verve verve Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP 25 2014 VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº25 (Maio 2014). São Paulo: o Programa, 2014 - semestral 1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (coordenadores: Silvia Helena Simões Borelli e Edison Nunes); indexada no Portal de Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos Capes, no LATINDEX e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos. Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio Augusto, Aline Passos, Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Edson Passetti (coordenador), Eliane K. Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo Simões, Helena Wilke, Leandro Siqueira, Lúcia Soares, Luíza Uehara, Maria Cecília Oliveira, Mayara de Martini Cabeleira, Rogério Nascimento, Salete Oliveira, Sofia Osório, Thiago Rodrigues. Conselho Editorial Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca Mais/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago (Unicamp), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherches sur l’Anarchisme), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Heleusa F. Câmara (UESB), João da Mata (SOMA), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), Maria Lúcia Karam, Nelson Méndez (Universidade de Caracas), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp), Stéfanis Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia). ISSN 1676-9090 verve verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal. Intervalos: imagens dos jornais O libertário. Direção de Pedro Catallo. São Paulo, ano I, n. 2, 1960; O libertário. São Paulo, ano III, n. 27 e 28, fev. 1964, capa; O libertário. São Paulo, ano III, n. 27 e 28, fev. 1964, p. 2; Dealbar. Direção de Pedro Catallo. São Paulo, ano II, n. 17, dez. 1968; O Inimigo do Rei. Salvador/Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, ano III, n. 7, set./out. 1979. sumário Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias [parte1] 13 Edgar Rodrigues: an anarchist between two countries [first part] José Maria Carvalho Ferreira Cinquenta anos depois... 33 Fifty years later... Cecília Maria Bouças Coimbra CaraCara Cara de Cavalo 47 Face to face Horse Face Beatriz Scigliano Carneiro ... 1964-2014, aquém e além de 1/2 século 72 ... 1964-2014, beneath and beyond 1/2 century [página única 1] Nu-Sol A questão americana: o conflito incontornável. O apelo ao povo 83 The American question: the inevitable conflict. Acclaim to the People Joseph Déjacque Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo 109 Cartographies of the penitentiary interiorization in the state of São Paulo James Humberto Zomighani Júnior O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária 129 The ludic and artistic device of the planetary education Eliana Pougy Uma carta aberta da Pussy Riot 147 An onpen letter from Pussy Riot [página única 2] Pussy Riot Drogas-Nocaute 2 153 Drugs-Knockout 2 Edson Passetti & Acácio Augusto resenhas Um arquivo sobre a educação e a cultura anarquista no Brasil 189 An archive of the anarchist education and culture in Brazil. Lúcia Bruno Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI 193 On the occupation of organized anarchism in the XXI century Flávia Lucchesi agonismo. a vida como batalha. a batalha que vivifica contra o que tortura, assassina, faz calar. efemérides, via de regra, são laudatórias. este ano, em especial, marcam-se diversas: 100 anos da primeira guerra mundial, 150 anos da fundação da ait (associação internacional dos trabalhadores), 200 anos do nascimento de mikhail bakunin. decidimos destacar os 50 anos do golpe civil-militar no brasil. verve 25 é atravessada pela memória das lutas contra ditaduras de ontem e autoritarismos que não cessam de emergir: em portugal e no brasil de ontem, por josé maria carvalho ferreira; no brasil de ontem e hoje, por cecília coimbra e beatriz scigliano carneiro; no enfrentamento com o insuportável pelo nu-sol. a reviravolta conservadora nos estados unidos é fustigada pelo instaurador da palavra libertário, joseph déjacque, ao atacar o racismo estadunidense e a iminência da guerra de secessão acomodados à democracia representativa, explicitando o vigor da análise anarquista durante os acontecimentos. o extermínio seletivo que pratica todo estado, em ditaduras ou democracias, se expressa na reconfiguração e expansão de prisões, como analisa james humberto zomighani júnior; a educação que domestica nos fluxos da sociedade de controle é problematizada por eliana pougy. a carta-manifesto das pussy riots situa a captura de duas de suas integrantes pelo teatro dos direitos humanos, a recusa ao institucionalismo e convida para conversações com o que se desdobra eletrônico em vervedobras, com os jornais libertários que resistiram à ditadura no brasil. a rebeldia que não cessa emerge da aula-teatro drogas-nocaute 2, ousando sugerir o método anarquista para lidar com proibições, moralismos e violências. as efemérides inflam revanches e nostalgias. verve se aparta disso, afirmando a potência dos combates no presente, atenta à memória das lutas para a invenção de liberdades agora! verve edgar rodrigues: um anarquista entre duas pátrias [parte 1]1 josé maria carvalho ferreira Para mim, escrever sobre a vida e a obra de Edgar Rodrigues trata-se de uma questão de amizade, gratidão e admiração. No meu caso específico esse fato decorre, fundamentalmente, de três aspetos cruciais. Em primeiro lugar, mantive com Edgar Rodrigues uma amizade única mesclada pelas vicissitudes ideológicas do anarquismo no Brasil e em Portugal. Os conflitos e as contradições emergiram com relativa acuidade, dando azo a uma situação de solidariedade profunda entre ele e eu, desde o início da década de 1980 até sua morte, em 14 de maio de 2009. Com isto pretendo somente demonstrar que a minha análise sobre Edgar Rodrigues está submersa de subjetividade. Em segundo lugar, há que realçar o trabalho gigantesco que foi elaborado por Edgar Rodrigues em relação ao número de livros e artigos que publicou. Não obstante sabermos que alguns dos livros publicados tinham um carater repetitivo, a sua complexidade analítica sócioJosé Maria Carvalho Ferreira é professor e pesquisador no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), na Universidade Técnica de Lisboa/SOCIUS, Portugal. Contato: [email protected]. verve, 25: 13-29, 2014 13 25 2014 histórica implica, para os vindouros, um estudo prévio e profundo das fontes que lhes deram conteúdo e forma. É evidente que muitos desses livros dão-nos imensas informações relevantes para a história do movimento social operário no Brasil e em Portugal, mas também do sindicalismo e do anarquismo. Em terceiro lugar, há que se ter presente o autodidatismo e a militância anarquista de Edgar Rodrigues fora dos meios acadêmicos. Para ele não interessava a perfeição formal do ato de escrever e analisar em termos científicos, como é apanágio no meio universitário, mas sobretudo divulgar e desenterrar a ação coletiva dos oprimidos e explorados que tentaram, historicamente, desbravar o terreno da emancipação social. Tratava-se, no fundo, de resgatar a história social dos vencidos de ontem e informar o presente e o futuro da palavra do anarquismo conducente à emancipação social. O processo de aculturação de Edgar Rodrigues em Portugal António Francisco Correia (mais tarde, na década de 1950, assumiu o pseudônimo de Edgar Rodrigues no Brasil) nasceu em 12 de março de 1921 na aldeia de Angeiras/Lavras, município de Matosinhos, região norte de Portugal. Era filho de Manuel Francisco Correia e Albina da Silva Santos. Contextualizando historicamente a sua situação econômica, política, social e cultural pode-se inferir da natureza da sua escolarização, como também das dificuldades da sua sobrevivência econômica e social no meio familiar. 14 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias O pai de António Francisco Correia trabalhava nas docas do porto de Leixões e a mãe, embora trabalhasse como doméstica, era de origem camponesa. Por outro lado, seu pai era um militante anarcossindicalista muito ativo no Sindicato das Quarto Artes, constituído por vários ofícios da construção civil do município de Matosinhos. A mãe, como era habitual nas famílias portuguesa pobres, limitava-se a cuidar da lida da casa e dos filhos. As múltiplas adversidades desta realidade permitiram que Correia se apercebesse, desde muito novo, das injustiças e da desigualdade social existentes em Portugal – perceção drasticamente desenvolvida com a eclosão do golpe de Estado fascista em 28 de maio de 1926. Na altura, Correia tinha cinco anos, dois meses e dezesseis dias. Embora fosse ainda muito jovem neste acontecimento histórico, este teve enormes repercussões no pensamento e na ação de António Francisco Correia, por consequência da vida de militante anarcossindicalista de seu pai. Desde logo, o novo regime político tentou cercear qualquer tipo de ação individual e coletiva que se orientasse no sentido da emancipação social. Neste contexto, a ação dos sindicatos que seguiam uma orientação anarcossindicalista e estavam integrados na CGT (Confederação Geral do Trabalho) tiveram extrema dificuldade em construir as suas lutas e reivindicações, acontecendo o mesmo à sua imprensa e escolas libertárias. Mais tarde, essas atividades foram pura e simplesmente banidas com a Constituição de 1933. Face a esta realidade, a sobrevivência da família de António Francisco Correia tornou-se cada vez mais difícil, pela manutenção do salário de seu pai e por condicionantes da ação deste último no meio sindical e anarcossindicalista. verve, 25: 13-29, 2014 15 25 2014 Entretanto, nos finais da década de 1920, Correia ingressou na escola primária. Foi um passo importante na sua educação e no acesso ao conhecimento e informação, na medida em que teve oportunidade de conviver e aprender com um grande pedagogo: o professor Raúl Manuel Gonçalves. Como este era um democrata e um livre-pensador, opinava livremente no sentido da defesa das ideias e práticas anarquistas. Esse fato traduziuse numa influência pedagógica importantíssima sobre Correia, não obstante o controle ideológico e político da ditadura fascista já se ter alargado ao sistema educativo português. A conjugação dos fatores que enunciei traduziuse num processo de aculturação muito específico para Correia. Ainda muito jovem, juntamente com o seu irmão Manuel Correia e outros companheiros, participava em reuniões clandestinas do sindicato em que seu pai estava filiado e, por outro lado, distribuía propaganda na região de Matosinhos e Porto. Havia, da sua parte, uma predisposição e motivação comportamental muito singular, lendo todos os livros que podia, ao ponto de muitos deles poderem ser copiados à mão integralmente. A razão deste fato reside na inexistência de dinheiro na sua família para os comprar. A primeira condição-função que nos pode aproximar da probabilidade de Correia evoluir para uma ideologia anarquista ou ter uma capacidade para escrever nos é facultada por uma carta que escreve ao prisioneiro anarquista Luis Portela, quando tinha onze anos e dezoito dias: 16 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias “Pamp., 30 de Março de 1932 – Prezado amigo: Logo que tive conhecimento da sua prisão, procurei indagar do teu paradeiro. Como vivo afastado da cidade, só o consegui quando me veio às mãos a tua carta. Lamento a tua situação. Mas fica certo de que nós trabalharemos por ti. É necessário que indiques os nomes dos salteadores da tua e da nossa liberdade, os nomes desses sórdidos rafeiros ao serviço da tirania que asfixia o povo. Quanto a nós, o autêntico povo, não nos deixaremos ludibriar pelas artimanhas, nem tampouco pela violência de tais rafeiros. Podes, em vez de ‘beijos’, dizer abertamente que te espancaram, que nós já conhecemos os hábitos dos esbirros da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado). Diz-nos qual o crime de que te acusam, para que fique bem claro entre nós. Por grave que seja não temos sequer aproximação com atos de ‘bondade’ gratificados pela cega justiça da PVDE, que não poupa velhos nem novos, a todos espancando barbaramente, a ponto de mutilar e cegar as suas vítimas. De um pobre-diabo sei eu que, andando a apascentar ovelhas, encontrou numa bouça um maço de papéis, que se verificou depois serem manifestos comunistas. Pois apesar do pobre nem sequer saber ler, a Polícia prendeu-o e, passado algum tempo, devolveu-o à liberdade, mas com o braço quebrado de tanto torcê-lo num torniquete para arrancar-lhe absurda confissão. Este e muitos outros constituem a enorme legião das vítimas do Estado Novo, que um dia hão-de julgar os seus algozes. Agradeço-te a nova letra, que não conhecia de ‘A Portuguesa’, e em troca envio-te o seguinte poema de Tomás da Fonseca (Zola – pseudônimo de António Francisco Correia)”2. verve, 25: 13-29, 2014 17 25 2014 Esta incursão de solidariedade de Correia para com Luis Portela foi mantida até finais da década de 1940, não obstante este último ter passado o maior tempo da sua vida na prisão. Com o advento da constituição fascista de 1933, o regime de Salazar instaurou um clima de terror policial e ideológico junto dos sindicatos que não professavam os objetivos dos sindicatos nacionais de ideologia fascista. Como consequência, a totalidade das sedes dos sindicatos anarcossindicalistas aderentes à Confederação Geral do Trabalho (CGT) foram encerradas, assim como os seus órgãos de imprensa. O exemplo do jornal A Batalha, porta-voz da CGT, é bastante significativo. Sendo um jornal diário, perdurou de 1919 até ao golpe de Estado de 28 de maio de 1926. Já antes a situação dos sindicatos era difícil, mas depois de 1933 a repressão ideológica e política desenvolveu-se de forma abrupta, ao ponto de tornar insustentável qualquer ação reivindicativa ou sequer qualquer veleidade de mudança social. Para os militantes da CGT, as dificuldades de se reunir avolumaram-se. Nestas circunstâncias, sendo um militante ativo da CGT, era na casa do pai de Correia que se realizavam as reuniões clandestinas do “Sindicato das Quatro Artes”. Todo o espólio (livros, jornais, panfletos, atas, mobília, estantes, material de escritório, etc.) deste sindicato estava sediado na casa de Manuel Francisco Correia. Até a prisão do pai, em finais de 1936, no Porto, Correia, seu irmão Manuel Correia e outros companheiros realizaram muitas reuniões de incidência libertária e sindical. No entanto, a identidade com a fragilidade existencial da central sindical nacional (CGT), influenciou, notoriamente, a discussão para reflexões e ações identificadas com os princípios e as práticas do anarcossindicalismo. 18 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias Em função das prisões e dos condicionantes impostos pela constituição fascista de 1933, os dirigentes da CGT não cruzaram os braços, e elaboraram uma estratégia conducente à realização de uma greve geral insurrecional em nível nacional, no dia 18 de janeiro de 1934, com o intuito de derrubar o governo de Salazar. Na medida em que todos os trabalhadores assalariados foram estimulados para intervir nessa ação revolucionária para além da CGT, a Comissão Inter-Sindical também participou nesse evento histórico. É interessante sublinhar que esta central sindical pertencia à Internacional Sindical Vermelha, criada em 1921. Por outro lado, era uma correia de transmissão dos desígnios políticos e ideológicos do PCP (Partido Comunista Português), também criado em 1921, que também fazia parte da III Internacional Comunista sediada em Moscou. Ironia do destino. No caso português, na sua grande maioria, essas organizações foram criadas por anarquistas. Assim, não admira que, não obstante os conflitos subsistentes entre a CGT e a Comissão Inter-Sindical, militantes desta central sindical tenham participado também na greve geral insurrecional de 18 de janeiro de 1934. A falta de coordenação entre os diferentes entes participantes fez com que a greve geral insurrecional tivesse sido abortada, não obstante em alguns pontos do país emergissem focos de resistência contra a repressão policial e militar. Neste aspeto, a sublevação na vila de Marinha Grande revelou-se um caso exemplar. Em relação a este acontecimento histórico, após ter-se conhecido o seu epílogo, é interessante constatar que o PCP tivesse denominado essa tentativa insurrecional de “anarqueirada”. verve, 25: 13-29, 2014 19 25 2014 António Francisco Correia viveu todo este episódio através do ambiente familiar centrado na ação de seu pai. Entre os onze e quinze anos, a sua motivação estava focada na leitura de obras de autores anarquistas e de obras literárias identificadas com a emancipação social. Pese embora só tivesse quinze anos, o percurso militante de Correia amadureceu e radicalizou-se fortemente com a prisão do pai em finais de 1936. Apesar de estar só 10 meses numa prisão do Porto, isso não obstou a que fizesse uma visita ao pai na situação de prisioneiro. A revolta tornou-se fluida perante a inexistência de justiça e liberdade em Portugal. Seu pai entrou no desemprego e as dificuldades econômicas e sociais da família de Manuel Francisco Correia e Albina da Silva Santos acentuaramse de forma inesperada. Para António Francisco Correia, as necessidades de desenvolver uma luta revolucionária contra o regime de Salazar acentuaram-se. Esta necessidade, no entanto, esbarrava na incapacidade histórica da CGT em liderar o movimento social operário português no sentido da revolução social. A demonstração inequívoca desse fato residia, por um lado, no efeito negativo da fascização dos sindicatos nacionais. Por outro, a derrota histórica da greve geral insurrecional de 18 de janeiro de 1934 deixou o proletariado português de joelhos face ao fascismo e ao desenvolvimento do capitalismo no espaço geográfico português. Perante esta dificuldade em lutar com proficiência contra o regime fascista de Salazar, a GGT e os anarquistas em geral envidaram esforços solidários no apoio à revolução social em Espanha. Nesse sentido, vários militantes anarquistas portugueses integraram as milícias da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) e outros militaram 20 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias na FAI (Federação Anarquista Ibérica). Por outro lado, outros colaboravam nos órgãos da imprensa anarquista espanhola e ainda participam nos sindicatos e cooperativas sob a égide da CNT. Em Portugal, foram criados dispositivos revolucionários de diferente tipos, sobretudo de auxílio a militantes revolucionários que fugiam do regime franquista e eram perseguidos pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) em Portugal. Importa sublinhar que algumas ações de solidariedade relativas à fuga de militantes anarquistas do teatro de guerra civil em Espanha através de Portugal foram organizadas pela FARP (Federação Anarquista da Região Portuguesa) e FAPE (Federação Anarquista de Portugueses Exilados). Não obstante essa solidariedade ativa da CGT para com a CNT e a FAI, em paralelo, verificava-se uma situação de impotência nas lutas a desenvolver contra o regime de Salazar. Essa realidade não somente se constatava na solidariedade com a revolução social na Espanha, mas sobretudo na incapacidade manifestada em destruir a solidariedade que Salazar mantinha com Franco. Para alguns militantes anarcossindicalistas da CGT esta situação tornou-se insuportável, razão pela qual tenham recorrido ao lançamento de um bomba no intuito de provocar a morte de Salazar. No fundo, para estes militantes, só com um método de ação violenta havia hipóteses de desmoronar o regime fascista de Salazar e, consequentemente, apoiar a revolução social na Espanha de modo eficaz. Em abono da verdade, diga-se que Emídio Santana, anarcossindicalista, foi um dos militantes mais ativos no atentado a Salazar, em 4 de julho de 1937. Embora em menor número, não podemos ignorar que esta ação teve a participação de militantes comunistas. verve, 25: 13-29, 2014 21 25 2014 Todo este contexto sócio-histórico foi vivido por António Francisco Correia com base numa multiplicidade de condicionantes na sua ação de militante anarquista, razão pela qual se remetesse à realização de leituras, reflexões e difusão de propaganda anarquista. A correspondência que manteve com o prisioneiro anarquista Luís Portela perdurou entre 1932 e 1937. Essa correspondência dános já uma pequena imagem da maturidade intelectual e revolucionária de António Francisco Correia, quando tinha dezesseis anos e cinco meses: “Pamp., Agosto de 1937 – Caros camaradas: Saúde e Anarquia! Depois de longo tempo sem resposta vossa, resolvi escrever-vos para saber o que se passa convosco e, ao mesmo tempo, transmitir-vos as nossas notícias. Eis as mais importantes: No dia 4 de julho, alguns camaradas atentaram contra a vida de Salazar, infelizmente sem resultado. O facínora salvou-se por pouco, mas salvou-se, para a nossa desgraça. A Polícia fareja por todos os lados, mas, felizmente, até hoje não logrou prender nenhum dos autores do atentado. Não se para aí, se para o Tarrafal, seguem sessenta marinheiros dos que escaparam da mortandade no Tejo. O Salazar preparava-se para mandar alguns navios-de-guerra portugueses para as costas de Espanha a fim de auxiliar o Franco a estabelecer um regime fascista no vizinho país. A marinhagem, em cujo seio sempre progrediram as nossas ideias, revoltouse, mas foi atraiçoada. Alguns navios foram metralhados no Tejo, e os marinheiros que tentaram salvar-se a nado eram metralhados dentro da água. Os poucos sobreviventes foram condenados a deportação. Os sabujos da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), como feras, farejam, por todos os lados, excitados pela ‘Rádio Fantasma’, que diariamente ameaça Salazar. 22 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias Nos dias 11, 12 e 13 de junho, realizou-se mais um congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), cujo principal objetivo consistia em apreciar os acontecimentos da Revolução Espanhola. Depois de longas apreciações e explicações dadas pelo secretariado da AIT e pelos delegados da CNT, foi aprovada uma definição de pontos-de-vista vasada nos seguintes termos: 1º) Os acontecimentos de Barcelona, desencadeados pelos moscovitários contra os anarquistas, vários dos quais foram traiçoeiramente fuzilados por aqueles, visavam o aniquilamento dos militantes da CNT e FAI, com o objetivo de estrangular a Revolução Social. 2º) Tal ação vinha sendo preparada pelos governos de Valência e Barcelona, na ausência dos militantes anarquistas, que colaboravam com esse governo, como conselheiros de guerra. Esta manobra era dirigida pelos bolchevistas às ordens de Moscou. 3º) Tal plano tem um caráter internacional e serve os interesses político-capitalistas anglo-americano-russos, interesses que a diplomacia dos respetivos países procura camuflar com o pacto de nãointervenção. 4º) A mediação, recusada pelo governo de Valência, tende a uma paz covarde, isto pelo lado dos governos, mas, quando a Revolução Espanhola, tem um alcance muito mais profundo. 5º) Em face disto, é dever do proletariado organizado desencadear a revolução mundial, que há de trazer aos povos uma nova vida social, baseada na paz e na justiça há tanto ansiadas. Esta, pois, deve ser a preocupação dominante e essencial da CNT. 6º) A admiração pelo valor invencível das massas operárias e camponesas da Espanha, e muito especialmente da CNT, permanece intacta, apesar de todas as vicissitudes duma luta desigual. 7º) A solidariedade do proletariado verve, 25: 13-29, 2014 23 25 2014 internacional à CNT continua inquebrantável, suceda o que suceder”3. Quando ainda tinha dezesseis anos, António Francisco Correia, após ter concluído a instrução primária, resolveu seguir a sua escolarização numa escola particular no Porto. A sua vontade de aprender era inabalável, e como não tinha dinheiro para custear os estudos, trabalhava de dia como servente de pedreiro e estudava de noite. O grau de escolarização que obteve era fundamental para a consecução dos objetivos que pretendia: aprofundar as bases de leitura e de escrita que envolviam a sua condiçãofunção de militante do anarcossindicalismo e, por outro lado, estimular a formação de competências profissionais que lhe permitissem trabalhar no setor da construção civil. Com o fim da Revolução Espanhola, em 1939, consumou-se a pretensão de realizar a revolução social identificada com a CNT e a FAI. Em sintonia com esta situação adversa, a CGT portuguesa estava totalmente desmantelada nos seus propósitos de luta contra o salazarismo. Nestas condições, os militantes anarcossindicalistas que ainda restavam limitavam-se a promover atos simbólicos de propaganda anarquista contra o regime de Salazar, ou então promoviam ações de solidariedade junto daqueles que estavam presos e manietados nas prisões do Tarrafal (Cabo Verde) e de Angra do Heroísmo (Açores). Em função do exposto, com a idade de dezoito anos, um mês e dezenove dias, António Francisco Correia, conjuntamente com Fernando Costa, Fernando Neves, Agostinho Gonçalves, Manuel Correia, Fernando do “Madalena”, Armindo Sarilho (primo de António Francisco Correia), Manuel Correia, Augusto Godinho, José 24 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias Augusto de Castro, Júlio Gonçalves Pereira e Joaquim Moreira da Silva comemoraram o 1º de Maio de 1939 de uma forma muito genuína. Para além de não comparecerem nos seus locais de trabalho, fizeram um circuito ciclista passando por Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo. Como era proibido qualquer tipo de manifestação simbólica correlacionada como o acontecimentos histórico de 1886 em Chicago, comemorar o 1º de Maio deste modo foi a única maneira destes militantes anarcossindicalistas expressarem a sua revolta contra a ditadura salazarista e demonstrarem que estavam vivos.4 A amizade entre estes companheiros de António Francisco Correia era muito grande, ao ponto de participarem em várias atividades culturais em grupos de teatro e bibliotecas. Entre outras, um dos exemplos dessas atividades foi o estudo do esperanto. Correia foi um grande entusiasta dessa língua, sendo acompanhado por Fernando Costa, Abel Silva e Fernando Neves. Este último também emigrou para o Brasil e foi um companheiro que esteve sempre, até a sua morte, ao lado de Correia. A universalidade comunicacional que se pretendia com o desenvolvimento do esperanto, na altura, tinha uma importância vital para as aspirações revolucionárias do proletariado mundial. No caso específico da integração de Correia no mundo teatral amador, isso ocorre quando tinha dezoito anos, onze meses e onze dias. Para o efeito, inscreve-se, pela primeira vez, em 01 de março de 1940, no Grupo Dramático Flor da Mocidade, sediado em Santa Cruz, município de Matosinhos. Para além de participar nas atividades teatrais, teve também a possibilidade de conhecer Ondina dos Anjos da Costa Santos, com quem casou em agosto de verve, 25: 13-29, 2014 25 25 2014 1941. Posteriormente, ingressou no Grupo de Dramático Alegres da Perafita, tendo até assumido funções de vicepresidente da direção. No sentido de estimular hábitos de leitura, neste grupo de teatro, organizou concursos anuais, com prêmios para quem lêsse mais, ao mesmo que se realizavam piqueniques e excursões para localidades mais próximas.5 Ao perfazer vinte e um anos e sete meses, António Francisco Correia ingressou no serviço militar obrigatório. Primeiro fez serviço militar no Regimento de Engenharia do Porto. Em seguida, foi destacado para a Escola Prática de Engenharia, sediada em Tancos. Foi uma estadia nas casernas militares que perdurou entre outubro de 1942 e novembro de 1943. Nesse período, entretanto, nasceu Oscar Zola, o seu primeiro filho, em 26 de agosto de 1943. Para além da obrigação imperativa do regime de Salazar para que todos os homens cumprissem o serviço militar, o fato de Correia ter aceito as condições da disciplina militar em Portugal permitiu-lhe subtrair-se a uma eventual ida para as colônias, como era o caso na altura em relação a Angola, Moçambique, Madeira, Açores, Timor e Cabo Verde, etc. Evidentemente que essa exigência de Salazar do cumprimento do serviço militar nas colônias devia-se ao medo de as perder no teatro da 2ª Guerra Mundial. Durante os 10 meses que fez serviço militar, começou como soldado, depois foi promovido a cabo e quando saiu era sargento. As consequências da vivência de António Francisco Correia nas casernas militares permitiram-lhe assenhorear-se de uma série de conhecimentos e informações que mais tarde revelar-se-ão essenciais para a sua vida profissional, 26 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias sobretudo no que concerne à aprendizagem da matemática, desenho e alguns aspetos técnicos da engenheira civil: “Eu tinha um primo que era mais velho quinze anos de que eu que me sugeriu que estudasse no seio do exército. Prestei serviço em engenharia. Aprendi as técnicas e disciplinas de engenharia civil que estavam ligadas à construção civil, como eram os casos da matemática, desenho, etc. Quanto ao problema da disciplina que reinava no exército, eu aproveitava o tempo o melhor possível para estudar, porque não podia fugir. Foi assim que cheguei a sargento. Quando vim embora do exército tinha 23 anos. Fui para a Escola Prática de Engenharia e prestei serviço militar. Toda essa gente eram engenheiros. Esses meus primos foram para Espanha porque não queriam servir a guerra. Dentro do exército, e pese embora a disciplina militar que ali existia, eu teria que aproveitar o melhor possível. Isto foi muito importante para a minha formação profissional e serviu para colmatar os problemas financeiros da minha família, já que o meu pai depois de sair da prisão foi despedido”6. Logo após ter deixado o serviço militar, Correia fez-se à vida e, como é lógico, tentou singrar como trabalhador da construção civil. Como tínhamos escrito antes, sua evolução educacional permitiu-lhe evoluir para uma situação que não esperava antes de ter feito o serviço militar: “Primeiro criei uma firma de construção civil e passei a fazer construções como empreiteiro. Um andar, dois andares. Quando estive na Escola Prática de Engenharia fiz muitas amizades com engenheiros militares do exército. Estes ajudaram-me muito na resolução de problemas técnicos e burocráticos na minha vida inicial verve, 25: 13-29, 2014 27 25 2014 de empreiteiro. Fiz obras nos hospitais militares e edifícios públicos”7. Até a sua ida para o Brasil, em 1951, limitou-se a exercer a sua atividade profissional, nunca esquecendo os pressupostos da luta contra a ditadura de Salazar. Sendo difícil qualquer tipo de solidariedade e luta contra o regime no quadro da ação individual e coletiva, Correia canalizou os seus esforços na solidariedade com os presos anarcossindicalistas, destacando-se todo o seu esforço junto de Luis Portela até finais da década de 1940. Importa, por fim, referir a sua participação em ações nas conferências dos professores Abel Salazar e Agostinho da Silva, tendo salvo muitos livros deste último das garras da PIDE. Notas Este artigo, assim como o que foi publicado na revista verve nº 24, 2013, “Roberto das Neves: um cidadão do Mundo”, é resultado de minha participação no Projeto MOSCA – Movimento Social Crítico e Alternativo – Memórias e Referências, projeto de investigação e desenvolvimento tecnológico financiado pela FCT. [Esta é a 1ª parte do artigo completo. A 2ª parte será publicada em verve nº 26 (N.E.)]. 1 Luís Portela e Edgar Rodrigues. Na Inquisição do Salazar. Rio de Janeiro, Editora Germinal, 1957, pp. 51-52. 2 3 Idem, pp. 208-209. Edgar Rodrigues. Lembranças Incompletas. Guarujá (SP), Editora Opúsculo Libertário, 2007, pp. 24-25. 5 Idem, pp. 25-26. 6 Entrevista de Edgar Rodrigues ao autor em 12 de março de 2007. Rio de Janeiro, p. 1. 7 Idem. 4 28 verve, 25: 13-29, 2014 verve Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias Resumo Primeira parte da biografia política do pesquisador, arquivista e historiador autodidata e anarquista Edgar Rodrigues. Relata sua vida e militância em fuga da ditadura de Salazar para o Brasil e, após uma década no Rio de Janeiro, o envolvimento com o movimento anarquista e suas ações de resistência à ditadura civil-militar de 1964 no Brasil. Palavras-chave: anarquismo no Brasil; arquivos operários; resistência a ditaduras Abstract The article is the first part of the political biography of the anarchist teacher, archivist and autodidact historian Edgar Rodrigues. It recounts his life and militancy while escaping Salazar’s dictatorship and, after ten years in Rio de Janeiro, his involvement with the local anarchist movement and his resistance acts against the 1964’s civilian-military dictatorship. Keywords: anarchism in Brazil; workers archives; resistances against dictatorships. Edgar Rodrigues: an anarchist between two countries [first part], José Maria Carvalho Ferreira. Recebido em 15 de fevereiro de 2014. Confirmado para publicação em 05 de abril de 2014. verve, 25: 13-29, 2014 29 verve cinquenta anos depois... cecília maria bouças coimbra A todos aqueles que não estão mais entre nós para contar esta e outras histórias. “Lembra daquele tempo Que sentir era A forma mais sábia de saber E a gente nem sabia?” (Alice Ruiz) Trazer um tempo vivido intensa e ativamente, de modo um tanto frenético, pois tudo nos parecia urgente de ser realizado, sem cair numa espécie de saudosismo conservador, é um desafio. Desafio que aceito correr ao trazer fragmentos de algumas histórias que não são somente minhas, mas de uma geração que generosamente sonhou, ousou, correu riscos e, com a peste, foi marcada, massacrada, exterminada. Uma geração que, nos anos 1960 e 1970, apaixonadamente marcou suas vidas, não Cecília Maria Bouças Coimbra é psicóloga, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, Pós Doutora em Ciência Política pela USP, Fundadora e atual vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, e ex-Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia; autora de Os guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. Rio de Janeiro, Oficina do autor, 1995. Contato: [email protected]. verve, 25: 33-46, 2014 33 25 2014 pela mesmice, pelo instituído, pela naturalização, mas pelo estranhamento, pelo desassossego, pela afirmação e criação de novos espaços. Histórias que se compõem de muitas outras histórias, de muitas outras memórias: dos que sobreviveram, dos que sucumbiram e, por que não, dos que, muitas vezes aterrorizados, assistiam e/ou passavam ao largo dessas mesmas histórias. Trazer esses tempos de militância − inicialmente, de maneira um tanto eufórica e mesmo despreocupada, pois, sem dúvida, alegremente queríamos mudar o mundo e, posteriormente, de modo sofrido e dolorido, quando o terror se implantou e recrudesceu o massacre, o extermínio – é caminhar em um fio de navalha, em uma “corda bamba”. É, sem dúvida, navegar por outras histórias, diferentes da que nos tem sido apresentada e afirmada como única e verdadeira. Histórias essas que atravessam e constituem todos nós, mesmo os que não tiveram com aqueles tempos maiores implicações. Histórias que continuam presentes em nosso cotidiano e cujas práticas cada vez mais se fortalecem através dos extermínios, da tortura, dos desaparecimentos... Toda uma geração de jovens estudantes e intelectuais viveu intensamente o alegre e descontraído início da década de 1960, continuação do que ficou conhecido como os “anos dourados” – os anos 1950, da Bossa Nova, do bem-humorado e sorridente presidente JK1. Aqueles tempos caracterizaram-se pela implementação de projetos das chamadas reformas de base e de desenvolvimento nacional, frente ao reordenamento monopolista do capitalismo internacional, o que gerou uma política populista dos governos daquele período2. 34 verve, 25: 33-46, 2014 verve Cinquenta anos depois... Foi naquele quadro que se fortaleceram diferentes movimentos sociais que se voltaram para a “conscientização popular”. Sem dúvida, aqueles anos estiveram marcados pelos debates em torno do “engajamento” e da “eficácia revolucionária”, onde a tônica era a formação de uma “vanguarda” e seu trabalho de “conscientizar as massas” para que pudessem participar do “processo revolucionário”. A efervescência política, o intenso clima de mobilização e os avanços na modernização, industrialização e urbanização que configuram aquele período traziam, necessariamente, as preocupações com a “participação popular”3. Ressoavam muito próximos de nós os ecos da vitoriosa Revolução Cubana, que passou a embalar toda uma juventude e grande parte da intelectualidade latinoamericana, como o sonho que poderia se tornar realidade. No Brasil, apesar de toda uma política populista, os grupos dominantes, em sua maioria aliados aos capitais estrangeiros, mostravam-se temerosos com os rumos desta política. Daí as pressões que surgiam em diferentes áreas, pois muitos desses movimentos eram alimentados pelo próprio governo populista/desenvolvimentista de João Goulart. Foi a época do Centro Popular de Cultura da UNE, dos Cadernos do Povo Brasileiro, de filmes como Cinco Vezes Favela e do então inacabado Cabra Marcado para Morrer. A finalidade era “educar o povão” através da arte. No nordeste, Francisco Julião e as Ligas Camponesas incendiavam com sonhos de liberdade e de reforma agrária os pequenos camponeses da Zona da Mata. Diferentes experiências com alfabetização de adultos eram realizadas, desde Com Pés Descalços Também se Aprende a Ler, no Rio Grande do verve, 25: 33-46, 2014 35 25 2014 Norte, passando pelo Movimento de Cultura Popular, em Pernambuco até o Programa Nacional de Alfabetização de Paulo Freire, em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Tratava-se, sem dúvida, da produção de territórios singulares, ainda marcados, muitos deles, pela sizudez, rigidez e stalinismo vigentes no período, e que foram radicalizados pela geração de 1968. Afirmavam-se novos valores e padrões de comportamento, novos modos de estar no mundo. A participação da mulher passava a ser valorizada, não somente em sua profissionalização, mas principalmente em seu engajamento político, apesar de todos os limites que ainda eram impostos pelos companheiros de militância. O casamento deixava de ser a única perspectiva considerada honrada de independência familiar. Explorávamos novos caminhos onde se tornava fundamental a satisfação pessoal nos mais diferentes relacionamentos, desde a sexualidade até o trabalho. Este deixava de ser mera ocupação, por vezes provisória, para tornar-se via legítima de realização e afirmação da própria independência. A reprodução tornavase uma opção nos debates travados em torno do direito ao aborto e ao uso da pílula anticoncepcional. “A sexualidade expandia-se para além dos limites do casamento”4 e a monogamia era questionada... O tabu da virgindade caía por terra; as relações entre homens e mulheres eram pensadas de forma um pouco mais igualitária. “Queríamos mudar o mundo, era a nossa questão básica; mais: tínhamos a certeza de que isso ia acontecer”5. À tardinha do dia 31 de março de 1964, iniciávamos um novo curso para formar novas turmas de alfabetizadores dentro do Programa Nacional de Alfabetização (PNA)6, quando soubemos que um golpe de Estado estaria a caminho... Estávamos no Salão Nobre do Instituto 36 verve, 25: 33-46, 2014 verve Cinquenta anos depois... Benjamim Constant, próximo à Urca, em um ato que abria o referido curso... Saímos de lá e fomos em grandes grupos para a UNE, na Praia do Flamengo... Por toda noite e madrugada, seu prédio esteve ocupado por centenas de estudantes que avidamente acompanhavam o desdobramento dos acontecimentos e iluminavam a praia do Flamengo com inflamados discursos... “Não passarão”, afirmávamos em alto e bom som, dispostos a resistir... Naquela madrugada, foi passada de “boca em boca” a convocação para a manhã seguinte: TODOS AO CACO. No início de tarde de 01 de abril de 1964, cerca de 200 estudantes universitários ocuparam o prédio do CACO (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira) da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, para resistir ao golpe empresarial-militar que se efetivava. A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), contrária ao golpe que se avizinhava, decretou naquele 01 de abril uma greve geral para todo o país. Lembro que muitos de nós, para chegarmos ao CACO, tivemos que andar muito ou conseguir carona na boleia dos poucos caminhões que trafegavam no centro da cidade do Rio de Janeiro naquele dia. Dia que seria para todos nós inesquecível e que nos marcaria por toda a vida... Jovens universitários de diferentes cursos, de diferentes tendências políticas, de diferentes segmentos sociais... Eram estudantes de Direito, Engenharia, Medicina, Economia, Ciências Sociais, História, Geografia, História verve, 25: 33-46, 2014 37 25 2014 Natural (Biologia), Filosofia, Matemática, Química, Física, Pedagogia, Estatística, Astronomia... Fundamentalmente estavam presentes os comunistas (PCB e PCdoB), os católicos da Ação Popular (AP) e muitos independentes, os “simpatizantes”, como os denominávamos. Dentre os estudantes, sabíamos de duas jovens grávidas. As armas que nos foram prometidas, no dia anterior, pelos militares contrários ao golpe, nunca chegaram. Nós, majoritariamente, até aquele momento, sequer havíamos segurado uma arma, e fomos encurralados naquele prédio por vários grupos paramilitares como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e a Polícia Militar da Guanabara... Não sabíamos do que se tratava quando as rajadas de metralhadora começaram a estilhaçar as vidraças do prédio centenário. As bombas de gás lacrimogêneo eram atiradas às dezenas... Ali, naquele momento, percebemos que estávamos cercados por grupos que apoiavam o golpe civil-militar recém-vitorioso. Encolhidos no chão, sem comida, nos abaixávamos e víamos pelas frestas das janelas carros incendiados e grupos que resistiam, gritando palavras de ordem contrárias ao golpe e à queda do governo João Goulart. Muitas horas se passaram... A porta de entrada da Faculdade foi bloqueada com vários de seus móveis pesados... Nuvens de fumaça branca saíam pelas janelas metralhadas do velho prédio... Trazíamos a triste e traumática recordação da precoce morte do companheiro do curso de Filosofia, Antônio Carlos Silveira Alves, morto por um acidente de arma, naquela tarde de 01 de abril. Levado para o Hospital Souza 38 verve, 25: 33-46, 2014 verve Cinquenta anos depois... Aguiar, morreu naquele mesmo dia por hemorragia interna. Era a primeira morte que assistíamos... Depois viriam outras... Durante muitos e muitos anos, o fantasma da morte de Antônio Carlos nos acompanhou, nos assombrou... A tal ponto de não nos referirmos ao acidente. Anoitecia e as rajadas constantes de metralhadoras continuavam fazendo voar vidraças e pedaços de madeira das janelas. As bombas de gás lacrimogêneo tornavamse cada vez mais intensas e numerosas... Alguns de nós procuravam refúgio nos banheiros, onde o cheiro de urina parecia amenizar o efeito do gás lacrimogêneo, outros procuravam encontrar saída pelo telhado do andar de cima da Faculdade; tentava-se retirar as duas jovens grávidas. De repente, cessaram as rajadas e as bombas... Ouvimos a voz de um homem que batia à porta e nos informava: “Sou oficial do Exército e vocês estão cercados por grupos golpistas. Quero entrar e conversar. Garanto a integridade física de todos”. Abrimos a porta e um jovem Capitão do Exército nos explicou a situação. O golpe estava vitorioso e ele garantiria a nossa saída dali. Nos indicou os caminhos mais seguros a serem seguidos... Muitos anos depois soubemos de quem se tratava: Ivan Cavalcante Proença que, ao saber o que ocorria no CACO, onde a ordem era atirar para matar, foi ao local, e, após vários disparos contra os golpistas, permitiu nossa saída... Após isto, foi preso e expulso do Exército... Ivan Cavalcante Proença, capitão do Regimento Presidencial, da guarda pessoal de João Goulart, estava no comando dos tanques que vigiavam a Casa da Moeda (hoje Arquivo Nacional), bem próxima ao Largo do CACO. Encontrava-se à noitinha com alguns de seus homens no verve, 25: 33-46, 2014 39 25 2014 Palácio Laranjeiras onde assistia de longe às comemorações dos golpistas civis com o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Ali, foi avisado por dois sargentos e um cabo de seu regimento que vários estudantes estavam encurralados no prédio da Faculdade de Direito... Para lá se dirigiu. Após cercar o Largo do CACO com seus tanques e render os golpistas que tinham suas armas voltadas para a porta do prédio, tomou a precaução de esperar que todos se retirassem. Fizeram-no em vários carros de passeio e vans, segundo depoimento dado, anos depois, pelo próprio Ivan. Após isto, permitiu nossa saída... Com a vitória do golpe, Ivan logo recebeu ordens para se apresentar ao Quartel General. Preso, foi levado para a Fortaleza de Santa Cruz, e depois para o Forte de Imbuí, ambos em Niterói. Cassado e perseguido por vinte anos, até hoje continua sem uma anistia ampla, geral e irrestrita, como todos os brasileiros que foram perseguidos pelo terrorismo de Estado então implantado... Saímos em pequenos grupos e vimos diante da Central do Brasil e do Ministério da Guerra vários carros e viaturas incendiados, alguns ainda em chamas. Sem qualquer transporte, caminhamos pelas ruas desertas do centro da cidade. Chegando ao Flamengo, passamos pela UNE em chamas... Paramos alguns minutos em lágrimas, assombrados com tamanha violência... Violência que, nos anos seguintes, marcaria nossas vidas. Nossos sonhos ingênuos estavam começando a ser derrubados. Derrubados, mas não destruídos. Muitos que estavam naquele 01 de abril no CACO seguiram diferentes caminhos... A maioria continua na resistência das mais diversas maneiras... 40 verve, 25: 33-46, 2014 verve Cinquenta anos depois... Muitos que fundaram o Grupo Tortura Nunca Mais/ RJ, e ainda hoje lá se encontram, estavam no CACO naquele dia... Muitos entraram para a clandestinidade... Alguns se exilaram... Muitos foram presos... Outros foram mortos e desaparecidos. Passados 50 anos, alguns ainda permanecem na luta para que estas e muitas outras histórias possam ser conhecidas por todos. O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, criado há 29 anos, em abril de 1985, permanece apontando cotidianamente os acordos que vêm sendo feitos pelos diferentes governos civis pós-ditadura no sentido de dar continuidade à política de acobertamento, silenciamento e esquecimento inaugurada pelo terrorismo de Estado que assolou nosso país (1964-1985). Desde a sanção da Lei de Anistia, em 1979, ainda em plena vigência da ditadura, já questionávamos a interpretação hegemônica que a ela foi dada. Sob o nome de “crimes conexos”, todos aqueles que cometeram atos de terror em nome do Estado (sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de restos mortais) – segundo os juristas da ditadura − estariam anistiados, por terem praticado crimes correlatos aos cometidos pelos opositores políticos. Sabemos que, desde a Anistia até os dias de hoje, acordos foram feitos entre as forças político-econômicas que alimentaram, respaldaram e apoiaram aquele regime de terror e os diferentes governos civis que se sucederam após 1985. O Brasil, de todos os países latino-americanos que passaram por ditaduras nos anos de 1960 e 1970, é o mais verve, 25: 33-46, 2014 41 25 2014 atrasado no chamado processo de reparação7. Pela Lei 9.140/95, do governo de Fernando Henrique Cardoso, apenas se fez a “reparação econômica”, não se investigando e publicizando os atos de terror e nem responsabilizando qualquer agente do Estado ditatorial. Ou seja, tais “reparações” tentaram se transformar em um “cala-boca”, em uma proposta de esquecimento e silenciamento. Neste cenário de acordos e concessões se insere a criação, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade e de várias outras comissões estaduais. É necessário lembrar que, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou o Estado brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram do desaparecimento de mais de 70 opositores políticos na repressão à Guerrilha do Araguaia (1966-1974).8 Estendeu esta sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos, afirmando que a interpretação oficial dada à Lei da Anistia não é empecilho para tais atos. Neste contexto, foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência urgentíssima, a Comissão Nacional da Verdade, bastante limitada e perversa.9 Passados 50 anos do golpe empresarial-militar, queremos contar muitas outras histórias ainda ocultas e silenciadas, cujos efeitos sentimos em nosso cotidiano. Há que lembrar que os grandes grupos econômicos que ativamente prepararam, fomentaram e participaram do golpe de 1964, que respaldaram e financiaram todo o aparato repressivo da ditadura, continuam presentes no cenário político brasileiro. Com o golpe, novos modos de gerir o capital passam a participar do poder do Estado; grandes grupos econômicos 42 verve, 25: 33-46, 2014 verve Cinquenta anos depois... internacionais, e mesmo nacionais, fortalecem-se por toda a América Latina. Apesar desta poderosa máquina capitalista acelerar-se cada vez mais, continuamos – mesmo que que em pequenas ilhas – na resistência... Não por acaso, os crimes cometidos pelo terrorismo de Estado permanecem pouco conhecidos e os documentos que comprovam essas atrocidades continuam em segredo, assim como os testemunhos e as imagens de muitos daqueles que cometeram e participaram de tais crimes. A mordaça, a censura da ditadura continua em parte... Apesar do poderio capitalístico e de todos os acordos feitos, continuamos lutando e pressionando para que se implemente uma Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça que abra e divulgue todos os arquivos da ditadura empresarial-militar; que investigue, esclareça, torne público e responsabilize os crimes cometidos em nome da “segurança nacional”. Há que não esquecer os que ainda hoje continuam ocorrendo em nome da “defesa e segurança da sociedade e de seus cidadãos de bem”10. Parece que foi ontem... Esta e muitas outras histórias continuam em nós marcadas a ferro e fogo. Fazem parte de nossas vidas... Parece que aconteceram ontem, hoje, agora... Envolvemo-nos, desde então, direta e/ou indiretamente na luta contra a ditadura. Foi, sem dúvida, a experiência mais visceral de toda a nossa vida e que nos marcou para sempre... Nós, que atuamos na vanguarda ou na retaguarda, não importa, naquele intenso e terrível período, derrubamos muitos tabus, vivemos visceralmente a presença assustadora da morte, a ousadia de desafiar e enfrentar um Estado de terror, a coragem de sonhar e querer transformar esse sonho em realidade. Acreditávaverve, 25: 33-46, 2014 43 25 2014 mos. Sim, queríamos outro mundo, outras relações, outras possibilidades... Queremos ainda outros mundos hoje! “É preciso não ter medo; é preciso ter a coragem de dizer”, nos alertava Carlos Marighella. Há muito ainda para dizer, há muito ainda para contar. Há que não entrar na chantagem do “possível” em nome de uma dita governabilidade democrática representada, respaldada e apoiada pelos mesmos grupos econômicos que ocuparam o poder de Estado em 1964. Notas 1 Juscelino Kubischeck governou de 1956 a 1961. 2 Jânio Quadros governou em 1961 e João Goulart, de 1961 a 1964. Heloísa Buarque de Hollanda. Impressões de Viagem. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1978. 3 Tania Coelho dos Santos. “A mulher Liberada e a Difusão da Psicanálise” in Sérvulo Augusto Figueira (org.). O Efeito Psi. Rio de Janeiro, Campus, 1988, pp. 103-120. 4 5 Luiz Carlos Maciel. Anos 60. Porto Alegre, L&PM, 1987, p. 7. O PNA era um programa de alfabetização vinculado ao Ministério da Educação criado em 1961, no governo João Goulart. Após ter sido experimentado em Pernambuco, foi trazido para o Rio de Janeiro, onde deuse prioridade às regiões mais pobres do estado, como a Baixada Fluminense. Neste Programa, disputavam a hegemonia política o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Ação Popular (AP), corrente cristã muito presente naquele momento no movimento estudantil, tal como ocorria na UNE. 6 Sobre o conceito de Reparação, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2005, que aponta para a investigação, averiguação, publicização e responsabilização dos crimes cometidos e para medidas que possam impedir e, mesmo, garantir a não repetição de tais crimes perpetrados pelo Estado, ver: Cecília Coimbra. “Reparação e Memória” in Cadernos AEL: Anistia e Direitos Humanos. Campinas, UNICAMP/IFCH/AEL, v. 13, n. 24/25, 2008, pp. 13-38. 7 44 verve, 25: 33-46, 2014 verve Cinquenta anos depois... O Grupo Tortura/RJ, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo e o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) foram os peticionários desta ação. 8 Para uma análise mais detalhada sobre os limites desta Comissão Nacional e das estaduais, ver: Cecília Coimbra. “Comissão Nacional da Verdade: acordos, limites e enfrentamentos” in Alexandra Maria Campelo Ximendes, Carolina dos Reis e Rafael Wolski de Oliveira (orgs.). Entre Garantia de Direitos e Práticas Libertárias. Porto Alegre, Conselho Regional de Psicologia, 2013, pp. 35-42. 9 Importante apenas levantar, pois não é tema deste pequeno artigo, as medidas repressivas que vêm sendo massivamente tomadas pelos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro com o apoio do governo federal no sentido de criminalizar e reprimir com mais competência os “vândalos” e “baderneiros”, tendo em vista as grandes manifestações de junho de 2013 e os investimentos internacionais ligados à FIFA, ao banco Itaú e à AMBEV, dentre outros. O AI-5 da Copa, como está sendo conhecido, vem se implementando no Rio de Janeiro. Exército e Força Nacional farão o controle da cidade do Rio, considerada “área de segurança nacional” a partir de maio de 2014. Já em 24 de março de 2014, às vésperas dos 50 anos do golpe, acordo entre os governos do estado e o federal decide que, até 10 de abril, as tropas militares do Exército e da Força Nacional, cerca de 4000 homens, desembarcarão “no conjunto de 15 favelas, onde vivem quase 130 mil pessoas”. Cf. “Beltrame confirma que Exército ocupará o Complexo da Maré” in O Globo. Rio de Janeiro, 24/03/2014. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/beltrame-confirma-que-exercito-ocupara-complexo-da-mare-11966328 (acesso em: 24/03/2014). 10 verve, 25: 33-46, 2014 45 25 2014 Resumo Análise-depoimento acerca dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964. Afastado do saudosismo conservador, o artigo retoma eventos do dia do golpe e a tomada do CACO pelos militares. Questiona a continuidade da censura e da tortura mesmo na democracia. Alerta para a retomada necessária dessa memória, desviando-se dos acordos e concessões da Comissão Nacional da Verdade e suas correlatas estaduais. Afirma a continuidade do vigor político dos que enfrentaram o golpe para construção de outros mundos sem cair da chantagem do possível. Palavras-chave: resistências, ditadura civil-militar, memória. Abstract The article is an analysis-testimony of the 50th anniversary of the civilian-military coup d’état of 1964. Moving apart from the conservative nostalgia, the text goes through events which took place in the coup’s day and the occupation of the CACO by the military. The article problematizes the continuity of censorship and torture even in a democracy. It also alerts to the necessity of not conceding to negotiations such as the ones hold by the National and State Truth Commissions. At last, the article stands for the political vitality of who fought the dictatorship aiming the construction of new worlds without falling in the blackmailing of the possible choices. Keywords: resistances, civil-military dictatorship, memory. Fifty years later..., Cecília Maria Bouças Coimbra. Recebido em 05 de abril de 2014. Confirmado para publicação em 20 de abril de 2014. 46 verve, 25: 33-46, 2014 verve caracara cara de cavalo beatriz scigliano carneiro Uma caixa retangular presa na parede encontra-se com a frente aberta. Ao fundo, a imagem não muito nítida de um rosto em tamanho natural com uma luminosidade de espelho. Negro. Mulato. Pardo. Magro, cabelo cortado rente ao crânio. Seu olhar não nos encontra. Os olhos estão apenas abertos, sem foco. A luz nos atrai para aquela efígie. Convocação para encarar. Cara a Cara. No meio desse encontro, a caixa, que isola a figura e nos coloca frente a frente à cara tal qual fosse espelho. Trata-se do Bólide 56, Bólide-Caixa 24 CaraCara Cara de Cavalo, realizado por Hélio Oiticica em 1968, com a foto da carteira de identidade de Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, executado pela polícia carioca em 3 de outubro de 1964. qual a nova cara ___________de cavalo? assoalho ou o baralho da vida pútrido odor1 Beatriz Scigliano Carneiro é doutora em Ciências Sociais. Pesquisadora no Nu-Sol e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Autora de Relâmpagos com claror: Hélio Oiticica e Lygia Clark: vida como arte. São Paulo, Imaginário/FAPESP, 2004. Contato: [email protected]. verve, 25: 47-71, 2014 47 25 2014 Hélio Oiticica fez essa pergunta quatro anos depois da morte do amigo, quando realizou o Bólide CaraCara. Meio século depois, encarar o rosto de Cara de Cavalo. Sua morte não foi uma execução discreta, mas um acerto de contas espetacular que se seguiu a uma das maiores caçadas humanas da polícia do Rio de Janeiro. “CARA DE CAVALO CRIVADO DE BALAS – MAIS DE CEM TIROS: FUZILADO PELA MADRUGADA EM CABO FRIO”2. “CARA DE CAVALO CAIU COM 120 PERFURAÇÕES”3. “CARA DE CAVALO MORTO COM 52 TIROS”4. “CARA DE CAVALO MORREU ONDE VIVEU BRIGITTE5”6. Se a metade esquerda da efígie de Manoel Moreira for coberta, aparece uma expressão sombria e triste. Se esse lado sombrio for tapado, surge uma face quase desbotada de tão clara, ensaiando um sorriso. “Conheci Cara de Cavalo pessoalmente e posso dizer que ele era meu amigo”7 – escreveu Hélio Oiticica ao apresentar o Bólide de homenagem ao amigo, intitulado B33 BólideCaixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo Poema Caixa 2, de 19668 –, “mas para a sociedade ele era um inimigo público nº 1, procurado por um crime audacioso e assaltos. O que me deixava perplexo era o contraste entre o que eu conhecia dele como amigo, alguém com quem eu conversava no contexto cotidiano tal como fazemos com qualquer pessoa, e a imagem feita pela sociedade, ou a maneira como seu comportamento atuava na sociedade e em todo mundo mais. Você nunca pode pressupor o que será a ‘atuação’ de uma pessoa na vida social: existe uma diferença de níveis entre sua maneira de ser consigo mesmo e da maneira como ser social. [...] este poema-protesto [Aqui está e ficará. Contemplai o seu silêncio heroico] para Cara de Cavalo reflete um importante 48 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo momento ético, decisivo para mim, pois que reflete uma revolta individual contra cada tipo de condicionamento social. Em outras palavras: violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como de opressão”9. “Quem é o assassino? Manoel Moreira, que usa também o nome de Walter do Sacramento de Castro, com vários homicídios e assaltos [...] Cerca de três mil policiais fortemente armados estão empreendendo gigantesca diligência para prender o marginal Manoel Moreira que às 23 horas, ao receber voz de prisão, matou com três balaços de um 45 o detetive Milton LeCocq de Oliveira. Todos os morros da cidade estão cercados [...]. ‘Acabou a vida boa. Eles querem guerra. Vai entrar Cara de Cavalo, Murilão, Miguelzinho, Paraibinha e todos esses vândalos. Vamos acabar com eles a bala. É a lei do cão’”10. “CARA DE CAVALO MATA O DETETIVE LECOCQ AO SER PERSEGUIDO EM VILA ISABEL”11. “MILTON LECOCQ BOM E CORAJOSO ERA O MAIOR CAÇADOR DE BANDIDOS”12. Milton LeCocq recebeu uma denúncia de que Cara de Cavalo iria extorquir bicheiros em Vila Isabel, aos quais o detetive oferecia proteção. Manoel Moreira já estava jurado de morte por essa ala da contravenção, pois defendia interesses de outros grupos. “BICHEIROS OFERECEM RECOMPENSA PELA MORTE DE CARA DE CAVALO”13. LeCocq passou a persegui-lo em uma noite de quintafeira acompanhado de outros dois parceiros. Na fuga, de dentro de um taxi, Cara de Cavalo atirou a esmo na direção do Fusca dos policiais. Esse gesto pôs o selo da morte em sua efígie. verve, 25: 47-71, 2014 49 25 2014 assoalho ou o baralho da vida Apesar do apelido pejorativo para quem possui o rosto comprido e largo, aquele rosto nem se assemelha a um cavalo. Entretanto, a alcunha pegou, alcunha que se repetia para alguns outros “marginais” com uma cara comprida. O apelido “fazia” o delinquente na imprensa policial. O nome verdadeiro pouco importava, a alcunha ao partir de alguma característica criava uma intimidade junto ao público dos meios de comunicação, predominantemente jornais e rádio. “Mineirinho”, “Paraibinha”, “Micuçu”, “Buck Jones”, “Bidu”, “Miguelzinho”, “Caveirinha”, “Rei dos Bodes”. O termo Cara de Cavalo apelidava várias pessoas que nas notícias apareciam como uma só, sob a mesma alcunha. Ao menos três nomes receberam o mesmo apelido de Manoel Moreira: Ivan Timóteo14; Gerson Andrade Duque15 e Jorge Gama da Silva16. Outros nem eram identificados, ficando a alcunha. Dentre estes sem nome, um apareceu como integrante do “Bando de Laerte”, em 1957, e outro como integrante do “Bando do Mineirinho”, inimigo público nº 1 de 1961. “Cadeia é prêmio para o pistoleiro louco. Não estou caçando Mineirinho para prender. Cadeia não adianta para bandidos dessa espécie. Mineirinho terá o mesmo fim de Cara de Cavalo, Carioquinha e China Maconheiro, será fuzilado!” 17 – disse ao Última Hora (UH) o delegado Werther Losso de Nilópolis, conhecido como o “limpador de cidades” e que se empenhava a fundo na caçada ao pistoleiro. Nas notícias da perseguição policial a Manoel Moreira, os crimes atribuídos a todos os Caras de Cavalo que circularam 50 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo na imprensa naqueles últimos anos se condensaram em apenas um corpo, executado na noite de 3 de outubro de 1964. “SÃO ATRIBUIDOS A CARA DE CAVALO MAIS DE 15 CRIMES [...] e 400 prisões já foram feitas, a maioria das quais de indivíduos sem ocupação que estão sendo autuados por vadiagem [...] A disposição dos policiais, além de capturar o assassino de LeCocq é fazer uma limpeza na cidade livrando-a de marginais que agem nos subúrbios”18. “ADVOGADO DECLARA: CARA DE CAVALO NADA DEVIA À JUSTIÇA ANTES DE MATAR LE COQ”19. No decorrer da caçada, a família de Manoel Moreira procurou um advogado que encontrou seis homônimos sentenciados e nenhum deles seria o procurado. O número de registro prisional que apareceu em jornais não era o dele, e a ficha criminal não foi encontrada “[...] um bandido vulgar que em 1958 foi preso por um pequeno furto numa feira de subúrbio e internado no SAM [Serviço de Assistência aos Menores] de onde mais tarde saiu não mais como Manoel Moreira, mas como Cara de Cavalo”20. Nem a efígie que olhamos através da caixa aberta ilustrou todas as faces desse corpo procurado. “GUERRA AO CRIME POR LECOCQ: POLICIA NO NECROTERIO VIGIA A CHEGADA DE CARA DE CAVALO”21. Na reportagem, a foto que mostra o rosto do Cara de Cavalo procurado por ter matado LeCocq não se parece com a efígie de seu documento de identidade. Pouco importava rosto ou nome, desde que o corpo crivado de balas fosse o corpo a cuja mão atribui-se o tiro fatal. verve, 25: 47-71, 2014 51 25 2014 Mas, teria sido ele mesmo, Manoel Moreira, “um bandidinho de quinta categoria” quem baleou o detetive “bom e corajoso”? Um fato divulgado na época com discrição fora o resultado da autópsia de LeCocq: duas balas estavam em seu corpo, uma de pistola 45 e outra, uma bala de arma da polícia. A bala da 45 foi considerada fatal. A outra foi tida como um acidente devido ao intenso tiroteio que se seguiu a morte do detetive. A mera possibilidade de ele ter sido morto pelos próprios companheiros acirrou mais o desejo de vingança.22 “POLÍCIA VASCULHA REDUTOS DO CRIME [...] Matar um cidadão é violar a lei. Matar ou tentar matar um policial é a própria lei que se destrói. O julgamento de Cara de Cavalo não será no Tribunal do Júri [...] palavras de Milton Salles, advogado, patrono de LeCocq, no enterro. A vida de Cara de Cavalo não vale um prato de lentilhas, toda a Polícia está nos morros para vingar a morte do detetive LeCocq. Ao matar o devotado policial, o marginal assina com o sangue de sua vítima a sua condenação à morte. Cara de Cavalo morrerá e ninguém levanta a voz por ele, o morro não lhe dá pousada e a lei não lhe dá chance de distrair-se”23. A citação do Tribunal do Júri no contexto da vingança remetia a uma situação específica. Na época, “marginais” foram absolvidos pela morte de três policiais. “Quem não se recorda que os matadores de Parada, Americano e Oscar foram soltos por decisões do júri pelo resultado de 7x0?”24. Por outro lado, Eurípedes Malta de Sá, declarado fundador do primeiro Esquadrão da Morte carioca, foi preso e julgado por ter matado, segundo ele por engano, em uma operação contra “marginais”, um motorista da TV TUPI, em 1958. Foi absolvido em 1962, junto com outros dois policiais que ficaram muito tempo presos 52 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo também25. Mas segundo seus colegas, mesmo absolvido, desiludiu-se, retirou-se da atividade policial e abriu um restaurante. O rancor contra esses julgamentos era tanta que, no enterro de LeCocq, “os policiais do Departamento Estadual de Segurança Pública distribuíram um manifesto inconformados com as injustiças sociais a que estão sujeitos: ‘Não é justo que na Justiça, delinquentes e policiais mereçam tratamentos diferentes, pois enquanto os primeiros são muitas vezes absolvidos, os outros nem sempre ganham o perdão da Justiça’ [...] Solicitaram aos Deputados leis mais incisivas para os marginais e mais compreensão dos juízes para as mortes cometidas por policiais quando no exercício de suas missões”26. “SEPULTAMENTO DE LECOCQ MARCOU O INÍCIO DA BUSCA AO BANDIDO ‘CARA DE CAVALO’ [...] Na ordem de serviço distribuída ontem a todas as repartições policiais do Estado, o Superintendente da Policia Judiciária Dr Sales Guerra determinou a prisão de todos os mulatos de 20 anos que tenham os cabelos cortados retos e raspados do lado – o que caracteriza Cara de Cavalo – encontrados em atitude suspeita, frisando ‘se necessário atirem para matar’”27. A mera descrição da efígie borrada de um jovem mulato de cabelos curtos serviu de guia “para a prisão de mais de 50 marginais” apenas dois dias depois da morte de LeCocq28, “METRALHADO FALSO CARA DE CAVALO”29. Um desconhecido parecido com Cara de Cavalo foi morto com vários tiros, segundo algumas testemunhas, dados por elementos dentro de um carro preto. “NA CAÇADA A CARA DE CAVALO UM BANDIDO verve, 25: 47-71, 2014 53 25 2014 ELIMINADO [...] cumprindo a promessa da polícia: ‘para cada policial morto dez bandidos morrerão’”30. pútrido odor sabor salabor salibidor31 As reportagens que se seguiram ao enterro de LeCocq apresentavam extensas biografias do “bom e corajoso” policial morto: a dedicação à polícia nos 10 anos em que pertencera à Delegacia de Vigilância e Capturas, a modéstia, a perspicácia e inteligência nas investigações – “ele conhecia um bandido até pelo modo de andar”32 –, a capacidade de liderança, a coragem em enfrentar os piores elementos do mundo do crime. A coragem era a qualidade mais citada da excelência de um policial. E foi exatamente essa atribuída coragem de LeCocq que fez com que, em 1958, o Chefe do Departamento Federal da Segurança Pública, o General Amaury Kruel, o convidasse para integrar o SDE (Serviço de Diligências Especiais), criado pelo policial Cecil Borer e que funcionava ligado ao departamento. “O objetivo básico do SDE era acabar com o número elevado de marginais nas favelas e capturar os facínoras mais terríveis, baseando-se no princípio de que o grande bandido é irrecuperável e sua prisão só acarreta despesas ao Estado, devendo ser eliminado”33. O Capitão Amaury Kruel foi Diretor de Segurança entre 1936 e 1937, durante o estabelecimento do Estado Novo. Nesse cargo, Kruel conviveu com os policiais da Polícia Especial de Getúlio Vargas, criada em 1933 pelo Chefe de Polícia, Felinto Muller, que ocupou o cargo até 1942. Alguns desses policiais foram recrutados junto a atletas de clubes 54 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo cariocas, dentre eles, os irmãos Charles e Cecil Borer (19132003), notórios torturadores de oposicionistas de Vargas e de comunistas. Charles foi indiciado, em 1957, como o matador de Lafaiete Santos, líder do Partido Comunista, episódio ocorrido em 1950 em plena Avenida Brasil34. O irmão de Amaury Kruel, na época Capitão, Riograndino Kruel ocupava o cargo de Inspetor da Guarda Civil, e acompanhava os Borer em sessões de tortura a dissidentes políticos do Estado Novo e a bandidos comuns. Milton LeCocq e o policial José Guilherme Ferreira, o “Sivuca, parceiro de LeCoq”, também integraram a P.E. de Vargas, desde 1941. “Na genealogia do esquadrão da morte encontra-se as violências, torturas e arbitrariedades praticadas pela polícia durante o Estado Novo”35. Em 1957, o General Amaury Kruel foi nomeado por Juscelino Kubitschek para chefiar o Departamento Federal de Segurança. A nomeação teve “ótima repercussão nos meios militares” e o novo chefe prometeu uma “reforma geral no organismo policial”, com novos equipamentos e profissionais36. Dentre as reformas, há a já citada criação de SDE que resultou na formação de um grupo de policiais “corajosos”, dispostos a matar ou morrer. Sob o comando de Kruel surgiu o primeiro Esquadrão da Morte, organizado com policiais escolhidos pela “coragem”, que na maioria foram integrantes do Esquadrão Motorizado da Polícia Especial. A expressão “Esquadrão da Morte” surgiu na imprensa e se disseminou desde quando foram encontrados dezessete cadáveres em um local da estrada Rio-Petrópolis, que aos poucos foram identificados como bandidos ou pessoas presas para investigações. Outros locais passaram a receber cadáveres, e muitos detidos desapareciam dos camburões ou dos locais para onde foram levados. verve, 25: 47-71, 2014 55 25 2014 Dois anos depois: “KRUEL ESMURRA O DEPUTADO MENEZES CORTES E PEDE DEMISÃO DA POLÍCIA”37. O deputado Cortes chefiava uma Comissão de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre os desmandos e corrupção da polícia denunciados por uma reportagem de Mario Morel (1937-2014), “A corrupção na Polícia”, menção honrosa do Prêmio Esso de Jornalismo de 1960. Ao tentar conversar com Kruel sobre um episódio envolvendo a agressão e prisão de um comerciante que colou acintosamente na parede a famosa reportagem, desentenderam-se violentamente. Em 1960, Carlos Lacerda tornou-se o governador da Guanabara, Estado criado quando a capital federal se transferiu para Brasília. Uma de suas primeiras medidas foi nomear Cecil Borer para supervisionar a reforma da Divisão de Ordem Política e Social (DOPS). Remodelouse o fichário, reorganizou-se a secção técnica e começou-se a utilizar o material que veio dos EUA na gestão anterior. “Com esse material a DOPS será um poderoso organismo dentro do Estado da Guanabara”38. “CARA DE CAVALO ERA RUI DO CATETE: BANDIDO DRIBLA POLÍCIA E DESAPONTA GOVERNADOR. GENERAL LIDERA GUERRA CONTRA CARA DE CAVALO [...] Na casa do médico invadida por Rui do Catete [...] o governador [Carlos Lacerda] sentou-se com seu estado-maior à mesa de pôquer. Estava teatralmente dramático e sobretudo decepcionado com o rebate falso em torno de Cara de Cavalo e ainda mais pela fuga de Rui do Catete à vista de todo mundo. Então com gestos largos passou o comando da guerra contra o matador de LeCocq ao General Cavalcanti de Albuquerque”39. 56 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo O General Fernando Vasconcellos Cavalcanti e Albuquerque tornou-se Diretor da Polícia de Vigilância em maio de 1964. “NOVO CHEFE DIZ QUE GOVERNO DEPOSTO HOSTILIZAVA A REPARTIÇÃO”40. Sua passagem no cargo foi breve e seu nome praticamente logo desapareceu das questões policiais ligadas a delinquentes. Em 1965, chefiava a SUNAB (Superintendência Nacional de Abastecimento) e campanhas contra adulteração de alimentos e questões ligadas ao controle de preços dos produtos. O “governo deposto hostilizava a Policia de Vigilância”, pois durante o governo João Goulart tentava-se investigar corrupção, torturas e mortes empreendidas de maneira organizada e sistemática por policiais. “MAIS DE 300 NA CAÇADA A CARA DE CAVALO”41. “COMANDADA PELO GOVERNADOR ESPETACULAR CAÇADA AO CARA DE CAVALO! MOMENTOS DE EMOÇÃO E ANGÚSTIA NA RUA MARIZ E BARROS”42. A presença física e muito fotografada do governador da Guanabara Carlos Lacerda nas buscas à Cara de Cavalo no bairro da Tijuca e a entrega do comando das operações ao novo Chefe da Vigilância se seguiu a um episódio que ocorrera dois dias antes relativo à “caçada espetacular”. “MATARAM O DETETIVE PERPÉTUO [...] O detetive Perpétuo de Freitas, o mais famoso caçador de bandidos do pais, foi morto cerca de 22 horas de ontem na Favela do Esqueleto [...] Confirma-se que o detetive Jorge Galante Gomes é o assassino”43. “INVERNADA NÃO FOI AO ENTERRO DE PERPÉTUO; TESTEMUNHAS AFIRMAM: GALANTE TRUCIDOU PERPÉTUO NA 44 COVARDIA” . “PERPÉTUO FOI VÍTIMA DA verve, 25: 47-71, 2014 57 25 2014 LINHA DURA QUE QUER LIQUIDAR CARA DE CAVALO: USAVA ALGEMAS PARA NÃO ABUSAR DA PISTOLA”45. Perpetuo de Freitas fora chefe da Vigilância no início da década; ele e LeCocq saíam para caçar bandidos e esclarecer crimes, ocasião em que foram saudados como um “novo esquadrão da morte”. O anterior perdera força desde o julgamento do detetive Eurípedes Malta e outras investigações, mas as atividades do esquadrão da morte continuaram com outros policiais. “CRIADO O NOVO ‘ESQUADRÃO DA MORTE’ PARA ELIMINAR O ‘PISTOLEIRO LOUCO’ [Mineirinho]”46. “O chefe de polícia Sr. Segada escolheu os 4 homens que deverão fuzilar Mineirinho e caveirinha: LeCocq (matou Buck Jones); Perpétuo (prendeu o Sombra); Mauro Guerra (fuzilou entre outros, Fogueirinha); Jaime Lima e Aníbal Beckman, conhecidos pela ferocidade com que enfrentam gangster de pés descalços, eis o quarteto, o novo esquadrão da morte cuja missão de hoje em diante será caçar onde estiverem os facínoras”47. Entretanto, Perpétuo ficou logo afastado desse grupo, não participou do assassinato de Mineirinho, em 1962. Ele apoiou as investigações sobre quem estava envolvido nessa e em outras mortes, o que incluía o líder LeCocq e outros policiais da Invernada, local da Delegacia de Vigilância e Captura. Perpétuo fazia na imprensa a figura do good cop, elemento da célebre dobradinha de interrogatórios em seriados policiais americanos good cop/bad cop, em que um policial é durão e o outro aparece mais indulgente. Perpétuo mostrava-se compreensivo e protetor, fazia amigos nas favelas e subúrbios e mantinha uma extensa rede de alcaguetes nesses locais, com os quais conseguia seus feitos. 58 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo Em 1967, um filme de Miguel Borges, Perpétuo contra o Esquadrão da Morte, consagrou essa imagem do policial “firme, mas humano”. “SUSPENSA BUSCA A CARA DE CAVALO [...] a polícia carioca suspendeu a busca para o enterro de Perpétuo. [...] [Perpétuo] nunca batia nos malandros que prendia [...] sempre tentava recuperar um marginal [...] quando ele dava uma ordem de prisão, os bandidos nem percebiam, tal a sua classe”48. No dia de sua morte, Perpétuo seguia uma pista para prender Cara de Cavalo no Morro do Esqueleto, onde este residia. Passou horas na tocaia quando chegou o grupo de policiais da Invernada que pretendiam vingar LeCocq, inclusive um novato, o Galante, que atirou a sangue frio no detetive após uma discussão. Perpétuo queria Manoel Moreira vivo para ser julgado, o grupo da Invernada, queria matar Cara de Cavalo como uma retaliação exemplar. O desejo de vingança foi maior do que a encenação do “bate/assopra”. A presença acintosa e teatral de Carlos Lacerda, governador da Guanabara na busca que se seguiu à morte de Perpétuo sinalizou o apoio à “turma da Invernada”, ferrenhos caçadores de Manoel Moreira. A entrega do comando das diligências ao inexpressivo General Cavalcanti Albuquerque serviu para neutralizar momentaneamente o conflito. A “turma da Invernada” era de grande importância para Lacerda, e também seria para o novo governo que entrava com o golpe de abril. “CASA DO DIABO É UM BOM SINÔNIMO [...] O detetive João Martinho Neto, Chefe da 2º Subsecção de Vigilância – conhecida como Invernada da Olaria – gostou do apelido de casa do Diabo que na última semana os líderes sindicais arranjaram para verve, 25: 47-71, 2014 59 25 2014 sua delegacia, mas faz questão de esclarecer que ‘embora o tratamento não está a altura de um hotel, os presos as vezes comem até galinha’. Desmente que mantém gente presa na última crise política [...] Construída na gestão de Amaury Kruel a 2º subsecção de Vigilância surgiu de uma abaixo assinado de comerciantes da Rua Paranapanema [Bairro Olaria, Rio de Janeiro, RJ] que constantemente eram assaltados nas imediações. O terreno foi cedido pelos solicitantes que além de dinheiro, ainda deram cimento e tijolos. Com 500 mil m² a Invernada da Olaria está entregue à PM há mais de vinte anos49. Sua fama vem do tempo do detetive Manga quando ali eram recolhidos os piores bandidos da cidade. As paredes das quatro celas são pintadas de preto para evitar que os detidos rabisquem ou façam desenhos imorais”50. “UH DEVASSA CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NA GUANABARA: ESTUDANTES E OPERÁRIOS TORTURADOS NAS JAULAS DA POLÍCIA [...] A Invernada de [Cecil] Borer tem tudo de um campo de concentração, inclusive cercas de arame farpado. (...) Borer não permitia que nem os policiais de serviço soubessem o nome dos presos [em torno de 300 na Invernada]”51. A crise política citada acima não é o golpe de 1964, mas o efeito da renúncia do presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, em que se questionou a posse do vice presidente João Goulart que, na data, estava em missão diplomática na China, país comunista. O governador da Guanabara Carlos Lacerda era um ferrenho opositor de Jânio e de sua política considerada “esquerdista” pelo setor militar e conservador do país. Com a crise aberta, Lacerda enviou para a prisão centenas de opositores. Estudantes, líderes sindicais desapareceram temporariamente na Invernada. 60 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo Em outubro de 1962, mesmo com o presidente João Goulart empossado, o advogado das Ligas Camponesas e sua companheira são presos e levados à Invernada, onde foram torturados. Conseguiram denunciar o fato e tentaram levar dois torturadores a julgamento. Outras denúncias semelhantes atraíram a atenção da Assembleia Legislativa que abriu uma CPI para investigar sumiços e torturas na sede da Delegacia de Vigilância. “NETO E FELIPÃO DISSERAM A CPI QUE A INVERNADA É BOA E CLODOMIR FERIU-SE SOZINHO [...] O advogado [Clodomir de Morais] produziu ferimentos em seu próprio corpo para culpálos [os dois torturadores] [...] não sabiam a que atribuir a má vontade do advogado contra eles, má vontade que – afirmaram – é a mesma da maioria da imprensa carioca, venal e corrupta e manipulada pelos comunistas!”52. Na madrugada de 1º de abril de 1964, o General Amaury Kruel, agora comandante do poderoso II Exército de São Paulo, depois de ter sido por alguns meses Ministro da Guerra do presidente João Goulart, forneceu um dos apoios decisivos ao golpe civil-militar. Recentemente, em um depoimento, o Tenente Coronel Farmacêutico Erimá Moreira contou que o General Kruel recebeu mais de um milhão de dólares “mandados pelo governo americano” e levados pelo presidente da Federação das Indústrias de São Paulo FIESP53 para trair Jango. Todavia, esse apoio crucial ao golpe teria sido por dinheiro? Ou com dinheiro? Dólares não caem de árvores. A expansão do comunismo pelo mundo afetava a segurança dos Estados Unidos, do governo e das empresas capitalistas. Uma das estratégias estadunidenses de contenção do comunismo era treinar verve, 25: 47-71, 2014 61 25 2014 as polícias de países que pudessem representar riscos de serem influenciados pelo comunismo. Era importante para a segurança dos Estados Unidos controlar a segurança interna das nações. No Brasil, durante a II Guerra, com recursos do FBI, forneceu-se treinamento junto ao DOPS do Rio de Janeiro para identificar e vigiar nazistas mediante palestras sobre espionagem, sabotagem, vigilância e técnicas de interrogatório. Após a II Guerra, o inimigo era o comunismo que, na visão estadunidense, ameaçava alastrar-se pelo mundo especialmente em países pouco desenvolvidos. Nesse sentido, iniciou-se uma política de apoio às polícias locais mediante intercâmbios, treinamentos, transferência de tecnologia, consultorias especializadas, entre outras ações e programas. Segundo a pesquisadora Martha Huggins, “o treinamento de polícias estrangeiras [pelos estadunidenses] tem sido utilizado quase que exclusivamente para promover interesses e objetivos políticos específicos de segurança nacional dos Estados Unidos”54. O General Amaury Kruel ajudou a introduzir um programa de segurança pública orientado pelos Estados Unidos; era “velho amigo dos EUA” por ter frequentado um treinamento militar no Kansas, em 1943, e lutado na Força Expedicionária Brasileira (FEB) ao lado dos EUA na II Guerra Mundial. “No final da década de 1950, já não mais chefiando seus soldados contra um inimigo externo, Kruel assumiu o controle das forças policiais do Rio de Janeiro e aprimorou sua capacidade de agir com eficácia contra criminosos comuns – percebido como um inimigo interno que então surgia. [...] de ter se interessado profundamente em 62 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo aperfeiçoar a coordenação da polícia quando visitou os EUA no inicio de 1958. [...] Para aperfeiçoar o sistema policial do Rio de Janeiro, Kruel escolheu a dedo um grupo de polícia especial, integrada pelos homens corajosos. [...] Ele autorizou a levar a cabo ações agressivas e violentas contra assaltantes e bandidos. Os caçadores de bandido de Kruel não atuavam fora da instituição policial formal. Eram membros de um órgão oficialmente instituído, o “Serviço de Diligência Especial – uma unidade especializada dentro do ‘Esquadrão motorizado’ dentro da polícia civil [...] conhecida como EM [...]. Um dos ramos mais notórios da equipe de homicídios de Kruel foi organizado por Milton LeCocq [...] Esse novo esquadrão da morte intitulou-se ‘Turma da Pesada’ devido à sua dureza e violência”55. O General Amaury Kruel e o irmão General Riograndino eram associados ao Office of Public Safety (OPS), órgão ligado aos programas de ajuda ao desenvolvimento que surgiu no governo de Robert Kennedy para “transformar policias estrangeiras em primeira linha de defesa contra o comunismo”56. Riograndino Kruel foi um dos fundadores do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) em 1967, órgão para a repressão política do novo regime. Em novembro de 1972, a militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Aurora Nascimento Furtado, foi detida no Rio de Janeiro em uma operação que resultou em um policial ferido a bala. Ela recebeu um tiro no joelho ao tentar fugir, começou a ser espancada rodeada de pessoas que observavam a cena e foi levada para a Invernada da Olaria. Dali saiu morta, simulou-se um tiroteio em uma rua qualquer e entregaram o corpo lacrado para a verve, 25: 47-71, 2014 63 25 2014 família. A advogada Eny Moreira, da Comissão da Verdade, conta: “A família me pediu para liberar o corpo. Quando recebi o corpo, Aurora estava literalmente dilacerada: afundamento no maxilar, sem bicos dos seios, um dos olhos pendurado, rasgo do umbigo até a vagina, fratura externa no braço – a última coisa que fizeram com ela foi pressionar com um torniquete de aço [a ‘coroa de cristo’] seu cérebro. Por isso, o olho saltou”57. O ex-comandante do DOI-CODI do I Exército, coronel Adyr Fiúza de Castro, alega ela foi confundida com uma traficante de drogas.58 Esse ‘engano’, segundo o ex-comandante, seria a justificativa para a tortura e a morte de uma militante política na dependências da Invernada, local de tortura e extermínio de bandidos? da tua tumba não o horror nem dor apenas um tremor o imponderável59 Um tiro a esmo numa fuga apressada. Matar ou Morrer. Correr... Cara de Cavalo saberia que era LeCocq que estava no Fusca e teve noção do quem e em que acertara? “CARA DE CAVALO JÁ ESTÁ NO ALVO [...] Sua liberdade é uma ameaça à sociedade. Há um prêmio de 1 milhão de cruzeiros pela sua captura. Se você souber onde ele se encontra avise com urgência para o telefone...”60. “CARA DE CAVALO PEDE GARANTIAS PARA SE ENTREGAR [...] Na Assembleia Legislativa o deputado Henrique França prometeu entregar Cara de Cavalo à justiça desde que houvesse garantias. (...) mas malograram os entendimentos para isso. (...) mais dois marginais liga64 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo dos a Cara de Cavalo morreram torturados e queimados no mirante do Morro Dona Marta e Morro da Previdência”61. Em um depoimento de Sivuca, um dos parceiros de LeCocq: “Quebramos o pau no Estado do Rio. Matamos os marginais que resistiam e prendemos os que esconderam Cara de Cavalo [...] não raciocinávamos direito, nossa única preocupação era pegar o bandido”62. Um ano depois da morte do líder, ele e outros parceiros fundaram para homenageá-lo um novo grupo de extermínio que se multiplicou pelo país: a Scuderie LeCocq, com um distintivo e um hino, cujas primeiras estrofes diziam: Nossa luta não é pela glória Nossa meta é servir todo irmão Na coragem no amor na justiça está o segredo de nossa união63 O distintivo da Scuderie LeCocq reproduzia o mesmo distintivo do Esquadrão Motorizado da polícia especial: uma caveira com duas tíbias e a sigla EM, e passou a etiquetar cadáveres que eram ‘desovados’ em grotões e estradas ao longo de muitos anos adiante. “Sivuca” tornou-se deputado estadual no Rio de Janeiro de 1994 a 2006, pelo PT do B, com o bordão “Bandido bom é bandido morto”. Em 1965, Hélio Oiticica começou a elaborar o Bólide 33, Bólide Caixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo Poema-Caixa 2, concluído no ano seguinte. O que motivou a homenagem foi “a maneira pela qual essa sociedade castrou toda possibilidade de sua sobrevivência como se ele fora uma lepra, um mal incurável — imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradados verve, 25: 47-71, 2014 65 25 2014 princípios como é a nossa, colaboraram para torna-lo o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente com todo requinte canibalesco. Há como que um gozo social nisso [...] a homenagem, longe do romantismo que a muitos faz parecer, seria um modo de objetivar o problema, mais do que lamentar um crime sociedade X marginal”64. “VINGADA A MORTE DE LECOQ: CARA DE CAVALO CRIVADO DE BALAS – MAIS DE CEM TIROS”65. Dos tiros disparados pelos policiais, 61 acertaram Cara de Cavalo em pontos vitais do tórax, apenas um na cabeça para não dificultar o reconhecimento. “O umbigo do cara ficou colado na parede”66. Cada policial da “Turma da Pesada” atirou várias vezes, até uma arma de LeCocq foi levada e usada na fuzilaria que durou quinze minutos. Nesses quinze minutos iluminados pelo fogo dos tiros, o exagero do espetáculo escancarou o que a justiça penal e as execuções na sombria surdina tentam sempre amainar: o gozo de uma execução como medida punitiva. Heróico Cara de Cavalo que suportou o dilaceramento deste festim de gozo e vingança em nome da sociedade. O Bólide 33, Bólide Caixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo Poema-Caixa 2, traz a imagem do corpo dilacerado tirado de uma foto do Jornal do Brasil e o poema: Aqui está e ficará Contemplai o seu silêncio heróico 66 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo Cinquenta anos depois Tropas de choque nos morros e favelas, sumiços, tiroteios, balas a esmo, vinganças de policiais contra agressores de policiais, torturas em camburões e celas e becos. Linchamentos. Massacres. O sorriso sangrento da “pacificação”, nome novo para “limpeza”, sobrepõe-se à imagem desbotada de uma cara. Muitas caras desbotamse em efígies gastas e se tornam borrões sem nomes. Novas velhas caras que continuam contidas pela prisão, pela tortura, pela morte, horrores que correm escancarados em ditaduras e democracias. Notas Hélio Oiticica. Poema Cara de Cavalo. São Paulo, 1968. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br (acesso em: 06/02/2014). 1 2 O Dia, 05/10/1964. 3 Diário de Notícias, 05/10/1964. 4 Jornal do Brasil, 05/10/1964. Brigitte Bardot, ícone do cinema francês dos anos 1960, morou em uma praia na região de Búzios em janeiro de 1964 e projetou o lugar como um ponto turístico mundial. Recentemente foi homenageada com uma estátua em tamanho natural para enfeitar a orla. 5 6 Diário de Notícias, 04/10/1964. Hélio Oiticica. Texto de 1968 para o catálogo da Exposição de Hélio em Londres. WhiteChapel, 1969. Disponivel em: http://www.itaucultural.org. br (acesso em: 06/02/2014). 7 Hélio Oiticica realizou duas obras para homenagear Cara de Cavalo: B33 Caixa Bólide 18 Homenagem a Cara de Cavalo Poema-Caixa 2 em 1966, e Bólide 56 Bólide-Caixa 24 CaraCara Cara de Cavalo em 1968. Importante lembrar que a imagem da bandeira “Seja Marginal, Seja Herói” não é de Cara de Cavalo, mas de um bandido que morreu às margens do riacho Timbó após uma perseguição policial. Os jornais noticiaram que ele se suicidou para não 8 verve, 25: 47-71, 2014 67 25 2014 ser preso. Hélio trabalhou com a ideia do suicídio como meio de escapar da prisão e fez o Bólide B44 Caixa-Bólide 21 Caixa Poema 3 com a imagem do suicida em que perguntava “Porque a impossibilidade?”. Publicou um texto sobre os dois bandidos na coluna de arte de Frederico Morais no Diário de Notícias, “Heróis e Anti-Heróis”, em 10/04/1968. 9 Hélio Oiticita, 1969, op. cit. “Gangster sanguinário fuzilou ‘rei’ dos caçadores de bandidos” in A Notícia, 28/08/1964. 10 11 Jornal do Brasil, 28/08/1964. 12 O Dia, 31/08/1964. 13 A Notícia, 04/08/1964. 14 Última Hora, 22/02/1961. 15 Última Hora, 09/10/1962. 16 Última Hora, 09/10/1963. 17 Última Hora, 05/10/1961. 18 Jornal do Brasil, 02/09/1964. 19 A Notícia, 09/09/1964. 20 Correio da Manhã, 15/09/1964. 21 Última Hora, 02/09/1964. João do Vale e Sivuca. “Depoimento de Sivuca” in Otávio Ribeiro. Barra Pesada. Codecri, Rio de Janeiro, 1985, p. 214 22 23 A Notícia, 29/08/1964. 24 Diário de Notícias, 29/08/1964. 25 Diário de Notícias, 06/11/1962. 26 Jornal do Brasil, 29/08/1964. 27 Idem. 28 Jornal do Brasil, 31/08/1964. 29 Idem. 30 A Notícia, 06/09/1964. 68 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo 31 Hélio Oiticica, 1968, op. cit. 32 Jornal do Brasil, 05/10/1964. 33 Jornal do Brasil, 04/12/1966. 34 Jornal do Brasil, 6 de julho de 1957. Márcia Costa. São Paulo e Rio de Janeiro: a constituição do Esquadrão da Morte. São Paulo, Clacso, p, 9. Disponível em: http://portal.anpocs.org/portal/ index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5205&Itemid=359 (acesso em: 08/02/2014). 35 36 Última Hora, 11/05/1957. 37 Última Hora, 29/06/1959. 38 Última Hora, Hora H. “A polícia de Lacerda” in Hora H.,11/10/1960. 39 Última Hora, 04/09/1964. 40 Jornal do Brasil, 09/05/1964. 41 Correio da Manhã, 04/09/1964. 42 O Dia, 04/09/1964. 43 Última Hora, 02/09/1964. 44 Última Hora, 03/09/1964. 45 Diário de Notícias, 03/09/1964. 46 Idem. 47 Última Hora, 17/10/1961. 48 Jornal do Brasil, 03/09/1964. Pela data, a gestão de Amaury Kruel citada deve provavelmente ser a de chefe de polícia que ele ocupou durante o Estado Novo. 49 50 Jornal do Brasil, 05/09/1961. 51 Última Hora, 05/10/1961. 52 Jornal do Brasil, 21/08/1963. Depoimento do Tenente Erimá Moreira. Disponível em: http://www. institutojoaogoulart.org.br/video.php?id=254 (acesso em: 08/02/2014). 53 verve, 25: 47-71, 2014 69 25 2014 Martha Huggins. Policia e Política Relações Estados Unidos e América Latina. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, Cortez, 1998, p. 9. 54 55 Idem, p. 113. “Conexão Americana: EUA treinaram mais de 100 mil policiais no Brasil” - Entrevista com Martha Huggins in Folha de São Paulo - Caderno Mais, 23/08/1998. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/ fs23089805.htm (acesso em: 08/02/2014). 56 Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br/2014/01/24/ comissao-nacional-da-verdade-faz-diligencia-em-antiga-vila-militar-norio/#.UzgZukZOXMx (acesso em: 06/02/2014). 57 Sobre caso Aurora Maria Nascimento Furtado (Lola), ver: http://www. comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=20 (acesso em: 06/02/2014). 58 59 Hélio Oiticica, 1968, op. cit. 60 A Notícia, 01/09/1964. 61 Jornal do Brasil, 09/09/1964. 62 João do Vale e Sivuca, 1985, op. cit., p. 215. “Hino da Escuderia LeCocq” in R. S. Rose. The unpast: Elite Violence and Social Control in Brazil, 1954-2000. Ohio University Press, 2005, p. 257. Disponível parcialmente em: http://books.google.com.br/ (acesso em: 04/02/2014). 63 64 Hélio Oiticica, 10/04/1968, op. cit. [Grifos do autor]. 65 O Dia, 05/10/1964. 66 João do Vale e Sivuca, 1985, op. cit., p. 219. 70 verve, 25: 47-71, 2014 verve CaraCara Cara de Cavalo Resumo Quase 50 anos atrás, Hélio Oiticica homenageou com duas obras de arte o seu amigo Cara de Cavalo, um bandido morto pela polícia em 1964, depois de uma caçada humana espetacular. Este artigo investiga o contexto deste assassinato, focando na polícia brasileira que estava sendo reformada desde antes do golpe civil militar de 1964, a fim de combater os “inimigos internos”, esquerdistas ou bandidos comuns, como parte de uma política de segurança internacional para conter o comunismo. Palavras-chave: polícia, segurança internacional, golpe civilmilitar de 64. Abstract Almost fifty years ago, Helio Oiticica homaged with two works of art his friend Cara de Cavalo, a bandit killed by the police in 1964 after a spectacular manhunt. This article investigates the context of this killing focusing the brazilian police that had been remodeled since before the civil military coup d’état of 64 in order to combat the ‘internal enemies’, leftlists or common outlaws, as part of an internacional security policy of communist contention. Keywords: police, international security, civil military coup d’état of 64. Face to face Horse Face, Beatriz Scigliano Carneiro. Recebido em 10 de fevereiro de 2014. Confirmado para publicação em 15 de abril de 2014. verve, 25: 47-71, 2014 71 ...1964-2014, aquém e além de 1/2 século ditadura, os baixos começos Uma ditadura é sempre uma ditadura. Sua sustentação não se reduz a um regime político, tampouco a ditadura como acontecimento se origina com a tomada de poder de Estado. Seus baixos começos são inúmeros. E o golpe de 1964 que demarcou o início da ditadura civil-militar no Brasil configurou o exercício do terrorismo de Estado. Não seria preciso esperar pelo AI1, AI2, AI3, AI4, AI5... Uma ditadura se situa menos como estado de exceção jurídico-política e mais como a lógica de existência históricopolítica do próprio Estado, levada a seu ápice, obviamente, desejada pelos governados. Ela não prescinde da forja de seu direito próprio alicerçado na abertura da caça a subversivos, delações perpetradas por alcaguetes de toda ordem, por ordeiros cidadãos, sequestro de homens, mulheres, jovens, crianças e bebês, porões conhecidos e recônditos da tortura, incontáveis sumidouros que existem na forma que cada pequeno ditador se governa. ditadura: o açougue da tortura Gente some à luz do dia ou na calada da noite. Corpos são atirados ao mar, ao rio, às valas, aos sumidouros. Meninos e meninas são levados a cubículos imundos para assistirem seus pais e suas mães serem triturados por carniceiros torturadores. Crianças são recolhidas em celas e as mais velhas vibram pela simples migalha de não terem sido separadas da irmã mais nova, ainda bebê, e orgulhosas contam que arranjavam um jeito de dormirem junto a ela temerosos de que sumissem com ela. Um menino apenas lembra baixinho. Um dia levaram meu pai. Nunca mais o vi. Uma menina é levada até a presença da mãe, após uma sessão de tortura, e não a reconhece. Anos depois ela dirá: “aquela não era a minha mãe, era apenas uma massa de carne ensanguentada com os dentes arrancados”. Mulheres são alvos dos torturadores que também as seviciam sexualmente. Muitas delas depois de torturadas e encaminhadas a hospitais, por vezes são corpos para perversões sexuais de enfermeiros. tribunal: o açougue da formalidade Os anos passaram e urge saber e expor o nome de cada torturador. Mas que isto não se confunda com o coro de combate à impunidade e recriação do tribunal, seja ele qual for. Ele apenas dispõe a mesma moral no açougue das formalidades sob a norma do exercício regular do procedimento asséptico, atravessado, também, por torturas declaradas ou recônditas. Nele, cada um é dissolvido em uma abstração genérica da regra fixa e geral que resguarda a garantia dos seletivos privilégios particulares, no jogo inerente tanto ao direito especial da ditadura quanto ao direito universal do Estado democrático de direito. O tribunal refaz o itinerário inverso e complementar das abjetas apropriações da vida, conservado sob a lógica do juízo, da qual o regime do castigo não abre mão. Um tribunal é sempre um tribunal. a ciência começos da tortura, baixos Militares de alta patente, co-artífices do golpe, antes do apoio decisivo à deposição do governo em 1964, ocuparam cargos na polícia desde a era Vargas, onde se sofisticaram nas técnicas de tortura; entraram e saíram de delegacias, reorganizaram instituições policiais, articularam-se com polícias estrangeiras para aperfeiçoar material técnico e humano. Os EUA no pós II Guerra Mundial iniciaram a execução de programas de treinamento de polícias de países menos desenvolvidos voltados a coibir a expansão do comunismo. Esses programas se espalharam a partir dos anos 1950 e inúmeros militares e policiais do Brasil viajaram aos EUA para frequentar cursos de novas técnicas de interrogatório e treinamento de tortura, assim como para compra de material. O aperfeiçoamento da tortura no Brasil adveio de sua aplicação em ‘bandidos pés descalços’ no decorrer dos anos 1950, pois a chamada criminalidade comum era vista, também, como fator de perigosa instabilidade social que poderia abrir as portas para o crescimento da esquerda se não fosse combatida com rigor. No esteio das infindáveis reformas policiais complementares à formação de grupos de polícia especial engendrou-se ainda na década de 1950 o Esquadrão da Morte, em referência direta ao alto índice de cadáveres de miseráveis abandonados em estradas, em geral assassinados depois de sessões de torturas. Com a ditadura civil-militar se intensificou, também, a prática no padrão dos ‘esquadrões da morte’, não como arbítrio, mas como técnica policial e de governo elaborada para triturar resistências, quaisquer que fossem, viessem de onde viessem, assim como o Brasil tornou-se o grande exportador de técnicas científicas de tortura para as ditaduras na América do Sul. O “saudável terror” do século XIX - na expressão utilizada por um chefe de polícia para conter revoltas de escravos - sofisticouse com a tecnologia de poder e de governo do século XX. Policiais e agentes da lei espancando até a morte ou sumindo com pessoas estavam ali desde sempre, servindo ao Estado, proprietários, industriais, banqueiros na defesa da vida acovardada dos cordatos e ordeiros governados. abolir a ciência da tortura A continuidade das torturas, do litoral ao interior do Brasil, escancara o ranço da ditadura civil-militar que insiste em sobreviver no presente. “Tortura-se respaldado na autoridade (seja de pai, policial, professor) e na ciência. Numa democracia ou numa ditadura, a tortura é parte constitutiva das tecnologias de poder; produz verdades que as sustentam” (http:// www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=20). A tortura não irrompeu com o golpe de 1964, pelo contrário. Este achatamento da vida faz parte da história do território identificado como Brasil, no extermínio dos índios, na escravidão dos negros, na perseguição a anarquistas, na polícia estadonovista contra quem desafinou no coro dos contentes, nos esquadrões da morte... no cotidiano das delegacias e prisões. Entretanto, foi a partir desse momento, março/abril de 1964, que pouco a pouco a tortura se tornou prática comum e oficial. Seguiram-se ao SNI (Serviço Nacional de Inteligência) – criado em junho de 1964 – outras siglas macabras como CIE (Centro de Informações do Exército), CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), dedicadas, em nome da segurança, a prender, torturar e assassinar sistematicamente homens e mulheres identificados como terroristas ou subversivos. Em 1968, na cidade de São Paulo, surgiu, com o auxílio de financiamento empresarial, a OBAN (Operação Bandeirante), que na década seguinte tornou-se o DOI/CODI-SP, matadouro oficial chefiado pelo delegado Sergio Paranhos Fleury. Disseminado em várias regiões do país, o modelo de organização do DOI/CODI-SP integrou e tornou mais eficiente a repressão torturadora do terrorismo de Estado. Diziam que salvariam a democracia dos comunistas. Que os brasileiros patriotas desejavam capitalismo e democracia. Que a ditadura reporia a institucionalidade. Que, em suma, o Estado se defendia do perigo comunista! E tudo isso nada mais é do que a essência do próprio Estado de direito. O alto investimento na propaganda do “milagre brasileiro” auxiliou, nos anos 1970, o fortalecimento dos grupos paramilitares que passaram a atuar coadunados com o aparelho repressivo construído após o golpe, assassinando moradores nas periferias do Brasil afora, conformando um “programa de genocídio”, como bem situou o artista Hélio Oiticica ao se referir ao assassinato, nesta década, de quase todos os seus amigos do morro da Mangueira. Como declarou Cecília Coimbra, “a tortura não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso é um enorme e gigantesco esforço para não perdermos a lucidez, para não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nossa inteligência” (Depoimento de Cecília Coimbra à Comissão da Verdade: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/ artigo/depoimento-de-cecilia-maria-boucascoimbra-as-comissoes-nacional-e-estadual-daverdade/). Em plena democracia, o silêncio sorridente de parte dos cidadãos diante do “desaparecimento” de Amarildo, da recente execução de Claudia Silva Ferreira, dos urros de dor dos corpos submetidos às violências da prisão, expõe a sobrevivência de práticas que se institucionalizaram antes, durante e depois da ditadura civil-militar. É preciso, portanto, reverter os embates tradicionais contra a tortura e os escrachos que se restringem a um acerto de contas histórico. A luta contra a ditadura, a tortura, o governo dos obedientes militantes e conformistas é também uma luta contra o Estado. pelo fulgor da vida No romance “Os cúmplices”, o escritor libertário Roberto Freire explicitou, precisamente, que o consentimento de grande parte da população com o golpe civil-militar foi o que sustentou mais tarde a infindável máquina de violências do Estado. Preso em 1965, torturado com “telefones” que resultaram no deslocamento da retina de um de seus olhos, Freire conta no livro que no dia 1º de abril de 1964 saiu caminhando pelas ruas de São Paulo. Pediu um táxi. No trajeto, perguntou ao motorista: “E, agora, como será nossa vida com esse golpe militar?”. “Igual”, responde o chofer. Diante da insistência de que os militares iriam acabar com “nossa liberdade”, ouve como resposta, “que liberdade, cara? Preciso é de dinheiro”. Entre 1964 e 1968, irromperam os jornais “O Libertário”, “Dealbar” e “O Protesto”. Não foram supervisionados por censores como a grande mídia, simplesmente foram fechados. Nada de palavra livre, somente as gerenciadas. Já em 1964, o anarquista Pietro Ferrua cria, ao lado de uma jovem pesquisadora no Rio de Janeiro, uma “Liga dos Direitos Humanos”. Não para celebrar e promover o vazio e a universalidade de valores, mas como um meio para produzir contatos internacionais capazes de evitar que pessoas fossem mutiladas e assassinadas pelo Estado, usando o que hoje serve para promover benfeitores e reformadores como tática para combater o Estado e suas violências. Combateu-se os guerrilheiros urbanos ou rurais que saíram em contestações radicais alertando contra a ditadura, o capitalismo, a encenação parlamentar, a exploração... Só houve terrorismo civil depois de instalado o terrorismo de Estado. Na ditadura civil-militar, no governo de Garrastazu Médici, em 1972, integrantes do grupo de teatro anarquista The Living Theatre foram presos no DOPS de Belo Horizonte e, depois, expulsos do país. Ao chegarem a Nova York, apresentaram pelas ruas da cidade “Seven Meditations on political sado-masochism”. Exibiram o sexo torturado do corpo de um jovem revolucionário arruinado pela ditadura, escancarando o apoio dos EUA à ditadura civilmilitar do Brasil, a conivência de parte da população brasileira com as violências do Estado e, por fim, o que chamaram de horror produzido pela política. Depois de intensa repressão, a partir da invenção do jornal “O Inimigo do Rei”, em 1977, os libertários voltaram a se articular, animados pelas experiências liberadoras contra o Estado, para além de acomodações e negociações políticas de abertura política. Com “O Inimigo do Rei”, o combate à ditadura retornou revigorado e exigiu, diante das transações pela anistia, a libertação imediata de todos os presos brasileiros. Diante da ciência da tortura, do Estado, os anarquistas resistiram à ditadura civil- militar escrevendo cartas para vários cantos do planeta, ensaios, romances, jornais, apresentações, escrevendo a própria existência. Estas vidas que vibram pouco são comentadas nos eventos solenes oficiais e off-oficiais de memória e combate ao autoritarismo vigente durante a ditadura civil-militar. Entretanto, elas estão aí em livros, anotações, cadernos, dissertações e teses, na memória que se atualiza, pelas ruas e pelos cantos, na pele de jovens que fazem do presente das batalhas um fulgor. [Publicado como ‘hypomnemata 165’, eletrônico do Nu-Sol, março de 2014] boletim verve a questão americana: o conflito incontornável. o apelo ao povo1 joseph déjacque I. Teríamos até o presente momento examinado a questão em seu todo? Teria ela sido considerada numa visão abrangente, e profundamente esmiuçada? Não que eu saiba. Então, tentemos fazer com que algumas luzes penetrem nessas trevas. II. Por volta do fim do século XVIII, os colonos rebeldes fizeram uma Constituição que, é verdade, libertava as colônias inglesas do vampirismo da metrópole, e nisso eles estavam certos. Mas políticos tradicionalistas Joseph Déjacque (1821-1864) foi um operário, escritor e jornalista libertário nascido na França, que participou dos movimentos revolucionários em Paris, em 1848, e publicou de forma autogestionária o periódico Le Libertaire, Journal du Mouvement Social, entre 1858 e 1861, período em que viveu em Nova Orleans, Estados Unidos. Déjacque é considerado o primeiro a usar a palavra “libertário” em carta dirigida a Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), datada de 1857; empregando o termo, logo depois, no título de seu jornal. verve, 25: 83-106, 2014 83 25 2014 quiseram imobilizar o espírito dos tempos, o movimento revolucionário ou regenerador, e declararam sua obra circunstancial, algo imutável e eterno, e nisso estavam errados. As Constituições políticas ou sociais, como as Constituições humanas ou individuais, são sujeitas a revisões, a transformações. A alimentação cotidiana produz, tanto nos povos quanto nos homens, novos elementos que modificam, a cada instante do dia ou do século, seu temperamento, desenvolvendo ou atrofiando alguns de seus órgãos. Portanto, qualquer constituição, física ou moral, ou social, ou individualmente humana, só pode ser essencialmente móvel. Apenas no caso de homens ou povos mumificados, a constituição pode permanecer de alguma forma estacionária. Ora, não sou eu apenas que o afirma, são os fatos que falam, é a lei da natureza que assim ordena e nos ensina: abaixo a Constituição escrita da antiga e solene União americana! Ela mente para a constituição moral do povo. Viva o movimento abolicionista! O movimento constitutivo do moderno Progresso! Embora não seja a letra da Constituição legal, ele não deixa de ser, e da forma mais certa, o espírito verdadeiro e vivificante da constituição moral do povo. III. Já há muito tempo existe antagonismo entre o Sul e o Norte, ou seja, entre os homens que desejam perpetuar e ampliar a escravidão dos africanos, e aqueles que querem restringi-la, aniquilá-la, e seus intrépidos companheiros 84 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana deram testemunho disso diante do mundo e do alto dos patíbulos. Foi de um patíbulo, onde os fazendeiros de então pregaram-na em cruz, que há dezoito séculos se revelou uma nova filosofia, hoje envelhecida... E foi também de um patíbulo, o patíbulo de Charlestown2, que foi revelado recentemente, afirmando-se claramente, o irreprimível conflito. Sem dúvida, nem Brown nem Jesus produziram o movimento que os fez agir: eles foram tanto a aurora quanto o eco da grande voz pública, um resumo harmônico de todas as notas da escala humana ressoando clandestinamente contra o escravismo: e foi isso que fez com que ambos subissem para o suplício como para uma apoteose, sabendo intuitivamente que, no caminho do Progresso, é só em aparência que se sucumbe para, na realidade, se renascer na marcha triunfal de seus seguidores e vingadores. Por mais que a coroa de espinhos ou o capuz tentem silenciar a Ideia na fronte majestosa reputada criminosa, a Ideia, pela boca de seus mártires, como através de um trompete universal, proclama o Julgamento, de início mental, mas logo oficial, da Multidão, o advento da nova ordem social que se inicia, o toque fúnebre da velha ordem que finda. Tanto os crucificadores da Judeia quando os estranguladores da Virgínia perseguiram um homem acreditando que, ao destruí-lo, também estivessem destruindo o sopro que nele vibrava; mas, quebrado o instrumento, ele logo revibra, clamor prolífico, através de milhões de bocas, cornetas incessantemente renascentes da imperecível Multidão. E não é a Multidão o amplo, o fecundo peito do qual o inovador crucificado ou enforcado seriam apenas a palavra fugitiva? O seio colossal do qual jorra todo pensamento eloquente e sonoro? E verve, 25: 83-106, 2014 85 25 2014 quanto à impertinente e louca pretensão de comprimir o movimento de seus pulmões, de impedir sua voz de se fazer ouvir, a frase que ela articula de se perfazer? Podem tentar à vontade!... Todos os patíbulos do mundo, todas as fogueiras, todas as forcas de todas as épocas, pesariam menos em sua mão gigantesca do que um punhado de fósforos na de vocês, montes de Liliputianos. IV. A República americana, tão revestida de instituições monárquicas, mas baseada no protestantismo em religião, e no liberalismo em política, ou seja, no princípio de negação do absolutismo autoritário, pertence fatalmente ao estado de progresso filosófico e social, ou correria risco de suicídio. Nada mais natural que ela seja o pesadelo dos partidários da eterna e absoluta Autoridade, das quais os célebres filhos de Loyola são os táticos universais, os generais em comando, os Reverendos Pais e Tutores. Assim, não é de hoje que essa corja católica e inquisitorial trabalha pela perda desse simulacro da República. Os Jesuítas sabem que a escravidão é a lepra viva que deve destruí-lo, caso o Norte não a arranque de seus flancos empregando o ferro e a chama, o pensamento e a ação libertários. Desse modo, eles se estabeleceram de longa data em todos os cantos e recantos da União. No Sul, como em 1792 na Vendeia3, como antes das Jornadas de Junho por toda a França, eles atiçam o fogo da guerra civil, e impulsionam os estados agrícolas à Secessão, os exploradores à Reação. Espojando-se no arsenal da intriga e da calúnia, eles enchem seus odres de duas caras e os esvaziam aos poucos, nos ouvidos daqueles que funcionam como para-raios 86 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana durante a tempestade; eles armam esses novos chouans4, com a fúria hidrofóbica do proletarismo ameaçado no cérebro canino desses novos pastores guarda-burgueses e degoladores de humanos. No Norte, eles choramingam hipocritamente, como carpideiras de cerimônias fúnebres, sobre o prematuro fim da União. Assim como do outro lado do Atlântico – após o movimento de Fevereiro até o Golpe de Estado de Dezembro5 – eles suscitam aqui uma crise financeira fictícia dando a todos seus afiliados a ordem de paralisar os negócios, de apertar os cintos, de trancar com ferrolhos triplos seus cofres, para atemorizar todos os barões e baronetes do Capital, de perturbar o comércio e a produção, de suspender provisoriamente todo trabalho, induzindo assim, com o auxílio de insinuações pérfidas, os produtores e comerciantes do Norte, manada sempre numerosa de ignorantes, a acreditar que a atual crise artificial, criada artificiosamente pelos democratasescravagistas para aterrorizar a população dos EstadosLivres, e que é obra da oligarquia sulina, inteiramente sua obra e nada mais que sua obra, seria ao contrário, obra dos republicanos–abolicionistas, Aliás, esse espantalho é mais imaginário do que realmente terrível. Como o cano da pistola com que um bandido raquítico ameaçaria num canto de bosque algum robusto viajante (pistola vazia de pólvora e de balas e que só possuiria um tiro). Se o robusto viajante desconfiar do embuste, bastaria que ele estendesse o braço na direção do pequeno vagabundo para que este fugisse a todo vapor. Da mesma forma a crise fugiria se o gigante do Norte, em vez de se deixar intimidar, ousasse olhá-la no fundo dos olhos e lhe dissesse: ”Pigmeu suma de meu caminho!” verve, 25: 83-106, 2014 87 25 2014 V. Americanos, atenção: abram os olhos e os ouvidos. É a Companhia de Jesus, essa temível organização tenebrosa, cujo princípio é transformar qualquer indivíduo ou nação em cadáver, um corpo maquinal do qual ela se reserva ser a força motriz; foi ela, não duvidem, que incubou e fez eclodir o acontecimento da Secessão e o governa em proveito próprio. São suas mãos que detêm os fios que movimentam os fantoches democrata-escravagistas, os cavalheirescos chicoteadores de negros, os reacionários tanto do Sul quanto do Norte, os renegados do partido republicanoabolicionista, os ponderadores políticos, os governantes em expectativa, assim como, entre outros, Lamartine-Seward6, esse ministro-sirene do futuro gabinete, destinado a adormecer ou extraviar a opinião popular que se manifestou triunfante na última eleição presidencial. A Companhia de Jesus, através do instrumento do confessionário, onde vêm se ajoelhar milhares de criados irlandeses, sabe tudo o que acontece em suas casas burguesas, e através das relações dessas mulheres e das operárias da mesma nação com seus amantes ou maridos, também o que está acontecendo na mansarda e na oficina do proletário. A metade dos seus empregados de escritório ou loja é formada de irlandeses, animais católicos, e que se prestam como espiões da Companhia de Jesus. Bom número de franceses de todas as classes se alista nas seções dessa sociedade de malfeitoria secreta. Os padres jesuítas levaram quase três quartos de século para tramar sua rede e com ela já cobriram a União. Agora, como autoritários caçadores de pássaros, imaginem o que eles não farão brilhar a seus olhos, pobres americanos, para aprisioná-los como andorinhas? Vocês esvoaçam ao redor do perigo e nem parecem desconfiar disso. 88 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana Quem muito viu pode ter muito compreendido. Então, ouçam! Pois, eu lhes digo, se vocês não enxergarem segundo a lógica libertária, essa será a história de amanhã. Mas, em primeiro lugar, vamos relembrar num curto histórico os fatos que provocaram a situação: a exposição do passado é uma baliza para o que deverá se seguir. VI. Os filhos da Grã-Bretanha, essa terra do livre exame, os emigrados do outro século para o solo da América, não podendo suportar por mais tempo o jugo vexatório da autoridade metropolitana, dilaceraram pela palavra e a espada o velho pacto ao qual os tinham amarrado os pais legais da mãe-pátria: eles proclamaram a independência e a união das colônias insurgidas. A República do pavilhão constelado de estrelas foi inaugurada por esses descendentes de regicidas, sobre os trapos da Constituição real lacerada e lançada aos quatro ventos. Foi desde então que a raça das Missões Jesuíticas encaminhou-se para esse jovem rebento de liberdade para aí tomar posição, e na época da maturidade da árvore, devorar seus frutos como um verme roedor. A escravidão dos negros existia na Constituição real: vergonhosamente, a Constituição republicana a manteve, para não melindrar os preconceitos sórdidos de muitos patrícios, proprietários de hilotas7, e formar com todos os Estados um feixe capaz de resistir à invasão, caso a coroa da Inglaterra persistisse em querer recuperar suas possessões perdidas. A hora do abolicionismo universal só ressoava fracamente no relógio das consciências. A Revolução francesa ainda não tinha agitado seu archote de igualdade sobre o Mundo! verve, 25: 83-106, 2014 89 25 2014 Entretanto, a nação americana se desenvolvia. Novas estrelas se acrescentavam constitucionalmente ao núcleo das primeiras: seu pavilhão vitorioso passeava pelos mares suas mercadorias, suas matérias-primas, arrecadando tributos das outras nações; aos produtos do solo vinham se juntar os produtos da indústria; seus trabalhadores brancos prosperavam. Ela parecia possuir, também no plano moral, o vapor que aplicara ao plano físico. Parecia se encaminhar para a grandeza, como uma locomotiva avança para seu destino numa estrada de ferro. E salvo algumas agitações sulinas logo reprimidas, salvo também algumas bancarrotas periódicas atingindo o antigo continente, bancarrotas conhecidas sob o nome de crises, por meio das quais se estabelecia a intervalos cada vez mais próximos o equilíbrio entre seu menos de produção e seu mais de consumo; salvo principalmente seu vício capital, o pecado da escravidão, ela podia iludir, e ser considerada na má sociedade dos Estados atuais como modelo para os Estados. Mas eis que repentinamente a mão da decadência agarrou-a pelos cabelos na via férrea de sua grandeza, emperrando suas rodas! A constituição legal e inamovível foi a causa da prematura decadência da República americana; foi isso que entravou seu livre desenvolvimento, confinando-a aos lençóis petrificados de seu berço. Um povo, da mesma forma que um homem, não pode consumir mais do que ele produz, sem logo expor-se à punição pública, à falta cotidiana do necessário. E devo dizer, o Povo dos Estados Unidos produz menos do que consome, como atestam as estatísticas de importação e exportação. Por que isso acontece? É o que iremos ver. Novos emigrados, como os emigrados de antes de 1776, deixam todos os dias o 90 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana solo ingrato da velha Europa, que se tornou estéril devido às instituições autoritárias, e vêm pedir à República do Novo Mundo o emprego de suas faculdades produtivas e consumistas. A constituição republicana dos Estados Unidos de hoje, como a constituição real das colônias de antigamente – longe de acolher com ardores amorosos esses trabalhadores cujos braços são poderosos instrumentos de prosperidade coletiva – trata-os como madrasta; entregaos indefesos à avidez dos exploradores, abandona-os à mercê das talhas e corveias do senhor. Ela só sabe abrigar maternalmente a imunda feudalidade, capitalistas, vendedores parasitas, políticos e bíblicos, negociantes de leis divinas e humanas, devoradores desavergonhados de contribuintes. Assim, tanto deste lado do Oceano quanto em sua outra margem, o proletariado aumenta diariamente em número e miséria: vai se amontoando sobre a cena pública; de forma que, mal tendo sido abolida a escravidão direta e seccional, a dos negros, irá surgir repentinamente a questão dos escravos brancos, o abolicionismo da escravidão indireta e universal. Cabe aos proletários, esses emigrados de todos os países e os novos colonos da América; cabe a eles, como coube aos emigrados de há três quartos de século, libertar-se do jugo vexatório da Constituição, lacerá-la, e substituí-la por uma obra socialista, outra Declaração de Independência dos Trabalhadores-Unidos. VII. Os jesuítas, que vigiam atentamente qualquer pulsação do Progresso para sufocá-la, sabem que o partido republicano-negro, uma vez engajado na via da verve, 25: 83-106, 2014 91 25 2014 emancipação, deverá logo ceder passagem para a massa de republicanos de qualquer pele, abolicionistas do Proletariado. O Progresso é como uma engrenagem de moinho: depois de abocanhar o dedo da Resistência, também irá agarrar a mão, depois o braço, depois o restante do corpo. É por isso que os Jesuítas, ainda que o Sul pereça, lutarão sem misericórdia, sob a máscara dos fazendeiros, para salvar o princípio de autoridade. Seus sectários nos Estados Livres contam-se por milhões, nas hordas de irlandeses cuja imigração, não sem cálculo, eles sempre facilitaram. Já corre o boato no Norte do recrutamento secreto, num objetivo não confessado, de dezembristas8. Pois as coisas se passam por aqui de forma quase idêntica às que aconteceram na França, antes do 24 de Junho [de 1793]9 e do 2 de Dezembro [de 1851]10. Os jornalistas e oradores devotados à Companhia de Jesus destilam na sombra o veneno, fazendo-o jorrar cotidianamente de seu alvéolo venal. Eles travestem o sentido das palavras: qualificam com o nome de Revolução a Reação escravagista contra o movimento abolicionista, como em outro momento, em 1848, qualificavam com as palavras honestos e moderados os burgueses massacradores de Ruão e de Paris. Eles falam de “plebiscito, de apelo ao povo”, como falavam em 1793 para arrancar o traidor Capet do gládio justiceiro da Convenção11 – certos de que o escrutínio os favoreceria hoje, como favoreceu os desígnios da Ordem em dezembro de 1851, ainda que devam empregar para pressionar os votos, os mesmo pérfidos e sangrentos meios. Finalmente, eles imploram, juram, invocam céu e terra, e insinuam caridosamente que seria preciso que o nosso bom Deus pai nos enviasse um homem providencial que concentrasse em sua pessoa todos 92 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana os poderes, para salvar a União. Alquimistas políticos, do fundo de seus laboratórios de redação vão inflamando a opinião pública, preparando-a para receber a Ditadura, cadinho de onde deve sair sua pedra filosofal, ou seja, o cesarismo imperial. Como os jesuítas, esses selvagens guardiões do absolutismo, essas horríveis vestais de batina, cuja missão é alimentar sempre e por toda a parte o fogo sagrado da arbitrariedade, não podem permitir que Lincoln sente-se na poltrona presidencial, pois moralmente isso significaria, para os escravagistas, o impulso à engrenagem abolicionista: eles vão tentar sob o nome político do Sul, e em uma hora noturna qualquer, apoderar-se antes de 04 de março do Capitólio e da Casa Branca, para aí instalar alguma combinação conveniente, um Poder dito de Salvação-Pública, talvez sob a forma de um desertor do partido republicano, homem-isca lançado para seduzir os ingênuos e fazê-los engolir o anzol: o princípio de autoridade. Uma vez dado o Golpe de Estado, uma vez armada a cilada, irá ser convocada sua sanção pelo Povo (plebiscito). E o Povo surpreendido, a plebe, por um momento perdida ou intimidada, e apesar da sua consciência que dirá não, mas na esperança de colocar fim à crise e de ver retornar o trabalho, a plebe, enfim, habituada pela Constituição a delegar sua soberania, responderá: Sim! Como a plebe da França em 185112. Entronizada a Ditadura, isso significará para a República dita do self-gouvernment a última agonia. Pouco depois, nesse leito de Procusto13, numa operação cesariana, ela irá parir por inteiro a Monarquia. verve, 25: 83-106, 2014 93 25 2014 VIII. Americanos, esse é o plano dos jesuítas. Eu o denuncio a vocês. Vocês são homens para desmanchá-lo? Temo que não. Como o povo de França, vocês admiram os espertos, os smarts; os políticos de vocês, tanto aqueles que querem defender quanto os que querem violar a Constituição, são aqui, como na França no 02 de dezembro [de 1851], personagens desconsiderados, inimigos ambos da liberdade industrial e intelectual do proletariado. A sua Constituição e suas assembleias legislativas lhes impõem vergonha e miséria, as leis sobre os escravos fugitivos e do domingo e as leis protetoras dos [privilégios] do Rico e atentatórias aos direitos dos Pobres. Gemendo sob os sofrimentos que os massacram, vocês ainda não entenderam qual é o remédio. Que pena! Como há dez anos seus irmãos do velho continente – vocês têm nove chances contra uma de cair na armadilha que espreita seus passos! É provável que não sigam o conselho que lhes dou. Nessa questão, como na questão greves. Ainda desta vez devo ter pregado no deserto. Não faz mal, o que não está maduro, amadurecerá, a ideia semeada não está perdida para a colheita. A boa palavra, que hoje se chama Socialismo, mas que antigamente se chamava Cristianismo, não saiu triunfante do deserto? Mais de um profeta precedeu o Messias!... Profetas da Nova Ciência, não cansemos de professá-la. Ela já teve seu Jordão, o Sena! Onde foi batizada em Junho de 184814!... Se, por infelicidade, eu tiver que presenciar ainda o sucesso deste outro golpe de Estados dos jesuítas, que os democrata-escravagistas levem a melhor e violem a União; pois bem, eu vou me consolar imaginando que os jesuítas, que são seus diretores ocultos, no final das contas 94 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana e depois de todas as suas vitórias, só conseguiram propagar o incêndio que eles queriam apagar, a ideia revolucionária que queriam sufocar. Bombeiros enfeitiçados, quando pensavam estar lançando água, era óleo que jogavam no fogo!... Tomo como testemunha aquilo que acontece neste tempo do outro lado do Atlântico, nessa Europa sujeitada onde eles reinam e que se encontra às vésperas de uma transformação social universal. IX. Mas para voltar à questão americana. Não há nada simples no mundo, tudo é composto; e os complôs dos jesuítas são como qualquer outra coisa. Os jesuítas não são gente de ter apenas uma corda em seu arco, uma única flecha em sua aljava. Caso a corda do golpe de Estado arrebente, se eles não conseguirem fazer com que os conjurados escravistas tomem a capital federal, e se fracassarem em seu projeto de apelo ao Povo, eles irão lançar mão da Secessão, e usarão sem escrúpulos essa corda. Uma vez inteiramente operada a divisão entre o Sul e o Norte, seria necessário que eles fossem muito inábeis para não conseguir organizar enquanto monarquia os 14 Estados sulistas, e garantir para essa monarquia a aliança da França imperial e de todas as outras nações católicas sobre as quais exercem controle: até mesmo a aliança comercial da Inglaterra. Ali, nesse regaço do escravagismo, em meio a seus caros filhos, os fazendeiros, seus esforços seriam infalivelmente coroados de sucesso, a menos que a insurreição servil entrasse em jogo, e que armada com a tocha e o gládio, ela também redigisse, com traços de sangue e chama, sua Declaração de Independência, a verve, 25: 83-106, 2014 95 25 2014 liberdade das colônias africanas, a decadência do Poder dos fazendeiros.... X. Expus a situação. Mostrei os perigos. Vejamos quais são os meios de conjurá-los. XI. O proletário branco é o irmão natural do escravo negro, deve-lhe seu apoio, e ele seguramente o daria se não estivesse aprisionado pela Constituição. Não há dúvida que se tomássemos cada americano em separado e perguntássemos sua opinião sobre a escravidão, a grande maioria responderia com sua condenação; e isso não somente no Norte, mas também no Sul. Apenas a violência e a astúcia governamentais impedem que tanto o Norte quanto o Sul a manifestem. No Norte, pelos editos dos governantes oriundos da intriga e da corrupção, e que relegam à condição de párias os homens de cor livres, visando alimentar, na plebe branca, preconceitos absurdos, tornando-a moralmente escrava, para governá-la mais facilmente e para a perpetuidade; de maneira que, nos próprios Estados livres, o proletário branco não ousa tratar como igual seu irmão, o proletário negro, com medo de atrair a reprovação dos gentlemen, a acusação de seus patrões e senhores de todo tipo; de forma absolutamente igual àquele que, liberado de toda superstição em Deus, não deixa de ir ao templo, para um casamento, batismo ou enterro, temendo ser notado pelos detentores do capital, de todos os tiranos políticos e religiosos, e de ser, como ateu, privado de seu ganha-pão. 96 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana No Sul, é ainda pior. Lá, para ousar manifestar uma opinião abolicionista, é preciso enfrentar a prisão, o cadafalso, o punhal, o revólver, o espancamento, suplícios bárbaros e cruéis, a lei de Lynch15 infligida por bandos de loffers a soldo dos fazendeiros e de sua criadagem política, os corpos legislativos e executivos do Estado. Existem no Norte homens que falam da inferioridade dos negros. Supondo-se que eles próprios não sejam inferiores aos negros (e eu seria bem tentado a pensar isso constatando seu lastimável raciocínio), que eles se deem ao trabalho de visitar certos bairros de Nova Iorque; que aí contemplem um pouco essas horríveis faces irlandesas, esses homens, essas mulheres, essas crianças que nada têm de humano e que, no entanto, desfrutam do título de cidadãos livres – opróbrios da República – escravos da Fé, e que o pastor da Igreja romana conduz com golpes de hissope nas sendas do cretinismo!... E vamos ver se depois disso, eles ainda vão ousar apregoar a superioridade dos brancos sobre os negros. Eu os desafio a encontrar algo tão ignóbil e feroz quanto os traços dessas bestas brancas, desses seres, nascidos para fazer homens e degenerados em animais católicos! Oh, Religião! É nisso, entretanto, que transformas a criatura, humana! Que bela imagem de teu Deus!!! Se os negros dos Estados Livres não são mais desenvolvidos do que são, a culpa é da interdição que faz pesar sobre eles a legislação branca, e da Religião, que lhes ensina a submissão frente aos dominadores, em vez da revolta. Há no Sul homens que falam da necessidade dos escravos negros para se cultivar o algodão; esses são os proprietários das plantações algodoeiras. O proletário branco, eles dizem, não poderia fazer esse trabalho; o sol verve, 25: 83-106, 2014 97 25 2014 o mataria. Tocante e meiga filantropia desse crocodilo! E que combina realmente muito bem com esses anfitriões das margens dos pântanos! Como então acontece que, no Sul, onde supostamente tanto se teme expor os brancos à cultura do algodão, sejam precisamente esses mesmos brancos que realizem os trabalhos mais assassinos e, além disso, os realizem excluindo os negros? Digam, por favor, quem é que desbrava as terras virgens!? Quem abre as estradas? Quem escava os canais? Quem, nas barragens infectas e escaldantes dos rios, carrega e descarrega os barcos a vapor? Quem? Digam! Não são os brancos? Esses brancos não estão, sim ou não, nessas ocasiões, à mercê dos raios fulminantes do sol? Estariam eles protegidos dos miasmas pestilentos quando remexem com a pá ou a enxada a terra fétida do canal que escavam ou da estrada de ferro que aterram? Respondam, escravagistas, seus covardes impostores! Por acaso vocês se arriscariam a colocar os negros de suas plantações nesses trabalhos? Não! Pois vocês, comerciantes de carne humana, sabem que a febre os dizimaria, e por isso preferem sacrificar a vida dos proletários brancos do que as dos escravos negros, já que estes são sua propriedade, um rebanho com valor, e os outros não custam nada. Como Napoleão I, esse açougueiro de campo de batalha que, na sangrenta arena em que os cadáveres eram contados, lamentava o número de cavalos mortos e permanecia impassível diante das pilhas de cavaleiros assassinados, vocês dizem: os proletários podem ser substituídos! A fome, esse recrutador forçado, vai nos enviar outros! A escravidão direta dos negros, essa abominável monstruosidade moderna, é um anacronismo em um século onde vibra a questão de emancipação dos escravos 98 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana brancos, a libertação do proletariado. Na verdade, hoje não é mais pelos argumentos da palavra que deveríamos responder a esses energúmenos de outra época, a esses refugos e fantasmas do baixo Império Romano, mas sim pela espada e o canhão. Os beneficiários e apoiadores de tal sistema estão fora da lei humana. Não há o que discutir com essas existências de canibais, civilizados sulinos que parecem esculpidos com o limo dos crocodilos... Só nos resta suprimi-los! Qualquer compromisso com o escravagismo é um crime. Necessário é o brilho da Justiça! XII. Falou-se de Plebiscito, de apelo ao Povo. Pois bem, isso que acabei de propor, minha solução, também é o apelo ao Povo: não um apelo ao povo efêmero, mas permanente; não um simples plebiscito por um sim ou um não num compromisso redigido arbitrariamente pelos mandarins revestidos das insígnias da autoridade: mas o Povo (e não mais desta vez a plebe, como indica claramente a palavra plebiscito) na posse imediata e constante de sua inalienável, sua imprescritível soberania: ou seja, o próprio povo votando universal e diretamente todas as leis sob inspiração de minha an-árquica iniciativa. Com o que estão atualmente ocupadas as assembleias legislativas representativas? Com seus interesses particulares e não com os do povo. Com o que poderiam se ocupar as assembleias legislativas universais e diretas senão, direta e universalmente com os interesses do povo e não com os de uma casta? Então, não haveria mais na República o temor de interesses seccionais; apenas o interesse geral faria lei; o interesse soberano de cada um, verve, 25: 83-106, 2014 99 25 2014 o interesse individual adicionado seria sua salvaguarda dali em diante. A legislação representativa significa para o povo o alarido dos instrumentos que preludiam representa para a orquestra; a legislação universal e direta é o acordo de todos os instrumentos sob a batuta unitária do interesse comum. Uma delas, a primeira não passa de uma horrível balbúrdia; a outra, a segunda, produziria a harmonia. Americanos, a legislação direta e universal é o único remédio para o mal que vos gangrena. Enquanto vocês votarem nos seus comícios eleitorais em homens – que na véspera os adulam e no dia seguinte irão devorá-los – em vez de votar direta e universalmente pela lei; enquanto vocês delegarem, isto é, abdicarem do poder em favor de mãos de representantes absolutamente infiéis, em vez de exercê-lo vocês mesmos e se governarem de acordo com suas próprias leis, enquanto, enfim, não se conscientizarem do primeiro de seus direitos como cidadãos, direito de soberania direta, e não o reivindicarem imperiosamente, serão enganados por intrigantes, vítimas de suas ações e gestos; eles os tratarão como súditos, vencidos... desde o mais distinguido com honrarias, o mandatário que ocupa a Casa Branca, até o mais desprezado, o mandante que ocupa os porões de Five-Points16– enfim, toda a maçonaria de espertalhões que os roubam e assassinam com impunidade, em nome da organização política e autoritária atual, e sob a proteção latente ou visível dos juízes e policiais, seus cúmplices em prevaricação. A União encontra-se em grave perigo. Tanto a desagregação dos Estados, como a dos indivíduos, é um fato consumado, que se agrava a cada dia. Há caos por toda parte, na imprensa, no congresso, no poder executivo, 100 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana nos partidos, seja no partido republicano, seja no partido democrata. Grandes males pedem grandes remédios. Que a doente pereça, caso não possa suportar o remédio que pode curá-la! Pereça a União, se ela não puder suportar a libertação dos negros, a igualdade entre os homens! O último paládio da escravidão, a Constituição de 1787, foi rasgada cegamente pelo Sul. O governo federal não tem nada para obrigar os Estados seccionistas à obediência. Não me queixo; pelo contrário, só constato. De fato, como em direito, a Constituição do outro século não existe mais. O pacto que unia a vida à morte, a geração presente à passada, não mais existe, está rompido. A bastilha liberticida caiu. Escravos, respirem!... Agora, o dever de cada um dos membros que formavam a União é organizar-se numa nova sociedade em melhores bases, em bases de progresso social, conclamando todo o mundo, sem distinção de sexo nem de raça, ao governo da Coisa Pública. Aí está a salvação. Não é um homem, mesmo que ele se chamasse Washington, que pode salvar a República, nem cem, nem mil, nem cem mil: é todo o povo. A ditadura de Washington, ditadura bastante especial e exclusivamente militar, foi mais nominal que real: foi por estarem unidos em um mesmo e anárquico sentimento de independência que os colonos dos Estados triunfaram sobre os ingleses. Fora do povo universal e diretamente soberano, não há salvação! Que o povo em sua universalidade faça diretamente o que ele quiser, e o que quer que isso seja, será bom, desde que, tendo-o finalmente recuperado, ele guarde para sempre seu cetro, o voto soberano. Se um dia ele votar uma lei má, caso se ferir, não importa! A legislação direta e universal é como a lança da mitologia, que curava verve, 25: 83-106, 2014 101 25 2014 com seu ferro os ferimentos que seu ferro causara: o voto do dia seguinte cura o voto da véspera. Americanos, vocês desejam ser os operários de seu destino, os regeneradores da União, os promotores de uma nova Declaração de Independência? A partir de agora, que não mais exista Constituição imutável! Que não mais haja correntes que entravem o desenvolvimento das capacidades populares! Mas sim a constatação, a cada dia, pelo voto universal e direto, do movimento perpétuo e progressivo que constitui o corpo social, a individualidade nacional. Alerta! Americanos! Alerta! Os Jesuítas,os escravagistas, estão às suas portas! Os jesuítas, os absolutistas, batem às suas muralhas! De pé! Contra os inimigos noturnos! Avante! Contra os autoritários!!!! Povo, salve a República!! XIII. Neste solo que não me viu nascer e no qual a ira contra a Autoridade me fez buscar um refúgio; vivendo em teu meio, povo americano, que eu gostaria que fosse menos religioso e mais socialista; eu, homem livre do globo, e me considerando em qualquer lugar como em minha pátria, tentei nas páginas precedentes esclarecê-lo sobre os perigos que o ameaçam; tentei iniciá-lo um pouco nas ideias de liberação que vicejam na Europa. Fiz o que ditou minha consciência, o que me impôs o dever. Homens de meu continente lhe trouxeram, outrora, o apoio de suas espadas; voluntário da Revolução universal também coloco minha arma, minha pluma, a serviço de sua causa. Que hoje ela possa pesar tanto quanto o gládio pesou 102 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana então, no prato de seu livre destino. Possam os homens que falam sua língua traduzir meu pensamento, eco dos pensamentos da multidão natal. E agora, irmãos de América, se vocês forem realmente os filhos de seus pais, se forem revolucionários na sua época como eles foram na deles, estou aqui engajando com vocês minha vida, meus braços, que são meus únicos bens, e minha honra, pela manutenção do Progresso e a salvação comum, a conquista da liberdade! Tradução do francês por Martha Gambini. Notas Artigo publicado na edição n. 27 de Le Libertaire, lançado em 04 de fevereiro de 1861. O texto é uma conclamação aos trabalhadores estadunidenses, negros e brancos, à luta pela democracia direta e contra o imobilismo conservador do sistema político e econômico estadunidense às vésperas, e já no contexto do início da guerra entre os Estados do norte e do sul dos EUA. A chamada Guerra de Secessão começou pouco depois, no dia 15 de abril, quando tropas do sul atacaram o forte Sumter, em Charleston, na Carolina do Sul. A guerra civil terminou em junho de 1865, após a morte de aproximadamente oitocentas mil pessoas, com a vitória do norte. Déjacque retornou à França no final da vida, mas desapareceu sem deixar vestígio (N.E.). 1 Déjacque refere-se a execução do abolicionista branco americano John Brown, morto por enforcamento em 1859 após ter liderado uma revolta de negros na Virginia contra a escravidão (N.T.). 2 O autor faz menção à guerra civil que aconteceu entre 1791 e 1796 na Vendeia, ou Vendée em francês, na costa da região do Loire entre contrarrevolucionários e as tropas da Primeira República Francesa (N. E.). 3 Déjacque se refere ao conflito conhecido como Chouannerie, rebelião de caráter monarquista contra a Revolução Francesa, iniciada por volta de 1792 e que foi coligada ao levante monarquista da Vendeia (N.E.). 4 verve, 25: 83-106, 2014 103 25 2014 Déjacque elabora várias comparações à situação dos EUA com a da França revolucionária do final do século XVIII, a de 1848 e a do período do Golpe de Estado de Luís Napoleão, em 1851. O autor não se alonga na explicação desses fatos históricos, provavelmente por supô-los conhecidos aos seus leitores. Por isso, tais analogias serão detalhadas, em nota, ao longo do texto (N.E.). 5 Déjacque refere-se a William Seward (1801-1872), governador de Nova Iorque, senador e secretário de Estado no governo de Abraham Lincoln que foi um dos mais destacados opositores à escravidão no Partido Republicado. É provável que Déjacque compare Seward a Alphonse de Lamartine (17901869), poeta e diplomata francês que participou da experiência republicana de 1848 e foi opositor ao golpe de Luís Napoleão (N.E.). 6 O autor usa a expressão “hilota” como sinônimo para “escravo”, pois assim eram nomeados os escravos entre os espartanos na Grécia Antiga (aproximadamente do século IX a.C. ao I a.C), ainda que em Esparta essas pessoas fossem propriedade da pólis e não de indivíduos (N.E.). 7 Expressão derivada de “setembristas” (“septembriseus”), nome dado aos participantes dos massacres dos prisioneiros políticos em setembro de 1792 (N.T.). 8 O autor faz menção ao período de radicalização política e social dentro do processo revolucionário francês que se iniciou com o golpe sans-culotte contra os grupos da burguesia girondina e a promulgação de uma nova constituição em 24 de junho de 1793 que procurou aprofundar a declaração de direitos de 1789. Nos meses que se seguiram, o grupo reunido nos Comitês de Salvação da Pública, liderados por Maximilien Robespierre (1758-94) e Louis-Antoine de Saint-Just assumiram relevo até controlarem o Estado iniciando o período conhecido como “Terror” a partir de outubro desse mesmo ano até meados de 1794, com a execução de ambos na guilhotina (N.E.). 9 O autor faz referência ao golpe de Estado de Luis Napoleão Bonaparte, ocorrido no dia 02 de dezembro de 1851, que levou à dissolução da Segunda República Francesa e posterior estabelecimento do Segundo Império (N.E.). 10 Referência do autor a Loius Capet, ou Luís XVI, rei francês condenado à guilhotina pela Convenção em 1793 (N.E.). 11 O autor faz menção ao fato de que o golpe de Estado de Luis Napoleão, com a dissolução da Assembleia Nacional e posterior autonomeação como 12 104 verve, 25: 83-106, 2014 verve A questão americana imperador, com mandato de dez anos, tenha sido aprovado em referendo popular (N.E.). O autor se refere ao personagem presente numa das lendas de Teseu, na Grécia Antiga. Procusto capturava pessoas e as fazia deitar em um leito de ferro. Como dispunha de duas camas de tamanhos distintos, nunca os cativos estavam adaptados ao leito: ou eram altos demais ou baixos demais. Então, Procusto os amputava ou esticava a fim de que coubessem na cama. Teseu capturou Procusto, aplicando-lhe o mesmo castigo: prendeu-o à cama e, sendo maior do que o estrado, amputou-lhe a cabeça e os pés (N.E.). 13 O autor faz referência aos levantes socialistas em Paris, em junho de 1848, contra o retrocesso no processo revolucionário e a guinada conservadora nos rumos da Assembleia Nacional. Os sublevados parisienses, reunindo proudhonianos, blanquistas entre outras vertentes do emergente socialismo foram massacrados por forças militares autorizadas pela Assembleia Nacional em quatro dias de ferozes combates nas ruas de Paris (N.E.). 14 Déjacque refere-se à “Lei de Lynch”, método de espancamento e execução sumários conduzido pelo capitão William Lynch durante a guerra de independência dos EUA, no século XVIII, e que se disseminou pelo país no século XIX praticado por grupos racistas voltados contra índios, negros e imigrantes que – muitas vezes oficialmente protegidos por lei – eram assassinados sem passar pelos procedimentos burocráticos e jurídicos do Estado. Do sobrenome de Lynch derivou o substantivo linchamento e o verbo linchar (N.E.). 15 Bairro de Nova Iorque ocupado por imigrantes na segunda metade do século XIX, na sua maioria irlandeses, célebre pelas condições de miséria e violência em que viviam seus habitantes (N. T.). 16 verve, 25: 83-106, 2014 105 25 2014 Resumo Joseph Déjacque conclama nesse artigo, escrito em 1861 quando vivia nos EUA, os trabalhadores americanos, brancos e negros, a levantarem-se contra a deriva conservadora que havia tomado o republicanismo estadunidense, lutando contra a escravidão e abraçando a democracia direta como meio para evitar a tirania e o retorno da monarquia associada à prédica e à ação política religiosas. Palavras-chave: libertarismo, Estados Unidos, abolicionismo antiescravagista. Abstract Joseph Déjacque acclaims in this article, written in 1861 while living in the USA, the American workers, both white and black, to stand against the conservative derive of the American republicanism, fighting the slavery and embracing the direct democracy as a means to avoid the tyranny and the return of the monarchy associated with the religious preaching and political activism. Keywords: libertarism, abolitionism. United States, antislavery The American question: the inevitable conflict. Acclaim to the People, Joseph Déjacque. Recebido em 25 de novembro de 2013. Confirmado para publicação em 15 de março de 2014. 106 verve, 25: 83-106, 2014 verve cartografias da interiorização penitenciária no estado de são paulo james humberto zomighani júnior A partir dos anos 1990, um número cada vez maior de penitenciárias passou a ser construído no Estado de São Paulo (SP), sendo a maior parte delas no interior. Somente o processo de desativação da Casa de Detenção do Carandiru (concluído em 2002) levou à construção de 21 novas penitenciárias no interior paulista, criando um fluxo migratório contrário ao comumente encontrado até então, que ia das pequenas para as grandes cidades. Apesar de uma relativa ampliação da área de organização do sistema penitenciário paulista, o aprisionamento ainda continua muito intenso e concentrado na cidade de São Paulo. No ano de 2012, a capital abrigava 27% da população estadual, sendo nela realizadas 34% do total de prisões do Estado de São Paulo. Este possui 645 municípios, mas em apenas 10 deles, naquele mesmo ano, foram realizadas 48% do total de prisões pelas polícias civil e militar.1 A interiorização penitenciária tem promovido inúmeras outras implicações além deste aumento dos fluxos na James Humberto Zomighani Júnior é doutor em Geografia Humana pela FFLCH/ USP. É professor na UNILA - Universidade Federal da Integração Latino Americana. Contato:[email protected]. verve, 25: 109-128, 2014 109 25 2014 direção capital-interior (presos, famílias e outros visitantes, fornecedores), bem como diversas mudanças na vida de relações sociais, políticas e econômicas dos pequenos municípios do interior. Em muitas entrevistas realizadas pela grande mídia ou canais alternativos de comunicação2, parte da população local demonstra grande sentimento de desaprovação com a interiorização das penitenciárias; é comum ouvir dos habitantes das pequenas cidades que as condições de vida e tranquilidade têm piorado em locais cuja fama já foi a da vida pacata: “mandam para cá os problemas de São Paulo, mas não as soluções para nossos problemas [locais]”; “o fim do inferno do Carandiru significou o fim do sossego no interior”; “queríamos uma universidade ou indústria, não uma prisão”. Todos esses argumentos demonstram desagrado dos habitantes das pequenas localidades que têm recebido novas unidades prisionais em detrimento de outros investimentos sociais e produtivos desejados. Início da interiorização do sistema penitenciário A partir dos anos 1980, aumenta a tensão social nas grandes cidades paulistas como consequência de uma crise política e econômica coincidente com o fim da ditadura civil-militar, mas resultante das políticas implementadas durante o período de exceção. Houve grande aumento da pobreza e do desemprego, juntamente com um apelo político por parte das classes médias e das elites por ampliação da repressão policial, resultando em maior criminalização dos mais pobres e aumento exponencial do aprisionamento. 110 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo O aumento do número de presos deteriorou ainda mais as já péssimas condições dos sistemas de detenção e penitenciário da capital, constituídos principalmente por celas nas sedes de Distritos Policiais (DPs) – para os presos provisórios –, e a Casa de Detenção de São Paulo, como destino de grande parte dos condenados na capital. Entre 1980 e 1990, apesar das seguidas crises nas unidades prisionais da capital e da região metropolitana de São Paulo, não houve diminuição no ritmo do aprisionamento. Assim, aqueles locais passaram a revelar toda a mazela da política social da época, centrada em políticas repressivas, com sucessivas crises caracterizadas por rebeliões, mortes e fugas. Esses eventos, incansavelmente explorados de forma sensacionalista pela grande mídia escrita e televisiva, promoviam enorme publicidade negativa para os governos da época. Pela ampla cobertura e difusão midiáticas da crise prisional, seus efeitos também atingiram outros milhões de pessoas, que indiretamente sentiram o terror do cotidiano carcerário que aterrorizava diretamente os moradores do entorno das unidades prisionais da capital e da região metropolitana. Esses eventos contribuíram para a enorme rejeição à presença das unidades prisionais nas áreas densamente povoadas do Estado.3 Diante desta situação caótica, os governos da época se recusavam a admitir que, mesmo com a aceleração do aprisionamento, a violência criminal continuava a aumentar aceleradamente. A saída política encontrada foi a de retirar dos grandes centros urbanos a enorme massa carcerária que não parava de crescer, e alocá-la em pequenos municípios onde a visibilidade dos problemas verve, 25: 109-128, 2014 111 25 2014 seria mínima, e as perdas políticas – pelo número reduzido de eleitores neles existentes, ou possibilidades de atrair a atenção da grande mídia –, insignificantes. Com o objetivo de diminuir a tensão metropolitana, tendo como apelo resolver o problema da superlotação, falta de vagas e aumento do aprisionamento, outras regiões do território paulista passaram a ser requisitadas, com frequência cada vez maior, para expansão do sistema penitenciário estadual. Este, então, ultrapassou os limites metropolitanos, passando a utilizar o território dos pequenos municípios do interior para isolar pessoas presas nos grandes centros urbanos, criando um grande fluxo penitenciário em direção ao interior do Estado de São Paulo e trazendo diversas implicações, como será visto adiante. Sob outra ótica – relacionada ao discurso do medo que alimenta a sensação de insegurança e que sustenta respostas políticas ineficazes porque não alteram as estruturas da sociedade –, ignora-se a verdadeira causa das contradições sociais concentradas nas desigualdades e violência estrutural existentes principalmente nas grandes cidades e metrópoles, como São Paulo. Sob um viés político e ideológico, a centralidade da questão penitenciária contemporânea no Brasil decorre de uma associação quase direta e imediata, mas simplista e incorreta, feita pela grande mídia, entre a prisão e o controle social da violência. O discurso da violência, também bastante lucrativo para a mídia e a indústria do controle do crime, alimenta um enorme sentimento de insegurança que se confunde com o medo de se viver e se estar nas cidades, ou com a parcela desconhecida de seus problemas estruturais ou conjunturais. Torna-se, assim, comum a afirmação de que 112 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo “deve-se prender mais para diminuir a violência na sociedade”4, exigindo-se das autoridades e governos a ampliação do aprisionamento na tratativa de problemas sociais como as profundas desigualdades, o desmantelamento das escolas e o estímulo midiático a um consumismo crescente e sem freios, como sinônimo de status e realização social. Alimenta-se a crença de um inimigo interno, em detrimento da melhoria de condições de vida para uma grande maioria de pobres, miseráveis e excluídos. Avançava o Estado de Polícia, enquanto regredia o Estado de Direito no país.5 De forma inconsequente, com a transferência do problema penitenciário para o interior, ignorava-se em profundidade todas as implicações e agentes sociais envolvidos, sendo os principais os prisioneiros, suas famílias e a sociedade desses pequenos municípios do interior do estado de São Paulo que passaram a receber as novas prisões. No entanto, outros laços foram criados, decorrentes dos fluxos que passaram a existir entre os grandes centros urbanos e as pequenas localidades, pelo movimento de pessoas (presos, policiais, agentes penitenciários, visitantes), de recursos (construção e gestão das novas unidades prisionais), de normas e de ordens. Esse problema não é recente, mas possui um marco histórico que merece ser resgatado, e se confunde com a política que tem sido implementada no estado de São Paulo, ao menos nos últimos vinte anos, e que tem como resultado uma forte expansão territorial do sistema penitenciário paulista em direção aos pequenos municípios do interior do estado, com múltiplas e complexas relações com os agentes políticos e econômicos locais e estaduais. verve, 25: 109-128, 2014 113 25 2014 Usos do território como categoria de análise social No estado de São Paulo, a prisão ocupa posição cada vez mais central na vida social, pois “se prendeu mais nos últimos 15 anos do que nos 100 anos anteriores”, como costuma se gabar o governador ou altas autoridades da Secretaria de Administração Penitenciária Paulista (SAP)6. A interiorização do sistema penitenciário paulista, decorrente de uma política territorial e de um planejamento seletivo, tem modificado o quadro de vida em pequenos municípios do interior, antes relegados a atividades agrícolas ou àquelas decorrentes do funcionamento do “circuito inferior da economia urbana”7. Nessa nova etapa da divisão territorial do trabalho e das funções do Estado no território paulista neste início do século XXI, os municípios do interior passam a ser requisitados a oferecerem seu território economicamente estagnado para implantação de um novo negócio, da forma que assume o sistema penitenciário contemporâneo. Passa-se a desaguar nesses “pequenos espaços” do interior os produtos do controle social da miséria exercido pelo Estado Policial nas periferias pobres das grandes metrópoles paulistas.8 A opção política pela interiorização teve sustentação em uma condição encontrada em muitos municípios paulistas: a estagnação econômica em uma grande região do estado constituída, em maior parte, por pequenos municípios pouco dinâmicos e mal conectados às demandas e fluxos econômicos internacionais, para os quais se voltou a política de Estado em tempos de globalização da produção e da economia mundial. As áreas mais ricas do estado de São Paulo, conectadas e servindo às demandas econômicas nacionais e internacionais, são também aquelas mais dinâmicas. Porém, elas con114 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo figuram em seu entorno enormes periferias como produtos da divisão territorial e social do trabalho, que encontram em sua condição geográfica a precariedade da infraestrutura e das formas de sobrevivência das parcelas mais pobres dos trabalhadores urbanos. Para esses trabalhadores, mora-se mal, mas o custo da moradia é mais baixo, o que permite às empresas o pagamento de salários menores e, desse modo, a maximização da extração da mais-valia do trabalho dessa parcela dos trabalhadores periféricos. Nessas periferias pobres das áreas mais ricas, impera o Estado Policial como mecanismo de controle social da desta população via repressão policial e aprisionamento.9 Já a escolha para a implantação das novas penitenciárias coincide com as áreas mais pobres no interior do estado, nos territórios dos pequenos municípios – aqueles pouco conectados às demandas e fluxos econômicos nacionais e internacionais, o que resulta em um tipo de modernidade seletiva – a fim de viabilizar a instituição penitenciária com recursos da ordem de bilhões de reais custeados pelo governo estadual, mas geradores de outras demandas para os governos locais (como investimentos em saúde, educação e assistência social), quase sempre sem contrapartida dos governos estadual ou federal. São essas áreas que, agora refuncionalizadas pela implantação das novas penitenciárias, passarão a abrigar outros fluxos decorrentes do funcionamento das penitenciárias, sobrecarregando a gestão local e alterando as relações sociais e econômicas. Desse modo, essa política territorial promove uma subdivisão do território do estado em duas grandes regiões: uma que se torna espaço privilegiado dos investimentos produtivos, conectada aos grandes fluxos de capital nacionais e internacionais; e outra que se encontra, há bastante tempo, em verve, 25: 109-128, 2014 115 25 2014 estágio de estagnação ou depressão econômica, cujas demandas econômicas são geradas, quase sempre, localmente. O governo estadual, ao valorizar e aprofundar essa condição regional histórica por meio do planejamento territorial das penitenciárias, contribui para agravar as desigualdades espaciais já bastante significativas na totalidade do território estadual. Prefeitos e prisões Diante do grande projeto do governo estadual de interiorização da questão penitenciária, havia a necessidade de conseguir apoio ou adesão dos prefeitos dos pequenos municípios do interior diante da nova realidade que se instalara no país após a Constituição de 1988 – com a maior autonomia política (sem contrapartida econômica) que é oferecida aos pequenos municípios brasileiros. Em relação ao posicionamento político referente à interiorização penitenciária, os prefeitos poderiam ser organizados em dois grandes grupos10: aqueles favoráveis ao processo (que acreditavam que a nova economia promovida pela penitenciária em seu município poderia reverter o quadro de estagnação econômica), e aqueles contrários, por acreditarem que a penitenciária agravaria a situação de insegurança no município. Com a ampliação do uso da palavra insegurança para além da questão criminal, pode-se considerar como alguns de seus significados: incerteza, ausência de garantia contra arbitrariedades, sensação de proximidade do perigo, hesitação, falta de convicção. No sentido jurídico, a falta de garantias de direitos fundamentais produz insegurança ou medo (de não se ter acesso à saúde, de faltar trabalho, de não se ter onde mo116 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo rar), o que também pode conduzir a um conceito geográfico: a insegurança produzida pela carência ou precariedade de infraestrutura e serviços fundamentais disponíveis, em todas as localidades, para todas as pessoas. Nesse sentido, a insegurança decorre do fato de a pessoa não ter perto de si, ou facilmente acessível, tudo o que é produto tanto da natureza, quanto do trabalho humano, e que seja indispensável à vida. O medo da violência criminal também produz insegurança e leva a reações muitas vezes despropositais e que não atacam suas causas, além de ampliarem desigualdades ou produzirem novas violências – a do carro blindado, a da cerca elétrica, a do segurança ou policial armado, a dos condomínios fechados, a das prisões –, todas elas gerando mais medo e novas inseguranças. Diante das possibilidades do mundo contemporâneo e da velocidade incessante das inovações tecnológicas, bem como da seletividade de sua implantação espacial, modernizações incompletas resultantes desse processo também reproduzem esse sentimento de insegurança – do medo do atraso,da obsolescência tecnológica, ou da utópica e incessante busca da invulnerabilidade diante do novo, desconhecido ou imponderável11. De forma mais simplista e alheia a esta compreensão maior do que significaria produzir segurança social de forma estrutural, parte dos prefeitos de municípios estagnados economicamente passou a considerar que o sistema penitenciário pudesse ser um novo gerador de emprego e renda para a população local12, bem como poderia trazer outros benefícios indiretos ao município, como o estímulo ao comércio ou ampliação da transferência de recursos estaduais ou federais13. No entanto, os principais beneficiários desse processo têm sido os pequenos comerciantes, como proprietários de verve, 25: 109-128, 2014 117 25 2014 hotéis, pousadas, pequenos restaurantes, supermercados, e donos de táxis. Eles passaram a atender tanto os funcionários quanto as famílias dos presos nos finais de semana, quando há visitas. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico de dezembro de 2012, parte significativa desses municípios possuía contextos muito particulares, dentro dos quais as prisões tinham se tornado sinônimo de oportunidades14. Porém, nas palavras de uma entrevistada para a realização deste artigo,“embora a situação seja presenciada em qualquer estabelecimento prisional, quando analisada, se nota um paradoxo, pois o impulso econômico das cidades em que as penitenciárias estão localizadas é ocasionado a partir das dificuldades e restrições pelas quais todas as famílias dos presos passam para poder visitar seus parentes”15. A dinâmica econômica local produzida pelas penitenciárias tem origem no descaso do Estado em oferecer aos presos itens de necessidade básica como alimentos e produtos de higiene, levando as famílias a adquiri-los no comércio local16, antes dependente apenas das demandas locais. Desse modo, uma porcentagem da renda das famílias pobres da capital também passa a ser direcionada para o interior, dinamizando parte do comércio e serviços no entorno das novas penitenciárias. Banimento dos presos como punição às famílias Em um intervalo de 10 anos, um dos períodos de mais forte expansão penitenciária paulista ocorrido entre 1997 e 2006, aproximadamente 1/3 dos recursos para construção ou reforma de unidades prisionais para presos temporários – os Centros de Detenção Provisória (CDPS) – foram gastos em municípios localizados a até 200 km 118 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo da capital do estado (caso de Campinas, Osasco, Taubaté e Hortolândia, entre outros). 58% foram utilizados para construção de unidades prisionais localizadas em distâncias superiores a 300 km da capital.17 Ainda em relação à distância, a maior parte das novas penitenciárias – unidades para presos condenados – foi construída a mais de 500 km da capital (caso de Dracena, Pracinha, Osvaldo Cruz e Reginópolis), e consumiu R$ 218 milhões, ou 31% do total. Dentre inúmeras implicações, essa distância acarretará maior gasto no deslocamento dos presos para audiências e escoltas na capital ou na região metropolitana, além de confrontar diretamente a Constituição Brasileira que proíbe pena de banimento e que garante o direito aos presos de receber visitas18. Merecem destaque nessa análise dois municípios cujos territórios foram utilizados para construção de Centros de Progressão Penitenciária (CPPs)19. As cidades de Pacaembu (672 vagas e 935 presos em 2011) e Valparaíso (672 vagas e 918 presos) estão localizadas a mais de 500 km da capital. A primeira tem população total de 13,2 mil habitantes e a segunda, 22,5 mil moradores, segundo o censo demográfico de 2010, realizado pelo IBGE. Com baixa densidade demográfica, pouca oferta de empregos e tradição agropecuária, estes municípios devem enfrentar muitas dificuldades para empregar presos de origem em grandes centros urbanos. Portanto, a escolha da localização dos dois CPPs não teve como critério central a funcionalidade da prisão, nem a origem dos presos. O isolamento pela distância, a facilidade de encontrar terrenos, a menor resistência da população e dos governantes locais têm sido imperativos maiores para a escolha da localização da penitenciária. verve, 25: 109-128, 2014 119 25 2014 Roteiro de visitas à prisão Consta também na Constituição Brasileira que a pena deve ser aplicada de forma individualizada.20 Para além do significado jurídico dessa afirmação (garantia de julgamentos individuais, por exemplo), a implantação de unidades penitenciárias no interior do estado tem agido como forma de punição do Estado às famílias, principalmente aquelas mais pobres, ao privá-las do contato ou dificultar sua visita aos parentes aprisionados.21 Já para o Estado, há uma escolha estratégica na localização das novas penitenciárias, sendo a distância utilizada inclusive como fator de controle sobre o comportamento dos presos, que são ameaçados de sofrer transferência para locais distantes de suas famílias caso se comportem diferentemente do desejado pela instituição penitenciária.22 Para aquelas pessoas que se lançam à extensa e cansativa jornada para visitação, geralmente em finais de semana, a rotina é bastante dura. Os grandes deslocamentos entre os locais de origem das famílias dos presos até as penitenciárias são feitos, geralmente, de forma precária, em transportes muitas vezes de baixa qualidade (muitos deles clandestinos), mas que percorrem um longo trajeto, tornando a viagem muito cansativa e desgastante. Na capital, a maior parte dos visitantes encontra-se na Rodoviária da Barra Funda, localizada na Zona Oeste da cidade, onde chegam de diversos locais e regiões no entorno da metrópole, do centro e da periferia, muitos inclusive de outros municípios da região metropolitana ou do litoral, e de onde dirigem-se para diversos municípios do interior em uma jornada que pode durar 10, 12, 15 horas ou mais até chegarem ao seu destino final de visitação. 120 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo Mesmo assim, nessas piores condições, os custos dessas viagens são altos, comprometendo parte do orçamento de famílias pobres que já sobrevivem com grandes dificuldades financeiras. Há, então, grande contraste entre a pobreza das regiões de origem das famílias dos presos e os montantes gastos para gestão do sistema penitenciário paulista23. Bem como ocorrem outros gastos das famílias com o jumbo, constituído de produtos de limpeza, higiene, alimentos e remédios que não são fornecidos pelo Estado. Produtos que, adquiridos nas pequenas localidades no entorno da prisão, movimentam a economia local24, em detrimento da melhoria de sua própria condição econômica em seus locais de origem. A grande maioria dos visitantes das penitenciárias masculinas é constituída por mulheres de todas as idades, muitas delas acompanhadas de crianças (seus filhos ou netos). Muitas vezes, o tempo da visita consome todo o final de semana, impedindo essas mulheres de se dedicarem a outras atividades nesses dias. Ao chegar ao município onde se localiza a penitenciária e aguardar o início do horário de visitas, o grupo de mulheres se divide. Aquelas com um pouco mais de recursos podem se instalar em pensões ou hotéis localizados nos arredores da prisão, já muitas outras se dirigem diretamente para as proximidades do portão principal da penitenciária, onde montam barracas formando acampamentos improvisados e precários para aguardarem as longas horas de espera até a abertura dos portões, em todas as épocas do ano, sofrendo os efeitos das intempéries do clima ou de sua condição social. Em seguida, em geral em torno das 7h, após a distribuição de senhas pela penitenciária (em número limitado, por dia de visita), já trajando vestes julgadas adequadas pela instituição penitenciária25, surge uma nova etapa de consverve, 25: 109-128, 2014 121 25 2014 trangimento, sofrimento e humilhação, principalmente para as mulheres, por conta da revista íntima26. A revista obrigatória (também chamada de revista vexatória, por conta das práticas implementadas em nome da segurança), é outra forma de violência praticada pelo Estado através da totalidade das instituições prisionais do estado de São Paulo contra os mais pobres27. Esta não é a única violência cometida contra os visitantes, mas talvez seja a mais grave. Apesar de haver um regramento da SAP para tratamento tanto dos visitantes quanto dos presos, contido em um tipo de cartilha de “direitos e deveres”, faz-se bastante elevado o grau de discricionariedade dos funcionários em cada unidade prisional. Por enfrentarem todas essas adversidades para continuarem a se relacionar com seus entes queridos, é comum as mulheres visitantes se chamarem de “guerreiras”, ou mulheres com “proceder de guerreiras”28. Conclusão O processo de interiorização das penitenciárias paulistas revela diversas contradições, dentre elas, as formas de execução de algumas políticas de Estado na gestão da miséria, ou de como ele promove usos diferenciados do território paulista, aprofundando desigualdades socioespaciais pelo planejamento territorial e organização espacial do sistema penitenciário paulista. Por um lado, temos um território extremamente fluido e moderno, aquele conectado aos grandes fluxos nacionais e internacionais e priorizado para receber os “investimentos e obras” nobres do Estado. Por outro, temos uma grande região estagnada economicamente, constituída por centenas de pequenos municípios do interior cujos territórios têm 122 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo sido utilizados como recurso para a implantação seletiva das novas unidades penitenciárias localizadas, muitas vezes, a centenas de quilômetros dos locais de origem dos prisioneiros paulistas – os grandes centros urbanos e regiões metropolitanas. A pena privativa de liberdade, diante da nova geometria do sistema penitenciário paulista, assume também uma função de banimento, trazendo inúmeras outras implicações para os presos e suas famílias. Dentre várias delas, há grande ônus pessoal e financeiro aos familiares por conta dos enormes deslocamentos realizados por parte dos visitantes que continuam a manter laços sociais com os presos condenados, constituindo-se a dimensão espacial do sistema penitenciário como uma punição também a eles. Sob o aspecto da aprovação da política penitenciária, na escala local autorizam este processo apenas aqueles comerciantes que obtêm vantagens econômicas diretas com o funcionamento da nova penitenciária, ou parte dos prefeitos interessados em dinamizar a economia municipal, ou ainda – como um fenômeno mais recente –, pela geração de empregos públicos mais bem remunerados em comparação com a média dos salários pagos in loco, pelo que muitos jovens acabam por aprovar o processo de interiorização penitenciária atualmente em curso no estado de São Paulo. Ainda é bastante desconhecido este processo de interiorização penitenciária em seus pormenores, o que exige novas reflexões e pesquisas. De todo modo, já é possível reconhecer como o território é utilizado pelo Estado ou pelas famílias dos prisioneiros, e como pode agravar sua situação de dor e pobreza como consequência de mais uma forma de gestão da miséria pelo Estado. verve, 25: 109-128, 2014 123 25 2014 Notas Os 10 municípios são, em ordem alfabética: Campinas, Osasco, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Franca, Guarulhos, Santos, São José do Rio Preto, São Paulo e Sorocaba, onde foram presas 43.713 pessoas de um total de 89.245 em todo o estado de São Paulo. 1 São exemplos de programas onde apareceram essas entrevistas o “Profissão Repórter: o dia da visita em presídios” e o “Fantástico” de 21/01/2007, exibidos pela Rede Globo, e o programa “Plano de arborização urbana do município de Sorocaba”, exibido pela Sorocaba TV Web. 2 “Somente este ano, 405 encarcerados escaparam em 52 fugas de delegacias. Só de tentativas foram 44. Em 1998 os resgates livraram 145 homens e ajudaram 2.301 condenados a fugir. Dos estabelecimentos penais escaparam 5.888 detentos no ano passado em todo o Estado. E até maio deste ano mais 1.832 presos estavam foragidos. Foi-se o tempo que era seguro morar próximo a uma delegacia. (...) Na Casa de Detenção, a mais lotada do sistema, os sete mil presidiários estão saindo pelo ladrão, literalmente. Tudo porque de 51.021 presidiários no início do governo Covas, em 1995, o número saltou para 73.315, um crescimento de 43,69%. Com isso, a situação, que já não era das melhores, se agravou nos últimos seis meses quando a população carcerária bateu recordes históricos no Estado (...)”. Cf. Luisa Alcade. “Saindo pelo ladrão. Superlotação carcerária ameaça implodir sistema em São Paulo. Fugas aumentam e aterrorizam população” in Istoé Independente. São Paulo, 25/08/1999. 3 Quase todas as emissoras de televisão reproduzem esse discurso de defesa do aprisionamento como medida de controle da violência, como se pode observar nos programas sensacionalistas “Cidade Alerta” (Rede Record) e “Brasil Urgente” da Rede Bandeirantes de Televisão, por exemplo. No discurso inflamado e diário dos apresentadores desses programas, violência torna-se sinônimo de “crimes de sangue”, principalmente aqueles tipificados no Código Penal Brasileiro como os homicídios e latrocínios, ignorando-se outras expressões da violência (discursiva, simbólica, estrutural, econômica), a partir de uma seletividade dos crimes que serão mostrados ou ocultados do grande público, já que se tratam de programas de grande audiência nacional. 4 Cf. Eugênio Raul Zaffaroni. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro, Revan, 2007. 5 124 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo Pode-se consultar o posicionamento oficial do governo estadual no site da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.sap.sp.gov.br/ (acesso em: 01/02/2013). 6 Milton Santos. O Espaço Dividido. Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos. Tradução de Myrna T. Rego Viana. São Paulo, EDUSP, 2004. 7 Loïcq Wacquant. “Prisões: a miséria atrás das grades” in Revista Mais Humana. Niterói, v. 2, 2001. Disponível em: www.maishumana.com.br/ loic2.htm (acesso em: 23/08/2013). 8 Loïcq Wacquant. “A criminalização da pobreza” in Revista Mais Humana. Niterói, 1999. Disponível em: www.maishumana.com.br/loic1.htm (acesso em: 23/08/2013). 9 Uma análise acerca da política local, do uso da mídia e da produção intencional do medo pode ser conhecida, com mais detalhes, no artigo de Eda Góes. “A presença e a ausência da população penitenciária em pequenas e médias cidades do interior paulista: dilemas de uma história recente” in Projeto História. São Paulo, PUC-SP, n. 38, 2009. 10 Definição construída durante o desenvolvimento da tese de doutorado: James Humberto Zomighani Jr. Desigualdades espaciais e prisões na era da globalização neoliberal: fundamentos da insegurança no atual período. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2013. 11 Muitos jovens desses pequenos municípios que receberam as novas penitenciárias passaram a nutrir o desejo de trabalhar como agentes penitenciários como seu projeto de futuro, em vista dos salários em média duas vezes maiores do que aqueles pagos pelo comércio e serviços locais. 12 Como os recursos do programa “Bolsa Família”, por exemplo, que passariam a ser gastos pelas famílias dos condenados no comércio local. 13 “Originadas da expansão da cafeicultura, essas cidades possuem economia baseada principalmente na agricultura. No núcleo urbano, a prefeitura é quase sempre o principal empregador. A instalação de presídios trouxe nova oportunidade de emprego e elevou a renda em circulação nas cidades. O estímulo à economia foi evidente para os moradores”. Cf. “Presídios geram negócios e empregos no interior de SP” in Jornal Valor Econômico. São Paulo, 07/12/2012. 14 verve, 25: 109-128, 2014 125 25 2014 Entrevista realizada com Talita Alessandra em 02/04/2014. Estudante de jornalismo e moradora do município de São Paulo, realizou visitas a um parente que se encontrava preso na Penitenciária de Hortolândia, na região de Campinas, interior do estado de São Paulo. 15 “Nos fins de semana, as mulheres de presos lotam Balbinos. Elas gastam entre R$100 e R$200. Montam na cidade o ‘jumbo’, formado de alimentos, refrigerantes, cigarros e produtos de limpeza. E têm de cozinhar nas pousadas, que oferecem fogão a R$3, jantar a R$5 e cama a R$15. A maioria vem de excursão, cuja passagem de ida e volta custa R$70 para quem parte de São Paulo”. Cf. Eduardo Nunomura. “Presídios causam inchaço em cidades em SP” in O Estado de São Paulo. São Paulo, 28/10/2007. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,presidios-causam-inchacode-cidades-em-sp,71877,0.htm (acesso em: 05/11/2007). 16 O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo analisou, entre 1997 e 2006, processos de prestação de contas do Poder Executivo estadual que totalizaram gastos de R$711 milhões para construção ou reforma de unidades penitenciárias localizadas em 68 municípios paulistas. 17 Constituição Brasileira de 1988. Título II, Capítulo I, Artigo 5º, XLVII, “d” “Não haverá penas de banimento”. Ou ainda, no documento da Secretaria de Administração Penitenciária, onde constam os “Direitos e deveres dos presos”, em sua Seção I, Artigo 23, item III consta como direito dos presos “o de receber visitas”. 18 Unidades para presos que cumprem pena em regime semi-aberto, e que podem ter autorização para saída a trabalho. 19 Constituição Brasileira de 1988. Título II, Capítulo I, Artigo 5º, XLVI “A lei regulará a individualização da pena”. 20 “Quando o companheiro da gente é preso, somos presas junto e submetidas às mesmas humilhações. Funciona do mesmo jeito, nos tratam como animais”. Depoimento de esposa de um preso condenado ao jornal SPresso em 01 abril de 2014. Disponível em http://spressosp.com.br/2014/04/cadavisita-e-um-estupro/ (acesso em: 02/04/2014). 21 “Com base no princípio da regionalização das unidades prisionais e sob os aspectos técnicos, ambientais e de segurança, a administração desta Secretaria, verificou a necessidade de que tais prisões sejam edificadas em municípios estratégicos, para que abriguem presos que se encontram recolhidos nas Cadeias Públicas próximas, bem como, recolham outros que 22 126 verve, 25: 109-128, 2014 verve Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo vierem a ser detidos, por meio do que se denomina ‘inclusão automática’, de tal maneira que os vínculos familiares, principalmente com ascendentes e descendentes, possam ser mantidos. Nesse sentido, cumpre salientar que a possibilidade de maior aproximação do preso à família, contribuirá decisivamente para o processo de recuperação e para atenuar a ansiedade motivada pela privação de liberdade, o que certamente tornará mais difícil o cometimento de faltas disciplinares, uma vez que o preso passará a ter receio de ser transferido”. Resposta às perguntas do roteiro de entrevista realizada com o Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo como etapa de elaboração da pesquisa para realização de tese de doutorado. Cf. James Humberto Zomighani Jr., 2013, op cit., p. 421. Segundo os orçamentos da Secretaria de Administração Penitenciária para 2012, cerca de R$185 milhões por mês ou R$2,2 bilhões por ano. 23 “Sorte de Ailton Carlos Rigoto, dono do Serv Bem. O supermercado existe há 15 anos, mas até antes do presídio Ito, como o microempresário é conhecido, só tinha um carro, ‘um gol quadrado’. Hoje tem outros três novos. Seu comércio é o posto de abastecimento para as mais de 200 visitantes. ‘Como comerciante, melhorou muito, mas não digo pelo resto da cidade. A maioria do povo brasileiro é preconceituoso, e não vê que se estão presos é porque estão pagando pelos crimes’”. Cf. Eduardo Nunomura, 2007, op. cit. 24 Em muitas penitenciárias há permissão para entrar calçando somente chinelos, pois sapatos são proibidos, bem como não são permitidas roupas justas e decotadas, acessórios femininos (como brincos, anéis e pulseiras), dentre outros objetos avaliados pelos agentes penitenciários como tendo potencial de serem transformados em “armas”. 25 A mulher é obrigada a se despir completamente, ficar de frente e de costas, e se agachar diversas vezes enquanto a funcionária inspeciona seus órgãos genitais. 26 Uma das visitantes de uma penitenciária do interior de São Paulo não identificada por conta da revista vexatória disse que “cada visita é um estupro”. Jornal SPresso, 01/04/2014. 27 Ver, por exemplo, o trabalho de Jacqueline S. Ferraz de Lima. “Proceder de guerreira: considerações acerca de construções morais” in III Seminário Internacional Violência e Conflitos Sociais: ilegalismos e lugares morais. Ceará, Universidade Federal do Ceará, 2001. 28 verve, 25: 109-128, 2014 127 25 2014 Resumo A interiorização do sistema penitenciário configura-se, desde os anos 1990, como uma nova forma de gestão territorial da miséria pelo Estado de São Paulo. Os grandes deslocamentos dos presos e de suas famílias, que se configuram em nova forma de banimento – nova característica da penitenciária paulista no período contemporâneo – aprofundam desigualdades socioespaciais e agudizam a situação de dor e pobreza das famílias dos condenados, uma vez que também são punidas pela nova geometria do sistema penitenciário paulista. Palavras-chave: sistema penitenciário paulista, banimento, famílias dos prisioneiros. Abstract The migration of the penitentiary system to the countryside, since the 1990s, becomes a new form of territorial management of misery by the state of São Paulo. The large displacements of the inmates and their families – that are configured in a new form of banishment, new feature of São Paulo facilities in the comtemporary period, sociospatial inequalities expanding and sharpening the situation of pain and poverty of families of inmates, they are also punished by the new geometry of the São Paulo prision system. Keywords: São Paulo penitentiary system, banishment, families of prisoners. Cartographies of the penitentiary interiorization in the state of São Paulo, James Humberto Zomighani Júnior. Recebido em 05 de abril de 2014. Confirmado para publicação em 10 de abril de 2014. 128 verve, 25: 109-128, 2014 verve o dispositivo lúdico e artístico da educação planetária eliana pougy Modulações da gestão escolar Desde o final do século XX, os gestores das escolas reguladas pelo Estado brasileiro, tanto públicas como particulares, são oficialmente livres para escolher o seu modelo administrativo-pedagógico1. Entretanto, caso queiram praticar uma educação de qualidade e produzir uma escola cidadã, são orientados a praticar a gestão inclusiva e democrática e a convidar a sociedade civil organizada a se tornar cogestora na educação das crianças e jovens brasileiros. Por isso, além do Estado, as empresas, a mídia, a comunidade escolar e do entorno da escola, a família dos estudantes e as próprias crianças e jovens estão tentando fazer a sua parte, cada vez mais e com mais intensidade. Assim, gradativamente, essa forma de gestão vem substituindo a gestão disciplinadora e discriminatória da escola tradicional. Mas será que essa cogestão entre Estado e sociedade civil, inclusiva e democrática, é mesmo nãoautoritária, como afirmam seus adeptos? Eliana Pougy é doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP (bolsista FAPESP, participante do Projeto Temático FAPESP Ecopolítica), mestre em Educação pela FE-USP. É autora de livros didáticos e paradidáticos de Arte, poeta e romancista. Contato: [email protected]. verve, 25: 129-144, 2014 129 25 2014 Como nos mostram os artigos de Alfredo VeigaNeto e Maura Corsini Lopes2, de Julio Groppa Aquino3 e a pesquisa de Giceli Maria Cervi4, a gestão inclusiva e democrática nada mais é do que um dispositivo do governo das condutas infanto-juvenis e funciona de forma até mais autoritária que o dispositivo da gestão discriminatória e disciplinadora da escola tradicional, uma vez que acaba por minar as resistências e as práticas de liberdade. Porém, como isso ocorre? Dispositivo inclusivo e democrático Desde as pesquisas realizadas por Michel Foucault5, é impossível deixar de constatar o enorme poder que os saberes médicos exercem na educação de crianças e jovens. Basta olhar para a participação ativa dos psicólogos no ambiente familiar e escolar e o intenso suporte médico e psiquiátrico que tem sido impingido à educação infantojuvenil. Juntamente com a construção social de uma infância e de uma adolescência tuteladas, mas ao mesmo tempo possuidoras de direitos, temos presenciado há pelo menos um século um intenso trabalho higienista de diagnóstico, classificação e tratamento de crianças e jovens anormais que precisam ser normalizados. Contudo, hoje em dia, a “bola da vez” são as verdades criadas pelas pesquisas neurocientíficas, que vêm permitindo a criação da neuropedagogia – ciência que busca criar verdades sobre como os diferentes tipos de cérebro ou inteligências humanas funcionam ao aprender, e também como a ação presencial e virtual dos professores, mediadores, educadores, orientadores ou facilitadores, podem auxiliar nesse processo. Não obstante, mais do que pensar estratégias didáticas, a ação 130 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária neuropedagógica vem ocorrendo principalmente por meio da medicalização com remédios tarja preta6 em crianças e jovens diagnosticados como transtornados, de acordo com a normalização do normal 7 típica do nosso tempo. Por conta disso, em maio de 2013 o prefeito do município de São Paulo, Fernando Haddad, sancionou a lei 15.719 que cria o serviço de assistência psicopedagógica em toda a rede pública da cidade. A intenção da prefeitura é que os psicopedagogos apoiem o trabalho dos professores, coordenadores, alunos e familiares diagnosticando, apoiando e prevenindo problemas de aprendizado na Educação Infantil e Ensino Fundamental, e solucionando os problemas que a inclusão de crianças e jovens com necessidades especiais na escola regular vêm causando. Nesse sentido, a inclusão não deixa de ser uma estratégia de governamentalidade muito mais sofisticada que a exclusão e o posterior confinamento em outras instituições, como o asilo, o hospital ou a prisão, porque ela age criando modulações em que todas essas instituições se mesclam. Além disso, faz com que todos sejam passíveis de normalizações, inclusive os ditos normais, já que agora todos somos encarados como transtornados pela medicina e, consequentemente, vulneráveis pela seguridade social. Em relação à gestão escolar democrática, é possível afirmar que ela é um efeito das pressões realizadas pela sociedade civil organizada depois das Grandes Guerras e de Maio de 19688. Até pouco tempo atrás, esse tipo de gestão acontecia apenas em escolas experimentais ligadas a comunidades alternativas e afastadas do governo da população realizado pelo Estado –­ práticas de liberdade que ocorrem desde meados do século XIX.9 verve, 25: 129-144, 2014 131 25 2014 Entretanto, desde o final do século XX e início do XXI, essas experiências escolares têm sido patrocinadas pela sociedade civil organizada, principalmente por meio de ONGs que, por sua vez, são patrocinadas pelo Estado. Para tanto, as parcerias público privadas, ou PPPs, vêm ganhando força e espaço na área educacional. No Brasil, a primeira PPP da área educacional relacionada à gestão não pedagógica aconteceu em Belo Horizonte. Em 2011, a Secretaria de Educação do município repassou a construção e a gestão não pedagógica de 37 novas escolas municipais para um consórcio de empresas, negócio cujo estudo de viabilidade econômica, técnica e jurídica foi realizado pelo International Finance Corporation (IFC), órgão do Banco Mundial para o setor privado. Porém, as PPPs que envolvem a gestão pedagógica acontecem desde o final do século XX, principalmente por meio da parceria da educação estatal com institutos de empresas multinacionais e outras entidades ligadas ao chamado terceiro setor. Essas parcerias envolvem a contratação, por parte do Estado, de prestação de serviços de formação continuada de gestores e professores, produção de material didático e até mesmo ação docente. Outro serviço prestado pelas entidades é a revenda de equipamentos, como computadores, datashows, lousas digitais, entre outros, imprescindíveis para uma “educação de qualidade”. Até mesmo as educações homeschooling e unschooling,10 que se inspiram em experiências educacionais anarquistas baseadas na autogestão e na não aceitação de modelos escolares estatais, vêm buscando a aprovação, a regulação e a cogestão do Estado a fim de serem legalizadas. No Brasil, o Projeto de Lei 3179/12, proposto por um deputado da bancada evangélica, busca a aprovação do MEC para 132 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária que as mais de 800 famílias adeptas do homeschooling e do unschooling possam continuar a educar seus filhos fora da escola, em casa ou numa vida supostamente nômade. Entretanto, para comprovar para o Estado a eficácia da educação que escolheram para seus filhos, essas famílias vêm sendo obrigadas a replicar o modelo escolar dentro de casa, utilizando o currículo e os materiais didáticos indicados pelo governo brasileiro e de outros países quando optam, por exemplo, por matricularem seus filhos em cursos de escolas virtuais que podem ser acessadas de qualquer lugar. Modulações educacionais e cidadania planetária As escolas democráticas, em especial, ganharam destaque no Brasil e se tornaram objeto de estudo mais recorrente apenas entre o final do século XX e início do XXI. Inspiradas na educação russa, elas se caracterizam por dar direitos de participação iguais para estudantes, professores e funcionários por meio de assembleias. A primeira escola declaradamente democrática e não-libertária do Brasil foi a Escola Lumiar, criada em 2002 pelo empresário Ricardo Semler e pela pesquisadora e educadora Helena Singer. A escola foi eleita como uma das 12 mais inovadoras do mundo, de acordo com uma pesquisa realizada pela UNESCO, Stanford University e Microsoft. Em 2005 foi inaugurada a Lumiar Pública e, em 2010, a Lumiar Internacional – ambas em Santo Antônio do Pinhal, interior de São Paulo. Atualmente, conta também com um instituto a fim de disseminar suas práticas. Nesse mesmo fluxo de reforma escolar, ocorreu a Cúpula Mundial de Inovação para a Educação (WISE) em verve, 25: 129-144, 2014 133 25 2014 outubro de 2013, em Doha, capital do Qatar11 – encontro organizado pela Fundação Qatar, com apoio da UNESCO e de associações universitárias, além de outras organizações. O evento reuniu 1.200 pessoas entre ministros, educadores, estudantes, empresários, políticos, pesquisadores e líderes sociais de mais de cem países, que se encontraram durante três dias em palestras, workshops e mesas redondas. O tema do encontro foi Reinventar a Educação para a Vida e Irina Bokova, diretora geral da UNESCO, informou que, passados treze anos do Relatório Delors Educação, um Tesouro a Descobrir, chegou o momento de criar novas linhas de pesquisa orientadas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Para tanto, a UNESCO se propôs a enfrentar a “realidade da escola que exclui” e deverá começar um processo de pesquisa e divulgação das experiências educacionais escolares e não escolares que incluem a “vida” no processo de aprendizagem, e que resultam na aprendizagem e permanência do estudante na escola e na “melhoria” do ambiente escolar, em geral, possibilitadas pelas novas tecnologias. Em novembro de 2013 aconteceu em Brasília a Primeira Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação (I CONANE), criada pelo Coletivo Gaia Brasília, que por sua vez faz parte da Gaia Education ­– organização com mais de 1.300 ONGs associadas ao Departamento de Informação Pública das Nações Unidas. O objetivo do encontro foi congregar educadores e interessados em alternativas para uma “nova educação” com exposição e debates sobre práticas/experiências realizadas no Brasil. Segundo seus organizadores, essa conferência foi uma contribuição oficial à “Década da Educação para o Desen134 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária volvimento Sustentável” das Nações Unidas, o que significa, na prática, mudar o fim da educação: se antes a educação servia para preparar para o trabalho na indústria, agora ela visa preparar para o trabalho na empresa globalizada.12 Por tudo isso, não é à toa que os princípios que regem o novo modelo de educação estatal, as escolas democráticas que são “escolas apesar da escola”, são: democracia, diversidade, liberdade com responsabilidade e sustentabilidade. Expressão popular planetária e Pedagogia Multicultural É possível constatar, portanto, que uma nova governamentalidade vem atuando cada vez mais intensamente na condução de condutas infanto-juvenis a fim de formatar cidadãos planetários, ou cidadãos locais e mundiais que vivem em meio à globalização. A imagem de que todos somos cidadãos de uma mesma biosfera, ou da representação de um planeta não mais dividido em países, mas organizado em redes virtuais, vem sendo intensamente construída pela publicidade das empresas multinacionais e também pelos conteúdos produzidos e veiculados pelos meios de comunicação de massa, além de estar se tornando um tópico retransmitido nas salas de aula das escolas estatais. A partir de orientações presentes em diversos documentos criados pelo MEC, MinC, entre outros ministérios, e pela ONU e UNESCO13, as modulações educacionais do século XXI rompem territórios e fronteiras institucionais e estatais, buscando, por meio do reconhecimento da globalização em nosso cotidiano, valorizar a “expressão popular planetária” que parte “de baixo para cima”, ou do “local para o mundial”. verve, 25: 129-144, 2014 135 25 2014 Para tanto, é preciso saber mais sobre as práticas culturais dos estudantes, dos docentes, da escola, da comunidade do entorno da escola e da comunidade em que os alunos vivem por meio do mapeamento cultural – método de pesquisa retirado da antropologia e uma das principais orientações didáticas da Pedagogia Multicultural, inspirada principalmente na pedagogia de Paulo Freire14. O mapeamento cultural busca desenhar, por meio do diálogo e da troca simbólica, quais são as práticas culturais dos participantes do mundo escolar a fim de capturar práticas não-acadêmicas, “democratizando” o saber e criando um “diálogo entre culturas”. Esse diálogo funciona da seguinte forma: desvelam-se as práticas culturais dos integrantes da escola, descobrem-se elos entre saberes populares/locais e saberes eruditos/globais e, depois, criam-se sequências didáticas em que o saber popular e local se transforma numa porta de entrada ou num assunto que serve para despertar o interesse dos estudantes para o aprendizado de saberes eruditos globais. Em suma, os saberes locais são “conectados” aos saberes eruditos, mas também criam uma hierarquização entre as diferentes formas de saber. Por conta disso, estão sendo criados extensos bancos de dados online, tanto por antropólogos como por empresas midiáticas e organizações internacionais, como ONU e UNESCO, com informações sobre as culturas infantis15 e as culturas juvenis16 que podem ser acessados por qualquer educador que queira capturar essas manifestações e transformá-las em estratégias didáticas que visam à pacificação das diferenças, criando conexões e hierarquizações que minimizam embates e conflitos. 136 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária A construção do dispositivo ludoartístico de pacificação das condutas Quando nos aprofundamos nas culturas infantojuvenis, o que vemos é uma profusão de jogos, brinquedos e muita arte. Porém, se não contextualizarmos essas manifestações nos jogos de poder da sociedade disciplinar e biopolítica, é possível que criemos verdades universais sobre o comportamento infantojuvenil, tal como afirmar, por exemplo, que as crianças e jovens se expressam por meio do brincar e da arte.17 Com certeza, eles são muito mais complexos do que isso. É como afirmou Jean-Luc Godard: as crianças são os prisioneiros políticos dos adultos.18 Consequentemente, resistem a esse aprisionamento. Podemos afirmar, portanto, que as crianças e jovens que vivem no contexto da sociedade e da escola disciplinar e biopolítica resistem ao governo das condutas realizado pelas gerações mais velhas principalmente por meio do brincar e da arte.19 Em outras palavras, as práticas culturais infantojuvenis que se manifestam a partir daí nada mais são do que resistências ao governo de suas condutas e à construção de suas subjetividades em meio à sociedade disciplinar e biopolítica. Conforme afirmou Foucault, as práticas de liberdade, ou as resistências, são sempre contingentes, e não uma essência ou um atributo universal.20 Assim, quando assistimos à construção de bancos de dados com informações sobre a conduta infantojuvenil, podemos afirmar, também, que outra importante estratégia do governo sobre esta conduta na atualidade, além da gestão democrática e da inclusão, é a captura de suas práticas de liberdade, que seriam, no caso, o seu brincar e a sua arte. verve, 25: 129-144, 2014 137 25 2014 Sem dúvida, a escola planetária utiliza-se de um outro dispositivo: o lúdico e artístico, a fim de promover o “acolhimento”, desenvolver a “empatia”, aumentar a “autoestima” de todos os envolvidos no processo educativo, e, principalmente, fomentar uma “cultura de paz” preferencialmente em locais de vulnerabilidade, como em escolas públicas, cujo caráter “violento” vem sendo construído há mais de um século pela burguesia21. Além de buscar suas práticas na arte/educação22 e na ludo-educação23, esse dispositivo também se vale da arte-terapia – método psicológico que, por meio da expressão artística, visa tirar dos alunos os seus conteúdos mais íntimos: seus medos, inseguranças, fraquezas. E, ao exporem suas intimidades, ou ao se tornarem vulneráveis e frágeis, crianças ou jovens se “abrem para o aprendizado” e aceitam sem pestanejar as verdades que lhes são impostas. Nesse sentido, a escola planetária, ou a comunidade de aprendizagem, deve ser alegre, receptiva, colorida, cheia de música, dança, teatro! O espaço deve ser repleto de brinquedos e jogos, e o aprender ludicamente vem se tornando o modo mais sedutor para manter os alunos na escola, sem que, aparentemente, haja uma resistência mais explícita por parte deles. Além disso, outra prática do dispositivo lúdico e artístico da educação planetária é o ensino individualizado com vistas à resiliência do estudante24. Afinal, quando um ou mais educadores se dedicam exclusivamente a uma criança ou a um jovem em especial, todos ganham consciência de como o aluno aprende e, principalmente, do quanto o aluno precisa da ajuda dos mais velhos para isso, desenvolvendo assim uma retroalimentação entre 138 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária resiliência e o dispositivo ludoartístico, ou entre resiliência e “humanização” do processo educativo25. Não podemos deixar de lembrar que a resiliência está diretamente relacionada ao conceito de vulnerabilidade, condição de pessoas, e principalmente de crianças, que são acusadas de viver em situação de risco, como pobreza, baixa escolaridade dos pais, estresse perinatal ou baixo peso no nascimento e deficiências físicas. Segundo Oliveira26, resiliência e vulnerabilidade são duplos complementares que incidem majoritariamente em crianças e resultam em práticas de proteção individual por meio do autoritarismo da psiquiatria e da medicalização. Sem dúvida, os anéis de uma serpente são bem mais complicados que os buracos de uma toupeira. Mas é também dessa forma que, certamente, as resistências infantojuvenis irão se manifestar. Notas Brasil. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. Brasília, Secretaria de Educação Fundamental, MEC/SEF, 1998; Brasil. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília, Secretaria de Educação Fundamental, MEC/SEF, 2000. 1 Alfredo Veiga-Neto e Márcia Corcini Lopes. “Inclusão e Governamentalidade” in Educação e Sociedade. Campinas, v. 28, n. 100 Especial, 2007, pp. 947-963. 2 Julio Groppa Aquino e Cyntia Regina Ribeiro. “Processos de Governamentalização e a Atualidade Educacional: a liberdade como eixo problematizador” in Educação e Realidade. Porto Alegre, UFRGS, n. 32, v. 2, 2009, pp. 57-71. 3 Maria Giceli Cervi e Luiz Guilherme Augsburger. “Gestão democrática escolar: escola e sociedade de controle” in verve. São Paulo, Nu-Sol, n. 24, 2013, pp. 79-91. 4 verve, 25: 129-144, 2014 139 25 2014 Michel Foucault. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2002; Michel Foucault. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 2009; Michel Foucault. “Crise da medicina ou crise da antimedicina” in verve. Tradução de Heliana Conde. São Paulo, Nu-Sol, n. 18, 2010, pp. 167-194. 5 O Brasil é o segundo consumidor mundial no uso de Ritalina em crianças na idade escolar. Essa droga é recomenda para tratar Dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) – diagnósticos “comuns” em crianças e jovens das escolas brasileiras. Disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/ noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro (acesso em: 10/07/2013). 6 Edson Passetti. “Poder e anarquia: apontamentos libertários sobre o atual conservadorismo moderado” in verve. São Paulo, Nu-Sol, v. 12, 2007, pp. 1141. Para implicação dessa noção no governo dos transtornos, ver: Leandro Alberto de Paiva Siqueira. O (in)divíduo compulsivo: uma genealogia na fronteira entre a disciplina e o controle. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PEPG Ciências Sociais, PUC-SP, 2009. 7 Michel Foucault. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008. 8 Edson Passetti e Acácio Augusto. Anarquismos e educação. São Paulo, Autêntica, 2008; Helena Singer. República de Crianças: sobre Experiências Escolares de Resistência. Campinas, Mercado de Letras, 2010. 9 O homeschooling, ou ensino domiciliar, é o processo de ensino formal realizado no domicílio do estudante, em geral executado por um familiar que resida no mesmo local que ele, numa forma de resistência à educação formal regulada pelo Estado. O unschooling é um método educacional e filosófico que rejeita qualquer tipo de educação sistematizada, seja ela institucional ou domiciliar. Os praticantes do unschooling acreditam que as crianças são capazes de aprender a todo momento e em todas as situações, motivadas pelo interesse próprio da idade. 10 Ver blog de Helena Singer: http://portaldoeducador.org/helena-singer/ (acesso em: 12/09/2013). 11 140 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária Ver vídeo de divulgação da educação democrática. Disponível em: http:// escolapoliteia.com.br/2012/descubra-educacao-democratica/ (acesso em: 03/10/2013). 12 Brasil. Brincar para todos. Brasília, MEC/SEE, 2005; Brasil. Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. Brasília, MEC/SEB, 2009; Brasil. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. Brasília, MEC, SECAD, 2007; Brasil. As metas do Plano Nacional de Cultura. São Paulo, Instituto Via Pública/Brasília, MinC, 2012; Brasil. Orientações técnicas-serviços de acolhimento. Brasília, MDS, 2009; Brasil. Programa Município Educadores Sustentáveis / Ministério do Meio Ambiente. Programa Nacional de Educação Ambiental. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, 2005; CE (Conselho da Europa). Livro Branco sobre Diálogo Intercultural. Brasil, 2009; CGLU. Cidades e Governos Locais Unidos – Comissão de Cultura. Agenda 21 da cultura. Brasil, 2008; UCLG – United Cities and Local Governments. Culture and sustainable development: examples of institutional and proposal of a new cultural profile. Barcelona, 2012; UCLG. Culture: fourth pilar of sustainable development. Barcelona, 2010; UNESCO Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Brasil, 2006; UNESCO. Cultura de paz: da reflexão à ação; balanço da Década Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo. Brasília, UNESCO/ São Paulo, Associação Palas Athena, 2010; UNESCO. Governança da cultura em países em desenvolvimento. Paris, 2005. 13 A Pedagogia Multicultural também captura práticas educativas propostas pela pedagogia de Paulo Freire, para quem escolas multiculturais eram imprescindíveis. Para tanto, é necessário que professores e estudantes encontrem-se naquilo que Freire chamou de Círculo de Cultura, onde acontece o diálogo autêntico e a síntese cultural – ou o reconhecimento do outro e o reconhecimento de si no outro. Segundo Freire, somente num círculo de cultura é possível a educação como prática da liberdade e é somente nele que o mundo pode ser relido em profundidade crítica. Esse círculo, entretanto, não é um local tranquilo, controlado, uma vez que as consciências são comunicantes e comunicam-se na oposição. 14 Ver: http://mapadobrincar.folha.com.br/ (acesso em: 11/09/2013); http://www.territoriodobrincar.com.br/ (acesso em: 10/01/2014); http:// revistaescola.abril.com.br/brincadeiras-regionais/ (acesso em: 10/01/2014); http://www.projetobira.com/ (acesso em: 10/01/2014); 15 verve, 25: 129-144, 2014 141 25 2014 Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/ unesco-resources-in-brazil/publications/ (acesso em: 15/08/2013); http:// portalyah.com/ (acesso em: 07/11/2013). 16 Ver Maria Ângela Barbato Carneiro e Janine J. Dodge. A descoberta do brincar. São Paulo, Melhoramentos/Boa Companhia, 2007. 17 Essa afirmação foi feitas por Godard ao final da série de doze documentários France, tour, détour, deux enfants que realizou em 1978 em parceria com sua mulher Anne-Marie Miéville para a Antenne 2. Neles, Godard conversa com duas crianças, um menino e uma menina, e avalia os efeitos dos comandos da televisão em suas vidas. 18 Ver Julio Groppa Aquino. “Jovens ‘indisciplinados’ na escola: quem são? Como agem?” in Simpósio Internacional do Adolescente. São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt ext&pid=MSC0000000082005000100002&lng=en&nrm=abn (acesso em: 08/01/2014). 19 Para Foucault, a liberdade não é uma essência ou um atributo de um Eu transcendental, mas sim uma ação contingente, ou seja, “emerge de um processo histórico variável de negociação muito específico sobre diversas racionalizações éticas que, por sua vez, operam por um padrão cultural de racionalidades localizado e específico. Portanto, pelo fato dessas ‘práticas de liberdade’ serem inerentemente relacionais (e, portanto, reversíveis), contingentes e altamente contextualizadas, elas não estão suscetíveis a nenhum tipo de definição inequívoca sobre o que ‘liberdade’ possa ser. Nenhuma governamentalidade pode congelar nossas negociações sobre a liberdade: não pelo fato do eu ser o epítome ou o lugar de alguma resistência transcendental já pressuposta por todas as formas de ação governamental, mas porque nunca nenhum regime de governo poderá suprimir o inesperado e as relações sempre mutáveis constitutivas da nossa experiência de liberdade, nem a condição de sua própria contingência como um regime particular de governo. É assim que nós podemos entender melhor Foucault quando afirma que não há melhor garantia da liberdade do que ela mesma” (Sébastien Malette. “Foucault para o próximo século: ecogovernamentalidade” in Revista Ecopolítica. São Paulo, Nu-Sol, v.1, 2011. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/ article/view/7654 (acesso em: 10/07/2013). 20 142 verve, 25: 129-144, 2014 verve O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária Ver Michelle Perrot (org.). História da vida privada 4. – Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Tradução de Denise Bottmann e Bernardo Joffily. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. 21 A arte/educação vem sendo proposta nos últimos trinta anos, no Brasil, principalmente por Ana Mae Barbosa (A imagem no ensino da arte. São Paulo, Perspectiva, 2002), com base nas propostas pedagógicas de Paulo Freire, John Dewey, Robert Read, Michael Parsons e Elliot Eisner. 22 A didática lúdica vem sendo proposta nos últimos trinta anos, no Brasil, principalmente por Tisuko Kishimoto (O jogo e a educação infantil. São Paulo, Pioneira, 1994), com base, principalmente, na psicologia de Jean Piaget, Lev Vygotsky, Henri Wallon e Donald Winnicott, na filosofia de Huizinga e de Walter Benjamin e na sociologia de Gilles Brougère. 23 Resiliência é um conceito proveniente da física que define a flexibilidade dos materiais após uma relação de tensão ou apreensão e seu retorno ao estado anterior. Adaptado para a psicologia com base na teoria ecológica do desenvolvimento humano, criada pelo psicólogo russo Bronfenbrenne, o conceito de passou a ser definido como a capacidade de um indivíduo de se adaptar frente às adversidades da vida por meio do apoio dos outros e, principalmente, da consciência desse apoio. Cf. José Tavares (org.). Resiliência e educação. São Paulo, Cortez, 2001. 24 Disponível em: http://conane.org/manifesto-por-uma-nova-educacao/ (acesso em: 10/07/2013). 25 Ver Salete Oliveira. “Política e resiliência – apaziguamentos distendidos” in Revista Ecopolítica. São Paulo, Nu-Sol, v. 4, 2012. Disponível em: http:// revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/13067/9568 (acesso em: 10/01/2014). 26 verve, 25: 129-144, 2014 143 25 2014 Resumo O presente artigo visa mostrar como os dispositivos democrático, inclusivo, lúdico e artístico da educação planetária vêm produzindo uma autoritária pacificação de embates e conflitos e, consequentemente, a manutenção da hierarquia social. Palavras-chave: educação planetária, dispositivo lúdico e artístico, sociedade de controle. Abstract This article aims to show how the democratic, inclusive, playful and artistic dispositives of the planetary education are producing authoritative pacification of conflicts and clashes, thus maintaining social hierarchy. Keywords: planetary education, ludic and artistic device, society of control. The ludic and artistic device of the planetary education, Eliana Pougy. Recebido em 15 de janeiro de 2014. Confirmado para publicação em 20 de março de 2014. 144 verve, 25: 129-144, 2014 uma carta aberta da Pussy Riot Nós, integrantes anônimas da Pussy Riot, gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que nos apoiaram durante todo esse tempo, aos que pediram a libertação de nossas integrantes da prisão e aos que simpatizaram conosco e com a nossa ideologia. Somos muito gratas a todos vocês, e apreciamos e respeitamos profundamente todos que contribuíram para a campanha global da Pussy Riot neste momento difícil para nós. Nosso esforço conjunto não foi em vão: Putin teve que se curvar diante da pressão da comunidade internacional e deixar Nadia e Masha livres. Assim, o dia 23 de dezembro foi uma real celebração para nós – o Dia de Liberação dos presos políticos e a real vitória da libertação de toda a Pussy Riot. Mas essa anistia, certamente, não é o fim de nossos sonhos. Nós pedimos justiça de fato: a completa abolição do veredicto e o reconhecimento de todo o processo criminal contra a Pussy Riot como ilegítimo. Nós esperamos que a justiça seja restaurada no dia 21 de fevereiro – aniversário de nossa performance provocativa na Catedral do Cristo Salvador, com a música “Mãe de Deus, leve o Putin embora!”. Nós estamos muito contentes com a saída da prisão de Masha e Nadia. Estamos orgulhosas da resistência delas contra o duro julgamento pelo que tiveram que enfrentar, e pela determinação delas em continuar, de qualquer maneira, a luta que haviam iniciado durante o tempo em que ficaram nas colônias penais. Infelizmente, para nós, elas estão tão empolgadas com os problemas nas prisões russas que esqueceram completamente de nossas aspirações e ideais: feminismo, resistência separatista, luta contra o autoritarismo e o culto à personalidade. Tudo isso o que, na realidade, causou suas injustas punições. Agora, não é segredo que Masha e Nadia não são mais integrantes do grupo e que não participarão de ações radicais. Agora elas estão envolvidas em um novo projeto, agora elas são defensoras institucionalizadas dos direitos dos presos. E como se sabe, essa defesa é dificilmente compatível com afirmações políticas radicais e com trabalhos artísticos provocativos, que suscitam temas controversos em meio à sociedade moderna. Assim como a conformidade de gênero não é compatível com feminismo radical. A pode defesa institucionalizada proporcionar a crítica dificilmente das normas e regras fundamentais que sublinham o próprio mecanismo da moderna sociedade patriarcal. Sendo uma parte institucional dessa sociedade, tal defesa, dificilmente consegue ir além das regras estabelecidas por essa sociedade. Sim, nós perdemos duas amigas, duas companheiras de ideologia, mas o mundo ganhou duas corajosas, interessantes, controversas defensoras dos direitos humanos, e combatentes pelos direitos dos prisioneiros russos. Infelizmente, nós não podemos parabenizá-las pessoalmente por isso, porque elas se recusam a ter qualquer contato conosco. Mas reconhecemos a escolha delas e sinceramente lhes desejamos sucesso em sua nova carreira. No momento, nós testemunhamos uma colisão ultrajante: na medida em que Nadia e Masha são o foco da mídia e da comunidade internacional, elas reúnem multidões de jornalistas e pessoas atentas a cada uma de suas palavras, mas até agora ninguém as ouviu. Em quase todas as entrevistas elas repetem que deixaram o grupo, que não são mais Pussy Riot, que agem em seus próprios nomes e que não se envolverão mais em atividades de arte radical. No entanto, as manchetes estão repletas de menções ao nome do grupo, todas as aparições públicas delas são declaradas como performances da Pussy Riot, e a saída pessoal das duas do grupo é tida como o fim de todo o coletivo. Ignoram o fato de que no púlpito e na Catedral do Cristo Salvador, não havia duas, mas cinco mulheres vestindo balaclavas, e que na performance da Praça Vermelha, havia oito participantes. A eclosão desse mal-entendido se deu a partir da afirmação pública da Anistia Internacional de que o discurso de Masha e Nadia num concerto no Barclays Center em Nova Iorque como a primeira performance legal da Pussy Riot. Performance cujo pôster, em vez de conter os nomes das duas, mostrava um homem vestindo uma balaclava e segurando uma guitarra sob o nome de Pussy Riot, enquanto organizadores espertamente chamavam gente para comprar os caros ingressos. Tudo isso é uma contradição extrema aos próprios princípios do coletivo Pussy Riot, uma vez que somos um coletivo separatista só de mulheres – nenhum homem nos representa, seja num pôster, seja na realidade. Nós pertencemos à ideologia de esquerda anticapitalista. Não cobramos nenhuma taxa para que possam ver nosso trabalho artístico, todos os nossos vídeos são distribuídos livremente na internet, os espectadores de nossas performances são sempre transeuntes espontâneos, e nós nunca vendemos ingressos para nossos “shows”. Nossas performances são sempre “ilegais”, apresentadas apenas em locais imprevisíveis e públicos, não projetados para o entretenimento tradicional. Além de a distribuição de nossos clipes ser sempre através de canais de mídia irrestritos e livres. Nós somos anônimas porque agimos contra qualquer culto à personalidade, contra hierarquias orientadas pela aparência, idade ou outros atributos sociais visíveis. Nós cobrimos nossas cabeças porque nos opomos à própria ideia de usar rostos femininos como marcas registradas para promover qualquer tipo de bens ou serviços. A mistura da imagem punk rebelde feminista com a imagem de defensora institucionalizada dos direitos dos presos é prejudicial para nós como um coletivo, assim como é prejudicial para o novo papel que Nadia e Masha assumiram. Finalmente, ouçam! Desde que Nadia e Masha escolheram não estar mais com a gente, por favor, respeitem a escolha delas. Mas lembrem-se, nós não somos mais Nadia e Masha. Elas não são mais Pussy Riot. A campanha “Free Pussy Riot” acabou. Nós, como um coletivo de arte, temos o direito ético de preservar nossa prática artística, nosso nome e nossa identidade visual distintos de outras organizações. Membros anônimos da Pussy Riot: Garadja, Fara, Shaiba, Cat, Seraphima e Schumacher [Esta carta foi publicada em russo no livejournal da Pussy Riot no dia 06 de fevereiro de 2013. Disponível em: http://pussy-riot. livejournal.com/34528.html. No mesmo dia, a carta foi traduzida para o inglês e publicada, primeiramente, pelo jornal britânico The Guardian. Esta tradução foi feita a partir do texto veiculado na versão eletrônica do jornal. Disponível em: http://www.theguardian.com/ commentisfree/2014/feb/06/nadia-masha-pussyriot-collective-no-longer.] Tradução do inglês por Flávia Lucchesi. verve drogas-nocaute 21 edson passetti & acácio augusto Cena 1: Perspectiva Salete: O controle das drogas é fundamental para a saúde da população. Flávia: O uso de substâncias que alteram a percepção e a conduta de um indivíduo tem uma implicação coletiva que deve ser conhecida, regulada e utilizada. Salete: De fato, as pesquisas científicas recentes aproximam o funcionamento do cérebro ao vício. Edson Passetti é coordenador do Nu-Sol e do Projeto Temático FAPESP Ecopolítica; professor livre-docente no Departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUCSP. Contato: [email protected]. Acácio Augusto é pesquisador no Nu-Sol, doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e professor no curso de Relações Internacionais da FASM (Faculdade Santa Marcelina). Contato: [email protected]. verve, 25: 153-184, 2014 153 25 2014 Acácio: O investimento moderno da ciência sempre esteve direcionado para extrair uma positividade dessa relação e dar utilidade ao uso de drogas. Gus: Hoje em dia os cientistas associam o vício aos efeitos produtivos das drogas. Sofia: A dopamina, substância responsável pela ativação da sensação de prazer no cérebro é também responsável por intensificar a retenção de informações na memória. Acácio: O que é vício? Você responderá que é uma conduta condenável moralmente, mas diante das constatações mais recentes da ciência, o vício, mais uma vez, se transformará em virtude. Sofia: Vício é virtude, quando o que se convencionou chamar de droga vira medicamento. Acácio: Com uma diferença, agora não é mais para a cura. É para intensificar produtividades. Sofia: Vale a pena dopar-se para produzir mais, na empresa, na universidade, nos laboratórios, nos institutos, enfim, o castigo permanece para quem desafia a conformação da moral. Salete: Estamos num tempo em que há mais dopados do que drogados. Gus: Estamos num eterno retorno do que, num momento é vício, e em outro, virtude, cura, utilidade, lucro, prazer mo154 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 derado... E um tantão de coisas que muda para conservar o conformismo. Leandro: Nunca vivemos, como hoje em dia, sob tantas regulamentações de condutas condenáveis e prescrições para a boa conduta. Judson: Eu só sei uma coisa, em todas as culturas há evidências de usos de substâncias que levam a estados alterados. Experimenta-se para lidar com o sobrenatural e o real, a partir do que a natureza oferece. Flávia: Somos curiosos. Acácio: Olha-se para o mundo a partir de um ponto de vista. O mundo não é uma explicação a partir do enunciado socrático “conhece-te a ti mesmo”. O mundo existe a partir de perspectivas e não enquanto vontade e representação. Salete: O mundo existe antes e depois da filosofia. Está além e aquém das explicações, prescrições, conservações e representações. Sofia: Até mesmo o que chamam de mundo não deve ser visto a partir da Terra, da eloquência da razão, dos efeitos do monoteísmo ou do paganismo... Gus: A vida acontece quando provoca transformações. E cada um pode atiçar transformações em si, em volta de si, contra si e contra todos. Sofia: A vida é muito mais do que o fato biológico. verve, 25: 153-184, 2014 155 25 2014 Salete: Só para falar de uma cultura que nos inventou, a dos gregos, antes de pretenderem criar uma verdade que convencesse a todos, Leandro: argumentando que era uma verdade desinteressada, por não pertencer a um grupo específico, mas destinada à humanidade, Salete: pronunciavam verdades a partir de uma perspectiva que não desconhecia o combate entre as verdades. Não pretendiam, ainda, serem os donos do mundo. Cuidavam de si e inventavam maneiras livres de existir. Judson: Mas, minha cara, havia escravos, era uma existência aristocrática... Salete: Mas, meu caro, isso é ciência da história... O que eu disse é que os livres se libertaram do monarca; o que estou dizendo é que precisamos inventar uma vida liberada dos monarcas, tenham eles o nome de rei, povo, lei, pai, ser superior, humano ou demasiado humano. Judson: Não ser escravo dos outros, nem escravo de si mesmo! Gus: Os gregos cuidavam do corpo e da mente no gymnasio, no banquete, nas guerras, nas convivências, nos cuidados com a cidade, e provavam da natureza sabores surpreendentes. Acabaram experimentando o trágico. Acácio: Se você quiser chamar isso de saúde, eu compreenderei, da mesma maneira que entendo a encenação grega em Roma e o surgimento das perversões, das depravações. 156 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Judson: Note, meu caro, que agora a tal da verdade desinteressada encontra o território fértil para justificar prisões, proibições, corrupções, tiranias, e a desinteressada busca pelo melhor governo. Criaram o drama. Flávia: Idade das trevas anunciada, ora como saída da caverna platônica, ora como Idade Média, para o equilíbrio e a sobriedade do Renascimento e do Iluminismo. Lili: Que porra de aula de geografia é essa?! Judson: Inconformados, alquimistas e feiticeiras abalavam o verdadeiro e o falso nos mostrando, mais uma vez, a diversidade em conhecer. Sofia: As feiticeiras curavam e prognosticavam com suas poções, a partir do passado o que seria o presente imediato. Os alquimistas buscavam pelo phármakon, a partir do presente, a vida eterna. Mayara: Os historiadores remontavam o passado para justificar o presente e o futuro. Os filósofos arriscavam justificar o presente e anunciar o futuro. A grande guerra contra os deuses se transformou em guerra permanente entre os homens. Salete: E agora você perguntará: com quem estava a verdade? Acácio: Qual o uso das drogas? Judson: O que é droga? verve, 25: 153-184, 2014 157 25 2014 Flávia: Quanto nisso tudo não houve uma droga de vida? Leandro: Quanto de droga não está com quem comanda? Acácio: O que estamos fazendo de nós mesmos? Gus: O que fizemos de nós mesmos? Sofia e Flávia: “As pessoas inteligentes e desinteressadas poderiam perguntar-se: uma vez que as leis penais se mostram impotentes, por que não tentar, mesmo que a título de experiência, Todos: o método anarquista?”2. Cena 2: Pó de pirlimpimpim Lili: “Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. Deu uma pitada a cada um, e mandou que o cheirassem. Todos o cheiraram — sem espirrar, porque não era rapé. Só Emília espirrou. A boneca espirrava com qualquer pó que fosse desde o dia em que viu tia Nastácia tomar rapé. Assim que cheiraram o pó de pirlimpimpim, que é o pó mais mágico que as fadas inventaram, sentiram-se leves como plumas, e tontos, com uma zoeira nos ouvidos. As árvores começaram a girarlhes como dançarinas de saiote de folhas e depois foram se apagando. Parecia sonho”3. 158 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Cena 3: Crack Gus: “Eu devia para o cara (...). Você tem que zerar a conta. Ou paga direto com a vida. Dez anos no craque. Já fiz cinco tratamentos. Minha mãe reza e chora. Se descabela, a infeliz. De joelho me pede. Lá vou eu para clínica. Fico numa boa. Mas dou umas recaídas (...). Se você pára a fissura te pega (...). O craque. Você não consegue largar. É diferente porque ele você ama. Só dez segundinhos porra. Te bate no pulmão. O bruto soco na cabeça. E o mágico tuimmm! A gente que fuma tá sempre ligadão. Você fica o tal. Com uma força maior. Olho de vidro, o polegar chamuscado (...). Daí o Buba veio com essa pressão na minha cabeça (...). O traficante você conhece logo. Tem sangue no olho. Sou pilantra. Mas não sou do crime. Veja, tirei cursinho e tudo. Com ofício e registro na carteira. Mais de uma firma importante. Essa foi a última roubada que eu entrei fundo. Juro por meu Jesus Cristinho (...). O Buba meteu a peça de guerra na minha mão. E passou a fita: Judson: Seguinte o lance, mano. Esse aí vai pagar é com a vida. Certo, soldado? (...). Gus: E boto a arma pro safado: — A ordem veio do comando. Vamo até ali que a gente acerta. Sabe o que fez o merdinha? Encarou feio, sem piscar. Tive que dar nele (...). Uai, nem raspou, de levinho, a única bala. Daí me apavorei. Tô fora (...). Nem eu acredito. Desta vez era outra voz (...). — Cê tá livre. Tá limpo com a zona! (...). Foi a mãe. Zerou direto a dívida com o Buba. Agora, vida nova. Ei, você aí, ó cara? Tem um craquinho aí?”.4Tuiiiimmmmm!!! Todos: Tuiiiimmmmm!!! verve, 25: 153-184, 2014 159 25 2014 Cena 4: Ayuasca Acácio: “Imediatamente depois da cerimônia de posse, Roosevelt apareceu na sacada da Casa Branca usando vestes cor de púrpura dos imperadores romanos (...), cuinchou para convocar os integrantes de seu gabinete e determinar a posição que cada um deles ocuparia. Sofia: Os membros do gabinete chegaram apressados, grunhindo e cuinchando como porcos que eram. Gus: Uma bicha velha conhecida pela polícia do Brooklyn como ‘Ana Punheta” foi nomeada para Chefe de Estado Maior, de modo que os oficiais mais jovens do departamento foram sujeitados a indignidades impronunciáveis nos banheiros do Pentágono (...). Judson: Uma travesti gostosona recebeu o posto de bibliotecária do Congresso. Imediatamente mandou barrar o sexo masculino das premissas — Flávia: um professor de filologia de renome mundial saiu com o maxilar quebrado por um sapatão brutamontes quando tentou entrar na biblioteca. A biblioteca virou local de orgias lésbicas, que ela chamou de Rituais das Virgens Vestais (...). Lili: O ‘Magrinho do Metrô’, um trombadinha, assumiu o cargo de Subsecretário de Estado e chefe do cerimonial e causou ruptura diplomática com a Inglaterra quando o embaixador inglês ‘deu em cima dele’(...). 160 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Acácio: Esse é um termo de trombadinha para dizer que o assaltado ficou de pau duro quando seus bolsos estavam sendo vasculhados (...). Leandro: Lonnie, o Cafetão tornou-se embaixador geral e saiu em viagem junto com 50 ‘secretários’ para exercer sua função execrável. Flávia: Uma drag queen, conhecida como ‘Eddie a Dama’, encabeçou a Comissão de Energia Nuclear e convocou os físicos para um coral masculino que se apresentava como “Os Garotos Atômicos”. Sofia: Em resumo, homens que tinham ficado de cabelos brancos e perdido os dentes no cumprimento do serviço leal a seu país foram demitidos, sumariamente nos termos mais depravados possíveis — como: Leandro: ‘Está despedido, seu velho fodido’. Lili: ‘Tira essa bunda preguiçosa daqui agora mesmo’. Sofia: (...) Arruaceiros e desqualificados do mais desprezível calibre tomaram conta dos cargos mais altos (...). Mayara: Secretário do tesouro: ‘Mike Tabaína’, um viciado em heroína das antigas. Lili: Diretor do FBI: um empregado de uma sauna turca especializado em massagens nada éticas (...). verve, 25: 153-184, 2014 161 25 2014 Leandro: Secretário da Agricultura: ‘Luke Bagre’, um garoto de rua de Bucetavillem no Alabama, que passara 20 anos bêbado de tintura de ópio e extrato de limão. Gus: Ministro para o Reino Unido: ‘Wilson Banha’, que conseguiu seu dinheiro para comprar barbitúricos fazendo chantagem com pessoas que tinham fetiche por pés e andavam em lojas de calçados. Acácio: Chefe dos Serviços de Correio: ‘Moleque Pó de Ópio’, (...) trapaceiro das favelas. Atualmente trabalha em uma rotina chamada ‘Tirando do olho’ — planta-se uma catarata falsa no olho do selvagem... Salete: Selvagem é como os trapaceiros dizem trouxa (...). Lili: Quando a Suprema Corte barrou algumas das legislações perpetradas por essa corja, Roosevelt forçou os integrantes do augusto tribunal, um por um, sob a ameaça de rebaixamento imediato ao posto de Atendente de Banheiro Congressional, a manter relações com um babuíno de bunda roxa, de modo que homens veneráveis e honrados se submeteram aos carinhos de um símio lascivo e rosnento, Sofia: enquanto Roosevelt e sua esposa biscate e o puxa-saco veterano Harry Hopkins, fumando um cachimbo coletivo de haxixe, assistiam à cena lamentável com arroubos de gargalhadas obscenas. Flávia: O ministro Blackstrap sucumbiu diante de uma hemorragia retal ali mesmo, mas Roosevelt só riu e disse, bem grosseiro: 162 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Mayara: Tem muito mais no lugar de onde isso aí veio. Sofia: Hopkins, incapaz de se controlar, rolou no chão em convulsões sicofânticas, repetindo sem parar: Leandro: Você está me matando chefe, você está me matando (...). Mayara: A melhor coisa para a indisposição é um pau de babuíno no cu. Certo Harry? Leandro: Certo, chefe. Eu não uso outra coisa (...). Acácio: Roosevelt então indicou o babuíno para substituir o ministro Blackstrap, ‘adoentado’. Gus: Então, dali em diante, os processos da Corte Suprema passaram a ser conduzidos com um símio aos berros que cagava e mijava e se masturbava em cima da mesa e que, com boa frequência, pulava em cima de algum dos ministros e o deixava em frangalhos. Lili: As vagas assim criadas eram invariavelmente preenchidas por símios, de modo que, com o passar do tempo, a Suprema Corte veio a ser constituída por 9 babuínos de bunda roxa; Sofia: e Roosevelt, alegando ser o único capaz de interpretar suas decisões, assim ficou com o controle do mais alto tribunal do país. verve, 25: 153-184, 2014 163 25 2014 Leandro: (...) E finalmente, [eu mandei] colocar uma escavadeira mecânica nos andares, de modo que os legisladores mais obstinados eram enterrados vivos (...). Sofia: Os sobreviventes tentaram dar continuidade a seu trabalho na rua, mas foram presos por vadiagem e mandados para o reformatório como mendigos comuns (...). Acácio: Então Roosevelt entregou-se a uma conduta tão vil e desenfreada que dá vergonha até de falar. Sofia: Instituiu uma série de concursos com o intuito de promulgar os atos e instintos mais baixos de que a espécie humana é capaz. Lili: Houve o Concurso do Ato mais Ofensivo, o Concurso do Truque mais Baixo, A Semana do Abuso Sexual Infantil, a Semana de Entregar seu Melhor Amigo — dedos-duros profissionais não podiam se inscrever. Sofia: Exemplos de inscritos: o drogado que roubou um supositório de ópio da bunda da avó; Lili: o capitão do navio que vestiu roupas de mulher e correu para o primeiro bote salva-vidas (...). Flávia: Aliás, Roosevelt fora acometido de ódio tal pela espécie que desejava degradá-la a ponto de não mais ser reconhecida”5. 164 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Cena 4: Cocaína Salete e Gus: No motel. Gus: “Alex, Marquinhos, a Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens e a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na suíte Escort do Motel Le Petit Palais. Leandro: Alex tirou a roupa e mostrou o seu pau duro (...). A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens exclamou: Lili: Nossa! Gus: A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, riu. Mayara: A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens segurou o pau de Alex. Lili: Alex lambeu a orelha da Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens. Gus: Marquinhos tirou um saquinho de cocaína do bolso. A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens exclamou: Lili: Oba! verve, 25: 153-184, 2014 165 25 2014 Leandro: Alex tirou a blusa jovem da Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens. Gus: A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, apertou um interruptor e as luzes estroboscópicas da suíte Escort do Motel Le Petit Palais se acenderam. A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens tirou a calça jovem, a calcinha jovem e o sutiã jovem. Leandro: Marquinhos se ajoelhou no chão espelhado da suíte Escort do Motel Le Petit Palais e desenhou um pênis usando a cocaína. Gus: A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens, Alex e a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, riram. Lili: Alex lambeu a língua da Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens. Gus: A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, fez um strip-tease sob as luzes estroboscópicas da suíte Escort do Motel Le Petit Palais. Leandro: Marquinhos cheirou um dos escrotos do pênis de cocaína desenhado no chão espelhado da suíte Escort do Motel Le Petit Palais e tirou a roupa. Gus: Alex agarrou a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, por trás e esfregou seu pau duro na bunda dela (...). 166 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Gus: A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens cheirou o outro escroto do pênis de cocaína desenhado no chão espelhado da suíte Escort do Motel Le Petit Palais e exclamou: Lili: Iurrúúú! Leandro: Marquinhos agarrou a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, pela frente e esfregou seu pau duro nas coxas dela. Gus: Enquanto Alex esfregava seu pau duro na bunda dela (...). Lili: A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens agarrou Marquinhos, por trás, e esfregou sua boceta na bunda dele (...). Gus: As caixas de som, no teto da suíte Escort do Motel Le Petit Palais, emitiam a música (...)”6. Cena 5: Morfina e tabaco Gus: “Haverá ainda pequenos bares vagabundos Com carnes de Extremo-Oriente Para abrigar o ano novo. Judson: Pequenos bares com marinheiros lendários Cujos cachimbos consumirão antigos venenos verve, 25: 153-184, 2014 167 25 2014 Leandro: Bares leves inflados de fumaça Pequenos bares evanescentes à claridade da aurora. Judson: Bares onde o sol e seu trajeto brilham Na profunda laca avermelhada das taças; Salete: Bares repletos da animação das mesas, e vidraças mortas Onde estudantes não meterão o nariz. Judson: Pois haverá outros venenos a corroer A Árvore Viva de nossas fibras prestes a eclodir, Sofia: Há vinhos não secretados por vinhas terrestres tão violentos quanto catástrofes. Judson: Salve, ó bar que nos fornece venenos E misérias, e dores e sustos Flávia: Lançando-nos na nudez de nossas almas Em cais inacessíveis aos tormentos. Judson: Um silêncio te guarda e nos protege Silêncio onde não vem se perder a medicina, Lili: Um silêncio que nos cura na morfina Sem receitas, nem decretos”7. Judson: “Acendo um cigarro ao pensar em escrev[er] 168 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Mayara: E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Judson: Sigo o fumo como uma rota própria, Gus: E gozo, num momento sensitivo e competente, Judson: A libertação de todas as especulações Sofia: E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto”8. Cena 6: Heroína Acácio: “Charlie Parker tocava pra caralho e sabia disso. Ele deveria estar muito feliz, afinal ganhava a vida fazendo o que gostava, tinha uma mulher bonita, inteligente e carinhosa, além de ser o melhor de todos — o Bird. Todo mundo amava o Bird. Mas, não (...). Charlie Parker queria algo, um troço além dos sentidos, além da própria vida. E todo dia Charlie Parker acordava já pensando em algo. E o modo mais simples de esquecer algo era fumando um cigarro (...). Charlie Parker bebia álcool e, quando ficava bêbado, era como se algo estivesse com ele. Mas para eliminar mesmo a ânsia por algo, nem que fosse, por algumas horas, Charlie Parker se picava com heroína (...). Charlie Parker achava que Dizzy [Gillespie] tinha algo e, por isso, Dizzy não precisava beber, nem fumar, nem se picar com heroína (...). A música bastava para Dizzy (...). Charlie Parker parou de fumar, de beber, de se picar, e desceu ao inferno. E no inferno da abstinência não havia algo, nem música (...). Até que um dia desses, por aí, Charlie Parker, abstêmio, coitado, não aguentou, fumou um cigarro, verve, 25: 153-184, 2014 169 25 2014 encheu a cara, se picou e tocou pra caralho (...). Charlie Parker voltou a ser o Bird de sempre, fumando, bebendo, se picando, ouvindo elogios, sendo bem cuidado pela sua mulher bonita, inteligente e carinhosa, morrendo, tocando pra caralho, naquela angústia, sentindo falta de algo”9. Cena 7: Cultura Sofia: “Frustra-me que se examine sempre o problema das drogas exclusivamente em termos de liberdade ou de proibição. Eu penso que as drogas deveriam tornar-se elemento de nossa cultura (...). Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas. Devemos fabricar boas drogas — suscetíveis de produzir um prazer muito intenso (...). As drogas já fazem parte da nossa cultura. Da mesma forma que há boa música e má música, há boas e más drogas. E, então, da mesma forma que não podemos dizer somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas”10. Salete: “Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das ideias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes… tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos. Flávia: Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer: E daí? Eu adoro voar! Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre. Não me mostrem o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração. Salete: Não me façam ser quem não sou. Não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente. Não sei amar pela metade. Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão. 170 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Flávia: Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre”11. Cena 8: Os quatro elementos Gus: “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres (...). Lembrar-se sempre do dito de Heráclito, que morte de terra é tornar-se água, morte de água é tornar-se ar, de ar fogo, [de fogo ar, de ar água, e de água, tornar-se terra]”12. Cena 9: A Lei Salete: “Toda ciência temerária dos homens não é superior ao conhecimento imediato que eu posso ter de meu ser. Eu sou o único juiz do que está em mim (...). Leandro: Não é por amor à humanidade que você delira, é pela tradição da imbecilidade. Sua ignorância do que é um ser humano só é igual à tolice que te limita. Flávia: Eu faço votos que sua lei recaia sobre seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos e toda sua posteridade. E agora engula tua lei. Judson: Deixemos que os perdidos se percam: temos mais o que fazer que tentar uma recuperação impossível e ademais inútil, odiosa e prejudicial. Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, verve, 25: 153-184, 2014 171 25 2014 não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero. Mayara: O inferno já é deste mundo e há homens que são desgraçados, fugitivos do inferno, foragidos destinados a recomeçar eternamente sua fuga (...). Leandro: Há homens que sempre se perderão. Pouco importa os meios para perder-se: a sociedade nada tem a ver com isso (...). Ela nada pode, ela perde seu tempo, ela apenas insiste em arraigar-se na sua estupidez (...). Todos: Por enquanto, não nos suicidaremos. Esperando que nos deixem em paz”13. Cena 10: História Salete, Sofia e Flávia (coro): “Boa noite meu grande amor...” Mayara: “Desde 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no parágrafo 7° da postura que regulamenta a venda de gêneros e remédios pelos boticários, estabelecia que: Judson: É proibida a venda e uso do pito de pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados em 20$000 e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia. Acácio Observe-se a coincidência: a primeira lei mundial contra a maconha é promulgada no mesmo ano da morte da 172 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 mais famosa maconheira da nossa história: nossa ex-rainha Carlota Joaquina de Bourbon”14. Sofia: “A legislação sobre comércio de narcóticos (Lei 4294/1921) foi assim recebida pela cronista Crisanthème, pseudônimo da escritora Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos, em uma de suas crônicas semanais publicadas no jornal O País do Rio de Janeiro, e em São Paulo pelo Correio Paulistano [Diz aí madame Crisanthème]: Gus: ‘Uma lei benfazeja: Raia sobre nós a esperança de vermos afastado de nosso céu o terrível ciclone que ameaçava trucidar uma boa parte de nossa população. O uso da morfina e da cocaína entrara nos hábitos de nossa mocidade chic, que principiava a ingeri-las por simples curiosidade, por simples imitação aos tarados de outras terras e acabava avassalada pelo pavoroso vício que a estiolava, maltratava e assassinava’”15. Leandro: “O capital compr[a] a força de trabalho do indivíduo livre, que, além de vendê-la, vendia a si mesmo, sua mulher, e seus filhos. [O capital] é ao mesmo tempo individualista e autoritário. Flávia: As altas taxas de mortalidade infantil, [na Europa, no final do século XIX] deviam-se, principalmente, ao fato de as mães trabalharem fora de casa. Esse desleixo se revela[va] na alimentação inadequada ou insuficiente e no emprego de narcóticos. Judson: (...) Além disso, as mães (...) se torna[va]m estranhas aos próprios filhos, e intencionalmente os deixa[va]m morrer de fome ou os envenena[va]m”16. verve, 25: 153-184, 2014 173 25 2014 Lili: “Além dos escritores, figuras políticas, advogados e nobres, operários ingleses e mulheres que trabalhavam em ateliês franceses e austríacos tomavam e comiam, diariamente, derivados do ópio. O láudano era ministrado por mães e enfermeiras às crianças agitadas, recebendo o nome de ‘benção de mãe’”17. Gus: “Caro Sr. Steve Jobs Alô [aqui é] Albert Hofmann, grande inventor do LSD, em meu aniversário de 101 anos. Eu tomei conhecimento por relatos da mídia que você considera que o LSD te ajudou criativamente no desenvolvimento dos computadores da Apple e em tua busca espiritual. Estou interessado em saber mais sobre como o LSD foi útil para você”18. Lili: “Hassan Sabá introduziu o Cannabis em seu bando (...). A rapidez e o júbilo com que matavam seus inimigos cristãos fizeram da seita o mais temido bando de degoladores na Pérsia e na Síria. Como foi Hassan quem difundiu o Cannabis, este se tornou conhecido como haxixe, ou seja, dádiva de Hassan. Judson: E como os homens de Hassan geralmente estavam ‘altos’ de haxixe, tornaram-se conhecidos como ‘os homens sob a influência do haxixe’, ou em árabe, no singular hashshashin. A palavra sobrevive até hoje em várias formas e em várias línguas, inclusive o inglês assassin [ou o português assassino], com suas desagradáveis conotações”19. Cena 11: Medicalização Leandro: “O ‘problema de nervos’ surgiu como tema de estudo durante inquérito de morbidade referida, quando foram entrevis174 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 tados 93 adultos, lavradores, em 25 comunidades rurais da região serrana do Estado do Espírito Santo, Brasil, sobre os problemas de saúde nas últimas 48h. Salete: Tenho excesso de trabalho... Tomo remédio pra nervo... Eu tomo o Lexpiride (...). Lili: Tenho esgotamento, problema de nervo. Eu trabalho, mas se puxar muito num dia, no outro não valho mais nada. Sinto o corpo pesado, machucado. Cansaço no corpo... O médico falou que é nervo. Se ficar sem o Valium (10 mg.) de tarde me ataca os nervos demais., não passo sem não (...). Salete: Eu me dei com o remédio. O médico mesmo me disse: pode ir tomando ou parando de tomar por sua conta. Quando estiver atacada, volta a tomar. [Improvisação sobre a obrigatoriedade de receitas médicas e funcionamento de postos de saúde] Mayara: A última vez que fui [ao médico] já tem dois anos e ele falou: Você se dando com o remédio não precisa vir mais, não precisa trocar. Gus: O que nós [eu e a patroa] já tomou de remédio pra nervo dava pra encher uma picape... (...). Sofia: Sarar não sara... Só fica mais ou menos com o remédio. Sempre volta [o problema] e tem que comprar outra vez (...). Resolve, mas não pode parar nunca com os remédios. Acácio: Pobrema de nervo... Pobrema de cérebro. Eu tenho uma bolsa cheinha de capas de remédio de nervo que eu tomo verve, 25: 153-184, 2014 175 25 2014 toda noite. Não durmo de noite, fica aquilo nervoso, começo a gritar... Se eu ficar sem o remédio fico bambo, leve da ideia. Agora, o remédio me enfraquece, tô fraquinhozinho”20. Gus: Lá no canavial, agora nóis fuma crack. Leandro: “Há quase vinte anos, acompanho estarrecido a crescente marcha da nova frenologia dos distúrbios mentais. Especificamente, o desenvolvimento do que parte dos psiquiatras e neuropsicólogos denominam de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, o TDAH. (...) Mayara: Programas de difusão e tratamento do TDAH vêm sendo criados, tendo como premissa que a hiperatividade infantil é uma doença orgânica e que precisa ser medicada (...). Flávia: As empresas Jansen-Cilag, Elli Lilly, Novartis e GlaxoSmithKline, que comercializam os medicamentos Concerta, Straterra, Ritalina e Dexedrina (...), financiam as pesquisas clínicas de associações que afirmam seguir, dentre os valores que norteiam seus programas, a ética na pesquisa e universalização dos conhecimentos”21. Sofia: “Estas drogas, usadas especialmente no tratamento de TDAH, são utilizadas com a finalidade de melhorar a capacidade cognitiva de estudantes e pesquisadores. Trazem, segundo os cientistas, um problema especial: seu efeito de longo prazo (que se diz ainda desconhecido) e uma possível concorrência desleal entre os estudantes [e pesquisadores] que usam e os que não usam. Em suma: capitalismo, competição e competência!”22. 176 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Acácio: “As portas se abrem para novas modalidades de denúncia. O currículo Lattes do seu colega está engordando e os pontos da carreira dele estão ultrapassando os seus? Ele pode estar usando drogas para acelerar a capacidade cognitiva, enquanto você fica no cafezinho. Nem todos são neuroéticos como você”23. Lili: “O governo da Grã-Bretanha anunciou sua intenção de aumentar o número de castrações químicas (tratamento com drogas inibidoras da libido) para pessoas que tenham cometido algum crime sexual (...). Para a melhor defesa da sociedade esta castração química deverá ser consentida pelo libidinoso. Opa!”24. Leandro: “A vida produtiva neoliberal exige provas, comprovações, certificações, prêmios, reconhecimentos aos mais simples empregados e aos mais refinados cientistas e artistas. Sofia: Surpresa, a mídia científica denuncia que os cérebros estão se dopando. Medicada desde criança anuncia-se uma geração de amantes do emprego, do salário, da disposição a participar de qualquer convocação. Democratas, dopadas e produtivas, essas pessoas dão corpo ao atual conformismo”25. Judson: “O discurso neurobiológico afirm[a] que é no córtex pré -frontal que se situa o órgão moral, subsidiando pesquisas recentes para instituir o que vem sendo chamado na área de ponta a neurociência a ciência da moral. Leandro: Mais uma vez a psiquiatria segue como operadora de mediações para uma nova linguagem. Nenhuma ciência ou conhecimento é neutro. verve, 25: 153-184, 2014 177 25 2014 Salete: Ninguém pesquisa apartado do modo como toca na própria vida”26. Cena 12: Cigarro Judson: “Cidade de Hamburgo, Alemanha, Segunda Guerra Mundial. No meio de uma madrugada o escritor João Guimarães Rosa desperta com uma vontade imensa de fumar e nota que seu maço havia acabado. Sai e anda, inúmeras, infindáveis quadras para conseguir cigarro. Ao encontrá-lo já fuma um ali mesmo. Ao retornar para casa, depara-se com os escombros do prédio onde morava. Ele fora bombardeado e todos que ali residiam estavam mortos. Os anos se passaram; Guimarães Rosa jamais deixou de fumar. E toda vez que alguém o advertia ou o repreendia dizendo que ele ainda morreria deste vício, Rosa divertido e lépido respondia: Foi um cigarro que salvou a minha vida”27. Cena 13: Álcool Acácio: “Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso não há equivalente com a comida (...). A bebida é uma questão... Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas é nesse âmbito que ele entende a quantidade. Gus: Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras [meu caro Gilles Deleuze], porque eles dizem: ‘Eu controlo, paro de beber quando quiser’. Zombam deles, porque não se entende o que querem dizer (...). 178 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Acácio: Quando se bebe, se quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer tudo para chegar ao último copo. É isso que interessa (...). Eu tive a sensação de que isso me ajudava a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava, depois percebi que já não ajudava, que me punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se bebesse. Então se deve parar. É simples”28. Cena 14: Cronópio Sofia: “Agora acontece que as tartarugas são as grandes admiradoras da velocidade, como é natural (...). Os cronópios sabem e cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha”29. Cena 15: O eterno retorno Gus: “Diz o Corpus hipocrático que ‘são drogas as substâncias que atuam esfriando, aquecendo, secando, umedecendo, contraindo, relaxando ou fazendo dormir’. No entanto, para chegar a uma definição tão secularizada os gregos percorreram um longo caminho. Na Odisséia, quando Helena serviu o nepenthés, diz o poeta que ‘a mistura de alguns fármacos é saudável e a de outros, mortal’. Lili: Phármakon é remédio e tóxico; não uma coisa ou outra, mas as duas (...). Ao mesmo tempo, drogas são também os filtros das feiticeiras, assim como o conjunto da matéria médica vegetal. Lendo com atenção a Teofrasto se nota que a origem deste conceito [de phármakon] provém das verve, 25: 153-184, 2014 179 25 2014 insuficiências detectadas na ideia da planta toda-benéfica (panakéia) e da planta toda-maléfica (strychnos). Salete: O grego compreendeu que certas substâncias participam de ambos os estatutos, de modo que não cabia considerá-las só benignas ou só danosas. Daí que em Homero a mesma palavra nomeie tanto as poções benéficas de Helena e Agamede, quanto as misturas malignas de Circe. Flávia: A toxidade de um fármaco é a proporção concreta entre dose ativa e dose letal; por isso nenhuma propriamente dita pertence ao inócuo ou apenas ao curativo. Como dirá muito mais tarde Paracelso, sola dosis facit venenum [apenas a dose faz o veneno]”30. Leandro: “Baudelaire praticamente encerrou qualquer debate sobre a imaginação estimulada ou não do artista sob o efeito de drogas ao alertar que elas só produzem estados de espírito interessantes em pessoas interessantes, porque imaginações grosseiras produzem visões grosseiras”31. Sofia: “Cães ladram contra o que eles não conhecem”32. Cena 16: Nocaute?! Gus: Porra meu, já não sei se esta é primeira vez, a quarta? É um quarto no quarto andar? Por que me deixam aqui sozinho, sem ao menos um quarto de LSD? (Pausa) Sem você! (Pausa) Você gostou quando eu trouxe felicidade no meio da ditadura? (Pausa) Eu tentei ser comum. Eu quero... Arranjar emprego, sem LSD. Vou abandonar a construção de minha espaçonave. 180 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Acácio: Eu nem sei mais se aguentarei tanta solidão. De que vale querer mudar o mundo, quando ele não muda? Devo permanecer mudo gritando contra tudo? Derrubar hierarquias, muros, abrir o mar. Eles não entendem; me prendem, me medicam, me calam. Não uso drogas, não bebo, nem fumo. (Pausa) Até quando ficarei neste falanstério? Isso é um falanstério? Gus: É preciso voar. Acácio: Voar é para o pássaro. Gus: Viajar. Acácio: Não me mascaro. Gus: Meu corpo trespassado. Acácio: Dormir e não sonhar. Gus: Um lampião apagado. Acácio: Andar sem parar. Gus: Voar. Não serei seu prisioneiro. Elenco canta com Mutantes, “A balada do louco” e sai pela plateia FIM verve, 25: 153-184, 2014 181 25 2014 Notas Aula-teatro 15 do Nu-Sol. Pesquisa: Acácio Augusto, Aline Santana, Ana Salles, Andre Degenszjan, Beatriz Scigliano Carneiro, Edson Passetti, Eliane K. Carvalho, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Lúcia Soares, Luíza Uehara, Maurício Freitas, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues. Com: Acácio Augusto, Eliane K. Carvalho (Lili), Flávia Lucchesi, Gustavo Simões (Gus), Judson Cabral (convidado), Leandro Siqueira, Mayara de Martini Cabeleira, Salete Oliveira e Sofia Osório. Produção gráfica: Andre Degenszjain. Operadora de luz: Helena Wilke. Sonofonia: Vitor Osório (convidado). Violão e música incidental: Wander Wilson Chaves Jr. (convidado). Ambientação: Edson Passetti. 1 Errico Malatesta. “Uma proposição que não será aceita” in Edson Passsetti. Das fumeries ao narcotráfico. Tradução de Dorothea V. Passetti. São Paulo, Educ, 1991, pp. 145-146. 2 Monteiro Lobato. Reinações de Narizinho. São Paulo, Brasiliense, 1959, pp. 248-249. 3 Dalton Trevisan. O maníaco do olho verde. Rio de Janeiro, Record, 2008, pp. 7-11. 4 William Burroughs. Cartas do yage. Tradução de Bettina Becker. Porto Alegre, LP&M, 2008, pp.60-65. 5 6 André Sant’Anna. Sexo. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2001, pp. 75-76. Antonin Artaud. “Bar” in Revista Libertárias, nº 2. Tradução de Martha Gambini, 1997, p. 80. 7 Fernando Pessoa. “Tabacaria” in Obra poética. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1987, p. 300. 8 André Sant’Anna. “Bird e algo” in Inverdades. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2009, pp. 35-36. 9 Michel Foucault. “Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política” in verve. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. São Paulo, Nu-Sol, v. 5, 2004, pp. 264-265. 10 Este texto é geralmente atribuído a Clarice Lispector. Embora o encontremos em diversos endereços eletrônicos com sua assinatura, não há referência confiável de que seja de sua autoria. 11 182 verve, 25: 153-184, 2014 verve drogas-nocaute 2 Heráclito de Éfeso. Os pré-socráticos. Tradução de José Cavalcante de Souza et alli. São Paulo, Nova Cultural, 1999, pp. 93 e 95. 12 Antonin Artaud. “Segurança pública – a liquidação do ópio” in Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1983, pp. 23-26. 13 Luiz Mott. “A maconha na História do Brasil” in Anthony Henman e Oswaldo Pessoa Júnior (orgs.). Diamba Sarabamba. São Paulo, Ground, 1986, p. 131. 14 Beatriz Scigliano Carneiro. Vestígios dos venenos elegantes. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PEPG Ciências Sociais/PUC-SP, 1993, pp. 140-141. 15 Edson Passetti. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo, Educ, 1991, pp. 59-60. 16 17 Idem, p. 18. Albert Hofmann. Dear Steve. Tradução de Beatriz Scigliano Carneiro. Disponível em: http://www.tinyurl.com/mevv78 (acesso em: 12/03/2010). 18 John Cashman. LSD. Tradução de Miriam Schnaiderman. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980, pp. 22-23. 19 Brani Rosemberg. “O consumo de calmantes e o ‘problema de nervos’ entre lavradores” in Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 28, n. 4, 1994, pp. 300-308. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_art text&pid=S0034-89101994000400010 (acesso em: 27/01/2010). 20 Mônica Lavoyer Escudeiro. “A medicalização da infância: um mercado em expansão” in Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC). Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia da UFRJ, 2007. Disponível em: http://nipiac.psicologia.ufrj. br/index.php?option=com_content&view=article&id=93:a-medicalizacaoda-infancia-um-mercado-em-expansao&catid=20:artigos-publicados-nosite&Itemid=28 (acesso em: 27/01/2010). 21 22 Nu-Sol. “Dopping mental” in Flecheira Libertária 87. São Paulo, 2008. 23 Nu-Sol. “Neuroética” in Flecheira Libertária 87. São Paulo, 2008. Nu-Sol. “Quase laranja mecânica” in Flecheira Libertária 19. São Paulo, 2007. 24 25 Nu-Sol. “Dopadas” in Flecheira Libertária 59. São Paulo, 2008. verve, 25: 153-184, 2014 183 25 2014 Salete Oliveira. “Psiquiatrização da ordem e abolicionismo penal: neurociências, psiquiatria e direito” in Revista ponto-e-vírgula. São Paulo, PEPG Ciências Sociais/PUC-SP, n. 4, 2008, pp. 09-10. 26 27 Nu-Sol. “Brevíssima história” in Flecheira Libertária 106. São Paulo, 2009. Gilles Deleuze. “Letra B de beber” in Abecedário. Disponível em: http:// br.geocities.com/polis_contemp/deleuze_abc.html#beber (acesso em: 12/03/2010). 28 Julio Cortázar. História de cronópios e de famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, p. 157. 29 Antonio Escohotado. Historia de las drogas, vol. 1. Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 137. 30 31 Edson Passetti. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo, Educ, 1991, p. 89. 32 Heráclito de Éfeso, 1999, op. cit., p. 98.. Drugs-knockout 2, Edson Passetti & Acácio Augusto. 184 verve, 25: 153-184, 2014 DROGAS-NOCAUTE 2 aula-teatro 15 12 e 13 de maio 19h30 Tucarena, PUC-SP [R. Monte Alegre, 1024] Retirada de ingressos gratuitos às 18h30 www.nu-sol.org verve Resenhas um arquivo sobre a educação e a cultura anarquista no brasil LÚCIA BRUNO Carmen Sylvia Vidigal Moraes (org.). Educação Libertária no Brasil - Acervo João Penteado: inventário de fontes. São Paulo, Edusp, 2013, 384 pp. Esta coletânea resulta de um trabalho coletivo envolvendo alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado, bem como professores e pesquisadores do Centro de Memória da Educação, da Faculdade de Educação da USP. Os capítulos foram escritos em coautoria por professores e alunos. As professoras Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Cecília Hanna Mate e Dóris Accyoli e Silva – conhecida estudiosa do anarquismo desde os anos 1980 – assinam os capítulos com os alunos Tatiana da Silva Calsavara, Luciana Eliza dos Santos, Daniel Righi, Fernando Antonio Peres, Débora Pereira dos Santos, Flávia Andréa Machado Urzua, Ana Paula Martins e a arquivista Iomar Zaia. O prefácio é do professor da Unicamp Antonio Arnoni Prado, pesquisador da cultura anarquista. Educação Libertária no Brasil – Acervo João Penteado: inventário de fontes é resultado de um trabalho iniciado em Lúcia Bruno é professora livre-docente da Faculdade de Educação da USP e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP (PROLAM). Contato: [email protected]. verve, 25: 189-193, 2014 189 25 2014 2005, a partir da localização do acervo relativo à Escola Moderna nº1(1912-1919), localizada no bairro Belenzinho em São Paulo, pela aluna do Programa de Pós-Graduação da FEUSP Tatiana Calsavara. Fundada em 1912, a Escola foi coordenada pelo educador de orientação anarquista João de Camargo Penteado, escritor, ensaísta, teatrólogo, fotógrafo, cronista, autor de fábulas e conferencista. Fechada em 1919, pela repressão estatal, esta experiência sofreu transformações sucessivas, vindo a assumir diferentes denominações: Escola Nova (1920-1923); Academia de Comércio Saldanha Marinho (1924-1943); Escola Técnica de Comércio Saldanha Marinho (1944-1947); Ginásio e Escola Técnica Saldanha Marinho (1948-1960), sempre sob a direção de João Penteado. Estas mudanças observadas na história da experiência educacional que se inicia em 1912 evidenciam as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira neste período, com o desenvolvimento do setor de serviços e da burocracia, tanto estatal quanto privada, o que colocou novas exigências quanto à qualificação dos trabalhadores urbanos e, principalmente, indicou o avanço do controle estatal sobre as escolas, a partir da institucionalização de uma série de procedimentos administrativos e de uma hierarquia que ensaiava seus primeiros passos em direção ao modelo organizacional de Henry Fayol, um dos autores mais celebrados da teoria clássica da administração de empresas. O conjunto de documentos relativos às escolas dirigidas por João Penteado inclui jornais, biblioteca, imagens, escritos do arquivo pessoal do educador e documentos institucionais das escolas. Foram doados por Marli Alfarano, sobrinha-neta de João Penteado, e por seu marido Álvaro Alfarano. O arquivo recebeu tratamento minucioso por 190 verve, 25: 189-193, 2014 verve Um arquivo sobre a educação e a cultura anarquista no Brasil parte dos pesquisadores do Centro de Memória da Educação da FEUSP, constituindo-se hoje em fonte valiosa de pesquisas e estudos, aberta a todos que se interessam pela história da educação no Brasil e pelas práticas culturais e de luta dos trabalhadores anarquistas, a partir da perspectiva autogestionária. A primeira parte do livro apresenta em seus capítulos diferentes olhares sobre o material que compõe o arquivo, abordando questões variadas: a dimensão pedagógica e a contribuição deste arquivo para a historiografia da educação brasileira; as práticas escolares, os livros didáticos e o ensino libertário; as imagens (fotográficas) do arquivo e seu significado; a co-educação sexual, a relação trabalho e educação e a trajetória e produção intelectual de João Penteado. A segunda parte apresenta o detalhamento do material que constitui o arquivo João Penteado e que contém documentos pessoais do educador, bem como documentos institucionais das escolas, instrumentos e objetos de laboratório, peças indígenas, mobiliário e acervo fotográfico e bibliográfico. A Escola Moderna nº1 foi criada no bojo do movimento operário anarquista, por trabalhadores de origem imigrante, vindos da Espanha e da Itália, imbuídos dos princípios formulados no calor das primeiras lutas ocorridas na Europa – especialmente na Comuna de Paris, e que levaram à criação da I Internacional dos Trabalhadores, onde Proudhon tinha grande influência, assim como Bakunin. Os anarquistas, já neste momento, defendiam a ideia de que a libertação dos trabalhadores deveria ser obra deles próprios e não de vanguardas ou membros da intelligentsia, posteriormente definida por Gramsci como intelectuais orgânicos. verve, 25: 189-193, 2014 191 25 2014 Dentro da mesma lógica que orientou a I Internacional dos Trabalhadores, os anarquistas entenderam que a formação das novas gerações de trabalhadores deveria ser conduzida pelos próprios trabalhadores e não pelo Estado, pela Igreja ou por empresários. Estabeleciam, assim, o processo formativo como um campo de luta de classes primordial. Nesta perspectiva fica clara a razão pela qual os anarquistas conferiam tanta importância à educação e à cultura, considerando-as elementos indissociáveis do processo formativo de crianças, jovens e adultos. Daí vincularem o aprendizado científico ao artístico, entendendo este como um campo de criação e de liberdade, indispensável para o desenvolvimento da autonomia intelectual e de julgamento das novas gerações. Defendiam a educação integral, eliminando a separação entre trabalho manual e intelectual, e acreditavam que “aprender é aprender junto”, com base na solidariedade, na vivência das diferenças na igualdade e na troca sob o princípio da reciprocidade. Por isso, recusavam a competição entre os alunos, as avaliações que ignoram as diferenças individuais e sociais, as premiações e os castigos, de todo e qualquer tipo. Enquanto a escola estatal procurava instrumentalizar a educação – visando formar mão de obra para o mercado de trabalho e utiliza-la como um meio de propagação dos ideais de nação através do culto ao Estado Nacional às novas hierarquias que então se consolidavam e ao do nacionalismo que tanto horror haveria de produzir durante todo o século XX –, as escolas anarquistas defendiam o internacionalismo da classe trabalhadora, denunciavam a exploração do trabalho e a dominação política. Não deve, portanto, nos espantar o fato de terem sido duramente reprimidas já nas primeiras décadas do século XX. 192 verve, 25: 189-193, 2014 verve Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI Este livro apresenta em seus diversos artigos as primeiras análises do rico arquivo João Penteado e ilumina o que continua de certa forma pouco estudado no Brasil, no âmbito das práticas pedagógicas libertárias; das relações que constituem o cotidiano escolar, do papel do teatro, das artes visuais, da literatura e das artes plásticas, além da prática de conferências, refeições coletivas ao ar livre, e o que hoje chamamos de estudo do meio realizado fora dos muros da escola. Cabe ressaltar que esta publicação vem preencher importante lacuna observada na generalidade das faculdades de Pedagogia, inclusive na da USP, que fez-se como um silêncio em relação a essas experiências pedagógicas anarquistas desenvolvidas no âmbito do movimento operário no Brasil durante as primeiras décadas do século XX. E, nesse sentido, há a certeza de que a publicação deste livro constitui-se como um importante marco. da ocupação do anarquismo organizado no século XXI FLÁVIA LUCCHESI Mark Bray. Translating Anarchy – The Anarchism of Occupy Wall Street. Winchester, Zero Books, 2013, 332 pp. No decorrer do ano de 2011 eclodiram protestos, manifestações de rua e marchas em diferentes lugares do planeta. Dentre as que se desdobraram a partir dos Flávia Lucchesi é pesquisadora no Nu-Sol e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica, mestranda em Ciências Sociais pela PUC-SP. Contato: flalucchesi@ gmail.com. verve, 25: 193-201, 2014 193 25 2014 protestos que levaram à ocupação da Praça Tahir, na capital egípcia, em fevereiro daquele ano, a de maior destaque no continente americano foi a ocupação do Parque Zuccotti, localizado no distrito novaiorquino de Manhattan, próximo à Wall Street. É desta ocupação e do movimento que a realizou, conhecido como Occupy, que Mark Bray trata em seu livro Translating Anarchy, publicado pela editora britânica Zer0 Books, ainda sem tradução para o português. Bray é doutorando na Universidade de Rutgers e pesquisa o anarquismo espanhol na virada do século XX. Faz-se presente na luta anticapitalista desde a época do colegial, quando foi animado pelas músicas rebeldes da banda Rage Against the Machine; é membro da organização sindical Industrial Workers of the World (IWW), agiu em manifestações do movimento de justiça global no início dos anos 2000, e participou da organização do movimento Occupy, nos grupos Press Working Group (WG) e Direct Action (DA). Tal participação intensa possibilitou-lhe entrevistar 192 organizadores do Occupy, no período de dezembro de 2011 a fevereiro de 2013, o que, somado aos relatos pessoais do que vivenciou na ocupação, embasa a obra. Diante das muitas publicações e teses rapidamente produzidas sobre esse evento, o livro de Bray se diferencia por mostrar a presença de anarquistas na organização deste movimento, atentando para a diferença entre as práticas dos organizadores do Occupy e os clamores dos que marchavam nas manifestações do movimento – os chamados occupiers. A partir das entrevistas, o autor anuncia que a maioria dos organizadores eram declaradamente anarquistas ou 194 verve, 25: 193-201, 2014 verve Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI militantes de “políticas essencialmente anarquistas” (p. 4), aos quais ele se refere como “anárquicos”: anticapitalistas, anti-hierárquicos, e “orientados pela ação direta”. Os depoimentos coletados, e os números a partir deles quantificados, levam Bray a afirmar que o Occupy foi organizado e feito em grande parte por anarquistas. Assim, o considera um movimento anarquista e sinaliza, seguindo David Graeber, que o anarquismo é o movimento do século XXI. Graeber é certamente o maior interlocutor contemporâneo de Bray. Ao lado dele, aparecem Murray Bookchin, Noam Chomsky, e os marxistas David Harvey e Eric Hobsbawn. Contudo, apesar de pensar o anarquismo como o movimento do século, os dados coletados por Bray mostram a falta de envolvimento anterior em lutas políticas por parte dos jovens estadunidenses. Das quase duas centenas de entrevistados, 30% nunca haviam tomado parte em lutas políticas antes do Occupy. Em relação aos demais, a maioria citou como ações anteriores o trabalho em ONGs ou o engajamento em campanhas eleitorais de candidatos democratas ou do Green Party (p. 78). Nesse sentido, o autor entende a importância do movimento Occupy como um “veículo para traduzir a anarquia” (p. 7) e, assim, politizar pessoas. Através de seu livro, intenta dar continuidade a essa tradução, uma vez que considera a maioria das pessoas bastante receptivas às “ideias” anarquistas, entendendo que o que as afasta do anarquismo é a falta de conhecimento e as “ciladas ideológicas” (p. 5) armadas pelo 1% que controla a mídia e a educação no país. No entanto, com o intuito de atrair mais pessoas para o movimento, os organizadores apostaram em uma relação verve, 25: 193-201, 2014 195 25 2014 com a grande mídia, a qual veiculou o movimento como uma resposta ao que consideram ineficiência do governo Obama em administrar e amenizar os abalos da crise econômica que estourou em 2008. Interpretado como fruto de crises, o Occupy foi utilizado para endossar afirmações democráticas, reforçar o patriotismo estadunidense e confirmar o investimento em capital humano nos jovens que se mostram demasiadamente preocupados com as corporações e com o melhor funcionamento do capitalismo. Bem humorado, o autor lê nesse jornalismo ardiloso a intenção em fazer do Occupy um “tea party liberal”. Mostrando não desconhecer as inúmeras tentativas liberais de captura de palavras libertárias, por meio das quais também se travam lutas, Bray apresenta nota esclarecedora acerca dos embates entre libertários e liberais na história dos Estados Unidos, mostrando como a palavra libertário quase foi tragada pelos liberais e como possibilitou se falar em “anarco-capitalismo” no âmbito da economia, na década de 1950. A relação com a mídia interessava desde que atravessada por uma estratégia: todos os membros do grupo de Trabalho de Imprensa (WG) deveriam evitar se posicionar francamente como anarquistas, assim como deveriam evitar o uso de expressões como anticapitalista, no intuito de disseminar os “ideais” anarquistas de modo a produzir mais adesão ao movimento. Utilizavam “códigos” como: “alternativos”, “independentes”, “não-hierárquicos”, “a favor da horizontalidade”, “sem líderes” (p. 162), mesmo sendo todas essas expressões muito usuais no discurso neoliberal. Expressões desse tipo, alheias aos anarquismos, são utilizadas como estratégia para conquistar legitimidade 196 verve, 25: 193-201, 2014 verve Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI para o movimento. Desse modo, ao aproximarem-se da linguagem da ordem, acabam contendo um potencial de revolta. O movimento tende a ser capturado. A escolha entre estratégia ou tática explicita, no interior dos anarquismos, a distinção entre organização e associação. A preocupação com uma estratégia é constantemente destacada ao longo do livro. Bray é bastante elogioso às formas organizadas do anarquismo e retoma diversos acontecimentos históricos vinculados aos anarcosindicalistas e anarco-comunistas, além das referências clássicas que se concentram, em maior peso, entre Kropotkin, Malatesta e Bakunin, sendo este último apresentado como o fundador da “doutrina anarquista” (p. 46). As formas organizadas do anarquismo são tratadas pelo autor como uma maneira de “engajar uma parcela mais ampla da sociedade em formas de resistência” (p. 54), de modo a introduzi-las na “doutrina anarquista”, ao considerar que muitos são anárquicos, ou tendem ao anarquismo sem terem o conhecimento disto. Tais organizações, que compreende como sendo desde a CNT até o Occupy, representam, para Bray, um “processo de difusão ideológica” (idem), mas um movimento deve produzir mais que ideologia. Bray acredita em uma revolução anarquista e, numa esteira kropotkniana, pensa ser essa revolução integrante de um processo evolutivo, e portanto finalista. Assim, certas diferenças são propositalmente desconsideradas. Os chamados anarquistas individualistas, primitivistas e mutualistas são mencionados apenas e brevemente no segundo capítulo – “O veneno do Occupy Wall Streets – anarquismo e o anárquico” –, como “periféricos” (p. 55) em termos da História do Anarquismo. Nessa verve, 25: 193-201, 2014 197 25 2014 periferia evolutiva, Proudhon é classificado como “protoanarquista”, e, por conseguinte, o anarquismo se resumiria a organização e estratégia. A necessidade de estratégia é tamanha que a tática black bloc, textualmente apresentada pelo autor como tática, deve se tornar uma possível ação estratégica, na qual muito mais do que a preocupação pacifista de certos anarquistas, o caráter decisório acerca de sua aplicabilidade é que define sua eficiência ou não nos rumos do processo revolucionário, ou seja, apesar de existir, ela também é secundária. Entretanto, o que se presencia desde então é, simultaneamente, a expansão da tática black bloc como sinônimo de revolta, enquanto os organizativos tendem a se acomodar em justificativas de difusão ideológica, o que por si só se torna uma manejada forma de captura da radicalidade em alternativo. Apesar disso, a leitura de Bray sobre os black blocs destoa da profusão de julgamentos e temores que têm sido enunciados, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Em relação às práticas consideradas violentas, Bray equaciona claramente porque, desde o século XIX, e em especial devido à “propaganda pela ação”, os anarquistas são julgados violentos, ou “porque os anarquistas executam seus atos de autodefesa e resistência sem a legitimação do Estado” (p. 250). Pelo objetivo coletivo organizado, a ação direta aparece conectada à noção de uma “política além do voto”, apresentada pelo autor longamente no decorrer do quarto capítulo, intitulado “Por que precisamos de uma revolução ou: além do ‘socialismo em um parque’”. Para Bray, é considerada ação direta uma ação que independa 198 verve, 25: 193-201, 2014 verve Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI de alguma autoridade, autorização legal ou instituição, mesmo quando vinculada a um grupo que, ainda que não institucionalizado, circunde esse ambiente. Para tanto, dá exemplos como a ação coletiva de arrumar uma praça abandonada, se aproximando da ecologia social de Murray Bookchin. Ademais, somente o fato de haver na ocupação um grupo denominado DA (ação direta), responsável pelo planejamento das ações que seriam praticadas, já é capaz de deixar os leitores interessados por práticas anarquistas no interior do Occupy um tanto confusos. Essa confusão proposital se faz presente em diversas passagens do livro, como quando Bray afirma que o Occupy foi um movimento anarquista. Por outro lado, algumas histórias, em especial no terceiro e no quarto capítulos, empolgam ao narrar ações e invenções anarquistas no interior do Occupy – como a tenda médica da ocupação sinalizada como “a cruz vermelha e negra”, e as manifestações que escancaravam o embate contra o capitalismo, como a de Goldman Sach, em dezembro de 2011, quando se ouviu pela primeira vez o grito “a-anticapitalista!” –; as contestações antiglobalização, nas quais o autor esteve presente em suas primeiras ações como jovem punk pelas ruas de New Jersey; e, principalmente, suas experimentações durante uma viagem à Atenas no final de 2012. Na percepção coletivista de Bray, o próprio slogan do movimento, “nós somos os 99%”, elaborado por David Graeber, foi responsável por apresentar “de maneira digerível” (p. 155) os conceitos anarquistas, reclamando “senso de classe” (idem) de uma maneira inclusiva e majoritária, e atraindo também os considerados despolitizados. Diante do sucesso desse slogan, que só foi verve, 25: 193-201, 2014 199 25 2014 lançado em agosto de 2012, os organizadores suspenderam a estratégia de esconderem-se como “alternativos”. Um dos entrevistados comenta que “isso [de ser anarquista] não afugenta mais as pessoas e mostra que pessoas normais são anarquistas” (p. 161). Os valores da moral de alguns anarquistas, além de confundirem o leitor, mostram que, para eles também, certas diferenças devem ser aniquiladas. O entendimento das práticas de liberdade como “sementes revolucionárias”, úteis, continua a afirmar a liberdade como um valor. Assim, se tornam meios para construir um mundo melhor e, um dia, quem sabe, se chegar à sociedade anarquista. Contudo, para além das dissonâncias, Translating Anarchy mostra que a partir dos espaços de liberdade produzidos no interior das democracias, é possível propiciar novas experimentações e outras inventividades. Dos depoimentos transcritos no livro, muitos contam transformações de gente que entrou para o combate em vez de seguir desejando reformas neoliberais para angariar melhorias. Mesmo que o anarquismo não seja “a bola da vez”, como sinaliza Graeber, o que Bray busca confirmar, longe da morte do anarquismo declarada por alguns cientistas das humanidades, o livro mostra que há sempre aqueles que apreciam a vida livre e certos espaços que podem propiciar e ampliar práticas livres. Translating Anarchy – The Anarchism of Occupy Wall Street, apesar de conter um interesse maior, que por vezes torna a leitura um tanto cansativa e bastante direcionada, interessa a quem está atento às resistências na sociedade de controle e às práticas anarquistas no presente. E talvez 200 verve, 25: 193-201, 2014 verve Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI por isso, também incomode a recorrência comparativa frequente do autor a acontecimentos do século XIX. Por fim, o que Bray mostra, para além de seu livro e do Occupy, é a necessidade de se ter paciência para perceber certas nuances que atravessam ou se desdobram a partir das movimentações atuais, e é assim que podemos encontrar algo menor que passa despercebido pelas manchetes de jornais e também pelas organizações de massas, tão aclamadas por Bray. verve, 25: 193-201, 2014 201 25 2014 NU-SOL Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999; flecheira libertária, semanal, desde 2007; Aulas-teatro Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007; Eu, Émile Henry, outubro de 2007; FOUCAULT, maio de 2008; estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009; limiares da liberdade, junho de 2009; FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010; drogas-nocaute, maio de 2010; terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011; eu, émile henry. resistências., maio de 2011; LOUCURA, outubro de 2011; saúde!, maio e outubro de 2012; limiares da liberdade, maio e agosto de 2013; anti-segurança, outubro/novembro de 2013 e fevereiro de 2014; drogas-nocaute 2, maio de 2014. DVDs e exibições no Canal Universitário/TVPUC ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; exibição de set a out/2007, jan a mar/2008 e fev a abr/2009. os insurgentes, edição de 9 programas; exibição de abr a jun/2008, jun a ago/2008 e dez/2008 a fev/2009. ágora, agora 2, edição de 12 programas; exibição de set a dez/2008, abr a jun/2009 e jun a out/2009. ágora, agora 3, edição de 7 programas; exibição de out a nov de 2010. carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, exibição de out a nov/2010, 2011 e 2012. ecopolítica-ecologia, exibição em ago/2012. ecopolítica-segurança, exibição em nov/2012. ecopolítica-direitos, exibição em abr/2013. Vídeos Libertárias (1999); Foucault-Ficô (2000); Um incômodo (2003); Foucault, último (2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola (2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008); Vídeo-Fogo (2009). CD-ROM Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um Incômodo). Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004 29 títulos. 202 verve r recomendações para colaborar com verve Verve aceita artigos e resenhas originais para possível publicação. Cada texto, respeitando o anonimato do autor, será apresentado a dois revisores escolhidos entre os membros do Conselho Editorial ou do Conselho Consultivo, ou ainda, a pesquisadores convidados que poderão recomendá-lo para publicação, recomendá-lo mediante ajustes, ou mesmo negá-lo. Em caso de pareceres distintos, um terceiro parecerista será convidado à leitura. Verve é uma revista libertária e autogestionária. Ao apresentarem textos à Verve, os autores afirmam sua concordância com a leitura e divulgação ampla, pelos meios disponíveis, dos seus escritos. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação: Extensão, fonte e espaçamento: a) Artigos: os artigos não devem exceder 17.000 caracteres contando espaço (aproximadamente 10 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. b) Resenhas: As resenhas devem ter no máximo 7.000 caracteres contando espaços (aproximadamente 4 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. Identificação: O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, contendo e-mail para contato, para identificá-lo em nota de rodapé. Resumo, Título e Palavras-chave: Os artigos devem conter (em português e inglês): título, resumo (em até 10 linhas) e três palavras-chave. Notas explicativas: As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim de texto. Resenhas não devem conter notas explicativas. 203 25 2014 Citações: As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto observando o padrão a seguir: I) Para livros: Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página. Ex: Rogério Nascimento. Florentino de Carvalho: pensamento social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000, p. 69. II) Para artigos ou capítulos de livros: Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano, página. Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, 1987, p. 76. III) Para artigos publicados em periódicos: Nome do autor. “Título” in Nome do periódico. Cidade, Editora, volume e/ou número, ano, páginas. José Maria de Carvalho. “Elisée Reclus, vida e obra de um apaixonado da natureza e da anarquia” in Utopia. Lisboa, Associação Cultural A Vida, n. 21, 2006, pp. 33-46. IV) Para citações posteriores: a) primeira repetição: Idem, p. número da página. b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página. c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano, op. cit., p. número da página. V) Para obras traduzidas: Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor]. Cidade, Editora, ano, número da página. Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p.42. 204 verve VI) Para textos publicados na internet: Nome do autor ou fonte. Título. Disponível em: http://[endereço da web] (acesso em: data da consulta). Ex: Claude Lévi-Strauss. Pelo 60º aniversário da Unesco. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/indexn1.htm (acesso em: 24/09/2007). VII) Para resenhas: As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título, da seguinte maneira: Nome do autor. Título da Obra. Tradutor (quando houver). Cidade, Editora, ano, número de páginas. Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1987, 193 pp. As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o endereço [email protected] salvos em extensão “.docx”. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em cd seja encaminhada pelo correio para: Revista Verve Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói, 969, 4º andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001, São Paulo/SP. Informações e programação das atividades do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org 205 verve se esp a l h a eletrôn i c a e livre em vervedobras héliooiticica pussyriots jornaisanarquistas &ditadura www.nu-sol.org 8 revista ecopolítica jan - abr 2014 disponível em: www.pucsp.br/ecopolitica/revista_ed5.html Projeto temático FAPESP Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle visite: http://www.pucsp.br/ecopolitica/ http://revistas.pucsp.br/ecopolitica/ Rua Monte Alegre, 984, sala S-17 São Paulo-SP Telefone: (11) 3670-8372