kÓsmos noetÓs a ARQUITETURA METAFÍSICA DE CHARLES S. PEIRCE Coleção ENSAIOS FILOSÓFICOS •Epicuro e as bases do epicurismo, Miguel Spinelli •Ética e política em Aristóteles: Physis, Ethos, Nomos, Solange Vergnières •Kósmos Noetós: a Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce, Ivo Assad Ibri •Metafísica e assombro: curso de ontologia, Márcio Bolda da Silva • Nietzsche: a fábula ocidental e os cenários filosóficos, Yolanda Gloria Gamboa Muñoz •República de Platão (A): um guia de leitura, Luke Purshouse •Sêneca, uma vida dedicada à filosofia, Luizir de Oliveira IVO ASSAD IBRI KÓSMOS NOETÓS A ARQUITETURA METAFÍSICA DE CHARLES S. PEIRCE Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Coordenador de revisão: Tiago José Risi Leme Revisão: Tiago José Risi Leme Diagramação: Dirlene França Nobre da Silva Capa: Marcelo Campanhã Imagem da capa: FreeImages.com/Maria Kaloudi Indicação da imagem da capa: Raquel Ferreira da Ponte Impressão e acabamento: PAULUS Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ibri, Ivo Assad / Kósmos noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce / Ivo Assad Ibri. – São Paulo: Paulus, 2015. – (Ensaios filosóficos) ISBN 978-85-349-4263-8 1. Filosofia 2. Metafísica 3. Fenomenologia I. Título. II. Série. 14-09537CDD-100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 1ª edição, 2015 ©Paulus – 2015 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br [email protected] ISBN 978-85-349-4263-8 Para meus filhos Gabriel (que sabia tanto de mim), Clara e Conrado. Agradecimentos. A Rodrigo Vieira de Almeida, pelas valiosas sugestões, na maioria adotadas nesta edição. Ao Pe. Claudiano Avelino dos Santos e a toda a equipe editorial da Paulus, meu especial agradecimento pela extraordinária agilidade na edição deste livro, mantendo a usual alta qualidade de seus trabalhos. Apresentação pelo autor A boa filosofia insere-se na história, como a maioria dos bons vinhos. Dificilmente ela se torna extemporânea ou perde qualidade com o tempo. Pode-se dizer que aspectos notáveis prosseguem sendo descobertos nas filosofias que antecederam a produção contemporânea, e muitos tópicos delas extraídos mostram-se proverbialmente atuais. Em filosofia, talvez caiba apenas atualizar os estudos, comentários e interpretações feitos sobre as diversas doutrinas que a sua história tem consagrado, sem que se possa afirmar que as ideias de seus autores se confinam tão somente ao contexto histórico onde elas foram concebidas. Algo da filosofia, aparentemente exclusivo da Arte, sobrevoa o tempo e o desdenha, desvinculando dele seu sentido mais profundo, talvez por permanecer tocando o que sempre é o mais caro para os homens: o entendimento da vida, seus genuínos valores, o sentido de sua existência e a de um universo no qual a dimensão humana ocupa pontos absolutamente anônimos do espaço e do tempo. Este livro foi escrito originalmente quando os estudos sobre a filosofia de Peirce estavam ainda em seu início, pouco ou quase nada contribuindo para esclarecer aspectos do que tematicamente estava sob seu foco, a saber, a passagem da fenomenologia do autor para uma ontologia realista. Desse modo, como dito na Introdução original, a estratégia da escritura se desenhou por um diálogo íntimo e direto com a obra de Peirce, uma aventura prazerosamente heurística por textos originais até então, em sua grande maioria, inexplorados pelos estudiosos do autor. Esse ca- 7 minho proporcionou resgatar uma rede interativa de conceitos que evidenciava subjazer, na obra peirciana, um sistema teórico arquitetonicamente pensado, que, da produção mais precoce até sua maturidade, se desenhava progressivamente depurativo de inadequações de vocabulário. Na edição anterior deste livro havia, a propósito, um capítulo final inteiramente dedicado a alguns dos principais comentários a respeito de tópicos da obra de Peirce, onde se procurava mostrar que muitos conceitos, por não disporem de remissão ao sistema teórico que enforma o pensamento de Peirce, eram então expostos de um modo que em quase nada colaborava para sua elucidação. Mais de duas décadas se passaram e a quantidade e o nível das análises do pensamento peirciano não poderiam mais ser postos de lado. Não obstante esse fato, manteve-se nessa edição o formato original de um diálogo direto com o autor, sem a inserção de comentaristas nas diversas passagens em que eventualmente isso pudesse caber. Alternativamente, optou-se sugestivamente por inserir, na bibliografia final, uma vasta gama de literatura de comentários que estaria possivelmente afeita a cada um dos capítulos do livro, possibilitando ao leitor interessado na pesquisa da obra peirciana examinar tais estudos por si mesmo. No diálogo com alguns estudiosos de Peirce, surgiu a questão sobre a ausência da Semiótica como meio para a passagem da Fenomenologia para a Metafísica de Peirce. De fato, esta obra não traz explícita uma exposição da Semiótica. Todavia, certamente não passará desapercebido ao leitor que a consecução de uma teoria da realidade no pensamento do autor faz intenso uso do que Peirce denominava processo de investigação, evidenciado pelos modos lógicos que aparecem na classificação dos signos segundo os interpretantes, a saber, abdução, dedução e indução. A metafísica de Peirce é, de fato, um bom exemplo de construção conceitual que se vale abundantemente desses três modos, implicando que a Semiótica esteja mediando sua concepção. De outro lado, o realce do realismo peirciano, caracterizado pelo que tenho denominado, em vários ensaios subsequentes, de simetria das categorias, permite pensar a Semiótica não apenas em sua nuance classificatória, mas de um modo extensivo ao 8 conceito de linguagem para além de um logocentrismo, em que todos os seres do universo, em sua dimensão própria, se expressam significativamente por meio de ações intencionadas. E, para assim fazê-lo, processam signos do oceano existencial em que estão imersos e com os quais vitalmente têm de se comunicar, numa saga interpretativa cujo dizer se consolida na forma de conduta. Esse modo de se repensar a Semiótica lastreia-se na ontologia realista de Peirce, para além de um antropocentrismo que insiste em assimetrizar homem e Natureza sob um tácito cartesianismo sustentado em uma relação de estranhamento substancial. Essa aplicação da Semiótica a objetos naturais, qual um estetoscópio que dá a palavra a um organismo vivo, não é mais numa espécie de aventura especulativa que a suporia extensível à Natureza, mas uma ciência que, ao dar suporte lógico à simetria das categorias, pode também e necessariamente ser relida à luz dessa simetria. Essa circularidade não fundacionista é típica da filosofia de Peirce, e é não mais que a consequência do imbricamento lógico de uma miríade de doutrinas por ele criada. Como um pó de café suspenso em água fervente que requer ser decantado para então ser sorvido, a boa filosofia demanda que suas mais promissoras ideias decantem no espírito para que assumam sua possibilidade heurística e evidenciem sua amplitude semântica, recompensando a paciência da espera. Peirce legou muitas sementes cuja fertilização requer um longo tempo de convívio com sua filosofia. Sementes que sugerem prosseguir pensando as consequências de seu sistema teórico, em diversos campos da cultura, como Arte e Psicanálise, por exemplo, muito além do confinamento de sua filosofia a embates de interpretação que primam por uma topologia conceitual cuja fragmentação impede considerar a rede teórica que subjaz sob ela. Repensar a Arte à luz de uma ontologia realista promete trazer uma face bastante original de leitura da experiência estética. De sua vez, a Psicanálise, revista sob o nexo semiótico-pragmático entre mundos interno e externo, desafia pensar o jogo homeostático entre interpretantes lógicos e emocionais. Em uma dimensão talvez mais macroscópica, Peirce oferece, com sua filosofia cósmica, os fundamentos para que se possa 9 reconceituar a relação homem-Natureza, numa reconciliação necessária e inadiável plena de motivação na contemporaneidade. O que o romantismo alemão alegava como necessidade de reconsideração do que seria Natureza, Peirce, não à toa inspirado em Schelling, consolida ao conceber uma filosofia que legitima uma igualdade de direitos aos personagens daquela relação. Malgrado todas essas considerações desenhem uma tarefa longa a cumprir, as sementes legadas pela filosofia de Peirce traçam um caminho heurístico que promete um horizonte inesgotável de descobertas. Que a leitura deste livro possa contribuir para a visualização desse caminho, trazendo consigo a compreensão das razões pelas quais o pensamento de Peirce se espraia por todos os centros mundiais onde se cultivam as boas filosofias. 10 Prefácio à 1ª edição Il n’y a de long ouvrage que celui qu’on n’ose pas commencer. Il devient cauchemar. Baudelaire (Mon Coeur Mis a Nu). Charles Sanders Peirce (1839-1914) nunca terminou ou publicou um livro. Sua obra, comparável em volume à de Leibniz, é constituída de ensaios publicados em periódicos e, na sua maior parte, de manuscritos que se encontram sob os cuidados do Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard. Reunindo aproximadamente quatro mil páginas da obra do autor, essa Universidade publicou,1 em 1931-35 e 1958, textos que cobrem o pensamento peirciano de modo significativo, procurando dividi-lo tematicamente da melhor maneira possível. Configurando-se como obra pioneira, decorridos menos de vinte anos da morte do autor, seria uma exigência descabida nela encontrar uma organização perfeita dos textos, detectando-se, em não poucos capítulos, uma interpenetração de áreas filosóficas que torna particularmente difícil sua leitura. Um exemplo marcante que pode ser mencionado é a seleção de textos sob o título geral de Fenomenologia,2 em que indevidamente se mesclam trabalhos de Lógica e Metafísica. Em excelente coletânea de textos baseada nos Collected Papers e editada por Buchler,3 encontra-se um indício significativo da má circunscrição da Fenomenologia, devido a problemas de sobreposição temática. Comenta o editor: 1 Charles Hartshorne, Paul Weiss e Arthur Burks (org.), Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Cambridge: Massachusetts, Harvard University Press, 1931-35 e 1958, 8 vols. 2 CP, 1.284-572. Usaremos a referência usual a esta obra: CP indica Collected Papers; o primeiro número corresponde ao volume e o segundo ao parágrafo. 3 Justus Buchler (org.), The Philosophy of Peirce; Selected Writings, NY: AMS Press, 1978. 11 Na fenomenologia emergem numerosas dificuldades relacionadas, principalmente, ao delineamento das três categorias. A categoria da Primeiridade sofre de uma considerável ambiguidade e a Terceiridade de obscuridade.4 Transcrevemos literalmente essa passagem apenas para, exemplarmente, ilustrar nosso ponto de vista de que os comentaristas muitas vezes são levados a atribuir confusões intrínsecas à obra do autor, quando, na realidade, elas decorrem do modo de organização dos textos. Pudemos distinguir elementos não pertinentes ao âmbito fenomenológico, somente quando recorremos à classificação e interdependência das diversas disciplinas da Filosofia, sob a ótica do autor. Embora essa nossa observação se refira à Fenomenologia, poderão ser constatadas dificuldades da mesma natureza na leitura de outros temas contidos na principal fonte disponível da obra de Peirce, os Collected Papers. Como a maioria dos estudantes do pensamento do autor, adentramos sua obra nos pontos pelos quais ele é mais conhecido: a Semiótica e o Pragmatismo. Interessava-nos, em especial, o desenvolvimento de uma Lógica heurística e suas relações com uma Filosofia da Matemática. Por esse viés, deparamo-nos não só com as dificuldades já acusadas e relativas à organização dos textos, mas, sobretudo, com uma miríade de conceitos que pareciam requerer uma abordagem sistêmica. De outro lado, as tentativas de enfoque temático dos pontos que, de início, mobilizaram nosso interesse no estudo do autor, pareceram-nos insatisfatórias,5 por procurarem fundamentos psicológicos para uma questão de substrato essencialmente lógico. Além disso, verificamos que as dificuldades de abordagem temática do autor não se confinavam tão somente ao âmbito de uma Lógica heurística, estendendo-se, em verdade, a uma esfera mais geral. Recorrendo a comentadores tidos como clássicos da obra de Peirce, observamos que, na sua grande maioria, concluem haver 4 Justus Buchler, op. cit., “Introduction”, p. XVI. As categorias peircianas serão conceituadas no capítulo 1 do presente ensaio. 5 Destas tentativas tem-se, por exemplo, Norwood Russell Hanson, Patterns of Discovery, Cambridge at UP, 1958. 12 pontos lacunares e obscuros no pensamento do autor, acusando, frequentemente, posições logicamente contraditórias, como o fato de Peirce se declarar simultaneamente realista e idealista. O difundido hábito de se iniciar o estudo do pensamento peirciano pelas (des)conhecidas doutrinas da Semiótica e do Pragmatismo conduz, a nosso ver, a um entendimento precário e fragmentado da obra de Peirce. Principiar tal estudo pelo exame da Semiótica, uma teoria geral dos signos, para a qual o autor pretende o estatuto de uma Lógica, pode conduzir o leitor a uma ciência meramente taxonômica, uma estranha matriz classificatória das representações, desfigurando sua verdadeira função no quadro filosófico de Peirce. O Pragmatismo, por sua vez, como ponto temático de estudo, desde sua gênese, tem sido objeto de equívocos.6 De um lado, interpretam-no como uma regra utilitária e, de outro, como um princípio transcendental.7 Ao tomarmos contato, pela primeira vez, com a Semiótica e o Pragmatismo, tivemos a impressão de que estávamos no território de uma Filosofia da linguagem em particular, e da significação em geral, não obstante as indefinições desenhadas numa variedade de interpretações possíveis. Para ilustrar essa indefinição, imaginamos aplicar-se, com estranha precisão, uma metáfora que se baseia na tentativa de se traçar uma circunferência por apenas dois pontos: obter-se-ão, como se sabe, não uma, mas infinitas figuras possíveis daquele tipo. À semelhança da regra de geometria elementar, o entendimento pleno daquelas doutrinas requer um terceiro ponto que permita a circunscrição unívoca do pensamento de Peirce, e que se constitui, na realidade, em um ponto focal e iluminador de todos os demais: a Metafísica do autor. Dessas considerações, decorre a hipótese central deste ensaio. De um viés, ela afirma que os tão frequentes equívocos de leitura se originam da inexistência de um sistema de refePara a discussão deste aspecto, examinar o capítulo 6. Este é um traço que verificamos, de maneira mais acentuada, nos comentadores alemães. Verificar, por exemplo, Jürgen Habermas, Conhecimento e Interesse, Rio de Janeiro: Zahar, 1982, tradução de José N. Heck, p. 109-155; e Karl-Otto Apel, “C. S. Peirce and the Post-Tarskian Problem of an Adequate Explication of the Meaning of the Truth: Towards a Transcendental – Pragmatic Theory of Truth”, Transactions of the Charles S. Peirce Society, vol. XVIII, n. 1, 1982, p. 3-17. 6 7 13 rência que seja a matriz conceitual capaz de permitir a nitidez de abordagens temáticas, tal como, em muitos casos, disponível para autores classicamente inseridos na trama de uma História da Filosofia. A partir dessa hipótese, por outro viés, buscamos resgatar tal sistema, na forma dos fundamentos metafísicos da Filosofia peirciana. Aceitar essa tarefa foi tentar resolver um puzzle. As primeiras peças foram separadas de um emaranhado de textos que constitui o que os editores dos Collected Papers denominaram Fenomenologia, com o intuito de fundar a matriz categorial do sistema peirciano e alcançar um delineamento translúcido da concepção de experiência que nele se insere. O entrelaçamento dessas peças iniciais constitui o capítulo 1. O capítulo 2, início do que nomearemos segunda parte deste ensaio, desenvolve as concepções metafísicas de existência e realidade e fundamenta o realismo do autor, preparando um contorno adequado ao encaixe das peças referentes às doutrinas peircianas do Acaso Absoluto e do Evolucionismo. Essas doutrinas constam do capítulo 3. O capítulo 4 discorre sobre uma das teorias especialmente mal entendidas dentro do sistema metafísico do autor – o Idealismo Objetivo. Junto com a Teoria do Continuum, o Idealismo de Peirce perfaz um eixo dorsal no corpo daquele sistema, subsidiando o núcleo deste ensaio, a Cosmologia. Tida por alguns estudiosos como o “elefante branco” da Metafísica peirciana,8 ela integra o quinto capítulo. Na tentativa de montagem do puzzle, verificamos, em certo ponto daquele capítulo, não serem suficientes os textos disponíveis nos Collected Papers. As peças restantes e necessárias foram encontradas em uma obra9 que coligiu textos peircianos no âmbito da Matemática e da Filosofia, distintos daqueles constitutivos da publicação de Harvard. Anunciando uma miríade de consequências filosoficamente notáveis, das quais exploramos apenas algumas no estrito escopo deste ensaio, a CosO adjetivo “white elephant” foi empregado, por exemplo, por GALLIE, 1952. Carolyn Eisele (ed.), The New Elements of Mathematics by Charles S. Peirce, The Hague: Mouton Publishers, 1976, 5 vols; vol. 4. Faremos menção a esta obra na forma abreviada NEM, associada à página correspondente do quarto volume da edição citada. 8 9 14 mologia prepara o terreno conceitual para uma reconstrução do Pragmatismo visto sob as luzes ontológicas da Metafísica, distanciando a doutrina de interpretações estreitas e reducionistas. Como terceira e última parte do ensaio, seu sexto capítulo, o Pragmatismo anuncia-se como um método lógico que permeia toda Metafísica, no interior do qual estão implicados os três modos de argumento que Peirce denomina Abdução, Dedução e Indução. Deste ponto de reconstrução do Pragmatismo, o capítulo inicia a exposição da Lógica Objetiva do autor, que se traduz numa Lógica ontológica estruturada naqueles três modos de argumento. Por não ter encontrado nos comentadores qualquer auxílio para a remontagem do sistema metafísico de Peirce,10 o trabalho, como o leitor irá perceber, centra-se diretamente na leitura e análise dos textos do autor. Peirce é um desconhecido e mal conhecido autor. Por esse motivo, de início, decidimos transcrever literalmente passagens de sua obra, objetivando, sobretudo, inserir diretamente seus argumentos no corpo do trabalho, conscientes de que os originais editados de seus escritos raramente integram as bibliotecas pessoais ou das universidades brasileiras. Não obstante, esse procedimento acarretou, posteriormente, um vínculo estrutural entre os textos do autor e nossa própria escritura que, se rompido, metamorfosearia sobremaneira a unidade que pretendemos dar a este ensaio. O próprio leitor poderá comprovar o que afirmamos, imaginando, ao longo do exame dos capítulos que se seguem, a supressão de grande parte das transcrições. Familiarizados que estávamos com o estilo bastante pessoal do autor, optamos por apresentar as passagens de sua obra, traduzindo-as para o português, não apenas porque buscamos pensá-lo em nossa língua, mas também para facilitar o contato do leitor com as idiossincrasias da escritura do filósofo norte-americano, embora, à primeira vista, lhe seja negada a leitura do texto original. Com o objetivo de elucidar mais alguns pontos para o estudioso interessado no exame deste ensaio, convém observar 10 De fato, quando da primeira edição deste livro, a literatura referente à Metafísica de Peirce era constituída por comentários esparsos e sem dispor do sistema teórico que se propôs então reconstruir. 15 que se tornou procedimento corrente, entre os especialistas em Peirce, fazer referência às datas em que os textos originais do autor foram concebidos. A razão dessa prática mantém, frequentemente, um vínculo estreito com o que havíamos anteriormente comentado sobre a quase invariavelmente malsucedida abordagem temática do pensamento peirciano. Em muitos casos, pretende-se, na verdade, atribuir as aparentes contradições no entrelaçamento lógico das teorias do autor às suas eventuais mudanças de posição filosófica durante o decorrer de sua vida, procurando encontrar, na fragmentação da obra, a justificativa para certos problemas que, em realidade, são de caráter interpretativo. Esse hábito de datar os textos peircianos, aparentemente, poderá ser realimentado com a reorganização de sua obra de forma cronológica, num projeto previsto para uma edição em vinte volumes.11 Louvável sob uma série de aspectos, essa iniciativa parece estar compromissada com a corrente que, falsamente, tem encontrado no jovem Peirce um filósofo e no Peirce da maturidade, outro completamente diferenciado por posições substantivamente opostas. Não por descuido omitimos as datas dos textos citados, embora conscientes de que eles se vinculam às mais diferentes etapas da vida do autor. Conquanto reconheçamos que, em certas formas de abordagem temática, seja interessante evidenciar ao leitor a evolução do pensamento peirciano na construção de determinados conceitos, a datação dos textos não se mostrou importante no âmbito do que nos propusemos pesquisar. Além disso, ao longo da execução deste ensaio, não encontramos dois ou mais autores, mas, muito pelo contrário, deparamo-nos com um pensamento cuja consistência lógica convidamos o leitor a pôr à prova. 11 Writings of Charles Sanders Peirce: A Chronological Edition. Edited by Max Fisch, Edward C. Moore, Christian Kloesel, Nathan Houser, André De Tienne, et al., 8 vols., Bloomington: Indiana University Press, 1982-2010. Faremos menção a essa obra na forma abreviada W, seguida do número do volume e do número da página. Mencione-se também a obra The Essential Peirce, organizada em dois volumes e também em ordem cronológica: The Essential Peirce: selected philosophical writings, v. 1. HOUSER, Nathan; KLOESEL, Christian (eds.). Bloomington: Indiana University Press, 1992c. The Essential Peirce: selected philosophical writings, v. 2. The Peirce Edition Project (ed.). Bloomington: Indiana University Press, 1998. Faremos menção a essa obra na forma abreviada EP, seguida do número do volume e do número da página. 16 Há que se reconhecer, não obstante, que no princípio de sua carreira filosófica, o agudo interesse do autor pela Psicologia e a forte influência do pensamento de Kant levaram-no a utilizar, de um lado, uma terminologia por vezes psicológica e subjetiva12 e, de outro, a considerar a divisão kantiana dos juízos nas primeiras formulações sobre os três modos de argumento, realçando o caráter sintético e heurístico da abdução e da indução.13 Sua descoberta de uma “Álgebra Geral da Lógica” aplicável aos Relativos, que se dá entre 1885 e 1890,14 parece-nos ser um momento-chave em seu pensamento que se vai tornando tendencialmente mais objetivo, no sentido ontológico do termo. Acrescente-se ainda que, ao se autoacusar de “nominalista” devido ao teor de certos ensaios de sua juventude, entendemo-lo, na verdade, como apenas “menos realista”, uma vez que o realismo ontológico foi sua posição cabal desde os primórdios de seu pensamento. Finalizando, gostaríamos de frisar que a par de constituir um sistema de fundamentos, o qual, em nossa hipótese de trabalho, é condição necessária de possibilidade para abordagens temáticas, a Metafísica de Peirce é, em si mesma, uma arquitetura lógica, cuja solidez forma um dueto admirável com seu conteúdo. Reconhecemos ser ambicioso o projeto deste ensaio. Tal ambição, porém, decorre unicamente de não termos encontrado outro caminho lógico senão o de tentar a reconstrução de um sistema de fundamentos que viesse servir de rede conceitual, num futuro ensaio, para os pontos que, de princípio, nos moveram em direção ao autor. Convidando o leitor a constatar por si que Peirce é um autor profundo e de grande interesse à pesquisa filosófica, esperamos ter contribuído para sua inadiável divulgação. 12 Verificar, por exemplo, textos da juventude como “Questions Concerning Certain Faculties Claimed For Man” (CP, 5.213-263; EP, 1.11-27; W, 2.193-211) e “Some Consequences of Four Incapacities” (CP, 5.264-317; EP, 1.28-55; W, 2.211-242), ambos de 1868. 13 Distanciando-se do pensamento de Kant de maneira radical na maturidade, embora nunca tenha sido um transcendentalista, Peirce revê suas considerações sobre os três modos de argumento. Examinar sua autocrítica em NEM, p. 22-23. 14 Cf. Pierre Thibaud, La Logique de Charles Sanders Peirce. De l’Algèbre aux Graphes, Aix-en-Provence: Editions de l’Université de Provence, 1975, p. 84-85. 17