pobreza e transferência de renda no brasil

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POBREZA E TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO BRASIL
1
Gilmar Ribeiro dos Santos
2
Tereza Raquel Silveira Rosa
Resumo: A partir da década de 1990, o Brasil inovou seu quadro
de políticas sociais com a adoção de vários Programas de
Transferência de Renda. Estes se apresentaram como estratégia
no combate à pobreza e consistiram, basicamente, na
transferência de valores em dinheiro às famílias socialmente
vulneráveis, com a exigência de contrapartidas dos beneficiários.
A adoção destes programas, sobretudo, do Bolsa Família, o mais
expoente dentre eles, veio acompanhada de muitas críticas e
inúmeras expectativas. Na atualidade, alguns afirmam que o
Programa Bolsa Família é ineficaz porque leva a acomodação dos
beneficiários e aumenta a dependência dos mesmos para com o
Estado. Por outro lado, outros vêem o Programa como promissor
na medida em que fornece recursos que ampliam as
possibilidades de escolha e garante a segurança alimentar de
famílias socialmente vulneráveis. Nesse artigo são analisadas
algumas concepções sobre a pobreza que surgem a partir do
século XX bem como o surgimento de novas políticas sociais de
enfrentamento do problema. São apresentadas particularidades da
pobreza no Brasil e alguns desafios impostos ao recente
Programa Bolsa Família.
Palavras-chave: Pobreza, desigualdade, transferência de renda.
1
Professor. Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: [email protected]
Especialista. Universidade Estadual de Montes Claros E-mail: [email protected]
2
Concepções de pobreza
O debate sobre o fenômeno da pobreza tornou-se intenso, a partir da segunda
metade do século XX, em função da ampliação dos direitos sociais, identificados pelo
reconhecimento à participação, ainda que mínima, de todos os cidadãos na riqueza
produzida coletivamente.
Entre os séculos XIX e XX a definição do conceito de pobreza se transformou
significativamente. Migrou da idéia de mera privação de renda e carência de bens
materiais para uma perspectiva mais ampla, como a idéia da privação de “capacidades”,
e a carência de bens não materiais (Sen, 2000). A concepção de “pobre” também sofreu
alterações e este passou a ser visto como um produto da estrutura e não como um
trabalhador inapto ou mesmo um delinqüente que escolhe a sua condição.
O pesquisador Jordi Estivill desenvolveu uma pesquisa terminológica sobre a
evolução dos significados da pobreza. Sintetizando os diferentes significados do termo
“pobre” identificou três tipos de carências, estas foram denominadas como “ter pouco”,
“valer pouco” e “ter pouca sorte”. Estas carências dependeriam ainda, do ângulo de
leitura, dessa forma, poderiam ser estruturais “ser pobre”, circunstanciais “estar pobre”,
excludentes “não ser rico”, voluntárias “tornar-se pobre”, ou fingidas “fazer-se de pobre”.
Segundo Estivill (2006) na década de 1970 com o surgimento de uma nova
categoria de pobreza devido à crise mundial do período, a qual lançou na miséria
centenas de milhares de pessoas, fez-se necessário novos conceitos. Os termos
“marginal” e “nova pobreza” passaram a ser usados com freqüência no cenário europeu.
A palavra marginalização continuou a ser utilizada para designar o processo pelo qual
passaram, momentaneamente, jovens em busca de trabalho, ou mais permanentemente,
trabalhadores itinerantes, ciganos, e outros grupos excluídos do mercado de trabalho.
Neste sentido, a marginalização seria um ponto intermediário, uma fase mais ou menos
passageira, assumida “voluntariamente” ou imposta, entre a integração e a exclusão
definitiva. Ao comparar este conceito de marginal com o mesmo conceito utilizado na
América Latina, Estivill (2006) expôs que nos países latino americanos tal conceito surgiu
na década de 50 para identificar os habitantes das favelas, trabalhadores vítimas do
êxodo rural. A diferença, ressalta ele, é que o marginal latino-americano não escolheu a
sua marginalização.
O período citado por Estivill (2006) refere-se ao final dos anos 1970, momento
caracterizado pela precarização das formas de trabalho, pelas crescentes taxas de
desemprego e pela ampliação do fenômeno da pobreza. Este contexto particular é
marcado pelas alterações nos processos produtivos, sobretudo pela adoção de novas
tecnologias no sistema de produção, reduzindo os já insuficientes postos de trabalho.
Localiza-se, temporalmente, após a passagem pelo período que ficou conhecido como os
“Trinta Gloriosos”, e que representou a fase bem sucedida, digamos assim, do Estado de
bem-estar social, também denominado Estado Providência, vigente nos países centrais.
Tratou-se de uma conjuntura crítica e os problemas emergentes que se
manifestavam constituíram o que foi definido por alguns estudiosos como “nova questão
social”1. O período situado entre as décadas de 1970 e 1980 foi determinante para a
reflexão que se seguiu a respeito da pobreza e do desenvolvimento. O fato de
populações que nunca foram afetadas pela precariedade tornarem-se vítimas da
pobreza, mobilizou vários continentes, sobretudo o Europeu.
Fonseca (2001) explica que esta nova categoria foi designada como “nova
pobreza”, porque os pobres não eram mais apenas as pessoas inaptas para o trabalho
nem anti-sociais, mas pessoas que se encontravam nesta condição devido às
dificuldades relacionadas com o emprego e rendimentos. Assinala que a alta qualificação
daqueles que são expulsos do mercado de trabalho em vários países da Europa
evidencia uma nova imagem dos pobres: eles não são idosos, incapazes, ou de baixa
escolaridade e qualificação.
As concepções de pobreza e de pobre, em específico, possuem uma profunda
ligação com o desenho das políticas sociais de enfrentamento do problema. Uma das
contribuições sobre esta referida relação é apresentada por Bajoit (2006). Em seu
trabalho ele construiu uma tipologia das principais abordagens sociológicas da pobreza,
considerando, por um lado as concepções do contrato social e, por outro, as concepções
de política social.
Bajoit (2006) argumenta que definir o pobre apenas em termos de renda seria
uma tautologia. Para ele as definições de pobreza representam uma importante
revelação, pois trazem à luz seus efeitos e causas, e, conseqüentemente, o auxílio para
elaboração de políticas sociais mais eficazes de combate à pobreza.
1
Para Castel (1999), o quadro ilustrado apesar de apresentar novas expressões não deixava de ser uma
reconfiguração da antiga “questão social”.
Em sua tipologia relaciona quatro leituras sociológicas as quais denomina como
“rostos da pobreza”, são elas: “O pobre como marginal” – mal socializado ou socializado
numa subcultura diferente daquela da maioria das pessoas, ele não tem sucesso porque
é estigmatizado. “O pobre como explorado” – explorado pela classe dominante, alienado
e pauperizado. “O pobre como dependente” – não tem autonomia e não tem sucesso,
falta capital social suficiente. E finalmente, “o pobre como desafiliado” – isolado,
atomizado, desestimulado e não participa de formas de solidariedade organizada.
Tais concepções são complementares e derivam de duas representações
diferentes do contrato social. Uma primeira concepção se baseia no princípio de
Igualdade, onde a legitimidade funda-se nas necessidades materiais das pessoas. Ter
necessidades materiais é a condição que o indivíduo precisa preencher para poder
beneficiar-se legitimamente da ajuda instituída pela coletividade a qual o Estado tem o
papel de administrar.
A segunda concepção de contrato social está enraizada no princípio da
Equidade, em que para ter um acesso legítimo ao benefício é preciso mais que a
necessidade material, mas inclui também o empenho. Deve provar que está necessitado,
mas também que faz o possível para sair o mais rapidamente de sua condição de pobre,
deve mostrar sua vontade de autonomia, seu desejo de assumir-se. Só é ajudado aquele
que quer se ajudar.
Bajoit (2006) ressalta que essas duas faces do Contrato Social são evidentes
desde a responsabilização da questão da pobreza pelo Estado. Ele alega que a primeira
concepção tem mais correspondência com a primeira etapa da modernidade enquanto a
segunda se impõe atualmente, fortalecida pelas crises das décadas de 70-80 do século
XX.
As políticas sociais, assim como as duas faces do Contrato Social, também se
distinguirão conforme as respectivas percepções da pobreza. Assim ele relata duas
tendências específicas. Em uma o pobre é o responsável pela sua condição. O
funcionamento da sociedade não é questionado de forma alguma: é o pobre quem
precisa se adaptar às exigências da sociedade na qual vive, é ele quem deve integrar-se
nos papéis sociais, interiorizar os valores e as normas e adquirir os recursos necessários
para tornar-se autônomo e não precisar mais de ajuda.
Em uma outra tendência, o pobre e a pobreza são percebidos como um produto
do funcionamento do sistema, o qual possui relações de dominação geradoras de
desigualdades, desemprego e exclusão. Para que o pobre obtenha êxito a sociedade terá
que se adaptar às suas necessidades, lhe prestar assistência indefinidamente, ou ainda
modificar o seu funcionamento para reinseri-lo na vida ativa. Esta perspectiva da pobreza
prescreve que o sistema não se transformará sozinho, é necessário, portanto, a
intervenção política e/ou a pressão dos movimentos sociais, pois só por meio do conflito
os interesses dos excluídos serão atendidos.
Segundo Bajoit (2006), a prevalência de uma determinada política social num
dado contexto histórico tem absoluta correspondência com a concepção de pobreza
vigente em tal período.
O estudo das tipologias realizado por Bajoit, dentre outras coisas, aponta o risco
de se reduzir a pobreza a uma única faceta, relegando o seu caráter multidimensional.
Ele atenta para a necessidade de se realizar leituras mais complexas e mais ajustadas à
realidade da pobreza, para que dessa forma as políticas sociais que vierem a ser
concebidas tenham maior capacidade de enfrentar e combater o problema.
Da revisão de concepções para a revisão de políticas sociais
As transformações ocorridas a partir da década de 1970 provocaram novas
reflexões sobre o desenvolvimento e sobre a necessidade de se repensar o papel das
políticas sociais. Novas estratégias passaram a ser elaboradas como alternativa à nova
realidade caracterizada pelo empobrecimento crescente de algumas populações.
Em meados da década de 1980 a idéia do Desenvolvimento Humano foi
disseminada no mundo inteiro. Esta concepção estava profundamente relacionada com a
constatação da fragilidade dos índices de desenvolvimento até então vigentes, a saber, o
PIB – Produto Interno Bruto – e a renda per capita.
Com o objetivo de apresentar indicadores mais realistas, o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD – elaborou o índice de desenvolvimento
humano, o IDH, e passou a publicar o Relatório sobre Desenvolvimento Humano a partir
de 1990. Mesmo recebendo muitas críticas, o IDH se firmou como medida de avaliação
do desenvolvimento das nações e contribuiu para o fortalecimento do papel das políticas
sociais ao incluir indicadores referentes à longevidade e escolaridade dos indivíduos.
Após a divulgação do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano realizado
pela ONU as estratégias de combate à pobreza sofreram algumas modificações. Estas
não poderiam mais se restringir ao mero atendimento de necessidades básicas, sendo
assim, sugeriu a inclusão de novas variáveis, antes desconsideradas, como: autonomia,
segurança e oportunidades.
O PIB deixou de ser a preocupação suprema das políticas públicas. Outras
metas ganharam relevância, como a melhoria do IDH e as metas do milênio. Temas
como educação, saúde, nutrição, habitação e outros relacionados à qualidade de vida
passaram a ser tratados com maior atenção pelos governos e monitorados por
instituições internacionais.
Segundo a autora Ana Maria Fonseca o grande questionamento naquele
contexto crítico era como responder aos desafios criados pelas alterações no mundo do
trabalho, principalmente pelo emprego das novas tecnologias nas atividades de
produção.
Para Fonseca (2001) a exigência de mecanismos novos de proteção social
surgiu em decorrência do excedente de trabalho, da geração de postos de trabalho
precários, do trabalho com baixo grau de formalização contratual, do distanciamento das
redes de proteção, ou da combinação desses elementos que caracterizam as
vulnerabilidades sociais. Foi nesse quadro da chamada crise da sociedade salarial que o
debate internacional sobre os propalados programas de renda mínima ganharam vigor.
No Brasil este debate assumiu maior visibilidade a partir de 1991, quando o
projeto de lei nº 80/1991 do senador Eduardo Suplicy que propunha um Programa de
Garantia de Renda Mínima foi aprovado no Senado Federal. Outra contribuição no
debate brasileiro sobre a pobreza foi a campanha de mobilização social coordenada pelo
sociólogo Herbet de Sousa e criada pela Ação da Cidadania contra a fome, a miséria e
pela vida.
Em virtude do aumento da pauperização e das alterações nos processos
produtivos, os programas de transferência de renda se apresentaram como
imprescindíveis no tratamento das questões sociais postas e representaram a
possibilidade de enfrentamento da pobreza e desigualdade em vários países. Para
Fonseca (2001) uma novidade importante nos novos programas é que já não se trata
apenas de uma proteção episódica para o enfrentamento de certos riscos ou de
situações circunstanciais de maior vulnerabilidade, mas sim de uma rede de seguridade
social onde a renda é compreendida como um direito dos cidadãos.
A pobreza no Brasil: Um “país pobre” ou “com muitos pobres”?
As experiências de combate à pobreza dos governos brasileiros estiveram muito
associadas ao crescimento econômico, pois se acreditava que o crescimento da riqueza
do país, através da industrialização, ocasionaria de uma maneira espontânea uma melhor
distribuição de renda, como um efeito derrame, retirando todos os desfavorecidos das
condições
de
precariedade.
Dessa
maneira,
com
as
preocupações
voltadas,
majoritariamente, para o PIB, pouco se investiu em estratégias de redução da
desigualdade. Segundo Barros, Henriques e Mendonça (2001), esse fator talvez tenha
sido a causa do fracasso destas políticas, para eles a ousadia do governo deveria se
pautar em políticas de combate à pobreza orientadas pela equidade social e pela
redistribuição da riqueza.
Estes estudiosos sustentam as suas asserções a partir dos resultados de um
trabalho de descrição empírica sobre a pobreza no Brasil, onde traçaram sugestões
sobre o caminho para enfrentar o problema. Defendem a tese de que o Brasil não é um
país pobre, mas um país com muitos pobres, e que o principal determinante dos altos
índices da pobreza no país está situado numa perversa desigualdade na distribuição de
renda e de oportunidades de inclusão econômica e social.
Relatam que ao longo das décadas de 1980 e 1990 a intensidade da pobreza
manteve um comportamento de relativa estabilidade, com apenas duas pequenas
contrações, concentradas no período de implementação dos Planos Cruzados e Real.
Esse comportamento estável, com a porcentagem de pobres oscilando entre 40% e 45%
da população, apresentou flutuações associadas, sobretudo, à instável dinâmica
macroeconômica do período.
O grau de pobreza atingiu seus valores máximos durante a recessão do início
dos anos 80, quando a porcentagem de pobres em 1983 e 1984 ultrapassou a barreira
dos 50%.
Para demonstrar que a pobreza1 no Brasil não está correlacionada à escassez
absoluta ou relativa de recursos, estes estudiosos realizaram uma comparação entre os
valores da renda per capita e o grau de pobreza do Brasil e os demais países do mundo.
1
Vale ressaltar que os autores analisam a pobreza a partir da dimensão de insuficiência de renda.
Tal comparação permite verificar se o grau de pobreza brasileiro é maior que o de países
com renda per capita similar ou menor.
Esta análise comparativa revelou que o Brasil possuía um grau de pobreza1
significativamente mais elevado que países com renda per capita similar à brasileira.
Assim sendo, conclui-se que a intensidade da pobreza no Brasil pode ser explicada pela
distribuição desigual dos recursos e não pela sua escassez.
Os pesquisadores contrastam também a linha de pobreza nacional e o valor de
renda per capita brasileira. O resultado é revelador, como a renda média brasileira é
significamente maior que a linha de pobreza, é possível associar a intensidade da
pobreza à concentração de renda. Para Barros, Henriques e Mendonça (2001), a
distribuição mais eqüitativa da riqueza nacional seria mais que suficiente para erradicar a
pobreza do país.
Nestes termos, os autores se posicionam contrários ao modelo de políticas de
crescimento econômico que relegam a plano secundário o combate à desigualdade. O
crescimento econômico, segundo eles, embora possa conduzir a uma redução da
pobreza, esta deve durar um longo tempo para produzir uma transformação relevante na
magnitude da pobreza. Desse modo, sugerem que as políticas sociais não
desconsiderem a via do crescimento econômico, mas que enfatizem o papel das políticas
redistributivas.
Transferência de renda contra a Desigualdade
Políticas sociais de eliminação da desigualdade e da pobreza exigem a adoção
de mecanismos de redistribuição da riqueza. Uma das estratégias de redistribuição
aparece sob a forma dos programas de transferência de renda. Esses programas
consistem basicamente na transferência de valores em dinheiro às famílias socialmente
vulneráveis juntamente com a exigência de contrapartidas dos beneficiários.
Essas contrapartidas, também conhecidas como condicionalidades, são
adotadas com o objetivo de elevar os índices de educação, saúde, nutrição e reduzir
problemas como o trabalho infantil e a evasão escolar. Esta seria uma alternativa para
articular as ações de combate à pobreza. Outra característica deste modelo é a
1
O estudo revela, a partir de dados do Relatório de Desenvolvimento Humano de 1999, que enquanto no
Brasil a população pobre representa cerca de 30% da população total, nos países com renda per capita similar
à brasileira esse valor corresponde à 10%.
focalização. Os benefícios são direcionados exclusivamente aos pobres e indigentes com
crianças e adolescentes, respeitando os critérios referentes à linha de pobreza e
indigência.
O primeiro programa brasileiro de transferência de renda foi implantado em
1996, o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil –, direcionado a crianças
de 7 a 15 anos obrigadas a trabalhar ou submetidas a atividades perigosas ou insalubres.
Em 2001 o governo introduziu o Programa Bolsa Escola ou Programa de Renda Mínima
vinculada à educação, onde o foco era a frequência escolar. Logo após foi implementado
o Bolsa Alimentação, que exigia novas contrapartidas na área da saúde, como
aleitamento materno, exames pré-natais, vacinação das crianças. Em 2003 o governo
adotou uma nova experiência com o Cartão Alimentação onde o valor do beneficio era
exclusivamente direcionado à compra de alimentos.
Todavia, ainda em 2003 o governo brasileiro decidiu unificar todos os
programas de transferência de renda por meio de um cadastro único. A justificativa
apresentada era que a coexistência desses programas ocasionava um grave problema
de gerenciamento, pois com agências executoras distintas, eram frequentes os casos em
que famílias com renda similar recebiam quantias diferentes de benefício. Dessa forma,
em outubro deste mesmo ano foi instituído o Programa Bolsa Família com o propósito de
unificar os programas nacionais de transferência de renda, a saber, o Bolsa Escola, o
Bolsa Alimentação, o Vale-gás e o Cartão Alimentação. O objetivo era melhorar o
gerenciamento, ampliar recursos para os programas e elevar o valor do benefício.
O Bolsa Família propôs a articulação de dois objetivos centrais: o alívio da
pobreza no curto prazo, por meio da transferência de renda e o combate a sua
transmissão intergeracional, por meio de condicionalidades voltadas para incentivar as
famílias a realizarem investimentos em educação e saúde.
Tal programa é direcionado a famílias cuja renda familiar per capita seja
inferior a R$ 60 mensais e famílias de gestantes, nutrizes, crianças e adolescentes de até
15 anos cuja renda per capita seja inferior a R$ 120. Os valores pagos pelo programa
variam de R$20,00 a R$182,00 por família, de acordo com a renda mensal per capita da
família e o número de crianças e adolescentes até 17 anos.
No Brasil, a adoção deste modelo de política social, que viabiliza a
transferência de valores em espécie às famílias pobres, tem gerado muitas discussões
sobre a sua eficácia no combate à pobreza. Os julgamentos mais céticos em relação aos
efeitos positivos do programa argumentam que este tipo de assistência social apenas
prolifera a pobreza, na medida em que cria uma dependência em relação ao Estado e
favorece a acomodação laboral. Segundo tal raciocínio, os beneficiários trabalhariam
menos ou deixariam de trabalhar em virtude da garantia do recebimento do benefício.
Outras opiniões, ainda que favoráveis à política de transferência de renda, apontam
falhas no formato do programa, como exemplo: a focalização em detrimento da
universalidade, a deficiência dos serviços públicos de educação e saúde que os
beneficiários devem utilizar conforme exigência das condicionalidades, e a necessidade
de instituir a Renda Mínima como um direito e não como uma política. Uma outra corrente
de opiniões mais otimistas com relação ao programa indica impactos positivos de
natureza macroeconômica, sobretudo na redução da desigualdade e no fortalecimento do
mercado local possibilitado pelo aumento do poder de consumo dos beneficiários.
Polêmicas e desafios
No Brasil existem ainda fortes resistências em relação à adoção de
Programas de Transferência de Renda no combate à pobreza. Segundo Zirmermman
(2007), parte da mídia em geral e determinados grupos políticos defendem a concepção
liberal clássica, qual seja, a não interferência do Estado nas livres relações de mercado,
pois uma possível interferência agravaria os problemas sociais. Dessa forma, a proteção
estatal incentiva e/ou favorece a acomodação juntamente com uma suposta falta de
vontade de trabalhar, pois, ao atingirem um determinado nível de renda, garantido pela
transferência, as pessoas beneficiadas passariam a ter incentivos para trabalhar menos
ou deixar de trabalhar. Este tipo de política criaria uma indesejável dependência em
relação ao Estado contribuindo para um sistema parasitário.
Alguns críticos dos programas de transferência de renda argumentam que
eles não são a solução para a pobreza, pois não garantem a emancipação dos
beneficiários, ao contrário, este tipo de programa social só aumenta a dependência e a
permanência dos beneficiários. Tal crítica declara que a transferência de renda possui
portas de entrada, mas, não aponta as portas de saída da proteção do Estado. A política
de transferência de renda, longe de combater a pobreza, proporciona a acomodação, o
desestímulo dos beneficiários no sentido de buscarem uma melhor posição no mercado
de trabalho. Segundo este raciocínio, o Estado deveria se limitar a auxiliar na inserção
dos pobres no mercado de trabalho. Essa inserção seria possível mediante a aceleração
do crescimento econômico, através da privatização e, principalmente, do corte de gastos
públicos e da redução da carga tributária, tidos como as principais medidas para diminuir
a pobreza.
Outros autores, críticos do sistema capitalista de forma geral, também se
posicionam contrários à introdução de direitos sociais vinculados aos programas de
transferência de renda. Segundo eles, este tipo de programa tenderia, acima de tudo, a
contribuir com a manutenção do sistema capitalista. Este tipo de política social, por
possuir caráter paliativo, provocaria então uma indesejável adaptação dos pobres à
ordem social vigente. Segundo Demo (2002), ao invés de causar conflitos, as políticas
sociais vinculadas aos Programas de Transferência de Renda causariam a pacificação, o
conformismo e a harmonia entre as classes sociais, mantendo-se, com isso, a ordem
social vigente.
Em relação a operosidade dos beneficiários, Medeiros, Brito e Soares (2007)
alegam que é bem possível que as transferências tenham o efeito contrário à medida que
conferem aos trabalhadores pobres recursos que os permitem ultrapassar certas
barreiras de entrada em segmentos mais vantajosos do mercado de trabalho. Eles
contestam as afirmações de que as transferências de renda acomodam o beneficiário.
Afirmam que não se tem evidência empírica alguma para corroborar tal argumento. Eles
apresentam um estudo do IBGE revelando que pessoas integrantes de domicílios onde
há beneficiários do Bolsa Família trabalham tanto ou mais que pessoas com renda
familiar per capita similares1 não pertencentes aos quadros dos beneficiários.
Em um outro estudo desenvolvido em 2005 pelo Cedeplar - Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional - UFMG - sobre avaliação de impactos do
Programa Bolsa Família corrobora o efeito positivo do programa sobre a oferta de
trabalho. Os resultados mostraram que adultos em domicílios com beneficiários do Bolsa
Família têm uma taxa de participação 3% maior no emprego formal do que adultos em
domicílios não beneficiários. Sendo este impacto maior entre as mulheres, 4% do que
entre homens, 3%.
Segundo Zimermmann (2007) o programa Bolsa Família, mesmo garantindo
um mínimo social não assegura o acesso irrestrito ao benefício, uma vez que há um
1
Enquanto a taxa de participação no mercado de trabalho das pessoas em domicílios com beneficiários do
Bolsa Família é de 73% para o primeiro decil da distribuição, 74% para o segundo e 76% para o terceiro, a
mesma taxa é de 67%, 68% e 71% respectivamente, para as pessoas que vivem em domicílios sem
beneficiários.
limite de famílias a serem beneficiadas por município. Essa limitação ocorre porque existe
um número máximo de famílias a serem contempladas com o benefício no município. A
partir do momento em que essa quota é preenchida, fica "impossibilitada" a inserção de
novas famílias, mesmo que sejam extremamente vulneráveis e, portanto, portadoras
desse direito. Em virtude disso, alega que o Bolsa Família não é concebido com o intuito
de garantir o benefício a todos que dele necessitam.
Em relação à exigência de utilização dos serviços públicos de saúde e
educação imposta pelas condicionalidades do programa, Silva (2007) aponta que apesar
da articulação proposta pelo Programa Bolsa Família entre política compensatória
(transferência de renda) e política estruturante (condicionalidades na área de educação e
saúde) representar um modelo promissor, o sucesso do Programa Bolsa Família
demanda a expansão e a democratização de serviços sociais básicos. Isso exige a
expansão quantitativa e qualitativa dos sistemas de saúde, de educação e de trabalho,
ainda muito precários.
Mesmo recebendo muitas críticas, os Programas de Transferência de Renda
tem gerado impactos sobre a desigualdade e a pobreza no Brasil. Em estudo recente
desenvolvido pelo IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – os pesquisadores
Soares, Osório, Soares, Medeiros e Zepeda (2007) indicaram que os programas de
transferência como o Bolsa Família contribuíram para uma redução de 21% no
coeficiente de GINI no Brasil. De acordo com os mesmos, os programas de transferência
de renda são imprescindíveis no combate à desigualdade, mas não podem ser encarados
como uma panacéia, devem vir acompanhados de políticas estruturais mais amplas que
forneçam segurança e autonomia aos cidadãos.
Considerações Finais:
As novas concepções de pobreza tiveram forte influência nas estratégias
brasileiras de combate a pobreza via programas de transferência de renda implantados a
partir da década de 1990, com destaque especial para o Bolsa Família, o mais expoente
dentre eles. Tal programa foi formulado com o objetivo de aliviar a pobreza de imediato, e
combater a sua transmissão intergeracional, incentivando as famílias a cuidarem da
saúde e educação de seus filhos.
A adoção deste modelo de política social, que viabiliza a transferência de
valores em espécie às famílias pobres, dividiu as opiniões e tem gerado muitas
discussões sobre a sua eficácia no combate à pobreza. Os julgamentos mais céticos em
relação aos efeitos positivos do programa argumentam que este tipo de assistência social
apenas prolifera a pobreza, na medida em que cria uma dependência em relação ao
Estado e favorece a acomodação laboral. Segundo tal raciocínio, os beneficiários
trabalhariam menos ou deixariam de trabalhar em virtude da garantia do recebimento do
benefício. Outras opiniões, ainda que favoráveis à política de transferência de renda,
apontam falhas no formato do programa, como exemplo: a focalização em detrimento da
universalidade, a deficiência dos serviços públicos de educação e saúde, os quais os
beneficiários precisam utilizar conforme exigência das condicionalidades. E apontam
ainda, a necessidade de se instituir a Renda Mínima como um direito e não como uma
política governamental. Uma outra corrente de opiniões mais otimistas com relação ao
Programa indica impactos positivos de natureza macroeconômica, sobretudo na redução
da desigualdade e no fortalecimento do mercado local possibilitado pelo aumento do
poder de consumo dos beneficiários.
A polêmica em torno deste debate, a qual se intensificou após a adoção dos
programas de transferência de renda, revela a complexidade inerente à problemática da
pobreza e os desafios no enfrentamento da mesma.
Os institutos governamentais como o IPEA e o IBGE têm fornecido importantes
informações sobre mudanças na realidade socioeconômica brasileira, como as Pesquisas
de Amostra por Domicílio 2004 e 2005, desenvolvidas pelo IBGE1 que vêm indicando
redução nos níveis de pobreza e de desigualdade social da população brasileira, embora
seja essa redução pouco significativa se considerada a realidade nacional.
Certamente, a experiência brasileira em políticas de renda mínima tem sido
inovadora e promissora, no sentido em que se pautam no conceito de segurança
alimentar e que atentam para a necessidade da inclusão social. Como alegam os
pesquisadores do IPEA, Barros, Henriques e Mendonça (2001) o combate à
desigualdade a partir de uma distribuição mais eqüitativa dos recursos pode ter um
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD 2004). Rio de Janeiro: IBGE; 2005.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD 2005). Rio de Janeiro: IBGE; 2006.
impacto relevante sobre a pobreza em um país que dispõe de uma renda per capita
bastante superior à linha de pobreza.
Por outro lado, a natureza compensatória destes programas limita o alcance de
resultados expressivos no combate à pobreza, na medida em que se fundamentam na
distribuição e não na redistribuição de recursos. Desta forma, tendem a exercer um papel
emergencial e paliativo por não articular modificações estruturais necessárias que
permitam a real inclusão social dos pobres.
Nesses termos, apesar de representarem elemento fundamental na redução das
desigualdades econômicas, as transferências de renda não podem ser interpretadas
como suficientes na solução do problema da pobreza. Outras ações conjuntas devem ser
articuladas no enfrentamento do problema. Isto inclui, por exemplo, como demonstra
Silva (2007), a democratização e melhoria dos serviços sociais básicos a partir de
mudanças significativas nos sistemas de educação, saúde e trabalho, a fim de criar
condições favoráveis para a autonomia das famílias.
Não se trata, portanto, de compreendê-los como solução total e menos ainda
como desperdício ou “gasto social”. Os programas de transferências de renda são
importantes e necessários mecanismos de proteção social, mas constituem apenas uma
frente na erradicação do problema da pobreza.
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