979 (Saviani, 2011, p. IX), mas somente a partir de 1984 é que Saviani, de fato, denominou essa pedagogia de histórico-crítica (Saviani, 2011, p. 1). O seu surgimento aconteceu Como uma resposta à necessidade amplamente sentida entre os educadores brasileiros de superação dos limites tanto das pedagogias não críticas, representadas pelas concepções tradicional, escolanovista e tecnicista, como das visões crítico-reprodutivistas, expressas na teoria da escola como aparelho ideológico de Estado, na teoria da reprodução e na teoria da escola dualista (Saviani, 2011, p. XV-XVI). O contexto histórico da pedagogia histórico-crítica foi o período militar brasileiro, de 1964 a 1984, no qual o governo implantava reformas do ensino e os educadores progressistas desenvolviam críticas a essas reformas, apoiados nas formulações das teorias crítico-reprodutivistas. Teorias essas muito limitadas por não serem propositivas e se apegarem ao âmbito reprodutivista da educação, apesar de fazerem a sua crítica, mas uma crítica somente contestadora, segundo Saviani. No final dos anos de 1970 e começo dos anos 1980, surge uma tendência para substituir o caráter de contestação da crítica por um caráter de superação, em virtude dos altos índices de desigualdade que marcavam o Brasil, inclusive no campo educacional: É nesse contexto que emerge a pedagogia histórico-crítica como uma teoria que procura compreender os limites da educação vigente e, ao mesmo tempo, superá-los por meio da formulação dos princípios, métodos e procedimentos práticos ligados tanto à organização do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos processos 171 pedagógicos que põem em movimento a relação professor-alunos no interior das escolas (Saviani, 2011, p. 101). A crítica vinda da visão crítico-reprodutivista foi, então, substituída pela compreensão de que a questão educacional deveria ser pensada a partir dos condicionantes sociais, por uma análise crítica consciente da determinação exercida pela sociedade sobre a educação. Surge, assim, a pedagogia histórico-crítica, que se firmava como uma análise crítico-dialética e não crítico-mecanicista (Cf. Saviani, 2011, p. 79). Ignorava-se a reciprocidade das determinações, ou seja, que “a educação é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa determinação é relativa e na forma da ação recíproca – o que significa que o determinado também reage sobre o determinante. Consequentemente a educação também interfere sobre a sociedade” (Saviani, 2011, p. 80). Dessa forma, Saviani propôs “a passagem da visão crítico-mecanicista, crítico-ahistórica para uma visão crítico-dialética, portanto histórico-crítica, da educação”, traduzida na expressão pedagogia histórico-crítica. Essa proposta compreende a educação no seu desenvolvimento histórico-objetivo e tem um projeto pedagógico compromissado com a transformação da sociedade e não com a sua manutenção: Esse é o sentido básico da expressão pedagogia histórico-crítica. Seus pressupostos, portanto, são os da concepção dialética da história. Isso envolve a possibilidade de se compreender a educação escolar tal como ela se manifesta no presente, mas entendida essa manifestação presente como resultado de um longo processo de transformação histórica (Saviani, 2011, p. 80). E a marca distintiva da pedagogia histórico-crítica é “explicitar as relações entre a educação e seus condicionamentos sociais, evidenciando a determinação recíproca entre a prática social e a prática educativa, entendida, ela própria, como uma modalidade específica da prática social” (Saviani, 2011, p. XVI). Na época, essa marca foi fundamental, pois ao longo da década de 1980, os debates teóricos que expressavam a hegemonia do pensamento progressista de esquerda não chegavam à prática educativa. Além disso, estes debates teóricos marxistas se transformaram em modismo, levando a adesões acríticas, e até mesmo sectárias, no campo da teoria educacional. A luta de Saviani contra esse modismo acarretou a própria expressão de sua pedagogia: Situei-me, pois, explicitamente no terreno do materialismo histórico, afirmando-o como base teórica de minha concepção educacional contra as interpretações reducionistas e dogmáticas que a moda 172 estimulava.[...]. A própria expressão pedagogia histórico-crítica insere-se no referido clima, já que foi uma forma de evitar a adesão fácil e ambígua que a noção de “concepção dialética” ensejava (Saviani, 2011, p. XIX). A pedagogia histórico-crítica, afirma Saviani, tem sua fundamentação filosófica, histórica, econômica e político-social no materialismo histórico de Marx, buscando compreender a educação a partir das condições históricas de produção da existência humana que resultaram na forma da sociedade atual dominada pelo capital: Quanto às bases teóricas da pedagogia histórico-crítica, é óbvio que a contribuição de Marx é fundamental. Quando se pensam os fundamentos teóricos, observa-se que, de um lado, está a questão da dialética, essa relação do movimento e das transformações; e, de outro, que não se trata de uma dialética idealista, uma dialética entre conceitos, mas de uma dialética do movimento real. Portanto, trata-se de uma dialética histórica expressa no materialismo histórico, que é justamente a concepção que procura compreender e explicar o todo desse processo, abrangendo desde a forma como são produzidas as relações sociais e suas condições de existência até a inserção da educação nesse processo (Saviani, 2011, p. 120). Apoiando-se em Sánchez Vazquez, Saviani elabora o significado da práxis como um conceito sintético que articula a teoria e a prática, ou seja, a prática fundamentada teoricamente, pois “se a teoria desvinculada da prática se configura como contemplação, a prática desvinculada da teoria é puro espontaneísmo. É o fazer por fazer” (Saviani, 2011, p. 120). Assim, nem o idealismo, primado da teoria sobre a prática, nem o pragmatismo, primado da prática sobre a teoria, e sim a práxis, conforme Saviani (2011). Gramsci é outro filósofo ao qual Saviani recorre para sustentar a defesa da práxis como interação entre teoria e prática: Já a filosofia da práxis, tal como Gramsci chamava o marxismo, é justamente a teoria que está empenhada em articular a teoria e a prática, unificando-as na práxis. É um movimento prioritariamente prático, mas que se fundamenta teoricamente, alimenta-se da teoria para esclarecer o sentido, para dar direção à prática. Então, a prática tem primado sobre a teoria, na medida em que é originante. A teoria é derivada. Isso significa que a prática é, ao mesmo tempo, fundamento, critério de verdade e finalidade da teoria. A prática, para desenvolverse e produzir suas consequências, necessita da teoria e precisa ser por ela iluminada (Saviani, 2011, p. 120). Além do materialismo histórico marxiano, a pedagogia histórico-crítica tem fontes teóricas que remetem a outros clássicos, inclusive porque Marx não trabalhou 173 diretamente as questões pedagógicas. Assim, “somente será possível formular algo consistente na relação e com a presença dos clássicos. Não somente com os clássicos da cultura, de modo geral, e da filosofia, em particular, mas também da pedagogia”. (Saviani, 2011, p. 124). Para Saviani, é necessário compreender o processo de formação das pedagogias e suas correntes, incluindo os brasileiros, que os alunos tem deixado de lado desde os anos 1970, tais como Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, Paulo Freire (Cf. Saviani, 2011, p. 125). Saviani ressalta, ainda, como fontes específicas da pedagogia histórico-crítica, os seguintes autores que procuraram abordar os problemas pedagógicos a partir das matrizes teóricas do materialismo histórico, representadas basicamente, por Marx e Gramsci: Bogdan Suchodolski; Mario Alighiero Manacorda; e Georges Snyders. Além desses autores, situados mais propriamente no âmbito da filosofia da educação, Saviani faz referência a nomes no campo da psicopedagogia, como os integrantes da Escola de Vigotsky, e da pedagogia, como Pistrak, Makarenko, e os intérpretes das ideias pedagógicas de Gramsci como Manacorda, Brocoli, Betti e Ragazzini (Cf. Saviani, 2011, p. 125). A pedagogia histórico-crítica busca compreender a questão educacional com base no desenvolvimento histórico objetivo, pressupondo, assim, o materialismo histórico, a compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana (Cf. Saviani, 2011, p. 88). Nesse universo social, “a prática é o fundamento, o critério de verdade e a finalidade da teoria, uma vez que são as condições materiais que determinam a consciência e não o contrário” (Saviani, 2011, p. 103). A expressão histórico-crítica traduzia esse enraizamento histórico, ao contrário das teorias crítico-reprodutivistas que não apreendiam o movimento histórico que se desenvolve dialeticamente em suas contradições. O compromisso histórico da época era dar conta desse movimento e ver como a pedagogia se inseria no processo da sociedade e de suas transformações. Por isso, a expressão histórico-crítica contrapunha-se a expressão crítico-reprodutivista e a suas ideias, e também o porquê da escolha da denominação (Cf. Saviani, 2011, p. 119). Outro elemento central que deve ser destacado na pedagogia histórico-crítica é sua concepção sobre a educação escolar como componente fundamental no processo educativo. Para a pedagogia histórico-crítica “o trabalho educativo é o ato de produzir, 174 direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens” (Saviani, 2011, p. 13). E a escola existe para “propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber” (Saviani, 2011, p. 14). Assim, o objetivo final da escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado pela humanidade e que foi produzido coletivamente (Cf. Saviani, 2011, p. 17). A educação, incluindo conhecimentos, ideias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos etc., constitui uma atividade imprescindível para a formação da humanidade e que se exerce a partir de cada indivíduo singular, como uma segunda natureza, produzida intencionalmente através de relações pedagógicas historicamente determinadas entre os homens (Cf. Saviani, 2011, p. 20). Dessa forma, “o problema da pedagogia é justamente permitir que as novas gerações se apropriem, sem necessidade de refazer o processo, do patrimônio da humanidade, isto é, daqueles elementos que a humanidade já produziu e elaborou” (Saviani, 2011, p. 68). Nessas bases históricas, a pedagogia histórico-crítica se empenha na defesa da especificidade da escola. Conforme Saviani, a escola exerce uma função especificamente educativa, pedagógica, ligada à questão do conhecimento. Por isso, é preciso “resgatar a importância da escola e reorganizar o trabalho educativo, levando em conta o problema do saber sistematizado, a partir do qual se define a especificidade da educação escolar” (Saviani, 2011, p. 84). É preciso, então, observar que a tendência a secundarizar a escola expressa a própria contradição da sociedade de classes constituída de interesses opostos, na qual a instrução generalizada da população contraria esses interesses de classes. Segundo a pedagogia histórico-crítica, que faz a ferrenha defesa da escola, essa tentativa de desvalorização da escola objetiva diminuir o seu impacto na transformação da sociedade (Cf. Saviani, 2011, p. 84). Assim, “não é possível compreender a educação sem a escola, porque a escola é a forma dominante e principal de educação” (Saviani, 2011, p. 88). Para Saviani, só é possível compreender as diferentes modalidades de educação a partir da compreensão da escola, mas é possível compreender a escola independentemente das demais modalidades de educação (Cf. Saviani, 2011, p. 88). 175 Assim, para a pedagogia histórico-crítica, a questão escolar, a defesa da especificidade da escola e a importância do trabalho escolar são elementos necessários ao desenvolvimento cultural que constituem o desenvolvimento humano em geral: A escola é, pois, compreendida com base no desenvolvimento histórico da sociedade; assim compreendida, torna-se possível a sua articulação com a superação da sociedade vigente em direção a uma sociedade sem classes, a uma sociedade socialista. É dessa forma que se articula a concepção política socialista com a concepção pedagógica histórico-crítica, ambas fundadas no mesmo conceito geral de realidade, que envolve a compreensão da realidade humana como sendo construída pelos próprios homens, a partir do processo de trabalho, ou seja, da produção das condições materiais ao longo do tempo (Saviani, 2011, p. 88). Dessa forma, a opção política assumida pela pedagogia histórico-crítica é que a questão educacional é sempre referida ao problema do desenvolvimento social e das classes sociais e, nesse âmbito, ela assume a defesa dos interesses populares na educação visando à transformação da sociedade. Por isso, “a proposta de socialização do saber elaborado é a tradução pedagógica do princípio mais geral da socialização dos meios de produção. Ou seja, do ponto de vista pedagógico, também se trata de socializar o saber elaborado, pois este é um meio de produção” (Saviani, 2011, p. 72). Saviani pondera que toda essa questão dos fundamentos filosóficos remetem à questão do método. Para tanto, o autor afirma se apoiar em um texto que lhe é basilar, o “Método da economia política”, parte do livro Contribuição à crítica da economia política, de Marx: “Nele explicita-se o movimento do conhecimento como a passagem do empírico ao concreto, pela mediação do abstrato. Ou a passagem da síncrese à síntese, pela mediação da análise. Procurei, de algum modo, compreender o método pedagógico com base nesses pressupostos” (Saviani, 2011, p. 120). 4.1. Escola e democracia Segundo Saviani (2011), o livro Escola e democracia pode ser considerado uma introdução preliminar à pedagogia histórico-crítica. Mas, inicialmente, ele foi fruto da organização, em um só volume, de vários artigos que giravam em torno de temáticas afins. Textos que, por sua vez, foram material de artigos publicados em diversas revistas38. No prefácio à 36ª edição, Saviani define o livro da seguinte forma: 38 Saviani, no prefácio à 34ª edição de Escola e democracia, se refere da seguinte forma à publicação dessa obra: “Com efeito, embora a publicação do livro date de setembro de 1983, o primeiro capítulo foi 176 Escola e democracia inseriu-se no debate pelo seu conteúdo polêmico e, além da denúncia das nossas mazelas educacionais, trouxe também não apenas o anúncio de novas perspectivas, mas contribuiu igualmente para uma melhor compreensão das questões pedagógicas, propiciando aos leitores uma sistematização sucinta das principais teorias educacionais (Saviani, 2009, p. XI). O primeiro capítulo, As teorias da educação e o problema da marginalidade, apresenta uma síntese das principais teorias não críticas: pedagogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnicista; bem como das teorias crítico-reprodutivistas: teoria da escola enquanto violência simbólica, teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Estado e teoria da escola dualista. A análise dessas teorias aponta para a necessidade de sua superação, o que já é anunciado no item “Para uma teoria crítica da educação”, o último desse capítulo (Cf. Saviani, 2011, p. 5). O segundo capítulo, Escola e democracia I – A teoria da curvatura da vara, leva adiante o caminho de aproximação da pedagogia histórico-crítica através de uma apreciação radical da pedagogia liberal burguesa e denuncia a escola nova e sua pedagogia burguesa de inspiração liberal para melhor demarcar a pedagogia socialista de inspiração marxista (Cf. Saviani, 2011, p. 5). O terceiro capítulo de Escola e democracia, Escola e democracia II – Para além da curvatura da vara, é um esboço de formulação da pedagogia histórico-crítica. Contrapõe-se às pedagogias tradicional e nova, expõe os pressupostos filosóficos, a proposta pedagógico-metodológica e o significado político da pedagogia históricocrítica (Cf. Saviani, 2011, p. 6). Por fim, o quarto capítulo, Onze teses sobre educação e política, caracteriza a especificidade da prática educativa no confronto com a prática política. Aí se encontra afirmada a sua tese central: a especificidade da educação está no desenvolvimento do fenômeno educativo escolar (Cf. Saviani, 2011, p. 6). A seguir, passemos em revista cada um desses capítulos. escrito e publicado originalmente em 1982 como artigo no número 42 de Cadernos de Pesquisa, revista de estudo e pesquisas em educação da Fundação Carlos Chagas. O segundo capítulo resultou da exposição oral ocorrida no simpósio ‘Abordagem política do funcionamento interno da escola de 1º grau’ que integrou a programação da I Conferência Brasileira de Educação, realizada em São Paulo, de 31 de março a 3 de abril de 1980. A referida exposição, uma vez transcrita, foi publicada como artigo no número 1 de ANDE, Revista da Associação Nacional de Educação, em 1981. O terceiro capítulo foi escrito e publicado em 1982, no número 3, também da revista da ANDE. Finalmente, o quarto capítulo foi escrito em 1983 especialmente para integrar o presente livro. Portanto, o conteúdo desta obra foi produzido e divulgado entre 1980 e 1983” (Saviani, 2009, p. XVII). 177 No primeiro capítulo, As teorias da educação e o problema da marginalidade, Saviani inicia delimitando o problema a ser tematizado pelas teorias da educação: o problema da marginalidade relativamente ao fenômeno educativo como, por exemplo, o analfabetismo, semianalfabetismo e o contingente de criança em idade escolar fora da escola, objetivando explicar como as teorias educacionais se posicionam diante dessa situação de marginalidade escolar (Cf. Saviani, 2009, p. 3). Para o autor, existiria dois grupos com explicações e posições diversas. O primeiro grupo abrange “aquelas teorias que entendem ser a educação um instrumento de equalização social, portanto, de superação da marginalidade” (Saviani, 2009, p. 3). Essa compreensão da marginalidade escolar, segundo Saviani, reflete a compreensão de cada teoria, relativamente ao entendimento das relações entre educação e sociedade. Sendo assim, o primeiro grupo de teorias percebe a sociedade como sendo harmoniosa, e tendente à integração dos seus membros. Dessa forma, a marginalidade é acidental, um desvio que pode e deve ser corrigido pela própria educação, que é um instrumento de correção dessas distorções. A educação, então, é uma força homogeneizadora que reforça os laços sociais, promove e garante a integração de todos os indivíduos no corpo social. Ou seja, ela ajuda a superar a marginalidade escolar (Cf. Saviani, 2009, p. 4). A esse primeiro grupo Saviani denomina de “teorias não-críticas”, pois “encaram a educação como autônoma e buscam compreendê-la a partir dela mesmo” (Saviani, 2009, p. 5), desconhecendo seus condicionantes sociais. No segundo grupo “estão as teorias que entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator de marginalização” (Cf. Saviani, 2009, p. 3). Essa compreensão da educação também reflete uma dada percepção entre educação e sociedade que, nesse caso, compreende a divisão antagônica de classes sociais que constitui a sociedade e as suas condições correspondentes da produção da vida material. A marginalidade, portanto, é um fenômeno da própria estrutura social: “Isso porque o grupo ou classes que detém maior força se converte em dominante se apropriando dos resultados da produção social, tendendo, em consequência, a relegar os demais à condição de marginalizados” (Saviani, 2009, p. 4). A educação, por sua vez, sendo dependente da estrutura social que gera a marginalidade, reforça a marginalização. Ao invés de ser um instrumento de superação, reforça a marginalidade social e cultural, inclusive a escolar (Saviani, 2009, p. 4). As teorias desse segundo grupo são reconhecidas por Saviani como sendo críticas, pois reconhecem na educação 178 seus condicionantes sociais, mas também são reprodutivistas, por compreenderem a educação somente como um elemento de reprodução social. Assim, são tidas como “crítico-reprodutivistas” (Cf. Saviani, 2009, p. 5). Para Saviani, as principais teorias não críticas são: pedagogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnicista. A pedagogia tradicional é fruto da burguesia ascendente que, em busca da consolidação da democracia burguesa e do combate à opressão do Antigo Regime, acredita ser necessário vencer a ignorância dos súditos para transformá-los em cidadãos esclarecidos e ilustrados, através do ensino. Por isso, para essa teoria da educação, a marginalidade é sinônimo de ignorância: Nesse quadro, a causa da marginalidade é identificada com a ignorância. É marginalizado da nova sociedade quem não é esclarecido. A escola surge como um antídoto à ignorância, logo, um instrumento para equacionar o problema da marginalidade. Seu papel é difundir a instrução, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente (Saviani, 2009, p. 5). A pedagogia tradicional tem sua centralidade na figura do professor e no ambiente escolar, os quais representavam a grande esperança do progresso do conhecimento. Contudo, a não universalização do ensino proposta pela escola tradicional trouxe uma grande decepção a toda a sociedade, juntamente com as críticas à sua proposta (Cf. Saviani, 2009, p. 6). A pedagogia nova, por sua vez, é uma teoria da educação oriunda das críticas feitas à pedagogia tradicional no final do século XIX. Ela conserva a convicção de que a escola corrige as desigualdades sociais, bem como a distorção expressa no fenômeno da marginalidade: “Se a escola não vinha cumprindo essa função, tal fato devia-se a que o tipo de escola implantado – a Escola Tradicional – se revelara inadequado. Toma corpo, então, um amplo movimento de reforma, cuja expressão mais típica ficou conhecida pelo nome de ‘escolanovismo’” (Saviani, 2009, p. 6). Nessa nova teoria da educação, a marginalidade já não significa ignorância ou falta de conhecimento e sim rejeição: “O marginalizado já não é, propriamente, o ignorante, mas o rejeitado. Alguém está integrado não quando é ilustrado. Mas quando se sente aceito pelo grupo e, por meio dele, pela sociedade em seu conjunto” (Saviani, 2009, p. 7). Essa rejeição, em que se centrou inicialmente a escola nova, era referente às “anormalidades” psico e biológicas (Decroly, Montessori, etc.), mas ao longo do tempo se fixou nas diferenças individuais (Cf. Saviani, 2009, p. 7). 179 Dessa forma, a educação promoverá a harmonia social ao corrigir a marginalidade através da adaptação dos indivíduos “diferentes” à sociedade, ou seja, “incutindo neles o sentimento de aceitação dos demais e pelos demais” (Saviani, 2009, p. 8). Assim, Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação, por referência à pedagogia tradicional, tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o nãodiretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia. Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é aprender, mas aprender a aprender (Saviani, 2009, p. 8). Contudo, a proposta da escola nova não conseguiu modificar de forma significativa o sistema educacional, inclusive pelo seu alto custo. Em virtude disso, a escola nova resultou na formação de núcleos experimentais de acesso restrito somente a pequenos grupos de elite. Contudo, o ideário escolanovista se disseminou entre os educadores, modificando suas mentalidades muito próximas, ainda, às ideias da escola tradicional. Conforme Saviani, essas ideias não foram de todo benéficas, pois acabaram por favorecer aos interesses dominantes e por rebaixar o nível do ensino das camadas populares, pois eram: afrouxamento da disciplina; despreocupação com a transmissão de conhecimentos; deslocamento educacional do eixo político para o técnicopedagógico; valorização do interior da escola no lugar da exterioridade da sociedade. Assim, em vista de todo esse complexo teórico-prático, Saviani é enfático ao afirmar que “em lugar de resolver o problema da marginalidade, a ‘Escola Nova’ o agravou” (Cf. Saviani, 2009, p. 9). Como resultado da desilusão com a escola nova e a frustração de seus resultados, surge a pedagogia tecnicista, uma nova teoria educacional. Por um lado, havia a tentativa de desenvolver uma “Escola Nova Popular”, representada pelas propostas pedagógicas de Freinet e Paulo Freire, por outro lado, surgia a pedagogia tecnicista, fruto da preocupação excessiva com os métodos pedagógicos presentes na escola nova, que findou por resultar na centralidade da eficiência instrumental (Cf. Saviani, 2009, p. 10): “A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a 180 reordenação do processo educativo de maneira a torna-lo objetivo e operacional” (Saviani, 2009, p. 11). A pedagogia tecnicista foi pensada de modo a planejar a educação a partir de uma organização racional, minimizando ao máximo as interferências subjetivas que colocassem em risco a eficiência da operação educativa. Por isso, passou-se a falar em operacionalização do sistema; mecanização do processo; enfoque sistêmico; microensino; telensino; instrução programada; máquinas de ensinar; formulários; etc.: Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor – que era, ao mesmo tempo, o sujeito do processo, o elemento decisivo e decisório – e se na pedagogia nova a iniciativa se desloca para o aluno – situando-se o nervo da ação educativa na relação professor-aluno, portanto, relação interpessoal, intersubjetiva –, na pedagogia tecnicista, o elemento principal passa a ser a organização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno posição secundária, relegados que são à condição de executores de um processo cuja concepção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais. A organização do processo converte-se na garantia da eficiência, compensando e corrigindo as deficiências do professor e maximizando os efeitos de sua intervenção (Saviani, 2009, p. 11-12). Assim, então, para a pedagogia tecnicista a marginalidade não é a ignorância nem o sentimento de rejeição. Aqui, o marginalizado é o incompetentemente técnico, o ineficiente e improdutivo. A educação ajudará a superar a marginalidade formando indivíduos eficientes para o aumento da produtividade social. Dessa forma, corrigir as deficiências da sociedade é equilibrar o sistema, formando tecnicamente os indivíduos para que não haja improdutividade e ameaças à estabilidade do sistema (Cf. Saviani, 2009, p. 12). Portanto, “a educação será concebida, pois, como um subsistema, cujo funcionamento eficaz é essencial ao equilíbrio do sistema social de que faz parte” (Saviani, 2009, p. 13). Conforme Saviani, essa eficiência operacional em que se pauta a escola tecnicista se sustenta teoricamente nos seguintes conhecimentos: psicologia behaviorista; engenharia comportamental; ergonomia; informática; cibernética; filosoficamente ela se apoia no neopositivismo e no método funcionalista. Já pedagogicamente falando, afirma o autor: “se para a pedagogia tradicional a questão é aprender e para a pedagogia nova, aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista o que importa é aprender a fazer” (Saviani, 2009, p. 13). Assim, com essa burocratização e tecnização da educação, a pedagogia tecnicista só conseguiu agravar ainda mais o 181 problema da marginalidade escolar: “o conteúdo do ensino tornou-se rarefeito e a relativa ampliação das vagas tornou-se irrelevante em face dos altos índices de evasão e repetência” (Saviani, 2009, p. 14). Contudo, por um lado, podemos chamar a esse primeiro grupo de “teorias nãocríticas”, por conceberem a marginalidade escolar como um desvio a ser corrigido pela educação e por desconhecerem as determinações sociais do fenômeno educativo. Por outro lado, as teorias do segundo grupo são críticas, pois compreendem a educação a partir dos seus condicionantes sociais, mas concluem que a função da educação consiste na reprodução da sociedade e, por isso, são denominadas de “teorias críticoreprodutivistas” (Cf. Saviani, 2009, p. 14). As teorias que são enfeixadas como crítico-reprodutivistas são: teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica; teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Estado; e teoria da escola dualista. A teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica se encontra na obra A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, de 1970 e traduzido no Brasil em 1975. Saviani (1995) ressalta a ideia central do axioma da teoria da seguinte forma: Por que violência simbólica? Os autores tomam como ponto de partida que toda e qualquer sociedade estrutura-se como um sistema de relações de força material entre grupos ou classes. Sobre a base da força material e sob sua determinação erige-se um sistema de relações de força simbólica cujo papel é reforçar, por dissimulação, as relações de força material (Saviani, 1995, p. 29). A teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Estado está presente no texto de 1970, intitulado Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, do filósofo marxista francês Louis Althusser. A questão central ligada aos AIE pode ser compreendida do seguinte modo: Ao analisar a reprodução das condições de produção que implica a reprodução das forças produtivas e das relações de produção existentes, Althusser distingue, no Estado, os aparelhos repressivos e os aparelhos ideológicos. Os primeiros funcionam massivamente pela violência e secundariamente pela ideologia. Inversamente, os segundos funcionam massivamente pela ideologia e secundariamente pela repressão (Saviani, 2007, p. 393). Althusser conclui que no capitalismo, dentre os Aparelhos Ideológicos de estado (AIE) (religioso, familiar, jurídico, sindical, da informação, cultural), o aparelho ideológico de Estado escolar se transformou em aparelho ideológico dominante, pois a 182 escola tornou-se o instrumento mais eficaz para a reprodução das relações de produção capitalista. A teoria da escola dualista, por sua vez, se encontra no livro L’école capitaliste em France, de autoria de Christian Baudelot e Roger Establet, de 1971, que teve tradução parcial brasileira em 1974. Para essa teoria, a principal função da escola é a inculcação da ideologia burguesa. Isto acontece pela inculcação explícita da ideologia burguesa e pelo recalcamento da ideologia proletária. Assim, a escola, mesmo aparentando ser “unitária e unificadora, é uma escola divida em duas [...] grandes redes, as quais correspondem à divisão da sociedade capitalista em duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado” (Saviani, 1995, p. 35). Mas para a teoria da escola dualista, a ideologia do proletariado tem origem e existência fora da escola, nas massas operárias e em suas organizações, e a escola é somente um aparelho ideológico da burguesia a serviço de seus interesses. No item Para uma teoria crítica da educação, Saviani aponta para o fato de que nem as teorias não-críticas e nem as teorias crítico-reprodutivistas captam “criticamente a escola como um instrumento capaz de contribuir para a superação do problema da marginalidade” (Saviani, 2009, p. 28). Por isso elas precisam ser superadas por uma teoria crítica que não caia no reprodutivismo, mas essa teoria “só poderá ser formulada do ponto de vista dos interesses dos dominados” (Saviani, 2009, p. 28), articulando a escola com estes interesses. Dessa forma, uma teoria crítica deve: “superar tanto o poder ilusório (que caracteriza as teorias não-críticas) como a impotência (decorrente das teorias crítico-reprodutivistas), colocando nas mãos dos educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado” (Saviani, 2009, p. 28). Na elaboração de uma teoria crítica, para melhor se proceder na defesa dos interesses populares, é necessário evitar que os interesses dos dominados sejam confundidos com os interesses dos dominantes. Por isso, é preciso captar a natureza específica da educação para se compreender suas complexas mediações de inserção contraditória na sociedade capitalista. Saviani chama a atenção para o fato de que “o leitor encontrará um esboço dessa teoria no texto Escola e Democracia: para além da curvatura da vara’, neste livro” (Saviani, 2009, p. 29) que, como já enfatizamos anteriormente, se trata do esboço inicial da pedagogia histórico-crítica, chamada nesse 183 momento somente de teoria crítica, que tem como principais bandeiras de luta as seguintes posições: Do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Lutar contra a marginalidade por meio da escola significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes (Saviani, 2009, p. 29). O segundo capítulo, Escola e democracia I – A teoria da curvatura da vara, traz uma crítica radical da pedagogia liberal burguesa, representada pela escola nova, para apresentar suas fronteiras com a pedagogia socialista de inspiração marxista, já indicada na referência inicial à teoria crítica. O capítulo se desenvolve em cima de três teses: a primeira tese é filosófico-histórica e defende o caráter revolucionário da pedagogia da essência e o caráter reacionário da pedagogia da existência; a segunda tese é pedagógico-metodológica e enuncia o caráter científico do método tradicional e o caráter pseudocientífico dos métodos novos; a terceira tese é politico-educacional e assevera que “quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrática foi a escola; e [...] quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construção de uma ordem democrática” (Saviani, 2009, p. 34). É explicada também nesse segundo capítulo a expressão “teoria da curvatura da vara” que compõe o seu título. Saviani explicita que, conforme Althusser, essa expressão foi utilizada por Lênin ao ser criticado por suas posições radicais: “quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireita-la, não basta colocala na posição correta. É preciso curvá-la para o lado oposto” (Lênin apud Saviani, 2009, p. 34). Com isso, Saviani espera amenizar a excessiva valorização da pedagogia da existência, representada pela escola nova, e fortalecer a fragilização que sofreu a pedagogia da essência, representada pela pedagogia tradicional. Assim, é necessário curvar a vara para o lado oposto, reconhecendo a potencialidade com a qual a pedagogia da essência pode contribuir na criação da teoria crítica: A minha expectativa é justamente que com essa inflexão a vara atinja o seu ponto correto, o qual não está também na pedagogia tradicional, mas na valorização dos conteúdos que apontam para uma pedagogia revolucionária. Esta identifica as propostas burguesas como elementos de recomposição de mecanismos hegemônicos e dispõe-se a lutar concretamente contra a recomposição desses mecanismos de 184 hegemonia, no sentido de abrir espaço para as forças emergentes da sociedade, para as forças populares, para que a escola se insira no processo mais amplo de construção de uma nova sociedade (Saviani, 2009, p. 52). As três teses propostas, que norteiam o presente capítulo, são desenvolvidas ao longo de seis tópicos intitulados: O homem livre; A mudança de interesses; A falsa crença na Escola Nova; O ensino não é pesquisa; A Escola Nova não é democrática; e Escola Nova: a hegemonia da classe dominante. A primeira tese filosófico-histórica defende o caráter revolucionário da pedagogia da essência e o caráter reacionário da pedagogia da existência, argumentando o caráter histórico e filosófico do homem livre. Na antiguidade grega, a essência livre do homem só se realizava nos homens livres porque o escravo não era identificado como homem; na Idade Média, a concepção essencialista de homem é concebida como resultado da criação divina, portanto servos e senhores já nasciam sob o signo da liberdade ou não, conforme sua posição social; na Idade Moderna, a burguesia em ascenção como classe revolucionária defende a igualdade dos homens como algo que lhes é essencial, obviamente para ganhar adeptos para a sua luta pelo poder. A postura filosófica da burguesia é de defesa da filosofia da essência, que implica a igualdade universal entre os homens. Posteriormente, a pedagogia da essência é deduzida desse princípio filosófico: “Sobre essa base da igualdade dos homens, de todos os homens, é que se funda então a liberdade, e é sobre, justamente, a liberdade que se vai postular a reforma da sociedade” (Saviani, 2009, p. 36). Dessa forma, a burguesia revolucionária estruturou os sistemas nacionais de ensino e advogou a escolarização para todos, somente assim é que os servos medievais iriam se transformar em cidadãos e se poderia concretizar o processo político de consolidação da democracia burguesa e, consequentemente, seu poder de classe. Contudo, na medida em que a burguesia se estabeleceu no poder e deixou de ser classe revolucionária, a bandeira da igualdade essencial dos homens deixou de servir aos seus interesses: É nesse momento que a Escola Tradicional, a pedagogia da essência, já não vai servir e a burguesia vai propor a pedagogia da existência. Ora, [...], o que é a pedagogia da existência senão diferentemente da pedagogia da essência, que é uma pedagogia que se fundava no igualitarismo, uma pedagogia da legitimação das desigualdades? Com base nesse tipo de pedagogia, considera-se que os homens não são essencialmente iguais; os homens são essencialmente diferentes, e nós temos de respeitar as diferenças entre os homens. Então, há aqueles que têm mais capacidade; há aqueles que aprendem mais devagar; há 185 aqueles que se interessam por isso e os que se interessam por aquilo (Saviani, 2009, p. 38). Dessa forma, conforme Saviani, a pedagogia da existência é reacionária, pois ao legitimar as desigualdades, a dominação, a sujeição e os privilégios “vai contrapor-se ao movimento de libertação da humanidade em seu conjunto” (Saviani, 2009, p. 38) (Grifo nosso). Inversamente, nesse contexto, a pedagogia da essência passa a ser revolucionária ao defender a igualdade essencial entre os homens e, por isso, promover a eliminação de privilégios que impedem a realização humana. Mas agora o papel revolucionário não é mais da burguesia, como no início da modernidade, mas da classe que a burguesia explora (Cf. Saviani, 2009, p. 38). A segunda tese defendida nesse segundo capítulo tem o caráter pedagógicometodológico e enuncia o caráter científico do método tradicional e o caráter pseudocientífico dos métodos novos. Para Saviani, o movimento da Escola Nova apresentou, equivocadamente, o método tradicional como um método pré-científico, dogmático e medieval. Na verdade, diz o autor, nem o método tradicional é pré-científico, nem muito menos o ensino tradicional que lhe acompanha. Assim, [o] método tradicional foi constituído após a Revolução Industrial, contrariamente, portanto, ao argumento que os escolanovistas comumente levantam de que a Revolução Industrial transformou a sociedade, determinou uma sociedade não mais estática, em mudança contínua, que essa Revolução Industrial, que tem seu fundamento na ciência, não teve sua contrapartida na educação, que continuou sendo pré-científica, seguindo lemas medievais (Saviani, 2009, p. 39). Da mesma maneira, o ensino tradicional, predominante ainda hoje nas escolas, se constituiu após a Revolução Industrial e foi implantado nos sistemas nacionais de ensino a partir de meados do século XIX, “no momento em que, consolidado o poder burguês, se aciona a escola redentora da humanidade, universal, gratuita e obrigatória, como um instrumento de consolidação da ordem democrática” (Saviani, 2009, p. 3839). E, segundo Saviani, o ensino tradicional é, precisamente, e contrariando os escolanovistas, a contrapartida da Revolução Industrial na educação. Portanto, um ensino com bases científicas e não medieval. Para Saviani, o método pedagógico do ensino tradicional é o método expositivo, o qual tem sua matriz teórica nos cinco passos formais de Herbart (preparação, apresentação, comparação e assimilação, generalização e aplicação) que correspondem 186 ao esquema do método científico indutivo formulado por Bacon, constituído de três momentos: observação, generalização e confirmação. “Trata-se, portanto, daquele mesmo método formulado no interior do movimento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciência moderna” (Saviani, 2009, p. 40), afirma Saviani, reforçando a cientificidade do método expositivo do ensino tradicional. Quanto à afirmação do caráter pseudocientífico dos métodos novos da segunda tese, Saviani o atribui ao fato da Escola Nova confundir ensino com pesquisa: [...] o que o movimento da Escola Nova fez foi tentar articular o ensino com o processo de desenvolvimento da ciência, ao passo que o chamado método tradicional o articulava com o produto da ciência. Em outros termos, a Escola Nova buscou considerar o ensino como um processo de pesquisa; daí por que ela se assenta no pressuposto de que os assuntos de que trata o ensino são problemas, isto é, são assuntos desconhecidos não apenas pelo aluno, como também pelo professor. Nesse sentido, o ensino seria o desenvolvimento de uma espécie de projeto de pesquisa (Saviani, 2009, p. 42). Assim, nos métodos novos, são privilegiados os processos de obtenção dos conhecimentos, enquanto nos métodos tradicionais, são privilegiados os métodos de transmissão dos conhecimentos (Cf. Saviani, 2009, p. 43). Para Saviani, uma grande fragilidade dos métodos novos é desprezar o fato de que “sem o domínio do conhecido, não é possível incursionar no desconhecido. E aí também a grande força do ensino tradicional: a incursão no desconhecido fazia-se sempre por meio do conhecido” (Saviani, 2009, p. 43). Dessa forma, a Escola Nova dissolveu a diferença entre pesquisa e ensino, empobrecendo o ensino e inviabilizando também a pesquisa, pois o ensino não é um processo de pesquisa, conforme Saviani. Transformar o ensino em um processo de pesquisa é torná-lo artificial: “Daí o meu prefixo ‘pseudo’ ao científico dos métodos novos” (Saviani, 2009, p. 43), diz o autor. A terceira tese defendida nesse segundo capítulo é de cunho politico-educacional e afirma que quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos ela foi democrática e, inversamente, quando menos se falou em democracia, mais a escola contribuiu para a construção da ordem democrática (Cf. Saviani, 2009, p. 34). Saviani tem por objetivo demonstrar que a Escola Nova, que fazia a defesa da democracia no seu discurso, se mostrou elitista em função da sua preocupação com as diferenças e, inversamente, a escola tradicional, tida como conservadora e elitista, foi 187 quem mais contribuiu para a proposta democrática com a bandeira da transmissão do conhecimento. Para Saviani, a Escola Nova, ao priorizar o tratamento diferencial, abandonou a busca de igualdade em nome da democracia, da mesma forma que introduziu no interior da escola procedimentos ditos democráticos. Para o autor, hoje é possível saber a quem serviu essa democracia e quem se beneficiou dela: “Não foi o povo, não foram os operários, não foi o proletariado. Essas experiências ficaram restritas a pequenos grupos, e nesse sentido elas constituíram-se, em geral, em privilégios para os privilegiados, legitimando as diferenças” (Saviani, 2009, p. 44). Da mesma forma, para Saviani, com o escolanovismo, a preocupação política em relação à escola refluiu, a iniciativa em articular a escola com a participação política e democrática transformou-se em mero cuidado com o aspecto técnico-pedagógico: Passou-se do ‘entusiasmo pela educação’, quando se acreditava que a educação poderia ser um instrumento de participação das massas no processo político, para o ‘otimismo pedagógico’, em que se acredita que as coisas vão bem e se resolvem nesse plano interno das técnicas pedagógicas (Saviani, 2009, p. 47). A Escola Nova, ao invés de favorecer a educação do povo, recompôs os mecanismos de hegemonia da classe dominante: “se na fase do ‘entusiasmo pela educação’ o lema era ‘escola para todos’, [...], agora a Escola Nova vem transferir a preocupação dos objetivos e dos conteúdos para os métodos e da quantidade para a qualidade” (Saviani, 2009, p. 47). Com isso, a Escola Nova possibilitou o aprimoramento do ensino destinado às elites e o rebaixamento do nível de ensino destinado às camadas populares (Cf. Saviani, 2009, p. 48): Em suma, o movimento de 1930, no Brasil, devido à ascensão do escolanovismo, correspondeu a um refluxo e até a um desaparecimento daqueles movimentos populares que advogavam uma escola mais adequada aos seus interesses. E por que isso? A partir de 1930, ser progressista passou a significar ser escolanovista. E aqueles movimentos sociais, de origem, por exemplo, anarquista, socialista, marxista, que conclamavam o povo a se organizar e reivindicar a criação de escolas para os trabalhadores, perderam a vez, e todos os progressistas em educação tenderam a endossar o credo escolanovista (Saviani, 2009, p. 49). Diversamente do “aligeiramento” do ensino destinado às camadas populares, presente na proposta escolanovista, Saviani defende o aprimoramento do ensino destinado às camadas populares através da priorização de conteúdo. Para o autor, os 188 conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes não existe aprendizagem e ela se transforma em farsa. Assim, deve haver “a prioridade de conteúdos, que é a única forma de lutar contra a farsa do ensino. [...] Justamente porque o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação politica das massas” (Saviani, 2009, p. 50) (Grifos meus). Conforme Saviani, se as camadas populares não dominam os conteúdos culturais, elas não têm o instrumento principal para fazer valer os seus interesses e, assim, ficam desarmadas diante dos dominadores, que usam os conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação: “o dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação” (Saviani, 2009, p. 51). (Grifos nossos). Contudo, somente a prioridade de conteúdo não basta, pois é “fundamental que se esteja atento para a importância da disciplina, quer dizer, sem disciplina esses conteúdos relevantes não são assimilados” (Saviani, 2009, p. 51). Dessa forma, Saviani acredita ser possível fazer uma profunda reforma na escola, partindo de seu interior, se começássemos “a atuar segundo esses pressupostos e mantivéssemos uma preocupação constante com o conteúdo e desenvolvêssemos aquelas fórmulas disciplinares, aqueles procedimentos que garantissem que esses conteúdos fossem realmente assimilados” (Saviani, 2009, p. 51) (Grifo nosso). Esse seria, efetivamente, o procedimento democrático e democratizante do ensino, para o autor. O terceiro capítulo de Escola e democracia, Escola e democracia II – Para além da curvatura da vara, consiste no esboço da pedagogia histórico-crítica. A proposta inicial da construção de uma teoria crítica é contraposta às pedagogias tradicional e nova, bem como seus pressupostos filosóficos, sua proposta pedagógicometodológica e o seu significado político que Saviani vai desenvolvendo ao longo da retomada dialética das três teses defendidas no capítulo anterior (Cf. Saviani, 2011, p. 6). No item Pedagogia nova e pedagogia da existência, Saviani indica e explica a equivalência e a diferença das expressões “pedagogia nova” e “pedagogia da existência”, visando desfazer um mal entendido criado por alguns críticos de seu trabalho que teriam compreendido que o autor afirmara que a pedagogia nova equivaleria à pedagogia da existência (Saviani, 2009, p. 56). 189 O autor esclarece que ambas as pedagogias pertencem à concepção humanista moderna de Filosofia da Educação que, por sua vez, se baseia “na vida, na existência, na atividade”, em oposição à concepção tradicional que se baseava “no intelecto, na essência, no conhecimento”. Contudo, a concepção humanista moderna de Filosofia da Educação é bastante abrangente e se compõe de diversas escolas filosóficas, tais como: o pragmatismo, o vitalismo, o historicismo, o existencialismo e a fenomenologia (Cf. Saviani, 2009, p. 55). Contudo, o pertencimento dessas pedagogias àquela concepção humanista de Filosofia da Educação, não retira as suas diferenças específicas: Em outros termos: as expressões ‘pedagogia nova’ e ‘pedagogia da existência’ equivalem-se sob a condição de não reduzir a primeira à pedagogia escolanovista e a segunda, à pedagogia existencialista. Esse esclarecimento faz-se necessário uma vez que a concepção ‘humanista’ moderna se manifesta na educação predominantemente na forma do movimento escolanovista cuja inspiração filosófica principal se situa na corrente do pragmatismo (Saviani, 2009, p. 55-56). No item Para além das pedagogias da essência e da existência, retomando a primeira tese do capítulo anterior, Saviani demonstra os pontos em que sua proposta de uma pedagogia revolucionária supera as pedagogias da essência e da existência. Para Saviani, nas pedagogias da essência e da existência não se encontra uma perspectiva histórica dos condicionamentos sociais da educação. Por isso, são ingênuas e não-críticas, pois não apreendem as determinações objetivas e materiais do processo educacional. Esse desconhecimento faz com que a consciência ingênua acredite ser superior aos fatos, imaginando ser capaz de determinar e alterar a realidade a partir dela mesma: Eis por que tanto a pedagogia tradicional como a pedagogia nova entendiam a escola como ‘redentora da humanidade’. Acreditavam que era possível modificar a sociedade por meio da educação. Nesse sentido, podemos afirmar que ambas são ingênuas e idealistas. Caem na armadilha da ‘inversão idealista’, já que, de elemento determinado pela estrutura social, a educação é convertida em elemento determinante, reduzindo-se o elemento determinante à condição de determinado. A relação entre educação e estrutura social é, portanto, representada de modo invertido (Saviani, 2009, p. 57). Diversamente, a pedagogia revolucionária crê na igualdade essencial entre os homens, mas em termos reais e não apenas formais; busca se articular com as forças emergentes da sociedade na luta por uma sociedade igualitária; ao invés de secundarizar os conhecimentos e sua transmissão, considera a difusão de conteúdos uma das tarefas 190 primordiais do processo educativo em geral e da escola em particular (Cf. Saviani, 2009, p. 59). Em suma: a pedagogia revolucionária não vê necessidade de negar a essência para admitir o caráter dinâmico da realidade como o faz a pedagogia da existência, inspirada na concepção ‘humanista’ moderna de filosofia da educação. Também não vê necessidade de negar o movimento para captar a essência do processo histórico como o faz a pedagogia da essência inspirada na concepção ‘humanista’ tradicional de filosofia da educação (Saviani, 2009, p. 59). A pedagogia revolucionária é crítica exatamente por se saber historicamente condicionada e entender a educação como sendo determinada pelas transformações sociais. Contudo, diversamente da concepção crítico-reprodutivista, para quem a educação é determinada unidirecionalmente pela estrutura social, entende que a educação se relaciona dialeticamente com a sociedade, ou seja, é também um elemento determinante na transformação da sociedade (Cf. Saviani, 2009, p. 59). Assim, afirma Saviani: A pedagogia revolucionária situa-se além das pedagogias da essência e da existência. Supera-as, incorporando suas críticas recíprocas numa proposta radicalmente nova. O cerne dessa novidade radical consiste na superação da crença na autonomia ou na dependência absolutas da educação em face das condições sociais vigentes (Saviani, 2009, p. 59). No item intitulado Para além dos métodos novos e tradicionais, Saviani retoma a segunda tese do capitulo anterior, na qual tratava do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos, para sugerir um método condizente com sua proposta de uma pedagogia revolucionária. Para ele, uma pedagogia compromissada com os interesses populares, valoriza a escola e os métodos de ensino eficazes: Tais métodos situar-se-ão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as contribuições de uns e de outros. Serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos (Saviani, 2009, p. 62). 191 Contudo, a principal diretriz do novo método proposto, conforme Saviani, deve ser a vinculação entre educação e sociedade, na qual professor e aluno são tidos como agentes sociais (Cf. Saviani, 2009, p. 63). Nesse sentido, são apresentados cinco momentos articulados de um mesmo processo de ensino-aprendizagem. O primeiro momento tem como ponto de partida a prática social que é comum a professor e alunos, mas apesar dessa prática social ser comum a ambos, eles se posicionam diferentemente diante dela, pois eles têm diferenças de compreensão de conhecimento e de experiência. O professor tem uma compreensão sintética, articulada dos conhecimentos e da experiência, já o aluno tem uma visão caótica da prática social (Cf. Saviani, 2009, p. 63). O segundo momento comporta a identificação dos principais problemas postos pela prática social. Saviani chama este segundo passo de problematização: “Trata-se de detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimento é necessário dominar” (Saviani, 2009, p. 64). O terceiro momento trata da apropriação “dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social”, os quais podem ser transmitidos direta ou indiretamente pelo professor. Esse momento é chamado de instrumentalização, mas não deve ser compreendido no sentido tecnicista, pois “trata-se da apropriação pelas camadas populares das ferramentas culturais necessárias à luta social que travam diuturnamente para se libertar das condições de exploração em que vivem” (Saviani, 2009, p. 64). O quarto momento implica no “momento da expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social a que se ascendeu” a partir dos momentos anteriores. Ele é chamado de catarse: “trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social” (Saviani, 2009, p. 64). O quinto momento, ponto de chegada do processo metodológico, é também o mesmo do primeiro momento, ponto de partida, ou seja, a prática social. Assim afirma Saviani: O ponto de chegada é a própria prática social, compreendida agora não mais em termos sincréticos pelos alunos. Nesse ponto, ao mesmo tempo que os alunos ascendem ao nível sintético em que, por suposto, já se encontrava o professor no ponto de partida, reduz-se a precariedade da síntese do professor, cuja compreensão se torna mais e mais orgânica. Essa elevação dos alunos ao nível do professor é 192 essencial para compreender-se a especificidade da relação pedagógica (Cf. Saviani, 2009, p. 65). Saviani explicita, por fim, que a coluna vertebral de seu método tem a educação como mediação da prática social e que o critério de cientificidade dele advém “da concepção dialética de ciência tal como a explicitou Marx no ‘método da economia política’” (Saviani, 2009, p. 66). Seu método, ao partir do princípio da divisão de classes sociais da sociedade, propõe uma pedagogia vinculada à defesa dos interesses populares na busca da transformação social: “A pedagogia por mim denominada ao longo deste texto, na falta de uma expressão mais adequada, de ‘pedagogia revolucionária’, não é oura coisa senão aquela pedagogia empenhada decididamente em colocar a educação a serviço da referida transformação das relações de produção” (Saviani, 2009, p. 68). No item, Para além da relação autoritária ou democrática na sala de aula, Saviani trata de superar a terceira tese do segundo capítulo que apresentava o paradoxo da falta efetiva de democracia da Escola Nova, ao privilegiar as diferenças e da realização democrática concreta da escola tradicional, ao se centrar na transmissão do conhecimento. A superação dessa tese busca demonstrar que na pedagogia revolucionária “não se trata de optar entre relações autoritárias ou democráticas no interior da sala de aula, mas de articular o trabalho desenvolvido nas escolas com o processo de democratização da sociedade” (Saviani, 2009, p. 71). Dessa forma, assevera Saviani, “simplesmente importa reter que o critério para se aferir o grau em que a prática pedagógica contribui para a instauração de relações democráticas não é interno, mas tem suas raízes para além da prática pedagógica propriamente dita” (Saviani, 2009, p. 69). Ou seja, dado que a educação tem um caráter mediador na prática social, ela não pode se justificar por si mesma. Assim, seus efeitos se prolongam para além dela, no tempo e no espaço e, por isso, “resulta inevitável concluir que o critério para se aferir o grau de democratização atingido no interior das escolas deve ser buscado na prática social” (Saviani, 2009, p. 69). O quarto e último capítulo, Onze teses sobre educação e política, visa delimitar as relações entre política e educação, suas identidades e diferenças. Essas questões são apresentadas inicialmente de forma discursiva e em seguida são condensadas de forma aforística em onze teses. Compreende-se que essas teses são representativas das várias temáticas subjacentes ou explícitas ao longo do texto de Saviani, como uma forma de 193 corolário. Apresentamos a seguir algumas das questões mais relevantes para a nossa pesquisa. Conforme o autor, é necessário atentar para as especificidades da “natureza da prática educativa” e da “natureza da prática política”. A prática educativa é uma relação entre não-antagônicos: “É pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando. Nenhuma prática educativa pode instaurar-se sem esse suposto" (Saviani, 2009, p. 74). Por sua vez, na prática política ocorre o inverso: “[...] a relação política se trava, fundamentalmente, entre antagônicos. No jogo político defrontam-se interesses e perspectivas mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não convencer” (Saviani, 2009, p. 74). (Grifo nosso). Assim, não havendo uma luta na prática educativa, não há antagonismos a serem vencidos e, por isso, a atividade que marca a educação, conforme Saviani, é a persuasão argumentativa: “[..] em educação o objetivo é convencer e não vencer. O educador, seja na família, na escola ou em qualquer outro lugar ou circunstância, acredita estar sempre agindo para o bem dos educandos. Os educandos, por sua vez, também não veem o educador como adversário” (Saviani, 2009, p. 74). (Grifo nosso). Dessa forma, a rebeldia dos educandos deve ser somente um desafio a ser superado pelo educador, que deve convencê-los que eles próprios são os maiores prejudicados ao se rebelarem (Cf. Saviani, 2009, p. 74) (Grifos nossos). Inversamente, “no plano político, a rebeldia da classe dominada tende a ser interpretada pela classe dominante como rebelião e, como tal, reprimida pela força” (Saviani, 2009, p. 74), pois eles não estão na posição oposta por equívoco, do qual seriam demovidos pela compreensão da proposta verdadeira, tais quais seriam os estudantes (Saviani, 2009, p. 75). Nesse sentido, a figura do professor na prática educativa é de fundamental importância, pois “se ele fundamentar adequadamente os assuntos em torno dos quais se trava sua relação com os alunos; se ele os expuser de modo claro, se suas posições forem consistentes e os alunos chegarem ao entendimento de seu significado, eles tenderão a concordar com ele” (Saviani, 2009, p. 75). Assim, pode-se afirmar que educação e política têm práticas diferentes, com características próprias. Portanto, é preciso não confundi-las e correr o risco de dissolver uma na outra, pois “a dissolução da educação na política configuraria o politicismo 194 pedagógico do mesmo modo que a dissolução da política na educação implicaria o viés do pedagogismo político” (Saviani, 2009, p. 75). Entretanto, por serem práticas distintas, não significa que sejam inteiramente independentes e autônomas entre si, pois são inseparáveis. Saviani considera que há uma relação interna e uma relação externa configurando as relações entre educação e política. A relação interna implica em que toda prática educativa possui uma dimensão política e que toda política possui uma dimensão educativa (Cf. Saviani, 2009, p. 76). Assim, afirma o autor: “A dimensão pedagógica da política envolve [...] a articulação, a aliança entre os não-antagônicos, visando à derrota dos antagônicos. E a dimensão política da educação envolve [...] a apropriação dos instrumentos culturais que serão acionados na luta contra os antagônicos” (Saviani, 2009, p. 76). Já a relação externa entre educação e política implica em que “o desenvolvimento da prática especificamente política pode abrir novas perspectivas para o desenvolvimento da prática especificamente educativa e vice-versa” (Saviani, 2009, p. 76). Pense-se aqui, por exemplo, nas possibilidades benéficas que podem ser abertas para a educação a partir de uma política pública, um financiamento de um projeto pedagógico, as reformas políticas que favoreçam a educação pública etc. Nessa relação entre política e educação é fundamental levar em conta que as relações entre educação e política têm existência histórica e, por isso, só podem ser adequadamente compreendidas enquanto manifestações sociais determinadas (Cf. Saviani, 2009, p. 76). Isto significa que a inseparabilidade entre as práticas distintas da educação e da política tem uma prática comum: a prática social. Ou seja, apesar de diferentes, elas integram a mesma totalidade histórico-social (Cf. Saviani, 2009, p. 77). Essa determinação histórica indica que, na atualidade, educação e política devem ser compreendidas como manifestações da prática social da sociedade de classes, onde predominam interesses antagônicos (Cf. Saviani, 2009, p. 77). Por isso “a autonomia relativa da educação em face da política e vice-versa assim como a dependência recíproca anteriormente referida não têm um mesmo peso, não são equivalentes” (Saviani, 2009, p. 76). Assim, a dependência da educação em relação à política é maior do que a dependência da política em relação à educação: “existe uma subordinação relativa, mas real da educação diante da política. Trata-se, porém, de uma subordinação histórica e, como tal, não somente pode como deve ser superada” (Saviani, 2009, p. 77). 195 Nessa ambientação histórica de divisão de classes sociais, há que se levar em consideração que “a prática política apoia-se na verdade do poder; a prática educativa, no poder da verdade” (Saviani, 2009, p. 78) (Grifo nosso). Saviani se refere aqui à verdade como conhecimento não desinteressado. Em uma sociedade dividida em classes, a classe dominante não tem interesse que a verdade se manifeste, pois seria evidenciada a sua dominação sobre as outras classes, enquanto a classe dominada seria beneficiada com a manifestação da verdade da exploração e o consequente fortalecimento da luta pela libertação (Cf. Saviani, 2009, p. 79). Nessa luta pela liberdade e superação de uma sociedade de classes, Saviani considera de extrema relevância a figura da vanguarda, bem como o papel pedagógico que ela exerce através da explicitação da verdade histórica e na condução dos revolucionários: Eis aí o sentido da frase ‘a verdade é sempre revolucionária’. Eis aí também por que a classe efetivamente capaz de exercer a função educativa em cada etapa histórica é aquela que está na vanguarda, a classe historicamente revolucionária. Daí o caráter progressista da educação (Saviani, 2009, p. 79). Contudo, juntamente com a persuasão do processo educativo levando ao desvelamento da verdade, juntamente com o lado político da educação, juntamente com o papel vanguardista da educação no processo revolucionário, Saviani ressalta, mais uma vez, a importância extrema e decisiva da transmissão do conhecimento no processo educativo, como algo que lhe é específico e decisivo: “De tudo o que foi dito, conclui-se que a importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É realizando-se na especificidade que lhe é própria que a educação cumpre sua função política” (Saviani, 2009, p. 79). Retomando a exposição de Tomazetti (2003, p. 42), vamos observar que “no final dos anos 80 e durante os anos 90 do século XX, no Brasil, a identidade da Filosofia da Educação e seu objeto de estudo passaram a ser problematizados”. O marxismo, principalmente o vinculado às posições de Saviani, que era o referencial dominante da Filosofia da Educação da época, começou a ser questionado por seus simpatizantes. Esses questionamentos se deram em função das reordenações mundiais do capital e das consequências que começavam a ocorrer, muitos filósofos da educação em crise passaram a buscar novos referenciais teóricos (Cf. Marinho, 2009c). 196 Um desses referenciais teóricos que respondeu a anseios não contemplados pelo marxismo ortodoxo foi a Filosofia da Diferença deleuziana que inicialmente inspirou a Filosofia no Brasil e posteriormente a Filosofia da Educação. No próximo capítulo serão expostos elementos centrais do pensamento deleuzeano da Filosofia da Diferença, para uma melhor compreensão de sua influência no pensamento da Filosofia da Educação em terras brasileiras. 197 CAPÍTULO 3 – A FILOSOFIA DA DIFERENÇA DE DELEUZE É necessária a compreensão do pensamento deleuzeano para um entendimento de sua influência na Filosofia da Educação, no Brasil contemporâneo. Assim, o presente capítulo tem por objetivo explicitar os contornos principais do pensamento deleuzeano, no que diz respeito à sua Filosofia da Diferença. Para tanto, serão apresentados quatro tópicos: Breve Histórico da Filosofia da Diferença – fala dos filósofos mais representativos da diferença, explicitando as razões que levaram Deleuze a ser reconhecido como o filósofo da Diferença; Deleuze: o eterno retorno da repetição da diferença – procede a um detalhamento conceitual da Repetição, da Diferença e do Eterno retorno; A Filosofia da Filosofia da Diferença – detalha a Filosofia da filosofia da diferença como diversa da Filosofia da filosofia da representação; A Filosofia da Educação na Filosofia da Diferença – explica, também, por que uma Filosofia da Educação da filosofia da diferença é diversa da Filosofia da Educação da filosofia da representação. 1. Breve Histórico da Filosofia da Diferença Em um primeiro momento, o presente tópico explicitará algumas vertentes filosóficas e seus filósofos que trabalham com a categoria da Diferença, bem com as características da diversidade dessa categoria em cada um desses filósofos. O texto central que norteará essa exposição é Pós-estruturalismo e filosofia da diferença – uma introdução, de Michel Peters. Com isso, esse tópico também tem o objetivo de possibilitar ao leitor uma melhor contextualização de Deleuze no universo mais amplo do que se passou a chamar de filosofia da diferença. Apesar da escolha de material recair sobre o texto de Peters, não se pretende entrar aqui em uma discussão, que já se tornou clássica, a respeito da filiação de Deleuze ao chamado pensamento pós-estruturalista39. Compreende-se a importância e a pertinência da discussão, mas também há uma compreensão de que aqui não é o 39 “Discordo abertamente, portanto, daqueles que se apressam em falar em ‘pós-estruturalismo’ ou em abarcar quase tudo sob o epíteto de ‘pós-modernismo’. De um lado porque ‘pós’ designa apenas posteridade temporal e aí caímos na obviedade: claro que absolutamente tudo o que foi produzido posteriormente ao estruturalismo é ‘pós-estruturalismo’, mas isso é muito pouco para delimitar um esforço de pensamento e produção conceitual; de outro lado porque o pós-modernismo, se é que podemos, de fato, falar em algo assim, seria também um termo excessivamente vago para designar esforços de pensamento” (Gallo, 2003, p. 30). 198 momento e nem o lugar para essa abordagem. Assim, a escolha do texto de Peters ocorreu em função do seu poder sintético de abreviação histórica e de amplitude para que, assim, se possa melhor localizar o pensamento de Deleuze nessa plêiade contemporânea de questionamento das raízes da Modernidade. Da mesma forma, não se pretende entrar na discussão sobre o questionamento que Vattimo (1988, p. 156) faz da filosofia contemporânea francesa do pensamento da diferença, que para ele é equivocada: A hermenêutica que interpreta todas estas componentes da efetividade está bem longe da desconstrução do texto metafísico, a que o pensamento da diferença se aplica, ao percorrer repetidamente a estrutura base da ausência; e não é sequer a produção delirante de novos simulacros sem nenhuma inserção nem ‘responsabilidade’. Assim, para o filósofo italiano, a radicalização da diferença que despreza aspectos importantes da metafísica e da dialética terminaria por levar a uma nova postura metafísica. Vattimo critica os limites e os equívocos do pensamento da diferença em Derrida e Deleuze: Tanto a dissolução da diferença que se nos depara em Derrida como a que encontramos em Deleuze remontam, com boa razão, a aspectos essenciais da filosofia nietzschiana do eterno retorno. A diferença como arquiestrutura de um processo infinito de repetição é o eterno retorno entendido como lei do ser, fato, negação da historicidade hebraico-cristã a favor de uma circularidade de tipo grego; a diferença como glorificação do simulacro é, pelo contrário, a dança e o riso de Zaratustra, o retorno como inocência do devir, [...]. Contudo, são estes dois aspectos do eterno retorno que Zaratustra despreza como uma interpretação parcial e superficial da ideia (Vattimo, 1988, pp. 151152). Da mesma forma, ainda em outra passagem desse mesmo livro, Aventuras da diferença (1988), Vattimo se refere de forma critica ao pensamento deleuziano: “os jogos da diferença-repetição em que o ‘pensamento da diferença’ se perdeu” (Vattimo, 1988, p. 160)40. 40 “Um outro aspecto importante no pensamento de Vattimo é a sua posição com relação à diferença. Esta não é assumida como algo que exclua a dialética. Ao contrário, o pensamento fraco busca harmonizar-se com o conceito da dialética e da metafísica. Há, em especial no ideário de Vattimo, uma crítica explícita aos filósofos franceses da diferença que, ao negarem radicalmente a dialética como algo triste e ressentido, sucumbem a uma postura metafísica, da qual tentaram fugir. Vattimo, por várias vezes, explicita essa crítica com relação a Deleuze e Derrida. Enfim, uma nova ontologia, a ontologia fraca, requer o desenvolvimento do discurso da diferença, principalmente, com base no pensamento heideggeriano, mas também implica em uma rememoração da dialética. Para Vattimo só é possível uma apropriação legítima da diferença pelo pensamento fraco, se for assumida a herança da dialética” (Marinho, 2009c, p. 258). 199 Em um segundo momento, o presente tópico se deterá mais especificamente no conceito da Diferença através dos filósofos clássicos até chegar a uma caracterização mais precisa desse conceito no pensamento deleuzeano. O material utilizado foi Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, de Regina Schöpke, no qual é realizada uma genealogia do conceito da Diferença, segundo a própria autora. 1.1. A Filosofia da Diferença e seus filósofos Michel Peters, no seu livro Pós-estruturalismo e filosofia da diferença – uma introdução, enfatiza que dentre outras coisas – crítica da filosofia humanista, do sujeito racional, da autonomia humana, dos pressupostos universais da racionalidade etc. – os pós-estruturalistas têm por base a categoria da diferença em seu pensamento. Assim, Para o pós-estruturalismo, a ênfase na autoconsciência absoluta e no seu suposto universalismo é parte integrante dos processos que tendem a excluir o Outro, ou seja, aqueles grupos sociais e culturais que agem de acordo com critérios culturais diferentes. Em vez da autoconsciência, o pós-estruturalismo enfatiza a constituição discursiva do eu – sua corporeidade, sua temporalidade e sua finitude, suas energias inconscientes e libidinais – e a localização histórica e cultural do sujeito (Peters, 2000, p. 36). Nesse sentido, a linguagem é fundamental para os pós-estruturalistas, que, baseados na concepção saussureana da linguagem, concebem a operação dos signos linguísticos de forma reflexiva e não de forma referencial, pois “dependem da operação auto reflexiva da diferença” (Peters, 2000, p. 36). Ou seja, os elementos da realidade social também são considerados em termos semióticos, como textos de uma linguagem, configurando um antirrealismo, “uma posição epistemológica que se recusa a ver o conhecimento como uma representação precisa da realidade e se nega a conceber a verdade em termos de uma correspondência exata com a realidade” (Peters, 2000, p. 37). O pensamento pós-estruturalista se compõe de métodos e abordagens múltiplas, como: arqueologia, desconstrução, ênfase na noção de diferença, localismo (em contraposição a um eurocentrismo iluminista pretendido universal), ruptura e descontinuidade histórica, serialização, repetição, genealogia no lugar da ontologia, posição epistemológica anti-fundacionista, valorização da interpretação. Enfim, 200 O movimento pós-estruturalista questiona o racionalismo e o realismo que o estruturalismo havia retomado do positivismo, com sua fé no progresso e na capacidade transformativa do método científico, colocando em dúvida, além disso, a pretensão estruturalista de identificar as estruturas universais que seriam comuns a todas as culturas e à mente humana em geral (Peters, 2000, p. 37). Para Peters, o surgimento do pós-estruturalismo deve muito à redescoberta de Nietzsche e à interpretação que Heidegger fez dele. Da mesma forma, “boa parte da história do pós-estruturalismo pode ser vista como consistindo de elaborações teóricas da noção de tecnologia de Heidegger” (Peters, 2000, p. 36), como por exemplo: “tecnologias do eu”, em Foucault; “leitura” e “escrita”, em Derrida; análise sobre cinema, em Deleuze; “sociedade da mídia”, em Baudriallard. A filosofia da tecnologia heideggeriana está ligada à sua crítica da história da metafísica ocidental e tem da tecnologia uma compreensão de como a máquina pode alterar o modo de existir do homem. Mas, segundo Peters, “se existe um elemento que distingue o pós-estruturalismo é a noção de différence [diferença], que vários pensadores utilizam, desenvolvem e aplicam de formas variadas. A noção de diferença tem sua origem em Nietzsche, em Saussure e em Heidegger” (Peters, 2000, p. 42). Peters expõe, de forma sumariada, os principais pensadores que se articularam em torno da categoria da diferença, os quais serão aqui elencados, visando oferecer um quadro histórico dessa categoria. Deleuze, como já vimos, desenvolve todo um pensamento pautado na diferença. Assim, em 1962, no livro Nietzsche e a filosofia, “interpreta a filosofia de Nietzsche como uma crítica à dialética hegeliana, uma crítica que está baseada precisamente no conceito de ‘diferença’” (Peters, 2000, p. 43). Esse livro, segundo Peters, foi fundamental para a emergência de uma “filosofia da diferença”: Em contraste com o poder do negativo e de uma disposição puramente reativa, próprios de uma dialética na qual o positivo se afirma apenas por meio da dupla negação, Deleuze afirma o poder puramente positivo da afirmação inerente na ‘diferença’, elegendo-a como base de um pensamento radical não-hegeliano (Peters, 2000, p. 60). Derrida é um outro pensador pós-estruturalista que apoia seu pensamento na categoria da diferença a partir de duas fontes: “a concepção de Saussure de que os sistemas linguísticos são constituídos por meio da diferença e a noção de diferença de Heidegger. A noção de différence [diferença], utilizada por Derrida pela primeira vez em 1959, evoluiu, dez anos mais tarde, para o conceito de différance” (Peters, 2000, p. 201 43). A différance derridiana baseia-se na diferença ontológica de Heidegger entre ser e ente e relaciona-se à determinação dos limites linguísticos do sujeito. Nesse pensador, a crítica da razão e da metafísica é feita a partir dos conceitos da linguística estrutural. Ao afirmar a relação arbitrária entre significante e significado, Derrida defende a existência de uma cadeia infinita de significantes que prescinde da presença do objeto, havendo assim, um descentramento do sujeito em favor da linguagem: Derrida, [...] por sua vez, cunha o conceito de différance, que se refere ao “movimento que consiste em diferir, por meio do atraso, da delegação, da suspensão, do desvio, do adiamento, da reserva”. O movimento da différance é a “raiz comum de todos os conceitos posicionais que marcam nossa linguagem”, produzindo a diferença que é a condição de qualquer processo de significação. Sobre a relação entre o pensamento de Nietzsche e a “filosofia da diferença”, Derridda [...] é levado a perguntar, no agora famoso ensaio ‘Différance’: “Não é, todo o pensamento de Nietzsche, uma crítica da filosofia como uma ativa indiferença à diferença, como o sistema da redução adifórica ou repressão?” (Peters, 2000, p. 60-61). Em Lyotard encontramos também a presença decisiva da categoria da diferença com a criação do conceito de différend [diferendo], que também é relacionado ao universo linguístico e que estabelece que, em geral, não há uma regra universal que decida entre as diversas possibilidades dos gêneros de discurso. Ou seja, um gênero de discurso não deve prevalecer sobre outro. Dessa forma, pode-se definir que um diferendo “é um caso de conflito, entre (ao menos) dois partidos, que não pode ser equitativamente resolvido por falta de uma regra de julgamento aplicável a ambos os argumentos” (Lyotard apud Peters, 2000, p. 43). Peters afirma que o rompimento intelectual de Lyotard com o marxismo radical ocorreu devido ao colapso da lógica dialética41, mas mesmo tendo desistido do discurso marxista para explicar as transformações do capitalismo global pós Segunda Guerra ele não abre mão de refletir sobre o capitalismo: Lyotard continua acreditando na tese do processo de ‘mercantilização’ (embora considerado como um sistema representacional) como um dos principais processos de racionalização a orientar o desenvolvimento do sistema como um todo, reconhecendo a forma pela qual a lógica do desempenho (performance), voltada à maximização da eficiência global do sistema, gera contradições socioeconômicas. Ele se distancia, entretanto, dos marxistas na 41 “Na medida em que havia no marxismo um discurso que alegava expressar sem resíduos todas as posições que se opõem, esquecendo que os diferendos estão corporificados em figuras incomensuráveis entre as quais não existe conciliação lógica, tornou-se absolutamente necessário deixar, completamente, de falar esse idioma” (Lyotard apud Peters , 2000, p. 62). 202 questão da possibilidade da emancipação ou da salvação que surgiria automaticamente dessas contradições. Ele descarta aquilo que Readings [...] chama de “política da redenção” que se baseia no “desejo marxista de identificar a alienação como uma distorção ideológica reversível”, para repensar a política e a resistência em termos “minoritários”. Isso implica em renunciar a uma leitura “autorizada” dos eventos, uma leitura baseada em julgamentos determinados, para respeitar o diferendo e “para pensar a justiça em relação com um conflito e uma diferença” que não admitem nenhuma resolução (Peters, 2000, p. 62-63). Com o diferendo lyotardiano temos a presença da suspeita pós-moderna sobre as metanarrativas com seus argumentos e pontos de vista transcendentais, bem como a rejeição do pensamento da representação com suas certezas de vocabulários apropriados e definitivos. A legitimação da metanarrativa moderna não teria uma inocência política vinculada simplesmente ao interesse do progresso da humanidade, mas estaria ligada à legitimação de um poder. Nesse sentido, afirma Peters, não há qualquer “discursomestre [...] que possa ser considerado neutro ou que possa representar uma síntese, qualquer discurso que possa expressar qualquer suposta unidade ou universalidade epistemológica ou que permita decidir entre visões, asserções ou discurso em conflito” (Peters, 2000, p. 43-44). Assim, pode-se afirmar com Peters, que “a noção de diferendo de Lyotard tem, claramente, uma semelhança com o conceito de différance de Derrida e com a noção de diferença de Deleuze (e, anteriormente, com a noção de diferença de Heidegger)” (Peters, 2000, p. 54). A prevalência dessa noção configura-se como uma reação à filosofia hegeliana da história e ao modelo hegeliano de consciência. Peters situa historicamente o pós-estruturalismo e a prevalência da categoria da diferença, no ocaso das esperanças de 1968, quando a descrença nas ambições científicas do estruturalismo “resultou em um novo e crítico pluralismo, descentrando a instituição e a força do discurso-mestre do estruturalismo, promovendo, ao mesmo tempo, uma ênfase na pluralidade da interpretação por meio de jogo, indeterminação e différance” (Peters, 2000, p. 46). Consequentemente, prevaleceram o descentramento do sujeito, a rejeição do pensamento da representação e da existência das teorias fundacionistas. Nesse âmbito, nos diz Peters, ocorre a “virada linguística” na filosofia e nas ciências sociais do século XX, bem como uma tendência a afirmar a inexistência de um discurso universal e de um fundamento epistemológico. Dessa forma, compreendemos que a “virada linguística” seja uma resposta à enunciação do fim dos fundamentos 203 últimos e da descrença nas metanarrativas, bem como à decretação da falência do pensamento da representação e do sujeito moderno que tinha uma capacidade de interpretação objetiva e consciente. Dessa forma, Peters reconhece a importância e a inovação da categoria da diferença, bem como a sua contemporaneidade e atualidade para a compreensão dos problemas atuais e, consequentemente, afirma a condição ultrapassada da dialética hegeliana para a época pós-moderna: Existem recursos filosóficos importantes, incluindo uma compreensão radical do conceito de “diferença”, nas teorizações desses pensadores, que permitem descrever a atual fase histórica – aquilo que se poderia chamar, provocativamente, de “pós-modernidade” ou “póscolonialidade” – de uma forma mais adequada do que a permitida pela “lógica” da alteridade de Hegel. Isso não significa dizer que a teorização de Hegel não foi útil: ele forneceu a explicação mais inclusiva da lógica dualista ou de oposição que caracterizou a modernidade, mas ela foi um produto de sua época. Por que devemos esperar que um texto escrito quase duzentos anos atrás ainda seja capaz de definir as questões de hoje? Na “pós-modernidade”, na era pós-colonial, uma era na qual muitos povos étnicos obtiveram sua soberania e seu reconhecimento político, o conceito de “diferença” proporciona uma ‘lógica’ mais apropriada para compreender as reivindicações e as lutas pela identidade. Essa é uma das principais lições que os chamados teóricos pós-colonialistas (por exemplo, Said, Spivak, Bhabha) aprenderam dos pós-estruturalistas franceses (Peters, 2000, p. 63). 1.2. Deleuze: o filósofo da Diferença Regina Schöpke, em seu livro Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, faz uma “genealogia da diferença”, que aqui servirá de guia. A autora esclarece não se tratar de um remontar às antigas concepções em torno da diferença, mas de trabalhar “alguns filósofos que, direta ou indiretamente, abordaram a questão da diferença”. Contudo, seu objetivo foi compor um quadro mais amplo para situar a categoria da diferença pura no pensamento de Deleuze, inclusive tendo por base os próprios estudos deleuzeanos sobre a diferença. Lançaremos mão dessa exposição de Schöpke para historiarmos a categoria da diferença, com o intuito de melhor compreendermos por que a categoria da diferença é central no pensamento pósmoderno. Inicialmente, é necessário lembrar que “muito antes de o conceito de ‘diferença ontológica’ ter sido concebido, a noção de diferença já se encontrava, direta ou 204 indiretamente, dissolvida na questão do ser e do não-ser” (Schöpke, 2004, p. 48). Nesse sentido, a autora aponta a presença da categoria da diferença no pensamento de Heráclito, quando esse se refere à transitoriedade e novidade das coisas, afirmando a existência do devir através do eterno movimento, sendo a estabilidade uma ilusão dos sentidos. No pensamento heracliteano, existiria “um mundo de diferenças, onde todo porto seguro não passa de uma ilusão criada por nossa razão – única maneira de ‘escaparmos’ de nossa própria vulnerabilidade e nossa instantaneidade num mundo que só nos ‘programou’ uma única e derradeira vez” (Schöpke, 2004, p. 49). E, de certa forma, a diferença estaria no pensamento de Parmênides quando esse nega veementemente a sua existência, contrapondo-se a Heráclito e defendendo a unidade e a indivisibilidade do ser, “o ser é e o não-ser não é”. Platão retoma alguns aspectos das filosofias de Heráclito e Parmênides na construção de sua teoria sobre o ser e o devir, aceitando ambos, mas colocando-os nos seus respectivos lugares. O ser imutável, superior, existiria no mundo das ideias e o devir, inferior, se encontraria no mundo das realidades fenomênicas: Segundo Platão, Heráclito teria toda a razão em afirmar a realidade do devir, desde que não negasse a existência do ser em sua perfeita imutabilidade. É bem verdade que a realidade do mundo sensível foi, muitas vezes, discutida por Platão. Não obstante, Platão jamais ousou negar por completo a existência do mundo físico. Como sombra ou cópia, a realidade sensível guarda uma semelhança com o seu modelo inteligível e, ainda que precariamente, ela nos remete ao ser verdadeiro das coisas (Schöpke, 2004, p. 52). Na teoria platônica, o ser verdadeiro não pode ser apreendido pelos sentidos efêmeros e passageiros, mas tão somente pelo espírito, através da razão, se pode ter o perfeito conhecimento do ser, que é invariável. Porém, a diferença no pensamento de Platão se encontra em um outro dualismo, nos afirma Schöpke, baseada em Deleuze, no livro Lógica do sentido: “[...], a motivação mais profunda do pensamento platônico é revelada não na divisão entre mundo modelar e mundo das cópias, mas na demarcação entre as cópias bem fundadas e as cópias mal fundadas (os ‘simulacros’)” (Schöpke, 2004, p. 55), pois, de nada adiantaria a importância do “original” se não houvesse uma distinção significativa e qualitativa entre uma cópia boa e má: De que valeria um modelo se ele não pudesse ser imitado com perfeição, ou ainda, de que adiantaria a existência de um modelo se suas cópias pudessem furtar-se a ele sem qualquer prejuízo para ambos? Na verdade, o simulacro não é uma cópia de uma cópia, ele é 205 a própria negação da cópia. Ele é a negação do modelo (Schöpke, 2004, p. 55). O simulacro constituiria um ato de desobediência à cópia original, na medida em que só tem uma semelhança externa com o modelo. O alvo principal de Platão seriam os sofistas no âmbito do terreno moral: “É exatamente como juíza de valores que a razão condena tudo aquilo que lhe pareça um tanto ou quanto descentrado, desregrado, tudo aquilo que não se enquadra em um modelo ‘pré-fixado’” (Schöpke, 2004, p. 56). Dessa forma, a diferença constituiria uma ameaça para o equilíbrio da razão, que trabalha somente com a identidade e a semelhança, e, por isso, é rejeitada. Schöpke relata que, para Deleuze, a diferença em Platão seria o monstro que foge à ação do modelo, do Mesmo, da identidade plena. A boa cópia guarda sua identidade com o modelo, o simulacro por sua vez, já se distancia dessa semelhança e, por isso, representa a desordem e, consequentemente, deve ser evitado. Para Schöpke, a diferença em Aristóteles é uma “consequência lógica” da sua crítica à teoria platônica das Ideias. Dessa forma, ela nem será um monstro a ser escondido, nem uma mera alteridade que pouco tem a acrescentar ao conhecimento das coisas: Para Aristóteles, a diferença é sempre algo que se estabelece entre os seres, sobretudo entre as espécies. As noções de outro e de alteridade são igualmente importantes para ele (até porque a diferença é sempre diferença entre dois ou mais seres); porém, não se trata de dizer apenas que um cão não é um cavalo, mas de apontar as diferenças que existem entre eles. Em outras palavras, a diferença é algo de concreto, de verificável, de representável. Não é uma pura relação entre as ideias, mas designa uma marca real nos corpos. O caráter de imanência da filosofia aristotélica torna assim a diferença algo que se apreende nos seres físicos – diferença específica (Schöpke, 2004, p. 60). Essa abordagem epistemológica do ser se prende à própria definição do ser em Aristóteles, que, ao rechaçar a teoria platônica das Ideias, defende que o ser é dito de várias maneiras, através de um atributo essencial, como também por um atributo acidental, como é afirmado na Metafísica. Enquanto para Platão o ser é essência, para Aristóteles o ser é substância, que se divide em substância primeira – seres concretos, entes, e substância segunda – gêneros e espécies. Schöpke chama a atenção para o fato de que a diferença específica em Aristóteles pode ser melhor compreendida a partir da sua aceitação da realidade do mundo sensível: 206 Para começar, entre as substâncias segundas, Aristóteles considera a espécie mais substância do que o gênero – uma vez que ela está mais próxima da substância primeira (em outras palavras, a espécie sempre define mais uma substância do que um gênero: dizer, por exemplo, que Sócrates é um “animal” é bem mais vago do que defini-lo como “homem”). E é porque a espécie “determina” mais que ela também “diferencia” mais um corpo de um outro. Para Aristóteles, os seres que diferem quanto ao gênero não têm comunicação entre eles, enquanto os seres que diferem apenas quanto à espécie (isto é, aqueles que pertencem a um mesmo gênero) têm por ponto de partida a sua geração recíproca. Neste sentido, o termo outro aplica-se àqueles que, sendo de um mesmo gênero, apresentam uma diferença entre eles, ou então aqueles que têm uma contrariedade em sua substância (Schöpke, 2004, p. 64). Assim, se em Aristóteles, o gênero e a espécie determinam e diferenciam ontologicamente os seres, da mesma forma que os atributos acidentais, então, afirma Schöpke, baseada em Deleuze, no livro Diferença e repetição, “a contrariedade é exemplo de diferença máxima – já que os contrários se excluem absolutamente, quando um deles se encontra em um objeto [...]” (Schöpke, 2004, p. 64). Portanto, a diferença em Aristóteles é pensada a partir da identidade e da semelhança e a estas é submetida. Como é exposto na Metafísica: “diferente se diz das coisas que sendo totalmente outras, têm alguma identidade” (Aristóteles apud Schöpke, 2004, p. 64). Para Schöpke a diferença aparece nos sofistas quando esses se contrapõem ao discurso filosófico platônico-aristotélico, baseado no princípio da não-contradição. Para os sofistas não existiria a verdade e nem tampouco a possibilidade de um conhecimento efetivo das coisas mesmas e muito menos a possibilidade de transmitir algum possível conhecimento delas. O ser não se constitui de essências puras ou universais abstratos, mas é composto pelo mundo sensível e mutável, com suas sombras, simulacros e diferenças. O ser é não-ser e o que existe é uma multiplicidade de discurso sobre as coisas apreendidas pelos sentidos. Schöpke afirma, baseada em Romeyer-Dherbey, que para os sofistas o mundo é desprovido de significado invariável e o sentido do mundo é dado pelos homens. Com isso, os sofistas teriam desconstruído a identidade racionalista do ser e da natureza e a possibilidade de um discurso identitário falar de forma adequada sobre eles: Mas uma nova ‘identidade’ será instaurada, e não se trata mais de uma identidade do ser, mas de uma identidade precária que emerge no discurso como resultado de uma operação retórica. Esta é o que se poderia chamar de uma ‘unidade’ inteiramente feita de diferenças (Schöpke, 2004, p. 72). 207 Schöpke recorda que Aristóteles combateu os sofistas criando uma lógica pautada no princípio da não-contradição e da verdade como adequação da coisa ao pensamento, exatamente para se contrapor a ampliação da importância da linguagem sofística como doadora de sentido do real: Daí por que Aristóteles trabalhou intensamente na fixação de um sentido único para um conjunto de coisas semelhantes (um nome geral). Era preciso passar por cima das “pequenas” diferenças e submeter todos os semelhantes a um princípio de identidade “préfixada”. Mas, assim como a homonímia é a doença da linguagem, a semelhança é a doença da visão e dessa maneira terminamos por deixar passar incólume o mundo das diferenças (pequenas ou grandes, mas sempre presentes para lembrar quão equivocado está o homem, quando afirma a identidade plena do ser). Mas as diferenças não se restringem à esferas física; as diferenças estão, sobretudo, presentes no campo dos sentidos. É ali que elas vão produzir os maiores acontecimentos e os maiores contrassensos (Schöpke, 2004, p. 73). Já as concepções medievais de diferença, afirma Schöpke, “no geral, elas não ultrapassaram o ponto de vista aristotélico, afirmando-se como differentia specifica” (Schöpke, 2004, p. 81). Nesse sentido, é dada uma relevância significativa à contribuição de Porfírio, relativamente à lógica quando este distingue a diferença entre os cinco predicáveis maiores, que constitui a espécie e determina o gênero. Ou seja, Isso quer dizer que a diferença é aquilo que, estando em alguma coisa, a identifica e a diferencia das outras. Mas também Porfírio identifica outros tipos de diferença: a diferença comum e a diferença própria, sendo a primeira aquela cujo acidente é separável do corpo (Platão está lendo e Platão não está lendo) e a segunda, aquela que é essencialmente inseparável (por exemplo, a racionalidade). Muitos séculos depois, os escolásticos definiriam duas outras formas da diferença: numero differentia e specie differentia. Uma maneira de distinguir os seres que se diferenciavam segundo o número (como muitos ou poucos) daqueles que eram intrinsecamente diversos (eram outros segundo a essência). De qualquer modo, em todos esses casos, a influência aristotélica é inegável e mesmo decisiva (Schöpke, 2004, p. 81). Segundo Schöpke, tendo por base Deleuze, no livro O bergsonismo, um filósofo da modernidade que muito contribuiu para a constituição da categoria da diferença foi Bergson, devido à ideia de ultrapassar a razão clássica, ou seja, ultrapassar o conhecimento representativo que impede a apreensão das coisas em si mesmas. Para Bergson, no conhecimento clássico da representação há uma separação entre sujeito e objeto que impede essa apreensão, pois representamos aquilo que nos é exterior. Devido a essa operação, 208 Substituímos a multiplicidade colorida do mundo por conceitos fixos e gerais e, posteriormente, chegamos a confundir a linguagem com a coisa, de tal modo que chegamos a ver mais realidade nos esquemas artificiais criados pela razão do que no próprio mundo. É exatamente isso que impede a razão de conhecer a coisa na sua profundidade e interioridade. Somente com um conhecimento que pressuponha uma espécie de ‘simbiose’ entre sujeito e objeto – ou seja, somente quando for possível falar em confusão, uma mistura, uma coincidência entre os dois – é que será possível falar em um conhecimento real. Dito de outra forma, existe um tipo de conhecimento que circunda o objeto, que o analisa a distância e que dele tem apenas as suas coordenadas espaciais; e existe aquele que Bergson chama de conhecimento ‘de dentro’ do objeto, um modo de conhecer que implica uma aproximação direta, numa espécie de ‘simpatia’ com a coisa a ser conhecida. Ao primeiro, Bergson chama de conhecimento representativo e ao segundo, de intuição. Para Bergson, apenas a segunda forma de conhecimento permite ao sujeito conhecer realmente o ‘absoluto’ de um objeto (Schöpke, 2004, pp. 101- 102). Enfim, para Bergson, a intuição opõe-se ao conhecimento analítico da razão clássica. Somente a intuição pode apreender o ser em seu movimento e devir diferenciados. Para tanto, é necessário uma nova linguagem que dê conta desse fluxo cambiante do ser, pois a linguagem da razão representativa ou clássica congela esse movimento e só apreende o ser de forma estanque. Uma filosofia que tenha a intuição como método deve apreender a coisa sem nenhuma representação simbólica. Schöpke, baseada em Deleuze, apresenta três espécies de ato que determinam as regras do método intuitivo: [...] o primeiro ato consiste em denunciar os falsos problemas, ou seja, fazer a prova do verdadeiro e do falso quando da apresentação de um problema (e não em suas soluções, como é feito correntemente), mostrando que existe uma relação intrínseca entre a verdade e a criação; o segundo consiste em lutar contra a ilusão que nos impede de reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza e as profundas articulações do real; o terceiro, por fim, consiste em colocar os problemas e resolvê-los em função do tempo e não do espaço, ou seja, é preciso acostumar-se a pensar em termos de duração (Schöpke, 2004, p. 108 - 109). O segundo ato é o que nos interessa aqui, em função da nossa reflexão sobre a diferença. Nesse ponto é que a filosofia bergsoniana toma uma importância significativa na fundação de uma filosofia da diferença. Na medida em que sua filosofia tem um compromisso com a apreensão do real a partir de suas diferenças específicas, em um fluxo de mudança e permanência, num misto de identidade e diferença, o que só é possibilitado pela intuição como método, diversamente da razão representativa que apreende o ser como ilusão, pois só o compreende de forma fixa. 209 Para Schöpke, Nietzsche é decisivo na criação de uma filosofia da diferença, na medida em que seu pensamento recusou um modelo ou um ser em si, só concebendo os seres na temporalidade a qual não sobrevivem (cf. Deleuze na obra Nietzsche e a filosofia). A exclusividade da existência de cada ser, todo ser é único, faz com que não exista a identidade como modelo, sendo essa precária e provisória. Como afirma Schöpke: “Para Nietzsche, as ideias de mesmo e de semelhante são forjadas por uma razão que precisa tomar o diferente pelo igual ou similar. [...], o conhecimento representativo depende disso. Mas o que existe de fato é um verdadeiro abismo entre os seres” (Schöpke, 2004, p. 125). Assim, a ideia nietzschiana do eterno retorno só pode ser perfeitamente compreendida como sendo: [...] eterno retorno como retorno da diferença – uma vez que é a diferença, e não a identidade, o princípio de toda a Natureza. Todo retorno repete o ‘mesmo’ mundo de diferenças, o ‘mesmo’ mundo de simulacros; é a eterna volta daquilo que não tem princípio nem fim; é a eterna repetição sem finalidade. É a eterna volta da diferença pura [...] (Schöpke, 2004, p. 126). Nietzsche afasta-se assim das teses que defendem um princípio de identidade para todos os seres, pois para ele é a diferença que está na essência dos seres. Não há uma finalidade superior e a priori ao mundo e à vida. O que eternamente retorna é a diferença que faz tudo sempre novo e diferente. Deleuze, coerente com sua posição de que fazer filosofia é criar conceitos, no livro O que é filosofia?, escrito em parceria com Guattari, cria o conceito de diferença pura, que, como nos diz Schöpke, é um conceito autenticamente deleuziano. Foi um conceito criado a partir de outros conceitos filosóficos da tradição, inclusive muitos deles elencados acima, pois, segundo o próprio Deleuze, não se cria um conceito filosófico do nada. Deleuzianamente falando, não se trata de buscar a influência de um conceito filosófico sobre outro, já que isso seria uma banalização, mas da remissão de um conceito a outro e sua reativação em planos distintos. Um outro aspecto a ser enfatizado é que todo conceito criado visa um problema colocado pelo filósofo, mas isso não quer dizer que esse conceito vise especificamente um objeto, no sentido clássico da representação, mas “é o problema como problema que é o objeto real da Ideia” (Schöpke, 2004, p. 126), pois na perspectiva deleuziana não existe um sentido progressivo da filosofia como uma sucessão de sistemas, e sim um devir que não busca uma superação de ideias rumo a uma verdade a se estabelecer. Nesse sentido, Schöpke contextualiza o conceito de diferença pura em Deleuze: 210 Para Deleuze, o mundo moderno nasce da falência da representação. É um mundo onde as identidades não passam de simulações no ‘jogo’ mais profundo da diferença e da repetição. Este é, para Deleuze, o mundo dos simulacros, das distribuições nômades, o mundo das diferenças. Porém, a despeito disso, não existia ainda no ‘céu filosófico’ um conceito autêntico de diferença ou, mais especificamente, não havia sido ainda criado um conceito que desse conta da diferença em si mesma. A razão disso é que sempre se confundiu a criação de um conceito de diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral. Dessa maneira, a diferença – já mediatizada – era sempre associada à negação e à contradição (que representam, para Deleuze, as formas menores e mais baixas da diferença). Era preciso inventar um conceito que libertasse a diferença das regras limitadoras da representação. E libertá-la da representação é libertá-la de sua subordinação à ‘identidade’, ao ‘mesmo’ e à ‘semelhança’. É dar a ela ‘voz’ própria, ou seja, é assegurar à diferença uma ontologia sempre negada por uma imagem de pensamento ortodoxa. Dissemos ‘ontologia’ porque a diferença pura é a própria expressão do ‘ser’ (Schöpke, 2004, p. 143). Dessa forma, Schöpke, apoiada na obra Diferença e repetição, de Deleuze, afirma que a diferença pura deleuziana é o maior, primeiro e mais significativo acontecimento do ser; o ser se diz na diferença por essa ser a sua manifestação mais profunda; o ser se expressa de forma ilimitada ao se expressar na multiplicidade e diferença que o compõem; a univocidade do ser, só é dito num único sentido, é expressa pela diferença, ou seja, “o ser unívoco só é efetivamente realizado no eterno-retorno. Isso porque a sua verdadeira potência está ligada à sua própria repetição. É neste sentido que Deleuze afirma que a repetição é o ser informal de todas as diferenças, já que ele não faz retornar o mesmo e o idêntico, mas a própria diferença” (Schöpke, 2004, p. 154). É nesse sentido que a diferença pura, como expressão mais legítima do ser, não pode ser pensada pela razão clássica da representação que sempre subestimou ou negou radicalmente a diferença e o pensamento do devir. Assim, pode-se afirmar com Deleuze que, negado a ideia platônica dos modelos e das cópias, têm-se a libertação dos simulacros, onde a diferença é o próprio simulacro. Deleuze, em seu livro Nietzsche e a filosofia, enceta uma crítica radical ao pensamento dialético hegeliano, e reivindica uma verdadeira categoria da diferença contra a abordagem feita pela dialética: Três ideias definem a dialética: a ideia de um poder do negativo como princípio teórico que se manifesta na oposição e na contradição; ideia de um valor do sofrimento e da tristeza, a valorização ‘das paixões tristes’ como princípio prático que se manifesta na cisão, no 211 dilaceramento; a ideia de uma positividade como produto teórico e prático da própria negação. Não será exagerado dizer que toda a filosofia de Nietzsche, no seu sentido polêmico, é a denúncia destas três ideias. [...] Se a dialética encontra o seu elemento especulativo na oposição e na contradição, é, em primeiro lugar, porque reflete uma falsa imagem da diferença (Deleuze, s/d, p. 290). Muitas são as passagens nesse livro de Deleuze que demonstram a sua posição crítica, baseada em Nietzsche, relativamente à dialética hegeliana, afirmando ser esta o triunfo das forças reativas, do ressentimento; ser uma ideologia cristã; ser infeliz; ter somente um fantasma da diferença etc. Em oposição, a diferença é feliz, é afirmativa, pois é afirmação da afirmação e, nesse sentido, possibilita um desenvolvimento da criação do novo e da transvaloração dos valores. 2. Deleuze: o eterno retorno da repetição da diferença No livro Diferença e repetição, Deleuze mostra que a Filosofia da Diferença critica a Filosofia da Representação, elegendo o conceito de Diferença como central por ser afirmativo e criativo, no lugar do conceito da contradição, negativo e conservador. O ponto de partida deleuziano é um anti-hegelianismo, no qual a diferença e a repetição substituem o idêntico e o negativo, a identidade e a contradição. Para Deleuze, a diferença hegeliana é pensada na perspectiva do negativo quando levada até a contradição e subordinada ao idêntico. Nesse universo hegeliano prevalece o primado da identidade que caracteriza o mundo da representação. Contudo, o mundo moderno se caracteriza pela falência da representação e seu pensamento identitário, os quais são substituídos pela valorização dos simulacros que põem em xeque as identidades do homem, de Deus, do sujeito e da substância, ou seja, identidades simuladas, produzidas pela diferença e pela repetição representacionais. Diversamente do pensamento representacional, Deleuze busca “pensar a diferença em si mesma e a relação do diferente, independentemente das formas da representação que as conduzem ao Mesmo e as fazem passar pelo negativo” (Deleuze, 1988, p. 16). Ou seja, pensar sob a perspectiva do simulacro, no qual a repetição incide sobre repetições e a diferença sobre diferenças, repetições que se repetem e diferenças que se diferenciam (Cf. Deleuze, 1988, p.16). Dessa forma, no prólogo desse livro, Deleuze já explica e delimita que sua pesquisa se origina de duas vertentes que se reúnem e se confundem, a diferença pura e a repetição complexa: 212 Uma concerne ao conceito de diferença sem negação, precisamente porque a diferença, não sendo subordinada ao idêntico, não iria ou “não teria de ir” até a oposição e a contradição; a outra concerne a um conceito de repetição tal que as repetições físicas, mecânicas ou nuas (repetição do Mesmo) encontrariam sua razão nas estruturas mais profundas de uma repetição oculta, em que se disfarça e se desloca um “diferencial” (Deleuze, 1988, p. 16). (Grifo nosso). Dessa forma, segundo Deleuze, seu pensamento está mais próximo de um certo empirismo do que da dialética, pois o empirismo também “trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora, ou melhor, como Erewhon, de onde saem, inesgotáveis, os ‘aqui’ e os ‘agora’ sempre novos, diversamente distribuídos” (Deleuze, 1988, p. 17). Para o empirista, os conceitos são as próprias coisas em estado livre e selvagem, percebidas para além da mediação dos predicados antropológicos: “Eu faço, refaço e desfaço meus conceitos a partir de um horizonte movente, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia” (Deleuze, 1988, p. 17). No entanto, o empirismo, conforme Deleuze, não deve ser compreendido como uma mera reação contra os conceitos e muito menos como simples apelo à experiência vivida, mas sim como uma imensa e intensa criação de conceitos. Esse empirismo superior tem por objeto “o mundo intenso das diferenças, no qual as qualidades encontram sua razão e o sensível encontra seu ser [...]. Este empirismo nos ensina uma estranha ‘razão’, o múltiplo e o caos da diferença (as distribuições nômades, as anarquias coroadas)” (Deleuze, 1988, p. 107). É por esse caráter mais imanente que a Filosofia moderna deve ultrapassar as dicotomias temporal-intemporal, histórico-eterno, particular-universal. E, para Deleuze, é a filosofia de Nietzsche que possibilita esse movimento. É com o pensamento nietzschiano que “descobrimos o intempestivo como sendo mais profundo que o tempo e a eternidade: a Filosofia não é Filosofia da História, nem Filosofia do eterno, mas intempestiva, sempre e só intempestiva, isto é, ‘contra este tempo, a favor, espero, de um tempo que virá’” (Deleuze, 1988, p. 18). Samuel Butler segue esse mesmo caminho nietzschiano ao criar o conceito do Erewhon “como aquilo que significa, ao mesmo tempo, o ‘parte alguma’ originário e o ‘aqui-agora’ deslocado, disfarçado, modificado, sempre recriado. Nem particularidades empíricas nem universal abstrato: Cogito para um eu dissolvido” (Deleuze, 1988, p. 18). O que vai ao encontro do que Deleuze 213 acredita: um mundo com individuações impessoais e com singularidades préindividuais. 2.1. Repetição Nesse contexto de anti-hegelianismo do pensamento deleuziano, o conceito de repetição é tão central quanto o de diferença e ambos devem ser compreendidos em um mesmo movimento de uma mesma unidade, pois há que se compreender que o que se repete é a diferença. Para Deleuze, Nietzsche coloca “o infinito do movimento real como a diferença absoluta na repetição do eterno retorno” (Deleuze, 1988, p. 34). Assim, a natureza do movimento real é a “repetição” e não a mediação, a qual é um falso movimento lógico e abstrato de Hegel e que se opõe a repetição (Cf. Deleuze, 1988, p. 33). Em Hegel a repetição é tomada como generalidade, na medida em que é a repetição de um conceito (o conceito de animal se expande em racional e em irracional, por exemplo) que se generaliza entre as coisas e mediatiza o conhecimento do sujeito sobre as coisas. Contudo, para Deleuze, a repetição não é uma mera generalidade. Deleuze fala de três distinções entre a generalidade e a repetição: do ponto de vista das condutas, do ponto de vista da lei e do ponto de vista do conceito. Do ponto de vista das condutas, a repetição não é uma simples generalidade, mas uma “singularidade não trocável, insubstituível”. Dessa forma, “repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente” (Deleuze, 1988, p. 22). Assim, a repetição, como universalidade do singular, se opõe a generalidade, como generalidade particular (Cf. Deleuze, 1988, p. 22). Já a distinção entre a generalidade e a repetição do ponto de vista da lei, a qual “reúne a mudança das águas à permanência do rio” (Deleuze, 1988, p. 23), implica que a repetição é contra a forma e o conteúdo da lei e seu caráter de generalidade. A repetição é sinônimo de potência afirmada contra a lei e, talvez, superior a ela (Cf. Deleuze, 1988, p. 24). Dessa forma: Se a repetição existe ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um relevante contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística (Deleuze, 1988, p. 24) 214 Assim, então, do ponto de vista do conceito, se pode afirmar categoricamente que a repetição é diferente de generalidade, a repetição remete a uma potência singular, enquanto a generalidade se refere à ordem geral e “só representa e supõe uma repetição hipotética” (Deleuze, 1988, p. 25). O grau de repetição que a lei consegue alcançar, por exemplo, é o dessa generalidade abstrata, à qual a repetição como potência se opõe, tanto contra a lei moral quanto contra a lei da natureza, pois “a repetição pertence ao humor e à ironia, sendo por natureza transgressão, exceção, e manifestando sempre uma singularidade contra os particulares submetidos à lei, um universal contra as generalidades que estabelecem as leis” (Deleuze, 1988, p. 27). Parafraseando Deleuze, arriscaríamos dizer que é a mudança das águas que faz a permanência do rio e nesse movimento a diferença se apresenta disfarçada de repetição. Nessa perspectiva, Deleuze elege Kierkegaard e Nietzsche como grandes referências do pensamento da repetição. Cada um, a sua maneira, Faz da repetição não só uma potência própria da linguagem e do pensamento, um pathos e uma patologia superior, mas também a categoria fundamental da Filosofia do futuro. A cada um deles corresponde um testamento e também um teatro, uma concepção de teatro e um personagem eminente nesse teatro, como herói da repetição: Jó-Abraão, Dionísio-Zaratustra [...]. O que os separa é considerável, manifesto, bem conhecido. Mas nada apagará este prodigioso encontro em torno de um pensamento da repetição: eles opõem a repetição a todas as formas de generalidade. E eles não tomam a palavra “repetição” de maneira metafórica; ao contrário, têm uma certa maneira de tomá-la ao pé da letra e de introduzi-la no estilo (Deleuze, 1988, p. 28). (Grifos nossos). Apesar das distinções, Deleuze enumera quatro proposições importantes que marcam a coincidência entre esses pensadores no que diz respeito à caracterização da repetição. A primeira proposição afirma a necessidade de “fazer da própria repetição algo novo; liga-la a uma prova, a uma seleção, a uma prova seletiva; coloca-la como objeto supremo da vontade e da liberdade”. (Deleuze, 1988, p. 28). Para Kierkegaard, é necessário fazer da repetição uma novidade, uma tarefa da liberdade. Para Nietzsche, trata-se de libertar a vontade de tudo o que a aprisiona e fazer da repetição “o próprio objeto do querer”. Mas é preciso cuidado, pois se a repetição liberta, ela também aprisiona (Cf. Deleuze, 1988, p. 28). A segunda proposição opõe a repetição às leis da natureza. Para Kierkegaard, não há repetição na natureza e ele não se refere a ela. Para Nietzsche, essa inexistência não é tão clara, pois ele afirma que “se ele descobre a repetição na Physis, ele descobre 215 algo superior ao reino das leis” (Deleuze, 1988, p. 29). Contudo, e mais importante, essa hipótese nietzschiana se opõe à hipótese cíclica: “Ele concebe a repetição no eterno retorno como ser, mas opõe este ser a toda forma legal, tanto ao ser-semelhante quanto ao ser-igual” (Deleuze, 1988, p. 29). A terceira proposição, por sua vez, opõe a repetição à lei moral, e faz da repetição a suspensão da Ética, “o pensamento do para além do bem e do mal” (Deleuze, 1988, p. 29). Assim, A repetição aparece como o logos solitário, do singular, o logos do ‘pensador privado’. Em Kierkegaard e em Nietzsche desenvolve-se a oposição entre o pensador privado, o pensador-cometa, portador da repetição, e o professor público, doutor da lei, cujo discurso de segunda mão procede por mediação e tem como fonte moralizante a generalidade dos conceitos (Deleuze, 1988, pp. 29-30). Ou seja, Pensador privado: pensador-cometa: portador da repetição Que, por sua vez, se distingue do: Professor público: doutor da lei: portador da mediação, da generalidade dos conceitos, da moralização (Grifos nossos) Na contraposição do pensador privado ao professor público, temos que a repetição é a única forma de uma lei para além da moral, pois a mediação traria uma moralização, bem como a generalidade. Dessa forma, “a repetição no eterno retorno é a forma brutal do imediato, do universal e do singular reunidos, que destrona toda lei geral, dissolve as mediações, faz perecer os particulares submetidos à lei. Há um além e um aquém da lei que se unem no eterno retorno [...]” (Deleuze, 1988, p. 30). Por fim, a quarta proposição opõe “a repetição não só às generalidades do hábito, mas às particularidades da memória” (Deleuze, 1988, p. 30). Assim, A repetição é o pensamento do futuro: ela se opõe à antiga categoria da reminiscência e à moderna categoria do habitus. É na repetição, e pela repetição que o Esquecimento se torna uma potência positiva e o inconsciente, um inconsciente superior positivo (por exemplo, o esquecimento, como força, faz parte integrante da experiência vivida do eterno retorno) – tudo se resume à potência (Deleuze, 1988, p. 31). Para Kierkegaard, afirmar a repetição como segunda potência da consciência significa que o infinito se diz de uma só vez. Para Nietzsche, apresentar o eterno retorno como a expressão imediata da vontade de potência não significa “querer a potência”, 216 mas “elevar o que se quer à ‘enésima’ potência, isto é, extrair sua forma superior graças à operação seletiva do pensamento no eterno retorno, graças à singularidade da repetição no próprio eterno retorno” (Deleuze, 1988, p. 31). Ou seja, tudo retorna como potência e não como o Mesmo. Kierkegaard e Nietzsche, conforme Deleuze, com suas proximidades da repetição, trazem à Filosofia novos meios de expressão. Podendo-se até falar em ultrapassamento da Filosofia. Ambos criticam em Hegel “a permanência no falso movimento, no movimento lógico abstrato, isto é, na ‘mediação’. Eles querem colocar a metafísica em movimento, em atividade querem fazê-la passar ao ato e aos atos imediatos” (Deleuze, 1988, p. 32). Contudo, não se trata simplesmente de propor uma nova representação do movimento, pois a representação já é mediação, mas sim de produzir, na obra, um movimento fora da representação: “trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações mediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito” (Deleuze, 1988, p. 32). Essas ideias pertencem à esfera do teatro e são avançadas para a época desses pensadores. Por isso, Deleuze afirma que alguma coisa de completamente novo começou com Kierkegaard e Nietzsche: “Eles já não refletem sobre teatro à maneira hegeliana. Nem mesmo fazem teatro filosófico. Eles inventam, na filosofia, um incrível equivalente do teatro, fundando, desta maneira, este teatro do futuro e, ao mesmo tempo, uma nova Filosofia” (Deleuze, 1988, p. 32) (Grifo nosso). Assim, há nesses filósofos a descoberta da figura do pensador que “vive o problema das máscaras, que experimenta este vazio interior próprio da máscara e que procura supri-lo [...] mediante o ‘absolutamente diferente’, isto é, introduzindo nele toda a diferença do finito e do infinito” (Deleuze, 1988, pp. 32-33). O teatro, aqui, diz respeito ao movimento real, como afirma Deleuze: Eis o que nos é dito: este movimento, a essência e a interioridade do movimento, é a repetição, não a oposição, não a mediação. Hegel é denunciado como aquele que propõe um movimento do conceito abstrato em vez do movimento da Physis e da Psiquê. Hegel substitui a verdadeira relação do singular e do universal na Ideia pela relação abstrata do particular com o conceito em geral. Ele permanece, pois, no elemento refletido da “representação”, na simples generalidade. Ele representa conceitos em vez de dramatizar Ideias: faz um falso teatro, um falso drama, um falso movimento. É preciso ver como Hegel trai e desnatura o imediato para fundar sua dialética sobre esta incompreensão e para introduzir a mediação num movimento que 217 é apenas o movimento de seu próprio pensamento e das generalidades deste pensamento. As sucessões especulativas substituem as coexistências; as oposições vêm recobrir e ocultar as repetições (Deleuze, 1988, p. 34) (Grifo nosso). Assim, para Deleuze, inversamente de Hegel e do pensamento da representação, movimento é a repetição e é este o nosso verdadeiro teatro que, por sua vez, é preenchido por signos e máscaras, com os quais o ator interpreta personagens que interpretam outros personagens. Neste teatro “pensa-se como a repetição se tece de um ponto relevante a um outro, compreendendo em si as diferenças. [...]. O teatro da repetição opõe-se ao teatro da representação, como o movimento opõe-se ao conceito e à representação que o relaciona ao conceito” (Deleuze, 1988, p. 35) (Grifos nossos). Nesse teatro, há experimentação de “forças puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história” (Deleuze, 1988, p. 35) (Grifos nossos). No teatro da repetição, conforme Deleuze, a linguagem fala antes das palavras, os gestos se elaboram antes dos corpos organizados, as máscaras existem antes das faces, e os espectros e fantasmas antes dos personagens. Assim, “todo o aparelho da repetição [existe] como ‘potência terrível’” (Deleuze, 1988, p. 35). Deleuze enfatiza, ainda, que o teatro da repetição confirma “a diferença irredutível entre a generalidade e a repetição”. Ou seja, a generalidade que implica a mediação, é diversa da repetição. Daí Nietzsche fundar a repetição no eterno retorno, bem como a morte de Deus e a dissolução do Eu (Cf. Deleuze, 1988, p. 36). A terceira distinção entre a repetição e a generalidade gira em torno do ponto de vista do conceito ou da representação, ou seja, a relação entre o conceito e seu objeto que, por sua vez, implica na diferença conceitual e na representação como mediação, nas quais a repetição será sempre generalidade. Assim, a repetição como potência e retorno da diferença só é possível para além da filosofia da representação, pois a repetição não se explica pela identidade dos conceitos e nem pela negatividade. Segundo Deleuze, a representação trata da repetição invocando “a forma do idêntico no conceito, a forma do Mesmo na representação: a repetição se diz de elementos que são realmente distintos e que, todavia, têm estritamente, o mesmo conceito” (Deleuze, 1988, p. 43). A repetição aparece como uma diferença sem conceito, uma diferença indiferente, pois a identidade absoluta do conceito para objetos distintos desemboca em uma explicação negativa e deficiente da repetição: 218 [...] aquilo que repete só o faz à força de não ‘compreender’, de não se lembrar, de não saber ou de não ter consciência. Em toda parte, é a insuficiência do conceito e de seus concomitantes representativos (memória e consciência de si, rememoração e recognição) que é tida como capaz de dar conta da repetição. É esta, pois, a deficiência de todo argumento fundado na forma da identidade no conceito: estes argumentos só nos dão uma definição nominal e uma explicação negativa da repetição (Deleuze, 1988, p. 44). (Grifos nossos). Dessa forma, alerta Deleuze, a repetição em sua relação com a diferença exige um princípio positivo, pois a repetição não se deixa explicar pela forma de identidade no conceito ou na representação, ela exige um princípio ‘positivo’ superior, no qual a diferença é interior à Ideia. Assim, fala-se de repetição diante de elementos idênticos que têm absolutamente o mesmo conceito, mas é necessário encontrar a singularidade naquilo que se repete. Porém, Mais do que distinguir repetido e repetidor, objeto e sujeito, devemos distinguir duas formas de repetição. Em todo caso, a repetição é a diferença sem conceito. Contudo, num caso a diferença é posta somente como exterior ao conceito, diferença entre objetos representados sob o mesmo conceito, caindo na indiferença do espaço e do tempo. No outro caso, a diferença é interior à Ideia; ela se desenrola como puro movimento criador de um espaço e de um tempo dinâmicos que correspondem à Ideia. A primeira repetição é repetição do mesmo e se explica pela identidade do conceito ou da representação; a segunda é a que compreende a diferença e compreende a si mesma na alteridade, na heterogeneidade de uma ‘apresentação’. Uma é negativa por deficiência do conceito, a outra é afirmativa por excesso de Ideia. (Deleuze, 1988, p. 55-56). (Grifos nossos). Por isso, para Deleuze, diversamente da filosofia da representação, a repetição em sua relação com a diferença exige um princípio positivo, pois ela é potência, é criação: “a repetição é verdadeiramente o que se disfarça ao se construir e o que só se constitui ao se disfarçar. Ela não está sob as máscaras, mas se forma de uma máscara a outra, como de um ponto relevante a outro, com e nas variantes. As máscaras nada recobrem, salvo outras máscaras” (Deleuze, 1988, p. 45) (Grifo nosso). A repetição não tem um fundamento do qual parte e repete em si mesma, como sendo sua própria existência, ao contrário, ela se constrói. Não há um primeiro termo que se repete, “nada há de repetido que possa ser isolado ou abstraído da repetição em que ele se forma e em que, porém, ele também se oculta. Não há repetição nua que possa ser 219 abstraída ou inferida do próprio disfarce. A mesma coisa é disfarçante e disfarçada” (Deleuze, 1988, p. 46). Dessa forma, afirma Deleuze, A repetição é simbólica na sua essência; o símbolo, o simulacro, é a letra própria da repetição. É por isso que as variantes não vêm de fora, não exprimem um compromisso secundário entre uma instância recalcante e uma instância recalcada, e não devem ser compreendidas a partir das formas ainda negativas da oposição, da conversão ou da reversão. As variantes exprimem antes de tudo mecanismos diferenciais que são da essência e da gênese do que se repete. [...]. O que há de mecânico na repetição, o elemento de ação aparentemente repetido, serve de cobertura para uma repetição mais profunda que se desenrola numa outra dimensão, verticalidade secreta em que os papéis e as máscaras se alimentam no instinto de morte (Deleuze, 1988, p. 46). (Grifos nossos). Nesse movimento de constituição positiva de si mesma, “é a máscara o verdadeiro sujeito da repetição” (Deleuze, 1988, p. 47) (Grifo nosso). Pelo fato da repetição diferir por natureza da representação é que “o repetido não pode ser representado, mas deve sempre ser significado, mascarado por aquilo que o significa, ele próprio mascarando aquilo que ele significa” (Deleuze, 1988, p. 47) (Grifo nosso). Assim, “a verdade do nu está na máscara, no disfarce, no travestimento” (Deleuze, 1988, p. 56) (Grifo nosso). Por isso a repetição não se esconde em outra coisa, “mas se forma disfarçando-se; não preexiste a seus próprios disfarces e, formando-se, constitui a repetição nua em que ela se envolve. (Deleuze, 1988, p. 56) (Grifo nosso). O disfarce é a sua própria forma de existência, na qual a repetição é o disfarce de si mesma. Deleuze afirma que apesar de ter definido a repetição como diferença sem conceito, seria um erro reduzir a diferença à exterioridade da repetição, sob a forma do Mesmo no conceito, pois ela pode ser interior à Ideia e “possuir em si própria todos os recursos do signo, do símbolo e da alteridade que ultrapassam o conceito enquanto tal” (Deleuze, 1988, p. 57). Aliás, para Deleuze, este tipo de repetição traz o espírito constituinte de toda repetição: “É ela que constitui a essência da diferença sem conceito, da diferença não mediatizada em que consiste toda repetição. É ela o sentido primeiro, literal e espiritual da repetição” (Deleuze, 1988, p. 57). Ou seja, a repetição vem da diferença não mediatizada, da diferença sem conceito. Contudo, ao falar que a repetição está ligada positivamente à expressão “diferença sem conceito”, é preciso atentar que “talvez o engano da filosofia da diferença, de Aristóteles a Hegel, passando por Leibniz, tenha sido o de confundir o 220 conceito da diferença com uma diferença simplesmente conceitual” (Deleuze, 1988, p. 61), uma diferença situada no conceito em geral, sem Ideia singular da diferença, uma diferença mediatizada pela representação. Todavia, alerta Deleuze, é preciso levar em consideração duas questões: [...] qual é o conceito da diferença – que não se reduz à simples diferença conceitual, mas que exige uma Ideia própria, como uma singularidade na Ideia? Qual é, por outro lado, a essência da repetição – que não se reduz a uma diferença sem conceito, que não se confunde com o caráter aparente dos objetos representados sob um mesmo conceito, mas que, por sua vez, dá testemunho da singularidade como potência da Ideia? O encontro das duas noções, diferença e repetição, não pode ser suposto desde o início, mas deve aparecer graças a interferências e cruzamentos entre duas linhas concernentes, uma, à essência da repetição, a outra, à ideia da diferença (Deleuze, 1988, p. 61). (Grifos nossos). Certamente essas respostas ficarão mais claras quando tivermos desenvolvido e exposto mais detidamente as questões relativas à diferença. É o que será feito a seguir. 2.2. Diferença A frase de Deleuze: “Tirar a diferença de seu estado de maldição parece ser, assim, a tarefa da filosofia da diferença” (Deleuze, 1988, p. 65) sintetiza bem o objetivo e o objeto da filosofia da diferença deleuziana em sua luta contra a filosofia da representação e o lugar e a forma onde foi posta e como foi tratada a diferença, ou seja, a total submissão da diferença à identidade. Seja em Platão, como simulacro, decadência da cópia que se afasta da identidade do modelo; seja em Aristóteles, como diferença específica, quando submetida à identidade do conceito; seja em Hegel, quando é um elemento negativo que só se realiza na contradição. O pensamento de Platão gira em torno da importante distinção entre o original e a imagem, o modelo e a cópia: “Julga-se que o modelo goze de uma identidade originária superior (só a ideia não é outra coisa a não ser aquilo que ela é, só a Coragem é corajosa e a Piedade, piedosa), ao passo que a cópia é julgada segundo uma semelhança interior derivada” (Deleuze, 1988, p. 210). Dessa forma, a diferença vem somente no terceiro nível, depois da identidade e da semelhança, e é pensada exclusivamente a partir dessas: A diferença só é pensada no jogo comparado de duas similitudes, a similitude exemplar de um original idêntico e a similitude imitativa de uma cópia mais ou menos semelhante: é esta a prova ou a medida dos pretendentes. Mais profundamente, porém, a verdadeira distinção 221 platônica desloca-se e muda de natureza: ela não é entre o original e a imagem, mas entre duas espécies de imagens. Ela não é entre o modelo e a cópia, mas entre duas espécies de imagens (ídolos), cujas cópias (ícones) são apenas a primeira espécie, sendo a outra constituída pelos simulacros (fantasmas). A distinção modelo-cópia existe apenas para fundar e aplicar a distinção cópia-simulacro, pois as cópias são justificadas, salvas, selecionadas em nome da identidade do modelo e graças a sua semelhança interior com este modelo ideal. A noção de modelo não intervém para opor-se ao mundo das imagens em seu conjunto, mas para selecionar as boas imagens, aquelas que se assemelham do interior, os ícones, e para eliminar as más, os simulacros (Deleuze, 1988, p. 210) (Grifo nosso). Nesse sentido, o platonismo “está construído sobre esta vontade de expulsar os fantasmas ou simulacros”. Platão identifica os simulacros com os sofistas, falsos pretendentes sempre disfarçados e deslocados. Para Deleuze, é com Platão que é tomada a decisão filosófica de subordinar a diferença às potências do Mesmo e do Semelhante, de declarar a diferença impensável em si mesma e de remetê-la, juntamente com os simulacros, ao oceano sem fundo (Cf. Deleuze, 1988, p. 211). Dessa forma, Platão, que não dispunha ainda das categorias constituídas da representação, as quais só surgirão com Aristóteles, fundou sua percepção da diferença na teoria da Ideia: “O que aparece, então, em seu mais puro estado, é uma visão moral do mundo, antes que se possa desdobrar a lógica da representação. É por razões morais, inicialmente, que o simulacro deve ser exorcizado e que a diferença deve ser subordinada ao mesmo e ao semelhante” (Deleuze, 1988, p. 211). Contudo, afirma Deleuze, a diferença na pele do simulacro não se deixou subordinar facilmente, como acontecerá no mundo aristotélico da representação; ela se rebela no cosmos platônico e “Heráclito e os sofistas fazem uma algazarra dos infernos. Estranho duplo que segue Sócrates passo a passo, que vem frequentar até o estilo de Platão, inserindo-se nas repetições e variações deste estilo” (Deleuze, 1988, p. 211). Assim, portanto, a representação (ícone) é a imagem bem fundada, hierarquicamente secundária em relação ao fundamento (modelo): “É neste sentido que a Ideia inaugura ou funda o mundo da representação. Quanto às imagens rebeldes e sem semelhança (simulacros), elas são eliminadas, rejeitadas, denunciadas como não fundadas, falsos pretendentes” (Deleuze, 1988, p. 430). A predominância da fórmula básica da identidade, A=A, predominou no pensamento filosófico desde os gregos. Foi esse conceito de identidade que fundamentou o pensamento da representação e, segundo Deleuze, inviabilizou um 222 pensamento da diferença pura. Ou seja, a diferença foi submetida pela representação através do pressuposto do princípio de identidade. A representação, assim, É o fundamento para conhecer tudo aquilo que é ou aparece como ‘presente’ e que, como tal, remete a uma presença primeira. É esse presente que deve ser re-presentado para poder ser referido como o Mesmo, como o Idêntico àquela presença original. Re-encontrar o presente na representação é, então, re-conhecer [...] (Craia, 2005, p. 59). Primeiramente, esse reconhecimento é feito em Aristóteles, através da “raiz quádrupla da representação”, composta pela identidade, pela analogia, pela oposição e pela semelhança, elementos que pertencem à metafísica que, segundo Deleuze, foi o primeiro universo constitutivo da representação. Deleuze define essa representação surgida nos primórdios gregos, de representação orgânica, primeira forma de submeter a diferença à identidade em um organismo harmonioso: “Assim, é como conceito que a representação procede a um primeiro movimento de mediatização da diferença, com o objetivo de retê-la dentro dos próprios limites conceituais” (Craia, 2005, p. 59). Dessa forma, pode-se afirmar que os quatro elementos da representação em Aristóteles: a identidade, a analogia, a oposição e a semelhança são as balizas da mediação. A diferença é ‘mediatizada’ quando submetida a essa quádrupla raiz. Na medida em que o conhecimento e a realidade são encaixotados na relação identitária representacional entre sujeito e objeto, a diferença é tida como um mal a ser domado, é preciso adaptá-la as exigências do conceito em geral. Por isso, então, “tirar a diferença de seu estado de maldição parece ser, assim, a tarefa da filosofia da diferença” (Deleuze, 1988, p. 65). Assim, para Deleuze, a principal confusão criada em torno da filosofia da diferença é a confusão efetuada entre o estabelecimento de um conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral: Confunde-se a determinação do conceito de diferença com a inscrição da diferença na identidade de um conceito indeterminado. É o passe de mágica implicado no feliz momento (e disso talvez derive todo o resto: a subordinação da diferença à oposição, à analogia, à semelhança, todos os aspectos da mediação). Deste modo, a diferença fica sendo apenas um predicado na compreensão do conceito (Deleuze, 1988, p. 69). (Grifos nossos). 223 Dessa forma, a diferença sem um conceito próprio, a não ser inscrita na identidade do conceito em geral e de reflexão, é somente uma diferença que “dá testemunho de sua plena submissão a todas as exigências da representação, que se torna, precisamente graças a ela, ‘representação orgânica’” (Deleuze, 1988, p. 74). É bem mais fácil compreender essas questões se tivermos a clareza de que em Aristóteles há dois tipos de diferenças submetidas à identidade: a específica e a genérica. A diferença específica “é aquela que cria uma contrariedade na definição das espécies pertencentes a um gênero que permanece o mesmo para ambas e responde ao critério da seleção para a diferença ser inscrita no conceito em geral” (Fornazari, 2005, p. 70). Ou seja, o gênero é a zona de identidade entre duas espécies: animal (gênero e identidade do conceito), cavalo e homem (espécies e diferenças específicas com relação àquilo que lhes é comum, o gênero animal): O gênero é esse algo idêntico, essa natureza comum que há entre duas coisas como, por exemplo, entre dois animais. O cavalo e o homem são ambos de uma natureza comum, mas entre eles há uma diferença específica, quer dizer, a própria animalidade é diferente para cada um: a natureza equina e a natureza humana. Portanto, toda diferença de espécie é uma diferença entre duas coisas contrárias no interior de uma terceira, que é a mesma para ambas e constitui o seu gênero. Os contrários que diferem em espécie estão na mesma linha de predicação e diferem entre si no mais alto grau, caracterizando a completude ou a perfeição da diferença (Fornazari, 2005, p. 70). A diferença genérica, por sua vez, diz respeito ao conceito do ser que é distributivo, proporcionado às categorias das quais é predicado e hierárquico, princípio e fundamento das coisas que são. Assim, a diferença genérica não se refere à relação entre um gênero e espécies unívocas, mas sim à diferença do ser, que é equívoco por que se diz de muitas maneiras. Ou seja, diz respeito à substância (ousía) e aos acidentes da substância, as categorias que expressam as diversas formas do ser. Então, “enquanto a diferença específica se contenta em inscrever a diferença na identidade do conceito indeterminado em geral, a diferença genérica (distributiva e hierárquica) se contenta, por sua vez, em inscrever a diferença na quase-identidade dos conceitos determináveis mais gerais” (Fornazari, 2005, p. 75). E nas palavras de Deleuze temos o seguinte: Eis por que não podemos esperar que a diferença genérica ou categorial, não mais que a diferença específica, nos comunique um conceito próprio da diferença. Enquanto a diferença específica se contenta em inscrever a diferença na identidade do conceito indeterminado em geral, a diferença genérica (distributiva e hierárquica) se contenta, por sua vez, em inscrever a diferença na 224 quase-identidade dos conceitos determináveis mais gerais, isto é, na própria analogia do juízo. Toda a filosofia aristotélica da diferença está contida nesta dupla inscrição complementar, fundada num mesmo postulado [...]. Entre as diferenças genéricas e específicas se estabelece o liame de uma cumplicidade na representação (1988, pp. 72-73). Para Deleuze, ambas as diferenças formam um conceito reflexivo, ou seja, uma diferença reflete na outra: as diversas espécies se identificam em algo comum no gênero, e as diversas categorias são oriundas da unidade do ser. Nas palavras de Deleuze: “a univocidade das espécies num gênero comum remete à equivocidade do ser nos gêneros diversos: uma reflete a outra” (1988, p. 76). O conceito reflexivo é operado pelo juízo reflexivo “que mediatiza a diferença ao subordiná-la à identidade do conceito de gênero e ao garantir essa subordinação” (Fornazari, 2005, p. 76). Como conceito de reflexão, a diferença se submete plenamente a todas as exigências da representação, “a diferença mediadora e mediatizada submete-se de pleno direito à identidade do conceito, à oposição dos predicados, à analogia do juízo, à semelhança da percepção. Reencontra-se aqui o caráter necessariamente quadripartito da representação” (Deleuze, 1988, p. 74). O conceito reflexivo também configura a representação aristotélica de representação orgânica, conforme Deleuze. No conceito reflexivo, a diferença se encontra submetida às exigências da representação como representação orgânica, a qual “fixa os limites para a diferença a partir das formas concretas ou das determinações das espécies e dos gêneros, submetidas às exigências do conceito em geral” (Fornazari, 2005, p. 76). Diversamente do ser equívoco de Aristóteles, Deleuze defende que o ser é unívoco, essa é a proposição ontológica mais adequada a uma filosofia da diferença: “Uma só voz faz o clamor do ser” (Deleuze, 1988, p. 75). E o mais importante nesse fato, não é que o Ser se diga num único sentido, mas sim que: Ele se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. O ser é o mesmo para todas estas modalidades, mas estas modalidades não são as mesmas. Ele é “igual” para todas, mas elas mesmas não são iguais. Ele se diz num só sentido de todas, mas elas mesmas não têm o mesmo sentido. É da essência do ser unívoco reportar-se a diferenças individuantes, mas estas diferenças não têm a mesma essência e não variam a essência do ser – como o branco se reporta a intensidades diversas, mas permanece essencialmente o mesmo branco. Não há duas “vias”, como se acreditou no poema de Parmênides, mas uma só “voz” do 225 Ser, que se reporta a todos os seus modos, os mais diversos, os mais variados, os mais diferenciados. O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que ele se diz, mas aquilo de que ele se diz difere: ele se diz da própria diferença (Deleuze, 1988, pp. 75-76). O ser unívoco implica uma reversão categórica geral, “segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo etc.” (Deleuze, 1988, p. 83) (Grifo nosso). Assim, a identidade não pode ser primeira e existir como princípio primeiro, mas sim como segundo princípio girando em torno do Diferente. Dessa forma, a univocidade do ser abre à diferença a possibilidade de seu conceito próprio, libertando-a da dominação do conceito da identidade. A univocidade do ser é definida pela presença da repetição no eterno retorno. O eterno retorno de Nietzsche não significa o retorno do Idêntico, pois, ao contrário, todas as identidades prévias são abolidas. O que retorna é o ser do devir. No eterno retorno não é “o mesmo” que retorna, pois o único “mesmo” é o devir: Retornar é o devir-idêntico do próprio devir. Retornar é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente. Tal identidade, produzida pela diferença, é determinada como “repetição”. Do mesmo modo, a repetição do eterno retorno consiste em pensar o mesmo a partir do diferente (Deleuze, 1988, p. 83) (Grifo nosso). Outra característica do eterno retorno é seleção das diferenças segundo sua capacidade de produzir, isto é, de retornar ou de suportar a prova do eterno retorno. No eterno retorno nietzschiano o que retorna não é o Todo, o Mesmo ou a identidade, o pequeno ou o grande como partes do todo ou como elementos do mesmo: Só retorna o que é extremo, excessivo, o que passa no outro e se torna idêntico. Eis por que o eterno retorno se diz somente do mundo teatral das metamorfoses e das máscaras da Vontade de potência, das intensidades puras desta Vontade, como fatores móveis individuantes que não se deixam reter nos limites fictícios deste ou daquele indivíduo, deste ou daquele Eu. [...]. [...] é na hybris que cada um encontra o ser que o faz retornar, como também a espécie de anarquia coroada, a hierarquia revertida, que, para assegurar a seleção da diferença, começa por subordinar o idêntico ao diferente (Deleuze, 1988, p. 84). Assim, o eterno retorno é a univocidade do ser, afirma Deleuze, a realização efetiva desta univocidade. No eterno retorno, o ser unívoco não é somente pensado, mas afirmado e realizado: “O ser se diz num mesmo sentido, mas este sentido é o do eterno retorno, como retorno ou repetição daquilo de que ele se diz. A roda no eterno retorno 226 é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição” (Deleuze, 1988, p. 85) (Grifo nosso). Deleuze chama o momento aristotélico da representação orgânica de feliz momento grego, no qual a diferença está fortemente submetida à quádrupla raiz da identidade. Já com Hegel é inaugurado um novo período da diferença, que devido a uma maior expansão do seu movimento, para além do finito harmônico das proposições categoriais aristotélicas, é chamado por Deleuze de representação orgíaca: Quando a representação encontra em si o infinito, ela aparece como uma representação orgíaca e não mais orgânica: ela descobre em si o tumulto, a inquietude e a paixão sob a calma aparente ou sob os limites do organizado. Ela reencontra o monstro. Então, já não se trata de um feliz momento que marcaria a entrada e a saída da determinação no conceito em geral, o mínimo e o máximo relativos, o punctum proximum e o punctum remotum (Deleuze, 1988, p. 86). Diversamente, agora o conceito incorpora todos os momentos, é o Todo, abrange todas as partes, as quais recebem uma espécie de absolvição no seu Todo. O conceito segue a determinação em seus extremos e em suas metamorfoses, e a representa como pura diferença, mas entregando-a a um fundamento. E então, já não importam os movimentos da diferença, diante do mínimo ou do máximo relativos, grande ou pequeno, início ou fim, pois todos “coincidem no fundamento como um mesmo momento ‘total’, que é também o do esvaecimento e da produção da diferença, o do desaparecimento e do aparecimento” (Deleuze, 1988, p. 86). Assim como Aristóteles, Hegel determina a diferença pela oposição dos extremos ou dos contrários, mas esta oposição permanece abstrata até ir ao infinito, mas este infinito permanece abstrato se for retirado das oposições finitas. Dessa forma, o infinito põe a identidade dos contrários ou faz do contrário do Outro um contrário de Si. No infinito, a contrariedade possibilita a relação entre o movimento da interioridade e da exterioridade, em que cada contrário expulsa seu outro e se torna o outro que ele expulsa: Tal é a contradição como movimento da exterioridade ou da objetivação real, constituindo a verdadeira pulsação do infinito. Nela, portanto, encontra-se ultrapassada a simples identidade dos contrários, como identidade do positivo e do negativo. Com efeito, não é da mesma maneira que o positivo e o negativo são o Mesmo; o negativo é agora, ao mesmo tempo, o devir do positivo, quando o positivo é negado, e o retorno do positivo, quando ele nega a si próprio ou se exclui (Deleuze, 1988, p. 89). 227 Dessa forma, cada um desses contrários, positivo e negativo, já era a contradição: o positivo como contradição em si, a negação como contradição posta. É nessa contradição posta que a diferença encontra seu conceito próprio, é determinada como negatividade, se torna pura e não indiferente. Então, diz Deleuze, “suportar, levantar a contradição, é a prova seletiva que ‘estabelece’ a diferença [...]. Assim, a diferença é levada até o extremo, isto é, até o fundamento, que não deixa de ser tanto seu retorno ou sua reprodução quanto seu aniquilamento” (Deleuze, 1988, p. 90). Para Hegel, a diferença em geral já é contradição em si, e quando levada ao extremo torna-se negatividade, e daí a diversidade se torna oposição e, consequentemente, contradição. O conjunto de todas as realidades se torna, por sua vez, contradição absoluta em si. Hegel levou a diferença ao máximo absoluto, isto é, a contradição, ao infinito como infinitamente grande da contradição. Assim, segundo Hegel, “a contradição se resolve e, resolvendo-se, resolve a diferença, ao reportá-la a um fundamento” (Deleuze, 1988, p. 88). O problema, na perspectiva da filosofia da diferença deleuziana, é que a diferença fica subsumida novamente à representação. A representação orgíaca ou infinita da diferença de Hegel, não escapa aos quadros da representação, tal qual a representação finita de Aristóteles que “representava a diferença, mediatizando-a, subordinando-a à identidade como gênero e assegurando esta subordinação na analogia dos próprios gêneros, na oposição lógica das determinações, como também na semelhança dos conteúdos propriamente materiais” (Deleuze, 1988, p. 95). Já a representação infinita compreende o Todo, “o fundo como matéria primeira e a essência como sujeito, como Eu ou forma absoluta [e] reporta, ao mesmo tempo, a essência, o fundo e a diferença entre ambos a um fundamento ou razão suficiente. A própria mediação se torna fundamento” (Deleuze, 1988, p. 95) (Grifos nossos). Como é possível observar, a representação infinita não torna o pensamento da diferença independente das categorias representacionais. Ou seja, conforme Deleuze: Em última instância, a representação infinita não se desliga do princípio de identidade como pressuposto da representação. [...]. A representação infinita invoca um fundamento. [...]. Mas, em todos os casos, a razão suficiente, o fundamento, através do infinito, apenas leva o idêntico a existir em sua própria identidade. [...]. A contradição hegeliana não nega a identidade ou a nãocontradição; ela consiste, ao contrário, em inscrever no existente os dois Não da não-contradição, de tal maneira que a identidade, 228 sob esta condição, nesta fundação, baste para pensar o existente como tal (Deleuze, 1988, p. 96) (Grifos nossos). Para Deleuze, as fórmulas hegelianas que afirmam: “a coisa nega o que ela não é” ou “se distingue de tudo o que ela não é” são monstros lógicos a serviço da identidade. Até mesmo a afirmação hegeliana de que a diferença enquanto negatividade vai ou deve ir até a contradição, impelida até o extremo, só é verdade na medida em que seja a identidade que empurre a diferença. Ou seja, a diferença como fundo para a manifestação do idêntico (Cf. Deleuze, 1988, p. 96). É por isso que Deleuze alerta para o fato de que “o círculo de Hegel não é o eterno retorno, mas somente a circulação infinita do idêntico através da negatividade” (Deleuze, 1988, p. 97) (Grifo nosso). Na verdade, afirma Deleuze, Hegel presta uma homenagem ao velho princípio da identidade: De qualquer modo, a diferença permanece subordinada à identidade, reduzida ao negativo, encarcerada na similitude e na analogia. Eis por que, na representação infinita, o delírio é apenas um falso delírio pré-formado, que em nada perturba o repouso ou a serenidade do idêntico. A representação infinita tem, pois, o mesmo defeito da representação finita: o de confundir o conceito próprio da diferença com a inscrição da diferença na identidade do conceito em geral (se bem que tome a identidade como puro princípio infinito, em vez de toma-la como gênero, e estenda ao todo os direitos do conceito em geral, em vez de fixar-lhe os limites) (Deleuze, 1988, p. 97) (Grifo nosso). Por outro lado, o que Deleuze também censura na representação é a permanência na forma da identidade da relação da coisa vista e do sujeito que vê: “A representação infinita pode multiplicar as figuras e os momentos, organizá-los em círculos dotados de um automovimento, mas nem por isso estes círculos deixam de ter um único centro, que é o do grande círculo da consciência” (Deleuze, 1988, pp. 123-124). 2.3. Eterno retorno No livro Nietzsche e a filosofia, Deleuze afirma que o eterno retorno, conforme Nietzsche, não é um pensamento do idêntico, mas sim um pensamento produtor do diverso, o pensamento da repetição da diferença. É precisamente a incapacidade de pensar o diferente e sua repetição que Deleuze denuncia na dialética hegeliana. Fornazari sintetiza essa incapacidade da seguinte forma: Ao passar a dialética pelo crivo da genealogia nietzschiana, Deleuze denuncia nela a incapacidade de pensar a diferença em si mesma, 229 oferecendo da diferença não mais que uma imagem invertida, animada pelas forças negativas e pelo niilismo (Fornazari, 2005, p. 136). Diversamente da dialética hegeliana, o eterno retorno opera uma seleção que elimina as formas médias e extrai “a forma superior de tudo o que é”: “O extremo não é a identidade dos contrários, mas, [...] a univocidade do diferente; a forma superior não é a forma infinita, mas, [...] o eterno informal do próprio eterno retorno através das metamorfoses e das transformações” (Deleuze, 1988, p. 104). Dessa forma, o eterno retorno ao repetir somente a diferença cria a forma superior. E nele só é negado o que pode ser negado, ou seja, o que não tem potência para retornar: Tudo o que é negativo e tudo o que nega, todas estas afirmações médias que carregam o negativo, todos estes pálidos Sim mal vindos que saem do não, tudo o que não suporta a prova do eterno retorno, tudo isto deve ser negado. Se o eterno retorno é uma roda, é preciso ainda dotá-la de um movimento centrífugo violento que expulsa tudo o que “pode” ser negado, o que não suporta a prova. [...]. Assim a negação como consequência resulta da plena afirmação, consome tudo o que é negativo e consome a si própria no centro móvel do eterno retorno. Se o eterno retorno é um círculo, é a Diferença que está no centro, estando o Mesmo somente na circunferência – centro descentrado a cada instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em torno do desigual (Deleuze, 1988, p. 105). O mundo não é harmônico e nem previsível como a representação o apresenta, mas acabado e ilimitado. Assim, “o eterno retorno é o ilimitado do próprio acabado, o ser unívoco que se diz da diferença. No eterno retorno, a caos-errância opõe-se à coerência da representação; ele exclui a coerência de um sujeito que se representa, bem como de um objeto representado” (Deleuze, 1988, p. 108). Para Deleuze, “a repetição opõe-se à representação: o prefixo mudou de sentido, pois, num caso, a diferença se diz somente em relação ao idêntico, mas, no outro, é o unívoco que se diz em relação ao diferente” (Deleuze, 1988, p. 108) (Grifo nosso). Ou seja, na representação, a diferença está subordinada à identidade e na repetição, está presente na univocidade do ser. Assim, “a repetição é o ser informal de todas as diferenças”, diz Deleuze. E enquanto o semelhante é a unidade de medida da representação, “o díspar é o último elemento da repetição que se opõe à identidade da representação” (Deleuze, 1988, p. 108). O círculo do eterno retorno, que traz a diferença e a repetição, desfaz o idêntico e o contraditório e “só diz o Mesmo daquilo que difere” (Deleuze, 1988, p. 108). Deleuze sintetiza esse movimento filosófico do eterno retorno com um verso do poeta Blood: “o mesmo só retorna para trazer o diferente”. 230 Essa diferença que se repete é própria do eterno retorno e é afirmação. Assim, a filosofia da diferença recusa a concepção de que toda determinação é negação (omnis determinatio negativo) ou a ideia de uma diferença já determinada como negação, pois “em sua essência, a diferença é objeto de afirmação, ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é ela própria diferença” (Deleuze, 1988, p. 101) (Grifo nosso). Então, fica claro que, juntamente com Nietzsche, Deleuze combate a perspectiva da valorização do negativo da dialética: [...] é a dialética que confunde a afirmação com a veracidade do verdadeiro ou a positividade do real; e esta veracidade, esta positividade é antes de mais a própria dialética que as fabrica com os produtos do negativo. O ser da lógica hegeliana é o ser apenas pensado, puro e vazio, que se afirma ao passar para o seu próprio contrário. Mas nunca este ser foi diferente deste contrário, nunca teria podido passar para o que já era. O ser hegeliano é o nada puro e simples: e o devir que este ser forma com o nada, quer dizer, consigo mesmo, é um devir perfeitamente niilista; e a afirmação passa aí pela negação porque ela constitui apenas a afirmação do negativo e dos seus produtos (Deleuze, s/d, p. 273). Na dialética hegeliana, ou representação infinita, a negação é o motor e a potência, enquanto a afirmação resulta como mero ersatz (substituto), duas negações fazem um fantasma de afirmação que finda por conservar o que é negado: “Nietzsche assinala o conservadorismo assustador de uma tal concepção. A afirmação é de fato produzida, mas para dizer sim a tudo o que é negativo e negador, a tudo o que pode ser negado” (Deleuze, 1988, p. 102). Nesse sentido, Deleuze relembra que o Asno de Zaratustra quando diz sim é aos pesos. Ele carrega os fardos dos valores divinos, dos valores humanos ou da ausência dos valores: Há um gosto terrível pela responsabilidade nesse asno ou nesse boi dialético e um ranço moral, como se só fosse possível afirmar à força de expiar, como se fosse preciso passar pelas infelicidades da cisão e do dilaceramento para chegar a dizer sim; como se a Diferença fosse o mal e como se ela já fosse o negativo que só poderia produzir a afirmação expiando, isto é, encarregando-se, ao mesmo tempo, do peso do negado e da própria negação. Sempre a velha maldição a retumbar do alto do princípio de identidade: será salva apenas, não o que é simplesmente representado, mas a representação infinita (o conceito) que conserva todo o negativo para, enfim, entregar a diferença ao idêntico (Deleuze, 1988, pp. 102-103) (Grifo nosso). Diversamente, para a filosofia da diferença, a afirmação vem em primeiro lugar. Pelo eterno retorno há uma afirmação da diferença e uma eliminação do negativo: “A 231 diferença é leve, aérea, afirmativa. Afirmar não é carregar, mas, ao contrário, descarregar, aliviar, já não é o negativo que produz um fantasma de afirmação, como um ersatz. É o Não que resulta da afirmação” (Deleuze, 1988, p. 103) (Grifo nosso). Para Nietzsche, conforme Deleuze, o escravo tira do Não o fantasma da afirmação e o “senhor” (homens de potência, mas não homens de poder) tira do Sim a negação. Os senhores contestam o ponto de vista dos conservadores dos valores antigos em nome dos criadores de novos valores. Assim, “há uma diferença de natureza, como entre a ordem conservadora da representação e uma desordem criadora, um caos genial, que só pode coincidir com um momento da história sem confundir-se com ele” (Deleuze, 1988, p. 104) (Grifo nosso). A representação busca as formas médias. A filosofia da diferença, através do eterno retorno, busca as formas extremas dos valores novos, pois “na representação infinita, a pseudo-afirmação não nos faz sair das formas médias” (Deleuze, 1988, p. 104), que trabalham com a negação e em benefício do “grande número”. Dessa forma, a recusa do Mesmo, do idêntico, promovido pela filosofia da diferença implica na necessidade de reverter o platonismo, referindo o Mesmo ao diferente e destruindo as coisas em sua submissão às identidades: “É somente sob esta condição que a diferença é pensada em si mesma e não representada, mediatizada” (Deleuze, 1988, p. 121). O platonismo, ao fazer a distinção entre “a coisa mesma” e os simulacros, não pensa a diferença em si mesma, mas a relaciona com um fundamento e mitifica a mediação. Se reverter o platonismo significa recusar o primado de um original sobre a cópia e valorizar o reino dos simulacros, esta reversão do platonismo é possível, então, de se realizar pelo eterno retorno: Pierre Klossowski [...] assinalou este ponto: o eterno retorno, tomado em seu sentido estrito, significa que cada coisa só existe retornando, cópia de uma infinidade de cópia que não deixam subsistir original nem mesmo origem. Eis por que o eterno retorno é dito “paródico”: ele qualifica o que ele faz ser (e retornar) como sendo simulacro. O simulacro é o verdadeiro caráter ou a forma do que é – “o ente” – quando o eterno retorno é a potência do Ser (o informal). Quando a identidade das coisas é dissolvida, o ser se evade, atinge a univocidade e se põe a girar em torno do diferente. O que é ou retorna não tem qualquer identidade prévia e constituída: a coisa é reduzida à diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e pelas quais ela passa (Deleuze, 1988, p. 121) (Grifos nossos). 232 Assim, o simulacro é o próprio símbolo, interioriza as condições de sua própria repetição e apreende uma disparidade constituinte no modelo destituído. O eterno retorno potencializado “não permite qualquer instauração de uma fundação-fundamento: ao contrário, ele destrói, engole todo fundamento como instância que colocaria a diferença entre o originário e o derivado, a coisa e os simulacros. Ele nos faz assistir ao a-fundamento universal.” (Deleuze, 1988, p. 122). Compreenda-se por “a-fundamento” a liberdade não mediatizada do fundo, a existência de fundos atrás de fundos, a relação do sem-fundo com o não-fundado, a reflexão imediata do informal e da forma superior que constitui o eterno retorno (Cf. Deleuze, 1988, p.122). Assim, tudo se torna simulacro: O pensador do eterno retorno, que não se deixa certamente tirar da caverna, mas antes encontraria uma outra caverna além, sempre uma outra onde esconder-se, pode legitimamente dizer que ele próprio é encarregado da forma superior de tudo o que é, como o poeta, “encarregado da humanidade, até mesmo dos animais”. Estas palavras ecoam nas cavernas superpostas. E a crueldade que no início nos parecia constituir o monstro, que parecia dever reparar e só poder ser apaziguada pela mediação representativa, parece-nos agora formar a Ideia, isto é, o conceito puro da diferença no platonismo revertido: o mais inocente, o estado de inocência e seu eco (Deleuze, 1988, p.122) O simulacro não é uma simples imitação, mas sim a contestação da ideia de um modelo. Ele traz a diferença em si, bem como a abolição da semelhança e indica, portanto, a inexistência de um original e de uma cópia, constituindo um domínio subrepresentativo (Cf. Deleuze, 1988, p. 124). Dessa forma, se a “representação tem a identidade como elemento e um semelhante como unidade de medida, a pura presença, tal como aparece no simulacro, tem o ‘díspar’ como unidade de medida, isto é, sempre uma diferença de diferença como elemento imediato” (Deleuze, 1988, p. 125). Podemos visualizar esse conjunto da seguinte forma: Elemento Unidade de medida Representação Identidade Semelhante Pura presença (simulacro) Diferença de diferença Díspar Por fim, o eterno retorno está presente em toda transformação, “é contemporâneo do que ele faz retornar [...], reporta-se a um mundo de diferenças implicadas umas nas outras, a um mundo complicado sem identidade, propriamente 233 caótico” (Deleuze, 1988, p. 107). Portanto, no eterno retorno o ser é a própria Diferença: “O ser é também não-ser, mas o não-ser não é o ser do negativo, é o ser do problemático, o ser do problema e da questão. A diferença não é o negativo: ao contrário, o não-ser é que é a Diferença: [...]. Eis por que o não-ser deveria antes ser escrito (não)-ser, ou melhor ainda, ?-ser” (Deleuze, 1988, p. 118). A ideia presente no eterno retorno é essencialmente ligada à reversão do platonismo, o antiplatonismo pretendido por Deleuze: “O eterno retorno só concerne aos simulacros, aos fantasmas, e só os simulacros e fantasmas é que ele faz retornar” (Deleuze, 1988, p. 210). Pode-se concluir a apresentação desses três conceitos fundamentais para a filosofia da diferença - repetição, diferença e eterno retorno - que têm por linha mestra o questionamento da representação pautada na valorização do negativo em detrimento da diferença, com as seguintes afirmações pragmáticas de Deleuze: Para dizer a verdade, tudo isto nada seria sem as implicações práticas e os pressupostos morais de uma tal desnaturação. Vimos tudo o que significa essa valorização do negativo, o espírito conservador de um tal empreendimento, a trivialidade das afirmações que se pretende engendrar assim, a maneira pela qual somos, então, desviados da mais elevada tarefa – a que consiste em determinar os problemas, em neles inscrever nosso poder decisório e criador. Eis por que os conflitos, as oposições, as contradições nos parecem efeitos de superfície, epifenômenos da consciência, ao passo que o inconsciente vive de problemas e de diferenças. A história não passa pela negação e pela negação da negação, mas pela decisão dos problemas e pela afirmação das diferenças. Nem por isso é ela menos sangrenta e cruel. Só as sombras da história vivem de negação; mas os justos entram nela com toda a potência de um diferencial posto, de uma diferença afirmada; elas remetem a sombra à sombra e negam apenas como consequência de uma positividade e de uma afirmação primeiras (Deleuze, 1988, pp. 423-424). (Grifos nossos) Relembrando Nietzsche, Deleuze considera que, entre os justos, a afirmação vem em primeiro lugar e afirma a diferença, enquanto o negativo é apenas uma consequência, um reflexo em que a afirmação se reduplica. Daí ser possível compreender que as verdadeiras revoluções têm também um ar de festa e “a contradição não é a arma do proletariado, mas, antes, a maneira pela qual a burguesia se defende e se conserva, a sombra atrás da qual ela mantém sua pretensão de decidir os problemas” (Deleuze, 1988, p. 424), pois as contradições não são para serem “resolvidas”, mas sim dissipadas quando nos apropriamos do problema que projetava sua sombra nas contradições e o resolvemos. Assim, “o negativo é a reação da consciência, a 234 desnaturação do verdadeiro agente, do verdadeiro ator. Do mesmo modo, a Filosofia, na medida em que permanece nos limites da representação, é vítima de antinomias teóricas que são as da consciência” (Deleuze, 1988, p. 424). 3. A Filosofia da Filosofia da Diferença Depois de ter delimitado muito claramente nos livros Nietzsche e a filosofia e Repetição e diferença que “a tarefa da filosofia moderna foi definida: reversão do platonismo” (Deleuze, 1988, p. 110), em O que é filosofia?, escrito em parceria com Guattari, Deleuze explicita que para a filosofia da diferença, o conceito de filosofia também se distancia do conceito de filosofia pautado na representação. Assim, no âmbito filosófico de contestação do universo identitário, já não faz mais sentido ter na filosofia a busca última da Verdade, do fundamento ou da essência última do Ser, num movimento totalmente voltado à transcendência. Diversamente, agora, na perspectiva da filosofia da diferença, em um plano de imanência, a filosofia “desloca a atenção dos ‘universais’ abstratos para a concretude dos eventos, dos acontecimentos” (Gallo, 2003, p. 36). Dessa forma, “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (Deleuze, 1992, p. 10). Para Deleuze, Os filósofos não se ocuparam o bastante com a natureza do conceito como realidade filosófica. Eles preferiram considerá-lo como um conhecimento ou uma representação dados, que se explicam por faculdades capazes de formá-lo (abstração ou generalização) ou de utilizá-los (juízo). Mas o conceito não é dado, é criado, está por criar; não é formado, ele próprio se põe em si mesmo, autoposição (Deleuze e Guattari, 1992, p. 20). Mas, não é que ela tenha se tornado uma criadora de conceitos, pois ela sempre os criou. A questão é que ela perdeu de vista essa característica própria na medida em que criava os conceitos e passava a acreditar neles de forma hipostasiada. Platão, por exemplo, “dizia que é necessário contemplar as Ideias, mas tinha sido necessário, antes, que ele criasse o conceito de Ideia” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 14). Contudo, a filosofia não é uma simples arte de formar, inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. [...]. Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência. [...]. Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos (Deleuze e Guattari, 1992, p. 13). 235 Essa formulação deleuziana tem inspiração confessa em Nietzsche, que teria estabelecido essa tarefa da filosofia ao escrever que os filósofos não deveriam simplesmente aceitar os conceitos que lhes são dados, mas sim criar novos conceitos. Partindo dessa premissa, Deleuze delimita o que a filosofia não é, ou seja, ela “não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação” (Deleuze, 1992, p. 14). A filosofia não é contemplação porque “as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”; não é reflexão porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre qualquer coisa; e não é comunicação, pois esta só trabalha com opiniões para a construção de “consenso” e não de conceito (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 14). Dessa forma, assevera Deleuze, “a filosofia não comtempla, não reflete, não comunica, se bem que ela tenha de criar conceitos para estas ações ou paixões” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 15). Para Deleuze, os lugares comuns de definição da filosofia, tais como conhecer a si mesmo, aprender a pensar, não tomar as coisas como óbvias, espantar-se com as coisas etc. tem certo interesse, mas além de serem limitadas, repetitivas e fatigantes, não contemplam com precisão o que seria a filosofia: “Pode-se considerar como decisiva, ao contrário, a definição da filosofia: conhecimento por puros conceitos” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 15). Contudo, os conceitos inventados, fabricados ou criados “não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 13). Assim, diz Deleuze, temos a substância de Aristóteles, o cogito de Descartes, a mônada de Leibniz etc. Porém, nem todos tem paternidade definida, mas sempre “o batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação, e que constitui na língua da filosofia, não somente um vocabulário, mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande beleza” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 16). Outra questão importante a ser realçada, é que essa exclusividade da filosofia na criação de conceitos não constitui nenhum privilégio, “pois há outras maneiras de pensar e de criar, outros modos de ideação que não têm de passar por conceitos” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 17), e que são tão importantes quanto esta função própria da atividade filosófica. Ou seja, nessa perspectiva da filosofia da diferença, fica perdido o lugar da filosofia como central e superior com relação aos outros conhecimentos. 236 Contudo, se a filosofia é criação de conceitos, cabe a pergunta: o que é o conceito nessa perspectiva deleuziana? Dentre outras coisas, podem-se afirmar algumas mais significativas. O conceito, por exemplo, “diz o acontecimento, não a essência ou a coisa. É um Acontecimento puro, uma hecceidade, uma entidade [...]. O conceito define-se pela inseparabilidade de um número infinito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevôo absoluto, à velocidade infinita” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 33). O conceito não é uma representação universal que busca dar conta da essência de uma dada realidade, mas debruça-se sobre a concretude dos eventos-acontecimentos, ressignificando o mundo. Os conceitos são, ao mesmo tempo, eternos e temporais, pois eles expressam de forma filosófica os problemas de seu tempo, mas podem ser também problemas que aparecem em outras épocas de formas diferenciadas. Dessa forma, um conceito “faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas, opera recortes insólitos, suscita um Acontecimento que nos sobrevoa” (Deleuze, 1992, p. 41). E se constantemente retomamos conceitos de filósofos de outras épocas “é porque temos direito de pensar que seus conceitos podem ser reativados em nossos problemas e inspirar os conceitos que é necessário criar” (Deleuze, 1992, p. 41). Esta é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos, não repetindo o que eles disseram ou fizeram, mas criando conceitos para problemas do nosso tempo. Para Deleuze, então, não basta somente se colocar de forma passiva diante da exposição dos conceitos que perfazem a história da filosofia, seja criticando, seja aderindo a eles. Por um lado, não basta simplesmente aderir aos conceitos da historia da filosofia, mas é necessário avaliar “a novidade histórica dos conceitos criados por um filósofo, [...] a potência de seu devir quando eles passam uns pelos outros” (Deleuze e Guattari, 19992, p. 46). Por outro lado, “aqueles que criticam sem criar, aqueles que se contentam em defender o que se esvaneceu sem saber dar-lhe forças para retornar à vida, eles são a chaga da filosofia” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 42). Um estatuto pedagógico do conceito indica algumas condições para sua criação: é um sobrevoo que percorre uma multiplicidade de acontecimentos compostos de variações intensivas e inseparáveis, assim, “o conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir” (Deleuze, 1992, p. 46). Por isso, os conceitos são exclusivamente atividade da filosofia: 237 [..] pertencem de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que não se confunde com o estado de coisas no qual se encarna. Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos... (Deleuze e Guattari, 1992, p. 46). O conceito filosófico não se refere nem somente e nem diretamente ao vivido, mas se trata de criar um acontecimento que sobrevoe o vivido, ou sobre qualquer estado de coisas. Para Deleuze, a grandeza de uma filosofia consiste na natureza dos acontecimentos evocados pelos conceitos ou pela potencialidade que ela nos transmite em depurar acontecimentos pelos conceitos: “Portanto, é necessário experimentar em seus mínimos detalhes o vínculo único, exclusivo, dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora. O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 47). A exclusividade da criação de conceitos por parte da filosofia se torna mais compreensível na medida em que Deleuze esclarece que a ciência cria prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte cria perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções ou sentimentos). O que, certamente, implicam em linguagens diferenciadas, mas em disciplinas que se cruzam perpetuamente (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 37). Contudo, não se pode falar em conceito sem remeter à figura do plano de imanência, pois se os conceitos são criados na imanência “o trabalho filosófico dá-se pela delimitação de um plano de imanência, sobre o qual são gerados os conceitos. A noção de plano de imanência é fundamental para a criação filosófica, pois o plano é o solo e o horizonte da produção conceitual” (Gallo, 2003, p. 53). O plano de imanência não é um conceito, mas sim seu suporte, bem como ele só existe quando habitado por conceitos: “[...] é essencialmente um campo onde se produzem, circulam e se entrechocam os conceitos. Ele é sucessivamente definido como uma atmosfera [...] como informe e fractal, como horizonte e reservatório, como um meio indivisível ou impartilhável” (Prado Júnior apud Gallo, 2003, p. 53). Deleuze afirma que a filosofia é um construtivismo que tem dois aspectos complementares, mas diversos: criação de conceitos e tracejamento de um plano de imanência. Em seguida, o filósofo define de forma poética o conceito e o plano de 238 imanência: “Os conceitos são como as vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 51). Por isso é necessário não confundir o plano de imanência com os conceitos que o ocupam, pois: [...] os elementos do plano são traços diagramáticos, enquanto os conceitos são traços intensivos. Os primeiros são movimentos do infinito, enquanto os segundos são as ordenadas intensivas desses movimentos, como cortes originais ou posições diferenciais: movimentos finitos, cujo infinito só é de velocidade, e que constituem cada vez uma superfície ou um volume, um contorno irregular marcando uma parada no grau de proliferação. Os primeiros são direções absolutas de natureza fractal, ao passo que os segundos são dimensões absolutas, superfícies ou volumes sempre fragmentários, definidos intensivamente. Os primeiros são intuições, os segundos, intensões. Que toda filosofia dependa de uma intuição, que seus conceitos não cessam de desenvolver até o limite das diferenças da intensidade, esta grandiosa perspectiva leibniziana ou bergsoniana está fundada se considerarmos a intuição como o envolvimento dos movimentos infinitos do pensamento, que percorrem sem cessar um plano de imanência. Não se concluirá daí que os conceitos se deduzam do plano: para tanto é necessário uma construção especial, distinta daquela do plano, e é por isso que os conceitos devem ser criados, do mesmo modo que o plano deve ser erigido (Deleuze e Guattari, 1992, pp. 56-57). Segundo Deleuze, a criação de conceitos já se encontra no âmbito filosófico, a filosofia começa com a criação de conceitos, mas o plano de imanência deve ser considerado como pré-filosófico, pois ele está somente pressuposto e os conceitos remetem, eles mesmos, a uma compreensão não-conceitual e intuitiva, a qual varia conforme o tracejamento do plano (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 57). A condição pré-filosófica não se refere a algo que pre-exista, “mas algo que não existe fora da filosofia, embora esta o suponha” (Cf. Deleuze, 1992, p. 57). Essas são as condições internas de existência do plano de imanência. A remissão dos conceitos ao não filosófico na construção do plano de imanência é de suma importância para a filosofia da filosofia da diferença, pois, segundo Deleuze, “o não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua essência, aos não-filósofos” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 57). Essa referência constante dos conceitos da filosofia a não-filosofia do plano de imanência que se instaura, implica que a filosofia como criação de conceitos pressupõe 239 a não-filosofia, da qual não se separa nunca: “A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceito e instauração do plano. O conceito é o começo da filosofia, mas o plano é sua instauração” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 58). O plano não é pré-determinado e nem definitivo, mas “constitui o solo absoluto da filosofia; sua Terra ou sua desterritorialização, sua fundação, sobre os quais ela cria seus conceitos. Ambos são necessários, criar os conceitos e instaurar o plano, como duas asas ou duas nadadeiras” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 58). Da mesma forma, a condição pré-filosófica do plano de imanência, pois não opera com conceitos, implica também em “uma espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios poucos confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 58). Deleuze considera a imanência tão importante e revolucionária que ela é apontada como “a pedra de toque incandescente de toda a filosofia”, pois ela “toma para si todos os perigos que esta deve enfrentar, todas as condenações, perseguições e denegações que ela sofre” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 63). Isso demonstra que a imanência, não sendo abstrata ou teórica, torna-se um perigo, uma ameaça às concepções transcendentes: “Ela engole os sábios e os deuses” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 63) (Grifo nosso). Contudo, a imanência enquanto tal “só é imanente a si mesma, e então toma tudo, absorve o Todo-Uno, e não deixa subsistir nada a que ela poderia ser imanente [...] [pois] cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo, pode-se estar certo que este Algo reintroduz o transcendente” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 63). Assim, somente quando a imanência é imanente a si própria e não mais é imanente a outra coisa, é que se pode falar de um plano de imanência. Não se trata de um fluxo do vivido imanente a um sujeito, mas apresenta somente acontecimentos, mundos possíveis, enquanto conceitos ou personagens conceituais. Isso se passa assim porque o acontecimento não remete o vivido a um sujeito transcendente = Eu, mas sim ao sobrevoo imanente de um campo sem sujeito: “Outrem não devolve a transcendência a um outro eu, mas traz todo outro eu à imanência do campo sobrevoado” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 66). Parafraseando Deleuze, quando afirma “que não pensamos sem nos tornarmos outra coisa, algo que não pensa, um bicho, um vegetal, uma molécula, uma partícula, 240 que retornam sobre o pensamento e o relançam” (Deleuze, 1992, p. 59), poderíamos dizer que ninguém fica imune ao se deparar com a força indômita da imanência, ninguém sai igual ao que era antes de nela submergir. Ela engole não só os sábios e os deuses, mas também os homens naquilo que eles, de forma hipostasiada, pensam ser. A filosofia, ao instaurar o plano de imanência, opera um corte no caos, do qual se alimenta, e é assim que “o plano de imanência faz apelo a uma criação de conceitos” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 60). Porém, conforme Deleuze, “não é todo grande filósofo que traça um novo plano de imanência, que traz uma nova matéria do ser e erige uma nova imagem do pensamento” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 69). Os funcionários da filosofia, ao invés de filósofos, não renovam a imagem do pensamento, não têm consciência do problema e simplesmente se apropriam de um pensamento pronto que tomam por modelo (Deleuze e Guattari, 1992, p. 69). Esses funcionários da filosofia tomam a filosofia como história da filosofia: “A história da filosofia é comparável à arte do retrato. Não se trata de ‘fazer parecido’, isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança, desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 74). Outra questão relativa ao plano de imanência e à atividade filosófica da criação de conceitos, é que nem sempre a filosofia se compreendeu dessa forma. Ao contrário, a o invés de criação de conceitos, a filosofia tradicional compreendia que o pensamento deveria procurar a verdade. A filosofia se definia como a procura do verdadeiro. Diversamente, [...] o primeiro caráter da imagem moderna do pensamento é talvez o de renunciar completamente a esta relação, para considerar que a verdade é somente o que o pensamento cria, tendo-se em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto, e todos os traços deste plano, negativos tanto quanto positivos, tornados indiscerníveis: pensamento é criação, não vontade de verdade, como Nietzsche soube mostrar (Deleuze e Guattari, 1992, p. 73). Portanto, para a filosofia da diferença não há vontade de verdade como aparecia na imagem clássica da filosofia. O pensamento constitui uma simples “possibilidade” de pensar (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 73). E de uma maneira bem próxima à imanência caótica, Deleuze afirma que “se o pensamento procura, é menos à maneira de um homem que disporia de um método, que à maneira de um cão que pula desordenadamente...” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 74). Mas isso não significa, segundo 241 Deleuze, uma facilidade ou uma glória premiada, mas sim uma dificuldade maior, pois a imanência é tida como uma ameaça “aos deuses e aos sábios” (Cf. Deleuze, 1992, pp. 63 e 74). Contudo, além do plano de imanência, para complementar a definição de filosofia como criação de conceitos é imprescindível a noção de personagens conceituais: “Os conceitos [...] têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 10). Ou como esclarece Gallo (2003, p. 56): “Cada filósofo cria ‘personagens’, à maneira de heterônimos, que são os sujeitos da criação conceitual. Em alguns filósofos isso é mais explícito, em outros é mais velado”. Os personagens conceituais promovem os movimentos do plano de imanência do seu autor, bem como intervêm na própria criação de seus conceitos. Pertencem ao plano que o filósofo traçou e aos conceitos que criou, inspiram conceitos originais e permanecem propriedade constituinte desta filosofia (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 86): O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os “heterônimos” do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens. Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares. O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata, um símbolo ou uma alegoria, pois ele vive, ele insiste. O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais. E o destino do filósofo é de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais, ao mesmo tempo que estes personagens se tornam, eles mesmos, coisa diferente do que são historicamente, mitologicamente ou comumente (o Sócrates de Platão, o Dioniso de Nietzsche, o Idiota de Cusa). O personagem conceitual é o devir ou o sujeito de uma filosofia, que vale para o filósofo, de tal modo que Cusa ou mesmo Descartes deveriam assinar “o Idiota”, como Nietzsche assinou “o Anticristo” ou “Dioniso crucificado” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 86). O personagem conceitual é uma espécie de indicativo filosófico, um ato de fala em terceira pessoa que se refere a um eu: “eu penso enquanto Idiota, eu quero enquanto Zaratustra, eu danço enquanto Dioniso [...]”. Contudo, essa enunciação filosófica não é um mero fazer através da fala, mas um movimento que se expressa no pensamento, por intermédio de um personagem conceitual que é o verdadeiro agente de enunciação. Dessa forma, o eu é sempre uma terceira pessoa (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 87). 242 Para Deleuze, poucos filósofos operaram tanto com personagens conceituais quanto Nietzsche (Dioniso, Zaratustra, Cristo, o Sacerdote, os Homens superiores), mas isso não significa que ele tenha renunciado aos conceitos, pelo contrário, ele criou muitos deles (“força”, “valor”, “devir”, “vida”, “ressentimento”, “má consciência”). Da mesma forma, Nietzsche traça um novo plano de imanência, no qual a vontade de potência e o eterno retorno subvertem a imagem do pensamento como crítica da vontade de verdade. Apesar de Nietzsche ser considerado por muitos como um poeta, um taumaturgo ou um criador de mitos, o fato é que os personagens conceituais em Nietzsche, e de outros filósofos, não são personificações míticas ou históricas, heróis literários ou romanescos: Não é o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche, como não é o Sócrates da História que está em Platão. Devir não é ser, e Dioniso se torna filósofo, ao mesmo tempo que Nietzsche se torna Dioniso. Aí, ainda, é Platão quem começou: ele se torna Sócrates, ao mesmo tempo que faz Sócrates tornar-se filósofo (Deleuze e Guattari, 1992, p. 87). Conforme Deleuze, os personagens conceituais manifestam territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento; são pensadores e seus traços se juntam estreitamente aos traços do pensamento, dos conceitos e do plano de imanência. O personagem conceitual está encarnado em nós, nos habita, habita o mundo e fala do mundo, “pensa em nós, e talvez não nos preexista. [...] um personagem conceitual gagueja, não é mais um tipo que gagueja numa língua, mas um pensador que faz gaguejar toda a linguagem, e que faz da gagueira o traço do próprio pensamento enquanto linguagem” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 92). Dessa forma, pode-se afirmar, ainda, que o personagem conceitual e o plano de imanência se pressupõem reciprocamente. O personagem conceitual intervém, assim, [...] entre o caos e os traços diagramáticos do plano de imanência, mas também entre o plano e os traços intensivos dos conceitos que vêm povoá-lo. [...]. Os conceitos não se deduzem do plano, é necessário o personagem conceitual para cria-los sobre o plano, como para traçar o próprio plano, mas as duas operações não se confundem no personagem, que se apresenta ele mesmo como um operador distinto (Deleuze e Guattari, 1992, p. 100). A criação de conceitos povoa o plano, mas, por este ser ilimitado, também vai sendo tracejado com os conceitos a serem criados e os personagens conceituais a serem inventados. Ou seja, o plano de imanência é e vai sendo constituído pelos conceitos 243 criados e pelos personagens conceituais inventados. (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 102). Portanto, a filosofia tem três elementos: “o plano pré-filosófico que ela deve traçar (imanência), o ou os personagens pró-filosóficos que ela deve inventar e fazer viver (insistência), os conceitos filosóficos que ela deve criar (consistência). Traçar, inventar, criar, esta é a trindade filosófica” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 101). Cada uma dessas está nas outras duas, mas não são iguais, coexistem e subsistem sem desaparecer uma na outra (Cf. Deleuze e Guattari, 1992, p. 106). Para Deleuze, isso significa que essas três atividades que compõem o construcionismo se alternam e se recortam: “uma que consiste em criar conceitos, como caso de solução, outra em traçar um plano e um movimento sobre o plano, como condições de um problema, outra em inventar um personagem, como a incógnita de um problema” (1992, p. 106). Não há regra e nem discussão que possam dimensionar se é o bom plano, o bom personagem, o bom conceito, “pois é cada um deles que decide se os dois outros deram certo ou não; mas cada um deles deve ser construído por sua conta: um criado, o outro inventado, o outro traçado” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 107). Cada uma das atividades filosóficas tem seus critérios nas outras duas, e é por isso que a filosofia se desenvolve no paradoxo e pelo construcionismo, pois não há verdade e nem consenso a serem alcançados: A filosofia não consiste em saber, e não é a verdade que inspira a filosofia, mas categorias como as do Interessante, do Notável ou do Importante que decidem sobre o sucesso ou o fracasso. Ora, não se pode sabê-lo antes de ter construído. De muitos livros de filosofia, não se dirá que são falsos, pois isso não é dizer nada, mas que são sem importância nem interesse, justamente porque não criam nenhum conceito, nem trazem uma imagem do pensamento ou engendram um personagem que valha a pena. Só os professores podem pôr “errado” à margem, e...; mas os leitores podem ter ainda assim dúvidas sobre a importância e o interesse, isto é, a novidade do que se lhes dá para ler (Deleuze e Guattari, 1992, p. 108). É assim que Deleuze, e o seu conceito de filosofia da filosofia da diferença, se contrapõe à filosofia clássica e aos seus conceitos universais que são apresentados como formas ou valores eternos. Estes são “esqueléticos” e “os menos interessantes”. Dessa forma, não há nada de positivo no domínio da crítica ou da história, pois: [...] quando nos contentamos em agitar velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados a intimidar toda criação, sem ver que os antigos filósofos, de que são emprestados, faziam já o que se queria impedir os modernos de fazer: eles criavam seus 244 conceitos e não se contentavam em limpar, em raspar os ossos, como o crítico ou o historiador de nossa época. Mesmo a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não se propuser a despertar um conceito adormecido, a relançá-lo numa nova cena, mesmo a preço de voltá-lo contra ele mesmo (Deleuze e Guattari, 1992, p. 109). 4. A Filosofia da Educação na Filosofia da Diferença Foi visto que a filosofia da filosofia da diferença se distancia da visão clássica da filosofia da filosofia da representação, fazendo uma crítica radical à representação, seja em sua vertente aristotélica, seja em sua vertente hegeliana e propondo, fortemente, a inversão do platonismo, com o objetivo expresso de rejeitar a identidade como parâmetro filosófico e resgatar a importância e a centralidade da diferença como estatuto ontológico. Assim, se a filosofia da diferença propõe uma filosofia da imanência, é certo que uma filosofia da educação pensada a partir da filosofia da diferença não será como a filosofia da educação pautada nos moldes clássicos da filosofia da representação. A abordagem clássica da filosofia da educação propõe que se parta dos clássicos da filosofia que, de alguma forma, falaram sobre educação ou que seja uma proposta de pressupostos filosóficos que norteariam a atividade pedagógica (Cf. Marinho, 2009b). Outra questão se impõe: como falar de filosofia da educação na filosofia da diferença deleuziana se Deleuze não tem nenhum pensamento sistematizado em torno dessa disciplina? Se o que existe na obra deleuziana são somente fragmentos e passagens extremamente dispersos sobre assuntos que se aproximam do universo da educação? Tais como aprendizagem, saber, professor, etc. Ainda outra questão se apresenta: como compreender uma filosofia da educação na filosofia da diferença, ou a partir dela, em uma tradição brasileira educacional que se pautou completamente naquilo em que Deleuze condenou em sua filosofia, ou seja, a metafísica, o humanismo, o racionalismo, o cristianismo e a dialética? Diante de tantas, variadas, importantes e decisivas questões, é preciso manter o foco para mostrarmos, dentro dos limites que o presente trabalho permite, a aproximação possível da Filosofia da Diferença deleuziana e a Filosofia da Educação, em um primeiro momento, e como ocorre e se efetua essa aproximação no Brasil, seus principais representantes, ideias, obras e pontos de vista, que será apresentado no quarto capítulo. 245 Tomaz Tadeu e Walter Kohan (2005), na apresentação do Dossiê Entre Deleuze e Educação, quase um manifesto para essa possibilidade de diálogo, afirmam que para além das formas clássicas de se fazer Filosofia da Educação eles pensam ser possível fazer “uma outra filosofia da educação: ato filosófico e não histórico, pensamento que pensa e não apenas mimetiza o que outros pensaram. Como filosofia, ela é múltipla, diversa, aberta. Não está acima nem abaixo de nada ou de ninguém. É um movimento, um gesto, uma possibilidade do pensar” (p. 1172). Nesse sentido, fazer uma filosofia da educação a partir da filosofia de Deleuze não difere da própria proposta filosófica deleuziana, qual seja, traçar planos, colocar problemas e criar conceitos: “É isso que um filósofo faz: da educação ou de qualquer outro assunto. É isso que Deleuze faz. É isso que queremos fazer. Por isso Deleuze nos parece inspirador para o campo da filosofia da educação” (Silva e Kohan, 2005, p. 1172). Os motivos para se pensar uma filosofia da educação em bases renovadas não são fundacionistas, muito pelo contrário, é, por puro devir, possibilitado pelo tipo de pensamento baseado na diferença proposto por Deleuze: Não porque suas ideias nos pareçam justas, importantes ou verdadeiras, mas pela força inspiradora que elas têm para criar o que ainda não foi criado, para pensar o que ainda não foi pensado [...], pelos múltiplos sinais que sua criação pode emitir. E também pelos gestos impensados que seu pensamento pode inspirar e provocar (Tadeu e Kohan, 2005, pp. 1172-1173). Para tanto, o movimento “Entre Deleuze e a educação” exige um desprendimento, a partir da filosofia deleuziana, do que se costuma pensar: “desprender-se do que se costuma simplesmente pensar; desprender-se do pensamento que costuma habitar nas teorias e nas práticas educacionais” (Tadeu e Kohan, 2005, p. 1173). Ou, como afirma Gallo, não se trata de apresentar “verdades deleuzeanas sobre problemas educacionais”, mas de demonstrar a “fecundidade do pensamento de Deleuze para nos fazer pensar a educação, para nos permitir pensar, de novo, a educação” (Gallo, 2003, p. 63). Pensar uma filosofia da educação a partir da diferença deleuzeana é “propor exercícios de pensamento [...] que, por sua vez, nos façam pensar ainda mais. Exercícios de pensamento que implicam um devir, um processo, um movimento. Pensar a educação como acontecimento, como conjunto de acontecimentos” (Gallo, 2003, p. 64). Essas posições são extremamente pertinentes e apropriadas, na medida em que se concebem como ultrapassadas e limitadas às compreensões mais conservadoras sobre 246 o que é filosofia da educação. A este respeito, Fadigas, em seu livro Inverter a educação: de Gilles Deleuze à Filosofia da Educação, argumenta que esse campo de saber: Não é nem uma ciência da educação, nem uma “qualquer” filosofia da educação. Não é uma ciência da educação porque o formato epistemológico a que obedece a ciência (e com ela as ciências da educação) não lhe é adequado. Não é uma “qualquer” filosofia da educação porque [...] existem filosofias da educação, ou talvez melhor, atitudes filosóficas na sua relação com a educação que se satisfazem com as meras acções de reflexão, contemplação, comunicação, negligenciando todo o poder criativo da filosofia da educação: a primeira (metafísica) limita-se a extrair; a segunda (filosófico-analítica) limita-se a limpar; a terceira (histórico-filosófica) limita-se a decalcar ; a quarta (cientificista), qual reposição do mito de Narciso, não se limita, sequer (Fadigas, 2003, p. 71). Da mesma forma, os objetivos imputados à filosofia da educação tornaram-se lugares-comuns e povoam o universo investigativo da filosofia da educação. Conforme Fadigas (2003, p. 100 a 108), estes são, principalmente, autonomia, sociabilidade e participação. Não que eles não sejam importantes, mas foram transformados em objetivos naturais e únicos da filosofia da educação e tratados como conceitos clichês, tendo como suporte filosófico o universo da representação. Contrapondo-se a essa operacionalidade racionalista e instrumentalizante da forma como é tratada a filosofia da educação, Fadigas afirma que ao filósofo da educação compete a intuição, não a figuração dessa intuição e relembra a afirmação de Deleuze, “de que o pensamento se exprime melhor na relação reterritorializaçãodesterritorialização do que na outra, clássica, sujeito-objeto” (2003, p. 73). A partir daí, é possível asseverar que à filosofia da educação “encaixa o caráter de desinteresse, não aquele, contrário, do interesse” (Fadigas, 2003, p. 73). E isto naquele sentido deleuzeano de que “o filósofo, tal como o artista, ‘são incapazes de criar um povo, só podem apelar a ele com todas as suas forças’”. Ou seja, a filosofia tem seus limites em termos práticos, mas ela pode, a partir de suas especificidades, detonar acontecimentos. Assim, À filosofia da educação compete fazer, no seio da investigação educacional, aquilo que só ela sabe fazer e que é, simultaneamente, a única coisa que sabe fazer: criar conceitos, conceitos esses que se relacionem com a educação. Porque a educação está saturada de transcendências, de reterritorializações, os conceitos que compete ao filósofo da educação criar são uma espécie de nómadas sedentarizadas num plano de imanência, numa superfície que se 247 liberta da História. Só assim, com este tipo de criação, o filósofo da educação traz a necessária [...] imanência à educação. E apesar de tudo, este só o faz através da história (Fadigas, 2003, pp. 81-82). Para uma filosofia da educação pensada a partir da filosofia da diferença deleuziana, é necessário, portanto, desterritorializar os conceitos dos discursos pedagógicos e das proposições normativas, e criar novos conceitos para os discursos educativos. Para tanto, é preciso: Deixar de tomar como negativa aquela relação da razão educativa com o irracional – que assim é tomada em virtude da perspectiva exclusivamente logicista das ciências da educação [...] – para a tomarmos como positiva através [...] da elaboração de uma crítica da razão educativa (Fadigas, 2003, p. 84). Se para Deleuze, inverter o platonismo significa recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem e “glorificar o reino dos simulacros”, “é também deste modo que nós definimos a tarefa da filosofia da educação, o que significa que através dela deveremos destituir o modelo platônico que impera no discurso educacional” (Fadigas, 2003, p. 100). Fadigas questiona as consequências e a legitimidade do platonismo invertido sobre a relação filosofia e educação. Não se trata de um mero remanejamento de ideias de um campo para outro, mas de um movimento de reterritorialização-desterritorialização, movimento autenticamente filosófico, e por isso uma filosofia da educação nesses moldes se justifica, pois: Que consequências derivam desta denúncia para a filosofia, para a filosofia da educação e para a própria educação? Em filosofia as Ideias que poderiam servir de finalidades para o que quer que seja deixam de existir. A filosofia não é ideologia. “A filosofia está em estado de perpétua digressão ou digressividade” [Deluze]. Consequentemente, a filosofia da educação não pode transferir Ideias da filosofia para a educação. Uma filosofia da educação que tentasse fazê-lo, isto é, uma filosofia (da educação) aplicada seria uma filosofia que deixaria oculta sob si a doxa, seria uma filosofia que não marcaria a diferença, limitando-se à recognição; seria, em última instância, uma filosofia que se negaria a si própria enquanto exercício filosófico. Ora, se a filosofia da educação não transfere Ideias da filosofia para a educação, resta-lhe criar conceitos que o discurso educacional tende a definir segundo o modelo da representação que [...] oculta uma parcela significativa da realidade educativa. A filosofia vê-se assim devolvida à sua vocação original que é fracturar (não é legitimar, à luz de certas Ideias), e o seu exercício da educação, pela forma original como o exerce, vê-se, a todos os níveis justificado (Fadigas, 2003, p. 110). 248 Assim, se o modelo filosófico representacional-identitário foi posto em cheque, à filosofia da educação não cabe mais seguir os moldes clássicos do seu campo de saber, atrelados àquele, sendo a criação de conceitos direta ou indiretamente relacionados com a educação a condução espontânea desse movimento. Segundo fadigas, essa tarefa se torna necessária à investigação educacional, que atualmente está ancorada no modelo da representação e que, por isso, produz uma “imagem errónea e, em última instância, conveniente do que é a filosofia e a filosofia da educação, mas também a impede de aceder ao que de real na educação só se deixa ver por aquilo que ela não suporta: a contradição” (Fadigas, 2003, p. 110). 4.1. Deleuze: aprendizagem como intermediação entre saber e não-saber Como foi visto, apesar de Deleuze não ter realizado um estudo sistemático sobre educação, é possível encontrar em seus escritos, de forma dispersa, várias passagens sobre essa temática. Então, podemos afirmar que todas essas ideias e pensamentos sobre a relação da filosofia da educação com a filosofia da diferença deleuziana não estão longe daquilo que o filósofo pensou, mesmo que minimamente, sobre temas relacionados à esfera educacional. Para melhor compreendermos essa colocação, pinçamos do livro Diferença e repetição algumas passagens relativas ao ato de aprender, e então podemos averiguar a proximidade das ideias deleuzianas com as propostas dos filósofos da educação que se ancoram no pensamento deleuziano, ou seja, ideias e propostas que distanciam o universo educacional do pensamento da representação. Tomando o ensino da natação, Deleuze averigua que sua aprendizagem só se realiza pela apropriação prática dos signos da onda que, na verdade, nem são ensinados pelo professor e nem são repetidos pelo aprendiz nadador. O aprendizado seria uma coisa “entre”, um fora do aprender, um dentro do ensinar. Um assassinato do que foi ensinado, um nascimento amoroso do que não foi ensinado: O movimento do nadador não se assemelha ao movimento da onda; e, precisamente, os movimentos do professor de natação, movimentos que reproduzimos na areia, nada são em relação aos movimentos da onda, movimentos que só aprendemos a prever quando os apreendemos praticamente como signos. Eis porque é tão difícil dizer como alguém aprende: há uma familiaridade prática, inata ou adquirida, com os signos, que faz de toda educação alguma coisa amorosa, mas também mortal (Deleuze, 1988, p. 54). 249 É por isso que, para Deleuze, aprender não é mimetizar de forma harmônica e ordeira, mas se apropriar de signos de coisas que nos interessem, pois somos movidos pelo interesse, pelo interessante, pelo notável e que nos mobiliza a ação. A aprendizagem é uma violência que nos tira da tranquilidade em que nos encontrávamos quando desconhecíamos aqueles signos que passam a nos interessar. Na aprendizagem, a diferença ocorre, então, quando repetimos de forma nova os signos que nos chegam. Na aprendizagem, portanto, há morte na medida em que não repetimos o Mesmo e sim o Outro, o dessemelhante, o Diferente. Dessa forma, também no aprender, os signos significam a repetição como movimento real, em oposição à representação, entendida como falso movimento do abstrato: Nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem ‘faça comigo’ e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo. Em outros termos, não há ideomotricidade, mas somente sensório-motricidade. Quando o corpo conjuga seus pontos relevantes com os da onda, ele estabelece o princípio de uma repetição, que não é a do Mesmo, mas que compreende o Outro, que compreende a diferença e que, de uma onda e de um gesto a outro, transporta esta diferença pelo espaço repetitivo assim constituído. Aprender é constituir este espaço do encontro com signos, espaço em que os pontos relevantes se retomam uns nos outros e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que se disfarça. Há sempre imagens de morte na aprendizagem, graças à heterogeneidade que ela desenvolve, aos limites do espaço que ela cria. Perdido no longínquo, o signo é mortal; e também o é quando nos atinge diretamente (Deleuze, 1988, pp. 54-55). . Em outra passagem, Deleuze se refere à educação dos sentidos pensando no significado do aprender. Dessa forma, a educação dos sentidos acontece quando “o aprendiz [...] eleva cada faculdade ao exercício transcendente. Ele procura fazer com que nasça na sensibilidade esta segunda potência que apreende o que só pode ser sentido” (Deleuze, 1988, p. 270). Essa comunicação, de uma faculdade à outra, é feita de forma violenta, mas compreendendo sempre o Outro de cada uma dessas faculdades. Contudo, aprender é um acontecimento que carrega mistérios: A partir de que signos da sensibilidade, por meio de que tesouros da memória, sob torções determinadas pelas singularidades de que a Ideia será o pensamento suscitado? Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender – que amores tornam alguém bom em latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar. Os limites das faculdades se encaixam uns nos outros sob a forma 250 quebrada daquilo que traz e transmite a diferença (Deleuze, 1988, p. 270). Da mesma forma que nunca se sabe quando alguém vai aprender, Deleuze também afirma que “não há método para encontrar tesouros nem para aprender” (1988, p. 270). René Schérer, em artigo intitulado Aprender com Deleuze, ao se referir à mesma frase, faz dela uma tradução extremamente poética e legítima: “A aprendizagem segue a via dos encontros e dos amores e não dos métodos de uma pedagogia sempre impotente, ultrapassada das paixões” (Schérer, 2005, p. 1191). Contudo, baseado em Nietzsche, a mesma frase deleuzina é complementada com a possibilidade do paradoxo do aprender, pois este pode se tornar um violento adestramento, uma cultura ou paideia que percorre o indivíduo e adestra o espírito. Assim, “a cultura é o movimento de aprender, a aventura do involuntário, encadeando uma sensibilidade, uma memória, depois um pensamento, com todas as violências e crueldades necessárias,” (Deleuze, s/d, p. 270. Para Deleuze, há o reconhecimento frequente da importância e da dignidade de aprender, mas é como reconhecimento às condições empíricas do Saber e às condições cognoscitivas da representação e à ascese ao transcendental. Diversamente, Aprender vem a ser tão-somente o intermediário entre não-saber e saber, a passagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que aprender, afinal de contas, é uma tarefa infinita, mas esta não deixa de ser rejeitada para o lado das circunstâncias e da aquisição, posta para fora da essência supostamente simples do saber inatismo, elemento a priori ou mesmo Ideia reguladora. E finalmente, a aprendizagem está, antes de mais nada, do lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo fora da caverna considera somente o resultado – o saber – para dele extrair os princípios transcendentais (Deleuze, 1988, p. 271). Conforme Deleuze, mesmo em Hegel, a aprendizagem que está presente na Fenomenologia permanece subordinada, tanto em seu resultado quanto em seu princípio, ao ideal do saber como saber absoluto. Igualmente em Platão “o tempo platônico só introduz sua diferença no pensamento e na aprendizagem, só introduz sua heterogeneidade para submetê-los ainda à forma mítica da semelhança e da identidade, portanto, à imagem do próprio saber” (Deleuze, 1988, p. 271). Assim, o saber é empírico, mas o aprender é uma estrutura transcendental que une, sem mediação, “a diferença à diferença, a dessemelhança à dessemelhança, e que introduz o tempo no pensamento, mas como forma pura do tempo vazio em geral” (Deleuze, 1988, p. 272) e não como um tempo mítico, seja passado ou presente. O 251 problema, afirma Deleuze, é que estamos sempre dividindo inapropriadamente o aprender e o saber, o empírico e o transcendente: “Reencontramos sempre a necessidade de reverter as correlações ou as supostas repartições do empírico e do transcendental” (Deleuze, 1988, p. 272). Mediante o amplo quadro traçado, no qual foram expostos: as diversas matrizes filosóficas que influenciaram a educação brasileira nos seus aspectos teóricos e práticos; o surgimento e desenvolvimento da Filosofia da Educação no Brasil e suas principais vertentes filosóficas; e, finalmente, os pontos principais da Filosofia da Diferença do pensamento deleuzeano, é possível, então, vislumbrar a inserção dessa inspiração filosófica contemporânea de Deleuze no universo da Filosofia da Educação no Brasil. 252 CAPÍTULO 4 – FILOSOFIA DA DIFERENÇA DELEUZEANA NA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL OU PARA UMA (NÃO)-TEORIA DA QUEBRADURA DA VARA Este quarto e último capítulo é o resultado culminante do percurso da investigação empreendida até aqui. Após a abordagem das diversas matrizes filosóficas que influenciaram a educação brasileira, da emergência e sistematização da Filosofia da Educação no Brasil e da Filosofia da Diferença do pensamento deleuzeano, será apresentado como essa inspiração filosófica contemporânea de Deleuze germinou no universo da Filosofia da Educação no Brasil. Essa inspiração filosófica deleuzeana, e não mais matriz filosófica, pois não se pretende modelo, sistema ou doutrina a ser seguido como as demais matrizes, foi chamada, aqui, de uma (não)-teoria da quebradura da vara para, primeiro, se contrapor às teorias-matrizes filosóficas da representação, que moldaram o exercício filosófico educacional no Brasil e, segundo, para fazer referência à expressão “teoria da curvatura da vara”, originária de Lênin, que pretendia combater as críticas feitas às suas posições radicais com a metáfora da curvatura da vara, afirmando que, quando está torta, a vara precisa ser curvada para o lado oposto, na busca na posição correta. Tal expressão foi apropriada por Saviani para a construção da sua teoria crítica. Assim, Saviani, no livro Escola e democracia, propõe ir “para além da curvatura da vara” em seu esforço de esboçar a formulação de sua pedagogia histórico-crítica que, por sua vez, se contrapõe às pedagogias tradicional e nova na tentativa de fundar uma pedagogia revolucionária (Cf. Saviani, 2011, p. 6). Contudo, conforme leitura feita a partir da filosofia da diferença deleuzeana, essa teoria crítica da filosofia da educação constitui mais uma teoria da representação, à medida em que se constitui de conceitos como: fundamento, verdade, recognição etc. Dessa forma, aqui se denomina a influência da filosofia da diferença deleuzeana no Brasil de (não)-teoria da quebradura da vara, pois não tem a pretensão de sistematicidade, do todo, de Universalidade, de verdade a ser descoberta e revelada etc. E, mais importante, deixa de existir a ideia de um centro verdadeiro, de um fundamento a ser defendido e buscado, pois a própria ideia da curvatura da vara, mesmo na 253 perspectiva de se ir além dela, implica a existência de um fundamento, de um centro que sempre deve ser buscado ou servir de referência. Trata-se, portanto, perseguindo a metáfora, de quebrar a vara, de não ter um centro irradiador a ser seguido, a ser ultrapassado ou que seja balizador do movimento. Daí a expressão (não)-teoria da quebradura da vara para a inspiração da filosofia da diferença deleuzeana na Filosofia da Educação no Brasil. Para tanto, o presente capítulo está dividido em cinco tópicos. Um primeiro tópico de apresentação da emergência da filosofia da diferença deleuzeana no Brasil e sua posterior intercessão na Filosofia da Educação no Brasil, e mais quatro tópicos com nomes representativos dessa fonte de inspiração deleuzeana: Tomaz Tadeu, Daniel Lins, Walter Kohan e Sílvio Gallo. Para a apresentação do pensamento desses filósofos, lançamos mão de entrevistas concedidas à autora e de textos significativos dessa intercessão deleuzeana em suas produções. 1. A diferença deleuzeana na Filosofia da Educação em terras brasileiras Há que se diferenciar, em terras brasileiras, a movimentação da “descoberta” da filosofia de Deleuze e sua intercessão no campo da Filosofia da Educação. Inicialmente, o livro O Anti-édipo foi traduzido ao Brasil em 1976, e não teve uma repercussão imediata no âmbito filosófico educacional acadêmico. Segundo Alliez (1996, p. 201), inicialmente, Deleuze ocupou “no Brasil um lugar à parte, que excede largamente os muros da universidade” e teve uma proximidade muito maior com as políticas minoritárias do que com a grande política e com suas instituições como, por exemplo, a Universidade. Nesse âmbito, o pensamento deleuziano se juntou à “‘potência de uma nova política que inverteria a imagem do pensamento’ a se constituir numa lógica das singularidades e uma teoria das multiplicidades, de acordo com o movimento de imanência” (Alliez, 1996, p. 202). Alliez, que esteve como professor visitante na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no período 1988-1996, afirma, ainda, com relação à recepção brasileira de Deleuze: “Assistimos em todo caso à multiplicação de grupos de estudo e de cursos informais reunindo um público heterogêneo, cuja formação filosófica estava longe – a princípio – de ser a característica predominante” (Alliez, 1996, p. 202). E o mais intrigante, diz o filósofo francês, é que essas pessoas se afastaram rapidamente da facilidade de uma filosofia “pop-filosófica” para se aprofundarem nos estudos das obras 254 mais densas de Deleuze, mas sem se proporem a fazer uma filosofia acadêmica e sim a potencializarem seus conceitos a partir de suas próprias atividades. Contudo, na década de 1990, a situação começa a mudar e Um grande número de departamentos de filosofia, que até então haviam ignorado largamente a inventividade dos conceitos deleuziano em função de sua irredutibilidade à história disciplinar da filosofia e à divisão semi-oficial do mundo filosófico em seus dois blocos analítico e fenomenológico. A irrupção de uma nova geração de jovens professores vai desencadear a transformação (Alliez, 1996, p.203). Entre estes jovens, havia um grupo que rompeu com os acadêmicos mais velhos por eles terem uma compreensão dogmática/provinciana da filosofia e daí o pensamento 68, Deleuze e Foucault, se apresentar como “uma alternativa cultural em que se negocia uma prática decididamente pós-nietzschiana e transdisciplinar da filosofia contemporânea” (Alliez, 1996, p. 203). O seminário “A verdade e as formas jurídicas”, realizado em 1973, na PUC do Rio de Janeiro, com publicação subsequente, é apontado como um marco divisor de águas dessa nova geração filosófica no Brasil. Para outro grupo, mais numeroso e com uma formação mais clássica, A abertura da questão pós-heideggeriana de uma história filosófica da filosofia, uma vez que ela não podia mais se satisfazer com uma identificação destinal com o tema obrigatório do fim da filosofia e do esquecimento do ser, era cada vez menos separável de uma indagação sobre as condições do esgotamento aporético da fenomenologia e da filosofia analítica. Merleau-Ponty e Wittgenstein, portanto, que contam aqui com notáveis intérpretes. Mas também Deleuze, o Outsider, cujo pensamento criador está adquirindo, numa Faculdade ameaçada de sair dos eixos, uma nova atualidade (Alliez, 1996, p. 203). Para Alliez, dois livros marcam em definitivo esse período de renovação nos estudos filosóficos no Brasil, com a entrada mais sistemática do pensamento deleuzeano e do pensamento da Diferença no âmbito acadêmico. O primeiro livro de Roberto Machado, publicado em 1990, intitulado Deleuze e a filosofia, “propõe-se a produzir a gênese da filosofia deleuziana enquanto pensamento da diferença que se desenvolve a partir de uma leitura semi-antropofágica dos filósofos” (Alliez, 1996, p. 203). O segundo livro, de 1989, “reproduz uma tese defendida na USP quase 25 anos antes pelo futuro tradutor de O que é a filosofia?, Bento Prado Jr., sob o título Presença e campo transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de Bergson” (Alliez, 1996, p. 203). Para Alliez, o livro de Bento Prado teve o “inestimável mérito de apresentar a passagem vitalista da fenomenologia à ontologia sob o signo de um ‘campo 255 transcendental sem sujeito’” (Alliez, 1996, p. 204) e de ter feito algo raro na época, uma referência a um artigo de Deleuze, Bergson e a diferença, que será o substrato do seu livro posterior, O bergsonismo. Como foi visto no primeiro capítulo do presente trabalho, Paraíso (2004), no artigo intitulado Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um mapa, oferece uma ideia bastante clara do início da intercessão Foucault/Deleuze e educação no Brasil. A autora estabelece uma data como um marco desse aparecimento: o ano de 1993, tendo como delimitação de universo de pesquisa a ANPED, termômetro do que se produz em educação no Brasil e, mais especificamente, em Filosofia da Educação. Paraíso afirma que, até 1992, não havia encontrado, naquela Associação, nenhuma apresentação de trabalho que adotasse as perspectivas chamadas pós-críticas. Somente em 1993, na 16ª Reunião Anual da Associação, dois trabalhos se pautam pela referência teórica pós-representacional. O primeiro trabalho, de Tomaz Tadeu da Silva, “Sociologia da educação e pedagogia crítica em tempos pós-modernos”, baseava-se em Deleuze e discutia questões relacionadas ao pensamento pós-moderno e pósestruturalista, mostrando as continuidades e as rupturas em relação à pedagogia e à sociologia críticas. O segundo trabalho, “Poder e conhecimento: a constituição do saber pedagógico”, era de autoria de Lucíola Licínio de C. P. Santos e analisava as relações entre poder e conhecimento baseado na noção poder-saber de Michel Foucault (Cf. Paraíso, 2004, p. 285). Seguindo essa linha pós-moderna, em 1994, aparece o artigo “Construtivismo pedagógico como significado transcendental do currículo”, de Sandra Corazza e inspirado em Derrida. Este é também um marco na emergência dos estudos pós-críticos no Brasil. E, segundo Paraíso (2004), dessa data em diante, o número de trabalhos que adotaram perspectivas pós-críticas cresceu consideravelmente. A constatação desse aumento também é corroborada por Pagni e Cavalcanti (2011), em artigo intitulado Filosofia da Educação no Brasil (1960-2000): problemas, fontes e conceitos nas práticas do filosofar na educação, que em pesquisa extensa por diversos órgãos de divulgação da produção teórica educacional constata, dentre outras coisas, que a produção de artigos relacionados à Filosofia da Educação, baseados na Filosofia da Diferença, teve um aumento significativo em detrimento da produção baseada no marxismo. Ainda no ano de 1994, Paraíso (2004) indica outro marco do momento inaugural da filosofia pós-crítica ou filosofia da diferença e sua influência no pensamento 256 educacional brasileiro, a publicação do livro Teorias educacionais críticas em tempos pós-modernos, organizado por Tomaz Tadeu da Silva. Neste livro, é avaliado o esgotamento da teoria crítica e a necessidade de novos paradigmas filosóficos para a interpretação dos processos educacionais. A teoria pós-crítica e a filosofia da diferença deleuziana seriam os novos referenciais contra hegemônicos para se pensar a educação. Outra coletânea expressiva do pensamento filosófico educacional, baseado em novos paradigmas, agora em Foucault, é O sujeito da educação, organizada também por Tomaz Tadeu da Silva, em 1994. Alfredo Veiga-Neto tem um artigo nessa coletânea que é representativo desse novo marco de pensamento educacional, Foucault e Educação: outros estudos foucaultianos. O ano de 1996 traz a publicação de um número especial sobre Deleuze, nos Cadernos de Subjetividade, publicação semestral do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP, sob a coordenação de Peter Pál Pelbart e Suely Rolnyk. Tal caderno traz contribuições expressivas para o conhecimento do pensamento deleuziano, principalmente na área Psi, a qual teve uma enorme receptividade com esse pensamento quando de sua entrada no Brasil, na década de 70, no âmbito das lutas do campo psiquiátrico, principalmente o anti-manicomial. Daniel Lins, desde 1999, organiza, anualmente, o Simpósio Internacional de Filosofia Nietzsche e Deleuze, sempre seguido da publicação das apresentações orais. Esse evento tem se destacado como uma fonte de cultivo e divulgação do pensamento deleuzeano. Já no início do século XXI, outro elemento importante que corrobora para a emergência do pensamento deleuzeano na cena brasileira da Filosofia da Educação é o conjunto de três publicações: Dossiê Gilles Deleuze (2002); Deleuze & a Educação (2003); Dossiê Entre Deleuze e a Educação (2005). O Dossiê Gilles Deleuze foi organizado por Sandra Corazza e Tomaz Tadeu como um número especial da Revista Educação & Realidade, da Faculdade de Educação da UFGRS e é composto por uma multiplicidade de escritos de pessoas de diversas áreas do conhecimento. Dentre os colaboradores da revista ressaltamos os nomes de Tomaz Tadeu – com o artigo “A arte do encontro e da composição: Spinoza + Currículo + Deleuze”, Walter Kohan – com o escrito “Entre Deleuze e a Educação: 257 notas para uma política do pensamento” e Silvio Gallo – com “Em torno de uma educação menor”. O livro Deleuze & a Educação, de autoria de Silvio Gallo, é, certamente, um dos primeiros produzidos no Brasil com a intenção de divulgar, de forma mais acessível, o pensamento de Deleuze. Foi publicado pela Editora Autêntica que tem realizado uma produção considerável no mercado editorial, sempre com o foco em disseminar a produção filosófica contemporânea mais tendente às filosofias distantes do pensamento da representação. Já o Dossiê Entre Deleuze e a Educação foi resultado das apresentações que compuseram o II Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação, ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em novembro de 2004. Por sua vez, esse Dossiê, tal qual o Colóquio, foi organizado por Tomaz Tadeu e Walter Kohan, que também redigiram a apresentação do dossiê. Tomaz Tadeu participa com um artigo intitulado “Deleuze e a questão da literalidade: uma via alternativa”. Merece destaque, também, a participação de mais três nomes e seus respectivos artigos: Sandra Corazza – “Não se sabe”; Daniel Lins – “Mangue’s School ou por uma pedagogia rizomática”; Sylvio Gadelha – “De fardos que podem acompanhar a atividade docente ou de como o mestre pode devir burro (ou camelo)”. Dessa forma, então, podemos observar que Daniel Lins é um nome cearense significativo na recepção e divulgação e produção de ideias deleuzeanas, no campo educacional. Da mesma forma, Walter Kohan e Silvio Gallo, juntamente com Tomaz Tadeu, compõem um grupo expressivo de uma produção norteada pela Filosofia da Diferença deleuzeana, no campo da Filosofia da Educação no Brasil contemporâneo, como veremos a seguir. O mapeamento aqui empreendido tem critérios técnicos para a eleição desses quatro nomes, tais como: produção de artigos, livros, capítulos de livros; inserção nos debates em Encontros, Colóquios, Congressos etc., que sejam norteados pela diferença deleuzeana. Os quatro nomes também são significativos na medida em que cobrem e contemplam uma parte significativa de várias regiões do Brasil, o que pode possibilitar uma apreensão mais justa da produção em pauta. 258 2. Tomas Tadeu da Silva: implicações do pensamento da diferença para uma teoria do currículo Tomaz Tadeu da Silva, doutor em International Development Education, pela Stanford University (1984); mestre em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFGRS, Brasil, (1977); graduado em Matemática, pela UFRGS (1973), é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Programa em PósGraduação em Educação. Seu Currículo Lattes informa que atua na área de educação, com ênfase em Teoria do Currículo. Os termos mais recorrentes na sua produção científica são: currículo, diferença, Deleuze, Foucault, neoliberalismo, Estudos Culturais, identidade e pós-modernismo. Tem uma vasta produção editorial com mais de 30 artigos em periódicos especializados, 30 capítulos de livros e 25 livros. Um de seus últimos trabalhos publicados é a tradução da Ética, de Spinoza, em 2007, pela Editora Autêntica. Silva tem diversos trabalhos produzidos em parceria e em organização de coletâneas, artigos, livros, periódicos ou eventos, tanto no Brasil quanto no exterior. Suas parcerias mais constantes, entre outras, tem sido com Alfredo José da Veiga-Neto, Walter Omar Kohan e, mais assiduamente, com Sandra Mara Corazza. Todos com significativas pesquisas e produções na área da filosofia da diferença, seja em Foucault, seja em Deleuze. Severino situa Tomaz Tadeu no contexto filosófico brasileiro sob a tendência que ele chama de arquegenealógica, a qual critica a política e também a educação em sua institucionalização pedagógica opressiva e cerceadora da criatividade. Nessa vertente da Filosofia da Educação Tomaz Tadeu desenvolve, apesar de trabalhar no campo da teoria sociológica, uma Reflexão radicalmente crítica contra o discurso pedagógico moderno que, no seu entendimento, é tributário de uma filosofia da consciência. Coloca-se, então, em uma perspectiva da desconstrução radical elaborada pelo pensamento pós-estruturalista da pós-modernidade (Severino, 2011, p. 9). Em entrevista à Revista Currículo sem Fronteiras, em 2002, Tomaz Tadeu, além de fazer um balanço pessoal de sua trajetória teórica, fala também da complexa produção teórica educacional das décadas de 1980 a 2002 e, dentre outras coisas, se 259 debruça a discorrer sobre currículo, esgotamento da teoria crítica e a necessidade de novos parâmetros filosóficos para se pensar a educação. Conforme Silva, os paradigmas novos e emergentes se esgotam e ficam estagnados, como foi o caso dos referenciais teóricos da sociologia da educação da década de sessenta (Bordieu, Baudelot e Establet, Althusser e outros) e da década de oitenta (Michael Young, Michael Apple, Henry Giroux e outros): “passado o período de agitação, o novo paradigma se estabelece e ao virar uma nova ortodoxia, se acomoda” (2002, p. 7). Essa acomodação freia o novo e transforma em ladainha a antiga teoria revolucionária: Em determinado momento, tal como acontecera com a influência do marxismo, essas temáticas, ao entrar no campo, mudaram efetivamente o nosso pensamento (assim como a prática, espero) sobre currículo e educação. Mas hoje, ao serem mecanicamente repetidas sem o vigor, a energia e a criatividade daquele primeiro momento de “invenção”, apenas contribuem para reafirmar o status quo, um outro status quo, certamente, mas este é justamente o problema das revoluções, o de um status quo que está, ele próprio, constantemente se renovando, nenhuma revolução se institucionaliza impunemente (na verdade, nesse momento ela não é mais “revolução”). O que podemos aprender disso tudo é que a inovação e a renovação partem sempre de novos pretendentes. Não se pode esperar que os agora estabelecidos revolucionários de antanho continuem fazendo revolução. As revoluções vêm sempre de baixo e de fora (Silva, 2002, p. 7). Dessa forma, baseado em Deleuze, Silva enfatiza que “o momento inventivo não nasce de uma reprodução, de uma representação, do lado de fora do pensamento, mas de um encontro com o lado de fora como um ‘outro’ do pensamento, como aquilo que é estranho ao pensamento” (Silva, 2002, p. 7). Assim, um dia, o “outro” foi o marxismo, a sociologia crítica, a fenomenologia, os Estudos Culturais, o pós-modernismo, o pósestruturalismo, depois esse “outro” virou o “mesmo”, o “fora” virou “dentro”, “o estranho virou familiar, quando a heterodoxia virou ortodoxia, quando a teoria virou catecismo, o movimento, paralelamente, congelou” (Silva, 2002, p. 8). O que é importante, portanto, é não se acomodar, evitar os catecismos, o culto dos gurus e a aplicação superficial e mecânica de teorias. Coisas que, segundo Silva, são inevitáveis, e daí a importância da renovação dos paradigmas. Nesse sentido, ao ser questionado sobre se ainda haveria espaço para as teorias críticas, ou se elas já teriam esgotado seu potencial explicativo, Silva respondeu afirmativamente. Há um certo esgotamento das “teorias críticas”, compreendidas como 260 um movimento de influências variadas como, por exemplo, marxismo, sociologia crítica, freirianismo. Contudo, diz Silva, não se pode lhes tirar a importância de ter renovado a nossa forma de conceber e analisar a educação na época em que se colocaram como um novo paradigma (Cf. Silva, 2002, p. 8). Da mesma forma, elas são perspectivas indispensáveis para a concepção e a análise da educação por que: Não se pode simplesmente desconsiderar, sem prejuízos analíticos consideráveis, a compreensão, desenvolvida, sobretudo, pela sociologia da educação de inspiração marxista, de que a educação tem um papel central na dinâmica de reprodução social. Da mesma forma, [...], não se pode ignorar os penetrantes insights de Bourdieu e Passeron em sua análise do papel da educação no processo de reprodução cultural (Silva, 2002, pp.8-9). Contudo, “não se trata de teorias que tenham sido superadas ou sucedidas por outras mais ‘verdadeiras’” (Silva, 2002, p. 9). O que aconteceu é que essas perspectivas ampliaram a compreensão da educação e não que “se tornaram agora ‘desacreditadas’ simplesmente porque, nesse meio tempo, desenvolvemos e aprendemos novas teorias” (Silva, 2002, p. 9). Contudo, o reconhecimento da importância da teoria crítica não significa “que certos aspectos dessas perspectivas não possam ser questionados, revistos e reconsiderados” (Silva, 2002, p. 9), pois o trabalho intelectual está, precisamente, no movimento. O que Silva constata, então, é “uma certa acomodação daqueles intelectuais da educação que ainda se consideram herdeiros da perspectiva ‘crítica’” (Silva, 2002, p. 9) (Grifo nosso). Enquanto o período 1970-1990 foi de uma extrema efervescência teórica e de um espantoso desenvolvimento de análise da escola capitalista, “os últimos doze anos têm se caracterizado como um período de repetição dos mesmos temas, dos mesmos conceitos, das mesmas ‘críticas’” (Silva, 2002, p. 9) (Grifo nosso). São sempre as mesmas respostas para novas realidades. Assim, os eternamente herdeiros da teoria crítica, particularmente as perspectivas de orientação marxista, incluindo as sociológicas, nem escutam os novos pretendentes e nem enxergam as novas realidades: Questionada, de um lado, no campo propriamente intelectual e teórico por novos pretendentes (pós-críticos, pós-estruturalistas, pósmodernos) e, de outro, no campo da prática e da política, pelas radicais transformações no próprio capitalismo, as perspectivas críticas têm se limitado, relativamente aos novos pretendentes, a uma estratégia puramente defensiva e, relativamente às novas configurações sociais, econômicas, políticas, a uma simples reiteração das mesmas e velhas críticas (Silva, 2002, p. 9). 261 Mas há também a possibilidade, conforme Tomaz Tadeu da Silva, de “que os acontecimentos colocados pelas perspectivas pós-estruturalistas, sobretudo aquelas centradas na crítica da filosofia da consciência ou da filosofia do sujeito, tenham atingido mortalmente a ‘teoria crítica’ da educação” (Silva, 2002, p. 9). Isso é possível porque no centro da “teoria crítica” está o personagem filosófico do sujeito crítico, inspirado na figura do sociólogo crítico da educação que, por sua vez, é tido como “um sujeito não apenas capaz de ver e analisar a sociedade de uma forma transparente, desde que apropriadamente equipado com as armas da ‘crítica’, mas também de transformá-la radicalmente” (Silva, 2002, p. 9). Assim, é provável que o descrédito do personagem filosófico como sociólogo crítico da teoria crítica da educação, inspirado no sujeito moderno da representação, “tenha perdido sua razão de ser e de existir” (Silva, 2002, p. 9) (Grifo nosso). Compreendendo-se que pensamento pós-crítico, ou pós-estruturalista, ou pósmoderno, se apoia no questionamento da “ideia de crítica”, vale perguntar o que está no cerne da “ideia de crítica”. O que Silva questiona na “ideia de crítica”? Enfim, o que é que está na base do que chamamos de pensamento crítico e ao qual o pensamento póscrítico questiona? Para Tomaz, apesar de ser muito complexa a resposta, é possível, minimamente, esclarecer que a ideia de crítica: Supõe algum critério, alguma norma, alguma baliza algum fundamento, relativamente aos quais justamente a crítica se faz. [...]. Esse sentido de crítica exige, [...], algum apoio em um chão – uma fundação – a partir do qual, e relativamente ao qual, se questiona aquele status quo. Em suma, a noção de crítica, nesse sentido, exige um centro, um ponto estável, uma referência certa. Ora, é justamente a possibilidade de existência de um tal centro, de um tal ponto, de uma tal referência, que é colocada em questão pelas perspectivas, [...], pós-críticas (Silva, 2002, p. 10). (Grifo nosso). Ou seja, nesse sentido, as teorias pós-críticas nada têm de “críticas”, pois elas colocam em questão a própria noção de “crítica”, no sentido da existência de um fundamento referencial último. No entanto, diz Silva, isso não significa que estejam descartados o pensamento e a ação política, mas sim o pensamento e a política como são formulados pelas chamadas teorias críticas, “as quais, supõem, precisamente, aquele ponto de apoio, aquele centro – firme, estável e certo. Mas tirar o ponto de apoio não implica deixar de pensar ou agir” (Silva, 2002, p. 10) (Grifo nosso). Assim, a instabilidade, a incerteza e a desordem trazidas pelo fim dos fundamentos propiciam outros tipos de pensamentos e de ações políticas que não têm 262 mais a ideia de referencial e de fundamento presentes na teoria crítica. Dessa forma, é possível afirmar que “o fim dos fundamentos não é o fim da política, mas o seu começo” (Silva, 2002, p. 10). Outro elemento importante no pensamento de Silva é o questionamento do sujeito moderno, já presente nas chamadas teorias pós-críticas, ao qual ele denomina de pós-humano. Esse elemento está estreitamente ligado a essa nova noção de fazer política sem o fundamento que compõe a política crítica. Assim, da mesma forma, essa discussão coloca em xeque as concepções substancialistas de sujeito e de ser humano que têm prevalecido na base do nosso pensamento e da nossa cultura. Dessa forma, é preciso compreender que: [...] o sujeito (o ser humano) não é um dado e sim o resultado de uma construção (teórica, social, cultural). De novo, descentrar o sujeito não significa afastar qualquer possibilidade de fazer política, mas apenas daquele tipo de política que tem, como pressuposto justamente a noção de sujeito. A política não se faz no terreno do dado, do fixo, do absoluto, do transcendental, mas justamente no terreno do questionável, do variável, do ordinário, do imanente (Silva, 2002, p. 11) (Grifo nosso). O questionamento do sujeito ou do ser humano como essência ou substância e sua concepção como construção histórica, cultural e social, implica na ampliação do universo político, como tem mostrado a contemporaneidade. Partindo desse pressuposto, conforme Tomaz Tadeu da Silva, até a ideia de “política de esquerda” se ampliou significativamente e pode “abranger não apenas e exclusivamente o campo econômico, mas uma gama muito mais variada de atividades humanas. A própria noção de ‘ser de esquerda’ tornou-se muito mais problemática e complexa” (Silva, 2002, p. 11). Assim, é possível constatar, atualmente, que no campo das lutas sociais existe uma interação maior “entre teoria e política do que a que existia nos tempos da hegemonia do marxismo na política de esquerda” (Silva, 2002, p. 11). Daí se poder concluir que “o questionamento à filosofia da consciência não é apenas uma questão teórica. Ela implica necessariamente uma política” (Silva, 2002, p. 11). Na época dessa entrevista que estamos utilizando, Tomaz Tadeu da Silva afirmava que, apesar de ter muito cuidado com os rótulos, estava estudando o “pensamento da diferença” e investigava sua relação com o campo educacional. Um dos filósofos que ele considerava significativo na temática da Diferença era Gilles Deleuze que, apesar de não ter dado contribuições diretas para a teoria educacional, pode muito 263 bem inspirá-la com, por exemplo, suas significativas passagens sobre aprendizagem. Contudo, afirma Tomaz Tadeu da Silva, “o mais importante é tentar desenvolver as implicações de seu pensamento mais geral para a teoria educacional” (Silva, 2002, p. 11), principalmente relacionado a três questões: conhecimento e pensamento; subjetividade e subjetivação; e poder ou força e, mais especificamente no caso de Tomaz Tadeu da Silva, na área do currículo: É aí, na intersecção desses três elementos centrais do currículo, na problematização daquilo que tem constituído o pensamento dominante na teoria educacional, que se encontram, na minha opinião, as maiores possibilidades teóricas de um pensamento da diferença. É precisamente nesse trabalho, isto é, no traçado de algumas dessas implicações do pensamento da diferença para uma teoria do currículo, que me encontro envolvido (Silva, 2002, p. 12). Assim, Deleuze, a partir de seu questionamento sobre a identidade, ao substituir a pergunta clássica da representação: “o que é?”, pela pergunta contaminada pela diferença: “o que é isso?”; ao questionar a “imagem dogmática” do pensamento e da representação e ao desenvolver uma concepção afirmativa da diferença, tem muito a falar para o campo educacional, um campo orientado tradicionalmente pela identidade, pondera Tomaz Tadeu da Silva (Cf. 2002, p. 12). No artigo intitulado “Dr. Nietzsche, curriculista – com uma pequena ajuda do professor Deleuze” (2002a), Silva mapeia alguns dos temas centrais da teorização contemporânea chamada “pós-estruturalista” ou “pensamento da diferença”, os quais questionam pressupostos da metafísica, da fenomenologia, da dialética, do marxismo e do estruturalismo, tendo Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida como principais filósofos do pensamento da Diferença: A verdade como ficção, invenção e criação. Uma visão perspectivista e interpretativa do conhecimento. O conceito como produção e intervenção e não como descoberta ou reflexo. A insistência no caráter produtivo da linguagem. O privilegiamento da diferença e da multiplicidade em detrimento da identidade e da mesmidade. Rejeição da transcendentalidade e da originariedade do sujeito. O caráter heterogêneo, derivado, das formações de subjetividade. A nãoidentidade do “sujeito” consigo mesmo. A opção por uma genealogia em prejuízo de uma ontologia. A pesquisa não das essências e das substâncias mas das forças e das intensidades. Insistência no ‘poder’ de inventar, fixar, tornar permanente e não na capacidade cognitiva de descobrir, revelar, desvelar. Contra o duvidoso gosto pela essência, uma declarada predileção pela aparência. Não a presença (do ser?), mas seu deferimento, sua diferença, seu retardamento, seu 264 espaçamento. Horror ao pensamento da negação e da contradição. O devir em vez do ser. Não os valores, mas sua valoração. Não a moral, mas sua proveniência (Silva, 2002a, p.1). Tomaz Tadeu da Silva lembra ainda que: o pensamento da Diferença surge nos anos sessenta, com uma emergência maior no final do século XX e início do XXI, em diversas áreas das ciências humanas e sociais; a teoria do currículo também tem sido contagiada pelo pensamento da diferença, inicialmente com o referencial foucaulteano e depois alargando essa influência a partir da filosofia de Deleuze ou Derrida; e herda de Nietzsche a maior parte dos seus temas: “o perspectivismo, a visão interpretativa da verdade, a crítica do sujeito, o questionamento do pensamento identitário, a força e o poder como elementos formadores e constitutivos” (Silva, 2002a, p.2). Diante dessa herança nietzschiana da filosofia da diferença, Tomaz Tadeu considera interessante perguntar: [...] o que a teoria do currículo pode aprender com o mestre que pode ser considerado o precursor das temáticas depois desenvolvidas pelos pensadores contemporâneos da diferença. Nietzsche nos deixou algumas importantes lições sobre a verdade e o conhecimento, sobre o sujeito e a subjetividade, sobre a força e o poder, sobre a moral e os valores. Se é verdade, como agora sabemos, que a teoria curricular está estreitamente envolvida com essas questões, não poderia ela tomar algumas úteis e proveitosas lições com o velho e bom professor Nietzsche? Dr. Nietzsche, curriculista. Escutemos (Silva, 2002a, p. 2). Uma teoria do currículo pós-estruturalista problematiza quatro questões centrais: conhecimento/verdade; sujeito/subjetividade; poder; e valores, mas não com a finalidade de lhes buscar a essência última, mas de questionar os fundamentos que lhe são imputados pelo status quo. Conforme Silva, a questão do conhecimento e da verdade na teorização curricular traz a pergunta: qual o conhecimento verdadeiro que deve ser ensinado? Tradicionalmente, a resposta é dada pelo pensamento da representação que implica na existência de um conhecimento verdadeiro pré-existente e na correspondência do conhecimento entre o sujeito e o objeto. Diversamente, uma teoria pós-estruturalista sobre o currículo vai “problematizar essa concepção ‘realista’ do conhecimento e da ‘verdade’, destacando, em oposição, seu caráter artificial e produzido” (Silva, 2002a, p. 3), pois não existe um reino das aparências composto pelas coisas sensíveis, falsas, e um reino das essências composto pelas coisas inteligíveis, verdadeiras: “A única “realidade” é a das aparências. Não há nenhuma verdade a ser descoberta ou revelada 265 porque a única verdade é aquela que nós criamos. A verdade é uma coisa deste mundo” (Silva, 2002 a, p. 4). Assim, a verdade é uma interpretação que é produzida. Já com relação às concepções de sujeito e subjetivação, um currículo tradicional metafísico carrega sempre alguma noção do sujeito que ele quer formar e parte de uma noção do que essas pessoas são essencialmente. A metafísica crê na existência de um “eu” unificado, coerente, fixo e permanente, origem e a causa da ação, ou seja, pautado no cogito cartesiano. A realidade fica centrada na ação do sujeito e os seus acontecimentos impessoais não são percebidos, valorizados: O “eu penso, logo existo” cartesiano – ato inaugural da instauração do sujeito – é a expressão máxima dessa tirania da gramática. A fórmula provaria, supostamente, a existência do “eu”. Mas o “eu penso” não faz mais do que verificar a existência do ato de pensar. O “eu penso” não prova a existência do eu: apenas confirma que a gramática atribui a ação de pensar a um suposto “eu”. A existência do eu não é um “fato” provado, mas tão-somente uma suposição da gramática. De novo, é apenas um hábito gramatical que nos obriga a atribuir uma ação (neste caso, o pensar) a um suposto agente (Silva, 2002 a, p. 6). Para a concepção metafísica do sujeito, o sujeito: é uma substância imutável; é idêntico a si próprio, ou seja, coincide com o pensamento que tem de si; tem uma identidade permanente ao longo do tempo; tem uma unidade, ele é um e não muitos. Diversamente, a teoria pós-crítica do currículo trabalha com um sujeito que é: mutável; diverso de si próprio; não é o que pensa que é; muda ao longo do tempo; e não é um, e sim, vários. A terceira questão diz respeito aos valores e seus critérios. Para as teorias tradicionais, essa questão é respondida a partir de: Alguma espécie de fundamento primeiro ou transcendental, para a perspectiva pós-estruturalista, a questão é saber de quem são os valores, para quem e para que servem. No primeiro caso busca-se um fundamento último para os valores; no segundo faz-se, nietzschianamente, uma pergunta genealógica sobre as forças por trás do processo valorativo (Silva, 2002a, p. 4). Na teoria tradicional, a moral: é universal – seus valores valem para todos; é transcendental – seus valores emanam de um fundamento; é eterna – seus valores sempre valeram e sempre valerão. Essa visão se constitui em um moralismo, que busca a origem primeira e o fim último dos valores, metafisicamente, lhe retirando sua procedência imanente e contingente. 266 No entanto, para a teoria pós-crítica, a moral tem uma origem, mas não em um fundamento, pois sua origem é da imanência, é “mais terrestre, mais profana, mais cotidiana, do erro e da tentativa, da fraude e do engano, da sedução e da conquista, da persuasão e da dominação. A moral é mais da ordem da contingência que da ordem da transcendentalidade” (Silva, 2002 a, p. 8). Enfim, o moralismo pergunta pelo fundamento último do valor, uma genealogia da moral, indaga pela valoração dos valores, ou seja, quem ou o quê valorou o valor. Contudo, ao desnaturalizar o valor, a genealogia não sugere a ausência deste, pois expor as condições arbitrárias e históricas de criação dos valores vigentes “não significa sumariamente invalidá-los. Significa, em vez disso, tão-somente situá-los, colocá-los em sua devida e respeitável posição de criaturas, de invenções, de artefatos. Um valor deve saber o seu lugar” (Silva, 2002 a, p. 8). Assim, o que a genealogia da moral propõe é uma recriação de valores, reafirmando seu caráter histórico, imanente e contingente. A quarta questão de uma teoria do currículo é referente ao poder, ou seja, o quê ou quem determina o que vai ser estabelecido? Na perspectiva pós-estruturalista, a resposta está nas relações de poder. Assim, se as coisas não são manifestações de essências e nem originárias de princípios transcendentais, mas sim resultado de atos de invenção e de processos de criação, o conhecimento não pode ser correspondência entre aparência e essência, realidade e representação etc., e o que se deve investigar é a correlação de forças que determina a prevalência de uma invenção no lugar de outra, pois essas forças agem em um campo de forças que, por sua vez, “significa dizer que uma força age sobre outra força, que aquilo que as movimenta é a diferença entre uma força e outra. É essa diferença que faz a diferença entre uma invenção e outra. As forças dão forma às criações, imprimem nelas sua marca, sua diferença” (Silva, 2002 a, p. 9). Essas forças que determinam o conhecimento e a interpretação, que competem pela imposição de sentido às coisas do mundo, seguem um impulso pela superioridade: “Sua dinâmica é movida pelo desejo – vital, impessoal, anônimo – de dominar. No centro do campo energético que movimenta o mundo está uma ânsia – vital, impessoal, anônima – de impor-se. Esse impulso, esse desejo, essa ânsia chama-se ‘vontade de poder’” (Silva, 2002 a, p. 10). Sendo assim, “conhecer é interpretar. Interpretar é dar sentido, impor uma ordem, uma forma, uma direção, é dar um sinal à massa informe e caótica das coisas do mundo. Interpretar não é revelar, descobrir, identificar, mas criar, inventar, produzir” 267 (Silva, 2002 a, p. 10). Por isso, as interpretações são diferentes, na medida em que provêm de forças conflitantes. Portanto, “verificar a existência de diferentes interpretações equivale a verificar a existência de diferentes estados das correlações entre forças” (Silva, 2002 a, p. 10), do contrário, as interpretações teriam um sentido único e nem seriam interpretações, mas representações. Assim, então, Tomaz Tadeu da Silva lembra a velha máxima nietzschiana de que conhecer é vontade de saber e vontade de saber é vontade de poder. A partir daí, Silva se propõe a conceber um currículo seguindo as linhas traçadas por Nietzsche. Até agora a teoria educacional habitou no terreno da metafísica, recoberta com seus essencialismos, moralismos e visando a formação do sujeito humanista. A metafísica e a pedagogia sempre andaram de mãos dadas: “veja-se, por exemplo, a intrigante continuidade entre a artificiosa pedagogia do diálogo socrático/platônico e as piedosas glorificações das virtudes do diálogo nas pedagogias de inspiração freiriana ou habermasiana” (Silva, 2002 a, p. 11). Sua proposta, então, é imaginar como seria possível modificar essa relação partindo do pensamento nietzschiano. Uma teoria curricular nietzschiana seria uma teoria perspectivista, diversa da visão tradicional do pensamento da representação, metafísica ou positivista, na qual “o currículo é a experiência do encontro com um corpo de conhecimento fixo e imutável” (Silva, 2002 a, p. 11). Para Silva, essa concepção representacionista do currículo e do conhecimento tem na visão marxista sua versão crítica, pois “inspirada pelo conceito de ideologia, o currículo e conhecimento existentes só não correspondem à verdade porque estão indevidamente distorcidos pelos interesses da classe dominante” (Silva, 2002 a, p. 11). Assim, no “currículo perspectivístico” o conhecimento não é representação de algo que está para além dele, mas “uma versão ou uma interpretação particular dentre as muitas que poderiam igualmente ser forjadas ou fabricadas. [...]. O currículo é, então, pura escrita, pura interpretação” (Silva, 2002 a, p. 12). Em uma teoria nietzschiana do currículo não cabe a noção convencional de sujeito da representação, na qual “o conhecimento é um objeto para um sujeito ao qual é atribuído o papel de centro, fonte e origem da ação” (Silva, 2002a, p. 12). Diversamente, em Nietzsche, é possível pensar o sujeito como uma convenção: Seguindo Nietzsche, podemos, [...], pensar o sujeito como não sendo nada mais do que uma ficção conveniente, do que uma convenção gramatical, do que uma fórmula de abreviação para se referir a uma 268 complexa e heterogênea combinação de elementos heterogêneos das mais diversas ordens e origens: conscientes e inconscientes, mentais e corporais, naturais e históricos, materiais e culturais. A estabilidade, a permanência, a unidade, a coerência do eu não passam de uma ilusão, de um hábito. O eu nunca se encontra consigo mesmo. Sua identidade consigo mesmo não passa de um desejo, de uma “vontade de ser” (Silva, 2002 a, p. 13). Para Silva (2002a, p. 13), um currículo baseado em Nietzsche seria um currículo “sem sujeito e sem a segurança e o conforto de um eu fixo e estável”. Contudo, isso não significa simplesmente descartar qualquer noção de subjetividade, mas compreender que sujeito e currículo são, por excelência, elementos de subjetivação e individuação. Assim, então, haveria um deslocamento da noção de sujeito, tal como é compreendida na representação, para a noção de subjetivação, a qual implica um sujeito como montagem e invenção e não como a origem transcendental do pensamento e da ação. Dessa forma, sujeito e currículo deixariam de ser pensados isoladamente, como causa e efeito, e passariam a ser pensados reunidos em uma combinação (Cf. Silva, 2002a, p. 13). Tradicionalmente, além da transmissão de conhecimentos, o currículo é também uma transmissão de valores: “O currículo é, assim, além de um empreendimento epistemológico, um empreendimento moral. A questão torna-se, então, em saber quais são os valores que devem fazer parte do currículo e quais suas possíveis fontes” (Silva, 2002a, p. 13). Por sua vez, esses valores são transmitidos como sendo absolutos (incondicionais), naturais (vindos da natureza e, por isso, imutáveis), universais (tem validade em toda época, todo lugar e para todos) e oriundos de um fundamento (deus, pátria, um texto sagrado, uma revelação, a família) (Cf. Silva, 2002 a, p. 13). Contudo, pensar a questão dos valores no currículo a partir de Nietzsche implica em perguntar pela valoração dos valores, de interrogá-los genealogicamente: Qual a história desses valores, qual sua proveniência, quais forças transformaram-nos justamente em valores? Uma perspectiva genealógica questiona o caráter absoluto dos valores, perguntando sempre pelas condições, pelos tipos históricos que fizeram com que eles valessem como valores. Um valor não existe simplesmente, em algum domínio transcendental: ele é sempre resultado de uma valoração, de um ato de força, de uma imposição. Para uma genealogia da moral, pouco importam os valores em si: o que importa é investigar a origem dos atos que os instituíram como tais, as posições de onde eles são enunciados. Uma genealogia da moral tampouco está preocupada com a universalidade ou não dos valores: sua preocupação é com a determinação das posições particulares a 269 partir das quais se decretou aquela universalidade (Silva, 2002a, p. 14). Assim, pensar os valores em uma teoria do currículo nietzschiana significa: questionar a incorporação de uns valores e não de outros; indagar por que o currículo se organizou em torno do desenvolvimento de uma determinada subjetividade; quais as forças, as relações de poder, que estabeleceram determinados critérios morais como sendo dignos de figurar no currículo e de excluir outros; desconfiar da explicação das crises como fracasso da transmissão de valores; enfim, Uma teoria nietzschiana do currículo seria, [...], fundamentalmente imoralista – não no sentido de ausência de qualquer valor, mas no sentido de desconfiança de toda moral baseada no absoluto, no universal e na natureza. Uma teoria nietzschiana do currículo apelaria para uma contínua invenção, para uma permanente transvaloração de todos os valores do currículo (Silva, 2002a, p. 14) (Grifo nosso). Nietzscheanamente, um currículo tem que ser compreendido em sua relação com um campo de forças, com um campo de poder, pois “um currículo é sempre uma imposição de sentidos, de valores, de saberes, de subjetividades particulares” (Silva, 2002 a, p. 14). Assim, não importa perguntar o que é verdadeiramente um currículo em sua essência, mas perguntar pelo impulso, desejo, pela vontade de saber e vontade de poder que fizeram acontecer um currículo. Deve-se indagar “não pelo “ser” de um currículo, mas pelas condições de sua emergência, de sua invenção, de sua criação, de sua imposição. Dedicar-se, em suma, não a uma ontologia, mas a uma genealogia do currículo” (Silva, 2002 a, p. 15). Para Silva, até agora, na teoria do currículo tem predominado a direção metafísica com seus discursos e seus significados transcendentais: essência, verdade, valores, sujeito. A perspectiva nietzschiana possibilita uma abertura desse direcionamento e mostra outra maneira de conceber uma teoria do currículo. Contudo, “como dizer se chegamos lá? Nietzsche disse certa vez que ‘nossa primeira pergunta para julgar o valor de um livro é saber (...) se dança’ [...]. Poderíamos, talvez, pedir-lhe emprestado esse critério para julgar o valor de um currículo – ou de uma teoria do currículo. Dança?” (Silva, 2002 a, p. 15). 270 3. Daniel Lins e Mangue’s School: pedagogia rizomática, escola do acontecimento, do devir e do afecto Daniel Soares Lins é sociólogo, filósofo e psicanalista, com pós-doutorado em Filosofia sob a direção de Jacques Ranciére – Université de Paris VIII, em 2003; doutorado em Sociologia – Université de Paris VII – Université Denis Diderot, em 1990, no qual assistiu aulas com Gilles Deleuze; graduação em Filosofia, em 1984, e em Sociologia, em 1976, – Université de Paris VIII, U.P. VIII. Dentre outras atividades, ressaltamos aqui a de professor da Universidade Federal do Ceará, – Departamento de Ciências Sociais e Filosofia, atuando no Departamento de Educação, e Coordenador do Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze42, que teve sua primeira edição em 1999 e a mais recente, a décima, em 2011. Também exerceu o magistério como professor-visitante em várias Universidades do Brasil e do exterior. Tem uma expressiva atuação na área cultural via rádio, jornal e televisão, difundindo a Filosofia contemporânea, Sociologia e Educação. Tem mais de uma dezena de livros publicados, e outros organizados por ele, bem como artigos no Brasil e no exterior. Parte significativa desse material é relativa ao pensamento de Deleuze e suas intercessões em Educação ou a temáticas afins ao pensador francês. Para Daniel Lins43, a Filosofia da Educação no Brasil começa a existir na contemporaneidade e falar dela é algo muito recente no país. Este fato se deve a pessoas e não a instituições, pois “as instituições brasileiras não trabalharam e nem trabalham sobre a filosofia da educação, isso ainda é algo muito marginal, [...] no sentido de ‘à margem’” (Lins, 2011). 42 X Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Natureza – Cultura, 2010, PA; IX Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – O devir criança do pensamento, 2008, CE; VIII Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Vontade de potência, máquina de guerra, 2007, CE; VII Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Jogo e Música, 2006, CE; VI Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Imagem, literatura e educação, 2005, CE; V Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Arte e resistência, 2004, CE; IV Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – bárbaros e civilizados, 2002, CE; III Simpósio Internacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Que Pode o Corpo, 2001, CE; II Simpósio Internacional de Filosofia, 2000; I Simpósio Nacional de Filosofia: Nietzsche e Deleuze – Intensidade e Paixão, 1999, CE. 43 Entrevista de Daniel Lins concedida à autora em 2011. Vide anexo. 271 Para Lins, é muito difícil fazer Filosofia da Educação a partir de uma leitura clássica da filosofia, pois aí predomina uma espécie de pensamento imperial e, até o século XX, existiram traços de preconceito em relação à criança que surge como “uma instituição muito nova, novíssima” (Idem). Assim, a criança foi humilhada como entidade, pois “não era sujeito nem era categoria, era um ente, um ente do ser. Foi muito humilhada em toda a história da filosofia, em toda história do pensamento” (Idem). Tendo sido negada desde Platão até a Igreja, para quem tinha parte com o diabo e só podia ser salva porque tinha alma. Poucos reconhecem que é somente com Freud que a criança e a educação ganham seu devido lugar na filosofia, e passam a ter visibilidade e estatuto. Rousseau, por exemplo, teve seu Emílio queimado em praça pública e foi exilado, pois para a época “era uma vergonha que um filósofo, um homem do nível do Rousseau perdesse seu tempo com tantas ‘asneiras’” (Idem). É necessário fazer uma cartografia dessa “ausência trágica da filosofia do ensino no Brasil” que só existe por guardarmos distância do mais importante que é a criança enquanto pivô e rizoma: “Se você transforma o rizoma, que é movimento, em algo paralisado, aí você chega à história da filosofia atual, à história da educação atual e à dificuldade que tem a educação de interagir com a filosofia” (Idem). Por isso, no Brasil só é possível fazer educação com a pedagogia que é palavra de ordem e não estímulo ao pensamento, pois na pedagogia e no ensino prevalecem a opinião que é contra o pensamento, aí, então, ocorre o enterro da Filosofia (Idem). Contudo, se a Filosofia da Educação é tão recente no Brasil, mais recente ainda é uma educação pensada a partir da Filosofia de Deleuze. Personagens, sempre pessoas e nunca instituições, deixam de lado a leitura de Rousseau, Schopenhauer etc. e descobrem Deleuze: Mas Deleuze não escreveu livro sobre educação, nunca escreveu um livro sobre educação. E como é que se chega a Deleuze? Não tem jeito, tem que ler o Deleuze todinho, essa é que é a história. Porque, se você ler Deleuze, você é capaz de escrever só tirando as frases. Eu fiz uma conta, daria um livro, mais ou menos, de 96 páginas se você retirasse só o que Deleuze fala sobre educação. Como? De uma maneira outra. Por quê? Porque Deleuze não trabalha absolutamente com a dominação dos signos nem dos símbolos que uma certa pedagogia – que no Brasil, em geral, é essa a pedagogia – impõe palavras de ordem, não mais, absolutamente, pensar o que está escrito, mas executar. Nossos programas vêm todos de Brasília, inclusive quando você está em Quixadá, quando você está em Unijuí, onde você 272 estiver, nossos programas vêm de Brasília, já está tudo feito, tudo dominado (Lins, 2011). Conforme Lins, aqueles personagens buscaram Deleuze para pensar uma nova educação porque a atual funciona no universo da Representação, em um processo de significado, significante e significação que é “a tropa de elite da pedagogia” e a alma da representação. Esse trio da representação inviabiliza o pensamento criativo porque oferece tudo pronto, conceitos, valores, perspectivas, etc., e destitui a necessidade de pensar: “Então, [com] significado, significante, significação, eu dou o pacote e, a partir daí, não há mais pensamento. Se não há pensamento, como vai ter filosofia? A filosofia é a arte de criar conceitos, aquela ideia de Gilles Deleuze” (Lins, 2011). Contudo, a necessidade de pensar a educação para além do universo representacionista, em virtude dos seus limites impostos à educação, levou a necessidade de pensar diversamente: Se um país não tem necessidade de pensar é muito difícil ter uma pedagogia que pense. A pedagogia é a pedagogia dos resultados, copiando países que já passaram por todas as fases que nós não passamos e que nós estamos apenas chegando, a gente corta todas as fases e dá uma coisa esquizofrênica, meio doida. Em um país de quase escolas, quase professor, quase salário, quase tudo, em um país onde a educação, realmente, não tem importância, é só uma espécie de discurso teórico, cheio de metáfora, e, geralmente, levando os professores pra uma situação indigna, que é a situação do pobrezinho, daquele que tem vocação ou, como diz o Governador daqui, aqueles que trabalham por amor (Lins, 2011). Nesse universo árido, há “a ausência de um programa realmente pensado, sentido, um sentimento não mais como a significação, mas sim como a pele” (Idem). Com o pensamento da representação fica perdido o sentido do “sentido” como pele e como erógeno, virando significação e palavra de ordem. Lins dá o exemplo da palavra viril, que em latim indica força, mas teve seu sentido traduzido e cooptado pelo pensamento de representação como sendo relativo a homem no sentido do gênero, ideal masculino, e que passa a ser um discurso dominante, inclusive da educação, “porque tudo [...] passa pela educação, é lá que a gente aprende essas significações, significados, esses significantes e a representação dominante. Palavra de ordem, dos valores ou não, dos signos e dos símbolos” (Lins, 2011). Contudo, essas coisas só são possíveis se a Filosofia levar ao pensamento e não à opinião, afirma Lins: “O sonho do filósofo não é ter discípulo, não é ter comentador, o sonho dele é ter um intérprete, que seria o papel da escola” (Lins, 2011). Mas prevalece 273 o vazio do pensamento, onde a representação e a opinião ganham o tempo todo e o pensamento é tido como algo “chato”. Principalmente no âmbito educacional, há uma negação do pensamento filosófico e sua necessidade de se filiar às práticas educativas. Nesse sentido, Lins ressalta a importância de trabalhos desenvolvidos conjuntamente com Ada Kroef no Conselho de Educação no Ceará e em Porto Alegre, em escolas públicas. Essas experiências práticas tiveram participantes que tinham por referencial teórico os filósofos que não comungam com o pensamento da representação: Ada Kroef trabalhou, desde a gestão do PT, na Secretaria de Educação de Porto Alegre. Então, o que que ela fez? Ela pegou exatamente... porque era uma pessoa, e não uma instituição, tinha sua equipe, os Secretários acharam interessantíssimas as ideias dela, trabalhando com uma equipe muito boa e começando então a fazer o que? A chamar pessoas que trabalhavam com Deleuze, com Guattari, com Nietzsche, com Schopenhauer, com Derrida, enfim, com toda essa gente que mudou a história da educação nesse meado do século XX até agora (Lins, 2011). Ainda sobre a importância de a Filosofia pensar e nortear a Educação, Lins também recorda que quando a França faz uma reforma, ela convida primeiro os filósofos para participarem, e somente em um segundo momento convida os técnicos. A última reforma que foi feita por Mitterrand, por exemplo, os convidados foram Pierre Bourdieu, Michel Serres, Derrida e Morin. Sarkozy também tem seguido o mesmo caminho, bem como os ingleses: Na Inglaterra, o que os ingleses fazem? A mesma coisa. Convidam os filósofos. Porque quem é que vai pensar a educação se os filósofos não pensarem? Não vão ser as pedagogas, porque as pedagogas têm todo um processo de relação com a cognição e elas trabalham, portanto, já com o que está dado antecipadamente (Lins, 2011). O que inviabiliza as pedagogas de pensarem a educação é porque elas estão impregnadas pelo domínio da representação, portanto, da cognição. Na própria sala de aula, elas partem de uma ideia pré-estabelecida de conhecimento e de saber que “aplicam” ao ensino, “sem ter nenhuma preocupação com o acontecimento na pedagogia. Eu chamo de acontecimento na pedagogia dizendo que o acontecimento seria o efeito surpresa que toda criança precisa para se desenvolver e crescer e para ter também o amor pelo que ela não conhece, pelo desconhecido” (Lins, 2011). E isso, conforme Lins, “tem tudo a ver com a experiência deleuzeana”. 274 Outro fator que leva ao fracasso escolar e inviabiliza o acontecimento, a surpresa que incita a curiosidade e leva ao amor ao conhecimento, é o excessivo controle que os diretores de colégios exercem sobre materiais didáticos, que deveriam ser disponibilizados para os alunos e, no entanto, vivem trancafiados a sete chaves na sala da Diretoria para não “estragarem”: “[...] quantas escolas eu já visitei no Brasil, não só no Ceará, onde aqueles livros maravilhosos estão escondidos, guardados, velados lá porque se não os meninos vão estragar. Isso não é mais folclore, isso e real” (Lins, 2011). Por tudo isso, é possível afirmar que existe “uma pedagogia que não pensa e uma pedagogia como lugar da exclusão”. No entanto, uma escola diferente seria aquela que trabalhasse com o pensamento e, portanto, com os afectos, pois não se retira o pensamento dos afectos, “porque o pensamento é a abertura para pensar aquilo que está dado como certo. Esse é o lugar do afecto, é essa abertura para uma diferença que difere, somos todos diferentes, mas não tem hierarquia de diferença, não tem uma diferença melhor que a outra, se não a gente vai entrar em um discurso da representação” (Lins, 2011). Para Lins, essa relação dos afectos com o pensamento se dá porque só se pensa por necessidade, o pensamento é algo interessado. Assim, Colocar o pensamento na filosofia é colocar os afectos, colocar os afectos é ficar também na escuta desse capital cultural que são os alunos, em qualquer que seja a faixa etária. Qualquer que seja a idade, chegam todos com um capital cultural, inclusive os que vêm de lugares impensáveis, às vezes até mais humilhantes, socialmente falando, do que as favelas, o rural e tudo isso (Lins, 2011). Contudo, uma pedagogia do acontecimento que se contrapõe a uma pedagogia da representação não prescinde de uma espécie de estrutura, “mas essa estrutura tem linhas de fugas, essas linhas de fugas que vão correr por todo lado, é a cabeça do menino com a sua invenção” (Lins, 2011). O estudante lança mão do que precisa, do que interessa nessa espécie de eixo que não é o lugar da verdade e sim da experimentação. Aí se trata eminentemente de prática, e por isso, “ele precisa de um eixo, ele precisa de uma coisa bem centrada para poder descentralizar, para poder sentirse a vontade para poder entrar na invenção, mas ele precisa voltar” (Lins, 2011). Esse eixo, que possibilita linhas de fuga, ocorre sempre em um processo de territorialização e desterritorialização. Um não existe sem o outro. É como a relação Apolo-Dionísio, não se pode afirmar Apolo “e” Dionísio, pois “quem nos disse que 275 Apolo não é ainda uma figura de Dionísio, uma figura conceitual, sobretudo, um personagem conceitual, e que Dionísio não é uma figura de Apolo?” (Lins, 2011). Lins afirma que é impossível dividir essa história, porque ali o humano, demasiado humano, está tudo junto em uma diferença que difere: São diferenças que não têm hierarquia, mas são diferenças e, portanto, singularidades. Apolo não é Dionísio, Dionísio não é Apolo, entretanto essas diferenças que diferem participam de uma espécie de complementação, mas guardando cada uma diferença a sua singularidade. Por isso que nunca é uma dualidade. O pensamento dual é o pensamento da pedagogia, bem ou mal, aí quando a filosofia chega, a filosofia do Deleuze ou do Nietzsche... Bem ou mal? Mas isso não existe, existe bem-mal, bem e mal não (Lins, 2011). A escola dual, da cognição, da representação inicia a divisão entre bem e mal, bem como decide entre o que é o bem e o mal, impõe essas ideias e impede o pensamento: “Então, quando você entra em uma estrutura que não pode mais pensar, onde está tudo controlado, resultado: que vai fazer essa criança na escola? Qual é a força de Deleuze?” (Lins, 2011). A resposta, conforme Lins, é próxima ao que Deleuze afirma quando faz um elogio a Bob Dylan: “eu gostaria de dar um curso como se eu estivesse em um concerto de rock”. Dessa forma, a resposta é precisamente a valorização das coisas práticas: “Deleuze trabalha na filosofia dele com coisas tão práticas que se tornam quase um manual antipedagócico” (Lins, 2011). No caso da comparação com o rock, é porque ele possibilita a pessoa ouvir a música e participar dela dançando. Lins esclarece da seguinte forma: E por que não dar um curso como se fosse um concerto? E o que é esse concerto? Se você pensar que ele está falando de rock, porque muitos alunos roqueiros eram alunos de Deleuze e tinham paixão pelo rock de Bob Dylan. O lugar do rock, sobretudo, é muito interessante porque eles estão tocando, mas você está dançando e não existe rock sem o público, podemos dizer que não existe piano sem o público. Só que na relação do piano você está com toda emoção, você está lá, mas não há participação física, há sim, mas ela é invisível [...], no caso do rock é uma loucura, porque é uma das raras músicas que é para você dançar, se movimentar (Lins, 2011). O exemplo é também significativo porque os roqueiros entram em um processo contínuo de territorialização e desterritorialização e isso se aproximaria da “ideia de uma pedagogia filosófica baseada, pensada a partir de Deleuze e de outros, da desconstrução, e tudo isso, é um excelente exemplo” (Lins, 2011). Da mesma forma, o 276 exemplo é pertinente porque o roqueiro improvisa dentro de uma estrutura aparentemente fechada, tal qual uma escola saindo de uma pedagogia fechada; o roqueiro está ao mesmo tempo dentro (dedans) e fora (dehors) da música, “vibrando e, muitas vezes, se calando para que o público cante”, assim também é uma escola que fuja à pedagogia da representação ou, seguindo Deleuze, dar uma aula como se fosse um concerto de rock, no qual se possa fugir da estrutura através das linhas de fuga: “São coisas que não têm nada de abstrato, é muito prático e é isso, mais ou menos, quando a gente trabalha com Deleuze” (Lins, 2011). A filosofia deleuziana tem esse caráter de valorização da dimensão prática, da desconstrução, porque trabalha exatamente com o sentido e não com a significação, com a representação. Na aproximação da Educação ao pensamento deleuziano, “Deleuze é apenas o intercessor, quem trabalha somos nós e quem faz o que a gente quer com o que Deleuze escreveu somos nós. Ninguém está copiando Deleuze e nem teria que copiar, até porque é impossível, filosofia não dá para copiar” (Lins, 2011). Principalmente em Deleuze, para quem a Filosofia é criação de conceitos. Diversamente, no Brasil, afirma Lins, os filósofos brasileiros não são filósofos, são professores de filosofia: “Não temos o direito de criar um conceito, o filósofo no Brasil que criou conceito está no dicionário, um grande filósofo, chama-se Bento Caio Prado Junior, que morreu recentemente. Ele é O filósofo. Por quê? Porque ele criou um conceito” (Lins, 2011). Lins fala sobre o encontro de Bento Prado Jr. e Deleuze, na Universidade de Paris e do encantamento do filósofo francês com um filósofo do Brasil, país onde praticamente todos eram comentadores, professores de filosofia. Lins reconhece a excelência de muitos professores de Filosofia no Brasil, mas não a existência de filósofos: “Não há mudança, praticamente, no Brasil, é uma dominação dos signos na filosofia. É como se fosse possível continuar a fazer filosofia sem criar filosofia, é um complexo de vira-lata. Isso é terrível!” (Lins, 2011). E a Filosofia que possibilita uma abertura de criação de pensamento, Deleuze e Nietzsche, a universidade recusa dizendo que não é filosofia, “porque filosofia boa para a academia brasileira é a filosofia que não pensa. E como é que uma filosofia não pensa?” (Lins, 2001). Por isso, a nossa formação filosófica é fracassada, pois não conseguiu formar filósofos. 277 A USP, por exemplo, tem professores comentadores de altíssimo nível, como Marilena Chauí, em Spinosa e Scarlett Marton, em Nietzsche. Mas a USP hoje já não tem tanta representatividade na Filosofia no Brasil. Hoje ela representa mais um feudo: “[...] a USP é um símbolo, é uma velha senhora, mas que não conseguiu escapar, absolutamente, à loucura do envelhecimento do tempo” (Lins, 2011). Segundo Lins, a questão se complica ainda mais quando se avança para o terreno da Filosofia da Educação, na qual há um discurso terrorista de que Filosofia da Educação não é Filosofia. De fato, “eu acho que filosofia da educação não existe, eu não acredito que isso exista como nominação. O que existe é a filosofia pensando a educação” (Lins, 2011). A História da Filosofia mostra que a “Filosofia passou a sua vida a pensar a educação” (Idem). E, nesse sentido, a Filosofia da Educação também é produtora de conceitos. Lins relata que ele, brasileiro, criou muitos conceitos, como, por exemplo, o Mangue’s School. O ponto de partida foi o conceito de rizoma que Deleuze já havia roubado da biologia e a inspiração foi a frase de Deleuze: “lugar bom para fazer filosofia são os trópicos”: Aí eu peguei essa brincadeira dele e comecei a trabalhar o rizoma, por exemplo, pegando os mangues. Daí aquele texto que saiu e foi publicado não sei em quantos lugares, que correu o mundo, Mangue’s School. Eu fiz questão de colocar em inglês, uma espécie de sinal, sinalizando. Se tratava de mangues, mangues, por acaso, aqui no Ceará, porque foi na Ilha do Pinto, em Fortim, perto de Canoa Quebrada [Ce], que foi onde eu descobri. Quando eu mergulhei, que eu... “meu Deus, e pensar que Deleuze ficou anos para pensar com Guattari o rizoma e eu pergunto para o pescador ‘me diga uma coisa, mangue não tem nem começo e nem fim?’”. Aí ele disse assim: “ó doutor, desculpa aí, eu estou vendo que o senhor é um senhor sábio, mas olha... tem começo e fim não, aqui só tem meio”. Para Deleuze encontrar isso que ele me disse foram anos e anos e anos (Lins, 2011). Lins ficou completamente fascinado com a ausência de início e fim dos mangues cearenses e a partir daí passou a ler com mais clareza os rizomas das árvores de Belém ou de São Paulo, compreendendo melhor o questionamento da existência de uma raiz fundadora. Dada a importância do texto resultante dessas inspirações, vamos nos deter um pouco mais na sua exposição. O artigo Mangue’s school ou por uma pedagogia rizomática, compõe o Dossiê Entre Deleuze e a Educação que resultou das apresentações do II Colóquio Franco- 278 Brasileiro de Filosofia da Educação, no Rio de Janeiro, em 2004, e, segundo o autor, traz a seguinte proposta: Uma pedagogia rizomática, que tem como axioma primordial uma ciência nômade ou itinerante está inserida na ética e na estética da existência, na imanência, pois como vida emerge como pura resistência, puro devir. Eis um dos eixos do projeto de uma escola inserida numa dinâmica do rizoma: resistir, infectar e vitalizar o instituído (Lins, 2005, p. 1229). A escola do mangue, ou Mangue’s school, está inserida em uma pedagogia rizomática e tem por base a ciência nômade, itinerante, imersa na imanência. É uma pedagogia da resistência e do devir. Faz contraponto à ciência régia, centralizada e próxima ao poder. A escola rizomática resiste, infecta, vitaliza o instituído com a diferença, em contraposição a escola identitária, que trabalha com o Mesmo. Para a pedagogia e a escola rizomáticas, a criança não é um adulto em miniatura que se prepara para ser o adulto futuro, mas sim um devir afirmativo, que se basta a si mesmo. Deleuzianamente falando, para a pedagogia rizomática, a criança é um acontecimento e o saber que ela aprende deve ser/ter sabor. Ou seja, deve ser prazeroso, sem o peso das verdades eternas e das culpas e castigos das amarras moralistas. Assim, a ética que acompanha essa pedagogia é a ética dos afectos: Afecto em Deleuze, ao contrário do afeto, é uma potência totalmente afirmativa. O afecto não faz referência ao trauma ou a uma experiência originária de perda, segundo a interpretação psicanalítica. O afecto, ao qual nada falta, exprime uma potência de vida, de afirmação, o que aproxima Deleuze de Spinoza: na origem de toda existência, há uma afirmação da potência de ser. Afecto é experimentação e não objeto de interpretação. Neste sentido, afecto não é a mesma coisa que afeto: o afecto é não-pessoal. Nem pulsão nem objeto perdido, "O afecto é uma potência de vida não-pessoal, superior aos indivíduos, o devir não-humano do homem" (Lins, 2005, p. 1254). A pedagogia rizomática se sustenta no rizoma e não na árvore, pois a árvore delimita o território, cresce verticalmente e é identitária, enquanto “o rizoma é horizontalidade que multiplica as relações e os intercâmbios que dele se originam. A vida assim compreendida é um contínuo fluxo e refluxo, potência de interação e produção de sentidos” (Lins, 2005, p. 1232). A maioria dos sistemas educativos se apoia na representação arborescente, e são alimentados por pedagogias arborescentes, hierárquicas e asfixiantes por imporem normas e palavras de ordem (Cf. Lins, 2005, p. 1234). Diversamente, a pedagogia rizomática busca “pensar, imaginar, engendrar, 279 embora de modo sucinto, uma pedagogia dos possíveis, uma pedagogia rizomática, sem raízes, troncos, galhos ou folhas fundadores que dividem as coisas firmando a árvore como ‘ato inaugural’ de todo processo educativo” (Lins, 2005, p. 1234). A pedagogia rizomática não ensina de forma impositiva, mas promove encontros nômades, “um conversar com no lugar de um falar sobre. Trata-se de nutrir o bom encontro, aqui compreendido com o bem, marcado pelo desejo ético e estético de criação” (Lins, 2005, p. 1235). A pedagogia identitária territorializa, é molar, é centralizada no conhecimento, impõe uma estrutura previamente pronta, da qual não se pode fugir. Inversamente, a pedagogia rizomática desterritorializa, é molecular, é uma pedagogia dos sentidos e possibilita e nomadiza as linhas de fuga. A própria nomadização dos pontos de fuga, por sua vez, já “é uma pedagogia de alta potência: pedagogia rizomática – pensar o impensável do pensamento, pensar o não-pensável do pensamento, pensar o pensamento na sua dimensão desejante, vitalista; o pensamento como vida e crueldade” (Lins, 2005, p. 1233). O ser que é gestado na pedagogia do rizoma não se fundamenta nem na substância, nem na transcendência e nem no humanismo, pois “o ser é uma produção desejante: pura invenção do desejo”. Da mesma forma, este ser não deve projetar no Outro a sua existência, em uma espécie de condenação sartriana. A alteridade é/pode ser desejante, Uma alteridade sem outrem estruturado e estruturador de ressentimentos e dívidas. [...]. Poderíamos pensar uma ética sem alteridade, em que não se está condenado ao outro, o outro como meu pecado original (Sartre), mas que, ao contrário da moral niilista, não limita outrem ao “ser humano”, ofuscando, assim, a grandeza de uma alteridade grávida de devires, isto é, sem reciprocidade imposta como sina ou destino, uma alteridade, pois, que passa pelos afectos, encontros com outrem eclodido, em platôs abertos e rizomáticos (Lins, 2005, p. 1235). Dessa forma, o Outro está para além do homem, do indivíduo, da pessoasujeito e passa/pode ser a natureza, o não-humano, o desumano. Ampliam-se as possibilidades de existir do Outro e as alternativas em que se possa fazer interação e inclusão desse Outro, “um universo múltiplo, como um imenso sujeito eclodido: caosmos e devir aos mil afectos e desejos, inocência do devir, devir do pensamento 280 trespassado por um eterno retorno, ‘que não faz retornar tudo’, nem se deixa encurralar pela representação” (Lins, 2005, p. 1236). Assim, então, pedagogia rizomática possibilita também cultivar como experimento “os sentidos bárbaros não ainda domesticados” (Lins, 2005, p. 1238), para além das significações e significados normatizados. Lins enfatiza experimento porque quando se oficializa uma minoria ela é tornada maioria que passa a ser imposta como modelo. O devir-inútil acontece, como acontecimento, imponderavelmente, inclusive como forma de adubar a criatividade do fazer pedagógico rizomático. Por isso, essa experimentação dos sentidos bárbaros não pode ser oficializada/imposta às pedagogias, mas ela pode [...] contaminar os processos pedagógicos com ‘costumes bárbaros’. Se a ideologia utilitária mapeia o dia-a-dia de cada um, tudo grava, cataloga, por que a educação seria diferente? Como pensar a produção inútil nas escolas? Reuniões ‘inúteis’, ‘sem agenda’, encontros ‘inúteis’, tudo isso são experimentos e ‘práticas bárbaras’ no campo dos afectos não estruturados nem estruturáveis ou oficializados, consequentemente não fadados à repetição, ou ao tédio da experiência cooptada pela norma, pelo imaginário instituído. Tudo isso educa para o sensível, para se pensar fora do pensamento único. Tudo isso significa não um método, mas um pouco de ar fresco, uma diferença mínima, um afecto minimamente não-controlável, uma onda de alegria na arte de aprender e de coabitar (Lins, 2005, p. 1239). Essa inutilidade tem a ver com a Escola do Devir que tem um movimento nômade e não se sedentariza em estruturas fixas, mas sim é aberta à intercessão de uma pedagogia diferenciada, daquelas que são compromissadas com o sucesso a qualquer preço. A pedagogia rizomática, diversamente, abre espaços para uma pedagogia do acontecimento e para as trocas simbólicas de uma estética do ‘inútil’, que produz rizomas e devires: “Um espaço de vida, no âmbito da escola, é uma espécie de nãolugar pedagógico, onde os devires imperceptíveis podem, como os nômades no deserto, encontrar-se, não numa estrutura, mas numa confidência, numa sedução, numa invenção artística. O tempo de ócio produtivo deveria também ser um tempo escolar” (Lins, 2005, p. 1240). Dessa forma, Mangue’s school é uma Escola do Devir, na perspectiva da pedagogia rizomática; diversamente da pedagogia arborescente que, tal a árvore, é hierárquica e tem início e final. O nome foi escolhido em função das características rizomáticas do mangue, que não tem começo e nem fim, pois o rizoma é: 281 [...] meio, intermezzo, inter-ser, que não tem alto nem baixo, nem começo nem fim: um ponto do rizoma é conectado a todos os outros pontos, fazendo da escola um imenso manguezal que se espraia num entrelaçamento de proteínas, calorias, gazes, lama, gozos, prazeres, detritos e... ouro (o caranguejo, em particular, e os crustáceos, em geral, são o ouro dos mangues), esquecimento ativo e devires, sem simbiose nem filiação, mas alianças, intercessões, vizinhanças (Lins, 2005, p. 1241-1242). Da mesma maneira, a pedagogia da Mangue’s school é tão rizomática quanto o mangue: prevalece a surpresa do novo, da invenção, do imponderável, da diferença. O olhar se inaugura novo a cada instante, evitando a repetição do Mesmo da representação. A pedagogia nômade se orienta pela desterritorialização e “subtrai-se a toda e qualquer localização temporal e espacial, escorrega entre os dedos, não reside em um lugar nem em um ponto, contudo numa multiplicidade de lugares e pontos quebrantando toda determinação arborescente” (Lins, 2005, p. 1245). O perigo se encontra, assim, na localização-territorialização sem desterritorialização que leva à institucionalização que, por sua vez, gera a uma educastração no lugar de uma educação, conforme Lins (2005, p. 1245). Lins traça algumas linhas propositivas do esboço de uma pedagogia rizomática da Mangue’s school. Vejamos mais detidamente as seguintes raízes que “rizomamos” dessa pedagogia: ensino/aprendizagem; cérebro; oficina potencial; pedagogia dos afetos; professor/aluno. Quanto à raiz ensino/aprendizagem, só é possível afirmar que a criança é uma obra em construção e que a escola é uma intercessora legítima na sua autoconstrução quando o ensino não for exercício de poder. Baseado em Ranciére, Lins afirma que não há transmissão de saber, pois esta é transmissão de poder quando visa à mera aceitação, por parte do aluno, do saber transmitido: “O saber não se transporta nunca. Ele busca uma continuidade entre as formas do aprendizado habitual – aprende-se olhando, adivinhando, comparando etc. – e as formas supostas metodológicas da transmissão de saber” (Ranciére apud Lins, 2005, p. 1242). Os ensinamentos e aprendizados não ficam para sempre no corpo e nos afectos do aprendiz. Eles vão se desagregando na medida em que novos conhecimentos vão surgindo. Daí a importância da recepção do novo: Ora, o novo é que está por vir, para que ele seja, é preciso que haja o esquecimento, uma memória das palavras, aquilo que não é ainda, e que, desde que passa a ser, torna-se memória, passado. A pedagogia rizomática, neste sentido, trabalha sempre com o novo. Eis, pois, toda 282 a sua dinâmica: o que é (a memória) dá lugar ao que não é ainda (o novo, que implica o esquecimento). O novo é o devir, é o por vir. Nem genealogia, nem raízes: rizoma, abertura para a imanência, num eterno retorno em que o que retorna são os blocos de diferença em forma de devires. É o próprio real que aparece como produção do novo, o que supõe uma passagem do agente – itinerante, por definição – por uma experiência singular (Lins, 2005, p. 1243). O que caracteriza o novo no pensamento, afirma Lins, baseado em Deleuze, é a ruptura com a opinião e a criação de novas soluções inventadas em circunstâncias singulares (Cf. Lins, 2005, p. 1243). Assim, é necessário que a Filosofia, que tem papel decisivo nesse processo, seja a criação de “valores novos” e não um dispositivo de poder domesticado que consagra os valores estabelecidos. Assim, “a função da Mangue’s School não é mais a de responder a uma necessidade de verdade, ou de abrir ao conhecimento do real, mas provocar ‘novas possibilidades de vida’” (Lins, 2005, 1243) e conceber o novo como uma exigência de criação de forças capazes de transformar o presente, oferecendo respostas para os problemas que vão se apresentando. Assim, portanto, o pensamento que busca o novo é experimentação, em todas as áreas da vida, incluindo aí a educação. Por isso, para Lins (2005, p. 1244), “cabe à filosofia da educação compreender a produção do novo no interior dos conceitos, ao passo que a arte, que é uma forma de pensamento, perceberá a novidade tão-somente por meio dos perceptos que inventa”. Nesse sentido, na pedagogia da Mangue’s School, o cérebro, tal qual o ensino/aprendizado, não tem uma forma arborescente e sim rizomática, com uma consciência que funciona em fluxos contínuos e descontínuos que se desterritorializam/reterritorializam/desterritorializam criando o novo: Uma pedagogia rizomática assemelha-se, ao mesmo tempo, a um prolongamento de nosso cérebro, a um desenvolvimento eclodido de nossa consciência, a uma consciência fluida que se estende em todas as direções, ou em nenhuma, embaralhando os códigos unitários e a linearidade que empobrecem a imaginação e afugentam os devires. Consciência, pois, que se nutre de outras consciências produtoras de devires inconscientes, engendrando uma desterritorialização e abrindo-se ao novo, ao impensável do pensamento, num espaço de criação em que os alunos se tornam os próprios rizomas (Lins, 2005, p. 1244). Para Lins, baseado em Deleuze e Guattari, o cérebro trabalha com a imagem que é própria da imagem do rizoma, no qual “a imagem geral é a soma de todas as outras: 283 e... e... e... sem que haja hierarquia nas imagens que a compõem. O limite do rizoma é fugitivo [...]” (Lins, 2005, p. 1244). Dessa forma, a pedagogia rizomática é semelhante ao nosso cérebro com sua composição de neurônios conectados entre eles por sistemas: “O pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada [...]. Muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore” (Deleuze & Guattari apud Lins, 2005, p. 1244). Por tudo isso, não faz sentido existir um local de trabalho na pedagogia rizomática que seja igual ao local da pedagogia arborescente, do contrário, como se desterritorializariam / reterritorializariam / desterritorializariam os fluxos do novo e seus agenciamentos? Por isso, “convém investir as singularidades em um campo lavrado pelas heterogeneidades, um lugar que é não-lugar, logo, deliberadamente, saída de todo lugar, um lugar sem lugar, e que não sofre por isso, ganhando em troca uma pluralidade indefinida de lugares [...]” (Lins, 2005, p. 1246). Uma oficina comum de trabalho é fixa e visível no espaço, diversamente de uma oficina rizomática ou oficina potencial de uma pedagogia nômade. Esta se instaura “no relativo e no flutuante, ela troca sua forma e seu território por outras formas e territórios, segundo seu bel-prazer, embora com extremo rigor e conhecimento intelectual e afetivo, sem os quais nenhum experimento é possível” (Lins, 2005, p. 1246). A internet, por exemplo, segundo o autor, é representativa do tipo de uma oficina rizomática. Na perspectiva da Escola do Mangue, composta de elementos instáveis, fluidos, “acentrados”, sem busca da Verdade etc., só caberia uma “pedagogia dos afectos alegres em detrimento da tristeza das certezas” (Lins, 2005, p. 1246). Assim, prevaleceriam as incertezas no lugar da verdade, ou da vontade arborescente que asfixia os desejos e não deixa o aprendiz esquecer o estabelecido para aprender o novo, o aprendiz-refém da memória do instituído, das soluções já encontradas, “marcado pelo mimetismo sôfrego, pela cópia, pela ilusão duma centralidade, duma unidade que garante a ‘resolução, mas que impede toda criação de problemas’” (Lins, 2005, p. 1246), pois a “pedagogia dos afectos alegres em detrimento da tristeza das certezas” se pauta no pensamento deleuziano no qual a filosofia deve pensar necessariamente problemas: O pensamento não tem como fundamento a busca da verdade – como se a verdade estivesse sempre disponível, à toa, esperando a nossa vontade para se manifestar. O pensamento está voltado não para o 284 ‘estudo’ de problemas, mas para a criação de conceitos. O problema não é uma questão, pois a questão supõe, de imediato, a resposta. A questão ou a interrogação sustenta-se na realidade vazia, o problema está alhures (Lins, 2005, pp. 1246-1247). Lins também chama essa pedagogia de “pedagogia dos platôs”, fazendo referência ao pensamento deleuzeano-guattariano, para quem “um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs [...]. Chamamos ‘platô’ toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira que formem e estendam um rizoma” (Deleuze & Guattari apud Lins, 2005, p. 1247). A “pedagogia dos platôs”, portanto, não tem centro, e isso potencializa o desejo de aprender e crescer com o novo, sem autoridade, pelo cultivo dos sentidos e para além do meramente humano. Pode-se dizer, complementando Lins, uma pedagogia eróticorizomática-passional. Finalmente, a relação professor/aluno na Escola do Mangue persegue uma relação rizomática, não hierárquica, sem superior e inferior, sem um que ensine e outro que aprenda, sem um centro único difusor de conhecimentos, mas só intercessores que se entranham tais quais as raízes do mangue: Professor e aluno, ambos são dotados de saberes, experimentos, vivências, logo não são folhas brancas: cada um, a sua maneira, tem seu capital cultural, e isso desde a mais tenra infância. Neste quesito, há uma igualdade não-estatutária, não contabilizada nem competitiva, mas real; não há matas virgens, ambos possuem conhecimentos nãocomparativos. O fato de que um e outro, contudo, tenham um capital cultural, emocional ou linguístico aproxima-os duma cumplicidade rizomática, não gramatical e hierárquica (Lins, 2005, p. 1248). O aprendizado advindo dessa relação é o chamado “aprendizado imanente”, no qual não existe uma aprendizagem de causa e efeito, mas sim encontros. Professor e aluno são intercessores e realizam o que parecia impossível: “transmitir sem dominar, transmitir sem ofuscar os devires, receber sem dever, sem morrer às criatividades nem se deixar engolfar por uma alteridade moral que esvazia, mediante a dívida e a erosão dos desejos, a vontade positiva de potência, vontade superior de desejar” (Lins, 2005, p. 1248). Nesse sentido, então, pensa-se o impensável, pensa-se com o corpo-sem-órgãos. E este é, conforme Lins, “o axioma primordial da pedagogia rizomática” (2005, p. 1250), pois “o pensamento-rizoma se produz no encontro heterogêneo com o sensível e não no elemento do pensamento (recognição) (Lins, 2005, p. 1250). 285 Na pedagogia da Escola do Mangue é necessário diferenciar entre programa e projeto: “o programa – o oposto do rizoma – impõe a todos a obediência às setas e indicações. O projeto, diferentemente do programa, experimenta, desconfia das verdades pedagógicas ‘verdadeiras’” (Lins, 2005, p. 1251). O programa, apesar de ter sua importância em um projeto educativo, é identitário, arborescente e molar, ou seja, é favorável ao instituído, segue o utilitarismo na educação e renega a “inutilidade” necessária ao ócio que possibilita as invenções, o lúdico e os desejos. O projeto trabalha com o molecular, com as singularidades, com a criação de problemas; é rizomático e busca cultivar os afectos alegres; é pura imanência e afirmativo da vida; é experimento e não causa e efeito. Assim, portanto, uma pedagogia nômade de um projeto da Mangue’s School só pode ser rizomática e molecular, ou seja, “uma pedagogia da desconstrução e da diferença, do indivíduo como singularidade. Uma pedagogia que não trabalha com formas, mas com encontros nômades, desejos, encruzilhadas e bifurcações” (Lins, 2005, p. 1252). Portanto, a pedagogia nômade da Mangue’s School “é uma espécie de antipedagogia” (Lins, 2005, p. 1253), é uma pedagogia do experimento e do amor: Ora, o amor é da ordem do experimento e não do programa. Experimentar significa também participar ativamente, engajar-se no sentido em que o pensamento não é simplesmente espectador ou contemplador, mas participa de maneira ativa daquilo que tenta. Enfim, na experimentação, o pensamento engaja-se num processo do qual desconhece a saída e o resultado, e é nisso que ele está profundamente vinculado à experiência do novo. O novo não é a eternidade, é a invenção (Lins, 2005, p. 1254). Para tanto, tudo isso só será possível mediante o ultrapassamento da Representação que balizam a Filosofia da Educação, a imagem que se tem de criança, a ideia que se faz de escola, as políticas educacionais etc. Ou seja, somente um pensamento pautado na diferença possibilitará uma escola do acontecimento e do devir, bem como uma pedagogia rizomática. 4. Walter Kohan: o devir-criança do ensino, da infância e da Filosofia Walter Omar Kohan cursou o pós-doutorado em Filosofia na Universidade de Paris VIII, em 2007. É doutor em Filosofia pela Universidad Iberoamericana desde 1996, com a tese Pensando la Filosofía en la educación de los niños, tendo como Orientador Matthew Lipman. Sua graduação também foi em Filosofia, realizada na 286 Universidad de Buenos Aires, UBA, Argentina, em 1992. Kohan44 resume bem seu período de formação e suas principais influências filosóficas: Eu estudei filosofia na Argentina na Universidade de Buenos Aires, sou argentino, e a minha formação teve uma influência grande da filosofia grega, eu me especializei muito na filosofia grega, présocráticos, Sócrates e Platão. Trabalhei, inclusive, um pouco na Argentina como professor assistente na Universidade de Buenos Aires em filosofia grega. [...] Depois eu conheci Lipman, ele foi uma grande virada no meu pensamento, na minha formação, porque ele me mostrou, digamos assim, a necessidade de recriar a filosofia que se faz na academia. Então, foi um grande aporte para mim, porque ele me mostrou a necessidade que a [...] Filosofia da Educação fosse uma prática da filosofia e não uma transmissão do saber filosófico. E também me permitiu um caminho para chegar à infância, que depois eu critiquei, eu questionei, eu tentei refazer, mas que foi um caminho importante [...]. E paralelamente eu fui estudando, trabalhando autores da filosofia francesa já na minha tese, que o Lipman orientou, eu trabalhava com alguns franceses. Depois eu fiz um pós-doutorado em Paris VIII, aí estudei com pessoas do grupo de Ranciére [...] (Kohan, 2011). Atualmente, Kohan exerce diversas atividades relacionadas à área do ensino e da pesquisa. Dentre elas, ressaltamos aqui a de professor titular de Filosofia da Educação do Centro de Educação e Humanidades da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ); professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ; pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Foi Presidente do Conselho Internacional para a Investigação Filosófica com Crianças (ICPIC), vice-coordenador do GT de Filosofia da Educação da ANPED e Coordenador do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, da ANPOF. Tem mais de 50 trabalhos publicados em revistas especializadas e anais de eventos em diversos países. Publicou mais de 30 capítulos de livros e escreveu ou organizou a mesma quantidade de livros. Desenvolve ou já desenvolveu vários projetos ligados ao ensino de filosofia, filosofia para crianças ou Filosofia da Educação. É também orientador de Mestrado e Doutorado nessas áreas, as quais estão sempre presentes em seus escritos e em suas pesquisas. Seus principais referenciais filosóficos têm sido Deleuze, Foucault e Ranciére. As categorias mais presentes em seus escritos são as categorias da Diferença, infância, subjetivação e ensino/aprendizagem, que recebem uma abordagem filosófica a partir da postura crítica sobre a modernidade racionalista. Em sua vasta produção bibliográfica, 44 Entrevista de Walter Kohan concedida à autora em 2011. Vide anexo. 287 entre livros, artigos e coletâneas organizadas por ele, ressaltamos a Coleção Filosofia na Escola, com seis títulos45 organizados por ele em parceria com outros estudiosos, que muito tem contribuído com os professores de filosofia no Brasil nessa nova perspectiva pós-crítica de abordagem do ensino de Filosofia. Salientamos que a importância dessa coleção se dá, primeiro, pela abordagem filosófica da categoria da infância, e, segundo, com a teorização sobre o ensino da filosofia, dois assuntos praticamente ausente na cena brasileira da Filosofia da Educação. Kohan reconhece que Deleuze escreveu muito pouco sobre educação, a não ser tópicos muito específicos sobre assuntos que se aproximam da área, tais como aprender e pensar, e a relação entre ambos. Assim, a importância de Deleuze nas questões educacionais passa por outras três dimensões: a Filosofia tem de dialogar com a não Filosofia; a Filosofia não busca a totalidade sistêmica e universalizante; a Filosofia é criação de conceitos. Essas dimensões são muito importantes para se repensar a Filosofia da Educação no Brasil. Com relação à primeira dimensão, afirma Kohan (2011): Para Deleuze era essencial a relação entre a filosofia e a não filosofia, e isso é muito importante como gesto porque na filosofia há uma tendência de fazer uma fala interior, uma fala introspectiva, uma fala interna, que, de alguma forma, isola a filosofia das outras disciplinas. Isso também é próprio da filosofia da educação, ou seja, embora a filosofia da educação tenha como campo e como objeto algo concreto e renunciável que é a teoria e a prática educacional, há uma tendência no campo da filosofia da educação de somente ter relação com poucos saberes, e, de alguma maneira, um primeiro gesto que é interessante de Deleuze é que ele abre a filosofia da educação ou a filosofia para outras áreas, para a não filosofia. A segunda dimensão diz respeito ao fato de que o pensamento de Deleuze “desuniversaliza”, “dessistematiza”, não procura totalidades, unificações ou sistemas, “e isso é uma tendência muito forte na Filosofia da Educação que se pratica no Brasil” (2011). O pensamento deleuziano, então, funciona como contraponto à Filosofia da Educação que é feita ainda hoje no Brasil, a qual segue “uma lógica dos fundamentos, do sentido, do valor, como se a filosofia fosse uma sistematizadora, uma mãe, uma 45 Os títulos que compõe essa coleção são os seguintes: Filosofia para crianças: A tentativa pioneira de Matthew Lipman, Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch (orgs.); Filosofia para criança na prática escolar, Walter Omar Kohan e Vera Waksman (orgs.); Filosofia e infância: Possibilidade de um encontro, Walter Omar Kohan e David Kennedy (orgs.); Filosofia para criança em debate, Walter Omar Kohan e Bernardina Leal (orgs); Filosofia na escola pública, Walter Omar Kohan, Bernardina Leal e Álvaro Ribeiro (orgs); Filosofia no ensino médio, Walter Omar Kohan e Silvio Gallo (orgs). 288 colonizadora, digamos assim, do pensamento das diversas ciências, áreas e saberes da educação” (2011). A terceira dimensão se refere ao “gesto afirmativo que ele tem em relação com a filosofia como uma criação conceitual” (2011). Kohan enfatiza que Silvio Gallo tem trabalhado bastante nessa perspectiva tão importante para a Filosofia da Educação brasileira. A Filosofia como criação de conceitos na educação tem a tarefa de mostrar que a educação “não pode ser apenas elucidativa, apenas explicativa, apenas crítica, ela precisa ser criativa. Ela não apenas precisa problematizar o que acontece na educação, mas ela precisa criar e não criar qualquer coisa, criar conceito” (2011). A Filosofia da Educação não pode fazer o que fez até agora, ou seja, explicar ou fundamentar a realidade, mas sim pensar criativamente essa realidade através de novos conceitos. Contudo, Kohan enfatiza que não é deleuzeano e nem um pesquisador de Deleuze, mas reconhece “uma inspiração deleuzeana” (2011) a qual tem norteado também as suas pesquisas, principalmente as questões relativas ao ensino de filosofia; a relação ensino/aprendizagem; e ao ensino de filosofia para crianças. Kohan, de uma forma geral, compreende o ensino da filosofia “não como o ensino de uma disciplina, como a história da filosofia, mas [...] o ensino da filosofia como um propiciar da experiência filosófica” (2011). Ele busca criar condições para que a filosofia aconteça e os alunos filosofem, possibilitar aos alunos que “façam o que os filósofos fazem” (2011). Não se trata, portanto, de ensinar uma filosofia, de simplesmente transmitir um saber filosófico: Então, a inspiração de Deleuze é forte, é grande nesses sentidos que eu colocava anteriormente porque o ensino da filosofia tem uma tradição muito consolidada ligada também à transmissão do saber, ligada a uma verdade que seria localizada na História da Filosofia [...]. Então Deleuze ajuda a quebrar um pouco com isso, [...] ensino da filosofia como uma transmissão do saber (Kohan, 2011). Kohan recorre ao conceito deleuzeano de devir-criança, que tem a ver com um encontro em linha de fuga, com um tempo não cronológico, com a realidade molecular, com a potência que habita o acontecimento. Assim, então, Kohan vê “o ensino da filosofia como uma possibilidade de devir-criança [...], ou seja, de ter uma experiência, de ter uma possibilidade de um pensamento, de um bloco de pensamento que fuja um pouco do controle, do normal, do que deve ser pensado, do pensamento dominante” (2011). 289 Quanto à relação ensino/aprendizagem, Kohan diz que Deleuze o ajudou a dissociar o ensinar do aprender, principalmente com o que ele fala sobre aprender em Diferença e repetição. A tendência predominante indica que “se uma pessoa aprende é porque outra lhe ensina, e que se ensina para que o outro aprenda, e que se aprende de alguém, e que se ensina para alguém” (Kohan, 2011). Para Kohan, acontece o inverso, “não aprendemos nada com quem pretende que aprendamos dele, com quem pretende ser um modelo” (Kohan, 2011). Dessa forma, ensinar não é doação e aprender não é recebimento passivo, mas sim um ato conjunto: Na verdade, aprendemos sempre com alguém, mas nunca de alguém e aprendemos quando podemos outorgar sentido e significado, aquilo que chama, aquilo que comove o nosso pensamento, que pode ser involuntário, que não podemos controlar. De modo que aprender tem muito a ver com sensibilidade e aprender filosofia também é um ato de sensibilidade, pensar é um ato de sensibilidade, isso Deleuze me ajudou a pensar (Kohan, 2011). A terceira questão que tem norteado as pesquisas de Kohan e também tem recebido forte inspiração deleuziana é relativa ao ensino de filosofia para crianças. Essa investigação começou com os estudos que fez com Lipman, do qual se afastou posteriormente, ao tomar alguns conceitos deleuzeanos para pensar a infância. Para Kohan, sob a inspiração deleuzeana, a criança deixa de ser um ser em miniatura, um ser humano em desenvolvimento que estaria em uma certa etapa, na qual ela ainda não seria capaz de desenvolver certas habilidades e capacidades: “Pegando essa inspiração, eu diria que, no caso do ensino de filosofia com crianças, que eu trabalho e gosto muito de trabalhar na formação de professores, na própria experiência, Deleuze tem sido um inspirador em muitos sentidos” (Kohan, 2011). Um conceito deleuzeano que subsidia toda essa inspiração é o conceito devircriança, afirma Kohan (2011), que “não está associado especificamente às crianças ou a uma idade cronológica, mas ele tem me servido também para descronologizar a infância, ou seja, para tirar a infância da fase cronológica”. Assim, o importante não é a criança e nem a sua idade, mas a infância como experiência e acontecimento. Na esfera do ensino de Filosofia para criança, Kohan se reconhece um devedor de Lipman, foi com quem conheceu a temática e a quem seguiu até certa altura, passando depois a questionar com o aparato teórico deleuzeano: 290 Deleuze tem me ajudado a criticar Lipman, digamos assim, na concepção de filosofia de Lipman, que é uma concepção pragmatista e que pressupõe uma ideia do pensamento muito calcada no que Deleuze diria “mundo da representação”, uma imagem dogmática do pensamento, na moral, uma ideia forte de que pensar é pensar bem. Lipman fala inclusive do bom pensador, fala do pensamento do homem superior, fala do bom pensar. [...] a imagem moral do pensamento, a ideia de que é a boa vontade que pensa, que leva o pensador à verdade. [...]. Então, eu diria que Deleuze tem sido importante, sobretudo, nessa ideia do que significa pensar e que está na base da filosofia de Lipman (Kohan, 2011). Contudo, toda a crítica que desenvolveu sobre o trabalho de Lipman não destitui também o reconhecimento de Kohan aos méritos, importância e ineditismo do pensador norte americano, que muito contribuiu para o redimensionamento da Filosofia não ser simplesmente História da Filosofia; a Filosofia da Educação não ser só transmissão de conhecimento, mas uma prática filosófica; a criança poder aprender a filosofar; e a necessidade da Filosofia ser criança. Por tudo isso, a ideia da criança poder fazer Filosofia é extremamente positiva, diz Kohan: [...] ou seja, de que o mundo da filosofia está aberto para a criança. Isso é interessante porque não é só que as crianças precisam da filosofia, a filosofia precisa das crianças também, ou melhor, não só a infância precisa da filosofia, a filosofia também precisa da infância porque a filosofia é uma senhora velha, já está cansada, já pensa muito repetidamente e a infância pode interromper esse pensamento, pode gerar condições para um novo pensar (Kohan, 2011). Da mesma forma, Ranciére, outro filósofo francês contemporâneo, também influenciou muito o trabalho de Kohan, com o livro O mestre ignorante, “que ajuda também a problematizar a posição daquele que ensina e daquele que ensina filosofia” (Kohan, 2011). Essa problematização, a partir de Ranciére, é muito expressiva na obra de Kohan e se estende e contamina seus questionamentos sobre o ensino de filosofia, a relação ensino/aprendizagem e o ensino de filosofia para crianças. Vertentes essas de suma importância na composição de suas reflexões no âmbito da Filosofia da Educação Dentre a grande produção bibliográfica de Walter Kohan, optamos por fazer aqui a exposição de três artigos que são significativos para os propósitos da nossa investigação, qual seja, a influência deleuziana na Filosofia da Educação no Brasil, por deixarem bem explícitos a recepção de Deleuze para novos pensamentos sobre a educação, a partir de uma Filosofia que não tenha mais o seu aporte na representação. Um artigo se reporta explicitamente à Deleuze, e os outros dois se baseiam em 291 Ranciére, também um pensador que foge aos moldes do pensamento representacionista, principalmente no seu questionamento sobre a emancipação nos moldes iluministas. Os artigos são: “Entre Deleuze e a educação: notas para uma política do pensamento”, de 2002; “Três lições de Filosofia da Educação”, de 2003; “O ensino da Filosofia e a questão da emancipação”, de 2010. Como já foi aludido anteriormente, o artigo “Entre Deleuze e a educação: notas para uma política do pensamento” também tem sua importância histórica por ter composto o Dossiê Gilles Deleuze, que mostrou a inovação da abordagem do pensamento deleuzeano e a educação no início do século XXI, em terras brasileiras. É pertinente começar a exposição desse artigo pela sua nota final de esclarecimento, na qual Kohan se refere à ajuda de Tomaz Tadeu da Silva na correção do português, bem como a declaração de que esse escrito é um encontro com Deleuze e uma busca/roubo de estilo a partir/de Deleuze. Esses dois fatos, aparentemente banais, são na verdade constitutivos de dois fatos importantes. Primeiro, comprova, desde então, a proximidade de pessoas que já trabalhavam essa intercessão entre educação e Filosofia e que, durante muito tempo, continuaram a produzir juntas e com outras tantas pessoas. Não como um grupo fechado, articulado e sistêmico, mas como cúmplices nos agenciamentos deleuzeanos sobre/com a educação. Ou seja, não constituíam um grupo fechado, mas também não eram individualidades solitárias. Segundo, Kohan deixa transparecer que há uma proximidade inaugural de sua parte, com relação ao universo conceitual deleuzeano, inclusive na busca de pensar a realidade educacional nos moldes deleuzeanos, ou seja, não pensar a partir de, mas no estilo deleuzeano. O que o próprio Deleuze chama de roubo, e Kohan assume ao se referir ao próprio texto: “Faz parte da busca de um estilo. Mais um roubo: na busca de um estilo, melhor ser varredor do que juiz” (Kohan, 2002, p. 130). O objetivo do artigo é, como o próprio título indica, discutir o que está entre Deleuze e a educação. Ou seja, não se trata de estabelecer fronteiras para um ou outro, mas falar do que diz respeito aos dois. De um lado, o acontecimento do pensamento filosófico Deleuze, “força vital na filosofia contemporânea”; do outro lado, a educação e seu “dispositivo de práticas discursivas e não discursivas”. A pergunta, então, é: o que existe ou pode existir nesses dois diferentes territórios? Kohan responde: 292 O assunto que nos interessa está entre Deleuze e a educação. Não vamos sintetizar algo assim como o pensamento educacional de Deleuze não apenas porque não há tal pensamento, mas, sobretudo, porque não nos interessa retratar o pensamento de Deleuze sob qualquer aspecto, como se ele fosse alguma coisa que estivesse pronta, aguardando nosso olhar sintetizador. Isto faz parte [...] de um vício advindo de uma certa imagem de pensar: a mania pela recognição e pela representação, em parte pelas mesmas razões também não buscamos “o verdadeiro Deleuze para educadores”, nem vamos analisar as eventuais implicações educacionais ou pedagógicas do pensamento de Deleuze. Também não faremos uma prática comum na pesquisa educacional: pegar algumas ideias ou categorias do pensamento de Deleuze e explorar sua produtividade em educação, valendo-nos delas para fundamentar ou sustentar uma “nova” teoria sobre a educação. Seria exageradamente anti-deleuziano” (Kohan, 2002, p. 124). Trata-se, portanto, de buscar um devir Deleuze da figura do educador e não imitar ou copiar um suposto modelo Deleuze, pois o devir é captura e movimento e não busca do que está pretensamente acabado e esperando no final. Assim, Há educadores que encontram o acontecimento Deleuze de pensar e já não podem pensar como pensavam, educar como educavam, ser como eram. Este é um sentido importante e ambicioso desta escrita: transformar o modo em que pensamos, educamos e somos os que a produzimos e lemos (Kohan, 2002, p. 125). Kohan lembra que, para Deleuze e Guattari, o âmbito das possibilidades dessas transformações é a política, pois antes do ser se encontra a política, que é a gênese do pensamento e da filosofia. Contudo, não se trata simplesmente da política que favorece a vontade de poder das maiorias que, por sua vez, negam a singularidade. Trata-se sim do pensamento político que se preocupa em: “Como destacar os devires minoritários sem modelos e as linhas de fuga do controle contínuo e da comunidade instantânea? Como suscitar acontecimentos que escapem ao controle? Como resistir de forma afirmativa, sem renunciar à diferença?” (Kohan, 2002, p. 125). Nesse sentido, a política minoritária de Deleuze e Guattari está em sintonia com a ontologia deleuziana do empirismo transcendental. Neste empirismo reina a experimentação e a negação da transcendência e suas formas de dualismo sujeito-objeto, ou seja, reina a imanência. Assim, a política e a ontologia deleuzeanas são do âmbito da imanência, na qual há a recusa do imobilismo e do moralismo (Cf. Kohan, 2002, p. 125): A imanência é uma vida para além do bem e do mal. A vida significa potência, movimento e o artigo indefinido é a marca do que é, a uma só vez, impessoal e singular. O indefinido sinaliza uma vida qualquer 293 e, no entanto, esta e nenhuma outra vida: a indeterminação individual e a determinação singular. Uma vida imanente e móbil, cheia de acontecimentos, singularidades também em movimento, que atravessam os indivíduos. A ontologia tem mais afinidade com a geografia do que com a história. É mais uma questão de mapas, deslocamentos, regiões, territórios, segmentos e linhas do que de cronologia (Kohan, 2002, pp. 125-126). Para Kohan, a educação, da forma como tem sido pensada e realizada, não habita essa ontologia deleuziana da imanência, que se caracteriza pelo movimento, pelo singular não individual, pela potência e pelo acontecimento. Muito pelo contrário, a educação é o mundo das transcendências e dos indivíduos: A educação é também a casa do ruim e do bom, permanentemente preocupada em saber se contribui para um mundo melhor ou pior. A educação supõe e afirma uma ontologia moralizante, transcendental, individual. Ela é a negação da vida singular, do acontecimento, da potência. A educação obtura os acontecimentos. É o reino dos dualismos, dos modelos, das disciplinas, do controle (Kohan, 2002, p. 126). A ontologia deleuziana da imanência, por sua vez, ao afirmar uma vida de singularidade e de acontecimentos, está afirmando o pensamento da diferença em si mesma, e se opondo à imagem do pensamento dual da representação. A diferença em si mesma não se compara às coisas, é a diferença enquanto tal: “Significa pensar a diferença como acontecimento do pensar, como aquilo instaurado por um pensamento indócil, potente, singular” (Kohan, 2002, p. 126). Contudo, o pensamento da diferença só será possível se demolirmos a nossa forma tradicional de pensar a partir da representação e criarmos linhas de fuga nessa imagem do pensamento representacional. Kohan afirma que, conforme Deleuze, a história do pensamento ocidental é a história da negação do próprio pensamento, sendo a Filosofia a campeã dessa negação: A filosofia ocidental tem o pressuposto de uma imagem moral, implícita, nunca declarada, segundo a qual o pensamento tem uma boa natureza e o pensador uma boa vontade. Vocês devem se lembrar do início da Metafísica de Aristóteles: “todos os homens desejam, por natureza, saber” ou então o início do Discurso do Método de Descartes: “o bom senso é a coisa mais bem partilhada do mundo”. A filosofia não pode pensar porque pensa esses inícios como sendo sem moral, sem verdade, sem política, como sendo inícios puros. O pensar filosófico, já Nietzsche o repetia insistentemente, está baseado numa moral escondida (Kohan, 2002, p. 126). 294 A impossibilidade do pensamento da diferença como um pensamento que de fato pensa se encontra no modelo representacional da recognição, unidade de sujeito-objeto, ao qual estamos escravizados. Assim, pensar a partir da recognição só é possível “pensar o reconhecível ou o reconhecido e pensar deveras é pensar a diferença livre, a diferença sem sujeitos e objetos, o novo, a intensidade como pura diferença, o que não pode ser reconhecido nem reconhecível, num universo da unidade de sujeitos e objetos” (Kohan, 2002, p. 127). Para melhor compreender a impossibilidade de pensar o novo a partir da recognição, Kohan remete a um trecho de Heráclito que podemos assim resumir: se se espera encontrar sempre o que se espera encontrar, sempre se encontrará o que se espera encontrar, portanto é preciso esperar encontrar o que não se espera encontrar para encontrar o inesperado, o novo, a diferença. Em Heráclito as frases têm essa forma impessoal, pois remetem à singularidade e não à pessoalidade, tal como o acontecimento. Kohan, baseado em Deleuze, chama atenção ainda a essa imagem naturalizada do pensamento da representação presente desde os primórdios da Filosofia no pensamento de Platão e Aristóteles, juntamente com a negação da diferença, através de sua subordinação ao Mesmo e à verdade como sendo a concordância entre sujeito e objeto, em um exercício de racionalismo: [...] a verdade é entendida como adequação e não como produção; o sentido é considerado um assunto psicológico ou um formalismo lógico e não uma condição de possibilidade da produção da verdade; os problemas estão calcados nas proposições e reduzidos às soluções que podem ser propostas; as perguntas são limitadas às respostas esperáveis ou prováveis (Kohan, 2002, p. 127). Inversamente, “o pensar não está dado e há que produzi-lo” (Kohan, 2002, p. 127). Fomos habituados a pensar sob essa forma representacional como se ela fosse algo natural. Na verdade não pensamos porque temos uma boa vontade de pensar ou porque temos uma boa natureza, mas sim porque “pensar é um exercício ocasional, genital, advindo de um desgarramento vital inaceitável e com aquela imagem préfilosófica é impossível que possa emergir o pensar porque é impossível desgarrar-se” (Kohan, 2002, p. 127). Por isso, é necessário pensar sem a imagem dogmática da representação, pois pensar é pensar na imanência e na/a diferença, experimentando, problematizando, inventando planos sempre mutantes. É por isso que 295 [...] a filosofia, tida como mãe do saber, pressupõe uma imagem dogmática do pensamento que inviabiliza o pensar. Coitada da filosofia, colocada como guardiã do pensamento, juíza do que os outros pensam, tribunal da doxa e da razão puras: ela não pode pensar. A filosofia, “o pensar sobre o próprio pensar”, não pensa. E não apenas não pensa; ela impede que as pessoas pensem. Paradoxo? Contradição? O que resta aos outros saberes senão a reprodução de uma imagem e a negação do pensamento? (Kohan, 2002, p. 128). A educação, por seguir essa imagem de pensamento, não pensa e se nega a pensar. No universo educacional, tanto prática como teoricamente, há uma pressuposição da imagem do pensamento representacional como sendo a única e verdadeira forma de pensar e a partir daí a negação do pensamento da diferença, do novo. Pois se não se pensar daquela forma, haverá o medo de não se encontrar a verdade e, dessa forma, não contribuir para um mundo melhor, medo “de surpreendermo-nos num não-lugar. De perguntar o que não pode ser respondido. De responder o que não foi perguntado” (Kohan, 2002, p. 128). A educação também está inserida naquela forma de fazer política que favorece a vontade de poder das maiorias e que nega as singularidades. Ambas, educação e política, seguem a mesma imagem representacional do pensamento. A política buscando formar cidadãos conscientes que não ultrapassam os limites do capital e a educação tentando formar homens e mulheres conscientes que acabam somente se submetendo às necessidades de mão-de-obra específica para o mercado de trabalho (Cf. Kohan, 2002, p. 128). Kohan finaliza esse texto reiterando que diante dessas formas de política, ontologia e educação, pautadas na imagem dogmática do pensamento, a relação ensinar/aprender tende a seguir o mesmo caminho da representação. E assim, só há um não aprender: Como alguém poderia aprender num mundo onde o controle se impõe sobre a vida, o singular é visto como ameaça e a diferença está presa ao mesmo e ao semelhante, ao análogo e ao oposto? Ninguém aprende deveras se não pode ser sede de um encontro com aquilo que o força a pensar. Quem pode aprender quando se determina de antemão que há as boas e más aprendizagens? Pensa-se que a aprendizagem se dá na reprodução do mesmo ou na relação da representação e da ação, na reunião da “teoria e da práxis”, como se diz habitualmente. Assim, a aprendizagem fica presa na unidade dual do sujeito e do objeto, no modelo da democracia não democrática. Mas não há aprendizagem se há reprodução do mesmo, se não há espaço para a repetição complexa e a diferença livre (Kohan, 2002, p. 129). 296 Enfim, se só sabemos pensar pela representação, não sabemos pensar. Como não sabemos pensar, também não sabemos nem ensinar e nem aprender. Os que ensinam pensam que ensinar é somente explicar e os que aprendem pensam que aprender é reproduzir o que foi explicado, naquela perspectiva de que só se vai encontrar o que era esperado. Contudo, afirma Kohan, inspirado em e roubando Deleuze, “o aprender está no meio do saber e do não saber. No meio. Para aprender há que se mover entre um e outro, sem ficar parado em nenhum dos dois” (Kohan, 2002, p. 129). Talvez seja isso também que ocorra nessa relação entre Deleuze e educação, concluo, roubando, deleuzianamente, Kohan. Nos outros dois artigos de Kohan a serem examinados aqui, há uma prevalência do referencial teórico de Ranciére, principalmente com o livro O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Mas, como compreender a escolha desses dois textos para comporem a presente análise que se refere à influência deleuziana? A hipótese é que Kohan desenvolveu e ampliou suas análises deleuzianas referentes a diversos temas, saber/aprendizagem, devir-criança e outros, com a inspiração de Ranciére. É como se o pensamento desse outro filósofo francês contemporâneo possibilitasse que aquelas análises se desdobrassem e se potencializassem. No artigo “Três lições de Filosofia da Educação”, de 2003, Kohan pensa o valor do livro O mestre ignorante, de autoria de Jacques Rancière, em contraposição à forma dominante de se fazer filosofia da educação no Brasil. Ele analisa esse livro como um possível exercício filosófico alternativo para se pensar filosoficamente a educação. Segundo Kohan, nos países hispano-americanos, a filosofia da educação é marginalizada nos departamentos de Filosofia, acolhida nos de Educação, obrigatória na formação dos professores e tem a predominância de três modos de ensinar: enciclopédico, totalizador e fundacionista. O repertório presente nesses modos de ensinar é praticamente invariável: [...] aqui, a história das ideias filosóficas sobre a educação; lá, correntes do pensamento filosófico sobre a educação; ou, então, o estudo das divisões mais ou menos claras do saber pedagógico, segundo orientações bastante clássicas do conhecimento filosófico: um pouco de epistemologia, outro tanto de axiologia e de ontologia, usadas para explicar o fenômeno educativo (Kohan, 2003, p. 222). O professor é sempre do tipo “mestre explicador” oferecendo ou impondo “um saber filosófico, histórico ou sistemático sobre a educação” (Idem). De outra forma, 297 essa explicação poderá se constituir de uma “doutrinação educativa” de base moralista, subsidiando crenças, valores e ideais que deverão ser seguido. Kohan alerta que essas formas de ensinar filosofia da educação estão calcadas em “alguns pressupostos sobre o significado e sentido de ensinar e aprender a filosofia, assim como suas relações com a educação” (Idem). Ou seja, na base da filosofia da educação e no seu ensino está uma forma de pensar e ensinar a filosofia, como repasse de um saber instituído para a formação de: uma consciência crítica do fenômeno educacional; uma compreensão “verdadeira” da missão da filosofia na educação; e aquisição de habilidades e competências de pensamento crítico para o futuro exercício de professor (Cf. Kohan, 2003, p. 222). O livro O mestre ignorante vem exatamente no contra fluxo dessa tradição. A obra fala essencialmente de um professor, Jacotot, que teria tido enorme sucesso ao fazer os alunos aprenderem o que ele não sabia ensinar46. É uma obra que, dentre outras questões: põe a Filosofia da Educação tradicional pelo avesso; suscita inúmeros questionamentos aos que ensinam; desnaturaliza certos procedimentos pedagógicos; indaga sobre a verdadeira possibilidade da transmissão do saber e, o mais importante, pergunta sobre o que é, efetivamente, emancipação intelectual e seu legítimo agente. Rancière nos faz refletir sobre o que é ser, de fato, mestre. O que pretendemos de nós mesmos e de outros quando compartilhamos a máscara do magistério? Será que sabemos o que ensinamos ou para quem ensinamos ou para quê ensinamos? Temos uma ignorância mentirosa ou uma sabedoria arrogante? Que poder é esse que permite ensinar, avaliar, aprovar e reprovar? Ensinamos exatamente porque não sabemos e por isso a ignorância é necessária para ensinar? Todos esses questionamentos e posições inusitados que compõem o livro, no contexto da tradição do ensino da filosofia, da filosofia da educação e do ensino em geral encontrarão muitas resistências. Sem contar com o estilo literário da obra, para o qual a academia torce o nariz. Contudo, à revelia dessas dificuldades, Kohan se propõe a: investigar em que medida a leitura de O mestre ignorante pode ser uma experiência formativa 46 “O retorno dos Bourbons à França obriga Jacotot a se exilar e, a convite do rei dos Países Baixos, vai dar aulas de literatura na Universidade de Louvain. Ali se enfrenta de saída com sua estrangeiridade: seus alunos falam uma língua que ele desconhece (holandês), e desconhecem a língua que Jacotot fala (francês). Não estão dadas as condições da comunicação, não há língua em comum. O professor não pode ensinar; os alunos não podem aprender [...]. [...] Jacotot encontra a coisa comum numa edição bilíngue” (Kohan, 2007, p. 41). 298 interessante, principalmente para os que ensinam ou estão se preparando para ensinar; problematizar o modo habitual de se entender a filosofia da educação, particularmente nas instituições universitárias; e, questionar o tipo de exercício de pensamento que se encontra por trás da questão disciplinar: Assim, considero que um dos principais méritos da obra que Jacques Rancière dedicou à matéria está na graça e na vitalidade com que propõe uma forma renovadora de exercer a filosofia da educação. Nada mais, enfim, do que um exercício. Pensamento vivo e em ato. Nada de esquemas, classificações, generalizações. Filosofia em ato, experiência de interrogação, irrenunciável, sobre a própria experiência (Kohan, 2003, p. 123). Dessa forma, pode-se asseverar que um dos elementos importantes dessa experiência formativa, propiciada pelo O mestre ignorante, é a ideia de que emancipar é “forçar uma capacidade ignorada ou negada a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento” (Kohan, 2003, p. 124). Ou seja, ninguém emancipa ninguém, o professor não emancipa, pois ele nada ensina. Cada um se emancipa sozinho. Isso pressupõe uma igualdade das inteligências no ponto de partida do processo ensino/aprendizagem, pois ensinar algo a alguém pressupõe uma desigualdade de inteligências. Um ensina para que o outro aprenda e fique nas mesmas condições de inteligência que o outro que ensinou. Esse ensino, pautado na desigualdade das inteligências, pressupõe uma forma predominante de ensinar que é a explicação: Somos formados para explicar o que aprendamos (a desigualdade). Fomos explicados e, assim, explicamos. Acentuamos a desigualdade. Voltamos a explicar. Tudo, então, continua como dantes: não podemos, claro, sair do círculo do embrutecimento. Seguimos explicando. Pela vida. Embrutecemos. Nos embrutecemos (Kohan, 2003, p. 224). Kohan alerta para o fato de que a proposta de Rancière não é a de oferecer uma receita, um método ou um convite para radicalizar as suas atividades cotidianas no ofício de ensinar, mas vai no sentido de sensibilizar para os embrutecimentos que causamos com o nosso modo de ensinar, de questionar as nossas ideias de emancipação como dádiva ou doação, de rever nossas práticas e nossas teorias. Esses questionamentos valem também para o ensino da filosofia da educação que, diversamente dos moldes tradicionais, terá que se pautar em outras formas de ensino: Desse modo, a filosofia da educação se faz exercício que não explica, não legitima, não consolida. Escapa à tentação de constituir-se como lei e como verdade. Pelo contrário: dessacraliza, polemiza, interroga. 299 Impede que ensinemos da forma como ensinávamos, que pensemos a educação da forma como a pensávamos, que sejamos os mesmos educadores que éramos. Permite-nos pensar, ser e ensinar de outro modo (Kohan, 2003, p. 225). Nessa nova modalidade de exercício da filosofia da educação está pressuposto o princípio da igualdade, que se contrapõe à tradicional, pautada na lógica da superioridade-inferioridade, do ensinar-aprender. Assim, a igualdade como princípio e não como objetivo, pois a desigualdade como objetivo pressupõe a desigualdade, “permite pensar filosoficamente a educação; mas é também aquilo sem o que não se pode pensar a educação como tal. A igualdade é o axioma do pensamento, seu fundo, o não-filosófico que abre espaço para a filosofia. Paradoxo da igualdade” (Kohan, 2003, p. 226). Essas considerações, nos alerta Kohan, podem levar a pensar em Sócrates como uma figura emblemática do mestre ignorante, mas essa ideia é falsa para Rancière: o filósofo grego teria partido da igualdade como objetivo e pressupondo, portanto, uma desigualdade que, por sua vez, só seria resolvida quando o seu interlocutor chegasse ao nível de conhecimento dele próprio. Com o seu método, Sócrates teria reafirmado a inferioridade e a superioridade, a ignorância do interlocutor e a inteligência superior dele mesmo: “Sócrates não é um mestre ignorante; é um sábio mestre de sua ignorância. Pretende impor, como todos os mestres da tradição, seu saber aos demais. O modo como Sócrates oculta o caráter embrutecedor de seu saber o torna mais sofisticado e dissimulado. E, portanto, mais perigoso” (Kohan, 2003, p. 226). O perigo presente na dissimulação de Sócrates está em que ele “esconde sua paixão embrutecedora debaixo de uma aparência libertadora” (Kohan, 2003, p. 227). Ele não possibilita a emancipação, ele embrutece, pois além de não possibilitar que essa emancipação seja realizada pelo próprio aprendiz, ainda conduz o saber para aquilo que ele sabe. Sempre pergunta sobre o que ele sabe e que todos deveriam saber (Cf. Kohan, 2003, p. 227). Assim, Kohan conclui seu texto remetendo ao título “Três lições de filosofia da educação”, que seriam as que seguem. A primeira lição do mestre ignorante é filosófica: “o mais natural, evidente e aceito pedagógica e socialmente acaba por se mostrar o mais problemático filosoficamente” (Kohan, 2003, p. 227). Ou seja, só pode ensinar quem nada tem a ensinar, pois ensinar não quer dizer transmitir, mas sim permitir que o outro se emancipe. 300 A segunda lição do mestre ignorante é educacional: “somente pelo paradoxo, entranhados no lodo paradoxal, podemos encontrar algum sentido na educação” (Kohan, 2003, p. 227). Ou seja, Jacotot se emancipou a si próprio como mestre ao se libertar da ideia de método de ensino e, dessa forma, ensina que não há método, que a emancipação não depende de conteúdo, doutrina ou conhecimento e que ninguém pode emancipar ninguém. Tudo isso se potencializa quando Ranciére, como mestre, relata a história de outro mestre para que outros mestres a leiam e tenham a possibilidade de, paradoxalmente, se emanciparem tendo a igualdade como princípio. A terceira lição do mestre ignorante é política: “só há uma única educação que vale a pena – a que emancipa (sem emancipar). Quem não deixa que os (as) outros (as) se emancipem, embrutece” (Kohan, 2003, p. 228). Ou seja, educação emancipatória é realizada pelo próprio aprendiz e não recebida como doação ou direcionamento. O terceiro e último artigo de Walter Kohan a ser examinado é “O ensino da Filosofia e a questão da emancipação” 47, de 2010. Tendo em vista a volta do ensino de filosofia no Ensino Médio no Brasil e a sua ideia de que a filosofia conduz à emancipação, nesse artigo Kohan retoma o livro O mestre ignorante de Ranciére para contrapor sua ideia de emancipação à ideia de emancipação presente no livro Educação e emancipação de Adorno, que tem expressivo aporte nas ideias kantianas de Esclarecimento, menoridade e tutela. O livro de Adorno, muito difundido no Brasil, se propõe a “pensar como a educação pode contribuir para a formação de uma verdadeira democracia; e como ela pode ajudar a desterrar o nazismo da sociedade alemã. Para isso, Adorno remonta até Kant o apelo por uma educação emancipadora” (Kohan, 2010, p. 204). Para Adorno, a luta pela democracia deve ser acompanhada do exercício do pensamento pela livre 47 Antes de iniciar a exposição da estratégia argumentativa de Kohan é importante ressaltar que o artigo em questão compõe a Coleção Explorando o Ensino do MEC, material do governo distribuído gratuitamente pelas escolas de Ensino Médio. Essa informação não teria nenhum interesse particular se o artigo não defendesse, nos moldes do mestre ignorante de Ranciére, exatamente o inverso da tradição filosófica. Ou seja, a filosofia da diferença presente no escrito de Kohan está presente também em um livro oficial, que compõe todo o dispositivo e aparato de poder do Estado. É, no mínimo, intrigante observar a forma como as matrizes filosóficas mais à margem vão se disseminando pelas Instituições oficiais, principalmente por aquelas combatidas por elas próprias. Seria o caso de examinar as consequências positivas e negativas desse movimento. Contudo, aqui não é o lugar e nem a hora para esse exercício analítico, apesar de merecer a lembrança dessa intercessão territorializante (ou desterritorializante?). Seriam linhas de fuga a acontecerem na educação maior? Lembramos que compondo essa coleção também se encontra um texto de Silvio Gallo, sobre o qual nos deteremos mais adiante. 301 vontade dos cidadãos, que quando não exercem seu próprio entendimento e passam a ser tutelados correm o risco de serem conduzidos à barbárie, que pode ser evitada por uma educação emancipadora (Cf. Kohan, 2010, p. 204). Para Adorno, a educação exerce papel fundamental na formação da reflexão crítica, da autonomia, da resistência e da autodeterminação. Dessa forma, o nazismo aconteceu porque os alemães não tinham consciência crítica do que estava ocorrendo e o fracasso do século XX não pôde ser combatido a tempo. Daí, “a importância singular da educação em geral e do ensino de filosofia em particular: é só através de um longo e trabalhoso processo de formação que se pode reverter essas tendências” (Kohan, 2010, p. 205). Dessa forma, a emancipação política só se realiza se houver uma educação política expressiva. Assim, para Adorno, a educação forma uma consciência crítica, soberana e verdadeira que, uma vez emancipada, “não poderia escolher o que ela tem escolhido sob as formas da alienação: o massacre, o horror, o holocausto, a própria ausência de razão” (Kohan, 2010, p. 206). O paradoxo dessa missão educacional está nas imposições que ela própria sofre vindas do Capital, pois como realizar nessas condições práticas a verdade emancipatória propiciadas pela educação? Contudo, Adorno confia na potencialidade de uma educação emancipatória: “a educação é um caminho necessário, imprescindível, para a emancipação individual e social. [...] uma educação que permita a emancipação individual, através da formação crítica, é a condição e o caminho mais sólido para a emancipação social” (Kohan, 2010, p. 207). Contudo, se para Adorno a educação é uma ato político emancipatório, para Ranciére o professor não pode emancipar. Dessa forma, Kohan contrapõe a ideia de emancipação adorniana à ideia de emancipação presente no livro de Ranciére, O mestre ignorante, que de fato se distancia fortemente daquela presente no livro Educação e Emancipação: Se o filósofo frankfurtiano considera a educação indispensável para alcançar a emancipação, para Ranciére, a emancipação não é de modo algum institucionalizável. Se a educação bem entendida leva, para Adorno, à emancipação, para Ranciére não há ordem pedagógica que emancipe na medida em que toda ordem pedagógica nega o que a emancipação exige (Kohan, 2010, p. 207). Como visto no artigo anteriormente examinado, para Ranciére/Jacotot a igualdade das inteligências permite que a emancipação seja realizada pela revelação da inteligência a ela mesma. O inverso disso, uma inteligência conduzindo outra, é 302 embrutecimento ao invés de emancipação. Da mesma forma, toda ordem social pressupõe desigualdade e, por isso, não há instituição ou institucionalização possível da emancipação: “toda instituição é uma encenação da desigualdade; a ideia de um professor emancipador é contraditória; professor e emancipador seguem lógicas desencontradas” (Kohan, 2010, p. 208). Kohan pondera que mesmo Adorno e Ranciére sendo críticos do capitalismo, há divergências teóricas entre as duas posições, principalmente no que diz respeito à educação institucionalizada como sendo emancipadora: [...] na medida em que para Ranciére toda ordem social pressupõe a desigualdade das inteligências, não há instituição justa ou utopia por implantar; assim, mesmo que a emancipação afirmada por Ranciére é apenas uma dimensão da emancipação postulada por Adorno, não há como realizá-la; não há saber que emancipe; não há ordem social que instaure a igualdade das inteligências; a igualdade só pode ser um princípio a ser verificado e não um objetivo a ser atingido; quem busca instituir a igualdade legitima a desigualdade que seu próprio saber pressupõe e da qual esse programa se alimenta. Não há progresso social nem ordem institucional. A igualdade só poderia ser um axioma ou princípio de uma emancipação de indivíduo a indivíduo, de inteligência a inteligência (Kohan, 2010, p. 208). Dessa forma, o mestre ignorante “não se oferece como guia do aluno, mas apenas busca que outra vontade, distraída, exerça sua própria inteligência” (Kohan, 2010, p. 208); não pretende conscientizar para emancipar; não explica um saber que seja emancipador. O mestre ignorante é emancipador quando “ignora aquilo que ensina, mas, sobretudo, porque ignora a desigualdade das inteligências dominante em toda ordem social. Ele nada quer saber e nada tem a ver com essa desigualdade” (Kohan, 2010, p. 208). Contudo, para Ranciére, se a emancipação tem a ver com a igualdade, o problema é que nunca se realizam juntas na realidade social. Ou se constrói uma sociedade desigual com homens iguais, ou uma sociedade igual com homens desiguais. Assim sendo, “a emancipação não vai além de uma relação de indivíduo a indivíduo: não há nem pode haver, em O mestre ignorante, um projeto educativo emancipador” (Kohan, 2010, p. 209). Dessa forma, a política é um mero sonho, incapaz de realizar a emancipação, porém, paradoxalmente, “mesmo irrealizável, a emancipação é também impostergável: sempre é momento para a emancipação intelectual, para afirmar outra razão que a dominante, uma lógica do pensamento que não é a da desigualdade” (Ranciére apud Kohan, 2010, p. 209). 303 Assim, o grande paradoxo de O Mestre ignorante é que, mesmo sabedores da impossibilidade de realização social da emancipação, continuamos lutando por ela, pois, nesse sentido, “a emancipação é tão impossível quanto necessária; tão intempestiva quanto atual; tão inútil quanto profícua” (Kohan, 2010, p. 209). Para Kohan, essas questões trazem possibilidades riquíssimas que permitem também pensar o ensino de filosofia, e lança duas questões muito importantes: “Na base dos mais sofisticados e nobres projetos de emancipação filosófica não estaria uma opinião ou princípio que torna toda e qualquer emancipação uma quimera?” (Kohan, 2010, p. 210). Ou ainda: “As formas dominantes de pensar os alcances políticos do ensino de filosofia não estariam comprometidas pela reprodução da desigualdade que carregariam na lógica da instituição escolar?” (Kohan, 2010, p. 210). Assim, a partir das questões emancipatórias de Adorno e de Ranciére, é fundamental pensarmos onde está imerso o discurso sobre o ensino de filosofia e as finalidades com as quais ele está sendo guiado, ou “em que medida ele é capaz de colocar em questão as relações dominantes entre escola e sociedade e os modos de relacionar certa distribuição do saber com os modos instituídos de exercer o poder” (Kohan, 2010, p. 212). Outro aspecto importante a ser considerado, seja a educação como emancipação ou a educação como ignorância, é relativo aos próprios professores de filosofia, pondera Kohan: Quiçá possamos olhar mais atentamente ao nexo entre filosofia, educação e emancipação; perceber que uma exigência filosófica e política para ser professor de filosofia é repensar permanentemente os pressupostos políticos e filosóficos de nossa prática. Não dá para transmitir ingenuamente um saber ou uma relação com o saber que não torne um problema a política e a filosofia que, implícita ou explicitamente, afirma-se ao ensinar (Kohan, 2010, p. 212). Há necessidade de problematizarmos o próprio campo da disciplina que, como foi analisado, padece de crença na igualdade como princípio e se repete sempre como explicativa, fundacionista, sistemática e histórica. Talvez uma primeira iniciativa, afirma Kohan, seria nos emanciparmos como mestres ignorantes e possibilitarmos, assim, a emancipação de outros. Talvez a volta do ensino de filosofia no Brasil traga uma nova possibilidade nesse sentido, tanto nos novos professores do Ensino Médio quanto nos seus alunos. 304 5. Sílvio Gallo: “educação menor” como aposta nas minorias e na possibilidade das diferenças Silvio Donizetti de Oliveira Gallo é livre docente pela Universidade Estadual de Campinas (2009), tem Mestrado (1990) e Doutorado (1993) em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Graduação em Filosofia (1986) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Atualmente é professor associado (MS-5) da UNICAMP. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Filosofia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia francesa contemporânea e educação, ensino de filosofia, ensino médio, filosofia e transversalidade, anarquismo e educação. Silvio Gallo tem mais de 50 artigos completos publicados em periódicos, mais de 20 livros publicados/organizados, mais de 50 capítulos de livros, uma expressiva participação em jornais, mais 150 apresentações de trabalhos, entre palestras, conferências e outros. Suas pesquisas iniciais enveredaram pelo anarquismo, depois por Foucault e Deleuze, sempre na perspectiva de relacionar essas filosofias com a educação. Em todos os seus escritos há uma preocupação com o aprofundamento do diálogo entre a Filosofia e a Educação, principalmente as filosofias de Foucault, Nietzsche e Deleuze e os conceitos diferença, poder, verdade, saber e suas intercessões no universo pedagógico. Para Sílvio Gallo (2011), o que o encanta em Deleuze é a busca de uma alternativa ao pensamento 48: Alternativa no sentido de que você tem um pensamento que se constrói como tradição, digamos assim, que o Deleuze vai chamar de pensamento da representação, de forma mais geral, e essa busca de um pensamento outro que a gente poderia caracterizar das mais diversas maneiras. Eu posso chamar de filosofia da diferença, por exemplo, dessa ênfase da diferença, mas poderíamos chamar de pósestruturalismo ou poderíamos chamar de qualquer outra coisa (Gallo, 2011). Para Gallo (2011), o campo educacional é fortemente marcado por esse pensamento tradicional da representação. Toda a teoria educacional é uma teoria 48 Entrevista de Sílvio Gallo concedida à autora em 2011. Vide anexo. 305 representacional e a Filosofia da Educação que se tem produzido no Brasil é também de natureza representacional e nos coloca também uma leitura representacional de mundo. O pensamento de Deleuze, então, é uma alternativa a isso, um convite para pensar de outro modo: pensar no múltiplo no lugar de pensar no uno. Um convite para, “mais do que pensar o múltiplo, vamos fazer o múltiplo, vamos fazer a multiplicidade” (Gallo, 2011). E essa atitude filosófica no âmbito da educação, é muito importante, dado que nesse âmbito predomina a visão tradicional. Contudo, conforme Gallo (2011), mais do que ser outro ponto de vista, a filosofia deleuzeana nos permite ver outros fenômenos que a filosofia da representação não possibilita, ou seja, nos permite pensar de outra forma, e daí ser interessante pensar a educação a partir dessa filosofia, inclusive a Filosofia da Educação, tentando sair do que Deleuze chama de a imagem dogmática do pensamento. As pesquisas na academia, e não só as pesquisas educacionais, sofrem essa mesma influência do pensamento da representação, da recognição, do pensamento dogmático e, por isso, o resultado delas é extremamente empobrecido: Especificamente na pós-graduação, em que todo mundo diz para os estudantes que você tem que ter um referencial teórico, que você tem que definir o seu referencial teórico e assim por diante: Fazer pesquisa é definir um referencial teórico e pensar segundo aquele referencial. Só que quando você pensa segundo aquele referencial, você não pensa, porque aquele referencial já te dá as respostas. Uma pesquisa em que você vai a campo, por exemplo, você não vai a campo para descobrir coisas, você vai a campo para comprovar aquilo que você já sabe. Você vai a campo para ver aquilo que você já sabe que você vai ver: “Tá vendo? A minha hipótese era essa, eu fui a campo e se confirmou a minha hipótese”, ou então “não se confirmou a minha hipótese”, mas dentro daquela perspectiva de pensamento (Gallo, 2011). Inversamente, para Deleuze, o convite é para que o pensamento aconteça como criação e não o pensamento como uma recognição. O pensamento deve levar “você a se encontrar com coisas inusitadas, você tem que pensar a partir dessas coisas inusitadas. Eu acho que em educação é justamente isso que falta. Em educação falta isso, na Filosofia da Educação falta isso, pensar o inusitado” (Gallo, 2011). Gallo lança mão do exemplo do imenso avanço na tecnologia, do aprendizado baseado na visualidade, diferente do que existia tempos atrás. Nesse âmbito, as coisas mudaram, mas nós não a ressignificamos: “Mas aí, a gente olha para isso e a gente faz o 306 quê? A gente se lamenta de um passado perdido, a gente quer recuperar, a gente acha que tudo isso é um problema porque, com isso, se perde coisas e a gente não vê o que a gente ganha com isso” (Gallo, 2011). No entanto, em uma situação como essa, Deleuze nos convida a pensar no que está acontecendo, a partir do que está se constituindo. Nesse sentido, o avanço tecnológico e a aprendizagem visual só se constituem como problemático porque a gente já não sabe ensinar nessa perspectiva: Então, como é que nós nos mobilizamos para ressignificar o ensino, para buscar novas formas de ensinar, para produzir outras teorias sobre isso, outro pensamento sobre isso e não ficar usando o pensamento da recognição, o pensamento do já pensado, o pensamento do já instituído para que ele leia esses fenômenos como aquilo que já foi colocado? (Gallo, 2011). Contudo, apesar da importância do pensamento da Diferença, alerta Gallo, é necessário ficar atento para que não o transformemos em uma nova recognição. E isso é muito fácil porque em Educação os modismos são muito fortes: “todo mundo vira deleuzeano, todo mundo vira foucaulteano, e transformam cada um deles em uma outra imagem de pensamento” (Gallo, 2011). Mas o que de fato se impõe na Filosofia da Diferença, se há um estudo consistente, é pensar o inusitado de forma diversa, é extrair ferramentas desse pensamento e não transformá-lo em “um novo pressuposto, um novo paradigma, um novo arcabouço daquilo que vai ser aplicado”. O que interessa é a possibilidade de pensar o novo de uma nova maneira de pensamento. Gallo (2011), ao fazer uma análise da Filosofia da Educação, além de constatar que essa área sofre da predominância do pensamento da representação, aponta também outras características. Considera, por exemplo, uma falta de conhecimento por parte da própria Filosofia, bem como um grave problema, o fato da Filosofia da Educação ser considerada como uma área menor no campo da Filosofia: [...] do meu ponto de vista, a Filosofia comete um equívoco sério quando diz que a Filosofia da Educação é uma outra coisa. Por quê? Porque deixa a Filosofia da Educação para os pedagogos, para os educadores. E os pedagogos, do meu ponto de vista, não tem competência teórica para fazer Filosofia da Educação, e isso não é diminuir o pedagogo. Do meu ponto de vista, você só faz Filosofia da Educação usando o instrumental filosófico para pensar a Educação. Um pedagogo, por formação, não tem acesso ao instrumental filosófico. Isso não significa que ele não possa ter, de repente o cara 307 estuda Pedagogia e estuda Filosofia. Não precisa fazer graduação em filosofia, não precisa ter carteirinha de filósofo se o cara domina o instrumental, mas a grande maioria não domina porque o curso não leva a esse [domínio] (Gallo, 2011). Contudo, conforme Gallo, para fazer Filosofia da Educação, o estudioso tem que conhecer Educação e Filosofia, tem que estar na confluência desses dois saberes: “vir de uma formação em Filosofia, mas se deixar afetar pelo campo educacional, ou vir do campo educacional, mas fazer todo um trabalho de apropriação do instrumental filosófico. Acho que aí você faz Filosofia da Educação” (Gallo, 2011). A Filosofia, ao invés de rejeitar a Filosofia da Educação, deveria acolhê-la melhor e cobrar esse rigor de sistematicidade da Filosofia da Educação. Infelizmente, não é essa perspectiva que se tem no Brasil e, por isso, é necessário que se lute contra ela, e a melhor maneira é “fazendo produções significativas no campo da Filosofia da Educação. Eu acho que é a única forma de lutar contra ela não é ficar fazendo discurso contra, é fazendo uma produção teórica consistente e de qualidade no campo da Filosofia da Educação” (Gallo, 2011). Para Gallo, as Associações de Filosofia de Educação que apareceram recentemente no Brasil ajudam a consolidar esse campo de investigação, como “uma forma de você começar a circunscrever o campo, a cuidar mais de campo, dar elementos para que essa produção mais consistente seja feita. Eu acho que esse é o nosso desafio hoje” (Gallo, 2011). Para a apresentação do pensamento de Gallo sobre a intercessão entre Deleuze e Educação foram escolhidos dois textos considerados, aqui, os mais representativos de sua produção nesse âmbito. São eles: o livro Deleuze & a educação, de 2003, e o artigo intitulado Ensino de filosofia: avaliação e materiais didáticos, de 2010. Existem outros materiais49, mas devido à exiguidade do espaço e aos limites deste trabalho, só é possível apresentar esses dois textos. O livro Deleuze & a educação é significativo por dois motivos: primeiro, foi um dos primeiros livros de cunho mais didático a fazer a divulgação do pensamento 49 Fica a sugestão dos seguintes artigos: Em torno de uma educação voltada à singularidade, de 2005; e Filosofia da Educação no Brasil do século XX: da crítica ao conceito, de 2007. 308 deleuzeano no âmbito da educação; segundo, traz incorporado à sua estrutura o artigo Em torno de uma educação menor, que havia composto o Dossiê Gilles Deleuze, de 2002, um dos marcos da publicação coletiva de divulgação do pensamento deleuzeano no âmbito filosófico educacional. O livro traz uma parte inicial que é uma introdução ao pensamento, à vida e à obra deleuzeanas e uma segunda parte, Deslocamentos. Deleuze e a Educação, que é a que vamos explorar por falar mais de perto à presente investigação. Gallo (2003) inicia a segunda parte de seu livro afirmando que Deleuze não foi um filósofo da educação e que tratou da educação somente de forma marginal, inclusive por ter sido professor sua vida inteira. Assim, Gallo pretende demonstrar a “fecundidade do pensamento de Deleuze para nos fazer pensar a educação, para nos permitir pensar, de novo, a educação. Não se trata, portanto, de apresentar ‘verdades deleuzeanas sobre problemas educacionais’” (Gallo, 2003, p. 63), mas de propor exercícios de pensar a educação como acontecimento. A estrutura dessa segunda parte é realizada por deslocamentos: Tomar conceitos de Deleuze e deslocá-los para o campo, para o plano de imanência que é a educação. Ou, em outras palavras, desterritorializar conceitos da obra de Deleuze e de Deleuze-Guattari, para reterritorializá-los no campo da educação. Penso que essa atividade pode ser bastante interessante e produtiva (em sentido deleuzeano), na medida em que esses conceitos passam a ser dispositivos, agenciamentos, intercessores para pensar os problemas educacionais, dispositivos para produzir diferenças e diferenciações no plano educacional, não como novos modismos, ou, repito, o anúncio de novas verdades, que sempre nos paralisam, mas como abertura de possibilidades, incitação, incentivo à criação (Gallo, 2003, p. 64). São realizados quatro deslocamentos: Deslocamento 1. A Filosofia da Educação como criação conceitual; Deslocamento 2. Uma “educação menor”; Deslocamento 3. Rizoma e educação; Deslocamento 4. Educação e controle. No primeiro Deslocamento, A Filosofia da Educação como criação conceitual, Gallo (2003) sugere uma Filosofia da Educação que seja criativa nos moldes deleuzeanos, criadora de conceitos, ao invés de ser o que tradicionalmente o é no Brasil: ou uma reflexão sobre a educação ou um saber que fornece os fundamentos da educação. Baseado em Deleuze, que afirma que o filósofo é criador e não reflexivo, como são as épocas pobres da Filosofia que a levam a ser uma reflexão “sobre” alguma coisa, 309 Gallo (2003) afirma que a Filosofia da Educação como uma reflexão sobre a educação é reducionista e empobrecedora. Além do mais, como a reflexão não é exclusividade da filosofia, todos podem e devem refletir sobre a educação. Assim, “é necessário, portanto, que combatamos a noção de filosofia da educação como reflexão sobre a educação. Ela deve ser muito mais do que isso” (Gallo, 2003, p. 66). A outra postura que predomina no âmbito da Filosofia da Educação é ela ser um dos fundamentos da educação, na qual se espera que ela “forneça as bases sobre as quais um processo educativo deva se sustentar” (Gallo, 2003, p. 66). Para tanto, a filosofia da educação “parte em busca dos conceitos produzidos por filósofos ao longo da história, para sobre eles erigir um saber educacional. Ou então procura resgatar o que os filósofos já pensaram sobre a Educação, como subsídio para os dias de hoje” (Gallo, 2003, p. 66). Contudo, inspirado em Deleuze, para quem não há nada de positivo em agitarmos velhos conceitos como se fossem velhos esqueletos, ao invés de criar novos conceitos ou despertar conceitos adormecidos, Gallo (2003, p. 68) defende que “o filósofo da educação deve ser um criador de conceitos”. Do contrário, a filosofia da educação será desinteressante e despotencializada, restrita a atividade de roer ossosconceitos antigos: Se o que importa é resgatar o filósofo criador (de resto, a única possibilidade para que ele seja de fato filósofo), então o filósofo da educação deve ser aquele que cria conceitos e que instaura um plano de imanência que corte o campo de saberes educacionais. Uma filosofia da educação, nesta perspectiva, seria resultado de uma dupla instauração, de um duplo corte: o rasgo no caos operado pela filosofia e o rasgo no caos operado pela educação. Ela seria resultante de um cruzamento de planos: plano de imanência da filosofia, plano de composição da educação enquanto arte, múltiplos planos de prospecção e de referência da educação enquanto ciência(s) (Gallo, 2003, p. 68). Ou seja, o filósofo da educação deve conhecer e ter envolvimento com o universo da educação; ter conhecimento da doxografia educacional para que possa combater as opiniões que imperem no platô da educação: “Sendo um habitante ou um visitante desse platô, conhecendo seu panorama, o filósofo está apto a reagir aos problemas que ele suscita. Trata-se, então, de aplicar a eles, problemas educacionais, o instrumental filosófico. Instaurar, inventar, criar...” (Gallo, 2003, p. 69). Assim, então, o filósofo da educação, que é um filósofo, não pode se restringir a ser um mero compilador de conceitos filosóficos para fundamentar a educação. Gallo 310 afirma ser urgente, portanto, fazer uma filosofia da educação criativa e criadora, que não seja inofensiva, pois ela deve ser o veneno e o remédio: “É necessário que corramos o risco, que mergulhemos nesse caos povoado de opiniões. [...]. Só criando conceitos, assumindo uma feição verdadeiramente filosófica é que a filosofia da educação poderá ter um futuro promissor, no Brasil ou em outro lugar” (Gallo, 2003, pp. 70-71). No segundo Deslocamento, Uma “educação menor”, Gallo (2003) se inspira no conceito de literatura menor de Deleuze e Guattari, presente no livro Kafka – por uma literatura menor, a qual se refere aos escritos do judeu theco, considerados revolucionários por subverterem a própria língua alemã que se impôs quando da ocupação alemã na Checoslováquia, no período da Primeira Guerra Mundial. Por isso, Deleuze e Guattari definirem a literatura menor da seguinte forma: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (Deleuze e Guattari apud Gallo, 2003, p. 75). Ou seja, a subversão de uma língua maior por uma minoria. Como exemplificação de uma literatura menor no Brasil, Gallo indica a obra de Lima Barreto, que afrontava os cânones da Academia da época. Dessa forma, Gallo se propõe a “promover um exercício de deslocamento conceitual: deslocar esse conceito, [literatura menor] operar com a noção de uma educação menor, como dispositivo para pensarmos a educação, sobretudo, aquela que praticamos no Brasil em nossos dias” (Gallo, 2003, p. 75). De uma forma geral, essa educação menor está comprometida em buscar um processo educativo transformador do status quo e promotor da singularização e dos valores libertários (Cf. Gallo, 2003, p. 75). O exercício desse deslocamento ocorre a partir da intercessão das três características que os autores de Kafka indicam na literatura menor: desterritorialização da língua; ramificação política; e o valor coletivo. Gallo (2003). Com relação à primeira característica, afirma Gallo (2003, p. 79), “se na literatura é a língua que se desterritorializa, na educação a desterritorialização é dos processos educativos”. Uma desterritorialização que ocorre a partir dos componentes da educação maior, as políticas, os parâmetros, as diretrizes que determinam o ensino, suas formas e seus agentes. Assim, enquanto a educação menor procura se constituir como uma máquina de guerra, de resistência, de produção de singularidades, “a educação maior procura construir-se como uma imensa máquina de controle, uma máquina de subjetivação, e produção de indivíduos em série” (Gallo, 2003, p. 79) (Os grifos são nossos). 311 Na educação maior, como máquina de controle, até mesmo ao ensino deve corresponder uma aprendizagem específica. Ao que Gallo se contrapõe, a partir da ideia de uma educação menor e baseado em Deleuze, para os quais não há certeza evidente do que se vai aprender. Nesse âmbito, como em outros, “a tentativa de controle pode fugir a qualquer controle” (Gallo, 2003, p. 79). Basta recordar o que Deleuze fala sobre aprender em Diferença e repetição, por exemplo. Dessa forma, analisa Gallo (2003, p. 81): Ora, se a aprendizagem é algo que escapa, que foge ao controle, resistir é sempre possível. Desterritorializar os princípios, as normas da educação maior, gerando possibilidades de aprendizado insuspeitadas naquele contexto. Ou, de dentro da máquina opor resistência, quebrar os mecanismos, como ludistas pós-modernos, botando fogo na máquina de controle, criando novas possibilidades. A educação menor age exatamente nessas brechas para, a partir do deserto e da miséria da sala de aula, fazer emergir possibilidades que escapem a qualquer controle (Grifo nosso). A educação menor desenvolve táticas em relação à educação maior para impedir que essa, sempre bem-pensada e sempre bem-planejada, se fortaleça e se instale: “Tratase de opor resistência, trata-se de produzir diferenças. Desterritorializar. Sempre” (Gallo, 2003, p. 81). Já a segunda característica, a da ramificação política, diz respeito ao significado político, potencializador e militante da educação menor que, com seus atos de revolta e resistência, compõe um duplo agenciamento: “agenciamento maquínico de desejo do educador militante e agenciamento coletivo de enunciação, na relação com os estudantes” (Gallo, 2003, p. 82). Essa ramificação política fortalece a luta das resistências micropolíticas que, ao final das contas, é o que interessa a educação menor: A ramificação política da educação menor, ao agir no sentido de desterritorializar as diretrizes políticas da educação maior, é que abre espaço para que o educador militante possa exercer suas ações, que se circunscrevem num nível micropolítico. A educação menor cria trincheiras a partir das quais se promove uma política do cotidiano, das relações diretas entre os indivíduos, que por sua vez exercem efeitos sobre as macro relações sociais. Não se trata, aqui, de buscar as grandes políticas que nortearão os atos cotidianos. Em lugar do grande estrategista, o pequeno “faz-tudo” do dia-a-dia, cavando seus buracos, minando os espaços, oferecendo resistências (Gallo, 2003, p. 82). Dessa forma, diz Gallo (2003, p. 82), a educação menor é rizomática, segmentada, fragmentária, sem preocupação com a totalidade, unidade, modelos, caminhos ou soluções. Somente importa à educação menor fazer rizoma e viabilizar 312 conexões, continuamente, sem fim e sem começo, tal qual o rizoma, que é somente meio. A terceira característica, referente ao valor coletivo, aponta para o fato de a educação menor ser coletiva: “Na educação menor, não há possibilidades de atos solitários, isolados; toda ação implicará muitos indivíduos. Toda singularização será, ao mesmo tempo, singularização coletiva” (Gallo, 2003, p. 83). Um motivo forte que explica essa característica coletiva está no fato da educação menor produzir multiplicidades, tal como Deleuze e Guattari a compreendem, ou seja, sem totalidade e sem sujeito. Essas multiplicidades ao se conectarem rizomaticamente geram novas multiplicidades: Assim, todo ato singular se coletiviza e todo ato coletivo se singulariza. Num rizoma, as singularidades desenvolvem devires que implicam hecceidades. Não há sujeitos, não há objetos, não há ações centradas em um ou outro; há projetos, acontecimentos, individuações sem sujeito. Todo projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso também (Gallo, 2003, p. 84). Um dos fracassos possíveis que corre toda luta minoritária, inclusive a literatura menor, segundo Deleuze e Guattari, é a de ser reterritorializada. No caso específico da educação menor pode-se falar de sua cooptação para a reconstrução da educação maior, ou a sua inserção na máquina de controle do Estado, perdendo seu potencial libertário e se transformando em máquina de controle (Cf. Gallo, 2003, p. 85). Dessa forma, para Gallo (2003), a educação menor permanece potencialmente libertária e minoritária quando não se rende aos mecanismos de controle. A resistência é parte fundamental dessa condição: “Resistir à cooptação, resistir a ser incorporado; manter acesa a chama da revolta, manter em dia o orgulho da minoridade, manter-se na miséria e no deserto. Educação menor como máquina de resistência” (Gallo, 2003, p. 85). Afinal, a educação menor consiste exatamente na aposta feita nas minorias, “apostar na possibilidade da diferença” (Gallo, 2003, p. 85). Para caracterizar o professor da educação menor, Gallo recorre ao filósofo e cientista político Antonio Negri para proceder a outro deslocamento conceitual. Trata-se da afirmação de Negri que, dada a descentralização da política da figura do Estado e aumento dos movimentos sociais na contemporaneidade, hoje não é mais possível falar de profetas e sim de militantes. Hoje não é mais importante anunciar um futuro, mas produzir o presente na cotidianidade. Ficamos longe da figura do grande intelectual 313 condutor das massas, temos os militantes resistindo aos macros poderes com suas micros resistências. Dessa forma, diz Gallo: Se deslocarmos tal ideia para o campo da educação, não fica difícil falarmos num professor-profeta, que, do alto de sua sabedoria, diz aos outros o que deve ser feito. Mas, para além do professor-profeta, hoje deveríamos estar nos movendo como uma espécie de professormilitante, que, de seu próprio deserto, de seu próprio terceiro mundo, opera ações de transformação, por mínimas que sejam (Gallo, 2003, pp. 71-72). A luta do professor-militante da educação menor acontece nos micros espaços cotidianos, na sala de aula, nas relações entre professor e aluno, entre os colegas professores, entre o professor e sua ambiência social, entre o professor e o sindicato. E nesse sentido da ausência de grandes projetos totalizantes, realça-se a diferença entre os dois tipos de professores: “Se o professor-profeta é aquele que age individualmente para mobilizar multidões, o professor-militante é aquele que age coletivamente, para tocar a cada um dos indivíduos” (Gallo, 2003, p. 74). O terceiro Deslocamento, Rizoma e educação, trata da excessiva compartimentalização do saber e sua expressão na organização curricular em suas disciplinas estanques. Tem havido uma tentativa de solução dessa fragmentação via educação interdisciplinar, mas não se tem obtido sucesso, pois a própria formação dos professores é estanque e a interdisciplinaridade acaba reproduzindo a fragmentação do saber. Porém, afirma Gallo (2003): Penso que para além de estritamente pedagógico, o problemas da disciplinarização é epistemológico. Precisamos compreender os processos históricos e sociais de produção de saberes, para podermos compreender as possibilidades de organização e produção desses saberes na escola, ou mesmo no contexto educacional mais amplo. Aqui Deleuze nos motiva o pensamento com o conceito de rizoma, criado com Guattari no final dos anos 1970 (Gallo, 2003, p. 86). Contudo, antes de efetivar o deslocamento do conceito de rizoma para a educação, Gallo contextualiza a problemática das disciplinas estanques a partir de uma obra de Pierre Lévy, As tecnologias da inteligência. Para Lévy, a história do conhecimento humano é marcada por três tecnologias específicas: a oralidade primária, mitológica, com um saber narrativo; a escrita, com a constituição da Filosofia e da(s) Ciências, com um saber teórico baseado na interpretação; e a mídia-informática, com um saber operacional baseado na simulação (Cf. Gallo, 2003, p. 88). 314 A tecnologia da escrita é predominante na história da humanidade, bem como seu viés teórico de interpretação da realidade e a consequente fundação de “uma noção de verdade que diz respeito à adequação da ideia à coisa mesma que a interpreta” (Gallo, 2003, p. 88). Dessa forma, a noção e a produção do conhecimento até a atualidade são marcadas e norteadas pela tecnologia da escrita. A Filosofia foi a primeira construção desse conhecimento, seguida das ramificações disciplinares que surgiram a partir desse saber: A metáfora tradicional da estrutura do conhecimento é a arbórea: ele é tomado como uma grande árvore, cujas raízes devem estar fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, estendendo-se assim pelos mais diversos aspectos da realidade. Embora seja uma metáfora botânica, o paradigma arborescente representa uma concepção mecânica do conhecimento e da realidade, reproduzindo a fragmentação cartesiana do saber, resultado das concepções científicas modernas (Gallo, 2003, pp. 88-89). Nessa concepção arbórea de conhecimento, a Filosofia é tida como o tronco da árvore do saber e seus galhos seriam as diversas ramificações do saber. Contudo, essa metáfora clássica é questionada por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, ao denunciarem a hierarquização do saber/poder presente no paradigma arborescente, no qual há um centro superior que difunde o saber para suas ramificações (Cf. Gallo, pp. 89-90). O principal questionamento deleuzeano-guattariano é se, de fato, “o pensamento e o conhecimento seguem a estrutura proposta por um paradigma arborescente?” (Gallo, 2003, p. 90). Ou seja, esse modelo pode ter sido elaborado posteriormente e utilizado para classificar o conhecimento, objetivando o seu domínio e determinando a produção dos novos conhecimentos (Cf. Gallo, 2003, p. 90). Diante desses questionamentos, seria razoável pensar com Deleuze e Guattari que “o pensamento não é arborescente, e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada” (Deleuze-Guattari apud Gallo, 2003, p. 90). Diversamente, o pensamento e o cérebro são compostos por funcionamento e estruturas rizomáticas, sistemas acentrados e estados caóides (Cf. Deleuze-Guattari apud Gallo, 2003, p. 91). Assim, afirma Gallo (2003, p. 92): “[...] é necessária a introdução de um outro paradigma de conhecimento, de uma nova imagem do pensamento; em suma, de algo que nos permita, de novo, pensar, para além da fossilização imposta pelo paradigma arbóreo e pela consequente arborização de nosso pensamento”. 315 É dessa forma que “a metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea” (Gallo, 2003, p. 93). Ao invés da ideia de unidade a que a árvore remete, o rizoma implica na ideia de multiplicidade. A árvore remete às ideias de: unidade; mediações hierárquicas e homogêneas; linearidade contínua; Mesmo; mediação determinante; permanência. O rizoma implica nas ideias de: multiplicidade; conexões múltiplas e heterogêneas; linhas de fuga; Outro; entradas múltiplas; devir (Cf. Gallo, 2003, pp. 93 a 95). Ou seja, a questão se coloca como epistemológica, na medida em que surge e é proposta uma nova imagem de pensamento, que agora configura o saber pela funcionalidade: “O conhecimento não é nem uma forma, nem uma força, mas uma função: ‘eu funciono’” (Deleuze-Guattari apud Gallo, 2003, p. 95). Essa nova imagem de pensamento já não comporta a horizontalidade e a verticalidade que marcam os caminhos lineares da imagem arbórea do pensamento, agora é necessário um movimento mais complexo para acompanhar a multiplicidade das conexões rizomáticas: a transversalidade (Cf. Gallo, 2003, p. 95): Podemos, assim, tomar a noção de transversalidade e aplica-la à imagem rizomática do saber: ela seria a matriz da mobilidade por entre os liames do rizoma, abandonando os verticalismos e horizontalismos que seriam insuficientes para uma abrangência de visão de todo o “horizonte de eventos” possibilitado por um rizoma (Gallo, 2003, p. 96). Retomando a questão da interdisciplinaridade e voltando para as intercessões educacionais, agora podemos compreender porque ela está no âmbito da disciplinarização, ela segue a mesma estrutura arbórea do conhecimento tradicional. A transversalidade rizomática, por sua vez, “aponta para o reconhecimento da pulverização, da multiplicização, para a atenção às diferenças e à diferenciação, construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões infinitas” (Gallo, 2003, p. 97). O emprego do conceito de rizoma na organização curricular da escola, por exemplo, revolucionaria o processo educacional ao substituir um acesso interdisciplinar arborescente ao conhecimento por um acesso transversal que potencializaria infinitamente o trânsito por entre os saberes. Assim, “o acesso transversal significaria o fim da compartimentalização, pois as ‘gavetas’ seriam abertas; reconhecendo a multiplicidade das áreas do conhecimento [...]” (Gallo, 2003, p. 97). Da mesma forma, a 316 concepção rizomática ajudaria a acabar com a “ilusão do Todo” e cada aluno poderia ter acesso às áreas de seu interesse: Isso significaria, claro, o desaparecimento da escola como conhecemos, pois se romperia com todas as hierarquizações e disciplinarizações, tanto no aspecto epistemológico quanto no político. Mas possibilitaria a realização de um processo educacional muito mais condizente com as exigências da contemporaneidade (Gallo, 2003, p. 98). Contudo, para Gallo, é importante pensarmos sobre como seria um currículo transversal e rizomático. Ele expõe sua proposta em três níveis: primeiro – não poderíamos nos nortear pela pretensa cientificidade pedagógica. Assim, o currículo deveria ser “uma produção singular a partir de múltiplos referenciais, da qual não há sequer como vislumbrar, de antemão, o resultado” (Gallo, 2003, p. 98); segundo – deveríamos abandonar a pretensão massificante da pedagogia e nos voltarmos “para a formação de uma subjetividade autônoma” (Gallo, 2003, p. 98); terceiro – seria necessário abandonar a pretensão ao conhecimento da unidade do real e conceber/aprender a multiplicidade e fragmentação do real, “sem a necessidade mítica de recuperar uma ligação, uma unidade perdida” (Gallo, 2003, p. 99). O quarto e último Deslocamento, Educação e controle, empreendido por Gallo, lança mão do conceito “sociedades de controle” deleuzeano que, por sua vez, significa uma transição das “sociedades disciplinares” de Foucault, para um novo tipo de poder social, o biopoder: “Diferentemente do poder disciplinar, que constituiu instituições para agir sobre os indivíduos, em especial sobre os corpos dos indivíduos, essa nova modalidade de poder estende seus tentáculos sobre as populações, sobre os grandes grupos sociais” (Gallo, 2003, p. 105). As sociedades de controle exercem o controle ao ar livre, enquanto as sociedades disciplinares exerciam seu poder em sistemas fechados (escolas, hospitais, asilos, quartéis, etc.); há o deslocamento da economia do setor de produção para o setor de serviços, circulação; os sistemas abertos (empresas) substituem os sistemas fechados (fábricas). Assim, afirma Gallo, subsidiado por Deleuze: Na mesma medida, a escola, instituição disciplinar e, portanto, sistema fechado, de confinamento, vai sendo paulatinamente substituída pelos empreendimentos de formação permanente, abertos, que transcendem a escola como instância formadora, da mesma forma que o controle contínuo vem para substituir o exame, esse ícone das instituições disciplinares (Gallo, 2003, p. 108). 317 Dessa forma, segundo Deleuze, em seu artigo Post-Scriptum sobre as sociedades de controle que inaugura seu pensamento em torno dessas novas sociedades, há também uma transformação no âmbito educacional na sociedade de controle: “No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis da escolaridade” (Deleuze apud Gallo, 2003, p. 109). Na verdade, o que acontece é a transferência do mecanismo de funcionamento das empresas para a escola. Persegue-se como proposta, inclusive a partir das políticas públicas de educação, a educação de qualidade, mas é da qualidade total, em conformidade com as exigências do mercado neoliberal. Da mesma maneira, a avaliação na escola é feita sob a égide da instrumentalidade e do poder. O resultado é a nossa, dos educadores, cooptação pela educação maior, enquanto deveríamos estar lutando no plano da educação como uma máquina de guerra, ou seja, de resistência e de revolta (Cf. Gallo, 2003, p. 112). O segundo texto de Sílvio Gallo a ser examinado tem por título Ensino de filosofia: avaliação e materiais didáticos50, de 2010. Para os nossos propósitos, o mais significativo a examinar nesse escrito é a posição de Gallo, baseado em Deleuze e Guattari, com relação às justificativas utilizadas contemporaneamente para a volta do ensino da Filosofia ao ensino médio no Brasil, todas elas de caráter instrumental e, portanto, fugindo a uma certa gratuidade do ensino e do estudo da Filosofia tal qual ela se produziu ao longo de seus vinte e seis séculos. Na década de 1980, diz Gallo (2010, p. 159), foram duas as principais justificativas para o retorno da Filosofia ao currículo. A primeira afirmava que “a presença da filosofia na educação dos jovens justificava-se pela necessidade de um desenvolvimento da consciência crítica dos estudantes”. O contexto dessa justificativa se apoiava no regime militar de 1964 que proibia, pela repressão e tortura, a liberdade de pensamento e de expressão, bem como pela prevalência do ensino tecnicista dessa época, respaldada pelos próprios militares a partir de 1970. Assim, “neste quadro, a 50 Recordamos que esse artigo compõe a Coleção Explorando o Ensino do MEC, material do governo distribuído gratuitamente pelas escolas de Ensino Médio. As observações feitas em nota de rodapé para o artigo de Kohan, que também compõe essa coleção, valem para o artigo de Gallo. Vide nota de rodapé referente à análise dos textos de Kohan. 318 filosofia aparecia como o antídoto necessário e apropriado a um processo de redemocratização da sociedade brasileira” (Gallo, 2010, p. 159). A segunda justificativa, por vezes articulada com a primeira, se referia ao caráter interdisciplinar da filosofia, a qual seria o elo articulador a proporcionar a interação entre as diferentes disciplinas curriculares que eram ministradas de forma desarticuladas (Cf. Gallo, 2010, p. 160). Contudo, Gallo não acolhe nenhuma das duas justificativas e, claramente, é possível identificar a influência deleuzeana-guattariana das proposições do livro O que é a Filosofia. Vejamos a argumentação de Gallo: Em ambos os casos, vejo um problema. Nenhum deles afirma a filosofia por ela mesma, mas por um papel que ela deve desempenhar, a filosofia era justificada por algo que ela desenvolveria nos estudantes, algo este alheio a ela mesma. Em outras palavras, ambas as justificativas impõem à filosofia um caráter instrumental. Mas há ainda um outro problema a ser apontado. Em ambos os casos, a justificação para o ensino da filosofia confere a esta disciplina um papel que não é e não pode ser exclusivo dela. Isto é, se desejamos uma educação que forme a criticidade dos jovens, a filosofia pode ser um dos elementos desta formação, mas certamente não é e não pode ser o único. A criticidade não é exclusiva da filosofia e não pode ser creditada exclusivamente a ela. Ou as demais disciplinas também são formadoras da consciência crítica ou esta formação é impossível. E o mesmo raciocínio é válido para a interdisciplinaridade (Gallo, 2010, p. 160). Da mesma forma, Gallo também questiona o uso instrumental que é feito da filosofia na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), na qual a justificativa para a existência da filosofia no currículo seria a de preparar os jovens com conhecimentos filosóficos necessários ao pleno exercício da cidadania (Cf. Gallo, 2010, p. 160). Gallo recorda que desde Aristóteles a filosofia é um fim em si mesma e não um conhecimento que seja um meio para realizar algum objetivo. Portanto, todas essas justificativas acima seriam antifilosóficas. Por isso, prefere “apostar no ensino da filosofia como um fim em si mesmo, para além de qualquer tutela, seja ela cidadã ou moral” (Gallo, 2010, p. 161). Ademais, para Gallo (2010), a formação dos jovens deve ter além da presença das filosofias, a presença também das ciências e das artes: Partindo daquilo que Deleuze e Guattari produziram em O que é a filosofia? [...], podemos dizer que as ciências, na sua relação com o mundo, produzem funções, que organizam os fatos observados através de relações de causa-efeito; as artes, por sua vez, produzem perceptos e afectos, formas de compreensão do mundo numa perspectiva estética; as filosofias, por fim, produzem conceitos, uma forma 319 racional de equacionamento dos problemas vividos no mundo (Gallo, 2010, pp. 161-162). Essas formas de conhecimento humano são irredutíveis uma à outra e, por isso, são complementares. Daí, então, ser possível afirmar que em um “processo educativo como formação humana, minimamente precisamos garantir a todos os estudantes o acesso a estas três instâncias de produção de saberes sobre o mundo” (Gallo, 2010, p. 162). Daí ser compreensível a posição de Gallo com relação aos seus questionamentos sobre as diversas justificativas da volta ou da permanência da filosofia nos currículos: Repito: não penso que a filosofia se justifique nos currículos da educação média por promover uma forma de visão crítica do mundo (outras disciplinas também podem e devem fazer isso), nem por possibilitar uma visão interdisciplinar (outras disciplinas também podem e devem fazer isso), muito menos por trabalhar com conhecimentos fundamentais ao exercício da cidadania (no limite, a ação cidadã não reside na filosofia, mas talvez mesmo longe dela). Por outro lado, a ausência da filosofia nos currículos significa o não contato dos estudantes com essa importante construção humana, que é o conceito. Isso, sim, a filosofia pode oferecer. E apenas ela pode oferecer (Gallo, 2010, p. 162). Dessa forma, o pensamento de Gallo propõe um esforço para sairmos da hegemonia da Filosofia da Representação sob a qual vivemos e que é dominante na área educacional, seja na Filosofia da Educação, nas políticas públicas, no ensino de filosofia ou na própria filosofia. Uma alternativa rica para tanto é a filosofia deleuzeana da diferença, para que possamos valorizar e encontrar o inusitado, potencializar as multiplicidades e conceber a riqueza da diferença. 320 CONCLUSÃO O conteúdo apresentado no primeiro capítulo deste trabalho, De Deus à Diferença: trajetória das matrizes filosóficas na educação brasileira, mostrou a necessidade de observarmos como a produção teórica da Filosofia vem sendo apropriada pela História, pelas instituições e de que forma os conceitos deixam as páginas dos livros e se transformam em carne e sangue, em dor e gozo, em grito e em silêncio. É necessário, ainda, que exercitemos o nosso olhar para os caminhos que vão tomando os conceitos filosóficos que seguem pela estrada de tijolos amarelos (yellow brick road), em busca do feiticeiro de Oz (Lyman Frank Baum). Essa apropriação dos conceitos pela realidade mostra como é urgente fazer o caminho inverso da abstração conceitual para que não fiquemos morando confortavelmente no universal abstrato hegeliano e percamos a descoberta de que o feiticeiro de Oz, no caso a Filosofia da Representação, estudada de forma meramente exegética, na verdade é um simples mágico terreno. Ousaria afirmar: é preciso desconceitualizar o conceito, pois para além das exegeses dos textos filosóficos, as categorias filosóficas devem também ser perseguidas até encontrarmos onde e como elas são apropriadas. Onde passam a morar? Qual a alquimia que as transubstanciam? Quem, com tantas contradições no coração e no bolso, se apropria delas e as transforma em forças sociais, existenciais, imanentes e com cheiros e sons? Nessa perspectiva, é preciso compreender como os conceitos de Verdade, Deus, Salvação, Mal etc., enfim, todo o universo que compõe o ideário católico, cristão, patrístico, medieval aportou no Brasil com os jesuítas, que traziam Agostinho e Tomás de Aquino na bagagem de suas almas, juntamente com os adereços de uma cultura europeia greco-romana, declarada superior, iluminada e iluminadora. É preciso saber enxergar, também, que a cultura filosófica católica não chegou aqui solitária. Acompanhou-a a expansão territorial do capital comercial, que encontrou um forte aporte ideológico na escolástica aristotélico-tomista dos inacianos. Por um lado, a Igreja trazia um “saber de salvação”, que buscava apascentar as almas dos silvícolas (quando foi decretado pelo Papa de plantão que eles tinham alma) e convertêlas à fé católica. Por outro lado, as grandes navegações, das quais nós fomos paridos, representavam a consolidação do capitalismo comercial através da acumulação de 321 recursos naturais, visando o fortalecimento da burguesia ascendente perante a nobreza feudal que já mostrava sinais de fragilização. As obras Confissões, Cidade de Deus vieram também nas pontas das espadas dos colonizadores e nos mastros de suas caravelas. Com certeza, algumas linhas saltadas dos textos da Suma Teológica espirraram, se confundindo com a disciplina imposta aos nativos que tinham por Deus o Sol, a Lua e andavam com os corpos nus e sem culpa, cristã ou católica. O Positivismo científico, também ao aportar aqui, trouxe veleidades filosóficas e leviandades políticas e econômicas. Mesmo o Iluminismo nos chegou para “iluminar” somente a alguns. Podemos citar, por exemplo, o caso do Colégio Pedro II, único a ser administrado pelo poder central, enquanto a deliberação Imperial era exatamente o inverso, qual seja, a administração dos colégios secundários deveria ser exercida pelos Estados. Contudo, aquela instituição educacional foi administrada com mais recursos, com melhores professores, com a prevalência da filosofia Eclética espiritualista etc., para, exatamente, formar os filhos dos grandes proprietários, dos grandes senhores. E, por aí, poderíamos falar, exaustivamente, de inúmeros exemplos das “encarnações” dos conceitos filosóficos na sociedade brasileira e mais especificamente na educação brasileira. As “apropriações”, os “loteamentos”, as “repetições” feitas em eco que sofreram todas as filosofias e seus conceitos que já passaram por aqui. Estamos ressaltando, precisamente, que a filosofia, diversamente do que é ensinado, não é um monte de conceitos residentes nos livros, visitados apenas durante o período de estudos. Essa é a forma como ela é ensinada e como deve ser estudada. Inversamente, como visto no primeiro capítulo da exposição, a filosofia se entranha nas vidas das pessoas, nas instituições, nos colégios, nas almas. É auxiliar na criação de poderes e na destruição deles. A filosofia não é, nem pode ser, em vão. Porém, é necessário cuidado, pois a sua não vanidade não é, nem pode ser, sinônimo de instrumentalização. Caso contrário, ela própria perde seu caráter de filosofia. O segundo capítulo, A Filosofia da Educação no Brasil, mostra a prevalência do exercício filosófico na Filosofia da Educação como mera repetição dos conceitos dos filósofos mais representativos nessa área, pelo menos até surgir a obra de Anísio Teixeira, que deu início, no Brasil, a uma sistematização mais específica da Filosofia da Educação como campo de saber e inicia um certo esforço de pensar a nossa realidade a partir das reflexões de Dewey. Até então, a educação pensada a partir da filosofia se 322 resumia em fornecer os fins, os valores e os fundamentos da educação. O que, de certa maneira, predominou até os dias de hoje. Paulo Freire também inicia uma reflexão de cunho mais autônomo, em terras brasileiras, no âmbito da Filosofia da Educação. Outro aspecto importante, tal como em Teixeira, é que Freire exercia um questionamento filosófico da educação visando mais às questões da realidade social. Distanciando-se, portanto, das velhas reflexões moralistas, abstratas e bacharelescas que tanto predominaram na feição filosófica brasileira. A obra de Dermeval Saviani segue o mesmo ritmo freireano de orientar a filosofia da educação para problemas sociais concretos, os quais devem ser resolvidos por uma conscientização social possibilitada pela educação. Ou seja, uma consciência política que promova a liberdade. No caso de Freire, o sujeito a ser conscientizado é o homem oprimido. No caso de Saviani, o sujeito a ser conscientizado é o proletariado, o sujeito histórico, pois o conceito fundante pelo qual a educação deve ser pensada é a classe social. Apesar da importância e das inovações trazidas por esses dois pensadores brasileiros, eles permanecem no limiar da filosofia da representação e filiados aos elementos constitutivos do ideário da Modernidade. Isso fica muito claro se considerarmos que em seu pensamento persiste a ideia: de um fundamento do real; de uma verdade a ser reconhecida e transmitida; de um universal a ser realizado; de uma totalidade a ser alcançada; de uma razão condutora do homem rumo à liberdade; da educação, dialógica ou política, como exercício do aprimoramento da racionalidade; da Dialética como o verdadeiro método de apreensão do real e a mediação como categoria decisiva nessa apreensão. O terceiro capítulo, A Filosofia da Diferença de Deleuze, ao expor os subsídios filosóficos da filosofia deleuzeana, possibilitou a apreensão de uma filosofia diversa da representação, a qual foi praticada, pensada ou exercida pela maioria no Brasil, mormente na esfera da Filosofia da Educação. Diversamente da filiação ao ideário da Modernidade e da Filosofia da Representação, a filosofia da diferença deleuzeana rejeita a existência de um fundamento do real, o que existe é a contingência, um a-fundamento, um descentramento, na medida em que a realidade vai se construindo. Por isso, não há um universal a ser perseguido para a realização de modelos, nos moldes platônicos. Inversamente, há a negação do original e a valorização dos 323 simulacros, pois não há nenhuma identidade prévia a ser atualizada. O que existe, então, é o devir, é o acontecimento, é a univocidade do ser, é a diferença em sua eterna repetição. Portanto, não há uma verdade a ser revelada, a ser buscada fora da caverna. A verdade é, pois, uma invenção que criamos para dar sentido às coisas. Poderíamos até falar em uma alegria da caverna, em lugar de uma alegoria da caverna. Da mesma forma, a filosofia da diferença deleuzeana recusa a dialética hegeliana por ela ser triste, negativa e abstrata, bem como a categoria da mediação ser um movimento somente do próprio pensamento. Nesse sentido, a razão como qualidade superior do homem para a apreensão do real e possibilidade máxima de realização da condição humana, fica preterida, questionada pela filosofia da diferença que, por sua vez, valoriza a intuição, o corpo, o desejo, a alegria como formas legítimas de conhecer e se relacionar com o mundo. Assim, o quarto capítulo, Filosofia da Diferença deleuzeana na Filosofia da Educação no Brasil ou para uma (não)-teoria da quebradura da vara, possibilita a intercessão da filosofia da diferença deleuzeana na Filosofia da Educação no Brasil, ao mostrar o pensamento dos quatro filósofos brasileiros que, inspirados nessa Filosofia, trazem uma nova forma de pensar a educação. A expressão “(não)-teoria da quebradura da vara”, que cunhamos aqui, é para expressar que se trata eminentemente de uma inspiração filosófica, e não mais uma matriz filosófica, pois ela não se pretende uma teoria como modelo, sistema ou doutrina a ser seguido como as demais matrizes. Da mesma forma, ela faz referência a uma “quebradura da vara” porque a metáfora leninista, apropriada por Saviani, implicava em um centro, em um fundamento, em uma verdade a qual se deveria sempre voltar para balizar a posição correta da vara. Essa ideia permanece, mesmo quando Saviani se refere a necessidade de uma teoria “para além da curvatura da vara”, pois continua a ideia de um referencial como centro. Por isso, a necessidade, para continuar na metáfora, de “quebrar a vara”, indicando, com essa expressão, a inexistência de um fundamento, de um centro, de uma verdade balizadora. É dessa forma que se denomina, aqui, a influência da filosofia da diferença deleuzeana no Brasil, de uma (não)-teoria da quebradura da vara, pois não tem a pretensão de sistematicidade, do todo, de Universalidade, de verdade a ser descoberta e revelada etc. A ideia de um centro verdadeiro, de um fundamento a ser defendido e buscado, deixa de existir, para dar lugar ao devir e ao acontecimento. 324 Dessa forma, diante da inexistência de um centro, de um fundamento, deixa de fazer sentido a Filosofia da Educação fundamentar metafisicamente o discurso pedagógico: “A filosofia da educação pode ser muito importante, mas não no sentido de dar a si mesma e às várias teorias pedagógicas um critério de verdade excepcional, que sustente a ela mesma e sustente qualquer ciência ou teoria a respeito de educação” (Ghiraldelli, 2000, p. 19). Dentre outras passagens, isso fica muito claro no texto do Saviani, quando ele afirma haver uma distinção entre atividade política e a atividade educativa, pois “se em política o objetivo é vencer, em educação o objetivo é convencer; se a prática política se apoia na verdade do poder, a prática educativa apoia-se no poder da verdade” (Saviani, 2007, p. 224) (Grifo nosso). Ou seja, além de existir uma verdade, o papel da educação seria o de levar a essa verdade. Essa posição não só é autoritária, mas também representacionista. Contudo, Paulo Freire também não fica longe dessa esfera representacionista e fundacionista, na medida em que, por exemplo, defende que a conscientização tirará o indivíduo de uma acomodação. Ou seja, permanece aquela ideia tradicional platônica de desvelamento da verdade com a saída da caverna. Essa questão traz em si a ideia do saber como libertação, nas palavras de Freire: “A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se” (Freire, 2011, p. 48). No entanto, há uma certa romantização desse homem “liberto”, enquanto que na filosofia da diferença vamos encontrar que o saber é poder, portanto não há como conceber essa pureza da liberdade. Da mesma forma, ocorre essa mesma romantização do oprimido, como se o oprimido fosse um ser puro e imaculado, quase um anjo. É o que nos deixa transparecer Freire quando afirma: “Daí que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência, que jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos oprimidos” (Freire, 2011, p. 58). Nesse contexto, é destacado também que a prática educativa libertadora constitui uma situação gnosiológica, onde o papel do educador é proporcionar, juntamente com os educandos, “as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos” (Freire, 2011, p. 97). (Grifo nosso). Enquanto a prática bancária cerceia a criatividade dos educandos, “a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade” (Grifo nosso). (Freire, 2011, p. 97). Além de se ter a 325 figura do professor-profeta, que guiará, conduzirá o educando, tem também a afirmação da existência de um conhecimento verdadeiro. Há um maniqueísmo muito forte e romântico em Freire, que perpassa todo o livro Pedagogia do oprimido (particularmente a p. 205), no qual o bom é bom e o mau é mau. Isso fica muito claro, quando ele pensa sobre a invasão cultural, na relação invasores versus invadidos, há sempre um déficit para os “invadidos”. Persiste o mesmo maniqueísmo anterior que afirma que os oprimidos nunca forma violentos. A pedagogia histórico-crítica de Saviani segue os moldes da modernidade iluminista racionalista, pois a educação se define essencialmente pela produção e transmissão de conhecimentos, sendo a escola o lugar privilegiado para tanto (Cf. Saviani, 2011, pp. 13-14). Assim, o objetivo final da escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado pela humanidade e que foi produzido coletivamente (Cf. Saviani, 2011, p. 17). Em termos mais amplos, então, o objetivo da educação é promover o aperfeiçoamento da racionalidade pelo conhecimento, para que se alcance um patamar superior de humanidade. No entanto, Saviani, ao eleger a escola como locus privilegiado dessa formação, deixa de fora lugares e atividades tão importantes quanto a escola e que, contudo, estão bem longe dessa instituição, sendo até mesmo contrária a ela. Nessa perspectiva, a valorização do conteúdo é decisiva, pois a prioridade de conteúdos é a única forma de lutar contra a farsa do ensino, diz Saviani (2009). Os conteúdos são prioritários “porque o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação politica das massas” (Saviani, 2009, p. 51). (Grifos nossos). No entanto, não haverá nessa posição uma certa centralização na cultura oficial como sendo a única válida para uma participação política das massas? Em contra partida, não seria necessário levar em consideração o valor dos conhecimentos não oficiais para uma efetiva participação política? Novamente a valorização extremada da racionalidade e da cultura iluminista. Além de reduzir em muito o âmbito do que seria uma participação política. Qual seria essa política a ser participada? A política maior? E a política menor? As micro políticas não podem ser levadas em conta? Outra questão fundamental para Saviani é a disciplina: “Associada a essa prioridade de conteúdo, que eu já antecipei, parece-me fundamental que se esteja atento para a importância da disciplina, quer dizer, sem disciplina esses conteúdos 326 relevantes não são assimilados (Saviani, 2009, p. 51) (Grifo nosso). Nesse sentido, Saviani está bem distante, também, do ideário da filosofia da diferença, principalmente se pensarmos em Foucault e em todo o seu trabalho desenvolvido em torno da disciplina como exercício de poder e não, como pretendido pela tradição humanista e iluminista, libertação, progresso contínuo, realização de um ideal de homem. Da mesma forma, essa posição passa bem distante do pensamento deleuzeano quando ele pondera que não se sabe por que se aprende. Não há uma explicação e nem um método, sendo a aprendizagem mais caótica do que linear e disciplinada. Nos livros dos três filósofos brasileiros que iniciaram a sistematização da Filosofia da Educação no Brasil, muitas são as passagens que poderíamos analisar, demonstrando que se filiam a uma filosofia com características representacionistas, humanistas, dialéticas e classistas, portanto bem longe da Filosofia da Diferença. Por isso, é importante o pensamento dos filósofos contemporâneos da educação, inspirados na filosofia da diferença deleuzeana, pois eles trazem novas perspectivas para a educação: mais liberdade de pensamento; menos moralismo; mais alegria; mais corpo; mais criatividade; menos cerceamento; mais potência; mais rizoma e menos árvore; mais diferença e menos Mesmo; mais imanência etc. Tomaz Tadeu, por exemplo, ao inaugurar a confluência da filosofia da diferença e a filosofia da educação no Brasil, abriu novos caminhos para se pensar o currículo não mais como algo estanque, bem como vislumbrou os limites da teoria crítica mediante os novos acontecimentos contemporâneos. Tomaz também teve a sensibilidade para compreender que a instabilidade, a incerteza e a desordem, trazidas pelo fim dos fundamentos, propiciaram outros tipos de pensamentos e de ações políticas que não têm mais a ideia de referencial e de fundamento presentes na teoria crítica. No campo da educação, orientado tradicionalmente pela identidade, diz Tomaz Tadeu, a Filosofia da Diferença, principalmente a deleuzeana, pode servir de grande inspiração no questionamento do sujeito moderno, da verdade pretendida pelos currículos, dos valores disfarçados nos programas escolares e do poder subsumido na disciplina escolar. Sendo assim, não se conhece para libertar a humanidade e promover o progresso contínuo do mundo e da civilização, ou para descobrir a verdade e sair da caverna, mas conhecer é interpretar e “interpretar é dar sentido, impor uma ordem, uma forma, uma direção, é dar um sinal à massa informe e caótica das coisas do mundo. 327 Interpretar não é revelar, descobrir, identificar, mas criar, inventar, produzir” (Silva, 2002 a, p. 10). Dessa forma, um currículo que seguisse a linha da filosofia da diferença, seria perspectivista, sem um sujeito centralizador e centralizado, sem a crença em uma verdade única a ser alcançada e ensinada por um professor-profeta, mas seria um currículo aberto, sem imposição de valores e de poderes, sem a imposição da disciplina. Deveria, por fim, visar à singularidade dos sujeitos e não sua subjetivação massificadora. Daniel Lins, por sua vez, reconhece a existência de uma pedagogia que não pensa e que é, por isso, lugar da exclusão. Daí propor uma escola diferente, na qual seja trabalhado o pensamento conjuntamente com os afectos, pois ambos não se separam. Essa separação, contudo, é realizada por uma pedagogia que se apoia no discurso da representação. Inclusive, para Lins, somente uma pedagogia que veja conjuntamente pensamento e afecto pode possibilitar a emergência da diferença. Pode-se chamar essa pedagogia de “pedagogia do acontecimento”, que se contrapõe a uma pedagogia da representação. A pedagogia do acontecimento funciona por linhas de fuga que possibilitam a invenção, a descoberta, a desterritorialização. Nesse sentido, outra questão importante é que essa relação pensamento/afecto não se dá de forma abstrata, pois ela é uma relação que ocorre por necessidades práticas. Ou seja, o pensamento e o afecto são “interessados”. Acontecem conforme interesses que movem os indivíduos, e não por amor a uma busca transcendental e metafísica de uma verdade absoluta, ou pela simples apropriação de conteúdos para a formação humana ou formação política. Lins, deleuzeanamente, cria o conceito de Mangue’s School para nominar a escola da pedagogia do acontecimento. A metáfora é significativamente deleuzeana por tomar o mangue como referência por ele ser rizomático. Assim, há uma contraposição à árvore do conhecimento, ideia tradicional da filosofia da representação. Para a pedagogia e a escola rizomáticas, a criança é um devir afirmativo que se basta a si mesmo; é um acontecimento; e o saber que ela aprende deve ser/ter sabor. Ou seja, o aprender deve ser prazeroso, sem os castigos da disciplina e da ideia da culpa. Por isso, a ética que acompanha a pedagogia e a escola rizomáticas é a ética dos afectos. É uma pedagogia molecular que se rege pelos desejos e pelo encontro com o Outro que, por sua vez, não se reduz a uma alteridade humana, mas ampliada até o não-humano. 328 Assim, uma pedagogia rizomática que se sustenta em uma ética dos afectos deve ser uma pedagogia da invenção e do experimento, pois tudo é devir e acontecimento. Walter Kohan, a partir de uma confessa inspiração deleuzeana, também questiona o ensino, inclusive o da filosofia, como transmissão de saber, tal qual defendido e exercido pela tradição representacionista. No caso específico do ensino da filosofia, a tradição pretende transmitir um saber que estaria ligado a uma verdade localizada na História da Filosofia. Contrariamente, Kohan recorre ao conceito deleuzeano de devir-criança, que implica em um encontro na linha de fuga, em um não cronológico, em uma realidade molecular, na potência do acontecimento. Ou seja, ensinar filosofia é filosofar; é fazer os que os filósofos fazem, filosofam. A criança é outro aspecto do pensamento de Kohan. Mas é um conceito de Criança que está distante daquele defendido pela filosofia tradicional - homem em miniatura a se realizar pela educação, é criança como devir e não idade cronológica, é a potência inventiva que a infância traz. Aliás, a filosofia precisa dessa infância com esse sentido, bem como o ensino de filosofia e é, por isso, que é possível ensinar filosofia para criança, segundo Kohan. A temática aprender/ensinar também é muito presente nas reflexões de Kohan. E, nesse sentido, Deleuze e Rancière são determinantes. Não há nada a aprender e nada a ensinar como doação. Ninguém ensina a alguém, ninguém aprende de alguém. Nesse sentido, não há transmissão de saber, de conhecimento. Portanto, a aprendizagem se dá com alguém, e o que é aprendido é sempre reinventado. Nessa mesma perspectiva, é problemático, também para Kohan, a ideia de conhecimento como emancipação, pois ninguém emancipa ninguém. A própria pessoa se emancipa. E, assim, a ideia de uma educação emancipadora, que advém do conhecimento repassado pelo professor, aprendido pelo aluno e responsável pela elevação de sua racionalidade é totalmente arbitrária. A educação não emancipa, pois a emancipação é um ato individual. A educação que visa à emancipação do outro, na verdade, embrutece o outro. Assim, então, o que a educação pode fazer é possibilitar que o outro se emancipe. Fica descartado aí, então, duas das grandes bandeiras do projeto emancipatório iluminista: a educação como emancipação e o professor como responsável pela transmissão do saber que emanciparia. E, nesse âmbito, a crença na grande política 329 também vai de roldão. Da mesma forma que as grandes narrativas foram desacreditadas pela pós-modernidade, as macro políticas que as acompanham também foram postas em xeque. A importância é dada agora às micro políticas. É também nessa perspectiva, que Sílvio Gallo valoriza o que ele chama de “educação menor” como aposta nas minorias e na possibilidade de emergência das diferenças, desfocando a importância exacerbada dada às grandes políticas. Em um campo educacional fortemente marcado pelo pensamento tradicional da representação, toda teoria e práticas educacionais também estão na esfera da representação, da mesma forma que nos incita a ter uma visão representacional do mundo. O pensamento de Deleuze, então, se mostra como uma alternativa a esse pensamento dogmático, pois possibilita pensar a partir do múltiplo e não mais da identidade. Nessa perspectiva, o pensamento deve ser invenção e não recognição. E é a partir da diferença, da multiplicidade que se deve pensar a educação. Inclusive a própria Filosofia da Educação e o Ensino de Filosofia devem ter novos olhos para o universo educacional. Ou seja, devem conduzir seus agenciamentos a partir da diferença. Em primeiro lugar, isso significa que a Filosofia da Educação não pode ser a disciplina empobrecedora e pobre que tem sido até agora, quando se propõe a ser simplesmente reflexão sobre a educação e fundamento da educação. Uma filosofia da educação, baseada na Filosofia da Diferença, há de ser criação de conceitos. Ou seja, não pode ser somente um agente passivo diante da realidade e ficar em um exercício de reconhecimento e recognição dessa realidade, muitas vezes conduzindo interesses de poderes conservadores e reacionários. Em segundo lugar, há que se fortalecer a educação menor mediante a educação maior. Há que se proceder a uma desterritorialização dos componentes da educação maior para a educação menor. A oficialidade, o planejamento, as políticas públicas, máquina de controle e de subjetivação etc., que caracterizam a educação maior, devem ser combatido pela educação menor, em um movimento de uma máquina de guerra, de resistência, de produção de singularidades, de possibilidade do surgimento do inusitado na aprendizagem. A educação menor desenvolve táticas em relação à educação maior para impedir que essa, sempre bem-pensada e sempre bem-planejada, se fortaleça e se instale: “Trata- 330 se de opor resistência, trata-se de produzir diferenças. Desterritorializar. Sempre” (Gallo, 2003, p. 81). Essa educação menor deve, por sua vez, se ramificar e buscar o coletivo, mas não no sentido tradicional da macro política, pois, do contrário, haveria uma reterrritorialização. Trata-se de ser uma coletivização rizomática, sem preocupação com a totalidade e o universal. Interferir rizomaticamente, ou seja, no meio, no entre, nas conexões. É aí que entra a figura do professor-militante, que atua nas brechas, nos intervalos das pequenas coisas cotidianas, pois, conforme Gallo, não há mais espaço para a figura do professor-profeta, aquele que traz grandes salvações para grandes problemas e para grandes multidões . Gallo trata, em terceiro lugar, da relação entre rizoma e educação, que significa, em última instância, da recusa do modelo arborescente em favor da forma rizomática do conhecimento. Para o autor, a maneira rizomática mais legítima seria a da transversalidade, a qual possibilitaria uma cruzamento rizomático, plural, multifacetado, múltiplo, entre os conhecimentos e se evitaria assim a disciplinarização do conhecimento e a ilusão da busca de uma unidade última do saber. Para Gallo, em quarto lugar, há que se compreender a educação na perspectiva da sociedade do controle, para além da sociedade disciplinar. Dessa forma, compreenderíamos melhor as possibilidades e os limites da educação nessa nova sociedade que exerce de forma renovada seus poderes. Somente assim será possível também a educação atualizar suas resistências a esses poderes. Um último elemento fundamental no pensamento de Gallo é a defesa intransigente que faz da filosofia diante do ataque de instrumentalização que tem sofrido de forma recorrente, seja pelas políticas públicas de ensino, seja pelos professores em sala de aula. Essa instrumentalização da filosofia se encontra respaldada na Filosofia da Representação. Assim, portanto, diversamente do que se pretende da filosofia, visão crítica do mundo, visão interdisciplinar ou conhecimentos fundamentais ao exercício da cidadania, Gallo defende que a filosofia deve ser um fim em si mesmo, da mesma forma que o foi na perspectiva aristotélica e em grande parte de sua história. É necessário tirar dos ombros da filosofia o peso que lhe foi posto pela filosofia da representação, como salvadora do mundo, conhecedora de todas as coisas e saber superior, pois outros conhecimentos também são importantes e, inclusive, complementares à filosofia. 331 Talvez um dos maiores méritos da inspiração deleuzeana na Filosofia no Brasil, incluindo a Filosofia da Educação, foi precisamente essa liberdade de filosofar, que é própria à Filosofia e, portanto, a possibilidade de um distanciamento ou revisão dos moldes canônicos do método estruturalista trazido, com pelos franceses, com a fundação da USP. Não que se tenha de abrir mão dos textos clássicos, não que se tenha de deixar de aprender a fazer uma leitura exegética desses textos clássicos, não que se abandone o exame dessas fontes e inspirações clássicas, não que... Nem Deleuze o fez e nem o propôs. Contudo, a realidade impõe uma necessidade de revermos nossos passos filosóficos. Como Deleuze e Guattari alertam, são necessários cuidados para não nos contentarmos em simplesmente agitarmos velhos conceitos estereotipados que se assemelham a esqueletos que intimidam a criação de novos conceitos. Afinal, se fazemos filosofia (ou pretendemos) temos que fazer o que os filósofos faziam, ou seja, filosofia como criação de conceitos, pois “eles criavam seus conceitos e não se contentavam em limpar, em raspar os ossos, como o crítico ou o historiador de nossa época” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 109). Contrariamente, temos raspado os ossos dos velhos conceitos, deste a vinda dos jesuítas que trouxeram na bagagem Aristóteles e Tomás de Aquino para cobrirem a nudez dos índios e acobertarem a desfaçatez da sede de poder do colonizador. Outro aspecto importante dessa inspiração deleuzeana na Filosofia da Educação é a ideia que Deleuze retoma de Kierkegaard e de Nietzsche das figuras de “pensador privado: pensador-cometa: portador da repetição” e “professor público: doutor da lei: portador da mediação, da generalidade dos conceitos, da moralização” (Cf. Deleuze, 1988, pp. 29-30) e que remete às figuras do professor-profeta e professormilitante. Assim, nossa tradição de professores de filosofia tem seguido os rastros do professor-privado e do professor-profeta e, mais grave ainda, em nossa função de formadores de professores de filosofia temos repassado essa tradição, nos reproduzindo em série. Fica, então, a possibilidade do espelho nos mostrar que podemos procurar os caminhos do pensador-privado e do professor-militante. Uma última observação é sobre a importância da filosofia da diferença deleuzeana considerar a imanência tão importante e revolucionária ao ponto de afirmar que ela é “a pedra de toque incandescente de toda a filosofia” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 63). Essa importância dada à imanência repercute de forma intrigante em um país 332 marcado filosoficamente pela metafísica e por todos os desdobramentos filosóficos da representação, inclusive uma certa feição do marxismo ortodoxo. A importância de um pensamento filosófico da imanência vem destronar as ilusões de uma realidade una e transcendente e da ideia de uma totalidade que contenha todas as respostas para todos os problemas, inclusive os da educação. Como diz Deleuze, a imanência, não sendo abstrata ou teórica, torna-se um perigo, uma ameaça às concepções transcendentes, exatamente porque “ela engole os sábios e os deuses” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 63) (Grifo nosso). Acrescentaríamos: ela engole os sábios, os deuses, os homens e as ilusões das imagens que pensam ser. Nesse sentido, retornamos ao livro O mágico de Oz, com o qual iniciamos esta conclusão. A filosofia da diferença deleuzeana na Filosofia da Educação pode muito bem ser comparada ao Totó, o cachorrinho de Dorothy, que foi responsável pela derrubada do biombo que denunciou a farsa de Oz como Grande Mágico, pois, na verdade, ele era somente um homenzinho careca e fingidor. Talvez pudéssemos pensar a metafísica e seus disfarces de filosofia da representação como o “grande mágico de Oz”, que foram desmascarados pela filosofia da diferença, que nos fez descobrir que nossos espantalhos têm cérebro e pensam, nossos homens de lata têm coração e se emocionam e que nossos leões covardes são muito corajosos. E que, no final da história, somos nós mesmos, imanentemente, que fazemos nossas próprias mágicas, nos damos cérebro, coração e coragem, em um processo de educação imanente ou em uma imanência educativa. 333 REFERÊNCIAS ALLIEZ, Eric. Deleuze no Brasil. In: Cadernos de subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisa da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em psicologia Clínica da PUC-SP. Num. Esp. Jun. 1996. ARANTES, Paulo. In: Conversas com filósofos brasileiros. Marcos nobre e José Marcio Rego. São Paulo: Ed. 34, 2000. ARANTES, Paulo. O departamento francês de ultramar. São Paulo, Paz e Terra, 1994. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da pedagogia: geral e Brasil. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 2006. AZEVEDO, Fernando de. A transmissão da cultura. In: A cultura brasileira: Introdução ao estudo da cultura no Brasil, tomo terceiro. 3ª ed. Edições Melhoramentos São Paulo, 1958. AZEVEDO, Fernando de. Et al. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. 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Eu pensaria mais a Filosofia da Educação no Brasil - que eu acho que ela começa a existir na contemporaneidade, é uma coisa nova, é muito novo falar da Filosofia da Educação no Brasil - e eu acho que nós devemos a muitos indivíduos, não são absolutamente instituições, as instituições brasileiras não trabalharam e nem trabalham sobre a filosofia da educação, isso ainda é algo muito marginal, mas no sentido de “à margem” e não no sentido pejorativo. Então, não são instituições... o primeiro ponto que eu queria realmente dar ênfase é que não se trata de instituições trabalhando a questão da Filosofia da Educação, nós não temos isso ainda no Brasil. Se trata de pessoas, são pessoas que, de repente, começam a ler os filósofos e desses filósofos que falam sobre a educação...é muito difícil fazer Filosofia da Educação a partir de uma leitura clássica da filosofia, eu diria, inclusive, do próprio Schopenhauer, para poder chegar à educação. Pra mim é um contemporâneo, Schopenhauer, século XXII, Nietzsche é do XXIV e Deleuze deve ser do XXIII. Mas havia um desejo e havia uma espécie de vazio, porque, por mais que a gente queira pegar os textos sobre educação da história da filosofia, são textos muito... uma espécie de pensamento imperial. Dentro da própria filosofia há ainda os traços do preconceito que houve até o século XIX e um pouco depois do século XIX, quase século XX ainda, em relação à criança. A criança é uma instituição muito nova, novíssima, foi praticamente humilhada como entidade, não era sujeito nem era categoria, era um ente, um ente do ser. Foi muito humilhada em toda a história da filosofia, em toda história do pensamento até praticamente o final do século XIX, comecinho do século XX. Quando é que a criança deixa de ser humilhada e a educação passa a ter um lugar na filosofia de fato? É com o Freud. Incrível a importância que teve o Freud nessa história e que é tão pouco realçada, muito pouco. Mas Freud é a chave. Isso não quer dizer que nós vamos aceitar todo o Freud, não! Quem vai dizer que a criança existe, 342 solenemente com o poder científico e o poder de infâmia e o poder de inteligência e o poder de tudo que ele transformou, realmente, o mundo que a gente conheceu, pelo menos, com o nascimento da psicanálise, para o bem e para o mal... eu estou pegando só o lado positivo, que é o que me interessa. Com o Freud, essa criança passa a ter uma visibilidade e mais do que isso, um estatuto. Antes do Freud, evidentemente, já havia Rousseau, a gente sabe, toda a luta quando Rousseau escreveu “Emílio”, não só o livro foi queimado em praça pública como ele teve que se exilar porque era uma vergonha, essa é a palavra. Era uma vergonha que um filósofo, um homem do nível do Rousseau possa perder seu tempo com tantas asneiras. Então, isso não dá... se você não fizer essa cartografia, muito mais que uma mapeação, é muito difícil a gente chegar a uma compreensão dessa ausência trágica da filosofia do ensino no Brasil, é uma ausência seríssima. E por que? Porque nós guardamos toda essa distância em relação ao mais importante. O que é o mais importante? A criança, porque é pivô, a criança é o rizoma. Se você transforma o rizoma, que é movimento, em algo paralisado, aí você chega à história da filosofia atual, à história da educação atual e à dificuldade que tem a educação de interagir com a filosofia. Então não dá pra não ter esse olhar histórico, é muito importante. A criança era algo completamene negado, a própria Igreja, os próprios Jesuítas, que foram muito importantes para essa libertação das crianças, os Jansenistas também, eles diziam que – não vou nem falar de Platão porque é uma catástrofe, aí se a gente entrar na... é uma catástrofe, eu salto isso, é quase um lugar comum – a própria Igreja dizia que a criança era má, certamente tinha parte com o diabo (era a maneira de falar da época, de escrever), mas que ela tinha uma alma e, tendo alma, ela podia ser salva. Isso vai se repetir quando eles chegam no Brasil, os colonizadores, que vão encontrar nossos índios, e vão repetir a mesma coisa. Carta de Pero Vaz de Caminha, um pouquinho depois da descoberta do Brasil, inclusive na escola a gente fala “descoberta”, o que mostra que educação, como é que aí a filosofia não entrou, porque se entrasse nós não podíamos dizer, absolutamente... só é possível fazer a educação que a gente faz no Brasil com a pedagogia, que é uma palavra de ordem, a gente vai chegar lá. Quando eu digo que o Brasil foi descoberto e que eu ensino isso para as crianças, eu fechei a porta 343 a qualquer idéia de pensamento. Neste momento, eu imponho a opinião e a marca registrada do país é a opinião na pedagogia e no ensino, contra o pensamento, a partir daí você enterra a filosofia. Então, voltamos ao começo quando não instituições, entendeu agora porque não são as instituições? Personagens, personagens que são quase conceitos e que começam a ler não mais Rousseau, Schopenhauer, porque já leram, e aí descobrem Deleuze. Mas Deleuze não escreveu livro sobre educação, nunca escreveu um livro sobre educação. E como é que se chega a Deleuze? Não tem jeito, tem que ler o Deleuze todinho, essa é que é a história. Porque, se você ler Deleuze, você é capaz de escrever só tirando as frases... eu fiz uma conta, daria um livro, mais ou menos, de 96 páginas se você retirasse só o que Deleuze fala sobre educação. Como? De uma maneira outra. Por que? Porque Deleuze não trabalha absolutamente com a dominação dos signos nem dos símbolos que uma certa pedagogia – que no Brasil, em geral, é essa a pedagogia – impõe palavras de ordem, não mais, absolutamente, pensar o que está escrito, mas executar. Nossos programas vêm todos de Brasília, inclusive você está em Quixadá, quando você está em Unijuí, onde você estiver, nossos programas vêm de Brasília, já está tudo feito, tudo dominado. E agora eu fiquei dois anos trabalhando para o Estado, são 74 municípios, como formador de diretores, o que eles chamam agora de “executivos”, deviam chamar mesmo de executivos, é o papel ao qual eles foram relegados, é isso mesmo... está vendo? Palavra de ordem, nova nomenclatura, são os diretores. Então, quando a educação funciona no processo de significação, significados... ponto 1: você perde completamente a noção de sentido, o que é gravíssimo. Significado, significante, significação, tudo isso é a tropa de elite da pedagogia, que essa é difícil, é a tropa de elite completamente armada. Ela vem, portanto, totalmente ligada e fazendo desse trio uma alma, a partir de que? Da representação. Ora, a representação é interessante se você pensá-la, se você aplicar a representação você vai entrar em uma discriminação total e jamais vai chegar a um processo de educação, porque a representação diz: “eu sou um homem”, olha o filme!, “eu sou uma mulher”, olha o filme!, aí começa a dar significados-significantes. Quando eu dou um significado, eu posso chegar a uma situação – isso no quadro de uma escola, no quadro de uma educação nacional nossa – eu posso chegar a uma 344 catástrofe, porque você diz “homem”, todo mundo já tem um filme e você acata isso em uma escola como se já fosse... como se tivesse dado de uma vez por todas, “mulher” e está dado de uma vez por todas, “negro”, está dado de uma vez por todas, “pobre”, está dado de uma vez por todas, “favelado”, está dado de uma vez por todas. Então, significado, significante, significação, eu dou o pacote e, a partir daí, não há mais pensamento. Se não há pensamento, como vai ter filosofia? A filosofia é a arte de criar conceitos, aquela ideia de Gilles Deleuze. E eu que não gosto muito do verbo “criar”, eu digo “inventar”, criar pressupõe um criador, eu prefiro falar de inventar como se falava no Renascimento. Então, chega a necessidade de pensar a educação no Brasil, porque a gente só pensa por necessidade, pensar é como sair correndo porque tem que ao banheiro... Só se pensa na necessidade. É muito físico, é muito fisiológico também o pensamento, você não agarra o pensamento, é necessidade. Se um país não tem necessidade de pensar é muito difícil ter uma pedagogia que pense... A pedagogia é a pedagogia dos resultados, copiando países que já passaram por todas as fases que nós não passamos e que nós estamos apenas chegando, a gente corta todas as fases e dá uma coisa esquizofrênica, meio doida. Em um país de quase escolas, quase professor, quase salário, quase tudo, em um país onde a educação, realmente, não tem importância, é só uma espécie de discurso teórico, cheio de metáfora, e, geralmente, levando os professores pra uma situação indigna, que é a situação do pobrezinho, daquele que tem vocação ou, como diz o Governador daqui, aqueles que trabalham por amor. Então, em um espaço desse de tanta aridez e de tanta ausência de um programa realmente pensado, sentido, um sentimento não mais como a significação, mas sim como a pele, sensu, é isso em latim. Com tem a representação, a significação, o significado, nós perdemos o sentido, perdemos o sentido do sentido, sentido tem a ver com a pele, é o erógeno também, mas o sentido agora virou significação e a significação é uma palavra de ordem, é isso. Dou um exemplo: Viril. O que que a gente fez com o viril? Viril quer dizer força, o que que a gente fez? Discurso, inclusive, da educação, porque tudo passa por aí, por isso que o tempo todo a gente tem que voltar, passa pela educação, é lá que a gente aprende essa significações, significados, esses significantes e a representação dominante. Palavra de ordem, dos valores ou não, dos signos e dos símbolos. 345 Eu digo “viril”, “viril” que dizer força e como é que a gente vai traduzir isso? Pelo menos no Brasil, nós vamos traduzir isso como virilidade, como sendo homem, e homem no sentido de gênero. E aí o viril passa a ser uma força, quase um ideal masculino. Como é força, o gênero aí não dá conta, mas o que aprendemos e continuamos aprendendo na escola? Que viril quer dizer coisa de homem. E você ver muitas vezes as professoras... por que não? Claro, e não é crítica nenhuma, é assim, porque o que domina é a representação, é a significação, é o significado, é o significando, tudo já dominado, chapado. “Menino, você tem que ficar um pouco mais viril, que história é essa? Para aí de ficar dançando como uma menininha”. Aí vem o outro, imediatamente você colocou a mulher em uma situação... uns exercícios de linguagem que a gente ver o tempo todo, mas que a grande vítima, já organizada pela representação, é a mulher, isso é histórico. Quando você chega na escola, se escola não te abre a possibilidade de revisitar toda essa gramática tão decantada, você nunca mais entrar no alfabeto. Uma coisa é a gramática, palavras de ordem, toda língua, todo país precisa dessa gramática, ma não precisa absolutamente aceitar essa gramática com toda a representação que a própria gramática tem, não precisa, porque se não o alfabeto não existe. Qual a diferença entre o alfabeto e a gramática? A gramática é uma palavra de ordem, é a escritura, são as tábuas da lei. O alfabeto é aquele que vai lhe dar a possibilidade de invenção, escapa um pouco à gramática, porque é um lugar onde há todas as possibilidades de erro. A gramática não, não pode errar, a gramática é aquilo, pode ter depois uma reforma, como o Vaticano faz uma reforma e mexe nos seus dogmas, mas a gramática é uma palavra de ordem. Se você não tiver o alfabeto que vai te dar uma possibilidade, não de sair da gramática, mas estando dentro e fora, o alfabeto... se você não tiver isso vai ser muito difícil você conseguir criar, porque o alfabeto é o lugar da respiração, o alfabeto seria uma gramática sem a lei do pai mínima, porque a gramática é a lei do pai, uma coisa bem masculina mesmo, inclusive nas concordâncias. Na França é madame, le President, aqui é o maior problema para chamar “a” Presidenta, está entendendo onde eu quero chegar? 346 Então, tudo isso pra dizer que se a filosofia, se o pensamento - e a filosofia não está sozinha nisso, mas a filosofia tem uma força imensa, porque ela é a arte de duvidar, se a filosofia encontrar a verdade, ela morre, aí vira uma religião. CRISTIANE: O Lyotard é quem traz, de certa forma, essa discussão com aquela categoria do diferendo, que foi traduzido para o português como “diferendo”, que eu acho que em Francês está différend. Em francês não tem problema, a palavra existe. Não sei se é por aí, pelo que eu me lembro da discussão dele, mas poderíamos partir daí. Talvez tivéssemos que dizer uma série de coisas que ele não disse, pois os filósofos são assim, isso é que é o legal... você pega e homenageia o filósofo e então você continua. O sonho filósofo não é ter discípulo, não é ter comentador, o sonho dele é ter um intérprete, que seria o papel da escola. Aí quando esse vazio de pensamento... Mas o tempo todo a representação ganhando, o tempo todo a opinião ganhando, o tempo todo o pensamento sendo colocado atualmente como uma coisa pejorativa: “coisa chata, nossa! Aquele pessoal pensa o tempo todo, gente. Coisa louca, né?”. Tem que ser, realmente... Primeiro, considerar que o pensamento é difícil, é chato, é complicado, e ter opinião. No Brasil tudo tem opinião, todo mundo tem opinião, não só no futebol, mas todo mundo tem uma ideia sobre educação, todo mundo tem uma teoria porque a educação no Brasil, segundo os dados oficiais, é um fracasso. Não precisa nem ter feito todos esses municípios que nós fizemos nesses últimos dois anos trabalhando com o Conselho de Educação daqui do Estado do Ceará, porque também trabalhei em Porto Alegre, convidado por uma pessoa muito ligada à Deleuze e que de educação ela conhece, o que ela fez foi isso, trabalhou Deleuze. Ada Kroef, que mora aqui atualmente, foi uma pessoa que eu convidei para a nossa equipe para dar conselho nesse projeto que a gente tinha e continua, porque eram só dois anos. Mas a Ada Kroef é um dos nomes no Brasil que... eu estava dizendo, não são instituições, são indivíduos que viram conceitos. Ada Kroef trabalhou, desde a gestão do PT, na Secretaria de Educação de Porto Alegre. Então, o que que ela fez? Ela pegou exatamente... porque era uma pessoa, e não uma instituição, tinha sua equipe, os Secretários acharam interessantíssimas as ideias dela, trabalhando com uma equipe muito boa e começando então a fazer o que? A chamar pessoas que trabalhavam com Deleuze, com Guattari, com Nietzsche, com 347 Schopenhauer, com Derrida, enfim, com toda essa gente que mudou a história da educação nesse meado do século XX até agora. Não pode esquecer que, cada vez que a França faz uma reforma, a última, por exemplo, que foi feita com Mitterrand, os convidados foram Pierre Bourdieu - é assim que se faz, se convida filósofos e não técnicos, os técnicos são em um segundo momento – Bourdieu, Michel Serres, Derrida e tem um outro, Morin, é assim que eles fazem. Este próprio Sarkozy fez uma reforma, a mesma coisa. Na Inglaterra, o que que os ingleses fazem? A mesma coisa. Convidam os filósofos. Porque quem é que vai pensar a educação se os filósofos não pensarem? Não vão ser as pedagogas, porque as pedagogas têm todo um processo de relação com a cognição e elas trabalham, portanto, já com o que está dado antecipadamente, o que é trágico. Porque, mesmo não sendo conhecedor de... não Vygotsky, vamos pensar em Piaget, Piaget trabalha toda a relação, por exemplo, dos estágios. Mesmo não sendo especialista, as professoras praticamente todas... eu não digo Vygotsky nem Wallon, porque isso aí algumas estão trabalhando, mas não é como Piaget que foi quase uma espécie de moda, tem até uma escola Método Piaget, como é que uma escola pode se chamar Método Piaget? Não tem método Piaget, isso não existe, é um cientista. Aí o Piaget tem toda aquela relação das fases. Basta ler Piaget pra você entender que a escola não pode mais continuar totalmente baseada em palavra de ordem sem querer pensar o conteúdo curricular, é impossível. Por quê? Porque você vai dar a uma criança que tem sete anos - que a gente diz a idade da razão, coitadinha - a partir daí ela só pode pensar o que deve ser pensado, só pode estudar o que deve ser estudado. Quem decide o que deve ser pensado? E como é que fica todo o manancial, todo o conhecimento que essa criança traz com ela? Como é que fica? Ela chega como uma pessoa na mata? Ela está em uma floresta? Não. Ela chega com todo um capital cultural e lingüístico, muitas vezes, importante, tudo depende do segmento social dos quais elas vem, no geral. Então, essa criança chega e é o domínio da representação, portanto, da cognição. Eu vou trabalhar com uma idéia de conhecimento e de saber. Esta idéia vai me levar a que? A aplicar. E eu me esqueço que eu estou aplicando para quem? Para crianças, depois para adolescentes, jovens, adultos. No fundo, eu estou aplicando sempre para sujeitos e, no caso da criança, eu já vou aplicar sem ter nenhuma preocupação com o 348 acontecimento na pedagogia, eu chamo de acontecimento na pedagogia dizendo que o acontecimento seria o efeito surpresa que toda criança precisa para se desenvolver e crescer e para ter também o amor pelo que ele não conhece, pelo desconhecido. Como ter amor pelo desconhecido se toda programação do Brasil, com as exceções de praxe... é claro que não dá para generalizar, mas o fato de não generalizar não quer dizer que eu sou tão idiota de pensar que tem menos de 5% das escolas brasileiras que conseguem fazer o que a gente fez, o que a Ada Kroef fez lá em Porto Alegre - daqui a pouquinho a gente volta para continuar falando de Porto Alegre, porque tem tudo a ver com a experiência deleuzeana - às vezes, parece quase uma caricatura, para quem não conhece, porque todas as palavras são as mesmas, todo o sistema é o mesmo, não é por acaso que deu tão certo, é uma das melhores escolas do Brasil...eu estou falando da pública, minha experiência com a Ada Kroef foi na pública. Diante desse impasse de uma pedagogia que não pensa e uma pedagogia como lugar da exclusão totalmente, quem está trabalhando na escola pública são as coitadinhas, estão chegando também os coitadinhos agora, geralmente eram as coitadinhas. Por quê? Porque o país inteiro, com exceção de Brasília e do Rio Grande do Sul, não diria nem Paraná, primeiro Brasília, onde a professora tem o salário igualzinho ao da Europa desde o começo, e Rio Grande do Sul, onde a professora tem um salário muito interessante, inclusive com a coligação de direita que está agora, é como se fosse a Finlândia. O fato de eu ter uma escola que está fazendo um trabalho, o trabalho está funcionando, como é que a gente sabe que funciona? Quando começa a criar competências, quando começa a dar sinais de etapas alcançadas, quando começa a criar uma idéia de desejo de pensar e não só desejo de imitar. Nós não estamos na relação da imitação, do decalque, se não você não vai ter mais escola e vai ser uma formação péssima, você não vai ter mais mercado de trabalho, isso é real. Então, a filosofia não foge disso. Se tivesse no Brasil...contando deve ter umas dez experiências, quando você tem uma escola que trabalha com o pensamento e, portanto, com os afetos, não dá pra retirar o pensamento dos afetos. Por quê? Porque o pensamento é a abertura para pensar aquilo que está dado como certo. Esse é o lugar do afeto, é essa abertura para uma diferença que difere, somos todos diferentes, mas não tem hierarquia de diferença, não tem uma diferença melhor que a outra, se não a gente vai entrar em um discurso da representação e chegamos, portanto, no mundo da 349 homoafetividade, onde parece que essa diferença se coloca como sendo melhor do que todas as outras. Então, quando você chega na interpretação, por exemplo, do racismo, da violência, contra a homoafetividade, o fato é real, mas as interpretações dessa violência fogem completamente à ideia do pensamento, porque ainda vem com o clichê, “ é porque eu sou isso”, acredita que alguém é, que não estar em devir, entendeu o que quer dizer? Então você encontra inclusive em um caso delicado, é seríssimo o problema da homoafetividade no Brasil, as mortes, os assassinatos, etc, coisa de doido, é terrível o que se faz aqui. Entretanto, este caso é verdadeiro, é real, se mata o homoafetivo no Brasil, se despreza o homoafetivo no Brasil, há um problema sério de classe social, inclusive, entre eles. Eles também vivem em um sistema quase de guerra, porque as classes sociais se encontram e, nesse momento, não tem mais diferença que seja igual, toda diferença, inclusive, no meio de uma grande diferença, como a questão homoafetiva, em todas as suas lástimas, as suas grandezas, mesmo aí existe uma luta não de classe, mas de lugares. Isso, se você não tem o respaldo da escola, pensando o que você está aprendendo e aprendendo com você, porque, como eu disse, você também não é uma selva, você chega cheio de conhecimentos, de coisas magníficas... se a gente desse tempo para os alunos, sobretudo para as crianças, como a gente aprenderia, e algumas escolas minoritárias dão um tempo ... entre outras escolas, praticamente todo o sistema público, não sei como é que tá, eu perdi o sistema de dois anos para cá, eu fiquei até 2008 acompanhando, até as últimas eleições, não... penúltimas, né? De 2008 praticamente eu não voltei mais, aí a Ada Kroef veio para cá trabalhar conosco. Mas o que eles fizeram foi isso, foi trabalhar com a filosofia que saísse do lugar comum, que não trabalhasse a cognição, portanto, que não desse para o aluno aquela idéia de que está tudo dominado e que, quando o aluno chega na segunda já vai saber o que ele vai fazer na sexta. Considerando que esse menino está começando, sobretudo na relação seis, sete anos, que é quando ele começa realmente a alfabetização, porque, no Brasil, nem todo mundo começa na mesma idade, aqui tem meninos que estão começando a alfabetização com cinco anos, as escolas tem esse poder de fazer isso... mas eu estou colocando a alfabetização nessa idade de seis, sete anos, pensando por aí. 350 Quando chega, está tudo controlado, tudo dominado, é o pensamento da cognição, portanto é um conhecimento que é dado por antecipação, eu vou dizer para o menino que ele vai ter isso segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Não tem, absolutamente, o acontecimento, aquilo que eu falei, o efeito surpresa que a criança precisa ter para se desenvolver sua curiosidade e para descobrir o novo, o que está por vir, o que não é ainda, tudo é dado. Então, desestimula, a escola trona-se uma coisa chata, por isso que a maior parte das escolas no Brasil é chata, se você faz entrevista com as crianças, trabalho que os sociólogos já fizeram, muito mais que o pessoal da educação, porque isso é muito mais um trabalho de sociologia, trabalhar com essas enquetes e tudo isso, tem trabalhos muito bons feitos no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, mas não só. As crianças acham chatas por quê? Porque a escola não tem o novo, até a comida, às vezes, repete. É uma repetição, uma cópia tão grande do que não deu certo, que é o Brasil que não deu certo, aí repete tudo, até a comida. Tem um professor cearense que fez o doutorado dele sobre alimentação das crianças daqui. São incríveis os resultados e isso devia ter interessado a todo o corpo de professores, mas ficou lá, se falou muito pouco. Eu falo sempre que eu posso, porque nesse trabalho que ele fez entra na relação do pensamento em cima de práticas completamente histéricas, por exemplo, de alimentação. Aí vamos pensar o cardápio das crianças... as crianças chegam e não querem. Por quê? É a mesma coisa que a gente tem em casa, as que comem, eu estou falando: feijão, arroz, pedacinhos de tomate que elas não comem, deixam de lado como deixam em casa, e ou um pedacinho de frango ou de carne, etc. A mesma coisa, é a mesma coisa que tem em casa. O que é que essas crianças querem? Elas querem coisa diferente também, que não tem em casa. Algumas dão o exemplo do iogurte, que elas adorariam ter como sobremesa o iogurte, por que uma banana todo dia? Então, é muito interessante o trabalho dele. Por um lado... que também não tenha interessado a muitas pessoas, talvez o próprio pesquisador. O que mais me interessou foi ver que a criança tem também uma palavra, ela tem um lugar, inclusive naquilo que ela come... “não, minha mãe já faz isso”. Ela está esperando da escola, inclusive na alimentação, o novo, uma espécie de filosofia do estômago. Ela encontra a repetição. 351 Mas isso é marcado e o fracasso escolar tem muito a ver com isso. Uma escola que trabalha com tudo já dado antecipadamente, é um programa às vezes feito para três anos, e às vezes um programa que é feito para um Estado inteiro e podemos chegar a loucura do Brasil, em algum momento, que era [...] no país inteiro, sabendo que não se ler no Brasil. Inclusive, a escola é um lugar de não leitura, é um paradoxo, mas não se ler. Está tudo feitozinho, tudo contado, você só ler aquilo. E muitas vezes... quantas escolas eu já visitei no Brasil, não só no Ceará, onde aqueles livros maravilhosos estão escondidos, guardados, velados lá porque se não os meninos vão estragar. Isso não é mais folclore, isso e real. CRISTIANE: Livro, material escolar ... Material escolar, tudo na chave. Mas não é pra estragar mesmo? CRISTIANE: Guardado pela Diretora. Pois é, pela Diretora. Então, a filosofia surge aí, não tem jeito, por isso que eu falei da necessidade. Porque você pode pegar o que a gente tá falando, retira todas essas coisas e dá uma coisa linear. CRISTIANE: Fica a vontade. Porque eu só sei trabalhar assim, é muita coisa que vem ao mesmo tempo. Então, quando eu te falei que era uma necessidade... acho que agora dá pra entende, só se pensa por necessidade. Colocar o pensamento na filosofia é colocar os afetos, colocar os afetos é ficar também na escuta desse capital cultural que são os alunos, em qualquer que seja a faixa etária. Qualquer que seja a idade, chegam todos com um capital cultura, inclusive os que vêm de lugares impensáveis, às vezes até mais humilhantes, socialmente falando, do que as favelas, o rural e tudo isso. Eu sei o que eu aprendi durante esses dois anos e todo o tempo que eu trabalhei com educação, são anos... eu comecei a trabalhar com educação na maternal na França, limpando bundinha de menino, dando banho. Todo mundo na França um dia tem que ir para o liceu para ser professor... eu fui maternal, primário, liceu, colégio e só então cheguei na Universidade. Então, é uma experiência muito longa e sei muito bem porque é que a maternal na França é considerado como o melhor programa de ensino do ocidente e porque é que os finlandeses copiaram a maternal francesa, porque tem a estrutura necessária para ser desestruturado pela criança. 352 Você dá uma espécie de estrutura, mas essa estrutura tem linhas de fugas, essas linhas de fugas que vão correr por todo lado, é a cabeça do menino com a sua invenção, ele vai pegar o instituto que ele precisa, ele precisa ter uma espécie de eixo, mas esse eixo não é, absolutamente, o lugar da verdade, esse eixo é o lugar da experimentação. É só prática, isso. Então, ele precisa de um eixo, ele precisa de uma coisa bem centrada para poder descentralizar, para poder sentir-se a vontade para poder entrar na invenção, mas ele precisa voltar. Por isso que há sempre um processo, não existe territorialização fora da desterrotorialização e não existe desterrotorialização ... [sem territorialização] é como Apolo-Dionísio, você não pode dizer Apolo “e”, não... quem nos disse que Apolo não é ainda uma figura de Dionísio, uma figura conceitual, sobretudo, um personagem conceitual, e que Dionísio não é uma figura de Apolo? Interessante isso, quando você pega o jovem Nietzsche, da “A Origem da Tragédia”, que ainda está um pouco da dualidade, Apolo e Dionísio. Quando você começa a ler você vai vendo que não, que é impossível dividir essa história, porque aquilo dali é humano, demasiado humano está tudo junto, entretanto em uma diferença que difere. São diferenças que não têm hierarquia, mas são diferenças e, portanto, singularidades. Apolo não é Dionísio, Dionísio não é Apolo, entretanto essas diferenças que diferem participam de uma espécie de complementação, mas guardando cada uma diferença a sua singularidade. Por isso que nunca é uma dualidade. O pensamento dual é o pensamento da pedagogia, bem ou mal, aí quando a filosofia chega, a filosofia do Deleuze ou do Nietzsche...bem ou mal? Mas isso não existe, existe bem-mal, bem e mal não. Quem vai decidir aquilo que é bem? Quem vai decidir o que que é mal? Vai ter que ter uma fala. Essa fala vem de onde? Da escola, já começa aí. É mais ou menos como diziam: o Brasil foi descoberto. Você repete, você está passando uma ideologia terrível, porque quando você diz “o Brasil foi descoberto”, você não só mantém uma ideologia, a escola torna-se, portanto, aquilo que faz com que...o livro de Pierre Bourdieu, “A reprodução”, um livro com cinqüenta anos fazendo o sucesso que está fazendo no mundo todo e foi muito escondido no Brasil por causa dos marxistas da época, naquele momento da ditadura, quem era de esquerda não lia Bourdieu, sobretudo 353 aquele livro que ele mostra exatamente a escola como um lugar por excelência da legitimação da dominação. Se alguém tinha alguma dúvida, hoje não dá mais. Toda a América Latina, todos os países de leste, a Finlândia lê os livros em finlandês, faz parte da formação das crianças que serão os novos chefes de amanhã. É uma escola que deu certo, um sistema incrivelmente eficaz e sem nenhuma preocupação de luxo, isso é que é interessante nas escolas da Finlândia... já estou entrando em outra conversa, né? É porque é tanta coisa, são tanto anos de educação. Então, quando você entra em uma estrutura que não pode mais pensar, onde está tudo controlado, resultado: quem vai fazer essa criança na escola? Qual é a força de Deleuze? É justamente quando fala...ele diz: “eu gostaria de dar um curso como se eu estivesse em um concerto de rock”, quando ele faz o elogio de Bob Dylan. E por que Deleuze trabalha na filosofia dele com coisas tão práticas que se tornam quase um manual antipedagócico, mas só coisas práticas? E por que não dar um curso como se fosse um concerto? E o que é esse concerto? Se você pensar que ele está falando de rock, porque muitos alunos roqueiros eram alunos de Deleuze e tinham paixão pelo rock de Bob Dylan... o lugar do rock, sobretudo, é muito interessante porque eles estão tocando, mas você está dançando e não existe rock sem o público, podemos dizer que não existe piano sem o público. Só que na relação do piano você está com toda emoção, você está lá, mas não há participação física, há sim, mas ela é invisível, porque todas as emoções... no caso do rock é uma loucura, porque é uma das raras músicas que é para você dançar, se movimentar. E como os roqueiros que Deleuze tanto gostava entram em um processo contínuo de territorialização e desterritorialização, seria a idéia de uma pedagogia filosófica baseada, pensada a partir de Deleuze e de outros, da desconstrução e tudo isso, é um excelente exemplo. O roqueiro é capaz de improvisar dentro de uma estrutura aparentemente fechada. Quando é que ele improvisa? Quando ele sai dessa estruturação, vamos dizer, uma escola saindo de uma pedagogia fechada, e ele começa então... ao mesmo tempo que ele está dentro (de dans), ele está fora (de hors). Fazendo o que? Vibrando e, muitas vezes, se calando para que o público cante. Por isso que ele falava. Pode ser dar até dar uma aula como se fosse um concerto de rock. Então, nessa possibilidade de ter o rock nessa estrutura, mas essa estrutura foge através das linhas de fugas. São coisas que não têm nada de abstrato, é muito prático e é 354 isso, mais ou menos, quando a gente trabalha com Deleuze e, sobretudo na experiência de Porto Alegre, mas aqui também, foram dois anos... imagine o que aconteceu nesse sertão, né? A gente levando tudo isso, a Ada Kroef e eu, porque nós éramos os únicos em um grupo...o grupo chegou a ter 25. Então era um grupo... vou nem entrar por ai, é outra história, mas éramos nós dois. CRISTIANE: Seria importante posteriormente o senhor fazer um registro disso. É, mas eu acho que a Ada está fazendo tudo isso e a Ada seria a pessoa mais indicada para falar. No começo eu fui convidado para coordenar e convidei a Ada, foi assim que ela veio e que fez e está fazendo um trabalho muito legal, apesar do ambiente e do que é possível, quando o pensamento chega faz muito medo. A gente trouxe coisa nova a partir de uma experiência que já tinha sido experimentada e, quando ela chega aqui, nós não vamos mais em Porto Alegre. Aqui a diferença é uma diferença que difere e nós não podemos mais copiar. Então, quando você chega no Ceará, não tem mais na a ver com Porto Alegre, e tem, porque, como a filosofia é nômade e o pensamento é nômade e esse nomandismo significa que é uma filosofia órfã, ela pode, o tempo todo, se inventar pais e mães que vão funcionando dentro de uma escola em uma relação de... esse meio aqui tem que existir. O que vai ser diferente é uma experiência que nós temos com a história do Rio Grande do Sul, de Porto Alegre, com as escolas municiais, já... primeiro: a noção de escola, em Porto Alegre existe escola. Nós não podemos dizer que existe escola pública, eu digo físico, no Ceará. Eu visitei 89 e dei curso em, mais ou menos, 74. Quando a gente conta uma escola que fisicamente corresponda à definição de escola tem muros, tem banheiros, tem refeitório, tem lugar para os meninos comerem, é fantástico quando você encontra isso. Biblioteca praticamente não tem, não há livros nas escolas, é o último dos cuidados daqui, a biblioteca. É assustador. Você chega em Porto Alegre, tem tudo disso. Eu dizia: “Ada, por favor, me mostre uma escola pública”, aí ela: “Professor, o senhor está em uma escola pública”, “mas o referencial de escola pública que eu tenho é a escola nossa do nordeste”. Mas é um impacto que você não pode imaginar. Eu queria uma escola pública não acostumada com essa não escola, não professor, não salário, essa quase escola, essa quase tudo. Mas 355 é uma coisa tão violenta e, ao mesmo tempo, os que estão com o poder de fazerem algo pela escola sequer sabem o que é escola. Estão é desrespeitando os professores, brincando com os professores, humilhando os professores. É muito difícil você querer chegar aqui como a gente chegou e querer... em primeiro lugar, pensar que isso é a França, em segundo lugar, pensar que é Rio Grande do Sul. Não é! É um caso de pobreza extrema, de violência simbólica como eu nunca vi em todas as minhas experiências de educação, inclusive na Índia, eu fiquei um ano naquela região de Goli, de língua portuguesa, já fui quase quinze vezes. Então não estamos mais comparando com a Finlândia, que diz o mesmo argumento nosso para não encarar o real: “mas isso é um país pequeno”. É, há vinte anos era o país mais miserável... eram os árabes da Escandinávia, como eles diziam, os suecos tinham racismo com eles, os dinamarqueses, porque eram os pobres, ninguém gosta de pobre, sobretudo o nordeste, detesta o pobre, e no Brasil em geral, mas lá também ninguém gostavam. Vinte anos depois, o que é que nós temos? O maior centro de formação de educação do mundo, que está vendendo para o mundo inteiro a sua qualidade, só escola de altíssimo nível sem se perder na relação do mercado, sem se perder na relação da criação de emprego. Agora é outra história. Eu estou escrevendo um livro sobre a Finlândia, eu tenho relações sentimentais com a Finlândia. Então, você chega aqui e não pode colocar esse fenômeno, não dá pra ficar imitando essas coisas, absolutamente. Você tem que pegar um Estado como o Estado do Ceará e trabalhar com o que você vai encontrar. E o que você vai encontrar aqui geralmente não é escola, é uma caricatura da escola. Você pode chegar na sala do diretor, sala entre aspas, isso tudo é entre aspas, porque quando a gente diz sala, na cabeça..está vendo? O significando, o significado, viu a importância de revisitar tudo isso? Porque ou você pensa no que está afirmando ou você vai chamar de escola. Primeiro: uma arquitetura de galpão, uma arquitetura de galinheiro, tudo é galinheiro, um calor terrível, eu cheguei a ver dois banheiros para, mais ou menos, 360 pessoas. Outros colegas meus disseram que eu tive muita sorte porque eles viram dois banheiros sujos e abandonados para 510. E aí a gente continuaria. 356 Então, quando você chega nessa situação, o que faz a filosofia? O que que ela vai fazer? Como é que eu vou fazer? Eu estou trabalhando com a desconstrução, eu estou trabalhando exatamente com o sentido e não com a significação. Eu não estou trabalhando com a representação. Como é que fica Deleuze nisso tudo? Deleuze é apenas o intercessor, que trabalha somos nós e quem faz o que a gente quer com o que Deleuze escreveu somos nós. Ninguém está copiando Deleuze e nem teria que copiar, até porque é impossível, filosofia não dá para copiar. A gente trabalha com princípios interessantes, que são os princípios da ética, da estética e dos afetos, portanto eu estou trabalhando com o pensamento, porque sem afeto não há pensamento, porque pensar dói, pensar machuca, pensar não dá conforto. Claro que não, é o novo, o novo é assustador, mas, ao mesmo tempo, o novo é o que as crianças querem. Engraçado, né? “Ninguém aguenta mais”, dizem elas: “Todo dia a tia faz a mesma coisa”. Na prática, o que que você chega...você trabalha a Filosofia da Educação com Deleuze, que ele nunca escreveu nada, nós é que dizemos isso, porque tá cheio, até a leitura ele escreve, como é que se lê um livro, é incrível! Nas entrelinhas, em Deleuze não tem recadinho, é como a entrevista, você vai pegar a entrevista e vai colocando as coisas para que o leitor minimamente... Deleuze é assim, você vai ter que ler o livro todinho para encontrar a educação, a obra dele inteira. Porque já foi professor de colégio. Na França, todo professor tem que passar... a primeira experiência antes da Universidade, tem que ser professor de colégio e Deleuze, como todo mundo, como Foucault, como Sartre, como Simone de Beauvoir ...não chegaram a essa loucura minha que começa com o maternal, que a minha situação não era a mesma, absolutamente. Primeiro eu tive que fazer formação em uma escola de formação para ser professor, eu era filósofo e não dá aula quem é filósofo, o filósofo só dá aula no colégio. Mas eu queria começar, eu queria conhecer a educação francesa. Então, para dar aula no maternal, primeira coisa, eu teria que ser francês, claro; em segundo lugar, eu teria que fazer uma formação, na época eram os institutos universitários de formação, UFM, eu tive que fazer. Então, isso é uma coisa singular da minha parte, mas os professores não. Eles terminam a filosofia e fazem um exame dificílimo, que se chama CAPS, ou Agregación, aí vão poder dar aula, você ver o nível. Por quê? Porque a filosofia vai chegar. Quando 357 chega a filosofia, o que que você vai criar? Você vai criar a crítica e a autocrítica. O velho Marx não está longe disso. O que que é essa história de crítica? A crítica é como clínica, a crítica, portanto, não absolutamente uma crítica para nada, uma crítica histérica, que não se trata disso, mas uma crítica que está, ao mesmo tempo, criticando e a maneira de criticar já é uma maneira de passar uma série de informações e possibilidades para que tudo isso cresça, sabendo que essa crítica pode ser criticada por outra. Isso é um movimento rizomático, não tem crítica verdadeira, tem crítica para aquele momento e vamos ver até quando essa crítica não precisa ser revisitada. É a história de como definir uma escola se a escola em si não suporta absolutamente o olhar sequer de uma crítica da semântica! Uma escola que não é uma escola. É, mais ou menos, como o Festival de Guaramiranga, é muito interessante. É um festival de teatro sem teatro, pois o teatro teve problemas em Guaramiranga e, como sempre, nós estamos no Estado e no país do quase, quase teatro, quase festival, tudo foi feito na rua, o que desmontou... quem estava falando era uma grande autoridade, era o Antunes. Ai eu falei: “Meu Deus do céu, como é que pode um festival de teatro, com o silêncio que isso exige, com o cuidado... na rua!”. Foram para a rua. Por quê? É o famoso jeitinho. A rua teria importância se isso fosse feito como protesto, mas não para “quebrar o galho”. E você encontra isso na educação. Você tem as escolas que são chamadas... você tem a escola e você tem o anexo, é uma espécie de favelinha, mais favelinha ainda que a escola principal. São exatamente os anexos, essa é a palavra. Esses anexos continuam. Então, imagine que chove – isso é coisa real, não vou dizer aqui porque não quero humilhar o Prefeito nem as pessoas lá –, choveu e caíram dois anexos. Como tinham mais três anexos... a favela, eu vou dizer favela, mas não, os favelados não morariam em um lugar daqueles, favelado tem respeito para morar em um lugar daquele onde eram aquelas escolas, algumas eram fundo de casa de farinha, sem comentários. Aí cai. E quando cai, vamos fazer então o que? Como é que a falta de pensamento, como é que a falta dessa crítica clínica, saúde, positiva, coisa forte... essa palavra “positiva” me faz medo, porque positivo quer dizer que a gente aceita tudo, é o bobinho da corte, está tudo ótimo. 358 Saúde, a clínica só funciona se for saúde. Se tiver qualquer coisa em uma crítica que não traga algo de novo, você está perdendo seu tempo, você está criticando para nada. Aí tem um enfarte, né? Porque a crítica pressupõe uma passagem imediata, não de resolução, mas de criação de problema. A crítica não é para resolver, porque se não quando anexo cai... Então, vamos resolver a questão. A filosofia não trabalha com resolução, trabalha com problemas. Vamos saber por que, desses anexos, quatro caíram e nós estamos naturalizando o anexo, quer dizer que é normal? Eu dizia para eles, no momento cruel que estava caindo eu estava lá. “A senhora vai colocar seus filhos onde?”. “Em uma escola particular. Eu sei o sacrifício que eu passo com esse salário, mas eu não vou colocar meus filhos nunca em uma escola pública”, o que é um drama para os diretores e professores, porque eles queriam muito... vivem esse drama pelo fato de terem colocado os filhos em uma escola particular com esses preços exorbitantes que a gente sabe, são coisas monstruosas o que essas escolas cobram. Eu sei porque meu filho estudou em uma dessas aí, coisa louca! Quando eles então... “vamos fazer um mutirão e resolver”, e eu só acompanhando. Como é que vai resolver? Faz-se um mutirão, aí fala-se em cidadania e vamos ver com as duas professoras se cada um deles não podia catar... ao todos nós tínhamos 26 alunos na rua, porque de qualquer forma está tudo jogado, mas pelo menos essas que caíram eram cobertas. Então, as professoras, cidadãs, aceitaram, houve aplausos e esse meninos passaram a ser divididos em três anexos. Muito bem, é muito legal... hoje não, mas amanhã eu continuo meu curso, amanhã a gente vai falar sobre a Filosofia não como uma ciência humana que está aqui para resolver, mas para criar problemas. Um mês nós trabalhamos isso, Filosofia como criação de problemas, e eles entenderam, porque quando você faz isso você saiu da sua dignidade de homem, de ser humano que pensa, porque nem os animais fazem isso. Os animais devem ter um pensamento, a gente é que acha que não tem porque a gente decide por tudo, mais uma coisa da representação. Nós achamos que nós somos os melhores na natureza, fizemos essa divisão criminosa, tem início com Platão, “corpo e alma”, e agora estamos aí na situação que a gente está, achando que a gente é o rei da cocada preta. 359 Aí vem exatamente nessa situação que, a cada hora, você tem que pensar não para resolver, mas para criar problemas. Um mês, a Ada e eu, os outros... você não podia formar todo mundo, a maior parte é de um trabalho que começou para ser um trabalho filosófico e você sabe que politicamente é quase impossível, aí daqui a pouco nós estávamos nós dois e uma maioria toda linda, da educação, porque não tinha mais lugar para ficar, aí mandavam para a gente. Eu não queria falar disso porque a Ada falaria muito melhor, se bem que eu estou fora, então é mais fácil. Então, ficamos nós dois fazendo esse trabalho. Um mês, foram exatamente seis escolas, foi uma revolução, em termos positivos. E como é que vocês estão esse tempo todo querendo resolver o problema desde que o Brasil foi invadido? Foi invadido porque nós tínhamos quatro milhões de índios, e não se descobre quatro milhões de pessoas, só se descobre o que não existe. Se tem quatro milhões eu não descobri, eu invadi. Então, querer esquecer, isso que é histórico, e querer resolver este problema pelo esquecimento significa mais do que amnésia, significa denegação. Se é verdade que o Brasil foi descoberto, é uma palavra de ordem, eu passo isso para a escola. Não é verdade, mas é uma palavra de ordem. Segundo discurso: se é verdade que o Brasil não foi descoberto, pois havia quase quatro milhões de índios - eu não posso descobrir uma coisa que já existe, eu posso descobrir as diferenças, mas não que o Brasil foi descoberto – se é verdade que o Brasil não foi descoberto, a verdade não é verdadeira. É, mais ou menos, um discurso um pouco psicótico, com todo o respeito aos psicóticos, mas faz parte da síndrome. Aquela coisa que... se é verdade que o Brasil não foi descoberto, porque é verdade que o Brasil não foi descoberto, claro, é que a verdade não é verdadeira. CRISTIANE: Esquizofrenia. Esquizofrenia! Ao invés de eu simplesmente tentar criar problemas e discutir essa grade curricular... nós chegamos em tudo na escola, tudo, tudo! Pegamos, por exemplo, essa história da descoberta do Brasil, como é importante se você for criar um problema e querer saber porque você está contando essa mentira para os meninos, você está forjando pessoas que aprendem a mentir desde o começo dizendo que o Brasil foi descoberto. Parece brincadeira, mas isso funciona, isso te dá uma espécie de direito... é o que se chama no Brasil de medida social, o país todo que mente, e ai não são só os 360 políticos. É incrível como se mente nesse país! “Diga que eu não estou”, no telefone. É a casa do cara... “diga que eu não estou” e você está. Nosso problema aqui, quando a gente chegou com os nossos filhos... eles tem outra educação, é outra diferença, “papai está, mas não pode receber agora porque ele não pode”, precisa nem explicar. Os meninos todos dizem “papai não está”. De maneira alguma. Eu pegava e dava esse exemplo, colocava filmezinhos, os franceses dizendo para os meninos se manterem, “não mintam”, no maternal, “não minta”, porque você vai ser feliz se você não mentir, a idéia da felicidade... aí começa a passar filmezinhos, era o que a gente fazia. Agora, eu estava no Ceará, onde, se você não mentir, você pode morrer, entendeu a diferença na diferença, a diferença que difere? Se você não mentir, você pode morrer, podem mandar matar você aqui. Eu fui expulso de uma sala de aula na cidade de... onde tem uma que tem uma bica poluída, Ipu! Com este Prefeito que está ai que teve problemas sérios com a Justiça, quando eu cheguei lá, fui dar meu curso e meio dia terminei a minha primeira parte, quando eu voltei estavam todos os diretores do lado de fora dizendo: “Professor, nós estamos com o senhor!”. Eu disse: “o que aconteceu?”, “ o senhor está proibido de dar aula aqui, não pode fazer isso com o Prefeito, etc”. CRISTIANE: Mas por quê? Qual o motivo? Porque as minhas aulas falavam de coisas que poderiam tocá-lo politicamente, pois eu estava falando da quase escola, da quase educação, quase salário, com um documento do Haddad. Aí eu falei: “a primeira coisa que você vai mandar fazer é prender o Ministro e a segunda coisa é que o senhor não tem nem autorização para falar comigo, quanto mais para me prender”. Só que eles vão correndo ver o meu motorista... eu não vou nem explicar porque que eu tive que comprar um carro, ter um motorista, pra te dizer a quase escola... e como é que esse filósofos são importantes nessa história? É tudo isso, é a importância desse pensamento filosófico, sobretudo Nietzsche e Deleuze, nessa história, e Guattari, evidentemente. Vem correndo para avisar para o motorista que tenho que ir embora porque o pessoal está lá para me matar. Pego o carro, aí eu recebo um telefonema do professor: “você viu o mundo em que nós estávamos e que a Ada continua?”. Professor Edgar Linhares, que é uma das pessoas mais legais que você pode imaginar, uma cabeça de adolescente: “Professor 361 Daniel Lins, pelo amor de Deus, venha embora correndo!”. Saí correndo com o motorista, o motorista desesperado, erramos o caminho... é assim que a gente faz educação Deleuze e Nietzsche, no Brasil especificamente. Pensar não dá conforto, é um perigo, é um perigo, é um perigo! Então, entendeu aí a dimensão? CRISTIANE: Professor, eu estou preocupada com o seu horário, eu já lhe tomei muito tempo, mas queria só que o senhor retomasse uma questão que, de certa forma, está presente nas minhas reflexões e também está presente no real. É uma certa discriminação de alguns filósofos com relação à área da educação, alguns supostos filósofos, por exemplo, e isso é histórico no Brasil, e a partir do século XIX, a partir de Durkheim, quando ele coloca um certo manto positivista sobre a educação e parece que isso é embebido pelo Brasil, alguma coisa próxima a isso... o fato é que no Brasil e também no Ceará a gente tem essa posição de alguns filósofos que compreendem, por exemplo, que filosofia da educação não é filosofia, porque isso pressuporia uma ação mais concreta sobre a realidade, que fazer filosofia estaria ligado mais àquelas questões dos uspianas que a gente já remeteu ao momento estrutural. Filosofia não é você pensar a realidade, é você ler textos. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, essa coisa absurda que existe nas academias brasileiras. Nas pseudo academias, francamente! Eu conheço o que você está falando! Eu diria como Deleuze: “discussão não é o meu problema”. O assunto é tão subdesenvolvido, é de uma tristeza e de um niilismo típico de filósofos brasileiro que não são filósofos, são professores de filosofia. Não temos o direito de criar um conceito, o filósofo no Brasil que criou conceito está no dicionário, um grande filósofo, chama-se Bento Caio Prado Junior, que morreu recentemente, ele é O filósofo. Por quê? Por que ele criou um conceito. CRISTIANE: Ele foi um dos primeiros a traduzir Deleuze no Brasil. Pois é, eu sei! Mas o mais interessante é quando ele faz a tese dele, que ele chega em Paris... ele não sabia que Deleuze trabalhava na Universidade, ele vai descobrir lá e ele estava a frente do Deleuze. Deleuze ficou completamente apaixonado e cada vez que ele falava do Bento, ele ficava emocionado, dizia: “que coisa bonita, em 362 um país onde praticamente todo mundo comenta, tem professores de filosofia e comentadores de altíssimo nível, mas cadê a filosofia? Por que não tem filósofo?”... inclusive grandes pensadores que nós temos aqui, de altíssimo nível, muito importante, mas para ser filósofo... CRISTIANE: E pior ainda, ser filósofo pensando a educação. Aí é que é um sacrilégio. Não dá pra separar. Se você pegar a história da filosofia, a filosofia passou a sua vida a pensar a educação. Só que a educação não se referia à criança, pois a criança não era nem uma categoria social, passa a ser praticamente no século XVIII com aquele livro do Philippe Ariès, “A história social da criança”, mas pouco importa, o filósofo sempre pensou sobre educação e quantos escreveram sobre educação. CRISTIANE: Não pode pensar em algumas academias aqui no Brasil. Porque o problema e o seguinte: quando você é professor de filosofia, você não é um filósofo, você é um leitor, aí você lê aquilo, mastiga e dão as aulas, grande professores, inclusive, com excelência retórica. Mas resultado: essa formação é uma formação fracassada, que não conseguiu formar filósofos. Na hora que tem um filósofo que cria um conceito ele está no dicionário de filosofia. E eu procuro muito, que eu viajo esse mundo todo, eu procuro dicionário de filosofia... eu peguei, na Finlândia eu só encontrei o Bento e encontra pessoas de altíssimo nível, como Marilena Chauí, a grande e virtuosa, quase em uma linguagem musical, comentadora de Spinosa, como não existe, praticamente, não existe no Brasil, ela concorre com os grandes da França, que são muito maiores, muito mais que na Alemanha. Aí são elogios infinitos. Mas filósofo é quem produz conceito. Imagine Platão, professor de filosofia, morrendo de tédio, sempre falando dos outros, se ele não tivesse criado o conceito de idéia... não precisa estar de acordo com Platão, mas ele é filósofo porque criou conceito. Quando eu, brasileiro, crio meus conceitos, e criei muitos conceitos, inclusive peguei o rizoma, que é um conceito da biologia que Deleuze já pegou, e com Deleuze andei até um certo momento e depois já parti para outra história dentro do rizoma quando eu descobri uma coisa muito bonita que Deleuze dizia: “lugar bom para fazer filosofia são os trópicos”. 363 Aí eu peguei essa brincadeira dele e comecei a trabalhar o rizoma, por exemplo, pegando os mangues. Daí aquele texto que saiu e foi publicado não sei em quantos lugares, que correu o mundo, Mangue’s School. Eu fiz questão de colocar em inglês, uma espécie de sinal, sinalizando... se tratava de mangues, mangues, por acaso, aqui no Ceará, porque foi na Ilha do Pinto, em Fortim, perto de Canoa Quebrada, que foi onde eu descobri. Quando eu mergulhei que eu... “meu Deus, e pensar que Deleuze ficou anos para pensar com Guattari o rizoma e eu pergunto para o pescador ‘me diga uma coisa, mangue não tem nem começo e nem fim?’”. Aí ele disse assim: “ó doutor, desculpa aí, eu estou vendo que o senhor é um senhor sábio, mas olha... tem começo e fim não, aqui só tem meio”. Para Deleuze encontrar isso que ele me disse foram anos e anos e anos. CRISTIANE: Você pegou uma representação forte na cabeça da gente, né? Eu fiquei pirado porque... cadê o começo? Quanto mais ele me levava... eu peguei a máscara e mergulhei, quanto mais ele me levava... Eu digo: “uma loucura, né?”. Então, a partir daí eu comecei a ler as árvores lá em Belém, tudo isso é por acaso, ou então o Ibirapuera, com aquelas árvores magníficas que tem em São Paulo. Onde é que está a raiz fundadora? Isso é que é criar conceitos, onde está a raiz fundadora? Agora além de colegas professores de filosofia, eu não conheço um filósofo no Brasil. São excelentes professores de filosofia, mas são duas coisas diferentes, temos grandes professores, mas, mesmo assim, nada de novo, pois se repete. Não há mudança, praticamente, no Brasil, é uma dominação dos signos na filosofia. É como se fosse possível continuar a fazer filosofia sem criar filosofia, é um complexo de vira-lata. Isso é terrível! CRISTIANE: É como diz o Paulo Arantes, que escreveu o livro sobre a USP: “é muito estranho um país onde você tem filósofos que não filosofam”. São professores, e muita gente boa, de altíssimo nível, pessoas com uma erudição... eu dou muita aula nas universidades brasileiras, participo muito de banca nesse departamento de filosofia e eu vejo jovens. Você sabe onde é o trampolim para eles? É Deleuze, Nietzsche, que a universidade recusa dizendo que não é filosofia, porque filosofia boa para a academia brasileira é a filosofia que não pensa. E como é que uma filosofia não pensa? Muito difícil. 364 Porque se você pensar... evidentemente que o investimento é imenso para pensar, porque, eu já disse, pensar não dá conforto, pensar dói. Porque aí você vai ter que ler Hegel, que eu leio como metodologia, que eu gosto muito de ler Hegel, mas eu não posso absolutamente entrar no sistema de Hegel, porque, se eu sair, eu não sou mais filósofo. É maravilhoso Hegel, agora você tem que pensar como ele, tem uma bela metodologia... não estou dizendo que estou de acordo com todas aquelas tiradas racistas que, as vezes, existe, eu estou falando do pensamento dele, as vezes ele começa a falar dos africanos e dá medo. CRISTIANE: Filosofia da História, né? Pois é, eu estou pegando a metodologia. Eu gosto muito do Hegel, você aprende a escrever com ele. Agora, evidentemente que o que eu mais gosto é pegar as idéias dele - eu trabalho muito com ética, estética, crueldade – e desmontar como um quebracabeça, desmontar. A coisa do belo. Até hoje, isso é que é a nossa força. Deleuze dizia: “eu só escrevo sobre filósofo que eu não gosto”, aí fez aquele livro lindo sobre Kant. Não gostar é quase uma homenagem, é inspirador. Agora você não vai ficar fazendo da teologia uma espécie de mosteiro, aí virou realmente religião e você virou adepto. Mas eu encontrei tantos professores inteligentes no Brasil, meninos novos, menos novos, garotas, porque entraram muitas mulheres na filosofia, mas a síndrome do professoral ficou. Como é que a gente vai fazer se não tiver filosofia no Brasil? Se não tiver filósofos? Como é que a gente vai fazer? E quando eles entram nesse discurso terrorista de que filosofia da educação... CRISTIANE: Não é filosofia. Eu acho que filosofia da educação não existe, eu não acredito que isso exista como nominação. O que existe é a filosofia pensando a educação. Porque filosofia da educação... eu acho até que devia retirar isso, não porque... é uma turminha, não sei da USP porque a USP não tem muita representação na filosofia no Brasil, USP é muito mais um feudo e não podemos falar de filósofo na USP a não ser se você pensar em Marilena Chauí, grande e maravilhosa, e a Scarlet trabalhando Nietzsche há muito tempo, não sei se ela se aposentou ainda, ela está em Paris. Mas se não, você não pode 365 ficar, porque a USP é um símbolo, é uma velha senhora, mas que não conseguiu escapar, absolutamente, à loucura do envelhecimento do tempo. Então, a USP não é um exemplo de filosofia. Quando eu penso USP, eu penso, sobretudo, Marilena Chauí, porque além de ser uma grande comentadora, de altíssimo nível, ela é uma mulher importantíssima naquela USP em relação à diferença, tanto ela ao nível hiper alto – não preciso estar de acordo com a leitura dela, o problema não é estar de acordo, é ter o mínimo de justiça, porque não é uma questão moral, e sim de lucidez para reconhecer o valor dela – como a Scarlet, em outro nível, em outro lugar, mas são lugares impossíveis. Porque na USP não é uma guerra de classes, é uma guerra de lugares. Por isso que foram totalmente comidos pelo próprio discurso de que só quem faz filosofia são eles. Resultado: muito magrinho. Cadê os filósofos da USP? Onde é que estão os livros? Onde e que estão as publicações? Onde é que está o conceito? São professores, alguns tarimbados, outros menos, está muito fácil entrar na USP, já foi mais difícil. A filosofia hoje não é uma história da USP, eu diria que a filosofia é uma história do Brasil. Já tivemos safras melhores de professores, safras muito boas. Hoje nós estamos em um momento de declínio porque há muitos curiosos fazendo filosofia e aí vem o problema do autodidatismo, porque, às vezes são muito bons, mas a filosofia não perdoa. Fazer filosofia sem ter feito uma licenciatura em filosofia é um negócio muito sério. E quando você tem essa formação em filosofia... para mim, a formação principal é a licenciatura, sem isso, eu não vejo como você pode fazer filosofia, aí você sente os buracos, eu sinto. Você sente na hora, você está conversando com a pessoa, a pessoa está fazendo filosofia... “essa pessoa fez um doutorado, mas ela não fez licenciatura”. Licenciatura é a base, é aí onde você vai, realmente, pegar toda a metodologia, é aí onde você vai estudar toda a história da filosofia, não dá para correr. E o que tem muito no Brasil são muitas pessoas fazendo doutorado em filosofia, mas vindo de áreas bem diferentes e perderam a formação primeira, são os grandes autodidatas, com muito valor, mas, muitas vezes, com muita desvantagem, porque você sente que não estamos mais falando de filosofia. 366 Eu sinto, para mim está claro. Estão começando, são pessoas maravilhosas, pessoas que inclusive fazem doutorado jovem e tudo, eu nem pergunto, você sente que a maneira de falar não é absolutamente... porque o filósofo tem muito cuidado para não ser interpretado como essa coisa terrível, essa espécie de tropa de elite do significado, do significante, significação, o que vai dar como resultado a representação. Então, é o pensamento já completamente montado, mas é um pensamento sem pensamento. É um pensamento que engole o pensamento através de uma representação, de uma palavra de ordem. Então você sente, essa confusão que tem... as pessoas estão trabalhando sobre Deleuze e daqui a pouco começam a falar a essência da filosofia. A essência? Eu estou trabalhando sobre Nietzsche ai entra essência, entra absoluto, entra uma espécie de metafísica tacanha. Você sente que... “esse cara não fez licenciatura”. O problema não é a formação, porque está cheio de doutores, nunca foi tão fácil ser doutor no Brasil, entretanto deveríamos ter muito mais abertura para os doutores, muito mais vagas, mas nunca foi tão fácil ser doutor no Brasil, apesar de termos poucos doutores. Está na hora de começar a pensar, fazer da filosofia uma arte de criar conceitos e não só uma arte de dar aula. Porque como se vai pensar um filósofo sem filosofia? É muito complicado. 367 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE WALTER KOHAN A importância de Deleuze...penso que pode ser localizada não apenas no conteúdo do que Deleuze diz a respeito da educação, que de fato não é muito, Deleuze se preocupa talvez por alguns tópicos específicos, por exemplo, pela questão do aprender que, em várias obras, é algo importante para Deleuze... entender o significado de aprender e, sobretudo, a relação entre aprender e pensar. Mas a importância de Deleuze não é tão significativa, a meu ver, em relação com o que ele afirma sobre as questões educacionais, mas em outras duas dimensões, eu diria. Uma, que é o seu jeito de pensamento, sua postura, sua concepção da filosofia, da tarefa da filosofia e da relação da filosofia com outras disciplinas. Ou seja, Deleuze era um pensador que, por um lado, enquanto professor de filosofia, ele tinha entre seus alunos não apenas estudantes e filosofia, mas pessoas de áreas muito diferentes e que concebem a filosofia em um diálogo com a não filosofia. Para Deleuze era essencial a relação entre filosofia e não filosofia, e isso é muito importante como gesto porque na filosofia há uma tendência de fazer uma fala interior, uma fala introspectiva, uma fala interna, que, de alguma forma, isola a filosofia das outras disciplinas. Isso também é próprio da filosofia da educação, ou seja, embora a filosofia da educação tenha como campo e como objeto algo concreto e renunciável que é a teoria e a prática educacional, há uma tendência no campo da filosofia da educação de somente ter relação com poucos saberes, e, de alguma maneira, um primeiro gesto que é interessante de Deleuze é que ele abre a filosofia da educação ou a filosofia para outras áreas, para a não filosofia. Em segundo lugar, um outro campo, um outro aspecto que considero importante do pensamento de Deleuze é que o pensamento de Deleuze é um pensamento que desuniversaliza, que dessistematiza, que não procura totalidades, unificações, que não procura sistemas, e isso é uma tendência muito forte na filosofia da educação que se pratica no Brasil. Então, o pensamento de Deleuze é uma força antissistemática, antiuniversalizante, antitotalizadora, e isso tem uma potência muito grande em um campo como o da filosofia da educação no Brasil, no qual se consegue, sobretudo, a 368 filosofia desde uma lógica dos fundamentos, do sentido, do valor, como se a filosofia fosse uma sistematizadora, uma mãe, uma colonizadora, digamos assim, do pensamento das diversas ciências, áreas e saberes da educação. Em terceiro lugar, eu diria que o pensamento de Deleuze é importante pelo gesto afirmativo que ele tem em relação com a filosofia como uma criação conceitual. Na medida em que Deleuze considera que o trabalho, a tarefa da filosofia tem a ver com a criação de conceitos, e isso na tríade do plano de consistência, plano de imanência, personagem conceitual e o conceito, algo que o Silvio Gallo trabalhou e desenvolveu bastante... então, ali a filosofia tem uma tarefa na educação que não pode ser apenas elucidativa, apenas explicativa, apenas crítica, ela precisa ser criativa. Ela não apenas precisa problematizar o que acontece na educação, mas ela precisa criar e não criar qualquer coisa, criar conceito. Então, eu acho que essa é uma terceira dimensão importante, importantíssima, que leva a pensar que a filosofia da educação no Brasil tem que se recriar criativamente, ela não pode apenas dar conta ou explicar ou fundamentar uma realidade, mas precisa pensar criativamente essa realidade. Acho que é isso. CRISTIANE: Você, nas suas investigações... eu tenho observado que você prioriza basicamente, dentre outras coisas, três questões que são o ensino da filosofia para a criança ( você foi orientando do Lipman), a questão da aprendizagem e a questão do ensino, principalmente naquela perspectiva do Ranciére. Como é que você poderia falar alguma coisa sobre essa influência deleuzeana nessas três perspectivas que, pelo menos até onde eu compreendo, você tem se dedicado mais nas suas pesquisas... na criança, ensino e aprendizagem, que obviamente está dentro desse universo do ensino da filosofia da educação. De fato, eu não sou um deleuzeano, não sou nem um pesquisador de Deleuze, ou seja... eu reconheço uma inspiração deleuzeana. CRISTIANE: Mas pegando essa inspiração. Pegando essa inspiração, eu diria que, no caso do ensino de filosofia com crianças, que eu trabalho e gosto muito de trabalhar na formação de professores, na própria experiência, Deluze tem sido um inspirador em muitos sentidos. CRISTIANE: O ensino da filosofia também, que você tem pesquisado. 369 Eu diria assim... o ensino da filosofia de uma maneira geral que eu entendo não como o ensino de uma disciplina, como a história da filosofia, mas eu entendo o ensino da filosofia como um propiciar da experiência filosófica, ou seja, como um... buscar, criar as condições para que, de fato, a filosofia aconteça. Não para eu ensinar uma filosofia, para eu transmitir um saber filosófico, mas para eu criar as condições para que os estudantes filosofem, para que eles façam o que os filósofos fazem. Então, a inspiração de Deleuze é forte, é grande nesses sentidos que eu colocava anteriormente porque o ensino da filosofia tem uma tradição muito consolidada ligada também à transmissão do saber, ligada a uma verdade que seria localizada na história da filosofia e isso feito com criança também pode estar muito associado a uma visão da criança de ser humano como ser em desenvolvimento, que a criança estaria em uma certa etapa na qual ela ainda não seria capaz de desenvolver certas habilidades e capacidades. Então Deleuze ajuda a quebrar um pouco com isso, ajuda a quebrar tanto com a ideia da infância como um ser em miniatura quanto como do ensino da filosofia como uma transmissão do saber. Deleuze tem um conceito que é um conceito de devircriança, que é um conceito interessante porque não está associado especificamente às crianças ou a uma idade cronológica, mas ele tem me servido também para descronologizar a infância, ou seja, para tirar a infância da fase cronológica. Então, o importante não é tanto a criança, não é tanto o número de anos que se tem, mas os devires que se habitam. Então, o ensino da filosofia como uma possibilidade de devir-criança também, ou seja, de ter uma experiência, de ter uma possibilidade de um pensamento, de um bloco de pensamento que fuja um pouco do controle, do normal, do que deve ser pensado, do pensamento dominante. Quanto ao aprender, Deleuze me ajudou muito a dissociar o ensinar do aprender. Há uma tendência muito forte em pensar que se uma pessoa aprende é porque outra lhe ensina, e que se ensina para que o outro aprenda, e que se aprende de alguém, e que se ensina para alguém. Deleuze ajuda a quebrar isso, sobretudo em Diferença e repetição... ele mostra que não aprendemos nada com quem pretende que aprendamos dele, com quem pretende ser um modelo. 370 Na verdade, aprendemos sempre com alguém, mas nunca de alguém e aprendemos quando podemos outorgar sentido e significado, aquilo que chama, aquilo que comove o nosso pensamento, que pode ser involuntário, que não podemos controlar. De modo que aprender tem muito a ver com sensibilidade e aprender filosofia também é um ato de sensibilidade, pensar é um ato de sensibilidade, isso Deleuze me ajudou a pensar. Então, eu trabalho muito nessa ideia de que, para mim, ensinar filosofia significa, sobretudo gerar as condições de uma certa atenção, de uma certa sensibilidade. CRISTIANE: A crítica que você faz ao Lipman iria nesse sentido? Porque, até onde eu compreendo, você segue Lipman até determinada altura, depois você rompe com algumas conceituações dele e faz uma crítica, né? Você poderia falar um pouco dessa crítica que você faz ao Lipman e juntar isso com a questão deleuzeana? A crítica, digamos, tem várias instâncias: um nível mais prático, um nível mais metodológico e um nível teórico. Deleuze tem me ajudado a criticar Lipman, digamos assim, na concepção de filosofia de Lipman, que é uma concepção pragmatista e que pressupõe uma ideia do pensamento muito calcada no que Deleuze diria “mundo da representação”, uma imagem dogmática do pensamento, na moral, uma ideia forte de que pensar é pensar bem. Lipman fala inclusive do bom pensador, fala do pensamento do homem superior, fala do bom pensar. É um pensamento que é muito... CRISTIANE: E essencialmente a questão da formação moral também, né? Também, também tem uma formação moral, mas eu diria que são coisas diferentes. Uma é a formação moral, que é criticável, mas outra é a imagem moral do pensamento, a ideia do que é a boa vontade que pensa, que leva o pensador à verdade. Agora, tem outras questões também que não são apenas deleuzeanas, no sentido de uma visão da escola, eu diria, pouco crítica no sentido foucaltiano, no sentido da sociedade disciplinar, tem uma imagem de infância que também é questionável, tem uma relação entre filosofia e política que também pode ser questionada. Então, eu diria que Deleuze tem sido importante sobretudo nessa ideia do que significa pensar e que está na base da filosofia de Lipman. 371 CRISTIANE: Mas o que que você colocaria como extremamente positivo na perspectiva do Lipman, só para fazer essa contraposição? É extremamente positiva essa ideia de que a criança pode fazer filosofia, ou seja, de que o mundo da filosofia está aberto para a criança. Isso é interessante porque não é só que as crianças precisam da filosofia, a filosofia precisa das crianças também, ou melhor, não só a infância precisa da filosofia, a filosofia também precisa da infância porque a filosofia é uma senhora velha, já está cansada, já pensa muito repetidamente e a infância pode interromper esse pensamento, pode gerar condições para um novo pensar. Então, eu acho que Lipman tem sido um pioneiro no sentido de ver que a filosofia e a infância...talvez muita gente já tenha visto que tem muito a ver, que são muito próximas a filosofia e a infância, mas Lipman foi quem deu a isso uma sistematicidade muito forte e que apostou muito que isso podia render em termos de uma prática pedagógica, educacional. Então é um pioneiro. CRISTIANE: Você poderia falar rapidamente sobre o teu percurso de formação filosófica até você chegar a essas filosofias contemporâneas francesas - Foucault, Deleuze, Ranciére - que estão muito presentes nos seus textos...um rápido percurso. Eu estudei filosofia na Argentina na Universidade de Buenos Aires, sou argentino, e a minha formação teve uma influência grande da filosofia grega, eu me especializei muito na filosofia grega, pré-socrático, Sócrates e Platão. Trabalhei, inclusive, um pouco na Argentina como professor assistente na Universidade de Buenos Aires em filosofia grega. Depois eu conheci Lipman, ele foi uma grande virada no meu pensamento, na minha formação, porque ele me mostrou, digamos assim, a necessidade de recriar a filosofia que se faz na academia. Então, foi um grande aporte para mim, porque ele me mostrou a necessidade que a filosofia educada, a filosofia da educação fosse uma prática da filosofia e não uma transmissão do saber filosófico. E também me permitiu um caminho para chegar à infância, que depois eu critiquei, eu questionei, eu tentei refazer, mas que foi um caminho importante, primeiro, e que eu não tinha jamais pensado... é muito fácil você criticar uma coisa depois de fazê-la ou depois que está feita, mas ele 372 criou um sistema, um programa muito bom onde não tinha nada e que permitiu a muita gente se aproximar de um mundo, um campo novo. E paralelamente eu fui estudando, trabalhando autores da filosofia francesa já na minha tese, que o Lipman orientou, eu trabalhava com alguns franceses. Depois eu fiz um pós-doutorado em Paris VIII, aí estudei com pessoas do grupo de Ranciére que eu apresentei uma tese para habilitar a orientação, a pesquisa, uma coisa assim, HDRhabilitação para dirigir pesquisa, e Ranciére esteve na minha banca (quem orientou isso foi Stéphane Douailler), e eu fiz isso sobre Sócrates... é um livro que vai ser lançado agora, hoje, se chama “Sócrates e a educação”, onde tem um capítulo sobre diversas leituras contemporâneas de Sócrates: Foucault, Nietzsche, Ranciére, Kierkegaard, Derrida. Enfim, fui lendo cada vez mais. Tem um livro de Ranciére que influenciou muito o meu trabalho, que é “O mestre ignorante”, que ajuda também a problematizar a posição daquele que ensina e daquele que ensina filosofia. CRISTIANE: Só para finalizar, como é que você vê essa discussão, principalmente no Brasil, sobre a filosofia da educação, no caso, que filosofia da educação não seria propriamente uma disciplina do âmbito da filosofia, e sim da educação... a gente sabe que tem uma grande discussão em torno disso. Como é que você veria essa discussão? Se você acha que é uma discussão banal ou é uma discussão que você não perde tempo com ela... É uma discussão que tem um lado chato... eu não diria mal, eu diria chato, porque parece uma discussão coorporativa, “é minha”, “é tua”, “de quem é?”, uma coisa de pertença. CRISTIANE: Mas há, inclusive, por parte de alguns filósofos, um certo desrespeito com a filosofia da educação como se ela fosse algo menor. Sei. Ela é chata porque, digamos, a filosofia, por um lado, com áreas mais “nobres”, ela não tem problema em aceitar a filosofia da arte, filosofia política, a filosofia da religião. Por outro lado, eu acho que filosofia da educação é filosofia, não tem como não ser filosofia, como todas as filosofias dela. Mas o que fazem os departamentos de filosofia, faculdades de filosofia, às vezes tem tão pouco a ver, tão 373 pouco a ver com a filosofia que por isso eu digo... tem o lado institucional da discussão, o lado chato que não me interessa entrar, “de quem é a filosofia da educação?”. Agora tem o lado mais filosófico, eu diria, de que a filosofia da educação não é de ninguém, ou seja, é um campo de filosofia e a filosofia não é de ninguém. A filosofia é um sujeito que pára para pensar, problematiza sua vida, problematiza a relação com o que sabe, problematiza o que pensa, procura criar outras maneiras de pensar, e isso corresponde a todo mundo, isso não é de ninguém. CRISTIANE: Você quer dizer mais alguma coisa que você não tenha dito? Não, eu lhe agradeço. CRISTIANE: Eu que te agradeço. 374 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE SÍLVIO GALLO Você quer que comece como se chegou a Deleuze, né? Eu não sei. CRISTIANE: Você não sabe. Eu não sei. Eu lembro que, e aí como faz muito tempo, a memória fica difícil, mas eu lembro que o meu primeiro contato foi ler O Anti-Édipo quando eu estava fazendo Graduação em filosofia. Evidentemente que não leitura do curso, leitura feita no contexto do curso de graduação, mas, na época, se eu bem me lembro, eu tive um rápido momento de delírio de me interessar pela psicanálise. Ainda bem que durou pouco. Era lá 80 e pouco, começo da década de 80, essas coisas, tinha toda uma discussão acadêmica em torno da psicanálise, ou coisas que o valha, e eu me interessei, quis estudar um pouco sobre isso, li algumas coisas do Freud, especialmente os textos do Freud já bem velhinho, O mal-estar da civilização, Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, essas coisas, mais na questão social. E aí o meu interesse era pensar como ler a questão social pelo viés psicanalítico. E aí, claro, cheguei no Reich, gostei muito mais do Reich do que do Freud, me interessou muito a leitura do Reich, a crítica que o Reich fazia... CRISTIANE: É mais gozo do que sexo, né? O Reich... Mais gozo do que sexo? Não sei, teve sexo pra caramba! Mas assim... CRISTIANE: A questão do orgasmo é mais... Mas eu achava muito interessante a perspectiva reicheana nessa questão social. E aí, lendo Reich, lendo Erich Fromm, com toda a questão da articulação marxismo e psicanálise, eu não me lembro como, não lembro exatamente se alguém me indicou ou se eu achei, me caiu nas mãos O Anti-Édipo, e foi um deslumbre, muito interessante o tipo de leitura que o Deleuze e o Guattari propunham ali, inclusive porque eles faziam uma leitura, digamos assim, muito alternativa ao marxismo e o meu curso de graduação era um curso fortemente marxista. 375 E aí, por exemplo, quando eles fazem toda a leitura da gênese do capitalismo, é uma leitura que se no marxismo se lia por uma necessidade histórica, pelo movimento de construção de uma necessidade histórica, o Deleuze e o Guattari vão ali propor justamente o que eles chamam de história universal da contingência. Então, o capitalismo não se produziu por uma necessidade histórica, mas da confluência de três fluxos livres, de três fluxos esquizos que, por acontecimento, por acaso, se encontraram e aí gerou tudo isso que gerou. Então, eles fazem justamente uma leitura na contramão da leitura da necessidade histórica, isso me encantou muito na época, achei bacana, achei interessante e aí tem uma relação um pouco com os autores, você descobre um livro que te interessa, gosto, e eu vou atrás de outras coisas que os caras escreveram. CRISTIANE: Mas isso aí já foi depois do anarquismo na sua vida? Não. Depois do anarquismo na minha vida... é sempre difícil definir quem foi o primeiro amante, o segundo amante. Mas assim... o anarquismo também é um pouco antes, talvez eu tenha descoberto o anarquismo um pouco antes porque eu tinha uma... na década de 80 era difícil não ter uma militância social, uma militância política, eu estava nessa coisa da luta contra a ditadura já no finalzinho, o chute final na ditadura, e militância e isso e aquilo, e eu tinha uma participação lá em Campinas em movimentos de juventude, especialmente movimentos ligados aos movimentos de bairro, as associações de bairro, que foi o começo dessa minha atividade política nessa perspectiva que era o que me encantava mais. Eu não gostava dos movimentos de igreja, eu não gostava dessa perspectiva mais partidária, então eu estava ligado aos movimentos de bairro. Via movimento de bairro, eu participei da fundação do PT em Campinas e cheguei a militar um pouquinho no partido, um tempo bastante curto porque logo percebi que o PT não era aquilo que me encantava na lógica do movimento de bairro. O PT, pelo menos lá em Campinas, teve várias confluências, tinha um movimento muito forte na igreja, tinha o movimento com as políticas de bairro, tinha o movimento sindical e, sobretudo, tinha os movimentos dos grupos clandestinos, os grupos de esquerda clandestinos que não podiam se transformar em partido. 376 Aí, a minha saída do partido acabou acontecendo no momento em que o pessoal que era desses grupos da clandestinidade acabou assumindo o diretório do Partido e aparelhando o Diretório do Partido e aliciando a meninada, aliciando estudantes de ensino médio, etc., como sendo para o Partido, só que levavam os caras nos sábados e nos domingos para reuniões de estudos marxistas da Libelu, do MR8, daqueles movimentos todos. E eu conhecia a meninada e a meninada... “ah, tô participando do PT. Tô fazendo isso”. “Não, mas isso não é o PT, isso é outra coisa”. E comecei a brigar com o pessoal do diretório porque os caras falavam isso em nome do PT, mas isso não era o PT, o PT era mais do que isso. Que isso estivesse também no PT não era problema, mas o PT, no meu ponto de vista, era mais do que isso. E aí, se eles chamassem a meninada, “olha, vamos participar do MR8”...estou falando MR8, mas nem era, o MR8 já estava do lado do PMDB, mas acho que a Libelu, principalmente, era uma das facções mais fortes lá na cidade...sei lá, “vamos participar de um grupo assim, assim”, talvez a moçada não fosse. Mas indo para o PT iam, só que serviam como uma coisa meio.... como uma coisa que eu não gostei. E aí acabei saindo do partido, fiquei só um pouquinho, pouco tempo, de constituição, e saí. Tudo isso no começo da década de 80. E aí, indo para a Universidade, eu acabei conhecendo um pessoal que me apresentou a questão do anarquismo. Então, começamos a conversar e as primeiras coisas que eu ouvi a respeito do anarquismo me interessaram e eu comecei a procurar coisas para ler a esse respeito. Foi o momento que se começou a publicar alguma coisa, não tinha praticamente nada, evidentemente por conta da ditadura, mas já estava começando o processo de abertura e algumas coisas começaram a ser publicadas principalmente a LPM lá de Porto Alegre começou a publicar alguma coisa, uns textos anarquistas e tal – e eu achei muito interessante porque aquela coisa casava com o que eu pensava sem saber que isso tinha um nome. Então, me aproximando dessa questão do anarquismo, eu fui cada vez me abrindo mais, tentando me aprofundar, tentando conhecer, tentando encontrar elementos. E isso talvez tenha sido um ou dois anos antes desse encontro com O AntiÉdipo, mas é tudo mais ou menos concomitante, digamos assim. Eu não diria o que vem antes e o que vem depois. 377 Mas voltando nessa coisa do O Anti-Édipo, o interesse pelo livro me mobilizou um interesse pelo Guattari, não pelo Deleuze. Eu li o livro todo, depois eu li o livro sobre Kafka, depois eu fui ler o Mil Platôs, que na época não tinha, eu importei pela Livraria Francesa, aquelas coisas, também na tinha internet, não tinha nada disso, por sua sorte lá em São Paulo a gente tinha a Livraria Francesa, que a gente pegava, pedia o livro e eles te mandavam pelo correio. Então, foi esse percurso de ler O Anti-Édipo, o Kafka, que estavam em português, e o Mil Platôs, que ainda não estava traduzido, e dessa leitura desses três livros do Deleuze e Guattari, mobilizado por essa questão que eles colocavam, eu fui ao Guattari, aí comecei a ler outras coisas do Guattari e não do Deleuze. Isso é curioso, não do Deleuze. CRISTIANE: É engraçado... o Sylvio Gadelha também se interessou primeiramente pelo Guattari, depois foi que ele chegou á Deleuze. E aí fui ler um monte de coisa, praticamente tudo que tinha publicado do Guattari e sempre lendo por interesse aberto, digamos assim, não estava com uma coisa específica. CRISTIANE: Não era sistemático. Não era sistemático, não era um estudo sistemático, não estava fazendo ainda a pós-graduação... era um estudo paralelo àquilo que eu estava fazendo na Graduação porque o meu curso era um curso marxista, ponto final. Então era uma espécie também de você encontrar ar puro, conseguir respirar um pouco fora daquilo que era o ditame do curso. Então foi essa a passagem para o Guattari. Eu acho que eu comecei a me interessar mais pelo Deleuze depois da publicação de O que é a Filosofia?. Assim que saiu em português eu comprei, já tinha essas leituras do Deleuze e do Guattari de anos antes, e aí saiu O que é a Filosofia?, eu logo comprei a tradução brasileira assim que saiu, e, evidentemente, por conta do percurso que já tinha de leitura deles, eu gostei bastante, mas aí com essa pegada mais no âmbito da Filosofia. E foi isso que me despertou para ir atrás dos textos do Deleuze. Então, é depois de ler O que é a Filosofia? e, portanto, já na década de 90, que eu comecei a ir procurar os textos do Deleuze, o Diferença e Repetição, A lógica do sentido e os estudos dele de autores. 378 Então, a chegada foi uma chegada meio assim: me caiu às mãos, não sei bem como, o livro do Guattari e do Deleuze, O Anti-édipo. Essa paixão pelo Guattari, de estudar o Guattari, de ler o Guattari, de assistir palestras do Guattari e que, na época, chegou a vir ao Brasil algumas vezes, e a partir disso, então, essa coisa vai se delineando. Mas como o mestrado e o doutorado eu fui fazer estudando os anarquistas, e aí um estudo mais sistemático era dos anarquistas, esse tipo de leitura era uma leitura mais de entorno porque, na minha tese, eu acabei usando um pouco do Foucault, um pouco do Deleuze e do Guattari, um pouco do Sartre, que era um outro autor que me interessou muito uma época, eu li muito também mais ou menos nessa mesma época de graduação e começo de mestrado, mas não era o tema específico. Então, era uma coisa que eu sempre dava um jeito de trazer, essas coisas que eu gostava, para dialogar com o texto, mas não era um estudo específico sobre o Deleuze. Eu acho que eu comecei a trabalhar mais especificamente com esses autores na educação por conta da ANPED. Aí foi uma outra experiência curiosa. A primeira vez que eu participei da ANPED foi em 94, eu terminei a minha tese de doutorado em 93, e aí um dia estava vendo na Universidade onde eu trabalhava na época, estava andando pelos corredores e vi um cartaz anunciando a reunião da ANPED do ano seguinte, chamada de trabalhos, aquelas coisas... durante o mestrado e o doutorado eu nem sabia o que era ANPED, nunca tinha ouvido falar, nunca participei de absolutamente nada, lá na Unicamp na época não se tinha esse tipo de divulgação, a Unicamp se considerada top na educação no Brasil, se bastava por si mesma, essa coisa de congresso... diálogo com os outros nem pensar, “somos nós e ponto, mais nada interessa no resto do mundo”. Aí eu vi o cartaz e o tema da ANPED... estou dizendo isso porque a gente está aqui na ANPED agora e eu estava vendo a contracapa do caderninho de programação que tem lá todas as reuniões e justamente nessa reunião que eu participei em 94 o tema era “ética, política e educação”, e nessa capa saiu “ótica, política e educação”, então ficou engraçado. CRISTIANE: É ética! É que eu não tinha entendido. 379 Foi “ética, política e educação”. Eu me lembro bem porque eu vi “ética, política e educação” e falei: “vou escrever um texto sobre ética, política e educação tal como visto pelos anarquistas”. E aí escrevi, eu tinha estudados os anarquistas e tal, então não é um texto que dissesse respeito à minha tese propriamente dita, mas tentando articular com esse tema da reunião, que era “ética, política e educação”, segundo a visão dos anarquistas. E como eu não conhecia a estrutura da ANPED, não sabia que existiam grupos de trabalho, essas coisas todas, eu mandei para a ANPED. Aí recebi, meses depois, com surpresa, uma carta dizendo que o meu texto tinha sido aprovado para apresentação no Grupo de Trabalho Currículo. Aí eu falei: “Currículo? Não sei o que é currículo, não tenho nada a ver com isso, mas aprovaram o trabalho, vou lá apresentar”. E aí foi uma experiência muito interessante essa apresentação, fui muito bem acolhido pelo grupo e trabalho de Currículo, tiveram muito interesse pelo trabalho, gerou muita discussão interessantíssima, e o curioso é que nesse meio tempo tinha colegas que mandaram trabalhos justamente para o Grupo de Trabalho de Filosofia da Educação que estava nascendo naquele ano, era a primeira reunião em que se instituía o GT de Filosofia da Educação. Como eu não sabia, fui para o Currículo sem entender porque se eu citei Filosofia da Educação, era em Filosofia da Educação que tinham que ter me colocado, mas me colocaram no Currículo. Aí disseram: “não, mas não são eles, você que tinha que ter indicado”. Eu não sabia que tinha que indicar, como chegou sem indicação nenhuma, acho que meio que jogaram para o alto e o pessoal do currículo viu, o título deve ter interessado, “tá bem, vamos trazer para cá, então”. Mas aí foi uma conversa muito interessante com o pessoal de Currículo, gostei da experiência, e aí, no ano seguinte, eu resolvi escrever um texto para o GT de Currículo... aí sim endereçando para a discussão. Como eu descobri que a conversa sobre currículo que eles faziam era uma conversa muito mais ampla, muito mais geral do que o específico do técnico curricular, aí eu resolvi escrever sobre isso. E uma das coisas que eu senti ao participar da reunião é que tinha um interesse forte pela questão da interdisciplinaridade na época, e eu já tinha um nó com a questão da interdisciplinaridade desde a época que eu tinha sido professor no ensino médio, que na escola se falava muito de interdisciplinaridade e ninguém fazia nada de 380 interdisciplinaridade. E era aquela coisa: parecia que bastava falar para mudar a realidade educacional, porque todo mundo falava, todo mundo falava e ninguém agia interdisciplinarmente. E aí eu falei: “eu quero escrever algo sobre isso, eu quero pensar sobre isso”. E aí, na época, justamente me lembrei da ideia de rizoma do Mil Platôs e fui buscar o Mil platôs para trazer o conceito de rizoma, trazer a noção de rizoma para pensar o campo do conhecimento, pensar a questão do conhecimento, pensar a possibilidade de um conhecimento rizomático, de uma articulação rizomática dos conhecimentos, que seria algo distinto de uma perspectiva disciplinar. Então, um primeiro uso de conceitos deleuzeanos ou Deleuze-guattarianos para a educação se deu nesse contexto. Então, era para pensar essa questão específica e eu também fui especificamente, não foi um estudo da obra do Deleuze e do Guattari, mas... bom, o que eu posso captar deles, como eles próprios evidenciam, chamam a atenção, o que eu posso capturar deles para transformar em ferramentas e para pensar a questão educacional. Foi por aí. Você ia perguntar alguma coisa? CRISTIANE: Você conhece aquele texto do Guattari sobre interdisciplinaridade, transdisciplinaridade? Do Guattari? CRISTIANE: É. Saiu na Revista Tempo Brasileiro, eu acho. Na Tempo Brasileiro? Não sei, pode ser que eu conheça, pode ser que não. Aí foi isso. Eu comecei a trabalhar nessa direção de trazer primeiro ali no Currículo. Aí eu mandei um trabalho em 95 que deu uma discussão muito interessante. Para 96 eu fiz um outro trabalho também para o Currículo que era uma certa continuidade desse, que também deu uma discussão curiosa, interessante e tal. E assim foi indo. Só que nesse meio tempo, participando do GT de Currículo, eu ia lá, apresentava o meu trabalho e ficava também sapeando o GT de Filosofia da Educação porque o pessoal, os meus colegas da área... “ah, você tem que vir aqui para o GT de Filosofia da Educação e tal”, e foi mais ou menos a época que eu conheci o Paulo (Ghiraldelli) e ele 381 estava lá na articulação do GT de Filosofia da Educação, então eu fiquei um tempo participando basicamente dos dois GT´s, um pouquinho em um, um pouquinho em outro, pulando aqui e acolá. E aí, no GT de Filosofia da Educação estava sendo feita uma discussão sobre o sentido da Filosofia da Educação, várias maneiras de se ver a Filosofia da Educação, e aí eu tentei também fazer uma leitura da Filosofia da Educação a partir do Deleuze e do Guattari, do O que é Filosofia?, com aquela ideia da Filosofia, das várias discussões que se fazia da Filosofia da Educação e tentar trazer essa contribuição: se a filosofia é um processo de criação de conceitos, que a Filosofia da Educação seria então... CRISTIANE: Isso em que ano? Eu acho que eu apresentei esse trabalho no GT de Filosofia da Educação em 98 ou 99, se não me engano. Deve ter sido 99. Bom... eu não lembro se isso foi antes ou depois que o Paulo lançou o livro O que é Filosofia da Educação ... eu acho que 2000, pela DP&A, e esse texto que eu escrevi saiu como um capítulo do livro do Paulo. Aí eu não lembro... CRISTIANE: São Notas Deleuzianas, né? É. Eu não sei se primeiro eu fiz o texto para a ANPED e depois ampliei para sair no livro. Eu acho que foi isso, foi 99, e aí eu ampliei e saiu como capítulo no livro que o Paulo organizou. Eu acho que foi isso. Então assim, por conta desses usos mais, digamos assim, direcionados mesmo. Não era um estudo sistemático de Deleuze e Guattari, mas sim coisas que eu fui lendo meio que ao léu, digamos assim, e aí... “bom, vou escrever sobre isso, vou pensar essa questão”. Então eu me lembrava: “bom, mas eu li isso lá, eu acho que pode ser legal”, então ia, recuperava, retomava e tentava produzir nessa direção. O movimento foi um pouco esse. Porque, na verdade, eu só fui começar a desenvolver um estudo mais sistemático desses autores quando eu assumi o tempo integral na Unicamp, no começo de 2005. Porque até então eu trabalhava na Universidade Metodista e lá eu fiquei anos a fio em cargos de gestão acadêmica e isso, evidentemente, complicava um pouco o fato de o estudo mais sistemático. 382 Então, eram essas coisas... eu ia lendo nos horários vagos e tal. Aí quando eu fui pra Unicamp em 2005 com a exigência de ter um projeto de pesquisa, foi que eu acabei circunscrevendo um programa de pesquisa para estudar mais sistematicamente o que eu chamava na época, e talvez chame até agora, de “Filosofias da Diferença”, tentando focar nessa dinâmica da Diferença, do pensamento da Diferença em conexão com a educação. Aí passei alguns anos fazendo o estudo mais sistemático do Deleuze, de 2005 até 2008, 2009, e de lá para cá eu estou fazendo um estudo mais sistemático do Foucault. CRISTIANE: Eu acho que você podia falar agora mais conceitualmente. Quer dizer, o que de fato você percebe que o pensamento deleuzeano... Já deu quinze minutos, o cheiro de querosene está forte, o barulho está aumentando. CRISTIANE: Conceitualmente, como é que seria essa lupa deleuzeana sobre a educação, em termos conceituais. Aí você quer demais! (Risos) CRISTIANE: Faz uma síntese. Dá preguiça de falar disso, pelo amor de Deus! Mas eu acho que essa discussão que a gente tem feito... o que estava acontecendo no GT ontem, por exemplo. O que me encanta muito no Deleuze – e aí eu diria bem mais no Deleuze do que no Guattari, nele também, mas acho que isso no Deleuze é mais forte – é justamente essa busca de uma alternativa ao pensamento. Alternativa no sentido de que você tem um pensamento que se constrói como tradição, digamos assim, que o Deleuze vai chamar de pensamento da representação, de forma mais geral, e essa busca de um pensamento outro que a gente poderia caracterizar das mais diversas maneiras... eu posso chamar de filosofia da diferença, por exemplo, dessa ênfase da diferença, mas poderíamos chamar de pós-estruturalismo ou poderíamos chamar de qualquer outra coisa. De toda forma, o que eu acho é que, no campo da educação, a gente tem muito forte esse pensamento da tradição, esse pensamento da representação. Toda a teoria educacional é uma teoria representacional e a Filosofia da Educação que se tem produzido no Brasil, no meu ponto de vista, é uma Filosofia da Educação de natureza 383 representacional e nos coloca essa leitura de mundo, essa visão de mundo do âmbito da representação. E aí, o que me encanta no Deleuze é justamente essa alternativa que ele dá. “Olha, vamos pensar de outro modo. Vamos pensar não no uno, mas vamos pensar no múltiplo. Mais do que pensar o múltiplo, vamos fazer o múltiplo, vamos fazer a multiplicidade”. E acho que... eu, pelo menos, vejo a Filosofia como algo meio assim, você se identifica mais ou se identifica menos com determinadas visões de mundo, e, para mim, eu me identifico muito mais com essa visão de mundo da multiplicidade do que com a visão da unidade. Você falou lupa, né? Lupa, chave de leitura, óculos, não sei... uma vez o Roberto Machado deu uma palestra falando dos óculos filosóficos, que você tira um, põe outro, ver de uma maneira, ver de outra. Mas eu acho que é mais do que isso, mais do que só um instrumento, nesse aspecto da multiplicidade. Porque eu acho que você tem certas inquietações ou certos problemas com aquilo que se constrói, com a forma que se vê, aí de repente você lê um autor que você percebe que pensa de um modo que está mais próximo daquilo que você pensa ou daquilo que você achava que pensava... não sei explicar bem isso, não sei dizer, não tenho boas palavras para dizer isso. Mas é essa coisa. Você lê um autor, “esse aqui tá mais de acordo com o que eu quero ver do que aquele outro que eu li”. E isso me acontece, me aconteceu um pouco com o Deleuze, com o Guattari, com o Foucault também, de certa maneira. Nessa perspectiva, eles sacam determinadas coisas da realidade que me parecem coisas interessantes de serem olhadas. E, no âmbito da educação, isso me parece muito importante porque, de forma geral, independente da perspectiva teórica que você adote, você está vendo as mesmas coisas quando você pensa no âmbito disso aí que a gente poderia com Deleuze chamar de representação, de pensamento da representação, filosofia da representação. Seja um marxista, seja um tomista... claro, aí você vai ter posições teóricopráticas talvez distintas, posições políticas distintas, mas você está vendo a mesma coisa, você está vendo o mesmo fenômeno. Então, você tem interpretações diferentes, mas acaba olhando o mesmo fenômeno. 384 Uma filosofia como a do Deleuze, como a do Foucault, para mim, nos fazem ver outros fenômenos. Não é só um outro ponto de vista, não só uma outra maneira de ver, eles nos permitem ver outras coisas que nessas teorias a gente não ver. Me parece que aí está o ponto interessante de investir com eles, de investigar com eles e de pensar a educação junto com eles. E, mais especificamente no campo da Filosofia da Educação, o que me parece interessante pensar com eles estaria no campo daquilo que o Deleuze chama de tentar sair de uma imagem dogmática do pensamento. A gente tem essas várias imagens, imagens dogmáticas, que nos dizem o que é pensar, “eu vou pensar”. Então você pensa segundo aquele pressuposto, segundo... a palavra que o Deleuze não usa, mas eu acho que ajuda, segundo determinado paradigma ou segundo um determinado referencial teórico, digamos assim. Especificamente na pós-graduação, em que todo mundo diz para os estudantes que você tem que ter um referencial teórico, que você tem que definir o seu referencial teórico e assim por diante: Fazer pesquisa é definir um referencial teórico e pensar segundo aquele referencial. Só que quando você pensa segundo aquele referencial, você não pensa porque aquele referencial já te dá as respostas. Uma pesquisa em que você vai a campo, por exemplo... você não vai a campo para descobrir coisas, você vai a campo para comprovar aquilo que você já sabe. Você vai a campo para ver aquilo que você já sabe que você vai ver... “Tá vendo? A minha hipótese era essa, eu fui a campo e se confirmou a minha hipótese”, ou então “não se confirmou a minha hipótese”, mas dentro daquela perspectiva de pensamento. E o Deleuze e o Foucault, por exemplo, nos convidam a ver o pensamento como uma criação. Não o pensamento como uma recognição, nas palavras de Deleuze, mas o pensamento como uma criação, o pensamento como... você se encontrar com coisas inusitadas, você tem que pensar a partir dessas coisas inusitadas. Eu acho que em educação é justamente isso que falta. Em educação falta isso, na Filosofia da Educação falta isso, pensar o inusitado. Por exemplo, na discussão que a gente acompanhava agora... então tem um avanço imenso na tecnologia, você tem todo um aprendizado na visualidade, diferente do que você tinha tempos atrás... as coisas mudam e se ressignificam completamente. 385 E o que a gente faz com isso? A gente se lamenta e diz: “os alunos já não leem”. Mas a gente não vai entrar na lógica da imagem para trabalhar com eles na lógica da imagem. A gente vai dizer: “poxa, perdeu-se toda uma cultura, toda uma tradição, que é a tradição da escrita, porque os alunos não leem”, mas os alunos estão fazendo um monte de coisas que a gente nem imagina que eles fazem. Os caras estão fazendo... na minha época se passava bilhetinho na sala de aula, hoje eles passam bilhetinho por SMS e estão o tempo todo ali se comunicando sem precisar passar o bilhetinho físico, de papel, o bilhetinho é virtual. Mas o bilhetinho virtual atrapalha menos a aula do que o bilhetinho físico, que incomodava muito os professores. Hoje eles passam os bilhetinhos por SMS e o professor nem vê porque manipulam o celular por baixo da carteira. Mas aí, a gente olha para isso e a gente faz o que? A gente se lamenta de um passado perdido, a gente quer recuperar, a gente acha que tudo isso é um problema porque com isso se perde coisas e a gente não vê o que a gente ganha com isso. E o que eu acho que o Deleuze e o Foucault, por exemplo, nos convidam a pensar em uma situação como essa é: “bom, isso está acontecendo. E aí? O que a gente pensa a partir disso que está se constituindo?”. Isso se constitui como problemático para nós porque a gente já não sabe ensinar nessa perspectiva. Então, como é que nós nos mobilizamos para ressignificar o ensino, para buscar novas formas de ensinar, para produzir outras teorias sobre isso, outro pensamento sobre isso e não ficar usando o pensamento da recognição, o pensamento do já pensado, o pensamento do já instituído para que ele leia esses fenômenos como aquilo que já foi colocado. O que eu gosto de pensar com esses caras é justamente, não para transformá-los em uma nova recognição, até porque isso é facinho de fazer, todo mundo vira deleuzeano, todo mundo vira foucaulteano, e transformam cada um deles em uma outra imagem de pensamento, isso é mole, é fácil, em educação isso é ainda mais fácil porque a educação adora modismo... então, de repente, todo mundo virar deleuzeano na educação é legal, todo mundo virar foucaulteano em educação é legal, até aparecer o novo “ismo”, o novo “ano” ali na frente e todo mundo mudar de casaca. O risco disso é forte. 386 Mas eu acho que, por outro lado, eles têm essa imposição. Se a gente de fato entra na obra deles com firmeza, você tem essa imposição de pensar, de usá-los como ferramentas de pensamento e não usá-los como um novo pressuposto, um novo paradigma, um novo arcabouço daquilo que vai ser aplicado. Então, o que me parece interessante é justamente essa mobilização em torno dessa possibilidade. Eu estava falando disso e me lembrei do Michel Serres, que não é exatamente alguém da mesma laia, digamos assim, do Deleuze e do Foucault, mas é também um sujeito bastante provocador, bastante interessante, e no livro dele, Hominescências, que ele faz uma discussão muito interessante. Ele faz toda aquela discussão daquilo que nós perdemos, mas também faz a discussão daquilo que nós ganhamos e ele diz: “bom, quando a gente está em uma situação nova, enfrenta uma novidade ou uma nova emergência, a gente tem que justamente fazer esse paralelo, o que a gente perde e o que a gente ganha”. Aí ele fala, por exemplo, da questão das bibliotecas digitais, da questão da internet, desse novo suporte da informação e ele fala do pessoal que faz a critica, “as bibliotecas físicas vão desaparecer”. Isso é uma imbecilidade... as bibliotecas não vão desaparecer, elas vão ser ressignificadas. E diz o Serres: “a gente está perdendo um certo acesso ao livro, mas o que que a gente está ganhando quando você tem as bibliotecas digitais?”. Ele diz: “Olha, as crianças de hoje já não se lembram do que viram na televisão ontem a noite. Como você tem um suporte muito eficiente para a memória pelos meios digitais, a tendência é que você esqueça com mais rapidez”. Mas aí, diz ele em uma determinada passagem, “a gente está perdendo o recurso da memória, a gente não exercita mais o uso da memória, mas o que a gente ganha com isso? A gente ganha mais espaço mental, mais espaço mental, mais espaço no cérebro para ser criativo”. CRISTIANE: O Vattimo também diz isso, que é o texto que eu te falei. Pois é! Você perde algumas coisas sim, mas... era isso que eu estava falando de visão de mundo, de forma de ver a realidade, uma postura frente à vida, digamos assim. Você pode ter uma postura que é a de ficar lamentando tudo aquilo que se perde querendo recuperar e querendo segurar aquilo que está escorrendo entre os dedos, isso é uma postura que a gente vê muito disseminada. Mas você também pode ter uma postura de dizer: “bom, tem coisas que a gente está perdendo, mas tem coisas que a gente está 387 ganhando. Então, como é que a gente vai à diante? Como é que a gente surfa o conhecimento?”, como diria Deleuze. Como é que a gente aproveita essa questão e avança com ela, vai à diante com ela? É basicamente essa a posição que eu acho interessante de se pensar em Filosofia da Educação com o Deleuze. CRISTIANE: Sílvio, aquele livrinho... uma hora já falou. Então, tempo esgotado. Chega! (Risos) CRISTIANE: Não, uma hora não, quarenta minutos. Já chega! O Walter falou vinte, chega! Eu já compensei (Risos) CRISTIANE: Escuta... o livro da Autêntica, “Deleuze e a educação”, você considera o que você tem produzido sobre esse assunto de mais expressivo ou você apontaria um outro escrito seu que seria representativo dessa reflexão. Eu não apontaria nada. Aquele livro já foi reescrito inúmeras vezes sem se materializar. Na verdade, como é que ele aconteceu? Ele aconteceu por um convite do Alfredo (Veiga-Neto), que é o coordenador da coleção (pensadores & educação, Editora Autêntica), para escrever o livro para a coleção. E é uma coleção que tem um interesse didático, a pegada dela é uma pegada didática. Aí, o que eu procurei fazer, na verdade, foi tomar coisas que eu já tinha escrito. Então, basicamente, o livro é composto por esses artigos que eu comentei com você que eu escrevi para a ANPED sobre a questão da transversalidade do rizoma, sobre a questão da Filosofia da Educação e, basicamente, o que eu fiz foi escrever uma introdução sobre o Deleuze e trazer esses textos como possibilidades de pensar o Deleuze na educação. A ideia era um pouco essa. O Deleuze não foi um filósofo da educação, então não dá para dizer o que Deleuze pensa sobre educação porque ele não pensou a educação, mas o que nós podemos pensar sobre a educação a partir de Deleuze. E a ideia do livro é: aqui estão algumas linhas, algumas possibilidades, que não tem a menor intenção de ser exaustivo nem definidora do campo, pelo contrário, é de indicar algumas possibilidades. Mas aquilo foi escrito em um determinado momento, como eu te disse, em que eu não tinha feito ainda um estudo mais sistemático da obra do Deleuze. Foi mais essa coisa de pegar uma coisa aqui, uma coisa acolá. 388 Então, eu já pensei várias vezes eu propor ao Alfredo uma nova... não é nem uma nova edição, mas uma reorganização daquilo, até porque eu acho que o livro é muito injusto com Guattari porque o título dele é “Deleuze e a educação”, ele está todo centrado no Deleuze, só lá quando eu faço o histórico do Deleuze que falo do encontro dele com o Guattari, da produção dele com o Guattari, mas, por outro lado, tudo aquilo que se fala sobre possibilidades de pensar educação se fala a partir da obra conjunta do Deleuze e do Guattari. Então, a rigor ele deveria... Ele deveria se chamar “DeleuzeGuattari e a educação”, e não “Deleuze e a educação”. E aí, uma coisa que eu já pensei em propor é de justamente retrabalhar um pouco aquele livro e ele virar um “Deleuze e Guattari e a educação” e escrever um outro “Deleuze e a educação” centrado na obra do Deleuze. CRISTIANE: A lógica do sentido, Diferença e Repetição... Exato. Aí eu acho que dá pra pegar toda essa questão do aprender que o Deleuze vai trabalhar e a própria questão da diferença, a própria noção deleuzeana da diferença que, do meu ponto de vista, é algo que precisa ser trabalhado em educação, especialmente quando a gente pensa toda a política de educação inclusiva, porque a política de educação inclusiva que vem sendo construída no Brasil faz uma afirmação da diferença, mas ela faz uma afirmação da diferença a partir do princípio de identidade. Ela faz justamente essa afirmação da diferença com a aparência que o Deleuze vai fazer a crítica. E aí, eu acho que pensar uma educação inclusiva a partir de uma filosofia da diferença, da diferença em si mesma, da diferença por si mesma, seria algo bastante importante, bastante interessante. CRISTIANE: Fora a banalização que foi feita do conceito de diferença, né? Exato, exato. Então, eu não acho que aquele livro seja um livro significativo. Eu acho que é uma coisa muito introdutória, muito geral e... CRISTIANE: Você apontaria um outro texto seu que esteja publicado? Não, não. 389 CRISTIANE: Uma outra coisa que eu queria perguntar, eu tenho feito essa pergunta a todos aqueles que eu tenho conversado e que tem uma importância para a minha pesquisa, é essa questão da Filosofia da Educação. A Filosofia da Educação ela é tida como algo menor, como algo marginal, como algo que pertence à educação, que a filosofia não tem nada a ver com isso, enfim... toda aquela discussão que a gente conhece. Então, eu queria que você também se colocasse com relação a essa questão. Do que é a Filosofia da Educação? Qual o sentido dela? CRISTIANE: Sim, se ela é efetivamente algo que mereça um olhar nobre da filosofia... Se é Filosofia, se não é... Se eu disser que não, eu sou obrigado a me enterrar, porque a minha vida é isso. Agora, eu acho que... também não dá para ter uma visão rancorosa, né? Por exemplo, eu fui trabalhar com Filosofia da Educação, não tinha muito claro isso. Mas uma vez eu conversando com o Antônio Joaquim Severino, ele falando da trajetória dele e ele falou algo muito parecido com isso que eu senti na minha trajetória. Por que eu fui fazer mestrado em Educação? Porque o que eu queria fazer, eu senti que na Filosofia não tinha espaço. Que na Filosofia, pelo menos na Filosofia como a gente tem lá... eu estava pensando em Campinas, eu sou de Campinas, estava pensando “eu vou fazer lá na Unicamp”, coisa de família, naquele momento eu não tinha como pensar “ah, eu vou fazer pós-graduação no Ceará, no Rio Grande do Sul”, era ali em Campinas mesmo que eu faria. A gente nem tinha o curso de graduação em Filosofia na Unicamp, mas tinha uma pós-graduação já consolidada, reconhecida. Mas entrando em contato lá com a área, o que se faria? O que seria possível de fazer? Eu teria que escolher um autor, escolher um assunto nesse autor e fazer um comentário sobre esse tema em um determinado autor. E eu sentia que com isso você não teria espaço para... eu não fala assim na época, mas você não teria espaço para a criação, para o pensamento, etc. E eu senti que na Educação você tinha essa abertura. Então, uma das coisas que me fez ir fazer o Mestrado em Educação foi, no caso em Filosofia da Educação, que uma área de concentração que a gente tem lá no 390 programa, é de sentir que a gente podia, na época, tomar o tema que eu queria trabalhar, que era o anarquismo, as produções anarquistas em Educação, e abordá-lo filosoficamente com uma liberdade de trabalho filosófico que na Filosofia eu não tinha, e ao mesmo tempo com uma certa transversalidade, uma certa abertura. Porque eu queria estudar – ou estudava o anarquismo ou eu queria estudar, em termos de pósgraduação, o anarquismo – porque com o anarquismo eu consegui articular os meus interesses na época, que eram interesses em antropologia e em política, basicamente. Só que se eu fosse para a filosofia e fosse fazer um trabalho em antropologia filosófica, esse trabalho seria um trabalho de antropologia filosófica, não de política. Se eu fosse fazer um trabalho de filosofia política, seria um trabalho de filosofia política, e não de antropologia. E na educação eu conseguia fazer uma coisa que ao mesmo tempo era antropologia, era política e era educação. Então, eu sentia na filosofia da educação essa possibilidade de percurso, de movimento e de liberdade de pensamento e de criação que eu não via na filosofia. Aí, depois disso tudo que eu, começando a tomar um contato maior com o campo, que a gente vai descobrindo, sabendo como cada campo ver o outro. Aí vim a conhecer essa ideia da área da Filosofia de que a Filosofia da Educação é uma área menor. Agora, do meu ponto de vista, isso é um absoluto desconhecimento da área de Filosofia para a Filosofia da Educação, por um lado. Com isso eu não estou dizendo que só se faça coisa boa na Filosofia da Educação, se faz muita porcaria em Filosofia da Educação, evidente, como também se faz muita porcaria em Filosofia e também se faz muita coisa boa em Filosofia. Mas, do meu ponto de vista, a Filosofia comete um equívoco sério quando diz que a Filosofia da Educação é uma outra coisa. Por quê? Porque deixa a Filosofia da Educação para os pedagogos, para os educadores. E os pedagogos, do meu ponto de vista, não tem competência teórica para fazer Filosofia da Educação, e isso não é diminuir o pedagogo. Do meu ponto de vista, você só faz Filosofia da Educação usando o instrumental filosófico para pensar a Educação. Um pedagogo, por formação, não tem acesso ao instrumental filosófico. Isso não significa que ele não possa ter, de repente o cara estuda Pedagogia e estuda Filosofia. 391 Não precisa fazer graduação em filosofia, não precisa ter carteirinha de filósofo se o cara domina o instrumental, mas a grande maioria não domina porque o curso não leva a esse... CRISTIANE: Eu concordo contigo e até acrescentaria que para se fazer um bom trabalho em História da Filosofia é necessário que você tenha essa formação filosófica. Claro, sem dúvida, por que se não você vai fazer História. CRISTIANE: Você não vai saber o que está falando. Você vai fazer estritamente História, não História da Filosofia. É um pouco isso que eu penso da Filosofia da Educação. Para fazer Filosofia da Educação, você tem que conhecer Educação, não pode não conhecer Educação porque aí não adianta também... “ah, eu sou filósofo e vou falar de educação, mas não conheço educação”. Mas você também não pode ser “ah, eu sou um educador, sou pedagogo, sou alguém formado no campo da educação e por isso eu posso pensar filosoficamente a educação”. Não pode. Eu acho que você tem que estar na confluência dessas duas coisas, tem que se colocar aí nesse turbilhão e ou vir de uma formação em Filosofia, mas se deixar afetar pelo campo educacional, ou vir do campo educacional, mas fazer todo um trabalho de apropriação do instrumental filosófico. Acho que aí você faz Filosofia da Educação. O problema que a gente tem no Brasil, o que acaba sendo? Ou quando a área de Filosofia diz “não, isso não é nosso, isso não é com a gente, isso não nos interessa porque não é nobre”, ou você deixa para o pedagogo, o educador de forma geral, ou você deixa para aqueles caras que fazem Filosofia, mas fazem Filosofia porque foram para o Seminário, por exemplo, e depois desistem de ser padre ou desistem de fazer qualquer coisa desse tipo e não encontram muito campo e não têm um domínio teórico maior da filosofia, conhecem Filosofia, estudam Filosofia, mas não tem aquela competência teórica mais forte na Filosofia e acabam não sendo reconhecidos no campo da Filosofia propriamente dito e acaba indo para o campo da Educação. “Então eu vou fazer minha carreira no campo da Educação, vou trabalhar com Filosofia da Educação que é uma coisa mais tranquila”. 392 Eu acho que muitas pessoas que vêm da Filosofia, mas vêm da Filosofia dessa forma. E eu estou aqui falando do Seminário, dos padres e tal, mas é evidente que não são todos, é uma parte e não são só esses, tem outros também que passam pela Filosofia dessa maneira, mas acabam encontrando na Filosofia da Educação um campo em que você consegue enganar mais fácil, digamos assim, ou acham que é um campo em que você consegue enganar mais fácil, que você consegue mais maleabilidade. Aí eu acho que com isso a gente acaba fazendo um desserviço à Filosofia da Educação. Eu acho que o papel da Filosofia seria justamente o de cobrar esse rigor, essa sistematicidade da Filosofia da Educação e não dizer “isso não é conosco”. Agora, a gente tem essa perspectiva imposta no Brasil, talvez não só no Brasil, em outros países também, mas certamente aqui no Brasil a gente tem essa perspectiva imposta e é uma questão contra a qual a gente tem que lutar. E a gente vai lutar contra ela como? Fazendo produções significativas no campo da Filosofia da Educação. Eu acho que é a única forma de lutar contra ela não é ficar fazendo discurso contra, é fazendo uma produção teórica consistente e de qualidade no campo da Filosofia da Educação. CRISTIANE: E essa associações também, eu acho que ajudam... Claro! É uma forma de você começar a circunscrever o campo, a cuidar mais de campo, dar elementos para que essa produção mais consistente seja feita. Eu acho que esse é o nosso desafio hoje. 393 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE PAULO GHIRALDELLI ... Eu nunca concordei com ele. Aliás, eu acho que o Saviani não concordava com ele mesmo, que aquele grupo saísse como um grupo de História. Aquele grupo era para ser um grupo de Filosofia e História, não um grupo de História. CRISTIANE: Mas ali eu creio que foi uma jogada política dele. Por quê? Porque se fosse só de filosofia seria mais difícil levar para a condução, que, a meu ver, era o que ele queria, de uma politização do negócio, que seria levar para o Marxismo. É uma leitura minha. Pode ser, porque o Marxismo naquela época no campo da História tinha mais trânsito, você tem razão. Se fosse para o campo da Filosofia, ele teria que enfrentar outras correntes ali na Unicamp que ele não queria enfrentar. CRISTIANE: E que era uma coisa que ele ainda estava, de certa forma, dentro do seu papel. Mas eu acho que isso fez mal para ele. Se ele fosse para a Filosofia, ele teria crescido mais, teria enfrentado, e ele tinha mais condição de enfrentar, teria estudado, teria se desenvolvido. Eu acho que o Saviani, naquele momento... sei lá o que aconteceu naquele momento. Hoje, quando eu vejo o partido que ele foi parar, ele foi parar no PCdoB por relações familiares, saber que o PCdoB vai lançar o Netinho para Prefeito de São Paulo. Será que o Saviani está contente com esse destino que ele deu a ele próprio? Porque ele foi para aquilo por família, tinha irmão no PCdoB e tal. Ele foi cedendo ao marxismo não por uma coisa... por convicção ideológica, e não por convicção acadêmica. O Saviani sempre foi um cara que, se tivesse ficado na filosofia, teria crescido, se ele tivesse ficado na filosofia teria talvez hoje fazendo parte de um grupo de filósofos que teria extrapolado a área da educação, mas não extrapolou. O Saviani é uma referência, mas na educação, você sai da educação e ele já não é mais uma referência. Por quê? Porque ele castrou a profissão dele, ele castrou a possibilidade dele. CRISTIANE: É isso que eu digo, creio que por convicção ideológica. 394 Convicção ideológica e talvez um pouco de ficar cativo do público que ele formou. Porque quando você aposta muito em um público e essas coisas começam a entrar em crise, sobra para você só esse público. Teve um tempo que ele era uma figura que prometia para além do marxismo, mas depois, conforme as coisas foram andando, só o público marxista que foi ficando com ele. CRISTIANE: Mas tu não achas que ele apostou na questão da educação mais por uma questão de formação, quer dizer, “vou ser um formador de formadores”, visando sempre a questão política e ideológica da expansão. Pode ser. Mas hoje veja só, pensa bem, o curso de pedagogia ficou restrito à formação de professores do ensino básico, que é isso que a gente critica. As chances de o Saviani hoje falar para mais gente do que essa área reduziu muito, né? CRISTIANE: Principalmente com o avanço de outras vertentes filosóficas, né? O próprio segmento que o... o comunismo real deu a si próprio... E o mais estranho é que ele não defendia aquilo lá que depois acabou defendendo. Quer dizer, quando todo mundo saiu daquilo, sobrou ele como se ele fosse o responsável por aquilo. Na verdade, ele nunca fez uma defesa da União Soviética ou daquele tipo de marxismo, não em sala de aula pelo menos, como meu orientador nunca fez. Depois caiu nas costas dele aquela coisa que, na verdade, nem era responsabilidade dele. CRISTIANE: Mas Paulo, a questão... Eu sinceramente amargo, porque eu convidei o Saviani para vir para o GT de Filosofia da Educação, não precisava sair do GT de História... eu convidei ele para vir para o GT de Filosofia da Educação, fiz um evento, “Qual o papel do filósofo no Conselho de Educação”. Chamei ele, o Cury [Carlos Roberto Jamil Cury]... era uma mesa do Cury, ele e eu, onde eu fazia uma mediação deles dois. Um filósofo que foi para o Conselho de Federal de Educação, para o Conselho Estadual... qual seria o papel. Na ANPED, foi um evento... era uma mesinha de nada que a gente fez e lotou, tiveram que abrir o anfiteatro pra gente porque foi mais do que o evento que eles tinham montado, foi o maior sucesso aquilo lá, mas ele não respondeu. Ele fez o evento, mas depois voltou lá para a história do HISTEDBR [História, Sociedade e Educação no Brasil], voltou lá para as mesmas pessoas, para os mesmos vínculos, alimentou uma 395 série de marxistas ruins, publicou junto. Aquilo, para mim, foi assim: “ele está se enterrando”. CRISTIANE: E hoje, para mim, eu vejo que ele parou naquela história que chamam de pedagogia crítica, né? Sim, ele ficou naquilo ali. Ele tomou aquilo como sendo uma coisa dele, para ele, se vinculou a pessoas que não trazem absolutamente nada de reflexão maior, aquele HISTEDBR, por exemplo, pelo amor de Deus, ele é de uma doutrinação quase que religiosa, aquilo não é o que o Saviani fazia nos anos 80 na aula dele, não é! Se você pegar o Saviani nos anos 80 ela era muito mais aberto que é aquele negócio lá hoje, embora seja um reflexo em todas as áreas marxistas, os marxistas desapareceram e tomaram o lugar de marxismos mais abertos. Você percebe que na Escola de Frankfurt, uma série de posições mais abertas foram ganhas por marxistas mais ortodoxos depois do final do comunismo. CRISTIANE: Se bem que tem um grupo no Brasil que são os remanescentes de Lukács, que é o pessoal lá de Alagoas, por exemplo, o Sérgio Lessa, o Ivo Tonet, é o pessoal que foi formado Chasin. Eu fui aluna do Chasin, mas eu sou dissidente por uma série de motivos, mas esse pessoal continuou e outros colegas lá da UECE também foram dissidentes do Chasin. Mas esse pessoal tem ainda uma certa ortodoxia marxista. Aqui na UFRRJ também tem. Aqui na UFRRJ tem umas coisas assim, de gente que foi muito aberta e que retrocedeu. Você quer um grupo altamente radical e fechado que existe aqui na UFRRJ? O grupo do Carlos Nelson Coutinho, do Leandro Konder, que foram figuras, nos anos 80, que estavam indo para o eurocomunismo, estavam indo para posições de discussão aberta e de repente retrocederam. Esses dias o Carlos Nelson Coutinho soltou uma carta condenando a Universidade por ter recebido um dinheiro da Fundação Ford, porque vinha dinheiro do imperialismo. Ora... ele, na maturidade dele nos anos 80, ele não falava uma coisa dessas, isso aí é uma radicalização quase como se você estivesse com saudade de que se reproduzisse aquele tempo. Sinceramente, a coisa que mais me fez entender o que se passou na cabeça desse pessoal foi o dia que o Bobbio falou que ele precisava morrer. Ele, Bobbio, quando 396 estava com 92 anos, deu uma entrevista dizendo que o mundo que ele conhecia, o mundo da guerra fria, o mundo dual que ele conhecia, não existia mais e que ele não tinha mais condição de entender o mundo de novo, porque ele entendia aquele mundo. Ele se sentia deslocado como uma pessoa que estava viva, mas que tinha acabado o tempo dele, ele falou isso. O Hobsbawm é assim. Outro dia o Hobsbawm deu uma entrevista dizendo que foi uma coisa ruim o que aconteceu, o fim do comunismo, porque o capitalismo na Europa agora está livre. Enquanto que, naquele tempo, os operários no Ocidente ameaçavam os patrões com a União Soviética. Falavam assim: “se vocês não cederem como a Social Democracia, vem o comunismo soviético”. Mas isso é um raciocínio que alguém faça? Como se o povo soviético fosse instrumento da nossa felicidade, nós vamos ter um socialismo com liberdade graças a não liberdade dos outros. Isso não é coisa que se fale! O Hobsbawm falou isso. CRISTIANE: É igual ao Porchat falando sobre a questão do método estruturalista, quer dizer, só existe filosofia se você seguir o método estruturalista do Goldschmidt, quem trouxe foi o Porchat. E depois daquela famosa aula dele lá na Bahia em que ele pede desculpas aos alunos dele, às pessoas que trabalham com Filosofia no Brasil, porque ele próprio foi um dos responsáveis de plantar no Brasil o método que supostamente seria o verdadeiro, a exegese de textos, né? Agora tem uma outra coisa que desapareceu também, felizmente, que foi essa história do método, essa discussão metodológica, desapareceu também. Foi a mesma coisa dos anos 80. CRISTIANE: Que, de certa forma, é até bom, né? Eu acho excelente. Eram discussões intermináveis em cima de método que você dispensava o conteúdo. Aquela menina que nós conversávamos ainda a pouco, ela quer discutir o método de uma coisa que ela não faz. CRISTIANE: E Paulo, nessa história toda, como é que você vê essa história dessa emergência do pensamento deleuzeano dentro dessa questão da educação, mais especificamente da Filosofia da Educação? Cris, eu estava pensando a seguinte coisa esses dias: será que esse pessoal está falando alguma coisa diferente do marxismo? Eu tenho dúvidas. Porque, quando você 397 conversa em termos abstratos parece diferente, mas quando você vê todos eles, de várias correntes, se relacionarem com o cotidiano, com a prática cotidiana, a vida de cada um de nós, a conversa deles é muito parecida com a conversa do marxismo que, por sua vez, é muito parecida com a conversa dos padres. Está tendo um seminário esses dias para montar mais um daqueles volumes que o Novaes faz, aquelas antologias que ele costuma fazer. Antigamente ele fazia um grande evento para montar a antologia, agora ele mais monta antologia do que faz evento. Aí eu fui ver o discurso do Giacóia, estudou Nietzsche, não tem nenhuma relação com o marxismo, uma escola do Nietzsche, aí vai, vai... na hora que chega nas questões do cotidiano, os inimigos: consumismo, consumismo é um grande inimigo, as pessoas não podem consumir, senão elas ficam alienadas; mercado; vida moderna... só falta ele dizer que é o capitalismo. Mas isso os padres falavam, os padres falavam que o capitalismo era uma coisa ruim, a usura é uma coisa ruim, o consumo era uma coisa que... o marxismo também já falou isso. Quer dizer, esse discurso parece ser uma... ele unifica a academia, unifica em um grau muito maior que qualquer coisa. Você pega de uma Olgária Matos, passando por um Demerval para chegar em um Giacóia, Marilena Chauí, e é fantástico, porque ao mesmo tempo que um cara como o Lula diz “gente, eu quero que todo mundo consuma”, essas pessoas de esquerda tem pavor do consumo, elas falam que tem que diferenciar o consumo do consumismo, mas não é isso não! Qualquer coisa para elas é consumismo, a pessoa não pode ir em um shopping, não pode se vestir bem, não pode ter qualquer... é uma coisa meio assim do... CRISTIANE: Religioso. Uma coisa que volta ao catolicismo contra o protestantismo, católico contra usura. Leonardo Boff, Frei Beto, Severino, aí você vai para os foucaulteanos, deleuzeanos, aquelas pessoas que você espera que façam um discurso diferente desse, e não, é igual. E se você pega o discurso do próprio Deleuze em algumas circunstâncias desse tipo, também é igual, também tem uma mágoa contra a sociedade ocidental, a economia de mercado da sociedade ocidental, essas coisas que parece que... e aí entra a tal da crise de educação. 398 Todos eles quando vão falar de educação, não falam coisas diferentes. É a crítica contra uma certa pedagogia que eles identificam no John Dewey como sendo uma liberalização de certos elementos que não poderiam ser liberalizados. CRISTIANE: Uma coisa que eu pude identificar foi que boa parte desse pessoal toma para si e defende uma filosofia da educação a partir daquela posição clássica do Deleuze de filosofia sendo criação de conceitos (O que é a Filosofia?), Filosofia é uma criação de conceitos. Quer dizer, eu acho que eles não saíram da capa do livro até agora. CRISTIANE: Aí a Filosofia da Educação deveria ser feita a partir dessa criação de conceitos. Mas a criação de conceitos tem um problema grave, toda vida que você cria conceitos você cria preconceitos, para cada conceito, dez preconceitos. O preconceito é fruto de você ter criado o conceito, se você não criar o conceito não tem preconceito, uma sociedade sem preconceito é uma sociedade sem conceito. Você cria o conceito de criança, pronto... metade das crianças já fica de fora da escola, isso é o que eu tenho visto. Toda vida que se cria o conceito de quem é criança, mais da metade das crianças não cabem nesse conceito e elas ficam de fora dos elementos que são do conceito, por exemplo, a escola. Eu tenho pavor desse negócio de criação de conceitos por causa disso, porque ela circunscreve as coisas... o conceito é uma circunscrição. Ele é bom para a gente fazer discussão, para conversar, mas quando ele vem para o campo prático, o campo do cotidiano, e a educação é o cotidiano – no fundo é uma prática, a metodologia pode ser uma teoria, mas a educação é uma prática, acontece – quando você vai usar isso na prática não parece uma boa coisa. CRISTIANE: Mas Paulo, nesse sentido, o que seria Filosofia da Educação? É uma conversação sobre educação, mas contanto que ela seja uma conversação que tenha a ver com a tradição filosófica. Porque, no fundo, como é que as pessoas falam que elas são filósofas se elas são herdeiras de um outro filósofo? Não tem um outro mecanismo para você definir, né? Porque, veja, se for por objeto... não é estanho se for por objeto ou por método? Se você for por objeto ou por método você não diria 399 que Marx é filósofo se você disser que Foucault é filósofo. Se você disser que Foucault é filósofo, Marx não cabe, se você disser que é Marx, Foucault não cabe. CRISTIANE: Mas aí, nesse sentido, o Deleuze diria que todos os filósofos foram criadores de conceitos. Quer dizer, o mundo das ideias foi um conceito criado por Platão. Por Platão não, porque Platão não conhecia o conceito de conceito, né? CRISTIANE: Eu estou te falando o que o Deleuze diz, que cada filósofo vai criando conceitos, então filosofia é criação de conceitos, é nesse sentido. Não, tudo bem, eu conheço o livro do Deleuze, mas o que eu estou dizendo para você é que quando você desce para questões da política, da educação... vamos supor que eu conceitue “democracia”, é um perigo, não é uma boa coisa. As pessoas adoram conceituar, mas elas esquecem que a cada conceito cabe muita pouca gente dentro desse conceito. CRISTIANE: Ele é excludente, né? Ele é excludente! Porque é do conceito ser excludente. Então, talvez seja um bom instrumento teórico, mas não seja um bom instrumento para a ação, talvez não seja um bom instrumento para você utilizar. Aí quando você vem para as áreas tipicamente da razão prática, moral, política, educação, essas áreas, ele não me parece ser uma coisa legal. CRISTIANE: Aí, nesse sentido, a nível de provocação, como é que você vê a questão da criação do conceito nesse sentido deleuzeano, essa ideia poderia se aproximar da questão da redescrição rortyana, quer dizer, criar conceitos também não é redescrever? Não, porque criar conceitos é criar conceitos, ela elimina a outra descrição. A outra descrição passa a ser um não conceitual, passa a ser o que ficou aquém do conceito, é o não científico e a redescrição obrigatoriamente não. Obrigatoriamente não porque ela própria já se toma como redescrição, ela é mais uma, é uma interpretação a mais, ela não tem final, não tem começo nem fim. O que que eu posso por contra o seu livro? Um outro livro. Agora se eu puder por contra o seu livro um livro definitivo que tenha um conceito, o seu livro não merece 400 mais ser lido ou então ele merece ser lido como história. Eu acho que são coisas diferentes. Quando eu falo em redescrição, eu estou imaginando que eu ofereci para você... contra o seu argumento eu ofereci um argumento, contra a sua descrição eu ofereci a minha descrição, que eu estou chamando de redescrição. CRISTIANE: E o método de uma criação de conceitos não seria... A não ser que a palavra conceito tenha perdido o seu conceito, porque o conceito de conceito é necessariamente uma delimitação, tanto é que quando a gente faz o conceito, logo depois vem a definição que é a explicitação do conceito, e tem coisas que cabem na definição e coisas que não cabem na definição. Eu acho que essa ideia da filosofia como criação de conceitos expulsa pela janela o essencialismo e ele reaparece pela... você expulsa pela porta e ele reaparece pela janela. Ele é a reentrada de um certo platonismo. CRISTIANE: Que seria exatamente o inverso do que Deleuze quer, né? Porque ele já funda a filosofia dele antiplatônica, né? Fran (Chegando da aula): Eu aprontei mais uma hoje. Hoje chegou um aluno típico daqueles que a gente conhece... que não sei o que, e a professora falou “gente, não existe verdade absoluta”, aí ele disse: “existe professora”. Aí ela: “ah...”. Aí eu: “não, não, pára tudo. E qual é?”. Aí a professora riu, o pessoal continuou rindo, aí eu falei: “silêncio, não fala agora não, professora. Qual é?”. Aí o cara ficou assim meio...aí eu falei pra ele assim: “você não sabe qual é?”.“Ah não, que não sei o quê...”. “Quem te falou que existe também não soube te responder qual é, né?”. Aí o pessoal já fechando o livro, aí eu disse: “calma gente... sabe por quê? Porque não existe!”. Aí a menina disse: “ele vai se matar depois dessa”. Não... você não gostou? É, tem que fazer isso. Fran: Não é o cúmulo a pessoa chegar dizendo que a verdade absoluta existe? Tchau, tchau, gente! Mas que ele vai ficar pensando isso, ele vai! CRISTIANE: Hoje ele não dorme. Bom... voltando à questão da redescrição e da criação de conceitos, você falava que o conceito perdeu a ideia de conceito que tinha dentro da tradição. 401 Quer dizer, nós estamos tentando aproximar duas coisas. Se o Deleuze está falando que conceito é alguma coisa como é a interpretação ou a redescrição, então tudo bem. Mas, pelo que eu sei, ele não está falando disso, pelo contrário. Aliás, ele parece deixar bem claro. Agora, se o conceito não é alguma coisa do âmbito do platonismo, não do Platão, mas do platonismo, então do que que ele está falando? CRISTIANE: É, pelo menos o lá no O que é a Filosofia?, aquele livrinho dele que vai falar exatamente que a filosofia não é uma posição definitiva, não é uma reflexão, é uma percepção da realidade, ela não tem esse sentido tradicional do conceito nem da representação, por exemplo. Pelo contrário, ele é antirepresentacionista, é, inclusive, nesse sentido que eu coloco uma pergunta: essa aproximação antirepresentacionista do Deleuze, que ele se coloca contra a possibilidade de você conhecer a realidade tal qual a filosofia da representação e ele faz a defesa da categoria da diferença... Aí, nesse sentido, por exemplo, não haveria também uma aproximação com algumas questões do pragmatismo rortyano? Eu penso o seguinte: o Deleuze tem lá uma série de razões para falar o que ele falou... CRISTIANE: Só um parêntese, eu não sou deleuzeana... Ele tem uma série de razões para falar o que ele falou, eu só não acho que as pessoas que se apropriam desse discurso estejam indo a fundo dessas razões. CRISTIANE: Esse ponto aí é importante. Dá para você estender mais isso, principalmente voltando para a questão da Filosofia da Educação. Elas falam: a filosofia é criação de conceitos. OK, mas, se o conceito não é alguma coisa que expulsa o diferente, então o Deleuze já está falando de outra coisa que não o conceito tradicional. Só que isso se explicita nos trabalhos? Não se explicita... CRISTIANE: Na filosofia da educação no Brasil... Não só na filosofia da educação, mas na filosofia em geral que se inspira no Deleuze. Por isso que eu digo para você, a matriz pela qual as pessoas leem essas coisas ainda é a velha. As pessoas leem coisas novas, mas absorvem isso em uma matriz velha. A filosofia nossa é muito herdeira de padres e marxistas, então a tendência nossa de ler as coisas com esses olhos é muito forte. 402 Vou dar um exemplo pra você, você já deve ter encontrado por aí vários... o Foucault. Tem várias pessoas que leem errado o Foucault, mas errado mesmo, e absorve Foucault... a hipótese repressiva que ele combate, você já deve ter visto isso por aí. Na área de educação você já deve ter visto pessoas que vão denunciar a repressão usando Foucault, enquanto, na verdade, Foucault está denunciando a denúncia da repressão. E elas não se tocam que elas estão erradas simplesmente porque a matriz marxista e católica, é de tal ordem forte, que o que elas tem que reproduzir é a ideia da alienação, estamos alienados por alguma coisa, estamos incapazes de ver a verdade. Aí os padres dizem que nós estamos incapazes de ver a verdade porque nós não estamos com Jesus e os marxistas dizem que nós somos incapazes de ver a verdade porque estamos imersos no mercado, que causa a reificação e o fetichismo. Pronto, estamos cegos. Aí elas vão ler qualquer outra filosofia e leem sob esses olhos. CRISTIANE: Então a leitura deleuzeana contemporânea está também enveredando... Olha, não pense que isso que eu estou falando é assim: “ah, os deleuzeanos”. Não. Se você vê as pessoas lendo Rorty, você vai ver que muitas delas fazem a mesma coisa, eu tenho colegas que leem Rorty lá no norte e nordeste e tem algumas leituras lá que são marxistas, eles querem que o Rorty fale como se ele estivesse defendendo uma sociedade revolucionária, socialista, como se a redescrição fosse um instrumento de desalienação. Enquanto, na verdade, a noção da alienação não passa pelo discurso do Rorty, não tem essa noção, porque não é uma filosofia metafísica que permite você ter ilusão e não ilusão em um sentido metafísico. A ilusão que você pode ter com o Rorty é uma ilusão comum, ilusão psicológica, uma ilusão de percepção psicológica, de erro comum, mas não uma ilusão metafísica, aquela ilusão que só o metafísico pode denunciar, como, no caso, a alienação o a reificação. Essa palavra, para o Rorty, não significa nada, ela não tem significado teórico, porque se não ele entraria naquilo que ele chama de um platonismo, né? Trabalharia novamente com um esquema dual e ele não faz isso. Mas se você pega algumas leituras, mesmo no nosso grupo, no nosso GT de Pragmatismo da ANPOF, aparecem várias pessoas ali que acham que o Rorty está falando de alguma coisa que é uma esquerda marxista. Não, não está falando disso de 403 jeito nenhum! A política do Rorty se aproxima a uma política de esquerda, mas a filosofia não, a filosofia do Rorty não tem vinculação de política, ela é uma antimetafísica, você não tem um mundo dual próprio do sistema metafísico. CRISTIANE: A partir desse princípio que você está colocando, se há uma repetição que vem sendo retomada desde a tradição dos Jesuítas, do próprio catolicismo, a partir desses pensadores contemporâneos, Filosofia da EducaçãoDeleuze, então poderia também dizer que há uma repetição dos resultados nessa reflexão deleuzeana sobre a Filosofia da Educação? Quando você vai ver o que que eles propõem para as escolas ou para a política ou para questões do multiculturalismo, seja o que for, você vai ver que é muito parecido ao que já foi proposto por outras correntes educacionais, você vai ver que na prática... você sabe uma pessoa que falava isso também, mas de outro autor, que ela percebia? A Nadja Hermann. Ela estudava o Habermas e ela falava assim: “sabe o que eu noto? Que o Habermas dos meus colegas é um padre, eles não podem mais buscar fundamentos em uma filosofia religiosa, então agora eles buscam fundamentos na linguagem e usam o Habermas, mas no fundo eles estão buscando fundamentos, é uma reconstrução de uma filosofia tradicional com uma linguagem nova”. E isso no Habermas foi bem verdade. CRISTIANE: Que é mais ou menos aquilo que o próprio Foucault coloca, o Foucault e o Vattimo. A modernidade seria, de certa forma, uma retomada da tradição católica, a gente queria salvar a alma, agora a gente quer salvar o Homem na modernidade, né? Isso vem pelas duas vias. Pode vir por uma leitura correta, bem estruturada, e aí você faz uma apropriação legítima, e pode vir por uma leitura errada, completamente burra, do erro. Não estou dizendo que é só um erro, pode ser um erro, mas tem gente que sabe fazer bem feito, sabe pegar o Habermas e trazer o Habermas para um campo exclusivamente metafísico e falar: “está aqui um defensor da metafísica como a metafísica pode ser hoje”, tem gente que faz isso bem feito. Eu não tenho condição de distinguir, pontuar, quem estar fazendo bem feito e quem está fazendo mal feito porque eu não tenho esse quadro na cabeça, eu vou encontrando... mas tem as duas coisas. Eu vejo assim: se você pegar os vários núcleos de estudo de filosofia e de filosofia da educação você vai ver que esse fenômeno se 404 repete porque você vai encontrar pessoas nesses núcleos dizendo isso que eu estou dizendo. Você vai encontrar, no núcleo da Escola de Frankfurt, a Nadja falando isso. No pragmatismo você vai encontrar eu falando isso. Eu não estou falando isso dos deleuzeanos, estou falando do pragmatismo também, falando isso do próprio Rorty. E se você for notar, tem gente lendo Foucault que vai falar isso. Esses dias eu vi um professor aqui mesmo na Rural [UFRRJ] falando isso, que ele foi em uma banca sobre Foucault na filosofia e o cara estava fazendo exatamente isso, lendo Foucault como se Foucault fosse uma continuidade do marxismo. Aí o cara usa daqueles mecanismos mais malucos para justificar aquelas últimas entrevistas do Foucault, ele dizendo que ele estava fazendo mais ou menos o que a escola de Frankfurt estava fazendo, mas se você ler a entrevista, isso é, na verdade, é uma ironia do Foucault. Não é que ele está fazendo a mesma coisa, é que ele está dentro de um veio que tem a ver, mas não é a mesma coisa, é outra coisa! Foucault de um lado, Marcuse do outro. Marcuse é um cara que está dizendo que a sociedade capitalista é repressora e que a sociedade soviética também é repressora da libido. O Foucault está dizendo que não é, essa é a questão. Não é dizer que é ou não é, essa não é a questão. CRISTIANE: O controle não se exerce somente pela repressão, muito pelo contrário. Tem uma coisa que me intriga... Porque, na verdade, o Foucault é genial, ele é um gênio. O Marcuse pode ser um gênio, mas o Foucault é um gênio ao dizer o que ele disse: se uma coisa é reprimida, como é que ela pode produzir tanta coisa? Como uma coisa tão negativa pode gerar tanta coisa positiva? Ele não está falando bom e mau, ele está falando positivo e negativo. Não estamos dizendo que as coisas positivas são boas, elas são positivas porque elas se põem, enquanto que o negativo não se põe, ele se encolhe. Então, se você reprime, você faz a coisa encolher, recolher, sumir, aí produz esse mundo aqui. Como? CRISTIANE: E ele se torna mais genial ainda porque ele tem essa percepção a contrapelo de toda tradição, que afirmava exatamente o inverso, quer dizer, o poder não se exerce somente pela repressão. 405 Você quer ver um erro fantástico? Agora pelo outro lado, não pelo lado de você repetir a esquerda tradicional, mas por você repetir a direita tradicional. Quando o Rorty começou a ser por, a aparecer no Brasil, eu ia nos congressos de educação... as pessoas liam tão errado ao ponto de dizerem assim: “o Rorty é o filósofo do consenso e, portanto, ele é um filósofo do Consenso de Washington”. Eu escutei isso na Anped de pessoas que foram da CAPES, do CNPQ, aquela moça lá que morreu que até eu publiquei o livro dela, a Célia, de Santa Catarina... eu publiquei um livrinho dela, não sei se ela faleceu mesmo, me disseram que ela faleceu. Essa moça ia lá no... era representante na CAPES e ia lá para falar essas coisas e publicou, inclusive na minha coleção, eu endossando, eu endossei isso, “publica, ué?! Quer publicar, publica”. Mas é um erro bárbaro, a pessoa escutou o galo cantar e... e na área nossa, na área nossa. A área da educação, pelo amor de Deus... cá entre nos, tem barbárie, né? Tem barbárie, né? CRISTIANE: Mas tem uma coisa que me intriga, não sei como você veria, se você parte do princípio que você teve e tem no Brasil diversas matrizes filosóficas que vêm marcando, vêm influenciando tanto as práticas como as teorias educacionais e, se você for ver esse movimento de influência filosófica, você vai compreendendo que essa influência foi aceita por conta disso, disso e daquilo outro, a Ratio Studiorum dos Jesuítas, a influência tomista, o Tomismo, uma série de questões sociais, econômicas, você vai compreendendo, a própria industrialização no Brasil acaba, de certa forma, também favorecendo a aceitação do pensamento norteamericano. Enfim, a cada período você tem as suas respectivas influências. Mas uma coisa que eu não compreendi ainda é como que se explica essa aceitação contemporânea, por exemplo, não é de grande monta, mas já é representativa, desse pensamento deleuzeano no Brasil. Eu gostaria que você fizesse essa reflexão comigo porque... aí você diz: “ah, mas não é de grande monta”. É, não, mas, de certa forma, já está se tornando expressivo. Você ver a questão editorial, você já tem uma coisa que está sempre aparecendo, você tem grupos pelo Brasil inteiro. Por exemplo, no meu trabalho, eu já mapeei, no Ceará você tem um núcleo, na Unicamp você tem outro núcleo, no Rio Grande do Sul você tem outro núcleo, no Rio você tem outro núcleo, quer dizer, de certa forma, você tem uma representatividade, né? 406 Eu gostaria de saber como é que você vê, dentro desse raciocínio que eu tracei de diversas matrizes filosóficas, elas acabam influenciando uma série de fatores por uma série de motivos. Como é que a gente poderia compreender isso? Eu acho que, nesse caso aí, talvez a situação seja meio banal pelo seguinte: quem são essas pessoas? Se você vê, todas elas são pessoas que já estudavam filosofia francesa, a maioria. No limite, os mais velhos foram sartreanos, os mais novos, foucaulteanos. Ora, a filosofia francesa é a nossa matriz, fundou a USP e se espalhou, então não saímos do mesmo lugar. Nesse caso dos deleuzanos, é até natural que seja, até acho que eles são muito fracos perto da base que eles têm. Veja, aqui na Universidade, essa Universidade que tem um departamento de Filosofia de gente jovem, esse departamento de Filosofia de gente jovem ainda tem professores... CRISTIANE: E tem curso? Tem um Curso de Filosofia. Esse departamento de Filosofia de gente jovem ainda tem professores cuja língua estrangeira é o francês, não é o inglês. A minha língua estrangeira é o inglês, se for optar entre o francês e o inglês, eu opto pela minha segunda língua como sendo o inglês. Mesmo o italiano eu colocaria como terceira língua e o francês como segunda. Mas aqui você tem uma série de pessoas que não leem em inglês, é mais fácil as pessoas arranharem um alemão do que o inglês. Isso é a filosofia no Brasil, filosofia voltada para a Europa, conhece muito pouco o pensamento liberal, lê poucos ingleses, conhece a Europa continental e assim mesmo... agora, o que que a Europa continental tem produzido de filosofia? Ela está emperrada, a Europa está emperrada economicamente também. Então, é até natural. Outra coisa: psicanálise. A nossa linha de leitura de psicanálise, tirando o grupo do Jurandir [Freire Costa] aqui no Rio, é inteirinha francesa. O Bento [Prado Jr], quantos anos o Bento deu aula lá na Unicamp, de quê? De Deleuze. Falando do quê? De psicanálise. CRISTIANE: Ele foi o tradutor de duas obras do Deleuze. Agora tem uma outra coisa que a gente tem que notar, é o seguinte: não é só por essa relação com a França de inicial e posterior, é também por uma relação com a 407 França por uma filosofia também que foi base para além da França, que foi o existencialismo. Nos anos 50, quem não era existencialista? Quem foi educado dos anos 50 para os anos 60 que não teve alguma leitura do Sartre pesada na sua formação? Poucas pessoas, pouquíssimas mesmo. Você pega o próprio Rorty. O Rorty tem uma bolsa, ele vai para a Europa estudar Sartre, o próprio Rorty. Até os americanos naquela época. Hoje é o inverso, hoje o sonho do professor europeu é conseguir dar aula nos Estados Unidos, o grande sonho do cara é ser reconhecido... CRISTIANE: O Foucault conseguiu, né? O Foucault não só por conta da questão acadêmica, muito menos... por conta da questão pessoal. Ele queria se livrar da situação de desconforto europeu que ele vivia como homossexual. Aí ele vai para os Estados Unidos e, obviamente, vai para lugares onde tem um pouco mais de liberdade, né? O Derrida, o sucesso do Derrida filosófico é onde? Nos Estados Unidos. As universidades inglesas nem quiseram reconhecer ele como filósofo, ele sai da França para os Estados Unidos, foi onde ele é reconhecido como filósofo. Quer dizer, você tem uma tradição francesa poderosa... porque, cá entre nós, o Deleuze não é uma filosofia fácil de ler. Então, como é que faz sucesso, como é que engaja pessoas em uma coisa que afasta os educadores? Não é uma coisa que ganha os educadores, não é uma coisa que ganha. CRISTIANE: A Lógica do sentido é um livro muito pesado. Tem que ter toda uma bagagem. É uma literatura que envolve um conhecimento técnico e, portanto, envolve uma certa erudição naquela tradição. Você tem que estar envolvido com aquela conversa do neoestruturalismo, do pós-estruturalismo, tem que estar envolvido com aquilo ali, com uma noção de psicanálise, se não você não avança nos livros. Ele não é uma filosofia que dá serviço para você, não é aquela filosofia que o cara dá o serviço, ele diz para você o que você precisa para entendê-lo e dá... não é! No entanto, como é que justifica isso se... CRISTIANE: Eu tenho uma suspeita, não sei se você vai concordar comigo. É uma coisa um pouco boba, mas eu acho que tem fundamento na realidade. Essa questão 408 do Deleuze ser o filósofo da diferença, quer dizer, a diferença que ele fala é uma categoria técnica filosófica que nós, como especialistas, a gente sua pra entender aquilo, envolve um universo inteiro, conceitual, categorial, da história da filosofia, etc. Mas como a palavra diferença caiu na boca do povo, inclusive de forma muito deturpada... tudo é a diferença. Mas é uma coisa que não é propriamente aquilo que a categoria, o conceito de diferença de Deleuze quer dizer. Então, de certa forma, a própria realidade mediática também se apropriou disso e deu uma certa popularização do pensamento deleuzeano, só que o povo não entende porra nenhuma! Você lembra quando aconteceu isso com a palavra paradigma? Você lembra quando aconteceu isso com a palavra estrutura, estruturalismo? Já tivemos esses fenômenos. Essa é uma coisa que os filósofos não gostam de estudar, mas que eu aprendi a estudar com o Demerval, porque o Gramsci era um cara preocupado com isso, ou seja, como é que o homem do povo entende certas palavras do discurso erudito... o Gramsci tinha preocupação com isso, a formação do senso comum, como que é a formação do senso comum. A formação do senso comum é uma coisa que os filósofos não gostam de estudar porque eles acham que estudar o senso comum é se transformar no senso comum. No máximo, eles estudam o senso comum filosófico, o senso comum dos autores do senso comum, a filosofia do senso comum inglesa, mas eles não gostam de estudar o senso comum mesmo. CRISTIANE: O filósofo metafísico não gosta de “sujar as mãos”, né? Não gosta, até porque eles deixam isso para a área da política. Quem vai estudar jargão? Estudar jargão, eles acham que é para jornalista, é para o cara da comunicação, para o cara do marketing. Por exemplo, no Brasil... mas esse estudo é importante, é um estudo importante, como é que uma palavra perde completamente o seu sentido técnico e abre portas. O paradigma... nem lia o Thomas Kuhn, o Thomas Kuhn não era uma figura da literatura nossa porque vinha do mundo inglês, do mundo angloamericano, no entanto teve uma época que não se falava outra coisa. Eu tenho medo disso aí, tanto é que quando eu percebo que... o Adorno tinha tanto medo disso que ele dizia que quando ele escrevia um texto, depois ele passava 409 corrigindo mudando as palavras para ficar mais difícil. Aí falavam que era elitismo do Adorno, não é elitismo, é preocupação com esse deslize. Eu fico até triste porque o Adorno é um dos que mais aconteceu isso. Indústria cultura. A palavra indústria cultural está na boca do povo, qualquer um... mas não é absolutamente nada do que o frankfurtianos falavam. Os caras confundem indústria cultural com cinema comercial e não é bem isso, é quase isso, mas não é bem isso. CRISTIANE: Nesse sentido aí, eu acho que a filosofia da diferença ou as filosofias da diferença... Sem contar que a história da diferença vem lá do Derrida também, né? O different que não tem a ver com Deleuze. Aí vão emendando... CRISTIANE: Tem o Lyotard, na Condição pós-moderna, ele tem toda uma abordagem sobre essa questão da diferença. O próprio Hegel, se você pegar A Grande Lógica, a diferença é uma das categorias do percurso do espírito. Mas o mundo contemporâneo se apropriou dessa categoria... A definição de verdade do Adorno é algo fantástico. CRISTIANE: O mundo contemporâneo se apropriou dessa categoria e, a meu ver, o terreno da educação é muito fértil para semear essas... É um terreno de popularização ruim por razões óbvias, né? Nós temos hoje mais de 50 programas de pós-graduação em educação no Brasil, eu acho até que se for contar tem mais, calculando dá por aí... deve ter mais, mas funcionando legal deve ter uns 50, a quantidade de mestres e doutores na educação é enorme e nós somos os últimos na escala internacional em educação, nós estamos lá embaixo, nos exames do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos] nós somos os últimos. Então, isso significa que nós temos uma produção imensa de pensadores sobre educação sobre um objeto que não existe, porque nós não temos educação. A própria escola pública nossa, que era onde nós poderíamos estudar educação, não está acontecendo. Isso é uma barbárie e isso vai revelar a nossa... CRISTIANE: Uma certa esquizofrenia teórica, né? 410 Vai revelar que, por falta de objeto e esse objeto ser o responsável pela própria formação dos pensadores, já revela a qualidade do pensador. Teve até uma época... eu me lembro que teve uma época, e eu acho que eu fui o responsável, não o único, obviamente, mas eu acho que eu fui um dos grandes responsáveis de quebrar o preconceito da área de filosofia com educação e vice-versa. Se olhar a história da educação brasileira você vai dizer: “o Paulo tem um mérito”. Porque eu bati nessa tecla, eu pegava nego da Filosofia e levava na ANPED, pegava nego da ANPED e levava na Filosofia, brigava, “não... tem que ter formação filosófica, mas não pode ter preconceito com a Educação”, “tem que ter formação em Educação, mas não pode ter preconceito com a Filosofia...”. É visível que eu fiz isso durante muito tempo, né? Eu consegui trazer várias pessoas que haviam feito graduação em Filosofia para pensar filosoficamente a educação e elas não estavam fazendo mais isso. O Sílvio é um, é um que fazia anos que não lia mais nada de filosofia. Voltou a ler filosofia porque no GT de Filosofia da Educação na ANPED eu comecei a cobrar dos filósofos leitura em Filosofia. Voltar a recuperar essa nossa tradição de filósofo da educação... ser, antes de tudo, filósofo. Isso foi uma coisa que eu briguei e isso criou um mal estar geral nas duas áreas contra mim, até hoje, de vez enquanto, aparece isso aqui no departamento... CRISTIANE: O preconceito continua. Apesar de ter melhorado muita coisa, o preconceito continua. Mas se você pensar no preconceito de hoje com o que era nos anos 80, não tem nem medida! Uma pessoa não era chamada para um lugar... porque hoje tem publicação conjunta, você ver várias pessoas publicando conjuntamente, você ver eventos conjuntos CRISTIANE: Os próprios Programas de Educação têm departamentos de filosofia da educação. Tem! As pessoas não recebiam umas as outras. Houve agressão física lá em São Carlos, o pessoaL da Filosofia quis pegar o Demerval de pau. CRISTIANE: Por quê? Porque o Demerval falava em Filosofia da Educação e o pessoal falava: “ele quer transformar pedagogo em filósofo”, eles não reconheciam no Demerval uma 411 pessoa da Filosofia porque ele fez a graduação e já no mestrado e doutorado foi encaminhado para pensar a Educação, “pô, isso não é filósofo”. E vice-versa, várias pessoas da educação não toleravam o pessoal da Filosofia porque achavam que o pessoal da Filosofia era soberbo e tal, não sabia botar a mão na massa. CRISTIANE: E para o pessoal da Filosofia, a educação é uma coisa menor, que não deve ser pensada. Quem deve pensar é pedagogo. Eu não estou dizendo a você que isso não existe, mas se você pensar na época que eu comecei essa batalha... CRISTIANE: Isso foi em que ano, Paulo? Quando eu comecei isso aí, eu comecei praticamente sozinho, depois eu consegui alguns aliados. Por exemplo, Severino foi um aliado que começou ele próprio a ir no departamento de Filosofia – ele não conhecia mais nem quem eram as pessoas – e tentar conversar. Aquela coleçãozinha que ele lançou, que até tem um Rorty meu lá, já foi uma tentativa... ir lá no departamento de Filosofia, mostrar a coleção para as pessoas. De 85 para cá, 84, 85 para cá. Chegou uma época de... isso me obrigou a fazer dupla formação. CRISTIANE: E eu acho legal quando você estampa o seu currículo e você faz questão de mostrar tanto a formação filosófica quanto a formação na educação. A minha formação da educação não é educação, é Filosofia da Educação. Até pouco tempo os concursos eram completamente separados. Aqui, onde nós estamos aqui, pela primeira vez na história do Rio de Janeiro, uma pessoa do departamento de educação dá aula na Filosofia, em Filosofia, eu dou Filosofia da Linguagem para eles. E lá agora na UFRJ, a Suzana [Castro], que dá Filosofia da Educação para a Filosofia. Até pouco tempo nem isso podia, era um fosso. Tudo bem, há os estranhamentos e tal, mas não tem comparação ao que foi. Eu ganhei várias pessoas que tinham feito graduação em Filosofia para pensar Filosofia e Educação conjuntamente. Nadja foi uma, fez a graduação e nunca mais voltou para a Filosofia, ingressou na área da Educação, inclusive em áreas técnicas. O Sílvio estava nessa, o Severino estava nessa. O Demerval fez o caminho contrário e isso foi uma perda, ele fez o caminho contrário, ele foi abandonando. Aquele grupo lá de São Carlos, o pessoal da Teoria Crítica também, é um pessoal que estava na área da educação. 412 Chegou uma época que ser educador e ser filósofo eram duas coisas separadas. Hoje várias pessoas dão risada disso, de o cara querer ser filósofo e não ser educador e vice-versa. É até um contra senso, né? CRISTIANE: Pegando essa vertente aí que você está explanando, hoje, no Brasil, quais são as principais matrizes filosóficas que pensam a educação? Eu vejo o pragmatismo, você, a meu ver, a pessoa mais representativa dessa vertente; tem os deleuzeanos; tem o pessoal que trabalha com Adorno, outros com Habermas; os marxistas que a gente não pode esquecer. Como é que se faz um balanço dessas vertentes filosóficas que hoje fazem essa reflexão em torno da educação dentro dessa perspectiva da Filosofia da Educação? Cris, eu sou uma pessoa completamente decepcionado com isso. Eu acho que nós todos... eu talvez menos porque agora decididamente é uma questão secundária, eu realmente quero escapar dessa ideia de que educação tem a ver com o curso de pedagogia, eu quero escapar disso. Eu acho que educação é uma coisa maior e maior, inclusive, do que lidar com formação de professores. É um negócio que tem que ser pensado maior no Brasil. CRISTIANE: Pois então, essas vertentes filosóficas... Mas eu acho que essas vertentes filosóficas... nós estamos rodando em círculos em falso. Por quê? Porque nós não estamos conversando coisas... não estamos conversando sobre um objeto existente. Eu posso pensar a educação ampla, porém eu não posso pensar a educação sem voltar a um dos elementos educacionais centrais, que é a escola, e eu não estou tendo escola. Se nós falarmos que hoje no Brasil existe uma escola, nós estamos nos enganando, não existe. Não existe uma escola pública funcionando, nós estamos nos enganando. Nós estamos disputando migalha... Rio de Janeiro vai indo mal, São Paulo vai indo mal, mas quando a gente pega o bolo nosso e vai para o exterior, a gente não compete. Nós não somos competitivos em educação no exterior, nós somos competitivos em educação superior e assim mesmo com muito esforço e com queda, porque a USP já não está mais entre as 100 primeiras. A China já tem uma universidade entre as 100 primeiras e a gente não tem mais. Então, já está refletindo na nossa educação superior. 413 Agora, a quinta economia do mundo... o brasileiro lê um livro por ano, o americano ler onze. Não é normal, nós estamos muito fora. CRISTIANE: Paulo, fazendo uma ligação com essa questão da Filosofia da Educação e do ensino da filosofia. Eu queria que você falasse um pouco disso, mas também que, na sua fala, você fizesse um viés... não sei se você conhece a Coleção Explorando o ensino que o MEC lançou, está no site do MEC, e que uma das disciplinas é Filosofia para o ensino médio. Seria, mais ou menos, uma diretriz nacional da Filosofia. Nela você tem um universo que representa essas diversas correntes, matrizes, que a gente estava falando, que pensam a filosofia da educação hoje. Ou o ensino de filosofia? CRISTIANE: Tanto o ensino da filosofia como a Filosofia da Educação, tem as duas coisas nessa coleção Explorando o ensino. Tem uma disciplina... são várias disciplinas, e uma das disciplinas é a Filosofia e lá você tem nomes de repercussão nacional que tratam sobre essa questão e que seria, mais ou menos, formar uma matriz nacional para professores de segundo grau. Eu queria que você fizesse esse link. Os filósofos dos anos 80 que queriam pensar a educação falavam Filosofia da Educação, não existia ensino de filosofia, era muito restrito esse negócio de ensino de filosofia porque filosofia não estava ainda no ensino médio. CRISTIANE: E voltou por conta da obrigatoriedade, né? Aí voltou. Para você ter uma ideia, no dia da votação para voltar, a única pessoa da filosofia que estava lá era eu. Só, sozinho. Até aqueles colegas que no passado lutaram a favor, não foram. A Filosofia voltou graças ao Sindicato dos Sociólogos, eles conduziram todo o processo e o pessoal realmente abandonou o negócio. De tão depreciativo que estava o ensino médio, nem os próprios filósofos queriam. Agora que voltou, tem licenciatura, tem emprego, tem concurso, voltou a ser um negócio... está voltando. Mas se você pensar em termos do que chega no professor... CRISTIANE: Inclusive, quando eu vi o material, eu particularmente fiquei surpresa por o seu nome não estar lá, eu acho que deveria estar lá pelo que você representa dentro do ensino da filosofia. 414 Mas não vai estar, não vai estar, pelo menos nesse Governo não vai estar. CRISTIANE: Eu sei, mas é lamentável, né? Nesse Governo não vai estar e duvido que tenha em algum outro, porque essas coisas são negociadas politicamente, não tenha dúvidas de que elas são “toma lá, dá cá”. CRISTIANE: Tem umas pessoas da UNB, tem outras pessoas da... Claro, isso aí é negociado, até porque isso tem a ver com dinheiro. É compra de livro e a compra de livro no Brasil é muito dinheiro. CRISTIANE: Você já leu esse materal? Esse eu acho que ainda não li, mas, veja só, se você for chegar na sala de aula... o que que chega na sala de aula para o professor? O que que o governo compra e distribui? Não é plural, é uma vertente só que chega, só chega Marilena Chauí. Por quê? Porque o MEC comprou e ele distribui Marilena Chauí. CRISTIANE: Mas hoje estão em análise três livros. Três, vai ver se chega os outros dois. CRISTIANE: É Chauí... Bom... um já chegava, que é aquele da Aranha, Filosofando, que já chegava por conta da editora, que é aquela Editora Moderna... pelo amor de Deus, ela vai nas escolas, enfia, você está lidando com um negócio poderoso. Mas esse ai não tem nada a ver, porque ele chegava até aparecer o outro, o da Marilena. Enquanto o da Marilena tinha que ser comprado, tudo bem. Agora que ele é dado... até porque o da Marilena é melhor mesmo, ele predomina. CRISTIANE: É bom, mas eu acho que ele poderia ser mais leve. Não é questão de ser mais leve ou mais pesado, é questão de não ser plural, a visão da Marilena não é plural. Se você pegar os meus livros, você vai ver que não tem uma doutrina pragmatista predominante ali, você vai ver que não tem. Meus livros para os jovens são completamente plurais. Você não me vê dando aula de Rorty ou falando de Rorty, você não vê aqui na Universidade. Agora, se você pegar o da Marilena Chauí, ele é filosofia 415 crítica, ele tem um paradigma de filosofia crítica. Filosofia é uma reflexão para desvendar as coisas que estão escondidas. Agora, esse livro custa quanto? Ele custa R$ 120,00. Portanto, o brasileiro só vai ter esse livro se ele for dado. Agora eu pergunto para você: como é que pode um livro didático que vai ser vendido para o Governo custar R$120,00? Então eu sei que eu vou ganhar a concorrência, porque se não eu não boto esse livro a R$ 120,00. Esse livro já foi feito para vender para o Governo. Eu, se fosse a Marilena, não deixava, eu não topava essa jogada, eu não topava. Porque você ir para o palanque da Presidente, fazer campanha e depois teu livro é vendido para as escolas a R$ 120,00, o Governo compra e dá... por mais que você se ache bom, seria prudente você não participar disso. Não é questão de... “ah, eu fiz o livro e agora eu vou me abster porque eu apoiei o Governo”, não é isso, não é essa a questão. Não dá... R$120,00 é um livro caro. CRISTIANE: O salário mínimo está quanto, né? Veja só, a Ática jogou o preço do livro lá em cima porque ela sabia que o livro ia ser comprado pelo Governo, se não ela não jogaria esse preço, se não ela jogaria o preço que é o livro. Aquele livro é um livro de R$ 80,00 para ter lucro, a Ática jogou lá em cima. Agora, em que mãos estão a Ática hoje? Na mão do grupo que mais questiona o Governo e que, portanto, é interessante conquistar, que é o Grupo Veja, o Grupo Abril, a Ática voltou para lá. A Marilena tem todos os méritos... meu Deus do céu, não vamos tirar o mérito da Marilena, quem sou eu para tirar o mérito da Marilena, mas esse tipo de coisa mostra uma coisa unidirecional. O Estadão fez um manual mais plural, eu não sei se você chegou a ver, fez uma coleção para o ensino médio de todas as matérias, eles publicaram junto com a Editora Moderna, inclusive o de Filosofia. No de Filosofia aconteceu o seguinte: não tinha nada do pragmatismo. Aí o cara que foi editor geral da coleção me chamou para eu fazer a parte de Pragmatismo. Não ficou nada de fora, um manual de ensino médio, fez de todas as matérias, muito bom, por sinal. Saiu na banca, foi vendido. CRISTIANE: Mas não está digital não, né? 416 Não, acho que eles ainda não puseram esse material digital não, mas vai acabar sendo. É da Editora Moderna, foi vendido na banca como volumes. CRISTIANE: Deve ter saído só em São Paulo, né? Eu acho que saiu mais em São Paulo por causa do Estadão, mas como a Editora Moderna é muito grande, deve ter enfiado isso aí nas bancas. Mas foi “vupt” porque todo mundo comprou. Foi um material para matemática, química, física, tudo e livros muito bons, muito bem feito, desenhado... o de Filosofia, um primor, eu comprei para o meu filho que está fazendo Filosofia lá na Unesp, em Marília, comprei e dei para ele. Um puta dum compêndio eles fizeram. Isso é uma coisa legal de o aluno ter, uma coisa plural, sem... CRISTIANE: Você lembra do título? Da coleção? Tem a ver com coisa de vestibular, uma coisa assim. Mas logo lança isso de novo. Esse tipo de coisa eu acho que é uma coisa legal de se fazer. Agora, quando você pega um negócio muito marcadamente ideológico... o manual da Marilena tem uma pegada marxista muito forte, um neomarxismo muito forte que... aí você ver todo mundo repetindo que filosofia é aquilo. Por mais que ela fale de um autor ou outro, a filosofia é aquilo, ela tráz o outro autor para aquela definição de filosofia dela. Isso é chato, isso eu não acho legal não, que o ensino médio entre por essa via meio doutrinária. CRISTIANE: É, acaba sendo uma filosofia oficial, né? Aí eu peguei e falei assim: “aí é? É assim que eles vão fazer? Então eu vou fazer a mesma coisa contra eles. A filosofia é isso? Então, a filosofia não é isso, filosofia é o que eu digo”. Aí eu formulei aquela história da desbanalização do banal para competir mesmo. Se é jargão por jargão, vamos botar o meu jargão para ver quem... porque pelo menos vão ficar dois jargões. CRISTIANE: A multiplicidade... A filosofia é o platonismo, é você sair da caverna, para eles, né? Então vamos fazer diferente, vamos por pelo menos por um outro jargão na jogada para competir. CRISTIANE: Mas é interessante, no Brasil... recentemente eu estive na UNB assistindo um colóquio sobre História da Filosofia no Brasil e eu fiquei 417 impressionada com os extremos que estavam presentes lá. Você tinha o Cerqueira, que trabalha com a Filosofia no Brasil, trabalha com o Domingos de Magalhães, o Ecletismo Espiritualista, e que ele próprio acredita que a Filosofia é o que falava Aristóteles e acabou-se não tem outra história, como se a filosofia fosse, no máximo, até Platão e Aristóteles. Do outro lado você tem o Cabreira. Não sei se você conhece, também da UNB, e que ele tem toda uma bandeira de lutar a favor do renascimento de uma filosofia brasileira, que a gente não faça somente as exegeses dos textos, etc. Mas a coisa ficou polarizada nisso, é como se no Brasil hoje não se pensasse outra coisa para além desses dois extremos. Foi um colóquio, a meu ver, muito esvaziado em ermos do que é representativo da multiplicidade de filosofia no Brasil. E uma coisa também que eu senti muita falta – eu vou até escrever um artigo sobre isso, apesar de o material ser muito pouco acho que merece um artigo – além desse esvaziamento teórico, eu constatei o esvaziamento com relação a uma reflexão em torno da Filosofia da Educação, que, a meu ver, é muito forte dentro da tradição brasileira. Como é que se faz um encontro de História da Filosofia no Brasil onde você não tem uma mesa temática, uma mesa que seja, em torno da Filosofia da Educação? Eu, particularmente, até sou suspeito para falar, não sei se hoje ainda sou suspeito... mas eu tenho dúvidas se a gente tem no Brasil, em Filosofia, alguma coisa original que não seja Filosofia da Educação, eu tenho dúvidas. Eu acho que o resto que a gente faz em filosofia é a cópia da cópia. Eu acho que o grande lance nosso, em termos históricos, de inovação, em termos de filosofia, é o objeto educacional. CRISTIANE: Concordo plenamente. É onde apareceu um Anísio, onde apareceu um Paulo Freire, onde apareceu um Darcy Ribeiro, onde apareceu um Florestan, onde apareceu o Fernando Henrique, a própria Ruth Cardoso, quer dizer, antropólogos... hoje, se você pegar essa geração mais jovem que está aí agora na jogada, na universidade, talvez esteja mudando um pouco, talvez você já veja alguns novos objetos aparecendo como objetos importantes. Por exemplo, o Renato Janine Ribeiro já tem uma produção em política que eu acho que é significativa, já é uma coisa pensada para Brasil, que é dele, é um cara que tem uma coisa... a Olgária já tem uma coisa que é dela, pegar a Escola de Frankfurt e pensar a cidade brasileira, essas coisas que já tem. Acho que a Marilena tem na área de 418 cultura, aquele tempo que ela escrevia muito sobre cultura, feminismo, que era uma coisa que ela pensava... você já começa a ver uma coisa diferente aqui e ali, de pessoas que já estão agora chegando nos 60 para 70. CRISTIANE: Você também tem. Eu acho que você tem uma originalidade. Esse negócio que você faz de trazer as questões cotidianas para as grandes matrizes clássicas da filosofia... Eu estou brigando, eu estou brigando desesperadamente para ver se eu consigo criar uma situação dessa. É lógico que em uma situação inferior porque, primeiro, não tenho mais uma pós-graduação na mão, não tenho mais contato com Governo... eu publico sozinho, mas esse pessoal tem uma máquina na mão, quase todos eles que estão fazendo filosofia têm uma máquina na mão. Ou um programa de pós, ou uma Universidade poderosa por trás ou um governo por trás. Eu brigo bem, para a minha mãozinha aqui eu até que brigo bem. Mas a ideia de você começar a fazer uma reflexão que seja sobre o Brasil. Por exemplo, um cara que tem... o Jurandir, Jurandir Freire Costa. Esse tem mesmo! Se você pegar, no mundo todo não tem uma reflexão sobre a sexualidade brasileira como ele fez, com pesquisa empírica. Benilton Bezerra Jr. Também. Esse grupo aqui que eu fiz o pós-doutorado com eles é assim... um grupo de médicos, psiquiatras, com formação filosófica pesada e eles realmente pensam objetos que não é... e que tem uma tradição no Brasil também. Se você pegar Nice da Silveira... e você ver uma tradição de psicanalistas que pensam o cotidiano e que vieram... no passado ficavam muito nas clínicas, mas agora estão produzindo coisas populares. CRISTIANE: Acho que o Benedito Nunes também, que morreu recentemente. Acho que eles fez uma coisa muito interessante dentro da filosofia... Você viu o artigo que eu fiz sobre o Benedito e o Bento, né? Que eu botei no meu blog. Por quê? Porque quando foram fazer o evento sobre o Bento, não fizeram um evento sobre o Bento. Usaram do Bento para apresentar trabalhos próprios, não pegaram o original do Bento. O original do Bento não é a tese do Bento, são as ideias dele. CRISTIANE: Pois é, eu acho muito legal aquele negócio que você coloca ali naquele artigo e em outros também, que é essa necessidade, quer dizer, essa ausência que a gente tem no Brasil de ler o outro, de discutir, de escutar... 419 É, mas a gente fazia na PUC e a gente perdeu isso. A gente perdeu isso por uma razão boba. CRISTIANE: O que se tem é o contrário disso. É uma rivalidade absurdamente imbecil e o desmerecimento do trabalho do outro, né? O desmerecimento sabe como é que vem? Vem assim: eu faço de conta que nego não existe. Eu nunca faço de conta que as pessoas não existem, nunca. Nego fala assim: “ah, fulano de tal escreveu tal coisa”. Eu vou lá, ou faço uma coisinha contra ou a favor, faço um vídeo, alguma coisa, mas nunca fico na posição do “ah, eu sou tão bom que não vi o outro” ou então do “ah, eu estou com medo de falar porque vão falar que eu estou com inveja”. Não, esquece esse negócio. O cara pôs uma coisa e eu tenho alguma coisa para dizer, eu digo! Esse foi um período bom no Brasil, os anos 80, período onde esses medos não apareceram. Foi um período onde muita gente debateu abertamente e foi muito bom. Por exemplo: os debates que saiam entre o Rubens Rodrigues, o Rouanet [Sergio Paulo Rouanet], o Merquior [José Guilherme Merquior]... eram debates que foram para a imprensa, foram para a praça e que hoje não pode mais. Hoje ninguém pode brigar com mais ninguém, cada um na sua área, cada um fala aqui, ninguém ofende mais ninguém, mas também ninguém reconhece mais ninguém, é cada um com a sua turminha. Isso é porque não tem base. Quem estudou História do Brasil lá atrás e lembra daquela Academia dos Felizes, o começo do movimento poético... é isso, cada um se reduziu a um grupinho porque não tem população lendo. CRISTIANE: O fenômeno é mais amplo, né? Se tivesse população lendo e debatendo junto, as pessoas teriam que conversar. CRISTIANE: Nesse sentido aí também eu queria que... Hoje, o que a população está lendo é o Chalita [Gabriel Chalita], a população está lendo autoajuda. Nós entregamos o ouro para o bandido, nós brigamos entre nós e entregamos o ouro para o bandido. Essa que é a verdade. CRISTIANE: Chalita, Paulo Coelho... 420 Eu, por exemplo, me arrependo de várias brigas que eu tive, me arrependo. Se eu pensar no que o cara fez para mim eu não me arrependo, mas eu deveria ter passado por cima, eu devia ter esquecido e passado por cima. O Renato [Renato Janine Ribeiro] foi um. Ele me deu um telefonema no Jornal Estadão, sendo ele da CAPES, para me tirar do Estadão, eu não perdoei e devia ter perdoado. Hoje eu me arrependo, foi um erro porque quebrou o elo de debate, embora eu continue criticando e falando a mesma coisa... se ele não quer responder, tudo bem. Ele tem medo de responder porque ele sabe que fez uma coisa errada, uma coisa feia. CRISTIANE: Pensando a partir disso aí, eu acrescentaria, não sei se você concorda comigo, que a gente não se lê, não se discute nem entre nós a nossa produção e eu acrescento a isso aí também um outro problema, que é a perda da História da Filosofia no Brasil. Porque, se você for falar de Ratio Studiorum, dos Jesuítas e do Tomismo para alguns filósofos recém-formados, eles não vão saber nem que diabo é isso. O caso do Demerval foi o seguinte... esse livro que ele soltou aí, eu mandei a crítica para ele. CRISTIANE: Eu li a sua crítica. Sabe o que ele fez? Ele corrigiu o livro na segunda edição, refez o parágrafo que eu falei, mandou o texto para mim, mas não fez a referência oficial. Então, continua do mesmo jeito que ele fazia no passado, ou seja, eu me relaciono pessoalmente com as pessoas, mas não dou o crédito porque, se eu der o crédito, nasce o debate e se nascer o debate, eu vou ter que estudar, vou ter que enfrentar... que o que é chamado lá por eles no grupo HISTEDBR de posição olímpica, eles não se envolvem. Desse jeito você não vai para frente. CRISTIANE: Até porque a filosofia nasce pelo diálogo... Desse jeito não vai pra frente mesmo. Ao contrário dos americanos que fazem livros... pegam um filósofo, vários criticando e ele respondendo. O cara faz um livro! Aqui não sai, aqui quando você convida o cara para fazer um livro de debate não sai. É impressionante o grau de recolhimento das pessoas. 421 CRISTIANE: Paulo, a gente está com mais de uma hora e meia de conversa, eu não quero é te incomodar... Imagina, eu estou aqui disponível para você. CRISTIANE: Eu queria... se você quisesse falar mais alguma coisa aí sobre essas questões de Filosofia da Educação no Brasil, Deleuze... Você está me trazendo um assunto que eu tenho força para me desligar, porque é um assunto que me chateia. Não que você esteja trazendo um assunto que me chateia e eu vou ficar chateado com você, mas me chateia que a gente tenha feito tanto e não feito nada. Se você for ver hoje a formação das pessoas, você vai ver que está se perdendo rapidamente muita coisa. Você vai ver professores jovens nas universidades públicas não sabendo quem é foi Anísio Teixeira, não sabendo que houve esse debate, tomando as coisas já como se elas estivessem... sei lá! Aqui, por exemplo, na Rural, tem um culto ao Paulo Freire, mas não se lê Paulo Freire. Eu, às vezes, até brinco porque eu não sou um freireano e faço uma leitura muito particular do Paulo Freire que a maioria das pessoas que gostam dele não concordam com a minha leitura. Mas quando eu digo que fui aluno do Paulo Freire aqui, aí “ohhhh”, ganho status. Aí eu vou explicar... não pode mais, se não estraga. Não pode porque os caras não querem saber da leitura, eles querem só o mito. Então, está tendo essa coisa superficial, cada vez mais superficial, doutorado e mestrado rapidinho para carreira rápida. Isso está povoando a mentalidade das pessoas. Ao mesmo tempo um debate restrito, ninguém quer... por exemplo, esse grupo aqui que tenho de leitura, tem professores, hoje não veio o professor, mas há uma tendência dos professores de não participar dos grupos de outros professores. Se montar grupo com outro professor é falso, ele não ocorre. Esse grupos do diretório do CNPQ, abre lá... tem quaro ou cinco professores, é falso, eles não se reúnem. É o professor com os seus alunos, uma relação sempre vertical. Não tem aquilo que nos anos 80 tinha, por exemplo, na USP e na PUC, os professores assistiam aula dos outros professores... hoje é impensável. Às vezes eu faço isso aqui, entro na sala de um colega, o cara pára, se sente intimidado, não tem o prazer do diálogo que a gente tinha. 422 Defesa de tese. Na PUC e na USP defesa de tese lotava, era um momento de debate mesmo. Agora é feito à noite, ninguém sabe onde foi, onde aconteceu. CRISTIANE: A Faculdade de Direito de Recife no século XIX era um acontecimento na cidade. O Tobias Barreto, o Sílvio Romero... Era um acontecimento! Quantas e quantas vezes a gente... eu fico pensando assim: a ANPED, nunca mais fui. Deixei o GT e nunca mais fui. Mas o nível de mediocridade que aquilo virou, o próprio GT, chega uma hora que... me disseram, também não acompanhei para saber direito, mas teve uma hora que já não era mais nem Filosofia da Educação, estava se discutindo antropologia e outras coisas e diminuindo o volume de apresentação, inclusive de âmbito da pluralidade que a gente tinha colocado. CRISTIANE: Eu tive a curiosidade de pegar essa última publicação da ANPOF, os resumos... Você sabe que a ANPOF... eles não me citam. Eles só não me expulsam da entidade porque eles não têm coragem, mas elas não me citam. Se eu lanço um livro elas não põem na ANPOF, no correio da ANPOF, eles não põem. Eles fingem que eu não existo, mas eles não têm coragem de chegar lá e falar assim: “o Paulo não vai participar”, eles não têm coragem. CRISTIANE: Mas eu peguei os anais e tive a curiosidade de ver... coisa de doido. Aí eu olhei comunicação por comunicação, há mais de... para ver quantos trabalhos, quantos resumos, tratavam de alguns dos nossos teóricos brasileiros dentro da filosofia. Diz aí quantos! Não tenho ideia. CRISTIANE: Um, no meio de um calhamaço. Aí tem a ver com essa história que a gente está falando, a gente não pensa sobre o que a gente está fazendo, não pensa... é representativo isso, é sintomático. Só o fato de os filósofos brasileiros não saberem o que é o Paulo Freire, no entanto, eles rechaçarem, já mostra a indignidade do pensamento. Porque não é possível você entrar em uma universidade no exterior, você sendo brasileiro... você entrar e a pessoa não perguntar para você do Paulo Freire, não é possível. 423 Eu fui para os Estados Unidos trabalhar, fui em uma universidade no centro dos Estados Unidos, no interior do interior. Cheguei lá... não no departamento de educação, na filosofia e nas ciências sociais. Nas ciências sociais, leitura obrigatória de sociologia a Pedagogia do Oprimido, leitura obrigatória. No Brasil, a maioria dos meus colegas do departamento de Filosofia falam assim para mim: “ah Paulo, você protege, você não fala mal do Paulo Freire porque é conveniente para você, para você poder se relacionar com os seus amigos lá da educação, porque, no fundo, você sabe que é um lixo, né?”. Eu falo assim: “Você leu? Não, você não leu. E se você leu você não entendeu, você não está entendendo o que ele está fazendo. Você quer que o Paulo Freire faça citações do John Dewey? É isso que você quer? Não, o Paulo Freire não é isso, é outra conversa, é um outro modo de fazer filosofia”. CRISTIANE: É aquela questão, se você não faz filosofia dentro daqueles moldes do método estruturalista do Goldschmidt, você não faz filosofia. Se você trabalhar só com aquelas categorias... é essa a questão. É essa mentalidade subserviente, estrangeirada, né? Eles têm medo. Eu concordo. Por exemplo, há uma bana