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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP
25
2014
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº25 (Maio 2014). São Paulo: o Programa, 2014 - semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.
ISSN 1676-9090
VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (coordenadores: Silvia Helena Simões Borelli e Edison Nunes); indexada no Portal de
Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos Capes, no LATINDEX e
catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.
Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.
Nu-Sol
Acácio Augusto, Aline Passos, Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz
Scigliano Carneiro, Edson Passetti (coordenador), Eliane K. Carvalho, Flávia
Lucchesi, Gustavo Simões, Helena Wilke, Leandro Siqueira, Lúcia Soares,
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Conselho Editorial
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(Unicamp), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa),
Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherches sur l’Anarchisme),
Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).
Conselho Consultivo
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(SOMA), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José
Eduardo Azevedo (Unip), Maria Lúcia Karam, Nelson Méndez (Universidade de Caracas), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp), Stéfanis
Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).
ISSN 1676-9090
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revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberdade.
verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela
agita liberações. atiça-me!
verve é uma revista semestral do nu-sol que
estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
Intervalos: imagens dos jornais O libertário. Direção de Pedro
Catallo. São Paulo, ano I, n. 2, 1960; O libertário. São Paulo, ano
III, n. 27 e 28, fev. 1964, capa; O libertário. São Paulo, ano III, n.
27 e 28, fev. 1964, p. 2; Dealbar. Direção de Pedro Catallo. São
Paulo, ano II, n. 17, dez. 1968; O Inimigo do Rei. Salvador/Rio
de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo, ano III, n. 7, set./out. 1979.
sumário
Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias [parte1]
13 Edgar Rodrigues: an anarchist between two countries [first part]
José Maria Carvalho Ferreira
Cinquenta anos depois...
33 Fifty years later...
Cecília Maria Bouças Coimbra
CaraCara Cara de Cavalo
47 Face to face Horse Face
Beatriz Scigliano Carneiro
... 1964-2014, aquém e além de 1/2 século
72 ... 1964-2014, beneath and beyond 1/2 century
[página única 1]
Nu-Sol
A questão americana: o conflito incontornável.
O apelo ao povo
83 The American question: the inevitable conflict.
Acclaim to the People
Joseph Déjacque
Cartografias da interiorização penitenciária
no estado de São Paulo
109 Cartographies of the penitentiary interiorization
in the state of São Paulo
James Humberto Zomighani Júnior
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
129 The ludic and artistic device of the planetary education
Eliana Pougy
Uma carta aberta da Pussy Riot
147 An onpen letter from Pussy Riot
[página única 2]
Pussy Riot
Drogas-Nocaute 2
153 Drugs-Knockout 2
Edson Passetti & Acácio Augusto
resenhas
Um arquivo sobre a educação e a cultura anarquista no Brasil
189 An archive of the anarchist education and culture in Brazil.
Lúcia Bruno
Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI
193 On the occupation of organized anarchism in the XXI century
Flávia Lucchesi
agonismo. a vida como batalha. a batalha que vivifica contra
o que tortura, assassina, faz calar.
efemérides, via de regra, são laudatórias. este ano, em especial,
marcam-se diversas: 100 anos da primeira guerra mundial,
150 anos da fundação da ait (associação internacional dos
trabalhadores), 200 anos do nascimento de mikhail bakunin.
decidimos destacar os 50 anos do golpe civil-militar no brasil.
verve 25 é atravessada pela memória das lutas contra ditaduras
de ontem e autoritarismos que não cessam de emergir: em
portugal e no brasil de ontem, por josé maria carvalho ferreira;
no brasil de ontem e hoje, por cecília coimbra e beatriz scigliano
carneiro; no enfrentamento com o insuportável pelo nu-sol.
a reviravolta conservadora nos estados unidos é fustigada pelo
instaurador da palavra libertário, joseph déjacque, ao atacar
o racismo estadunidense e a iminência da guerra de secessão
acomodados à democracia representativa, explicitando o vigor
da análise anarquista durante os acontecimentos.
o extermínio seletivo que pratica todo estado, em ditaduras
ou democracias, se expressa na reconfiguração e expansão de
prisões, como analisa james humberto zomighani júnior; a
educação que domestica nos fluxos da sociedade de controle é
problematizada por eliana pougy.
a carta-manifesto das pussy riots situa a captura de duas de
suas integrantes pelo teatro dos direitos humanos, a recusa
ao institucionalismo e convida para conversações com o
que se desdobra eletrônico em vervedobras, com os jornais
libertários que resistiram à ditadura no brasil.
a rebeldia que não cessa emerge da aula-teatro drogas-nocaute 2,
ousando sugerir o método anarquista para lidar com proibições,
moralismos e violências.
as efemérides inflam revanches e nostalgias. verve se aparta
disso, afirmando a potência dos combates no presente, atenta
à memória das lutas para
a invenção de liberdades agora!
verve
edgar rodrigues: um anarquista entre
duas pátrias [parte 1]1
josé maria carvalho ferreira
Para mim, escrever sobre a vida e a obra de Edgar
Rodrigues trata-se de uma questão de amizade, gratidão
e admiração. No meu caso específico esse fato decorre,
fundamentalmente, de três aspetos cruciais. Em primeiro
lugar, mantive com Edgar Rodrigues uma amizade única
mesclada pelas vicissitudes ideológicas do anarquismo
no Brasil e em Portugal. Os conflitos e as contradições
emergiram com relativa acuidade, dando azo a uma
situação de solidariedade profunda entre ele e eu, desde
o início da década de 1980 até sua morte, em 14 de maio
de 2009. Com isto pretendo somente demonstrar que a
minha análise sobre Edgar Rodrigues está submersa de
subjetividade.
Em segundo lugar, há que realçar o trabalho gigantesco
que foi elaborado por Edgar Rodrigues em relação ao
número de livros e artigos que publicou. Não obstante
sabermos que alguns dos livros publicados tinham um
carater repetitivo, a sua complexidade analítica sócioJosé Maria Carvalho Ferreira é professor e pesquisador no Instituto Superior
de Economia e Gestão (ISEG), na Universidade Técnica de Lisboa/SOCIUS,
Portugal. Contato: [email protected].
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histórica implica, para os vindouros, um estudo prévio e
profundo das fontes que lhes deram conteúdo e forma.
É evidente que muitos desses livros dão-nos imensas
informações relevantes para a história do movimento
social operário no Brasil e em Portugal, mas também do
sindicalismo e do anarquismo.
Em terceiro lugar, há que se ter presente o autodidatismo e a militância anarquista de Edgar Rodrigues fora
dos meios acadêmicos. Para ele não interessava a perfeição
formal do ato de escrever e analisar em termos científicos,
como é apanágio no meio universitário, mas sobretudo divulgar e desenterrar a ação coletiva dos oprimidos e explorados que tentaram, historicamente, desbravar o terreno
da emancipação social. Tratava-se, no fundo, de resgatar
a história social dos vencidos de ontem e informar o presente e o futuro da palavra do anarquismo conducente à
emancipação social.
O processo de aculturação de Edgar Rodrigues em
Portugal
António Francisco Correia (mais tarde, na década de
1950, assumiu o pseudônimo de Edgar Rodrigues no
Brasil) nasceu em 12 de março de 1921 na aldeia de Angeiras/Lavras, município de Matosinhos, região norte de
Portugal. Era filho de Manuel Francisco Correia e Albina
da Silva Santos.
Contextualizando historicamente a sua situação econômica, política, social e cultural pode-se inferir da natureza
da sua escolarização, como também das dificuldades da sua
sobrevivência econômica e social no meio familiar.
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Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias
O pai de António Francisco Correia trabalhava nas
docas do porto de Leixões e a mãe, embora trabalhasse
como doméstica, era de origem camponesa. Por outro lado,
seu pai era um militante anarcossindicalista muito ativo
no Sindicato das Quarto Artes, constituído por vários
ofícios da construção civil do município de Matosinhos.
A mãe, como era habitual nas famílias portuguesa pobres,
limitava-se a cuidar da lida da casa e dos filhos. As
múltiplas adversidades desta realidade permitiram que
Correia se apercebesse, desde muito novo, das injustiças e
da desigualdade social existentes em Portugal – perceção
drasticamente desenvolvida com a eclosão do golpe de
Estado fascista em 28 de maio de 1926. Na altura, Correia
tinha cinco anos, dois meses e dezesseis dias.
Embora fosse ainda muito jovem neste acontecimento
histórico, este teve enormes repercussões no pensamento
e na ação de António Francisco Correia, por consequência
da vida de militante anarcossindicalista de seu pai. Desde
logo, o novo regime político tentou cercear qualquer tipo
de ação individual e coletiva que se orientasse no sentido
da emancipação social. Neste contexto, a ação dos sindicatos que seguiam uma orientação anarcossindicalista
e estavam integrados na CGT (Confederação Geral do
Trabalho) tiveram extrema dificuldade em construir as
suas lutas e reivindicações, acontecendo o mesmo à sua
imprensa e escolas libertárias. Mais tarde, essas atividades foram pura e simplesmente banidas com a Constituição de 1933. Face a esta realidade, a sobrevivência da
família de António Francisco Correia tornou-se cada vez
mais difícil, pela manutenção do salário de seu pai e por
condicionantes da ação deste último no meio sindical e
anarcossindicalista.
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Entretanto, nos finais da década de 1920, Correia
ingressou na escola primária. Foi um passo importante na
sua educação e no acesso ao conhecimento e informação,
na medida em que teve oportunidade de conviver e
aprender com um grande pedagogo: o professor Raúl
Manuel Gonçalves. Como este era um democrata e um
livre-pensador, opinava livremente no sentido da defesa
das ideias e práticas anarquistas. Esse fato traduziuse numa influência pedagógica importantíssima sobre
Correia, não obstante o controle ideológico e político da
ditadura fascista já se ter alargado ao sistema educativo
português.
A conjugação dos fatores que enunciei traduziuse num processo de aculturação muito específico para
Correia. Ainda muito jovem, juntamente com o seu
irmão Manuel Correia e outros companheiros, participava
em reuniões clandestinas do sindicato em que seu pai
estava filiado e, por outro lado, distribuía propaganda
na região de Matosinhos e Porto. Havia, da sua parte,
uma predisposição e motivação comportamental muito
singular, lendo todos os livros que podia, ao ponto de
muitos deles poderem ser copiados à mão integralmente.
A razão deste fato reside na inexistência de dinheiro na
sua família para os comprar.
A primeira condição-função que nos pode aproximar
da probabilidade de Correia evoluir para uma ideologia
anarquista ou ter uma capacidade para escrever nos
é facultada por uma carta que escreve ao prisioneiro
anarquista Luis Portela, quando tinha onze anos e
dezoito dias:
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Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias
“Pamp., 30 de Março de 1932 – Prezado amigo: Logo
que tive conhecimento da sua prisão, procurei indagar
do teu paradeiro. Como vivo afastado da cidade, só o
consegui quando me veio às mãos a tua carta. Lamento
a tua situação. Mas fica certo de que nós trabalharemos
por ti. É necessário que indiques os nomes dos salteadores
da tua e da nossa liberdade, os nomes desses sórdidos
rafeiros ao serviço da tirania que asfixia o povo. Quanto
a nós, o autêntico povo, não nos deixaremos ludibriar
pelas artimanhas, nem tampouco pela violência de tais
rafeiros. Podes, em vez de ‘beijos’, dizer abertamente que
te espancaram, que nós já conhecemos os hábitos dos
esbirros da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do
Estado). Diz-nos qual o crime de que te acusam, para que
fique bem claro entre nós. Por grave que seja não temos
sequer aproximação com atos de ‘bondade’ gratificados
pela cega justiça da PVDE, que não poupa velhos nem
novos, a todos espancando barbaramente, a ponto de
mutilar e cegar as suas vítimas. De um pobre-diabo sei
eu que, andando a apascentar ovelhas, encontrou numa
bouça um maço de papéis, que se verificou depois serem
manifestos comunistas. Pois apesar do pobre nem sequer
saber ler, a Polícia prendeu-o e, passado algum tempo,
devolveu-o à liberdade, mas com o braço quebrado de
tanto torcê-lo num torniquete para arrancar-lhe absurda
confissão. Este e muitos outros constituem a enorme
legião das vítimas do Estado Novo, que um dia hão-de
julgar os seus algozes. Agradeço-te a nova letra, que não
conhecia de ‘A Portuguesa’, e em troca envio-te o seguinte
poema de Tomás da Fonseca (Zola – pseudônimo de
António Francisco Correia)”2.
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Esta incursão de solidariedade de Correia para com Luis
Portela foi mantida até finais da década de 1940, não obstante este último ter passado o maior tempo da sua vida na
prisão. Com o advento da constituição fascista de 1933, o
regime de Salazar instaurou um clima de terror policial e
ideológico junto dos sindicatos que não professavam os objetivos dos sindicatos nacionais de ideologia fascista. Como
consequência, a totalidade das sedes dos sindicatos anarcossindicalistas aderentes à Confederação Geral do Trabalho
(CGT) foram encerradas, assim como os seus órgãos de imprensa. O exemplo do jornal A Batalha, porta-voz da CGT,
é bastante significativo. Sendo um jornal diário, perdurou de
1919 até ao golpe de Estado de 28 de maio de 1926. Já antes a situação dos sindicatos era difícil, mas depois de 1933
a repressão ideológica e política desenvolveu-se de forma
abrupta, ao ponto de tornar insustentável qualquer ação reivindicativa ou sequer qualquer veleidade de mudança social.
Para os militantes da CGT, as dificuldades de se
reunir avolumaram-se. Nestas circunstâncias, sendo um
militante ativo da CGT, era na casa do pai de Correia
que se realizavam as reuniões clandestinas do “Sindicato
das Quatro Artes”. Todo o espólio (livros, jornais,
panfletos, atas, mobília, estantes, material de escritório,
etc.) deste sindicato estava sediado na casa de Manuel
Francisco Correia. Até a prisão do pai, em finais de 1936,
no Porto, Correia, seu irmão Manuel Correia e outros
companheiros realizaram muitas reuniões de incidência
libertária e sindical. No entanto, a identidade com a
fragilidade existencial da central sindical nacional (CGT),
influenciou, notoriamente, a discussão para reflexões
e ações identificadas com os princípios e as práticas do
anarcossindicalismo.
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Em função das prisões e dos condicionantes impostos
pela constituição fascista de 1933, os dirigentes da CGT
não cruzaram os braços, e elaboraram uma estratégia
conducente à realização de uma greve geral insurrecional
em nível nacional, no dia 18 de janeiro de 1934, com o
intuito de derrubar o governo de Salazar. Na medida em
que todos os trabalhadores assalariados foram estimulados
para intervir nessa ação revolucionária para além da
CGT, a Comissão Inter-Sindical também participou
nesse evento histórico. É interessante sublinhar que
esta central sindical pertencia à Internacional Sindical
Vermelha, criada em 1921. Por outro lado, era uma correia
de transmissão dos desígnios políticos e ideológicos do
PCP (Partido Comunista Português), também criado
em 1921, que também fazia parte da III Internacional
Comunista sediada em Moscou.
Ironia do destino. No caso português, na sua grande
maioria, essas organizações foram criadas por anarquistas.
Assim, não admira que, não obstante os conflitos
subsistentes entre a CGT e a Comissão Inter-Sindical,
militantes desta central sindical tenham participado
também na greve geral insurrecional de 18 de janeiro de
1934. A falta de coordenação entre os diferentes entes
participantes fez com que a greve geral insurrecional
tivesse sido abortada, não obstante em alguns pontos do
país emergissem focos de resistência contra a repressão
policial e militar. Neste aspeto, a sublevação na vila
de Marinha Grande revelou-se um caso exemplar.
Em relação a este acontecimento histórico, após ter-se
conhecido o seu epílogo, é interessante constatar que o
PCP tivesse denominado essa tentativa insurrecional de
“anarqueirada”.
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António Francisco Correia viveu todo este episódio
através do ambiente familiar centrado na ação de seu
pai. Entre os onze e quinze anos, a sua motivação estava
focada na leitura de obras de autores anarquistas e de
obras literárias identificadas com a emancipação social.
Pese embora só tivesse quinze anos, o percurso militante
de Correia amadureceu e radicalizou-se fortemente com
a prisão do pai em finais de 1936. Apesar de estar só
10 meses numa prisão do Porto, isso não obstou a que
fizesse uma visita ao pai na situação de prisioneiro. A
revolta tornou-se fluida perante a inexistência de justiça
e liberdade em Portugal. Seu pai entrou no desemprego e
as dificuldades econômicas e sociais da família de Manuel
Francisco Correia e Albina da Silva Santos acentuaramse de forma inesperada. Para António Francisco Correia,
as necessidades de desenvolver uma luta revolucionária
contra o regime de Salazar acentuaram-se.
Esta necessidade, no entanto, esbarrava na incapacidade histórica da CGT em liderar o movimento social
operário português no sentido da revolução social. A demonstração inequívoca desse fato residia, por um lado, no
efeito negativo da fascização dos sindicatos nacionais. Por
outro, a derrota histórica da greve geral insurrecional de
18 de janeiro de 1934 deixou o proletariado português de
joelhos face ao fascismo e ao desenvolvimento do capitalismo no espaço geográfico português.
Perante esta dificuldade em lutar com proficiência contra o regime fascista de Salazar, a GGT e os anarquistas
em geral envidaram esforços solidários no apoio à revolução social em Espanha. Nesse sentido, vários militantes
anarquistas portugueses integraram as milícias da CNT
(Confederação Nacional do Trabalho) e outros militaram
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na FAI (Federação Anarquista Ibérica). Por outro lado,
outros colaboravam nos órgãos da imprensa anarquista
espanhola e ainda participam nos sindicatos e cooperativas sob a égide da CNT. Em Portugal, foram criados
dispositivos revolucionários de diferente tipos, sobretudo
de auxílio a militantes revolucionários que fugiam do regime franquista e eram perseguidos pela PIDE (Polícia
Internacional de Defesa do Estado) em Portugal. Importa sublinhar que algumas ações de solidariedade relativas
à fuga de militantes anarquistas do teatro de guerra civil
em Espanha através de Portugal foram organizadas pela
FARP (Federação Anarquista da Região Portuguesa) e
FAPE (Federação Anarquista de Portugueses Exilados).
Não obstante essa solidariedade ativa da CGT para
com a CNT e a FAI, em paralelo, verificava-se uma
situação de impotência nas lutas a desenvolver contra
o regime de Salazar. Essa realidade não somente se
constatava na solidariedade com a revolução social na
Espanha, mas sobretudo na incapacidade manifestada
em destruir a solidariedade que Salazar mantinha com
Franco. Para alguns militantes anarcossindicalistas da
CGT esta situação tornou-se insuportável, razão pela
qual tenham recorrido ao lançamento de um bomba no
intuito de provocar a morte de Salazar. No fundo, para
estes militantes, só com um método de ação violenta havia
hipóteses de desmoronar o regime fascista de Salazar e,
consequentemente, apoiar a revolução social na Espanha
de modo eficaz. Em abono da verdade, diga-se que Emídio
Santana, anarcossindicalista, foi um dos militantes mais
ativos no atentado a Salazar, em 4 de julho de 1937.
Embora em menor número, não podemos ignorar que
esta ação teve a participação de militantes comunistas.
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Todo este contexto sócio-histórico foi vivido por
António Francisco Correia com base numa multiplicidade
de condicionantes na sua ação de militante anarquista, razão
pela qual se remetesse à realização de leituras, reflexões
e difusão de propaganda anarquista. A correspondência
que manteve com o prisioneiro anarquista Luís Portela
perdurou entre 1932 e 1937. Essa correspondência dános já uma pequena imagem da maturidade intelectual e
revolucionária de António Francisco Correia, quando tinha
dezesseis anos e cinco meses: “Pamp., Agosto de 1937 –
Caros camaradas: Saúde e Anarquia! Depois de longo
tempo sem resposta vossa, resolvi escrever-vos para saber o
que se passa convosco e, ao mesmo tempo, transmitir-vos
as nossas notícias. Eis as mais importantes: No dia 4 de
julho, alguns camaradas atentaram contra a vida de Salazar,
infelizmente sem resultado. O facínora salvou-se por
pouco, mas salvou-se, para a nossa desgraça. A Polícia fareja
por todos os lados, mas, felizmente, até hoje não logrou
prender nenhum dos autores do atentado. Não se para aí,
se para o Tarrafal, seguem sessenta marinheiros dos que
escaparam da mortandade no Tejo. O Salazar preparava-se
para mandar alguns navios-de-guerra portugueses para as
costas de Espanha a fim de auxiliar o Franco a estabelecer
um regime fascista no vizinho país. A marinhagem, em
cujo seio sempre progrediram as nossas ideias, revoltouse, mas foi atraiçoada. Alguns navios foram metralhados
no Tejo, e os marinheiros que tentaram salvar-se a nado
eram metralhados dentro da água. Os poucos sobreviventes
foram condenados a deportação. Os sabujos da PIDE
(Polícia Internacional de Defesa do Estado), como feras,
farejam, por todos os lados, excitados pela ‘Rádio Fantasma’,
que diariamente ameaça Salazar.
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Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias
Nos dias 11, 12 e 13 de junho, realizou-se mais um
congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores
(AIT), cujo principal objetivo consistia em apreciar os
acontecimentos da Revolução Espanhola. Depois de
longas apreciações e explicações dadas pelo secretariado
da AIT e pelos delegados da CNT, foi aprovada uma
definição de pontos-de-vista vasada nos seguintes termos:
1º) Os acontecimentos de Barcelona, desencadeados pelos
moscovitários contra os anarquistas, vários dos quais
foram traiçoeiramente fuzilados por aqueles, visavam
o aniquilamento dos militantes da CNT e FAI, com o
objetivo de estrangular a Revolução Social. 2º) Tal ação
vinha sendo preparada pelos governos de Valência e
Barcelona, na ausência dos militantes anarquistas, que
colaboravam com esse governo, como conselheiros de
guerra. Esta manobra era dirigida pelos bolchevistas
às ordens de Moscou. 3º) Tal plano tem um caráter
internacional e serve os interesses político-capitalistas
anglo-americano-russos, interesses que a diplomacia dos
respetivos países procura camuflar com o pacto de nãointervenção. 4º) A mediação, recusada pelo governo de
Valência, tende a uma paz covarde, isto pelo lado dos
governos, mas, quando a Revolução Espanhola, tem um
alcance muito mais profundo. 5º) Em face disto, é dever
do proletariado organizado desencadear a revolução
mundial, que há de trazer aos povos uma nova vida social,
baseada na paz e na justiça há tanto ansiadas. Esta, pois,
deve ser a preocupação dominante e essencial da CNT. 6º)
A admiração pelo valor invencível das massas operárias
e camponesas da Espanha, e muito especialmente da
CNT, permanece intacta, apesar de todas as vicissitudes
duma luta desigual. 7º) A solidariedade do proletariado
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internacional à CNT continua inquebrantável, suceda o
que suceder”3.
Quando ainda tinha dezesseis anos, António Francisco
Correia, após ter concluído a instrução primária, resolveu
seguir a sua escolarização numa escola particular no
Porto. A sua vontade de aprender era inabalável, e como
não tinha dinheiro para custear os estudos, trabalhava
de dia como servente de pedreiro e estudava de noite. O
grau de escolarização que obteve era fundamental para
a consecução dos objetivos que pretendia: aprofundar as
bases de leitura e de escrita que envolviam a sua condiçãofunção de militante do anarcossindicalismo e, por outro
lado, estimular a formação de competências profissionais
que lhe permitissem trabalhar no setor da construção civil.
Com o fim da Revolução Espanhola, em 1939, consumou-se a pretensão de realizar a revolução social identificada com a CNT e a FAI. Em sintonia com esta situação
adversa, a CGT portuguesa estava totalmente desmantelada nos seus propósitos de luta contra o salazarismo.
Nestas condições, os militantes anarcossindicalistas que
ainda restavam limitavam-se a promover atos simbólicos
de propaganda anarquista contra o regime de Salazar, ou
então promoviam ações de solidariedade junto daqueles
que estavam presos e manietados nas prisões do Tarrafal
(Cabo Verde) e de Angra do Heroísmo (Açores).
Em função do exposto, com a idade de dezoito anos,
um mês e dezenove dias, António Francisco Correia,
conjuntamente com Fernando Costa, Fernando Neves,
Agostinho Gonçalves, Manuel Correia, Fernando do
“Madalena”, Armindo Sarilho (primo de António Francisco Correia), Manuel Correia, Augusto Godinho, José
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Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias
Augusto de Castro, Júlio Gonçalves Pereira e Joaquim
Moreira da Silva comemoraram o 1º de Maio de 1939 de
uma forma muito genuína. Para além de não comparecerem nos seus locais de trabalho, fizeram um circuito ciclista passando por Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo.
Como era proibido qualquer tipo de manifestação simbólica correlacionada como o acontecimentos histórico de
1886 em Chicago, comemorar o 1º de Maio deste modo
foi a única maneira destes militantes anarcossindicalistas
expressarem a sua revolta contra a ditadura salazarista e
demonstrarem que estavam vivos.4
A amizade entre estes companheiros de António
Francisco Correia era muito grande, ao ponto de
participarem em várias atividades culturais em grupos
de teatro e bibliotecas. Entre outras, um dos exemplos
dessas atividades foi o estudo do esperanto. Correia foi
um grande entusiasta dessa língua, sendo acompanhado
por Fernando Costa, Abel Silva e Fernando Neves.
Este último também emigrou para o Brasil e foi um
companheiro que esteve sempre, até a sua morte, ao
lado de Correia. A universalidade comunicacional que
se pretendia com o desenvolvimento do esperanto, na
altura, tinha uma importância vital para as aspirações
revolucionárias do proletariado mundial.
No caso específico da integração de Correia no mundo
teatral amador, isso ocorre quando tinha dezoito anos, onze
meses e onze dias. Para o efeito, inscreve-se, pela primeira
vez, em 01 de março de 1940, no Grupo Dramático
Flor da Mocidade, sediado em Santa Cruz, município
de Matosinhos. Para além de participar nas atividades
teatrais, teve também a possibilidade de conhecer Ondina
dos Anjos da Costa Santos, com quem casou em agosto de
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1941. Posteriormente, ingressou no Grupo de Dramático
Alegres da Perafita, tendo até assumido funções de vicepresidente da direção. No sentido de estimular hábitos de
leitura, neste grupo de teatro, organizou concursos anuais,
com prêmios para quem lêsse mais, ao mesmo que se
realizavam piqueniques e excursões para localidades mais
próximas.5
Ao perfazer vinte e um anos e sete meses, António
Francisco Correia ingressou no serviço militar obrigatório.
Primeiro fez serviço militar no Regimento de Engenharia
do Porto. Em seguida, foi destacado para a Escola Prática
de Engenharia, sediada em Tancos. Foi uma estadia nas
casernas militares que perdurou entre outubro de 1942
e novembro de 1943. Nesse período, entretanto, nasceu
Oscar Zola, o seu primeiro filho, em 26 de agosto de 1943.
Para além da obrigação imperativa do regime de Salazar
para que todos os homens cumprissem o serviço militar, o
fato de Correia ter aceito as condições da disciplina militar
em Portugal permitiu-lhe subtrair-se a uma eventual ida
para as colônias, como era o caso na altura em relação
a Angola, Moçambique, Madeira, Açores, Timor e Cabo
Verde, etc. Evidentemente que essa exigência de Salazar
do cumprimento do serviço militar nas colônias devia-se
ao medo de as perder no teatro da 2ª Guerra Mundial.
Durante os 10 meses que fez serviço militar, começou
como soldado, depois foi promovido a cabo e quando
saiu era sargento.
As consequências da vivência de António Francisco
Correia nas casernas militares permitiram-lhe assenhorear-se de uma série de conhecimentos e informações que mais
tarde revelar-se-ão essenciais para a sua vida profissional,
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verve
Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias
sobretudo no que concerne à aprendizagem da matemática,
desenho e alguns aspetos técnicos da engenheira civil:
“Eu tinha um primo que era mais velho quinze anos de
que eu que me sugeriu que estudasse no seio do exército.
Prestei serviço em engenharia. Aprendi as técnicas e
disciplinas de engenharia civil que estavam ligadas à
construção civil, como eram os casos da matemática,
desenho, etc. Quanto ao problema da disciplina que
reinava no exército, eu aproveitava o tempo o melhor
possível para estudar, porque não podia fugir. Foi assim
que cheguei a sargento. Quando vim embora do exército
tinha 23 anos. Fui para a Escola Prática de Engenharia e
prestei serviço militar. Toda essa gente eram engenheiros.
Esses meus primos foram para Espanha porque não
queriam servir a guerra. Dentro do exército, e pese embora
a disciplina militar que ali existia, eu teria que aproveitar
o melhor possível. Isto foi muito importante para a minha
formação profissional e serviu para colmatar os problemas
financeiros da minha família, já que o meu pai depois de
sair da prisão foi despedido”6.
Logo após ter deixado o serviço militar, Correia fez-se
à vida e, como é lógico, tentou singrar como trabalhador
da construção civil. Como tínhamos escrito antes, sua
evolução educacional permitiu-lhe evoluir para uma
situação que não esperava antes de ter feito o serviço
militar: “Primeiro criei uma firma de construção civil
e passei a fazer construções como empreiteiro. Um
andar, dois andares. Quando estive na Escola Prática de
Engenharia fiz muitas amizades com engenheiros militares
do exército. Estes ajudaram-me muito na resolução de
problemas técnicos e burocráticos na minha vida inicial
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de empreiteiro. Fiz obras nos hospitais militares e edifícios
públicos”7.
Até a sua ida para o Brasil, em 1951, limitou-se a
exercer a sua atividade profissional, nunca esquecendo os
pressupostos da luta contra a ditadura de Salazar. Sendo
difícil qualquer tipo de solidariedade e luta contra o
regime no quadro da ação individual e coletiva, Correia
canalizou os seus esforços na solidariedade com os presos
anarcossindicalistas, destacando-se todo o seu esforço
junto de Luis Portela até finais da década de 1940.
Importa, por fim, referir a sua participação em ações nas
conferências dos professores Abel Salazar e Agostinho da
Silva, tendo salvo muitos livros deste último das garras da
PIDE.
Notas
Este artigo, assim como o que foi publicado na revista verve nº 24,
2013, “Roberto das Neves: um cidadão do Mundo”, é resultado de minha
participação no Projeto MOSCA – Movimento Social Crítico e Alternativo
– Memórias e Referências, projeto de investigação e desenvolvimento
tecnológico financiado pela FCT. [Esta é a 1ª parte do artigo completo. A
2ª parte será publicada em verve nº 26 (N.E.)].
1
Luís Portela e Edgar Rodrigues. Na Inquisição do Salazar. Rio de Janeiro,
Editora Germinal, 1957, pp. 51-52.
2
3
Idem, pp. 208-209.
Edgar Rodrigues. Lembranças Incompletas. Guarujá (SP), Editora Opúsculo Libertário, 2007, pp. 24-25.
5
Idem, pp. 25-26.
6
Entrevista de Edgar Rodrigues ao autor em 12 de março de 2007. Rio de
Janeiro, p. 1.
7
Idem.
4
28
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verve
Edgar Rodrigues: um anarquista entre duas pátrias
Resumo
Primeira parte da biografia política do pesquisador, arquivista
e historiador autodidata e anarquista Edgar Rodrigues. Relata
sua vida e militância em fuga da ditadura de Salazar para o
Brasil e, após uma década no Rio de Janeiro, o envolvimento
com o movimento anarquista e suas ações de resistência à
ditadura civil-militar de 1964 no Brasil.
Palavras-chave: anarquismo no Brasil; arquivos operários;
resistência a ditaduras
Abstract
The article is the first part of the political biography of the
anarchist teacher, archivist and autodidact historian Edgar
Rodrigues. It recounts his life and militancy while escaping
Salazar’s dictatorship and, after ten years in Rio de Janeiro,
his involvement with the local anarchist movement and
his resistance acts against the 1964’s civilian-military
dictatorship.
Keywords: anarchism in Brazil; workers archives; resistances
against dictatorships.
Edgar Rodrigues: an anarchist between two countries [first
part], José Maria Carvalho Ferreira.
Recebido em 15 de fevereiro de 2014. Confirmado para
publicação em 05 de abril de 2014.
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verve
cinquenta anos depois...
cecília maria bouças coimbra
A todos aqueles que não estão mais entre nós para contar esta e
outras histórias.
“Lembra daquele tempo
Que sentir era
A forma mais sábia de saber
E a gente nem sabia?”
(Alice Ruiz)
Trazer um tempo vivido intensa e ativamente, de
modo um tanto frenético, pois tudo nos parecia urgente
de ser realizado, sem cair numa espécie de saudosismo
conservador, é um desafio. Desafio que aceito correr
ao trazer fragmentos de algumas histórias que não são
somente minhas, mas de uma geração que generosamente
sonhou, ousou, correu riscos e, com a peste, foi marcada,
massacrada, exterminada. Uma geração que, nos anos
1960 e 1970, apaixonadamente marcou suas vidas, não
Cecília Maria Bouças Coimbra é psicóloga, professora adjunta da Universidade
Federal Fluminense, Pós Doutora em Ciência Política pela USP, Fundadora e atual
vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, e ex-Coordenadora da Comissão
Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia; autora de Os
guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. Rio
de Janeiro, Oficina do autor, 1995. Contato: [email protected].
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pela mesmice, pelo instituído, pela naturalização, mas
pelo estranhamento, pelo desassossego, pela afirmação e
criação de novos espaços.
Histórias que se compõem de muitas outras histórias,
de muitas outras memórias: dos que sobreviveram, dos
que sucumbiram e, por que não, dos que, muitas vezes
aterrorizados, assistiam e/ou passavam ao largo dessas
mesmas histórias.
Trazer esses tempos de militância − inicialmente, de
maneira um tanto eufórica e mesmo despreocupada, pois,
sem dúvida, alegremente queríamos mudar o mundo e,
posteriormente, de modo sofrido e dolorido, quando o
terror se implantou e recrudesceu o massacre, o extermínio
– é caminhar em um fio de navalha, em uma “corda bamba”.
É, sem dúvida, navegar por outras histórias, diferentes
da que nos tem sido apresentada e afirmada como única
e verdadeira. Histórias essas que atravessam e constituem
todos nós, mesmo os que não tiveram com aqueles tempos
maiores implicações. Histórias que continuam presentes em
nosso cotidiano e cujas práticas cada vez mais se fortalecem
através dos extermínios, da tortura, dos desaparecimentos...
Toda uma geração de jovens estudantes e intelectuais
viveu intensamente o alegre e descontraído início da
década de 1960, continuação do que ficou conhecido
como os “anos dourados” – os anos 1950, da Bossa Nova,
do bem-humorado e sorridente presidente JK1. Aqueles
tempos caracterizaram-se pela implementação de projetos
das chamadas reformas de base e de desenvolvimento
nacional, frente ao reordenamento monopolista do
capitalismo internacional, o que gerou uma política
populista dos governos daquele período2.
34
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verve
Cinquenta anos depois...
Foi naquele quadro que se fortaleceram diferentes
movimentos sociais que se voltaram para a “conscientização
popular”. Sem dúvida, aqueles anos estiveram marcados
pelos debates em torno do “engajamento” e da “eficácia
revolucionária”, onde a tônica era a formação de uma
“vanguarda” e seu trabalho de “conscientizar as massas” para
que pudessem participar do “processo revolucionário”. A
efervescência política, o intenso clima de mobilização e os
avanços na modernização, industrialização e urbanização
que configuram aquele período traziam, necessariamente,
as preocupações com a “participação popular”3.
Ressoavam muito próximos de nós os ecos da vitoriosa
Revolução Cubana, que passou a embalar toda uma
juventude e grande parte da intelectualidade latinoamericana, como o sonho que poderia se tornar realidade.
No Brasil, apesar de toda uma política populista, os
grupos dominantes, em sua maioria aliados aos capitais
estrangeiros, mostravam-se temerosos com os rumos
desta política. Daí as pressões que surgiam em diferentes
áreas, pois muitos desses movimentos eram alimentados
pelo próprio governo populista/desenvolvimentista de
João Goulart.
Foi a época do Centro Popular de Cultura da UNE, dos
Cadernos do Povo Brasileiro, de filmes como Cinco Vezes
Favela e do então inacabado Cabra Marcado para Morrer. A
finalidade era “educar o povão” através da arte. No nordeste,
Francisco Julião e as Ligas Camponesas incendiavam com
sonhos de liberdade e de reforma agrária os pequenos
camponeses da Zona da Mata. Diferentes experiências
com alfabetização de adultos eram realizadas, desde Com
Pés Descalços Também se Aprende a Ler, no Rio Grande do
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Norte, passando pelo Movimento de Cultura Popular, em
Pernambuco até o Programa Nacional de Alfabetização de
Paulo Freire, em Pernambuco e no Rio de Janeiro.
Tratava-se, sem dúvida, da produção de territórios
singulares, ainda marcados, muitos deles, pela sizudez,
rigidez e stalinismo vigentes no período, e que foram
radicalizados pela geração de 1968. Afirmavam-se novos
valores e padrões de comportamento, novos modos de estar
no mundo. A participação da mulher passava a ser valorizada,
não somente em sua profissionalização, mas principalmente
em seu engajamento político, apesar de todos os limites que
ainda eram impostos pelos companheiros de militância. O
casamento deixava de ser a única perspectiva considerada
honrada de independência familiar. Explorávamos novos
caminhos onde se tornava fundamental a satisfação pessoal
nos mais diferentes relacionamentos, desde a sexualidade
até o trabalho. Este deixava de ser mera ocupação, por
vezes provisória, para tornar-se via legítima de realização e
afirmação da própria independência. A reprodução tornavase uma opção nos debates travados em torno do direito ao
aborto e ao uso da pílula anticoncepcional. “A sexualidade
expandia-se para além dos limites do casamento”4 e a
monogamia era questionada... O tabu da virgindade
caía por terra; as relações entre homens e mulheres eram
pensadas de forma um pouco mais igualitária. “Queríamos
mudar o mundo, era a nossa questão básica; mais: tínhamos
a certeza de que isso ia acontecer”5.
À tardinha do dia 31 de março de 1964, iniciávamos um
novo curso para formar novas turmas de alfabetizadores
dentro do Programa Nacional de Alfabetização (PNA)6,
quando soubemos que um golpe de Estado estaria a
caminho... Estávamos no Salão Nobre do Instituto
36
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verve
Cinquenta anos depois...
Benjamim Constant, próximo à Urca, em um ato que
abria o referido curso... Saímos de lá e fomos em grandes
grupos para a UNE, na Praia do Flamengo...
Por toda noite e madrugada, seu prédio esteve
ocupado por centenas de estudantes que avidamente
acompanhavam o desdobramento dos acontecimentos
e iluminavam a praia do Flamengo com inflamados
discursos... “Não passarão”, afirmávamos em alto e bom
som, dispostos a resistir... Naquela madrugada, foi passada
de “boca em boca” a convocação para a manhã seguinte:
TODOS AO CACO.
No início de tarde de 01 de abril de 1964, cerca de 200
estudantes universitários ocuparam o prédio do CACO
(Centro Acadêmico Cândido de Oliveira) da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje
UFRJ, para resistir ao golpe empresarial-militar que se
efetivava.
A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT),
contrária ao golpe que se avizinhava, decretou naquele 01
de abril uma greve geral para todo o país.
Lembro que muitos de nós, para chegarmos ao CACO,
tivemos que andar muito ou conseguir carona na boleia
dos poucos caminhões que trafegavam no centro da cidade
do Rio de Janeiro naquele dia. Dia que seria para todos
nós inesquecível e que nos marcaria por toda a vida...
Jovens universitários de diferentes cursos, de diferentes
tendências políticas, de diferentes segmentos sociais...
Eram estudantes de Direito, Engenharia, Medicina,
Economia, Ciências Sociais, História, Geografia, História
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Natural (Biologia), Filosofia, Matemática, Química, Física,
Pedagogia, Estatística, Astronomia... Fundamentalmente
estavam presentes os comunistas (PCB e PCdoB), os
católicos da Ação Popular (AP) e muitos independentes,
os “simpatizantes”, como os denominávamos. Dentre os
estudantes, sabíamos de duas jovens grávidas.
As armas que nos foram prometidas, no dia anterior,
pelos militares contrários ao golpe, nunca chegaram.
Nós, majoritariamente, até aquele momento, sequer
havíamos segurado uma arma, e fomos encurralados
naquele prédio por vários grupos paramilitares como o
Comando de Caça aos Comunistas (CCC), agentes do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e a
Polícia Militar da Guanabara... Não sabíamos do que se
tratava quando as rajadas de metralhadora começaram a
estilhaçar as vidraças do prédio centenário. As bombas de
gás lacrimogêneo eram atiradas às dezenas... Ali, naquele
momento, percebemos que estávamos cercados por grupos
que apoiavam o golpe civil-militar recém-vitorioso.
Encolhidos no chão, sem comida, nos abaixávamos
e víamos pelas frestas das janelas carros incendiados
e grupos que resistiam, gritando palavras de ordem
contrárias ao golpe e à queda do governo João Goulart.
Muitas horas se passaram... A porta de entrada da
Faculdade foi bloqueada com vários de seus móveis
pesados... Nuvens de fumaça branca saíam pelas janelas
metralhadas do velho prédio...
Trazíamos a triste e traumática recordação da precoce
morte do companheiro do curso de Filosofia, Antônio
Carlos Silveira Alves, morto por um acidente de arma,
naquela tarde de 01 de abril. Levado para o Hospital Souza
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Cinquenta anos depois...
Aguiar, morreu naquele mesmo dia por hemorragia interna.
Era a primeira morte que assistíamos... Depois viriam
outras... Durante muitos e muitos anos, o fantasma da morte
de Antônio Carlos nos acompanhou, nos assombrou... A
tal ponto de não nos referirmos ao acidente.
Anoitecia e as rajadas constantes de metralhadoras
continuavam fazendo voar vidraças e pedaços de madeira
das janelas. As bombas de gás lacrimogêneo tornavamse cada vez mais intensas e numerosas... Alguns de nós
procuravam refúgio nos banheiros, onde o cheiro de urina
parecia amenizar o efeito do gás lacrimogêneo, outros
procuravam encontrar saída pelo telhado do andar de cima
da Faculdade; tentava-se retirar as duas jovens grávidas.
De repente, cessaram as rajadas e as bombas... Ouvimos
a voz de um homem que batia à porta e nos informava:
“Sou oficial do Exército e vocês estão cercados por grupos
golpistas. Quero entrar e conversar. Garanto a integridade
física de todos”. Abrimos a porta e um jovem Capitão do
Exército nos explicou a situação. O golpe estava vitorioso
e ele garantiria a nossa saída dali. Nos indicou os caminhos
mais seguros a serem seguidos...
Muitos anos depois soubemos de quem se tratava:
Ivan Cavalcante Proença que, ao saber o que ocorria no
CACO, onde a ordem era atirar para matar, foi ao local,
e, após vários disparos contra os golpistas, permitiu nossa
saída... Após isto, foi preso e expulso do Exército...
Ivan Cavalcante Proença, capitão do Regimento
Presidencial, da guarda pessoal de João Goulart, estava no
comando dos tanques que vigiavam a Casa da Moeda (hoje
Arquivo Nacional), bem próxima ao Largo do CACO.
Encontrava-se à noitinha com alguns de seus homens no
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Palácio Laranjeiras onde assistia de longe às comemorações
dos golpistas civis com o então governador da Guanabara,
Carlos Lacerda. Ali, foi avisado por dois sargentos e um cabo
de seu regimento que vários estudantes estavam encurralados
no prédio da Faculdade de Direito... Para lá se dirigiu.
Após cercar o Largo do CACO com seus tanques e
render os golpistas que tinham suas armas voltadas para a
porta do prédio, tomou a precaução de esperar que todos se
retirassem. Fizeram-no em vários carros de passeio e vans,
segundo depoimento dado, anos depois, pelo próprio Ivan.
Após isto, permitiu nossa saída... Com a vitória do golpe,
Ivan logo recebeu ordens para se apresentar ao Quartel
General. Preso, foi levado para a Fortaleza de Santa Cruz, e
depois para o Forte de Imbuí, ambos em Niterói. Cassado e
perseguido por vinte anos, até hoje continua sem uma anistia
ampla, geral e irrestrita, como todos os brasileiros que foram
perseguidos pelo terrorismo de Estado então implantado...
Saímos em pequenos grupos e vimos diante da Central
do Brasil e do Ministério da Guerra vários carros e viaturas
incendiados, alguns ainda em chamas. Sem qualquer
transporte, caminhamos pelas ruas desertas do centro da
cidade.
Chegando ao Flamengo, passamos pela UNE
em chamas... Paramos alguns minutos em lágrimas,
assombrados com tamanha violência... Violência que,
nos anos seguintes, marcaria nossas vidas. Nossos
sonhos ingênuos estavam começando a ser derrubados.
Derrubados, mas não destruídos.
Muitos que estavam naquele 01 de abril no CACO
seguiram diferentes caminhos... A maioria continua na
resistência das mais diversas maneiras...
40
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verve
Cinquenta anos depois...
Muitos que fundaram o Grupo Tortura Nunca Mais/
RJ, e ainda hoje lá se encontram, estavam no CACO
naquele dia... Muitos entraram para a clandestinidade...
Alguns se exilaram... Muitos foram presos... Outros foram
mortos e desaparecidos.
Passados 50 anos, alguns ainda permanecem na luta
para que estas e muitas outras histórias possam ser
conhecidas por todos.
O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, criado há 29 anos,
em abril de 1985, permanece apontando cotidianamente
os acordos que vêm sendo feitos pelos diferentes governos
civis pós-ditadura no sentido de dar continuidade à política de acobertamento, silenciamento e esquecimento
inaugurada pelo terrorismo de Estado que assolou nosso
país (1964-1985).
Desde a sanção da Lei de Anistia, em 1979, ainda em
plena vigência da ditadura, já questionávamos a interpretação
hegemônica que a ela foi dada. Sob o nome de “crimes
conexos”, todos aqueles que cometeram atos de terror
em nome do Estado (sequestros, prisões ilegais, torturas,
assassinatos e ocultação de restos mortais) – segundo os
juristas da ditadura − estariam anistiados, por terem praticado
crimes correlatos aos cometidos pelos opositores políticos.
Sabemos que, desde a Anistia até os dias de hoje,
acordos foram feitos entre as forças político-econômicas
que alimentaram, respaldaram e apoiaram aquele regime
de terror e os diferentes governos civis que se sucederam
após 1985.
O Brasil, de todos os países latino-americanos que
passaram por ditaduras nos anos de 1960 e 1970, é o mais
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atrasado no chamado processo de reparação7. Pela Lei
9.140/95, do governo de Fernando Henrique Cardoso,
apenas se fez a “reparação econômica”, não se investigando
e publicizando os atos de terror e nem responsabilizando
qualquer agente do Estado ditatorial. Ou seja, tais
“reparações” tentaram se transformar em um “cala-boca”,
em uma proposta de esquecimento e silenciamento.
Neste cenário de acordos e concessões se insere a
criação, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade e de
várias outras comissões estaduais.
É necessário lembrar que, em dezembro de 2010, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
(Organização dos Estados Americanos) condenou o Estado
brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus
agentes que participaram do desaparecimento de mais de
70 opositores políticos na repressão à Guerrilha do Araguaia
(1966-1974).8 Estendeu esta sentença aos cerca de 500
mortos e desaparecidos, afirmando que a interpretação
oficial dada à Lei da Anistia não é empecilho para tais atos.
Neste contexto, foi votada a “toque de caixa”, em regime de
urgência urgentíssima, a Comissão Nacional da Verdade,
bastante limitada e perversa.9
Passados 50 anos do golpe empresarial-militar, queremos contar muitas outras histórias ainda ocultas e silenciadas, cujos efeitos sentimos em nosso cotidiano. Há que
lembrar que os grandes grupos econômicos que ativamente
prepararam, fomentaram e participaram do golpe de 1964,
que respaldaram e financiaram todo o aparato repressivo
da ditadura, continuam presentes no cenário político brasileiro. Com o golpe, novos modos de gerir o capital passam a
participar do poder do Estado; grandes grupos econômicos
42
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Cinquenta anos depois...
internacionais, e mesmo nacionais, fortalecem-se por toda
a América Latina. Apesar desta poderosa máquina capitalista acelerar-se cada vez mais, continuamos – mesmo que
que em pequenas ilhas – na resistência... Não por acaso, os
crimes cometidos pelo terrorismo de Estado permanecem
pouco conhecidos e os documentos que comprovam essas
atrocidades continuam em segredo, assim como os testemunhos e as imagens de muitos daqueles que cometeram
e participaram de tais crimes. A mordaça, a censura da ditadura continua em parte...
Apesar do poderio capitalístico e de todos os acordos
feitos, continuamos lutando e pressionando para que
se implemente uma Comissão Nacional da Verdade,
Memória e Justiça que abra e divulgue todos os arquivos
da ditadura empresarial-militar; que investigue, esclareça,
torne público e responsabilize os crimes cometidos em
nome da “segurança nacional”. Há que não esquecer os
que ainda hoje continuam ocorrendo em nome da “defesa
e segurança da sociedade e de seus cidadãos de bem”10.
Parece que foi ontem... Esta e muitas outras histórias
continuam em nós marcadas a ferro e fogo. Fazem parte de nossas vidas... Parece que aconteceram ontem, hoje,
agora... Envolvemo-nos, desde então, direta e/ou indiretamente na luta contra a ditadura. Foi, sem dúvida, a
experiência mais visceral de toda a nossa vida e que nos
marcou para sempre... Nós, que atuamos na vanguarda
ou na retaguarda, não importa, naquele intenso e terrível
período, derrubamos muitos tabus, vivemos visceralmente a presença assustadora da morte, a ousadia de desafiar
e enfrentar um Estado de terror, a coragem de sonhar e
querer transformar esse sonho em realidade. Acreditávaverve, 25: 33-46, 2014
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mos. Sim, queríamos outro mundo, outras relações, outras
possibilidades... Queremos ainda outros mundos hoje!
“É preciso não ter medo; é preciso ter a coragem de
dizer”, nos alertava Carlos Marighella. Há muito ainda
para dizer, há muito ainda para contar. Há que não
entrar na chantagem do “possível” em nome de uma dita
governabilidade democrática representada, respaldada e
apoiada pelos mesmos grupos econômicos que ocuparam
o poder de Estado em 1964.
Notas
1
Juscelino Kubischeck governou de 1956 a 1961.
2
Jânio Quadros governou em 1961 e João Goulart, de 1961 a 1964.
Heloísa Buarque de Hollanda. Impressões de Viagem. Tese de Doutorado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1978.
3
Tania Coelho dos Santos. “A mulher Liberada e a Difusão da Psicanálise”
in Sérvulo Augusto Figueira (org.). O Efeito Psi. Rio de Janeiro, Campus,
1988, pp. 103-120.
4
5
Luiz Carlos Maciel. Anos 60. Porto Alegre, L&PM, 1987, p. 7.
O PNA era um programa de alfabetização vinculado ao Ministério
da Educação criado em 1961, no governo João Goulart. Após ter sido
experimentado em Pernambuco, foi trazido para o Rio de Janeiro, onde deuse prioridade às regiões mais pobres do estado, como a Baixada Fluminense.
Neste Programa, disputavam a hegemonia política o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e a Ação Popular (AP), corrente cristã muito presente
naquele momento no movimento estudantil, tal como ocorria na UNE.
6
Sobre o conceito de Reparação, aprovado pela Assembleia Geral da ONU
em 2005, que aponta para a investigação, averiguação, publicização e responsabilização dos crimes cometidos e para medidas que possam impedir e, mesmo,
garantir a não repetição de tais crimes perpetrados pelo Estado, ver: Cecília
Coimbra. “Reparação e Memória” in Cadernos AEL: Anistia e Direitos Humanos.
Campinas, UNICAMP/IFCH/AEL, v. 13, n. 24/25, 2008, pp. 13-38.
7
44
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Cinquenta anos depois...
O Grupo Tortura/RJ, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
Políticos de São Paulo e o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional
(CEJIL) foram os peticionários desta ação.
8
Para uma análise mais detalhada sobre os limites desta Comissão Nacional
e das estaduais, ver: Cecília Coimbra. “Comissão Nacional da Verdade:
acordos, limites e enfrentamentos” in Alexandra Maria Campelo Ximendes,
Carolina dos Reis e Rafael Wolski de Oliveira (orgs.). Entre Garantia
de Direitos e Práticas Libertárias. Porto Alegre, Conselho Regional de
Psicologia, 2013, pp. 35-42.
9
Importante apenas levantar, pois não é tema deste pequeno artigo, as medidas repressivas que vêm sendo massivamente tomadas pelos governos estadual
e municipal do Rio de Janeiro com o apoio do governo federal no sentido de
criminalizar e reprimir com mais competência os “vândalos” e “baderneiros”,
tendo em vista as grandes manifestações de junho de 2013 e os investimentos
internacionais ligados à FIFA, ao banco Itaú e à AMBEV, dentre outros. O
AI-5 da Copa, como está sendo conhecido, vem se implementando no Rio
de Janeiro. Exército e Força Nacional farão o controle da cidade do Rio, considerada “área de segurança nacional” a partir de maio de 2014. Já em 24 de
março de 2014, às vésperas dos 50 anos do golpe, acordo entre os governos do
estado e o federal decide que, até 10 de abril, as tropas militares do Exército e
da Força Nacional, cerca de 4000 homens, desembarcarão “no conjunto de 15
favelas, onde vivem quase 130 mil pessoas”. Cf. “Beltrame confirma que Exército ocupará o Complexo da Maré” in O Globo. Rio de Janeiro, 24/03/2014.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/beltrame-confirma-que-exercito-ocupara-complexo-da-mare-11966328 (acesso em: 24/03/2014).
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Resumo
Análise-depoimento acerca dos 50 anos do Golpe Civil-Militar
de 1964. Afastado do saudosismo conservador, o artigo retoma
eventos do dia do golpe e a tomada do CACO pelos militares.
Questiona a continuidade da censura e da tortura mesmo na
democracia. Alerta para a retomada necessária dessa memória,
desviando-se dos acordos e concessões da Comissão Nacional da
Verdade e suas correlatas estaduais. Afirma a continuidade do
vigor político dos que enfrentaram o golpe para construção de
outros mundos sem cair da chantagem do possível.
Palavras-chave: resistências, ditadura civil-militar, memória.
Abstract
The article is an analysis-testimony of the 50th anniversary of
the civilian-military coup d’état of 1964. Moving apart from
the conservative nostalgia, the text goes through events which
took place in the coup’s day and the occupation of the CACO
by the military. The article problematizes the continuity
of censorship and torture even in a democracy. It also alerts
to the necessity of not conceding to negotiations such as the
ones hold by the National and State Truth Commissions. At
last, the article stands for the political vitality of who fought
the dictatorship aiming the construction of new worlds
without falling in the blackmailing of the possible choices.
Keywords: resistances, civil-military dictatorship, memory.
Fifty years later..., Cecília Maria Bouças Coimbra.
Recebido em 05 de abril de 2014. Confirmado para publicação
em 20 de abril de 2014.
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verve
caracara cara de cavalo
beatriz scigliano carneiro
Uma caixa retangular presa na parede encontra-se com
a frente aberta. Ao fundo, a imagem não muito nítida de
um rosto em tamanho natural com uma luminosidade
de espelho. Negro. Mulato. Pardo. Magro, cabelo cortado
rente ao crânio. Seu olhar não nos encontra. Os olhos estão
apenas abertos, sem foco. A luz nos atrai para aquela efígie.
Convocação para encarar. Cara a Cara. No meio desse
encontro, a caixa, que isola a figura e nos coloca frente
a frente à cara tal qual fosse espelho. Trata-se do Bólide
56, Bólide-Caixa 24 CaraCara Cara de Cavalo, realizado
por Hélio Oiticica em 1968, com a foto da carteira de
identidade de Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, executado
pela polícia carioca em 3 de outubro de 1964.
qual a nova cara ___________de cavalo?
assoalho
ou o baralho da vida
pútrido odor1
Beatriz Scigliano Carneiro é doutora em Ciências Sociais. Pesquisadora no Nu-Sol
e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Autora de Relâmpagos com claror:
Hélio Oiticica e Lygia Clark: vida como arte. São Paulo, Imaginário/FAPESP,
2004. Contato: [email protected].
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Hélio Oiticica fez essa pergunta quatro anos depois
da morte do amigo, quando realizou o Bólide CaraCara.
Meio século depois, encarar o rosto de Cara de Cavalo.
Sua morte não foi uma execução discreta, mas um acerto
de contas espetacular que se seguiu a uma das maiores
caçadas humanas da polícia do Rio de Janeiro. “CARA
DE CAVALO CRIVADO DE BALAS – MAIS DE
CEM TIROS: FUZILADO PELA MADRUGADA
EM CABO FRIO”2. “CARA DE CAVALO CAIU
COM 120 PERFURAÇÕES”3. “CARA DE CAVALO
MORTO COM 52 TIROS”4. “CARA DE CAVALO
MORREU ONDE VIVEU BRIGITTE5”6.
Se a metade esquerda da efígie de Manoel Moreira for
coberta, aparece uma expressão sombria e triste. Se esse
lado sombrio for tapado, surge uma face quase desbotada
de tão clara, ensaiando um sorriso.
“Conheci Cara de Cavalo pessoalmente e posso dizer que
ele era meu amigo”7 – escreveu Hélio Oiticica ao apresentar
o Bólide de homenagem ao amigo, intitulado B33 BólideCaixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo Poema Caixa 2, de
19668 –, “mas para a sociedade ele era um inimigo público nº
1, procurado por um crime audacioso e assaltos. O que me
deixava perplexo era o contraste entre o que eu conhecia dele
como amigo, alguém com quem eu conversava no contexto
cotidiano tal como fazemos com qualquer pessoa, e a imagem
feita pela sociedade, ou a maneira como seu comportamento
atuava na sociedade e em todo mundo mais. Você nunca
pode pressupor o que será a ‘atuação’ de uma pessoa na vida
social: existe uma diferença de níveis entre sua maneira de
ser consigo mesmo e da maneira como ser social. [...] este
poema-protesto [Aqui está e ficará. Contemplai o seu
silêncio heroico] para Cara de Cavalo reflete um importante
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CaraCara Cara de Cavalo
momento ético, decisivo para mim, pois que reflete uma
revolta individual contra cada tipo de condicionamento
social. Em outras palavras: violência é justificada como
sentido de revolta, mas nunca como de opressão”9.
“Quem é o assassino? Manoel Moreira, que usa
também o nome de Walter do Sacramento de Castro, com
vários homicídios e assaltos [...] Cerca de três mil policiais
fortemente armados estão empreendendo gigantesca
diligência para prender o marginal Manoel Moreira que
às 23 horas, ao receber voz de prisão, matou com três
balaços de um 45 o detetive Milton LeCocq de Oliveira.
Todos os morros da cidade estão cercados [...]. ‘Acabou a
vida boa. Eles querem guerra. Vai entrar Cara de Cavalo,
Murilão, Miguelzinho, Paraibinha e todos esses vândalos.
Vamos acabar com eles a bala. É a lei do cão’”10.
“CARA DE CAVALO MATA O DETETIVE
LECOCQ AO SER PERSEGUIDO EM VILA
ISABEL”11. “MILTON LECOCQ BOM E CORAJOSO
ERA O MAIOR CAÇADOR DE BANDIDOS”12.
Milton LeCocq recebeu uma denúncia de que Cara
de Cavalo iria extorquir bicheiros em Vila Isabel, aos
quais o detetive oferecia proteção. Manoel Moreira já
estava jurado de morte por essa ala da contravenção, pois
defendia interesses de outros grupos. “BICHEIROS
OFERECEM RECOMPENSA PELA MORTE DE
CARA DE CAVALO”13.
LeCocq passou a persegui-lo em uma noite de quintafeira acompanhado de outros dois parceiros. Na fuga,
de dentro de um taxi, Cara de Cavalo atirou a esmo na
direção do Fusca dos policiais. Esse gesto pôs o selo da
morte em sua efígie.
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assoalho
ou o baralho da vida
Apesar do apelido pejorativo para quem possui o rosto
comprido e largo, aquele rosto nem se assemelha a um
cavalo. Entretanto, a alcunha pegou, alcunha que se repetia
para alguns outros “marginais” com uma cara comprida.
O apelido “fazia” o delinquente na imprensa policial. O
nome verdadeiro pouco importava, a alcunha ao partir
de alguma característica criava uma intimidade junto ao
público dos meios de comunicação, predominantemente
jornais e rádio. “Mineirinho”, “Paraibinha”, “Micuçu”,
“Buck Jones”, “Bidu”, “Miguelzinho”, “Caveirinha”, “Rei
dos Bodes”. O termo Cara de Cavalo apelidava várias
pessoas que nas notícias apareciam como uma só, sob
a mesma alcunha. Ao menos três nomes receberam o
mesmo apelido de Manoel Moreira: Ivan Timóteo14;
Gerson Andrade Duque15 e Jorge Gama da Silva16. Outros
nem eram identificados, ficando a alcunha. Dentre estes
sem nome, um apareceu como integrante do “Bando de
Laerte”, em 1957, e outro como integrante do “Bando do
Mineirinho”, inimigo público nº 1 de 1961.
“Cadeia é prêmio para o pistoleiro louco. Não estou
caçando Mineirinho para prender. Cadeia não adianta
para bandidos dessa espécie. Mineirinho terá o mesmo
fim de Cara de Cavalo, Carioquinha e China Maconheiro,
será fuzilado!” 17 – disse ao Última Hora (UH) o delegado
Werther Losso de Nilópolis, conhecido como o “limpador
de cidades” e que se empenhava a fundo na caçada ao
pistoleiro.
Nas notícias da perseguição policial a Manoel Moreira, os
crimes atribuídos a todos os Caras de Cavalo que circularam
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CaraCara Cara de Cavalo
na imprensa naqueles últimos anos se condensaram em
apenas um corpo, executado na noite de 3 de outubro de
1964. “SÃO ATRIBUIDOS A CARA DE CAVALO
MAIS DE 15 CRIMES [...] e 400 prisões já foram
feitas, a maioria das quais de indivíduos sem ocupação que
estão sendo autuados por vadiagem [...] A disposição dos
policiais, além de capturar o assassino de LeCocq é fazer
uma limpeza na cidade livrando-a de marginais que agem
nos subúrbios”18.
“ADVOGADO DECLARA: CARA DE CAVALO
NADA DEVIA À JUSTIÇA ANTES DE MATAR LE
COQ”19.
No decorrer da caçada, a família de Manoel Moreira
procurou um advogado que encontrou seis homônimos
sentenciados e nenhum deles seria o procurado. O número
de registro prisional que apareceu em jornais não era o
dele, e a ficha criminal não foi encontrada “[...] um bandido
vulgar que em 1958 foi preso por um pequeno furto
numa feira de subúrbio e internado no SAM [Serviço de
Assistência aos Menores] de onde mais tarde saiu não mais
como Manoel Moreira, mas como Cara de Cavalo”20.
Nem a efígie que olhamos através da caixa aberta
ilustrou todas as faces desse corpo procurado. “GUERRA
AO CRIME POR LECOCQ: POLICIA NO
NECROTERIO VIGIA A CHEGADA DE CARA
DE CAVALO”21.
Na reportagem, a foto que mostra o rosto do Cara de
Cavalo procurado por ter matado LeCocq não se parece
com a efígie de seu documento de identidade. Pouco
importava rosto ou nome, desde que o corpo crivado de
balas fosse o corpo a cuja mão atribui-se o tiro fatal.
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Mas, teria sido ele mesmo, Manoel Moreira, “um
bandidinho de quinta categoria” quem baleou o detetive
“bom e corajoso”? Um fato divulgado na época com
discrição fora o resultado da autópsia de LeCocq: duas
balas estavam em seu corpo, uma de pistola 45 e outra,
uma bala de arma da polícia. A bala da 45 foi considerada
fatal. A outra foi tida como um acidente devido ao
intenso tiroteio que se seguiu a morte do detetive. A
mera possibilidade de ele ter sido morto pelos próprios
companheiros acirrou mais o desejo de vingança.22
“POLÍCIA VASCULHA REDUTOS DO CRIME
[...] Matar um cidadão é violar a lei. Matar ou tentar matar
um policial é a própria lei que se destrói. O julgamento de
Cara de Cavalo não será no Tribunal do Júri [...] palavras de
Milton Salles, advogado, patrono de LeCocq, no enterro. A
vida de Cara de Cavalo não vale um prato de lentilhas, toda
a Polícia está nos morros para vingar a morte do detetive
LeCocq. Ao matar o devotado policial, o marginal assina
com o sangue de sua vítima a sua condenação à morte. Cara
de Cavalo morrerá e ninguém levanta a voz por ele, o morro
não lhe dá pousada e a lei não lhe dá chance de distrair-se”23.
A citação do Tribunal do Júri no contexto da vingança
remetia a uma situação específica. Na época, “marginais”
foram absolvidos pela morte de três policiais. “Quem
não se recorda que os matadores de Parada, Americano e
Oscar foram soltos por decisões do júri pelo resultado de
7x0?”24. Por outro lado, Eurípedes Malta de Sá, declarado
fundador do primeiro Esquadrão da Morte carioca, foi
preso e julgado por ter matado, segundo ele por engano,
em uma operação contra “marginais”, um motorista da
TV TUPI, em 1958. Foi absolvido em 1962, junto com
outros dois policiais que ficaram muito tempo presos
52
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CaraCara Cara de Cavalo
também25. Mas segundo seus colegas, mesmo absolvido,
desiludiu-se, retirou-se da atividade policial e abriu um
restaurante. O rancor contra esses julgamentos era tanta
que, no enterro de LeCocq, “os policiais do Departamento
Estadual de Segurança Pública distribuíram um
manifesto inconformados com as injustiças sociais a que
estão sujeitos: ‘Não é justo que na Justiça, delinquentes e
policiais mereçam tratamentos diferentes, pois enquanto
os primeiros são muitas vezes absolvidos, os outros nem
sempre ganham o perdão da Justiça’ [...] Solicitaram aos
Deputados leis mais incisivas para os marginais e mais
compreensão dos juízes para as mortes cometidas por
policiais quando no exercício de suas missões”26.
“SEPULTAMENTO DE LECOCQ MARCOU
O INÍCIO DA BUSCA AO BANDIDO ‘CARA DE
CAVALO’ [...] Na ordem de serviço distribuída ontem a
todas as repartições policiais do Estado, o Superintendente
da Policia Judiciária Dr Sales Guerra determinou a prisão
de todos os mulatos de 20 anos que tenham os cabelos
cortados retos e raspados do lado – o que caracteriza Cara
de Cavalo – encontrados em atitude suspeita, frisando ‘se
necessário atirem para matar’”27.
A mera descrição da efígie borrada de um jovem
mulato de cabelos curtos serviu de guia “para a prisão de
mais de 50 marginais” apenas dois dias depois da morte
de LeCocq28, “METRALHADO FALSO CARA DE
CAVALO”29.
Um desconhecido parecido com Cara de Cavalo foi
morto com vários tiros, segundo algumas testemunhas,
dados por elementos dentro de um carro preto. “NA
CAÇADA A CARA DE CAVALO UM BANDIDO
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ELIMINADO [...] cumprindo a promessa da polícia:
‘para cada policial morto dez bandidos morrerão’”30.
pútrido odor
sabor
salabor
salibidor31
As reportagens que se seguiram ao enterro de LeCocq
apresentavam extensas biografias do “bom e corajoso”
policial morto: a dedicação à polícia nos 10 anos em que
pertencera à Delegacia de Vigilância e Capturas, a modéstia,
a perspicácia e inteligência nas investigações – “ele conhecia
um bandido até pelo modo de andar”32 –, a capacidade de
liderança, a coragem em enfrentar os piores elementos do
mundo do crime. A coragem era a qualidade mais citada da
excelência de um policial. E foi exatamente essa atribuída
coragem de LeCocq que fez com que, em 1958, o Chefe
do Departamento Federal da Segurança Pública, o General
Amaury Kruel, o convidasse para integrar o SDE (Serviço
de Diligências Especiais), criado pelo policial Cecil Borer e
que funcionava ligado ao departamento. “O objetivo básico
do SDE era acabar com o número elevado de marginais nas
favelas e capturar os facínoras mais terríveis, baseando-se no
princípio de que o grande bandido é irrecuperável e sua prisão
só acarreta despesas ao Estado, devendo ser eliminado”33.
O Capitão Amaury Kruel foi Diretor de Segurança entre
1936 e 1937, durante o estabelecimento do Estado Novo.
Nesse cargo, Kruel conviveu com os policiais da Polícia Especial de Getúlio Vargas, criada em 1933 pelo Chefe de Polícia, Felinto Muller, que ocupou o cargo até 1942. Alguns
desses policiais foram recrutados junto a atletas de clubes
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CaraCara Cara de Cavalo
cariocas, dentre eles, os irmãos Charles e Cecil Borer (19132003), notórios torturadores de oposicionistas de Vargas e de
comunistas. Charles foi indiciado, em 1957, como o matador de Lafaiete Santos, líder do Partido Comunista, episódio
ocorrido em 1950 em plena Avenida Brasil34. O irmão de
Amaury Kruel, na época Capitão, Riograndino Kruel ocupava o cargo de Inspetor da Guarda Civil, e acompanhava os
Borer em sessões de tortura a dissidentes políticos do Estado
Novo e a bandidos comuns. Milton LeCocq e o policial José
Guilherme Ferreira, o “Sivuca, parceiro de LeCoq”, também
integraram a P.E. de Vargas, desde 1941. “Na genealogia do
esquadrão da morte encontra-se as violências, torturas e arbitrariedades praticadas pela polícia durante o Estado Novo”35.
Em 1957, o General Amaury Kruel foi nomeado por
Juscelino Kubitschek para chefiar o Departamento Federal
de Segurança. A nomeação teve “ótima repercussão nos
meios militares” e o novo chefe prometeu uma “reforma
geral no organismo policial”, com novos equipamentos e
profissionais36. Dentre as reformas, há a já citada criação
de SDE que resultou na formação de um grupo de
policiais “corajosos”, dispostos a matar ou morrer. Sob o
comando de Kruel surgiu o primeiro Esquadrão da Morte,
organizado com policiais escolhidos pela “coragem”, que
na maioria foram integrantes do Esquadrão Motorizado
da Polícia Especial. A expressão “Esquadrão da Morte”
surgiu na imprensa e se disseminou desde quando foram
encontrados dezessete cadáveres em um local da estrada
Rio-Petrópolis, que aos poucos foram identificados como
bandidos ou pessoas presas para investigações. Outros
locais passaram a receber cadáveres, e muitos detidos
desapareciam dos camburões ou dos locais para onde
foram levados.
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Dois anos depois: “KRUEL ESMURRA O DEPUTADO MENEZES CORTES E PEDE DEMISÃO
DA POLÍCIA”37. O deputado Cortes chefiava uma Comissão de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre os
desmandos e corrupção da polícia denunciados por uma
reportagem de Mario Morel (1937-2014), “A corrupção
na Polícia”, menção honrosa do Prêmio Esso de Jornalismo de 1960. Ao tentar conversar com Kruel sobre um
episódio envolvendo a agressão e prisão de um comerciante
que colou acintosamente na parede a famosa reportagem,
desentenderam-se violentamente.
Em 1960, Carlos Lacerda tornou-se o governador da
Guanabara, Estado criado quando a capital federal se
transferiu para Brasília. Uma de suas primeiras medidas
foi nomear Cecil Borer para supervisionar a reforma da
Divisão de Ordem Política e Social (DOPS). Remodelouse o fichário, reorganizou-se a secção técnica e começou-se
a utilizar o material que veio dos EUA na gestão anterior.
“Com esse material a DOPS será um poderoso organismo
dentro do Estado da Guanabara”38.
“CARA DE CAVALO ERA RUI DO CATETE:
BANDIDO DRIBLA POLÍCIA E DESAPONTA
GOVERNADOR. GENERAL LIDERA GUERRA
CONTRA CARA DE CAVALO [...] Na casa do médico
invadida por Rui do Catete [...] o governador [Carlos
Lacerda] sentou-se com seu estado-maior à mesa de pôquer.
Estava teatralmente dramático e sobretudo decepcionado
com o rebate falso em torno de Cara de Cavalo e ainda mais
pela fuga de Rui do Catete à vista de todo mundo. Então com
gestos largos passou o comando da guerra contra o matador
de LeCocq ao General Cavalcanti de Albuquerque”39.
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CaraCara Cara de Cavalo
O General Fernando Vasconcellos Cavalcanti e
Albuquerque tornou-se Diretor da Polícia de Vigilância em
maio de 1964. “NOVO CHEFE DIZ QUE GOVERNO
DEPOSTO HOSTILIZAVA A REPARTIÇÃO”40. Sua
passagem no cargo foi breve e seu nome praticamente logo
desapareceu das questões policiais ligadas a delinquentes.
Em 1965, chefiava a SUNAB (Superintendência Nacional
de Abastecimento) e campanhas contra adulteração de alimentos e questões ligadas ao controle de preços dos produtos. O “governo deposto hostilizava a Policia de Vigilância”,
pois durante o governo João Goulart tentava-se investigar
corrupção, torturas e mortes empreendidas de maneira organizada e sistemática por policiais. “MAIS DE 300 NA
CAÇADA A CARA DE CAVALO”41. “COMANDADA
PELO GOVERNADOR ESPETACULAR CAÇADA
AO CARA DE CAVALO! MOMENTOS DE EMOÇÃO E ANGÚSTIA NA RUA MARIZ E BARROS”42.
A presença física e muito fotografada do governador da
Guanabara Carlos Lacerda nas buscas à Cara de Cavalo
no bairro da Tijuca e a entrega do comando das operações
ao novo Chefe da Vigilância se seguiu a um episódio que
ocorrera dois dias antes relativo à “caçada espetacular”.
“MATARAM O DETETIVE PERPÉTUO [...] O
detetive Perpétuo de Freitas, o mais famoso caçador de
bandidos do pais, foi morto cerca de 22 horas de ontem
na Favela do Esqueleto [...] Confirma-se que o detetive
Jorge Galante Gomes é o assassino”43.
“INVERNADA NÃO FOI AO ENTERRO DE
PERPÉTUO;
TESTEMUNHAS
AFIRMAM:
GALANTE
TRUCIDOU
PERPÉTUO
NA
44
COVARDIA” . “PERPÉTUO FOI VÍTIMA DA
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LINHA DURA QUE QUER LIQUIDAR CARA
DE CAVALO: USAVA ALGEMAS PARA NÃO
ABUSAR DA PISTOLA”45.
Perpetuo de Freitas fora chefe da Vigilância no início
da década; ele e LeCocq saíam para caçar bandidos e
esclarecer crimes, ocasião em que foram saudados como
um “novo esquadrão da morte”. O anterior perdera força
desde o julgamento do detetive Eurípedes Malta e outras
investigações, mas as atividades do esquadrão da morte
continuaram com outros policiais.
“CRIADO O NOVO ‘ESQUADRÃO DA MORTE’
PARA ELIMINAR O ‘PISTOLEIRO LOUCO’
[Mineirinho]”46. “O chefe de polícia Sr. Segada escolheu
os 4 homens que deverão fuzilar Mineirinho e caveirinha:
LeCocq (matou Buck Jones); Perpétuo (prendeu o Sombra);
Mauro Guerra (fuzilou entre outros, Fogueirinha); Jaime
Lima e Aníbal Beckman, conhecidos pela ferocidade com
que enfrentam gangster de pés descalços, eis o quarteto, o
novo esquadrão da morte cuja missão de hoje em diante
será caçar onde estiverem os facínoras”47.
Entretanto, Perpétuo ficou logo afastado desse grupo,
não participou do assassinato de Mineirinho, em 1962. Ele
apoiou as investigações sobre quem estava envolvido nessa
e em outras mortes, o que incluía o líder LeCocq e outros
policiais da Invernada, local da Delegacia de Vigilância e
Captura. Perpétuo fazia na imprensa a figura do good cop,
elemento da célebre dobradinha de interrogatórios em
seriados policiais americanos good cop/bad cop, em que um
policial é durão e o outro aparece mais indulgente. Perpétuo
mostrava-se compreensivo e protetor, fazia amigos nas
favelas e subúrbios e mantinha uma extensa rede de
alcaguetes nesses locais, com os quais conseguia seus feitos.
58
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CaraCara Cara de Cavalo
Em 1967, um filme de Miguel Borges, Perpétuo contra o
Esquadrão da Morte, consagrou essa imagem do policial
“firme, mas humano”.
“SUSPENSA BUSCA A CARA DE CAVALO [...]
a polícia carioca suspendeu a busca para o enterro de
Perpétuo. [...] [Perpétuo] nunca batia nos malandros que
prendia [...] sempre tentava recuperar um marginal [...]
quando ele dava uma ordem de prisão, os bandidos nem
percebiam, tal a sua classe”48.
No dia de sua morte, Perpétuo seguia uma pista para
prender Cara de Cavalo no Morro do Esqueleto, onde este
residia. Passou horas na tocaia quando chegou o grupo de
policiais da Invernada que pretendiam vingar LeCocq, inclusive um novato, o Galante, que atirou a sangue frio no
detetive após uma discussão. Perpétuo queria Manoel Moreira vivo para ser julgado, o grupo da Invernada, queria matar Cara de Cavalo como uma retaliação exemplar. O desejo
de vingança foi maior do que a encenação do “bate/assopra”.
A presença acintosa e teatral de Carlos Lacerda,
governador da Guanabara na busca que se seguiu à morte de
Perpétuo sinalizou o apoio à “turma da Invernada”, ferrenhos
caçadores de Manoel Moreira. A entrega do comando das
diligências ao inexpressivo General Cavalcanti Albuquerque
serviu para neutralizar momentaneamente o conflito.
A “turma da Invernada” era de grande importância
para Lacerda, e também seria para o novo governo que
entrava com o golpe de abril. “CASA DO DIABO É UM
BOM SINÔNIMO [...] O detetive João Martinho Neto,
Chefe da 2º Subsecção de Vigilância – conhecida como
Invernada da Olaria – gostou do apelido de casa do Diabo
que na última semana os líderes sindicais arranjaram para
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sua delegacia, mas faz questão de esclarecer que ‘embora
o tratamento não está a altura de um hotel, os presos as
vezes comem até galinha’. Desmente que mantém gente
presa na última crise política [...] Construída na gestão de
Amaury Kruel a 2º subsecção de Vigilância surgiu de uma
abaixo assinado de comerciantes da Rua Paranapanema
[Bairro Olaria, Rio de Janeiro, RJ] que constantemente
eram assaltados nas imediações. O terreno foi cedido pelos
solicitantes que além de dinheiro, ainda deram cimento
e tijolos. Com 500 mil m² a Invernada da Olaria está
entregue à PM há mais de vinte anos49. Sua fama vem do
tempo do detetive Manga quando ali eram recolhidos os
piores bandidos da cidade. As paredes das quatro celas são
pintadas de preto para evitar que os detidos rabisquem ou
façam desenhos imorais”50.
“UH DEVASSA CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
NA GUANABARA: ESTUDANTES E OPERÁRIOS
TORTURADOS NAS JAULAS DA POLÍCIA [...] A
Invernada de [Cecil] Borer tem tudo de um campo de
concentração, inclusive cercas de arame farpado. (...) Borer
não permitia que nem os policiais de serviço soubessem o
nome dos presos [em torno de 300 na Invernada]”51.
A crise política citada acima não é o golpe de 1964, mas
o efeito da renúncia do presidente Jânio Quadros em 25
de agosto de 1961, em que se questionou a posse do vice
presidente João Goulart que, na data, estava em missão
diplomática na China, país comunista. O governador da
Guanabara Carlos Lacerda era um ferrenho opositor de Jânio
e de sua política considerada “esquerdista” pelo setor militar
e conservador do país. Com a crise aberta, Lacerda enviou
para a prisão centenas de opositores. Estudantes, líderes
sindicais desapareceram temporariamente na Invernada.
60
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CaraCara Cara de Cavalo
Em outubro de 1962, mesmo com o presidente João
Goulart empossado, o advogado das Ligas Camponesas
e sua companheira são presos e levados à Invernada,
onde foram torturados. Conseguiram denunciar o fato
e tentaram levar dois torturadores a julgamento. Outras
denúncias semelhantes atraíram a atenção da Assembleia
Legislativa que abriu uma CPI para investigar sumiços e
torturas na sede da Delegacia de Vigilância.
“NETO E FELIPÃO DISSERAM A CPI QUE A
INVERNADA É BOA E CLODOMIR FERIU-SE
SOZINHO [...] O advogado [Clodomir de Morais]
produziu ferimentos em seu próprio corpo para culpálos [os dois torturadores] [...] não sabiam a que atribuir
a má vontade do advogado contra eles, má vontade que
– afirmaram – é a mesma da maioria da imprensa carioca,
venal e corrupta e manipulada pelos comunistas!”52.
Na madrugada de 1º de abril de 1964, o General
Amaury Kruel, agora comandante do poderoso II Exército
de São Paulo, depois de ter sido por alguns meses Ministro
da Guerra do presidente João Goulart, forneceu um dos
apoios decisivos ao golpe civil-militar. Recentemente, em
um depoimento, o Tenente Coronel Farmacêutico Erimá
Moreira contou que o General Kruel recebeu mais de um
milhão de dólares “mandados pelo governo americano” e
levados pelo presidente da Federação das Indústrias de
São Paulo FIESP53 para trair Jango. Todavia, esse apoio
crucial ao golpe teria sido por dinheiro? Ou com dinheiro?
Dólares não caem de árvores. A expansão do comunismo
pelo mundo afetava a segurança dos Estados Unidos, do
governo e das empresas capitalistas. Uma das estratégias
estadunidenses de contenção do comunismo era treinar
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as polícias de países que pudessem representar riscos de
serem influenciados pelo comunismo. Era importante para
a segurança dos Estados Unidos controlar a segurança
interna das nações.
No Brasil, durante a II Guerra, com recursos do FBI,
forneceu-se treinamento junto ao DOPS do Rio de Janeiro
para identificar e vigiar nazistas mediante palestras sobre
espionagem, sabotagem, vigilância e técnicas de interrogatório. Após a II Guerra, o inimigo era o comunismo que,
na visão estadunidense, ameaçava alastrar-se pelo mundo especialmente em países pouco desenvolvidos. Nesse
sentido, iniciou-se uma política de apoio às polícias locais
mediante intercâmbios, treinamentos, transferência de
tecnologia, consultorias especializadas, entre outras ações
e programas.
Segundo a pesquisadora Martha Huggins, “o treinamento de polícias estrangeiras [pelos estadunidenses] tem
sido utilizado quase que exclusivamente para promover
interesses e objetivos políticos específicos de segurança nacional dos Estados Unidos”54. O General Amaury
Kruel ajudou a introduzir um programa de segurança pública orientado pelos Estados Unidos; era “velho amigo
dos EUA” por ter frequentado um treinamento militar no
Kansas, em 1943, e lutado na Força Expedicionária Brasileira (FEB) ao lado dos EUA na II Guerra Mundial.
“No final da década de 1950, já não mais chefiando
seus soldados contra um inimigo externo, Kruel assumiu o
controle das forças policiais do Rio de Janeiro e aprimorou
sua capacidade de agir com eficácia contra criminosos
comuns – percebido como um inimigo interno que então
surgia. [...] de ter se interessado profundamente em
62
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verve
CaraCara Cara de Cavalo
aperfeiçoar a coordenação da polícia quando visitou os
EUA no inicio de 1958. [...] Para aperfeiçoar o sistema
policial do Rio de Janeiro, Kruel escolheu a dedo um grupo
de polícia especial, integrada pelos homens corajosos. [...]
Ele autorizou a levar a cabo ações agressivas e violentas
contra assaltantes e bandidos. Os caçadores de bandido
de Kruel não atuavam fora da instituição policial formal.
Eram membros de um órgão oficialmente instituído,
o “Serviço de Diligência Especial – uma unidade
especializada dentro do ‘Esquadrão motorizado’ dentro
da polícia civil [...] conhecida como EM [...]. Um dos
ramos mais notórios da equipe de homicídios de Kruel foi
organizado por Milton LeCocq [...] Esse novo esquadrão
da morte intitulou-se ‘Turma da Pesada’ devido à sua
dureza e violência”55.
O General Amaury Kruel e o irmão General Riograndino eram associados ao Office of Public Safety (OPS), órgão ligado aos programas de ajuda ao desenvolvimento que
surgiu no governo de Robert Kennedy para “transformar
policias estrangeiras em primeira linha de defesa contra o
comunismo”56. Riograndino Kruel foi um dos fundadores
do Destacamento de Operações de Informações/Centro
de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) em 1967,
órgão para a repressão política do novo regime.
Em novembro de 1972, a militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Aurora Nascimento Furtado, foi
detida no Rio de Janeiro em uma operação que resultou
em um policial ferido a bala. Ela recebeu um tiro no joelho ao tentar fugir, começou a ser espancada rodeada de
pessoas que observavam a cena e foi levada para a Invernada da Olaria. Dali saiu morta, simulou-se um tiroteio
em uma rua qualquer e entregaram o corpo lacrado para a
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família. A advogada Eny Moreira, da Comissão da Verdade, conta: “A família me pediu para liberar o corpo. Quando recebi o corpo, Aurora estava literalmente dilacerada:
afundamento no maxilar, sem bicos dos seios, um dos
olhos pendurado, rasgo do umbigo até a vagina, fratura
externa no braço – a última coisa que fizeram com ela foi
pressionar com um torniquete de aço [a ‘coroa de cristo’]
seu cérebro. Por isso, o olho saltou”57. O ex-comandante
do DOI-CODI do I Exército, coronel Adyr Fiúza de
Castro, alega ela foi confundida com uma traficante de
drogas.58 Esse ‘engano’, segundo o ex-comandante, seria
a justificativa para a tortura e a morte de uma militante
política na dependências da Invernada, local de tortura e
extermínio de bandidos?
da tua tumba não o horror
nem dor
apenas um tremor
o imponderável59
Um tiro a esmo numa fuga apressada. Matar ou Morrer.
Correr... Cara de Cavalo saberia que era LeCocq que estava
no Fusca e teve noção do quem e em que acertara?
“CARA DE CAVALO JÁ ESTÁ NO ALVO [...] Sua
liberdade é uma ameaça à sociedade. Há um prêmio de 1
milhão de cruzeiros pela sua captura. Se você souber onde
ele se encontra avise com urgência para o telefone...”60.
“CARA DE CAVALO PEDE GARANTIAS PARA
SE ENTREGAR [...] Na Assembleia Legislativa o deputado Henrique França prometeu entregar Cara de Cavalo à
justiça desde que houvesse garantias. (...) mas malograram
os entendimentos para isso. (...) mais dois marginais liga64
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CaraCara Cara de Cavalo
dos a Cara de Cavalo morreram torturados e queimados no
mirante do Morro Dona Marta e Morro da Previdência”61.
Em um depoimento de Sivuca, um dos parceiros de
LeCocq: “Quebramos o pau no Estado do Rio. Matamos
os marginais que resistiam e prendemos os que esconderam
Cara de Cavalo [...] não raciocinávamos direito, nossa
única preocupação era pegar o bandido”62. Um ano
depois da morte do líder, ele e outros parceiros fundaram
para homenageá-lo um novo grupo de extermínio que
se multiplicou pelo país: a Scuderie LeCocq, com um
distintivo e um hino, cujas primeiras estrofes diziam:
Nossa luta não é pela glória
Nossa meta é servir todo irmão
Na coragem no amor na justiça
está o segredo de nossa união63
O distintivo da Scuderie LeCocq reproduzia o mesmo
distintivo do Esquadrão Motorizado da polícia especial:
uma caveira com duas tíbias e a sigla EM, e passou a etiquetar cadáveres que eram ‘desovados’ em grotões e estradas ao longo de muitos anos adiante. “Sivuca” tornou-se
deputado estadual no Rio de Janeiro de 1994 a 2006, pelo
PT do B, com o bordão “Bandido bom é bandido morto”.
Em 1965, Hélio Oiticica começou a elaborar o
Bólide 33, Bólide Caixa 18 Homenagem a Cara de
Cavalo Poema-Caixa 2, concluído no ano seguinte. O
que motivou a homenagem foi “a maneira pela qual essa
sociedade castrou toda possibilidade de sua sobrevivência
como se ele fora uma lepra, um mal incurável —
imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e
canalha de uma sociedade baseada nos mais degradados
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princípios como é a nossa, colaboraram para torna-lo o
símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer
violentamente com todo requinte canibalesco. Há como
que um gozo social nisso [...] a homenagem, longe do
romantismo que a muitos faz parecer, seria um modo de
objetivar o problema, mais do que lamentar um crime
sociedade X marginal”64.
“VINGADA A MORTE DE LECOQ: CARA DE
CAVALO CRIVADO DE BALAS – MAIS DE CEM
TIROS”65.
Dos tiros disparados pelos policiais, 61 acertaram
Cara de Cavalo em pontos vitais do tórax, apenas um na
cabeça para não dificultar o reconhecimento. “O umbigo
do cara ficou colado na parede”66. Cada policial da
“Turma da Pesada” atirou várias vezes, até uma arma de
LeCocq foi levada e usada na fuzilaria que durou quinze
minutos. Nesses quinze minutos iluminados pelo fogo
dos tiros, o exagero do espetáculo escancarou o que a
justiça penal e as execuções na sombria surdina tentam
sempre amainar: o gozo de uma execução como medida
punitiva. Heróico Cara de Cavalo que suportou o
dilaceramento deste festim de gozo e vingança em nome
da sociedade. O Bólide 33, Bólide Caixa 18 Homenagem
a Cara de Cavalo Poema-Caixa 2, traz a imagem do
corpo dilacerado tirado de uma foto do Jornal do Brasil
e o poema:
Aqui está e ficará
Contemplai o seu silêncio heróico
66
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verve
CaraCara Cara de Cavalo
Cinquenta anos depois
Tropas de choque nos morros e favelas, sumiços,
tiroteios, balas a esmo, vinganças de policiais contra
agressores de policiais, torturas em camburões e celas e
becos. Linchamentos. Massacres. O sorriso sangrento da
“pacificação”, nome novo para “limpeza”, sobrepõe-se à
imagem desbotada de uma cara. Muitas caras desbotamse em efígies gastas e se tornam borrões sem nomes. Novas
velhas caras que continuam contidas pela prisão, pela
tortura, pela morte, horrores que correm escancarados em
ditaduras e democracias.
Notas
Hélio Oiticica. Poema Cara de Cavalo. São Paulo, 1968. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br (acesso em: 06/02/2014).
1
2
O Dia, 05/10/1964.
3
Diário de Notícias, 05/10/1964.
4
Jornal do Brasil, 05/10/1964.
Brigitte Bardot, ícone do cinema francês dos anos 1960, morou em uma
praia na região de Búzios em janeiro de 1964 e projetou o lugar como um
ponto turístico mundial. Recentemente foi homenageada com uma estátua
em tamanho natural para enfeitar a orla.
5
6
Diário de Notícias, 04/10/1964.
Hélio Oiticica. Texto de 1968 para o catálogo da Exposição de Hélio em
Londres. WhiteChapel, 1969. Disponivel em: http://www.itaucultural.org.
br (acesso em: 06/02/2014).
7
Hélio Oiticica realizou duas obras para homenagear Cara de Cavalo: B33
Caixa Bólide 18 Homenagem a Cara de Cavalo Poema-Caixa 2 em 1966, e
Bólide 56 Bólide-Caixa 24 CaraCara Cara de Cavalo em 1968. Importante
lembrar que a imagem da bandeira “Seja Marginal, Seja Herói” não é de Cara
de Cavalo, mas de um bandido que morreu às margens do riacho Timbó após
uma perseguição policial. Os jornais noticiaram que ele se suicidou para não
8
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ser preso. Hélio trabalhou com a ideia do suicídio como meio de escapar da
prisão e fez o Bólide B44 Caixa-Bólide 21 Caixa Poema 3 com a imagem do
suicida em que perguntava “Porque a impossibilidade?”. Publicou um texto
sobre os dois bandidos na coluna de arte de Frederico Morais no Diário de
Notícias, “Heróis e Anti-Heróis”, em 10/04/1968.
9
Hélio Oiticita, 1969, op. cit.
“Gangster sanguinário fuzilou ‘rei’ dos caçadores de bandidos” in A Notícia,
28/08/1964.
10
11
Jornal do Brasil, 28/08/1964.
12
O Dia, 31/08/1964.
13
A Notícia, 04/08/1964.
14
Última Hora, 22/02/1961.
15
Última Hora, 09/10/1962.
16
Última Hora, 09/10/1963.
17
Última Hora, 05/10/1961.
18
Jornal do Brasil, 02/09/1964.
19
A Notícia, 09/09/1964.
20
Correio da Manhã, 15/09/1964.
21
Última Hora, 02/09/1964.
João do Vale e Sivuca. “Depoimento de Sivuca” in Otávio Ribeiro. Barra
Pesada. Codecri, Rio de Janeiro, 1985, p. 214
22
23
A Notícia, 29/08/1964.
24
Diário de Notícias, 29/08/1964.
25
Diário de Notícias, 06/11/1962.
26
Jornal do Brasil, 29/08/1964.
27
Idem.
28
Jornal do Brasil, 31/08/1964.
29
Idem.
30
A Notícia, 06/09/1964.
68
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verve
CaraCara Cara de Cavalo
31
Hélio Oiticica, 1968, op. cit.
32
Jornal do Brasil, 05/10/1964.
33
Jornal do Brasil, 04/12/1966.
34
Jornal do Brasil, 6 de julho de 1957.
Márcia Costa. São Paulo e Rio de Janeiro: a constituição do Esquadrão da Morte.
São Paulo, Clacso, p, 9. Disponível em: http://portal.anpocs.org/portal/
index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5205&Itemid=359
(acesso em: 08/02/2014).
35
36
Última Hora, 11/05/1957.
37
Última Hora, 29/06/1959.
38
Última Hora, Hora H. “A polícia de Lacerda” in Hora H.,11/10/1960.
39
Última Hora, 04/09/1964.
40
Jornal do Brasil, 09/05/1964.
41
Correio da Manhã, 04/09/1964.
42
O Dia, 04/09/1964.
43
Última Hora, 02/09/1964.
44
Última Hora, 03/09/1964.
45
Diário de Notícias, 03/09/1964.
46
Idem.
47
Última Hora, 17/10/1961.
48
Jornal do Brasil, 03/09/1964.
Pela data, a gestão de Amaury Kruel citada deve provavelmente ser a de
chefe de polícia que ele ocupou durante o Estado Novo.
49
50
Jornal do Brasil, 05/09/1961.
51
Última Hora, 05/10/1961.
52
Jornal do Brasil, 21/08/1963.
Depoimento do Tenente Erimá Moreira. Disponível em: http://www.
institutojoaogoulart.org.br/video.php?id=254 (acesso em: 08/02/2014).
53
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69
25
2014
Martha Huggins. Policia e Política Relações Estados Unidos e América Latina.
Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, Cortez, 1998, p. 9.
54
55
Idem, p. 113.
“Conexão Americana: EUA treinaram mais de 100 mil policiais no
Brasil” - Entrevista com Martha Huggins in Folha de São Paulo - Caderno
Mais, 23/08/1998. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/
fs23089805.htm (acesso em: 08/02/2014).
56
Disponível em: http://www.revistabrasileiros.com.br/2014/01/24/
comissao-nacional-da-verdade-faz-diligencia-em-antiga-vila-militar-norio/#.UzgZukZOXMx (acesso em: 06/02/2014).
57
Sobre caso Aurora Maria Nascimento Furtado (Lola), ver: http://www.
comissaodaverdade.org.br/caso_integra.php?id=20 (acesso em: 06/02/2014).
58
59
Hélio Oiticica, 1968, op. cit.
60
A Notícia, 01/09/1964.
61
Jornal do Brasil, 09/09/1964.
62
João do Vale e Sivuca, 1985, op. cit., p. 215.
“Hino da Escuderia LeCocq” in R. S. Rose. The unpast: Elite Violence and
Social Control in Brazil, 1954-2000. Ohio University Press, 2005, p. 257.
Disponível parcialmente em: http://books.google.com.br/ (acesso em:
04/02/2014).
63
64
Hélio Oiticica, 10/04/1968, op. cit. [Grifos do autor].
65
O Dia, 05/10/1964.
66
João do Vale e Sivuca, 1985, op. cit., p. 219.
70
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verve
CaraCara Cara de Cavalo
Resumo
Quase 50 anos atrás, Hélio Oiticica homenageou com duas
obras de arte o seu amigo Cara de Cavalo, um bandido
morto pela polícia em 1964, depois de uma caçada humana
espetacular. Este artigo investiga o contexto deste assassinato,
focando na polícia brasileira que estava sendo reformada desde
antes do golpe civil militar de 1964, a fim de combater os
“inimigos internos”, esquerdistas ou bandidos comuns, como
parte de uma política de segurança internacional para conter
o comunismo.
Palavras-chave: polícia, segurança internacional, golpe civilmilitar de 64.
Abstract
Almost fifty years ago, Helio Oiticica homaged with two works
of art his friend Cara de Cavalo, a bandit killed by the police
in 1964 after a spectacular manhunt. This article investigates
the context of this killing focusing the brazilian police that
had been remodeled since before the civil military coup d’état
of 64 in order to combat the ‘internal enemies’, leftlists or
common outlaws, as part of an internacional security policy of
communist contention.
Keywords: police, international security, civil military coup
d’état of 64.
Face to face Horse Face, Beatriz Scigliano Carneiro.
Recebido em 10 de fevereiro de 2014. Confirmado para
publicação em 15 de abril de 2014.
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71
...1964-2014, aquém e além de
1/2 século
ditadura, os baixos começos
Uma ditadura é sempre uma ditadura. Sua
sustentação não se reduz a um regime político,
tampouco a ditadura como acontecimento se
origina com a tomada de poder de Estado.
Seus baixos começos são inúmeros. E o golpe
de 1964 que demarcou o início da ditadura
civil-militar no Brasil configurou o exercício
do terrorismo de Estado.
Não seria preciso esperar pelo AI1, AI2,
AI3, AI4, AI5... Uma ditadura se situa menos
como estado de exceção jurídico-política e
mais como a lógica de existência históricopolítica do próprio Estado, levada a seu ápice,
obviamente, desejada pelos governados.
Ela não prescinde da forja de seu direito
próprio alicerçado na abertura da caça
a subversivos, delações perpetradas por
alcaguetes de toda ordem, por ordeiros
cidadãos, sequestro de homens, mulheres,
jovens, crianças e bebês, porões conhecidos e
recônditos da tortura, incontáveis sumidouros
que existem na forma que cada pequeno ditador
se governa.
ditadura: o açougue da tortura
Gente some à luz do dia ou na calada da
noite.
Corpos são atirados ao mar, ao rio, às
valas, aos sumidouros.
Meninos e meninas são levados a cubículos
imundos para assistirem seus pais e suas mães
serem triturados por carniceiros torturadores.
Crianças são recolhidas em celas e as mais
velhas vibram pela simples migalha de não
terem sido separadas da irmã mais nova, ainda
bebê, e orgulhosas contam que arranjavam um
jeito de dormirem junto a ela temerosos de que
sumissem com ela.
Um menino apenas lembra baixinho. Um dia
levaram meu pai. Nunca mais o vi.
Uma menina é levada até a presença da mãe,
após uma sessão de tortura, e não a reconhece.
Anos depois ela dirá: “aquela não era a minha
mãe, era apenas uma massa de carne ensanguentada
com os dentes arrancados”.
Mulheres são alvos dos torturadores que
também as seviciam sexualmente. Muitas delas
depois de torturadas e encaminhadas a hospitais,
por vezes são corpos para perversões sexuais
de enfermeiros.
tribunal: o açougue da formalidade
Os anos passaram e urge saber e expor o nome
de cada torturador.
Mas que isto não se confunda com o coro de
combate à impunidade e recriação do tribunal,
seja ele qual for.
Ele apenas dispõe a mesma moral no açougue
das formalidades sob a norma do exercício
regular do procedimento asséptico, atravessado,
também, por torturas declaradas ou recônditas.
Nele, cada um é dissolvido em uma abstração
genérica da regra fixa e geral que resguarda
a
garantia
dos
seletivos
privilégios
particulares, no jogo inerente tanto ao
direito especial da ditadura quanto ao direito
universal do Estado democrático de direito.
O tribunal refaz o itinerário inverso e
complementar das abjetas apropriações da vida,
conservado sob a lógica do juízo, da qual o
regime do castigo não abre mão.
Um tribunal é sempre um tribunal.
a ciência
começos
da
tortura,
baixos
Militares de alta patente, co-artífices do
golpe, antes do apoio decisivo à deposição do
governo em 1964, ocuparam cargos na polícia
desde a era Vargas, onde se sofisticaram
nas técnicas de tortura; entraram e saíram
de delegacias, reorganizaram instituições
policiais,
articularam-se
com
polícias
estrangeiras para aperfeiçoar material técnico
e humano.
Os EUA no pós II Guerra Mundial iniciaram
a execução de programas de treinamento de
polícias de países menos desenvolvidos voltados
a coibir a expansão do comunismo.
Esses programas se espalharam a partir dos
anos 1950 e inúmeros militares e policiais
do Brasil viajaram aos EUA para frequentar
cursos de novas técnicas de interrogatório e
treinamento de tortura, assim como para compra
de material.
O aperfeiçoamento da tortura no Brasil adveio
de sua aplicação em ‘bandidos pés descalços’
no decorrer dos anos 1950, pois a chamada
criminalidade comum era vista, também, como
fator de perigosa instabilidade social que
poderia abrir as portas para o crescimento da
esquerda se não fosse combatida com rigor.
No esteio das infindáveis reformas policiais
complementares à formação de grupos de polícia
especial engendrou-se ainda na década de 1950
o Esquadrão da Morte, em referência direta
ao alto índice de cadáveres de miseráveis
abandonados em estradas, em geral assassinados
depois de sessões de torturas.
Com a ditadura civil-militar se intensificou,
também, a prática no padrão dos ‘esquadrões da
morte’, não como arbítrio, mas como técnica
policial e de governo elaborada para triturar
resistências, quaisquer que fossem, viessem
de onde viessem, assim como o Brasil tornou-se
o grande exportador de técnicas científicas de
tortura para as ditaduras na América do Sul.
O “saudável terror” do século XIX - na
expressão utilizada por um chefe de polícia
para conter revoltas de escravos - sofisticouse com a tecnologia de poder e de governo do
século XX.
Policiais e agentes da lei espancando até a
morte ou sumindo com pessoas estavam ali desde
sempre, servindo ao Estado, proprietários,
industriais, banqueiros na defesa da vida
acovardada dos cordatos e ordeiros governados.
abolir a ciência da tortura
A continuidade das torturas, do litoral ao
interior do Brasil, escancara o ranço da ditadura
civil-militar que insiste em sobreviver no
presente. “Tortura-se respaldado na autoridade
(seja de pai, policial, professor) e na ciência.
Numa democracia ou numa ditadura, a tortura é
parte constitutiva das tecnologias de poder;
produz verdades que as sustentam” (http://
www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=20).
A tortura não irrompeu com o golpe de 1964,
pelo contrário. Este achatamento da vida faz
parte da história do território identificado
como Brasil, no extermínio dos índios, na
escravidão dos negros, na perseguição a
anarquistas, na polícia estadonovista contra
quem desafinou no coro dos contentes, nos
esquadrões da morte... no cotidiano das
delegacias e prisões.
Entretanto, foi a partir desse momento,
março/abril de 1964, que pouco a pouco a
tortura se tornou prática comum e oficial.
Seguiram-se ao SNI (Serviço Nacional de
Inteligência) – criado em junho de 1964 –
outras siglas macabras como CIE (Centro de
Informações do Exército), CISA (Centro de
Informações da Aeronáutica), CENIMAR (Centro
de Informações da Marinha), dedicadas, em
nome da segurança, a prender, torturar e
assassinar sistematicamente homens e mulheres
identificados como terroristas ou subversivos.
Em 1968, na cidade de São Paulo, surgiu,
com o auxílio de financiamento empresarial,
a OBAN (Operação Bandeirante), que na década
seguinte tornou-se o DOI/CODI-SP, matadouro
oficial chefiado pelo delegado Sergio Paranhos
Fleury.
Disseminado em várias regiões do país, o
modelo de organização do DOI/CODI-SP integrou
e tornou mais eficiente a repressão torturadora
do terrorismo de Estado.
Diziam que salvariam a democracia dos
comunistas. Que os brasileiros patriotas
desejavam capitalismo e democracia. Que a
ditadura reporia a institucionalidade. Que, em
suma, o Estado se defendia do perigo comunista!
E tudo isso nada mais é do que a essência do
próprio Estado de direito.
O alto investimento na propaganda do
“milagre brasileiro” auxiliou, nos anos 1970,
o fortalecimento dos grupos paramilitares
que passaram a atuar coadunados com o
aparelho repressivo construído após o golpe,
assassinando moradores nas periferias do
Brasil afora, conformando um “programa de
genocídio”, como bem situou o artista Hélio
Oiticica ao se referir ao assassinato, nesta
década, de quase todos os seus amigos do morro
da Mangueira.
Como declarou Cecília Coimbra, “a tortura
não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é
justamente essa a terrível situação: através
da dor, da humilhação e da degradação tentam
transformar-nos em coisa, em objeto. Resistir
a isso é um enorme e gigantesco esforço para
não perdermos a lucidez, para não permitir que
o torturador penetre em nossa alma, em nosso
espírito, em nossa inteligência” (Depoimento
de Cecília Coimbra à Comissão da Verdade:
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/
artigo/depoimento-de-cecilia-maria-boucascoimbra-as-comissoes-nacional-e-estadual-daverdade/).
Em
plena
democracia,
o
silêncio
sorridente de parte dos cidadãos diante do
“desaparecimento” de Amarildo, da recente
execução de Claudia Silva Ferreira, dos urros
de dor dos corpos submetidos às violências
da prisão, expõe a sobrevivência de práticas
que se institucionalizaram antes, durante e
depois da ditadura civil-militar.
É preciso, portanto, reverter os embates
tradicionais contra a tortura e os escrachos
que se restringem a um acerto de contas
histórico.
A luta contra a ditadura, a tortura, o governo
dos obedientes militantes e conformistas é
também uma luta contra o Estado.
pelo fulgor da vida
No romance “Os cúmplices”, o escritor
libertário
Roberto
Freire
explicitou,
precisamente, que o consentimento de grande
parte da população com o golpe civil-militar
foi o que sustentou mais tarde a infindável
máquina de violências do Estado.
Preso em 1965, torturado com “telefones”
que resultaram no deslocamento da retina de
um de seus olhos, Freire conta no livro que no
dia 1º de abril de 1964 saiu caminhando pelas
ruas de São Paulo. Pediu um táxi. No trajeto,
perguntou ao motorista: “E, agora, como será
nossa vida com esse golpe militar?”. “Igual”,
responde o chofer. Diante da insistência de
que os militares iriam acabar com “nossa
liberdade”, ouve como resposta, “que liberdade,
cara? Preciso é de dinheiro”.
Entre 1964 e 1968, irromperam os jornais
“O Libertário”, “Dealbar” e “O Protesto”.
Não foram supervisionados por censores como
a grande mídia, simplesmente foram fechados.
Nada de palavra livre, somente as gerenciadas.
Já em 1964, o anarquista Pietro Ferrua
cria, ao lado de uma jovem pesquisadora no Rio
de Janeiro, uma “Liga dos Direitos Humanos”.
Não para celebrar e promover o vazio e a
universalidade de valores, mas como um meio
para produzir contatos internacionais capazes
de evitar que pessoas fossem mutiladas e
assassinadas pelo Estado, usando o que hoje
serve para promover benfeitores e reformadores
como tática para combater o Estado e suas
violências.
Combateu-se
os
guerrilheiros
urbanos
ou
rurais que saíram em contestações radicais
alertando contra a ditadura, o capitalismo,
a encenação parlamentar, a exploração... Só
houve terrorismo civil depois de instalado o
terrorismo de Estado.
Na ditadura civil-militar, no governo de
Garrastazu Médici, em 1972, integrantes do
grupo de teatro anarquista The Living Theatre
foram presos no DOPS de Belo Horizonte e,
depois, expulsos do país.
Ao chegarem a Nova York, apresentaram pelas
ruas da cidade “Seven Meditations on political
sado-masochism”.
Exibiram o sexo torturado do corpo de um
jovem revolucionário arruinado pela ditadura,
escancarando o apoio dos EUA à ditadura civilmilitar do Brasil, a conivência de parte da
população brasileira com as violências do
Estado e, por fim, o que chamaram de horror
produzido pela política.
Depois de intensa repressão, a partir da
invenção do jornal “O Inimigo do Rei”, em
1977, os libertários voltaram a se articular,
animados
pelas
experiências
liberadoras
contra o Estado, para além de acomodações e
negociações políticas de abertura política.
Com “O Inimigo do Rei”, o combate à ditadura
retornou revigorado e exigiu, diante das
transações pela anistia, a libertação imediata
de todos os presos brasileiros.
Diante da ciência da tortura, do Estado,
os anarquistas resistiram à ditadura civil-
militar escrevendo cartas para vários cantos
do planeta, ensaios, romances, jornais,
apresentações, escrevendo a própria existência.
Estas vidas que vibram pouco são comentadas
nos eventos solenes oficiais e off-oficiais
de memória e combate ao autoritarismo vigente
durante a ditadura civil-militar.
Entretanto, elas estão aí em livros,
anotações, cadernos, dissertações e teses, na
memória que se atualiza, pelas ruas e pelos
cantos, na pele de jovens que fazem do presente
das batalhas um fulgor.
[Publicado como ‘hypomnemata 165’,
eletrônico do Nu-Sol, março de 2014]
boletim
verve
a questão americana: o conflito
incontornável. o apelo ao povo1
joseph déjacque
I.
Teríamos até o presente momento examinado a
questão em seu todo? Teria ela sido considerada numa
visão abrangente, e profundamente esmiuçada? Não que
eu saiba. Então, tentemos fazer com que algumas luzes
penetrem nessas trevas.
II.
Por volta do fim do século XVIII, os colonos rebeldes
fizeram uma Constituição que, é verdade, libertava
as colônias inglesas do vampirismo da metrópole, e
nisso eles estavam certos. Mas políticos tradicionalistas
Joseph Déjacque (1821-1864) foi um operário, escritor e jornalista libertário
nascido na França, que participou dos movimentos revolucionários em Paris, em
1848, e publicou de forma autogestionária o periódico Le Libertaire, Journal du
Mouvement Social, entre 1858 e 1861, período em que viveu em Nova Orleans,
Estados Unidos. Déjacque é considerado o primeiro a usar a palavra “libertário” em
carta dirigida a Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), datada de 1857; empregando
o termo, logo depois, no título de seu jornal.
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quiseram imobilizar o espírito dos tempos, o movimento
revolucionário ou regenerador, e declararam sua obra
circunstancial, algo imutável e eterno, e nisso estavam
errados.
As Constituições políticas ou sociais, como as
Constituições humanas ou individuais, são sujeitas a
revisões, a transformações. A alimentação cotidiana
produz, tanto nos povos quanto nos homens, novos
elementos que modificam, a cada instante do dia ou do
século, seu temperamento, desenvolvendo ou atrofiando
alguns de seus órgãos. Portanto, qualquer constituição,
física ou moral, ou social, ou individualmente humana,
só pode ser essencialmente móvel. Apenas no caso de
homens ou povos mumificados, a constituição pode
permanecer de alguma forma estacionária.
Ora, não sou eu apenas que o afirma, são os fatos
que falam, é a lei da natureza que assim ordena e nos
ensina: abaixo a Constituição escrita da antiga e solene
União americana! Ela mente para a constituição moral
do povo. Viva o movimento abolicionista! O movimento
constitutivo do moderno Progresso! Embora não seja
a letra da Constituição legal, ele não deixa de ser, e da
forma mais certa, o espírito verdadeiro e vivificante da
constituição moral do povo.
III.
Já há muito tempo existe antagonismo entre o Sul e o
Norte, ou seja, entre os homens que desejam perpetuar e
ampliar a escravidão dos africanos, e aqueles que querem
restringi-la, aniquilá-la, e seus intrépidos companheiros
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verve
A questão americana
deram testemunho disso diante do mundo e do alto
dos patíbulos. Foi de um patíbulo, onde os fazendeiros
de então pregaram-na em cruz, que há dezoito séculos
se revelou uma nova filosofia, hoje envelhecida... E foi
também de um patíbulo, o patíbulo de Charlestown2, que
foi revelado recentemente, afirmando-se claramente, o
irreprimível conflito. Sem dúvida, nem Brown nem Jesus
produziram o movimento que os fez agir: eles foram tanto
a aurora quanto o eco da grande voz pública, um resumo
harmônico de todas as notas da escala humana ressoando
clandestinamente contra o escravismo: e foi isso que fez
com que ambos subissem para o suplício como para uma
apoteose, sabendo intuitivamente que, no caminho do
Progresso, é só em aparência que se sucumbe para, na
realidade, se renascer na marcha triunfal de seus seguidores
e vingadores. Por mais que a coroa de espinhos ou o capuz
tentem silenciar a Ideia na fronte majestosa reputada
criminosa, a Ideia, pela boca de seus mártires, como
através de um trompete universal, proclama o Julgamento,
de início mental, mas logo oficial, da Multidão, o advento
da nova ordem social que se inicia, o toque fúnebre da
velha ordem que finda.
Tanto os crucificadores da Judeia quando os
estranguladores da Virgínia perseguiram um homem
acreditando que, ao destruí-lo, também estivessem
destruindo o sopro que nele vibrava; mas, quebrado o
instrumento, ele logo revibra, clamor prolífico, através de
milhões de bocas, cornetas incessantemente renascentes
da imperecível Multidão. E não é a Multidão o amplo, o
fecundo peito do qual o inovador crucificado ou enforcado
seriam apenas a palavra fugitiva? O seio colossal do
qual jorra todo pensamento eloquente e sonoro? E
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quanto à impertinente e louca pretensão de comprimir o
movimento de seus pulmões, de impedir sua voz de se
fazer ouvir, a frase que ela articula de se perfazer? Podem
tentar à vontade!... Todos os patíbulos do mundo, todas
as fogueiras, todas as forcas de todas as épocas, pesariam
menos em sua mão gigantesca do que um punhado de
fósforos na de vocês, montes de Liliputianos.
IV.
A República americana, tão revestida de instituições
monárquicas, mas baseada no protestantismo em religião, e
no liberalismo em política, ou seja, no princípio de negação
do absolutismo autoritário, pertence fatalmente ao estado
de progresso filosófico e social, ou correria risco de suicídio.
Nada mais natural que ela seja o pesadelo dos partidários
da eterna e absoluta Autoridade, das quais os célebres
filhos de Loyola são os táticos universais, os generais em
comando, os Reverendos Pais e Tutores. Assim, não é de
hoje que essa corja católica e inquisitorial trabalha pela
perda desse simulacro da República. Os Jesuítas sabem
que a escravidão é a lepra viva que deve destruí-lo, caso o
Norte não a arranque de seus flancos empregando o ferro
e a chama, o pensamento e a ação libertários. Desse modo,
eles se estabeleceram de longa data em todos os cantos e
recantos da União. No Sul, como em 1792 na Vendeia3,
como antes das Jornadas de Junho por toda a França, eles
atiçam o fogo da guerra civil, e impulsionam os estados
agrícolas à Secessão, os exploradores à Reação.
Espojando-se no arsenal da intriga e da calúnia, eles
enchem seus odres de duas caras e os esvaziam aos poucos,
nos ouvidos daqueles que funcionam como para-raios
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verve
A questão americana
durante a tempestade; eles armam esses novos chouans4,
com a fúria hidrofóbica do proletarismo ameaçado no
cérebro canino desses novos pastores guarda-burgueses e
degoladores de humanos. No Norte, eles choramingam
hipocritamente, como carpideiras de cerimônias fúnebres,
sobre o prematuro fim da União. Assim como do outro
lado do Atlântico – após o movimento de Fevereiro até
o Golpe de Estado de Dezembro5 – eles suscitam aqui
uma crise financeira fictícia dando a todos seus afiliados
a ordem de paralisar os negócios, de apertar os cintos, de
trancar com ferrolhos triplos seus cofres, para atemorizar
todos os barões e baronetes do Capital, de perturbar o
comércio e a produção, de suspender provisoriamente todo
trabalho, induzindo assim, com o auxílio de insinuações
pérfidas, os produtores e comerciantes do Norte, manada
sempre numerosa de ignorantes, a acreditar que a atual
crise artificial, criada artificiosamente pelos democratasescravagistas para aterrorizar a população dos EstadosLivres, e que é obra da oligarquia sulina, inteiramente sua
obra e nada mais que sua obra, seria ao contrário, obra dos
republicanos–abolicionistas,
Aliás, esse espantalho é mais imaginário do que
realmente terrível. Como o cano da pistola com que um
bandido raquítico ameaçaria num canto de bosque algum
robusto viajante (pistola vazia de pólvora e de balas e que
só possuiria um tiro). Se o robusto viajante desconfiar do
embuste, bastaria que ele estendesse o braço na direção do
pequeno vagabundo para que este fugisse a todo vapor. Da
mesma forma a crise fugiria se o gigante do Norte, em vez
de se deixar intimidar, ousasse olhá-la no fundo dos olhos
e lhe dissesse: ”Pigmeu suma de meu caminho!”
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V.
Americanos, atenção: abram os olhos e os ouvidos. É a
Companhia de Jesus, essa temível organização tenebrosa,
cujo princípio é transformar qualquer indivíduo ou nação
em cadáver, um corpo maquinal do qual ela se reserva ser a
força motriz; foi ela, não duvidem, que incubou e fez eclodir
o acontecimento da Secessão e o governa em proveito
próprio. São suas mãos que detêm os fios que movimentam
os fantoches democrata-escravagistas, os cavalheirescos
chicoteadores de negros, os reacionários tanto do Sul
quanto do Norte, os renegados do partido republicanoabolicionista, os ponderadores políticos, os governantes em
expectativa, assim como, entre outros, Lamartine-Seward6,
esse ministro-sirene do futuro gabinete, destinado a
adormecer ou extraviar a opinião popular que se manifestou
triunfante na última eleição presidencial. A Companhia de
Jesus, através do instrumento do confessionário, onde vêm
se ajoelhar milhares de criados irlandeses, sabe tudo o que
acontece em suas casas burguesas, e através das relações
dessas mulheres e das operárias da mesma nação com seus
amantes ou maridos, também o que está acontecendo na
mansarda e na oficina do proletário. A metade dos seus
empregados de escritório ou loja é formada de irlandeses,
animais católicos, e que se prestam como espiões da
Companhia de Jesus. Bom número de franceses de todas
as classes se alista nas seções dessa sociedade de malfeitoria
secreta. Os padres jesuítas levaram quase três quartos de
século para tramar sua rede e com ela já cobriram a União.
Agora, como autoritários caçadores de pássaros, imaginem
o que eles não farão brilhar a seus olhos, pobres americanos,
para aprisioná-los como andorinhas? Vocês esvoaçam ao
redor do perigo e nem parecem desconfiar disso.
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verve
A questão americana
Quem muito viu pode ter muito compreendido. Então,
ouçam! Pois, eu lhes digo, se vocês não enxergarem segundo
a lógica libertária, essa será a história de amanhã. Mas, em
primeiro lugar, vamos relembrar num curto histórico os
fatos que provocaram a situação: a exposição do passado é
uma baliza para o que deverá se seguir.
VI.
Os filhos da Grã-Bretanha, essa terra do livre exame,
os emigrados do outro século para o solo da América,
não podendo suportar por mais tempo o jugo vexatório
da autoridade metropolitana, dilaceraram pela palavra e a
espada o velho pacto ao qual os tinham amarrado os pais
legais da mãe-pátria: eles proclamaram a independência e
a união das colônias insurgidas. A República do pavilhão
constelado de estrelas foi inaugurada por esses descendentes
de regicidas, sobre os trapos da Constituição real lacerada
e lançada aos quatro ventos. Foi desde então que a raça
das Missões Jesuíticas encaminhou-se para esse jovem
rebento de liberdade para aí tomar posição, e na época da
maturidade da árvore, devorar seus frutos como um verme
roedor. A escravidão dos negros existia na Constituição
real: vergonhosamente, a Constituição republicana a
manteve, para não melindrar os preconceitos sórdidos de
muitos patrícios, proprietários de hilotas7, e formar com
todos os Estados um feixe capaz de resistir à invasão, caso
a coroa da Inglaterra persistisse em querer recuperar suas
possessões perdidas. A hora do abolicionismo universal
só ressoava fracamente no relógio das consciências. A
Revolução francesa ainda não tinha agitado seu archote
de igualdade sobre o Mundo!
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Entretanto, a nação americana se desenvolvia. Novas
estrelas se acrescentavam constitucionalmente ao
núcleo das primeiras: seu pavilhão vitorioso passeava
pelos mares suas mercadorias, suas matérias-primas,
arrecadando tributos das outras nações; aos produtos
do solo vinham se juntar os produtos da indústria; seus
trabalhadores brancos prosperavam. Ela parecia possuir,
também no plano moral, o vapor que aplicara ao plano
físico. Parecia se encaminhar para a grandeza, como uma
locomotiva avança para seu destino numa estrada de
ferro. E salvo algumas agitações sulinas logo reprimidas,
salvo também algumas bancarrotas periódicas atingindo
o antigo continente, bancarrotas conhecidas sob o nome
de crises, por meio das quais se estabelecia a intervalos
cada vez mais próximos o equilíbrio entre seu menos de
produção e seu mais de consumo; salvo principalmente
seu vício capital, o pecado da escravidão, ela podia iludir, e
ser considerada na má sociedade dos Estados atuais como
modelo para os Estados. Mas eis que repentinamente a
mão da decadência agarrou-a pelos cabelos na via férrea
de sua grandeza, emperrando suas rodas!
A constituição legal e inamovível foi a causa da
prematura decadência da República americana; foi isso
que entravou seu livre desenvolvimento, confinando-a
aos lençóis petrificados de seu berço. Um povo, da mesma
forma que um homem, não pode consumir mais do que
ele produz, sem logo expor-se à punição pública, à falta
cotidiana do necessário. E devo dizer, o Povo dos Estados
Unidos produz menos do que consome, como atestam
as estatísticas de importação e exportação. Por que isso
acontece? É o que iremos ver. Novos emigrados, como
os emigrados de antes de 1776, deixam todos os dias o
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verve
A questão americana
solo ingrato da velha Europa, que se tornou estéril devido
às instituições autoritárias, e vêm pedir à República do
Novo Mundo o emprego de suas faculdades produtivas
e consumistas. A constituição republicana dos Estados
Unidos de hoje, como a constituição real das colônias de
antigamente – longe de acolher com ardores amorosos esses
trabalhadores cujos braços são poderosos instrumentos de
prosperidade coletiva – trata-os como madrasta; entregaos indefesos à avidez dos exploradores, abandona-os
à mercê das talhas e corveias do senhor. Ela só sabe
abrigar maternalmente a imunda feudalidade, capitalistas,
vendedores parasitas, políticos e bíblicos, negociantes de
leis divinas e humanas, devoradores desavergonhados de
contribuintes. Assim, tanto deste lado do Oceano quanto
em sua outra margem, o proletariado aumenta diariamente
em número e miséria: vai se amontoando sobre a cena
pública; de forma que, mal tendo sido abolida a escravidão
direta e seccional, a dos negros, irá surgir repentinamente
a questão dos escravos brancos, o abolicionismo da
escravidão indireta e universal.
Cabe aos proletários, esses emigrados de todos
os países e os novos colonos da América; cabe a eles,
como coube aos emigrados de há três quartos de século,
libertar-se do jugo vexatório da Constituição, lacerá-la, e
substituí-la por uma obra socialista, outra Declaração de
Independência dos Trabalhadores-Unidos.
VII.
Os jesuítas, que vigiam atentamente qualquer
pulsação do Progresso para sufocá-la, sabem que o
partido republicano-negro, uma vez engajado na via da
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emancipação, deverá logo ceder passagem para a massa
de republicanos de qualquer pele, abolicionistas do
Proletariado. O Progresso é como uma engrenagem de
moinho: depois de abocanhar o dedo da Resistência,
também irá agarrar a mão, depois o braço, depois o
restante do corpo. É por isso que os Jesuítas, ainda que
o Sul pereça, lutarão sem misericórdia, sob a máscara dos
fazendeiros, para salvar o princípio de autoridade. Seus
sectários nos Estados Livres contam-se por milhões, nas
hordas de irlandeses cuja imigração, não sem cálculo,
eles sempre facilitaram. Já corre o boato no Norte do
recrutamento secreto, num objetivo não confessado, de
dezembristas8. Pois as coisas se passam por aqui de forma
quase idêntica às que aconteceram na França, antes do
24 de Junho [de 1793]9 e do 2 de Dezembro [de 1851]10.
Os jornalistas e oradores devotados à Companhia de
Jesus destilam na sombra o veneno, fazendo-o jorrar
cotidianamente de seu alvéolo venal. Eles travestem o
sentido das palavras: qualificam com o nome de Revolução
a Reação escravagista contra o movimento abolicionista,
como em outro momento, em 1848, qualificavam com as
palavras honestos e moderados os burgueses massacradores
de Ruão e de Paris. Eles falam de “plebiscito, de apelo
ao povo”, como falavam em 1793 para arrancar o traidor
Capet do gládio justiceiro da Convenção11 – certos de
que o escrutínio os favoreceria hoje, como favoreceu os
desígnios da Ordem em dezembro de 1851, ainda que
devam empregar para pressionar os votos, os mesmo
pérfidos e sangrentos meios. Finalmente, eles imploram,
juram, invocam céu e terra, e insinuam caridosamente que
seria preciso que o nosso bom Deus pai nos enviasse um
homem providencial que concentrasse em sua pessoa todos
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verve
A questão americana
os poderes, para salvar a União. Alquimistas políticos, do
fundo de seus laboratórios de redação vão inflamando a
opinião pública, preparando-a para receber a Ditadura,
cadinho de onde deve sair sua pedra filosofal, ou seja, o
cesarismo imperial.
Como os jesuítas, esses selvagens guardiões do
absolutismo, essas horríveis vestais de batina, cuja missão
é alimentar sempre e por toda a parte o fogo sagrado
da arbitrariedade, não podem permitir que Lincoln
sente-se na poltrona presidencial, pois moralmente isso
significaria, para os escravagistas, o impulso à engrenagem
abolicionista: eles vão tentar sob o nome político do Sul,
e em uma hora noturna qualquer, apoderar-se antes de
04 de março do Capitólio e da Casa Branca, para aí
instalar alguma combinação conveniente, um Poder dito
de Salvação-Pública, talvez sob a forma de um desertor
do partido republicano, homem-isca lançado para seduzir
os ingênuos e fazê-los engolir o anzol: o princípio de
autoridade. Uma vez dado o Golpe de Estado, uma
vez armada a cilada, irá ser convocada sua sanção pelo
Povo (plebiscito). E o Povo surpreendido, a plebe, por
um momento perdida ou intimidada, e apesar da sua
consciência que dirá não, mas na esperança de colocar
fim à crise e de ver retornar o trabalho, a plebe, enfim,
habituada pela Constituição a delegar sua soberania,
responderá: Sim! Como a plebe da França em 185112.
Entronizada a Ditadura, isso significará para a República
dita do self-gouvernment a última agonia. Pouco depois,
nesse leito de Procusto13, numa operação cesariana, ela irá
parir por inteiro a Monarquia.
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VIII.
Americanos, esse é o plano dos jesuítas. Eu o denuncio
a vocês. Vocês são homens para desmanchá-lo? Temo que
não. Como o povo de França, vocês admiram os espertos,
os smarts; os políticos de vocês, tanto aqueles que querem
defender quanto os que querem violar a Constituição,
são aqui, como na França no 02 de dezembro [de
1851], personagens desconsiderados, inimigos ambos da
liberdade industrial e intelectual do proletariado. A sua
Constituição e suas assembleias legislativas lhes impõem
vergonha e miséria, as leis sobre os escravos fugitivos e
do domingo e as leis protetoras dos [privilégios] do
Rico e atentatórias aos direitos dos Pobres. Gemendo
sob os sofrimentos que os massacram, vocês ainda não
entenderam qual é o remédio. Que pena! Como há dez
anos seus irmãos do velho continente – vocês têm nove
chances contra uma de cair na armadilha que espreita
seus passos! É provável que não sigam o conselho que
lhes dou. Nessa questão, como na questão greves. Ainda
desta vez devo ter pregado no deserto. Não faz mal, o
que não está maduro, amadurecerá, a ideia semeada não
está perdida para a colheita. A boa palavra, que hoje se
chama Socialismo, mas que antigamente se chamava
Cristianismo, não saiu triunfante do deserto? Mais de um
profeta precedeu o Messias!...
Profetas da Nova Ciência, não cansemos de professá-la.
Ela já teve seu Jordão, o Sena! Onde foi batizada em Junho
de 184814!... Se, por infelicidade, eu tiver que presenciar
ainda o sucesso deste outro golpe de Estados dos jesuítas,
que os democrata-escravagistas levem a melhor e violem
a União; pois bem, eu vou me consolar imaginando que os
jesuítas, que são seus diretores ocultos, no final das contas
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verve
A questão americana
e depois de todas as suas vitórias, só conseguiram propagar
o incêndio que eles queriam apagar, a ideia revolucionária
que queriam sufocar. Bombeiros enfeitiçados, quando
pensavam estar lançando água, era óleo que jogavam no
fogo!... Tomo como testemunha aquilo que acontece neste
tempo do outro lado do Atlântico, nessa Europa sujeitada
onde eles reinam e que se encontra às vésperas de uma
transformação social universal.
IX.
Mas para voltar à questão americana. Não há nada
simples no mundo, tudo é composto; e os complôs dos
jesuítas são como qualquer outra coisa. Os jesuítas não
são gente de ter apenas uma corda em seu arco, uma
única flecha em sua aljava. Caso a corda do golpe de
Estado arrebente, se eles não conseguirem fazer com
que os conjurados escravistas tomem a capital federal,
e se fracassarem em seu projeto de apelo ao Povo, eles
irão lançar mão da Secessão, e usarão sem escrúpulos essa
corda. Uma vez inteiramente operada a divisão entre o Sul
e o Norte, seria necessário que eles fossem muito inábeis
para não conseguir organizar enquanto monarquia os 14
Estados sulistas, e garantir para essa monarquia a aliança
da França imperial e de todas as outras nações católicas
sobre as quais exercem controle: até mesmo a aliança
comercial da Inglaterra. Ali, nesse regaço do escravagismo,
em meio a seus caros filhos, os fazendeiros, seus esforços
seriam infalivelmente coroados de sucesso, a menos que
a insurreição servil entrasse em jogo, e que armada com
a tocha e o gládio, ela também redigisse, com traços de
sangue e chama, sua Declaração de Independência, a
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liberdade das colônias africanas, a decadência do Poder
dos fazendeiros....
X.
Expus a situação. Mostrei os perigos. Vejamos quais
são os meios de conjurá-los.
XI.
O proletário branco é o irmão natural do escravo negro, deve-lhe seu apoio, e ele seguramente o daria se não
estivesse aprisionado pela Constituição. Não há dúvida
que se tomássemos cada americano em separado e perguntássemos sua opinião sobre a escravidão, a grande maioria
responderia com sua condenação; e isso não somente no
Norte, mas também no Sul. Apenas a violência e a astúcia governamentais impedem que tanto o Norte quanto o
Sul a manifestem. No Norte, pelos editos dos governantes
oriundos da intriga e da corrupção, e que relegam à condição de párias os homens de cor livres, visando alimentar,
na plebe branca, preconceitos absurdos, tornando-a moralmente escrava, para governá-la mais facilmente e para a
perpetuidade; de maneira que, nos próprios Estados livres,
o proletário branco não ousa tratar como igual seu irmão,
o proletário negro, com medo de atrair a reprovação dos
gentlemen, a acusação de seus patrões e senhores de todo
tipo; de forma absolutamente igual àquele que, liberado de
toda superstição em Deus, não deixa de ir ao templo, para
um casamento, batismo ou enterro, temendo ser notado
pelos detentores do capital, de todos os tiranos políticos e
religiosos, e de ser, como ateu, privado de seu ganha-pão.
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A questão americana
No Sul, é ainda pior. Lá, para ousar manifestar uma
opinião abolicionista, é preciso enfrentar a prisão, o
cadafalso, o punhal, o revólver, o espancamento, suplícios
bárbaros e cruéis, a lei de Lynch15 infligida por bandos
de loffers a soldo dos fazendeiros e de sua criadagem
política, os corpos legislativos e executivos do Estado.
Existem no Norte homens que falam da inferioridade
dos negros. Supondo-se que eles próprios não sejam
inferiores aos negros (e eu seria bem tentado a pensar isso
constatando seu lastimável raciocínio), que eles se deem
ao trabalho de visitar certos bairros de Nova Iorque; que
aí contemplem um pouco essas horríveis faces irlandesas,
esses homens, essas mulheres, essas crianças que nada
têm de humano e que, no entanto, desfrutam do título de
cidadãos livres – opróbrios da República – escravos da Fé,
e que o pastor da Igreja romana conduz com golpes de
hissope nas sendas do cretinismo!... E vamos ver se depois
disso, eles ainda vão ousar apregoar a superioridade dos
brancos sobre os negros. Eu os desafio a encontrar algo
tão ignóbil e feroz quanto os traços dessas bestas brancas,
desses seres, nascidos para fazer homens e degenerados
em animais católicos! Oh, Religião! É nisso, entretanto,
que transformas a criatura, humana! Que bela imagem
de teu Deus!!! Se os negros dos Estados Livres não são
mais desenvolvidos do que são, a culpa é da interdição que
faz pesar sobre eles a legislação branca, e da Religião, que
lhes ensina a submissão frente aos dominadores, em vez
da revolta.
Há no Sul homens que falam da necessidade dos
escravos negros para se cultivar o algodão; esses são os
proprietários das plantações algodoeiras. O proletário
branco, eles dizem, não poderia fazer esse trabalho; o sol
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o mataria. Tocante e meiga filantropia desse crocodilo! E
que combina realmente muito bem com esses anfitriões
das margens dos pântanos! Como então acontece que, no
Sul, onde supostamente tanto se teme expor os brancos
à cultura do algodão, sejam precisamente esses mesmos
brancos que realizem os trabalhos mais assassinos e, além
disso, os realizem excluindo os negros? Digam, por favor,
quem é que desbrava as terras virgens!? Quem abre as
estradas? Quem escava os canais? Quem, nas barragens
infectas e escaldantes dos rios, carrega e descarrega os
barcos a vapor? Quem? Digam! Não são os brancos? Esses
brancos não estão, sim ou não, nessas ocasiões, à mercê
dos raios fulminantes do sol? Estariam eles protegidos
dos miasmas pestilentos quando remexem com a pá
ou a enxada a terra fétida do canal que escavam ou da
estrada de ferro que aterram? Respondam, escravagistas,
seus covardes impostores! Por acaso vocês se arriscariam
a colocar os negros de suas plantações nesses trabalhos?
Não! Pois vocês, comerciantes de carne humana, sabem
que a febre os dizimaria, e por isso preferem sacrificar
a vida dos proletários brancos do que as dos escravos
negros, já que estes são sua propriedade, um rebanho com
valor, e os outros não custam nada. Como Napoleão I,
esse açougueiro de campo de batalha que, na sangrenta
arena em que os cadáveres eram contados, lamentava
o número de cavalos mortos e permanecia impassível
diante das pilhas de cavaleiros assassinados, vocês dizem:
os proletários podem ser substituídos! A fome, esse
recrutador forçado, vai nos enviar outros!
A escravidão direta dos negros, essa abominável
monstruosidade moderna, é um anacronismo em um
século onde vibra a questão de emancipação dos escravos
98
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verve
A questão americana
brancos, a libertação do proletariado. Na verdade, hoje
não é mais pelos argumentos da palavra que deveríamos
responder a esses energúmenos de outra época, a esses
refugos e fantasmas do baixo Império Romano, mas sim
pela espada e o canhão. Os beneficiários e apoiadores de
tal sistema estão fora da lei humana. Não há o que discutir
com essas existências de canibais, civilizados sulinos que
parecem esculpidos com o limo dos crocodilos... Só
nos resta suprimi-los! Qualquer compromisso com o
escravagismo é um crime. Necessário é o brilho da Justiça!
XII.
Falou-se de Plebiscito, de apelo ao Povo. Pois bem, isso
que acabei de propor, minha solução, também é o apelo ao
Povo: não um apelo ao povo efêmero, mas permanente;
não um simples plebiscito por um sim ou um não num
compromisso redigido arbitrariamente pelos mandarins
revestidos das insígnias da autoridade: mas o Povo (e
não mais desta vez a plebe, como indica claramente a
palavra plebiscito) na posse imediata e constante de sua
inalienável, sua imprescritível soberania: ou seja, o próprio
povo votando universal e diretamente todas as leis sob
inspiração de minha an-árquica iniciativa.
Com o que estão atualmente ocupadas as assembleias
legislativas representativas? Com seus interesses
particulares e não com os do povo. Com o que poderiam
se ocupar as assembleias legislativas universais e diretas
senão, direta e universalmente com os interesses do povo
e não com os de uma casta? Então, não haveria mais na
República o temor de interesses seccionais; apenas o
interesse geral faria lei; o interesse soberano de cada um,
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o interesse individual adicionado seria sua salvaguarda
dali em diante. A legislação representativa significa
para o povo o alarido dos instrumentos que preludiam
representa para a orquestra; a legislação universal e direta
é o acordo de todos os instrumentos sob a batuta unitária
do interesse comum. Uma delas, a primeira não passa de
uma horrível balbúrdia; a outra, a segunda, produziria a
harmonia.
Americanos, a legislação direta e universal é o único
remédio para o mal que vos gangrena. Enquanto vocês
votarem nos seus comícios eleitorais em homens – que
na véspera os adulam e no dia seguinte irão devorá-los –
em vez de votar direta e universalmente pela lei; enquanto
vocês delegarem, isto é, abdicarem do poder em favor de
mãos de representantes absolutamente infiéis, em vez de
exercê-lo vocês mesmos e se governarem de acordo com
suas próprias leis, enquanto, enfim, não se conscientizarem
do primeiro de seus direitos como cidadãos, direito de
soberania direta, e não o reivindicarem imperiosamente,
serão enganados por intrigantes, vítimas de suas ações e
gestos; eles os tratarão como súditos, vencidos... desde
o mais distinguido com honrarias, o mandatário que
ocupa a Casa Branca, até o mais desprezado, o mandante
que ocupa os porões de Five-Points16– enfim, toda a
maçonaria de espertalhões que os roubam e assassinam
com impunidade, em nome da organização política e
autoritária atual, e sob a proteção latente ou visível dos
juízes e policiais, seus cúmplices em prevaricação.
A União encontra-se em grave perigo. Tanto a
desagregação dos Estados, como a dos indivíduos, é um
fato consumado, que se agrava a cada dia. Há caos por
toda parte, na imprensa, no congresso, no poder executivo,
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verve
A questão americana
nos partidos, seja no partido republicano, seja no partido
democrata. Grandes males pedem grandes remédios. Que
a doente pereça, caso não possa suportar o remédio que
pode curá-la! Pereça a União, se ela não puder suportar a
libertação dos negros, a igualdade entre os homens!
O último paládio da escravidão, a Constituição de
1787, foi rasgada cegamente pelo Sul. O governo federal
não tem nada para obrigar os Estados seccionistas à
obediência. Não me queixo; pelo contrário, só constato.
De fato, como em direito, a Constituição do outro século
não existe mais. O pacto que unia a vida à morte, a
geração presente à passada, não mais existe, está rompido.
A bastilha liberticida caiu. Escravos, respirem!... Agora, o
dever de cada um dos membros que formavam a União
é organizar-se numa nova sociedade em melhores bases,
em bases de progresso social, conclamando todo o mundo,
sem distinção de sexo nem de raça, ao governo da Coisa
Pública.
Aí está a salvação. Não é um homem, mesmo que ele se
chamasse Washington, que pode salvar a República, nem
cem, nem mil, nem cem mil: é todo o povo. A ditadura de
Washington, ditadura bastante especial e exclusivamente
militar, foi mais nominal que real: foi por estarem unidos
em um mesmo e anárquico sentimento de independência
que os colonos dos Estados triunfaram sobre os ingleses.
Fora do povo universal e diretamente soberano, não
há salvação! Que o povo em sua universalidade faça
diretamente o que ele quiser, e o que quer que isso seja,
será bom, desde que, tendo-o finalmente recuperado, ele
guarde para sempre seu cetro, o voto soberano. Se um dia
ele votar uma lei má, caso se ferir, não importa! A legislação
direta e universal é como a lança da mitologia, que curava
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com seu ferro os ferimentos que seu ferro causara: o voto
do dia seguinte cura o voto da véspera.
Americanos, vocês desejam ser os operários de seu
destino, os regeneradores da União, os promotores de uma
nova Declaração de Independência? A partir de agora, que
não mais exista Constituição imutável! Que não mais haja
correntes que entravem o desenvolvimento das capacidades
populares! Mas sim a constatação, a cada dia, pelo voto
universal e direto, do movimento perpétuo e progressivo
que constitui o corpo social, a individualidade nacional.
Alerta! Americanos! Alerta! Os Jesuítas,os escravagistas,
estão às suas portas! Os jesuítas, os absolutistas, batem
às suas muralhas! De pé! Contra os inimigos noturnos!
Avante! Contra os autoritários!!!!
Povo, salve a República!!
XIII.
Neste solo que não me viu nascer e no qual a ira contra
a Autoridade me fez buscar um refúgio; vivendo em teu
meio, povo americano, que eu gostaria que fosse menos
religioso e mais socialista; eu, homem livre do globo, e
me considerando em qualquer lugar como em minha
pátria, tentei nas páginas precedentes esclarecê-lo sobre
os perigos que o ameaçam; tentei iniciá-lo um pouco nas
ideias de liberação que vicejam na Europa. Fiz o que ditou
minha consciência, o que me impôs o dever. Homens de
meu continente lhe trouxeram, outrora, o apoio de suas
espadas; voluntário da Revolução universal também
coloco minha arma, minha pluma, a serviço de sua causa.
Que hoje ela possa pesar tanto quanto o gládio pesou
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verve
A questão americana
então, no prato de seu livre destino. Possam os homens
que falam sua língua traduzir meu pensamento, eco dos
pensamentos da multidão natal.
E agora, irmãos de América, se vocês forem realmente
os filhos de seus pais, se forem revolucionários na sua
época como eles foram na deles, estou aqui engajando
com vocês minha vida, meus braços, que são meus únicos
bens, e minha honra, pela manutenção do Progresso e a
salvação comum, a conquista da liberdade!
Tradução do francês por Martha Gambini.
Notas
Artigo publicado na edição n. 27 de Le Libertaire, lançado em 04 de fevereiro
de 1861. O texto é uma conclamação aos trabalhadores estadunidenses, negros
e brancos, à luta pela democracia direta e contra o imobilismo conservador
do sistema político e econômico estadunidense às vésperas, e já no contexto
do início da guerra entre os Estados do norte e do sul dos EUA. A chamada
Guerra de Secessão começou pouco depois, no dia 15 de abril, quando tropas
do sul atacaram o forte Sumter, em Charleston, na Carolina do Sul. A guerra
civil terminou em junho de 1865, após a morte de aproximadamente oitocentas
mil pessoas, com a vitória do norte. Déjacque retornou à França no final da vida,
mas desapareceu sem deixar vestígio (N.E.).
1
Déjacque refere-se a execução do abolicionista branco americano John
Brown, morto por enforcamento em 1859 após ter liderado uma revolta de
negros na Virginia contra a escravidão (N.T.).
2
O autor faz menção à guerra civil que aconteceu entre 1791 e 1796
na Vendeia, ou Vendée em francês, na costa da região do Loire entre
contrarrevolucionários e as tropas da Primeira República Francesa (N. E.).
3
Déjacque se refere ao conflito conhecido como Chouannerie, rebelião de
caráter monarquista contra a Revolução Francesa, iniciada por volta de 1792
e que foi coligada ao levante monarquista da Vendeia (N.E.).
4
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Déjacque elabora várias comparações à situação dos EUA com a da França
revolucionária do final do século XVIII, a de 1848 e a do período do Golpe
de Estado de Luís Napoleão, em 1851. O autor não se alonga na explicação
desses fatos históricos, provavelmente por supô-los conhecidos aos seus
leitores. Por isso, tais analogias serão detalhadas, em nota, ao longo do texto
(N.E.).
5
Déjacque refere-se a William Seward (1801-1872), governador de Nova
Iorque, senador e secretário de Estado no governo de Abraham Lincoln que
foi um dos mais destacados opositores à escravidão no Partido Republicado.
É provável que Déjacque compare Seward a Alphonse de Lamartine (17901869), poeta e diplomata francês que participou da experiência republicana
de 1848 e foi opositor ao golpe de Luís Napoleão (N.E.).
6
O autor usa a expressão “hilota” como sinônimo para “escravo”, pois
assim eram nomeados os escravos entre os espartanos na Grécia Antiga
(aproximadamente do século IX a.C. ao I a.C), ainda que em Esparta essas
pessoas fossem propriedade da pólis e não de indivíduos (N.E.).
7
Expressão derivada de “setembristas” (“septembriseus”), nome dado aos
participantes dos massacres dos prisioneiros políticos em setembro de 1792
(N.T.).
8
O autor faz menção ao período de radicalização política e social dentro
do processo revolucionário francês que se iniciou com o golpe sans-culotte
contra os grupos da burguesia girondina e a promulgação de uma nova
constituição em 24 de junho de 1793 que procurou aprofundar a declaração
de direitos de 1789. Nos meses que se seguiram, o grupo reunido nos
Comitês de Salvação da Pública, liderados por Maximilien Robespierre
(1758-94) e Louis-Antoine de Saint-Just assumiram relevo até controlarem
o Estado iniciando o período conhecido como “Terror” a partir de outubro
desse mesmo ano até meados de 1794, com a execução de ambos na
guilhotina (N.E.).
9
O autor faz referência ao golpe de Estado de Luis Napoleão Bonaparte,
ocorrido no dia 02 de dezembro de 1851, que levou à dissolução da Segunda
República Francesa e posterior estabelecimento do Segundo Império (N.E.).
10
Referência do autor a Loius Capet, ou Luís XVI, rei francês condenado à
guilhotina pela Convenção em 1793 (N.E.).
11
O autor faz menção ao fato de que o golpe de Estado de Luis Napoleão,
com a dissolução da Assembleia Nacional e posterior autonomeação como
12
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A questão americana
imperador, com mandato de dez anos, tenha sido aprovado em referendo
popular (N.E.).
O autor se refere ao personagem presente numa das lendas de Teseu, na
Grécia Antiga. Procusto capturava pessoas e as fazia deitar em um leito
de ferro. Como dispunha de duas camas de tamanhos distintos, nunca os
cativos estavam adaptados ao leito: ou eram altos demais ou baixos demais.
Então, Procusto os amputava ou esticava a fim de que coubessem na cama.
Teseu capturou Procusto, aplicando-lhe o mesmo castigo: prendeu-o à cama
e, sendo maior do que o estrado, amputou-lhe a cabeça e os pés (N.E.).
13
O autor faz referência aos levantes socialistas em Paris, em junho de 1848,
contra o retrocesso no processo revolucionário e a guinada conservadora
nos rumos da Assembleia Nacional. Os sublevados parisienses, reunindo
proudhonianos, blanquistas entre outras vertentes do emergente socialismo
foram massacrados por forças militares autorizadas pela Assembleia
Nacional em quatro dias de ferozes combates nas ruas de Paris (N.E.).
14
Déjacque refere-se à “Lei de Lynch”, método de espancamento e execução
sumários conduzido pelo capitão William Lynch durante a guerra de
independência dos EUA, no século XVIII, e que se disseminou pelo país
no século XIX praticado por grupos racistas voltados contra índios, negros
e imigrantes que – muitas vezes oficialmente protegidos por lei – eram
assassinados sem passar pelos procedimentos burocráticos e jurídicos do
Estado. Do sobrenome de Lynch derivou o substantivo linchamento e o
verbo linchar (N.E.).
15
Bairro de Nova Iorque ocupado por imigrantes na segunda metade do
século XIX, na sua maioria irlandeses, célebre pelas condições de miséria e
violência em que viviam seus habitantes (N. T.).
16
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Resumo
Joseph Déjacque conclama nesse artigo, escrito em 1861
quando vivia nos EUA, os trabalhadores americanos, brancos
e negros, a levantarem-se contra a deriva conservadora que
havia tomado o republicanismo estadunidense, lutando contra
a escravidão e abraçando a democracia direta como meio para
evitar a tirania e o retorno da monarquia associada à prédica
e à ação política religiosas.
Palavras-chave: libertarismo, Estados Unidos, abolicionismo
antiescravagista.
Abstract
Joseph Déjacque acclaims in this article, written in 1861
while living in the USA, the American workers, both white
and black, to stand against the conservative derive of the
American republicanism, fighting the slavery and embracing
the direct democracy as a means to avoid the tyranny and the
return of the monarchy associated with the religious preaching
and political activism.
Keywords: libertarism,
abolitionism.
United
States,
antislavery
The American question: the inevitable conflict. Acclaim to
the People, Joseph Déjacque.
Recebido em 25 de novembro de 2013. Confirmado para
publicação em 15 de março de 2014.
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verve
cartografias da interiorização
penitenciária no estado de são paulo
james humberto zomighani júnior
A partir dos anos 1990, um número cada vez maior
de penitenciárias passou a ser construído no Estado de
São Paulo (SP), sendo a maior parte delas no interior.
Somente o processo de desativação da Casa de Detenção
do Carandiru (concluído em 2002) levou à construção de
21 novas penitenciárias no interior paulista, criando um
fluxo migratório contrário ao comumente encontrado até
então, que ia das pequenas para as grandes cidades.
Apesar de uma relativa ampliação da área de organização do sistema penitenciário paulista, o aprisionamento
ainda continua muito intenso e concentrado na cidade de
São Paulo. No ano de 2012, a capital abrigava 27% da população estadual, sendo nela realizadas 34% do total de prisões
do Estado de São Paulo. Este possui 645 municípios, mas
em apenas 10 deles, naquele mesmo ano, foram realizadas
48% do total de prisões pelas polícias civil e militar.1
A interiorização penitenciária tem promovido inúmeras outras implicações além deste aumento dos fluxos na
James Humberto Zomighani Júnior é doutor em Geografia Humana pela FFLCH/
USP. É professor na UNILA - Universidade Federal da Integração Latino
Americana. Contato:[email protected].
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direção capital-interior (presos, famílias e outros visitantes, fornecedores), bem como diversas mudanças na vida
de relações sociais, políticas e econômicas dos pequenos
municípios do interior.
Em muitas entrevistas realizadas pela grande mídia ou
canais alternativos de comunicação2, parte da população local
demonstra grande sentimento de desaprovação com a interiorização das penitenciárias; é comum ouvir dos habitantes
das pequenas cidades que as condições de vida e tranquilidade têm piorado em locais cuja fama já foi a da vida pacata:
“mandam para cá os problemas de São Paulo, mas não as
soluções para nossos problemas [locais]”; “o fim do inferno
do Carandiru significou o fim do sossego no interior”; “queríamos uma universidade ou indústria, não uma prisão”.
Todos esses argumentos demonstram desagrado dos
habitantes das pequenas localidades que têm recebido
novas unidades prisionais em detrimento de outros
investimentos sociais e produtivos desejados.
Início da interiorização do sistema penitenciário
A partir dos anos 1980, aumenta a tensão social nas
grandes cidades paulistas como consequência de uma crise
política e econômica coincidente com o fim da ditadura
civil-militar, mas resultante das políticas implementadas
durante o período de exceção. Houve grande aumento
da pobreza e do desemprego, juntamente com um apelo
político por parte das classes médias e das elites por
ampliação da repressão policial, resultando em maior
criminalização dos mais pobres e aumento exponencial
do aprisionamento.
110
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Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
O aumento do número de presos deteriorou ainda mais
as já péssimas condições dos sistemas de detenção e penitenciário da capital, constituídos principalmente por celas nas sedes de Distritos Policiais (DPs) – para os presos
provisórios –, e a Casa de Detenção de São Paulo, como
destino de grande parte dos condenados na capital.
Entre 1980 e 1990, apesar das seguidas crises nas
unidades prisionais da capital e da região metropolitana
de São Paulo, não houve diminuição no ritmo do
aprisionamento. Assim, aqueles locais passaram a
revelar toda a mazela da política social da época,
centrada em políticas repressivas, com sucessivas crises
caracterizadas por rebeliões, mortes e fugas. Esses eventos,
incansavelmente explorados de forma sensacionalista pela
grande mídia escrita e televisiva, promoviam enorme
publicidade negativa para os governos da época.
Pela ampla cobertura e difusão midiáticas da crise
prisional, seus efeitos também atingiram outros milhões
de pessoas, que indiretamente sentiram o terror do
cotidiano carcerário que aterrorizava diretamente os
moradores do entorno das unidades prisionais da capital e
da região metropolitana. Esses eventos contribuíram para
a enorme rejeição à presença das unidades prisionais nas
áreas densamente povoadas do Estado.3
Diante desta situação caótica, os governos da época
se recusavam a admitir que, mesmo com a aceleração
do aprisionamento, a violência criminal continuava a
aumentar aceleradamente. A saída política encontrada
foi a de retirar dos grandes centros urbanos a enorme
massa carcerária que não parava de crescer, e alocá-la em
pequenos municípios onde a visibilidade dos problemas
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seria mínima, e as perdas políticas – pelo número reduzido
de eleitores neles existentes, ou possibilidades de atrair a
atenção da grande mídia –, insignificantes.
Com o objetivo de diminuir a tensão metropolitana,
tendo como apelo resolver o problema da superlotação, falta de vagas e aumento do aprisionamento, outras regiões do
território paulista passaram a ser requisitadas, com frequência cada vez maior, para expansão do sistema penitenciário
estadual. Este, então, ultrapassou os limites metropolitanos,
passando a utilizar o território dos pequenos municípios
do interior para isolar pessoas presas nos grandes centros
urbanos, criando um grande fluxo penitenciário em direção
ao interior do Estado de São Paulo e trazendo diversas implicações, como será visto adiante.
Sob outra ótica – relacionada ao discurso do medo
que alimenta a sensação de insegurança e que sustenta
respostas políticas ineficazes porque não alteram as
estruturas da sociedade –, ignora-se a verdadeira causa
das contradições sociais concentradas nas desigualdades e
violência estrutural existentes principalmente nas grandes
cidades e metrópoles, como São Paulo.
Sob um viés político e ideológico, a centralidade da
questão penitenciária contemporânea no Brasil decorre
de uma associação quase direta e imediata, mas simplista
e incorreta, feita pela grande mídia, entre a prisão e o controle social da violência. O discurso da violência, também
bastante lucrativo para a mídia e a indústria do controle do
crime, alimenta um enorme sentimento de insegurança que
se confunde com o medo de se viver e se estar nas cidades,
ou com a parcela desconhecida de seus problemas estruturais
ou conjunturais. Torna-se, assim, comum a afirmação de que
112
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verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
“deve-se prender mais para diminuir a violência na sociedade”4, exigindo-se das autoridades e governos a ampliação
do aprisionamento na tratativa de problemas sociais como
as profundas desigualdades, o desmantelamento das escolas
e o estímulo midiático a um consumismo crescente e sem
freios, como sinônimo de status e realização social. Alimenta-se a crença de um inimigo interno, em detrimento da
melhoria de condições de vida para uma grande maioria de
pobres, miseráveis e excluídos. Avançava o Estado de Polícia, enquanto regredia o Estado de Direito no país.5
De forma inconsequente, com a transferência do
problema penitenciário para o interior, ignorava-se em
profundidade todas as implicações e agentes sociais
envolvidos, sendo os principais os prisioneiros, suas
famílias e a sociedade desses pequenos municípios do
interior do estado de São Paulo que passaram a receber
as novas prisões. No entanto, outros laços foram criados,
decorrentes dos fluxos que passaram a existir entre os
grandes centros urbanos e as pequenas localidades,
pelo movimento de pessoas (presos, policiais, agentes
penitenciários, visitantes), de recursos (construção e gestão
das novas unidades prisionais), de normas e de ordens.
Esse problema não é recente, mas possui um marco
histórico que merece ser resgatado, e se confunde com
a política que tem sido implementada no estado de
São Paulo, ao menos nos últimos vinte anos, e que tem
como resultado uma forte expansão territorial do sistema
penitenciário paulista em direção aos pequenos municípios
do interior do estado, com múltiplas e complexas relações
com os agentes políticos e econômicos locais e estaduais.
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Usos do território como categoria de análise social
No estado de São Paulo, a prisão ocupa posição cada vez
mais central na vida social, pois “se prendeu mais nos últimos
15 anos do que nos 100 anos anteriores”, como costuma se
gabar o governador ou altas autoridades da Secretaria de Administração Penitenciária Paulista (SAP)6. A interiorização
do sistema penitenciário paulista, decorrente de uma política
territorial e de um planejamento seletivo, tem modificado o
quadro de vida em pequenos municípios do interior, antes
relegados a atividades agrícolas ou àquelas decorrentes do
funcionamento do “circuito inferior da economia urbana”7.
Nessa nova etapa da divisão territorial do trabalho e das
funções do Estado no território paulista neste início do século
XXI, os municípios do interior passam a ser requisitados a
oferecerem seu território economicamente estagnado para
implantação de um novo negócio, da forma que assume o
sistema penitenciário contemporâneo. Passa-se a desaguar
nesses “pequenos espaços” do interior os produtos do controle
social da miséria exercido pelo Estado Policial nas periferias
pobres das grandes metrópoles paulistas.8
A opção política pela interiorização teve sustentação em
uma condição encontrada em muitos municípios paulistas:
a estagnação econômica em uma grande região do estado
constituída, em maior parte, por pequenos municípios
pouco dinâmicos e mal conectados às demandas e fluxos
econômicos internacionais, para os quais se voltou a política
de Estado em tempos de globalização da produção e da
economia mundial.
As áreas mais ricas do estado de São Paulo, conectadas
e servindo às demandas econômicas nacionais e internacionais, são também aquelas mais dinâmicas. Porém, elas con114
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verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
figuram em seu entorno enormes periferias como produtos
da divisão territorial e social do trabalho, que encontram
em sua condição geográfica a precariedade da infraestrutura e das formas de sobrevivência das parcelas mais pobres
dos trabalhadores urbanos. Para esses trabalhadores, mora-se mal, mas o custo da moradia é mais baixo, o que permite às empresas o pagamento de salários menores e, desse
modo, a maximização da extração da mais-valia do trabalho
dessa parcela dos trabalhadores periféricos. Nessas periferias pobres das áreas mais ricas, impera o Estado Policial
como mecanismo de controle social da desta população via
repressão policial e aprisionamento.9
Já a escolha para a implantação das novas penitenciárias
coincide com as áreas mais pobres no interior do estado,
nos territórios dos pequenos municípios – aqueles pouco
conectados às demandas e fluxos econômicos nacionais e
internacionais, o que resulta em um tipo de modernidade
seletiva – a fim de viabilizar a instituição penitenciária
com recursos da ordem de bilhões de reais custeados pelo
governo estadual, mas geradores de outras demandas para
os governos locais (como investimentos em saúde, educação
e assistência social), quase sempre sem contrapartida
dos governos estadual ou federal. São essas áreas que,
agora refuncionalizadas pela implantação das novas
penitenciárias, passarão a abrigar outros fluxos decorrentes
do funcionamento das penitenciárias, sobrecarregando a
gestão local e alterando as relações sociais e econômicas.
Desse modo, essa política territorial promove uma subdivisão do território do estado em duas grandes regiões: uma
que se torna espaço privilegiado dos investimentos produtivos, conectada aos grandes fluxos de capital nacionais e internacionais; e outra que se encontra, há bastante tempo, em
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estágio de estagnação ou depressão econômica, cujas demandas econômicas são geradas, quase sempre, localmente. O
governo estadual, ao valorizar e aprofundar essa condição regional histórica por meio do planejamento territorial das penitenciárias, contribui para agravar as desigualdades espaciais
já bastante significativas na totalidade do território estadual.
Prefeitos e prisões
Diante do grande projeto do governo estadual de
interiorização da questão penitenciária, havia a necessidade
de conseguir apoio ou adesão dos prefeitos dos pequenos
municípios do interior diante da nova realidade que se
instalara no país após a Constituição de 1988 – com a
maior autonomia política (sem contrapartida econômica)
que é oferecida aos pequenos municípios brasileiros.
Em relação ao posicionamento político referente à
interiorização penitenciária, os prefeitos poderiam ser
organizados em dois grandes grupos10: aqueles favoráveis
ao processo (que acreditavam que a nova economia
promovida pela penitenciária em seu município poderia
reverter o quadro de estagnação econômica), e aqueles
contrários, por acreditarem que a penitenciária agravaria a
situação de insegurança no município.
Com a ampliação do uso da palavra insegurança para além
da questão criminal, pode-se considerar como alguns de seus
significados: incerteza, ausência de garantia contra arbitrariedades, sensação de proximidade do perigo, hesitação, falta
de convicção. No sentido jurídico, a falta de garantias de direitos fundamentais produz insegurança ou medo (de não se
ter acesso à saúde, de faltar trabalho, de não se ter onde mo116
verve, 25: 109-128, 2014
verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
rar), o que também pode conduzir a um conceito geográfico:
a insegurança produzida pela carência ou precariedade de
infraestrutura e serviços fundamentais disponíveis, em todas
as localidades, para todas as pessoas. Nesse sentido, a insegurança decorre do fato de a pessoa não ter perto de si, ou
facilmente acessível, tudo o que é produto tanto da natureza,
quanto do trabalho humano, e que seja indispensável à vida.
O medo da violência criminal também produz
insegurança e leva a reações muitas vezes despropositais e que
não atacam suas causas, além de ampliarem desigualdades
ou produzirem novas violências – a do carro blindado, a
da cerca elétrica, a do segurança ou policial armado, a dos
condomínios fechados, a das prisões –, todas elas gerando
mais medo e novas inseguranças. Diante das possibilidades
do mundo contemporâneo e da velocidade incessante das
inovações tecnológicas, bem como da seletividade de sua
implantação espacial, modernizações incompletas resultantes
desse processo também reproduzem esse sentimento de
insegurança – do medo do atraso,da obsolescência tecnológica,
ou da utópica e incessante busca da invulnerabilidade diante
do novo, desconhecido ou imponderável11.
De forma mais simplista e alheia a esta compreensão
maior do que significaria produzir segurança social
de forma estrutural, parte dos prefeitos de municípios
estagnados economicamente passou a considerar que o
sistema penitenciário pudesse ser um novo gerador de
emprego e renda para a população local12, bem como
poderia trazer outros benefícios indiretos ao município,
como o estímulo ao comércio ou ampliação da transferência
de recursos estaduais ou federais13.
No entanto, os principais beneficiários desse processo
têm sido os pequenos comerciantes, como proprietários de
verve, 25: 109-128, 2014
117
25
2014
hotéis, pousadas, pequenos restaurantes, supermercados, e
donos de táxis. Eles passaram a atender tanto os funcionários
quanto as famílias dos presos nos finais de semana, quando
há visitas. Segundo reportagem do jornal Valor Econômico
de dezembro de 2012, parte significativa desses municípios
possuía contextos muito particulares, dentro dos quais as
prisões tinham se tornado sinônimo de oportunidades14.
Porém, nas palavras de uma entrevistada para a realização
deste artigo,“embora a situação seja presenciada em qualquer
estabelecimento prisional, quando analisada, se nota um
paradoxo, pois o impulso econômico das cidades em que
as penitenciárias estão localizadas é ocasionado a partir das
dificuldades e restrições pelas quais todas as famílias dos
presos passam para poder visitar seus parentes”15.
A dinâmica econômica local produzida pelas
penitenciárias tem origem no descaso do Estado em
oferecer aos presos itens de necessidade básica como
alimentos e produtos de higiene, levando as famílias a
adquiri-los no comércio local16, antes dependente apenas
das demandas locais. Desse modo, uma porcentagem
da renda das famílias pobres da capital também passa
a ser direcionada para o interior, dinamizando parte do
comércio e serviços no entorno das novas penitenciárias.
Banimento dos presos como punição às famílias
Em um intervalo de 10 anos, um dos períodos de
mais forte expansão penitenciária paulista ocorrido entre
1997 e 2006, aproximadamente 1/3 dos recursos para
construção ou reforma de unidades prisionais para presos
temporários – os Centros de Detenção Provisória (CDPS)
– foram gastos em municípios localizados a até 200 km
118
verve, 25: 109-128, 2014
verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
da capital do estado (caso de Campinas, Osasco, Taubaté
e Hortolândia, entre outros). 58% foram utilizados
para construção de unidades prisionais localizadas em
distâncias superiores a 300 km da capital.17
Ainda em relação à distância, a maior parte das novas
penitenciárias – unidades para presos condenados – foi
construída a mais de 500 km da capital (caso de Dracena,
Pracinha, Osvaldo Cruz e Reginópolis), e consumiu R$ 218
milhões, ou 31% do total. Dentre inúmeras implicações,
essa distância acarretará maior gasto no deslocamento
dos presos para audiências e escoltas na capital ou na
região metropolitana, além de confrontar diretamente a
Constituição Brasileira que proíbe pena de banimento e
que garante o direito aos presos de receber visitas18.
Merecem destaque nessa análise dois municípios cujos
territórios foram utilizados para construção de Centros
de Progressão Penitenciária (CPPs)19. As cidades de
Pacaembu (672 vagas e 935 presos em 2011) e Valparaíso
(672 vagas e 918 presos) estão localizadas a mais de
500 km da capital. A primeira tem população total de
13,2 mil habitantes e a segunda, 22,5 mil moradores,
segundo o censo demográfico de 2010, realizado pelo
IBGE. Com baixa densidade demográfica, pouca oferta
de empregos e tradição agropecuária, estes municípios
devem enfrentar muitas dificuldades para empregar
presos de origem em grandes centros urbanos. Portanto,
a escolha da localização dos dois CPPs não teve como
critério central a funcionalidade da prisão, nem a origem
dos presos. O isolamento pela distância, a facilidade de
encontrar terrenos, a menor resistência da população e dos
governantes locais têm sido imperativos maiores para a
escolha da localização da penitenciária.
verve, 25: 109-128, 2014
119
25
2014
Roteiro de visitas à prisão
Consta também na Constituição Brasileira que a
pena deve ser aplicada de forma individualizada.20 Para
além do significado jurídico dessa afirmação (garantia
de julgamentos individuais, por exemplo), a implantação
de unidades penitenciárias no interior do estado tem
agido como forma de punição do Estado às famílias,
principalmente aquelas mais pobres, ao privá-las do
contato ou dificultar sua visita aos parentes aprisionados.21
Já para o Estado, há uma escolha estratégica na localização das novas penitenciárias, sendo a distância utilizada
inclusive como fator de controle sobre o comportamento
dos presos, que são ameaçados de sofrer transferência para
locais distantes de suas famílias caso se comportem diferentemente do desejado pela instituição penitenciária.22
Para aquelas pessoas que se lançam à extensa e cansativa
jornada para visitação, geralmente em finais de semana,
a rotina é bastante dura. Os grandes deslocamentos
entre os locais de origem das famílias dos presos até as
penitenciárias são feitos, geralmente, de forma precária,
em transportes muitas vezes de baixa qualidade (muitos
deles clandestinos), mas que percorrem um longo trajeto,
tornando a viagem muito cansativa e desgastante.
Na capital, a maior parte dos visitantes encontra-se na
Rodoviária da Barra Funda, localizada na Zona Oeste da
cidade, onde chegam de diversos locais e regiões no entorno
da metrópole, do centro e da periferia, muitos inclusive de
outros municípios da região metropolitana ou do litoral, e
de onde dirigem-se para diversos municípios do interior
em uma jornada que pode durar 10, 12, 15 horas ou mais
até chegarem ao seu destino final de visitação.
120
verve, 25: 109-128, 2014
verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
Mesmo assim, nessas piores condições, os custos dessas
viagens são altos, comprometendo parte do orçamento de
famílias pobres que já sobrevivem com grandes dificuldades
financeiras. Há, então, grande contraste entre a pobreza das
regiões de origem das famílias dos presos e os montantes
gastos para gestão do sistema penitenciário paulista23. Bem
como ocorrem outros gastos das famílias com o jumbo,
constituído de produtos de limpeza, higiene, alimentos e
remédios que não são fornecidos pelo Estado. Produtos que,
adquiridos nas pequenas localidades no entorno da prisão,
movimentam a economia local24, em detrimento da melhoria
de sua própria condição econômica em seus locais de origem.
A grande maioria dos visitantes das penitenciárias
masculinas é constituída por mulheres de todas as idades,
muitas delas acompanhadas de crianças (seus filhos ou
netos). Muitas vezes, o tempo da visita consome todo
o final de semana, impedindo essas mulheres de se
dedicarem a outras atividades nesses dias.
Ao chegar ao município onde se localiza a penitenciária e
aguardar o início do horário de visitas, o grupo de mulheres
se divide. Aquelas com um pouco mais de recursos podem
se instalar em pensões ou hotéis localizados nos arredores
da prisão, já muitas outras se dirigem diretamente para as
proximidades do portão principal da penitenciária, onde
montam barracas formando acampamentos improvisados e
precários para aguardarem as longas horas de espera até a
abertura dos portões, em todas as épocas do ano, sofrendo os
efeitos das intempéries do clima ou de sua condição social.
Em seguida, em geral em torno das 7h, após a distribuição
de senhas pela penitenciária (em número limitado, por
dia de visita), já trajando vestes julgadas adequadas pela
instituição penitenciária25, surge uma nova etapa de consverve, 25: 109-128, 2014
121
25
2014
trangimento, sofrimento e humilhação, principalmente
para as mulheres, por conta da revista íntima26. A revista
obrigatória (também chamada de revista vexatória, por
conta das práticas implementadas em nome da segurança),
é outra forma de violência praticada pelo Estado através
da totalidade das instituições prisionais do estado de São
Paulo contra os mais pobres27. Esta não é a única violência
cometida contra os visitantes, mas talvez seja a mais grave.
Apesar de haver um regramento da SAP para tratamento
tanto dos visitantes quanto dos presos, contido em um tipo
de cartilha de “direitos e deveres”, faz-se bastante elevado
o grau de discricionariedade dos funcionários em cada
unidade prisional. Por enfrentarem todas essas adversidades
para continuarem a se relacionar com seus entes queridos, é
comum as mulheres visitantes se chamarem de “guerreiras”,
ou mulheres com “proceder de guerreiras”28.
Conclusão
O processo de interiorização das penitenciárias paulistas
revela diversas contradições, dentre elas, as formas de execução de algumas políticas de Estado na gestão da miséria,
ou de como ele promove usos diferenciados do território
paulista, aprofundando desigualdades socioespaciais pelo
planejamento territorial e organização espacial do sistema
penitenciário paulista.
Por um lado, temos um território extremamente fluido e
moderno, aquele conectado aos grandes fluxos nacionais e
internacionais e priorizado para receber os “investimentos
e obras” nobres do Estado. Por outro, temos uma grande
região estagnada economicamente, constituída por centenas
de pequenos municípios do interior cujos territórios têm
122
verve, 25: 109-128, 2014
verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
sido utilizados como recurso para a implantação seletiva
das novas unidades penitenciárias localizadas, muitas
vezes, a centenas de quilômetros dos locais de origem dos
prisioneiros paulistas – os grandes centros urbanos e regiões
metropolitanas.
A pena privativa de liberdade, diante da nova geometria
do sistema penitenciário paulista, assume também
uma função de banimento, trazendo inúmeras outras
implicações para os presos e suas famílias. Dentre várias
delas, há grande ônus pessoal e financeiro aos familiares
por conta dos enormes deslocamentos realizados por parte
dos visitantes que continuam a manter laços sociais com os
presos condenados, constituindo-se a dimensão espacial do
sistema penitenciário como uma punição também a eles.
Sob o aspecto da aprovação da política penitenciária,
na escala local autorizam este processo apenas aqueles
comerciantes que obtêm vantagens econômicas diretas com o
funcionamento da nova penitenciária, ou parte dos prefeitos
interessados em dinamizar a economia municipal, ou ainda
– como um fenômeno mais recente –, pela geração de
empregos públicos mais bem remunerados em comparação
com a média dos salários pagos in loco, pelo que muitos
jovens acabam por aprovar o processo de interiorização
penitenciária atualmente em curso no estado de São Paulo.
Ainda é bastante desconhecido este processo de
interiorização penitenciária em seus pormenores, o que
exige novas reflexões e pesquisas. De todo modo, já é
possível reconhecer como o território é utilizado pelo
Estado ou pelas famílias dos prisioneiros, e como pode
agravar sua situação de dor e pobreza como consequência
de mais uma forma de gestão da miséria pelo Estado.
verve, 25: 109-128, 2014
123
25
2014
Notas
Os 10 municípios são, em ordem alfabética: Campinas, Osasco, Ribeirão
Preto, São José dos Campos, Franca, Guarulhos, Santos, São José do Rio
Preto, São Paulo e Sorocaba, onde foram presas 43.713 pessoas de um total
de 89.245 em todo o estado de São Paulo.
1
São exemplos de programas onde apareceram essas entrevistas o “Profissão
Repórter: o dia da visita em presídios” e o “Fantástico” de 21/01/2007,
exibidos pela Rede Globo, e o programa “Plano de arborização urbana do
município de Sorocaba”, exibido pela Sorocaba TV Web.
2
“Somente este ano, 405 encarcerados escaparam em 52 fugas de delegacias.
Só de tentativas foram 44. Em 1998 os resgates livraram 145 homens e
ajudaram 2.301 condenados a fugir. Dos estabelecimentos penais escaparam
5.888 detentos no ano passado em todo o Estado. E até maio deste ano
mais 1.832 presos estavam foragidos. Foi-se o tempo que era seguro
morar próximo a uma delegacia. (...) Na Casa de Detenção, a mais lotada
do sistema, os sete mil presidiários estão saindo pelo ladrão, literalmente.
Tudo porque de 51.021 presidiários no início do governo Covas, em 1995,
o número saltou para 73.315, um crescimento de 43,69%. Com isso, a
situação, que já não era das melhores, se agravou nos últimos seis meses
quando a população carcerária bateu recordes históricos no Estado (...)”. Cf.
Luisa Alcade. “Saindo pelo ladrão. Superlotação carcerária ameaça implodir
sistema em São Paulo. Fugas aumentam e aterrorizam população” in Istoé
Independente. São Paulo, 25/08/1999.
3
Quase todas as emissoras de televisão reproduzem esse discurso de defesa
do aprisionamento como medida de controle da violência, como se pode
observar nos programas sensacionalistas “Cidade Alerta” (Rede Record)
e “Brasil Urgente” da Rede Bandeirantes de Televisão, por exemplo. No
discurso inflamado e diário dos apresentadores desses programas, violência
torna-se sinônimo de “crimes de sangue”, principalmente aqueles tipificados
no Código Penal Brasileiro como os homicídios e latrocínios, ignorando-se
outras expressões da violência (discursiva, simbólica, estrutural, econômica),
a partir de uma seletividade dos crimes que serão mostrados ou ocultados do
grande público, já que se tratam de programas de grande audiência nacional.
4
Cf. Eugênio Raul Zaffaroni. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro, Revan, 2007.
5
124
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verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
Pode-se consultar o posicionamento oficial do governo estadual no site
da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.
Disponível em: http://www.sap.sp.gov.br/ (acesso em: 01/02/2013).
6
Milton Santos. O Espaço Dividido. Os Dois Circuitos da Economia Urbana
dos Países Subdesenvolvidos. Tradução de Myrna T. Rego Viana. São Paulo,
EDUSP, 2004.
7
Loïcq Wacquant. “Prisões: a miséria atrás das grades” in Revista Mais
Humana. Niterói, v. 2, 2001. Disponível em: www.maishumana.com.br/
loic2.htm (acesso em: 23/08/2013).
8
Loïcq Wacquant. “A criminalização da pobreza” in Revista Mais Humana.
Niterói, 1999. Disponível em: www.maishumana.com.br/loic1.htm (acesso
em: 23/08/2013).
9
Uma análise acerca da política local, do uso da mídia e da produção
intencional do medo pode ser conhecida, com mais detalhes, no artigo de
Eda Góes. “A presença e a ausência da população penitenciária em pequenas
e médias cidades do interior paulista: dilemas de uma história recente” in
Projeto História. São Paulo, PUC-SP, n. 38, 2009.
10
Definição construída durante o desenvolvimento da tese de doutorado:
James Humberto Zomighani Jr. Desigualdades espaciais e prisões na era da
globalização neoliberal: fundamentos da insegurança no atual período. Tese
de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 2013.
11
Muitos jovens desses pequenos municípios que receberam as novas
penitenciárias passaram a nutrir o desejo de trabalhar como agentes
penitenciários como seu projeto de futuro, em vista dos salários em média
duas vezes maiores do que aqueles pagos pelo comércio e serviços locais.
12
Como os recursos do programa “Bolsa Família”, por exemplo, que
passariam a ser gastos pelas famílias dos condenados no comércio local.
13
“Originadas da expansão da cafeicultura, essas cidades possuem economia
baseada principalmente na agricultura. No núcleo urbano, a prefeitura é
quase sempre o principal empregador. A instalação de presídios trouxe nova
oportunidade de emprego e elevou a renda em circulação nas cidades. O
estímulo à economia foi evidente para os moradores”. Cf. “Presídios geram
negócios e empregos no interior de SP” in Jornal Valor Econômico. São Paulo,
07/12/2012.
14
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125
25
2014
Entrevista realizada com Talita Alessandra em 02/04/2014. Estudante
de jornalismo e moradora do município de São Paulo, realizou visitas a um
parente que se encontrava preso na Penitenciária de Hortolândia, na região
de Campinas, interior do estado de São Paulo.
15
“Nos fins de semana, as mulheres de presos lotam Balbinos. Elas gastam
entre R$100 e R$200. Montam na cidade o ‘jumbo’, formado de alimentos,
refrigerantes, cigarros e produtos de limpeza. E têm de cozinhar nas
pousadas, que oferecem fogão a R$3, jantar a R$5 e cama a R$15. A maioria
vem de excursão, cuja passagem de ida e volta custa R$70 para quem parte de
São Paulo”. Cf. Eduardo Nunomura. “Presídios causam inchaço em cidades
em SP” in O Estado de São Paulo. São Paulo, 28/10/2007. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,presidios-causam-inchacode-cidades-em-sp,71877,0.htm (acesso em: 05/11/2007).
16
O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo analisou, entre 1997 e
2006, processos de prestação de contas do Poder Executivo estadual que
totalizaram gastos de R$711 milhões para construção ou reforma de
unidades penitenciárias localizadas em 68 municípios paulistas.
17
Constituição Brasileira de 1988. Título II, Capítulo I, Artigo 5º, XLVII,
“d” “Não haverá penas de banimento”. Ou ainda, no documento da Secretaria
de Administração Penitenciária, onde constam os “Direitos e deveres dos
presos”, em sua Seção I, Artigo 23, item III consta como direito dos presos
“o de receber visitas”.
18
Unidades para presos que cumprem pena em regime semi-aberto, e que
podem ter autorização para saída a trabalho.
19
Constituição Brasileira de 1988. Título II, Capítulo I, Artigo 5º, XLVI “A
lei regulará a individualização da pena”.
20
“Quando o companheiro da gente é preso, somos presas junto e submetidas
às mesmas humilhações. Funciona do mesmo jeito, nos tratam como
animais”. Depoimento de esposa de um preso condenado ao jornal SPresso
em 01 abril de 2014. Disponível em http://spressosp.com.br/2014/04/cadavisita-e-um-estupro/ (acesso em: 02/04/2014).
21
“Com base no princípio da regionalização das unidades prisionais e sob
os aspectos técnicos, ambientais e de segurança, a administração desta
Secretaria, verificou a necessidade de que tais prisões sejam edificadas
em municípios estratégicos, para que abriguem presos que se encontram
recolhidos nas Cadeias Públicas próximas, bem como, recolham outros que
22
126
verve, 25: 109-128, 2014
verve
Cartografias da interiorização penitenciária no estado de São Paulo
vierem a ser detidos, por meio do que se denomina ‘inclusão automática’,
de tal maneira que os vínculos familiares, principalmente com ascendentes
e descendentes, possam ser mantidos. Nesse sentido, cumpre salientar
que a possibilidade de maior aproximação do preso à família, contribuirá
decisivamente para o processo de recuperação e para atenuar a ansiedade
motivada pela privação de liberdade, o que certamente tornará mais difícil o
cometimento de faltas disciplinares, uma vez que o preso passará a ter receio
de ser transferido”. Resposta às perguntas do roteiro de entrevista realizada
com o Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo
como etapa de elaboração da pesquisa para realização de tese de doutorado.
Cf. James Humberto Zomighani Jr., 2013, op cit., p. 421.
Segundo os orçamentos da Secretaria de Administração Penitenciária
para 2012, cerca de R$185 milhões por mês ou R$2,2 bilhões por ano.
23
“Sorte de Ailton Carlos Rigoto, dono do Serv Bem. O supermercado
existe há 15 anos, mas até antes do presídio Ito, como o microempresário é
conhecido, só tinha um carro, ‘um gol quadrado’. Hoje tem outros três novos.
Seu comércio é o posto de abastecimento para as mais de 200 visitantes.
‘Como comerciante, melhorou muito, mas não digo pelo resto da cidade. A
maioria do povo brasileiro é preconceituoso, e não vê que se estão presos é
porque estão pagando pelos crimes’”. Cf. Eduardo Nunomura, 2007, op. cit.
24
Em muitas penitenciárias há permissão para entrar calçando somente
chinelos, pois sapatos são proibidos, bem como não são permitidas roupas
justas e decotadas, acessórios femininos (como brincos, anéis e pulseiras),
dentre outros objetos avaliados pelos agentes penitenciários como tendo
potencial de serem transformados em “armas”.
25
A mulher é obrigada a se despir completamente, ficar de frente e de costas,
e se agachar diversas vezes enquanto a funcionária inspeciona seus órgãos
genitais.
26
Uma das visitantes de uma penitenciária do interior de São Paulo não
identificada por conta da revista vexatória disse que “cada visita é um
estupro”. Jornal SPresso, 01/04/2014.
27
Ver, por exemplo, o trabalho de Jacqueline S. Ferraz de Lima. “Proceder
de guerreira: considerações acerca de construções morais” in III Seminário
Internacional Violência e Conflitos Sociais: ilegalismos e lugares morais. Ceará,
Universidade Federal do Ceará, 2001.
28
verve, 25: 109-128, 2014
127
25
2014
Resumo
A interiorização do sistema penitenciário configura-se, desde os
anos 1990, como uma nova forma de gestão territorial da miséria pelo Estado de São Paulo. Os grandes deslocamentos dos
presos e de suas famílias, que se configuram em nova forma de
banimento – nova característica da penitenciária paulista no
período contemporâneo – aprofundam desigualdades socioespaciais e agudizam a situação de dor e pobreza das famílias dos condenados, uma vez que também são punidas pela nova geometria
do sistema penitenciário paulista.
Palavras-chave: sistema penitenciário paulista, banimento,
famílias dos prisioneiros.
Abstract
The migration of the penitentiary system to the countryside,
since the 1990s, becomes a new form of territorial management
of misery by the state of São Paulo. The large displacements of
the inmates and their families – that are configured in a new
form of banishment, new feature of São Paulo facilities in the
comtemporary period, sociospatial inequalities expanding and
sharpening the situation of pain and poverty of families of
inmates, they are also punished by the new geometry of the São
Paulo prision system.
Keywords: São Paulo penitentiary system, banishment, families
of prisoners.
Cartographies of the penitentiary interiorization in the state
of São Paulo, James Humberto Zomighani Júnior.
Recebido em 05 de abril de 2014. Confirmado para publicação
em 10 de abril de 2014.
128
verve, 25: 109-128, 2014
verve
o dispositivo lúdico e artístico
da educação planetária
eliana pougy
Modulações da gestão escolar
Desde o final do século XX, os gestores das escolas
reguladas pelo Estado brasileiro, tanto públicas como
particulares, são oficialmente livres para escolher o seu
modelo administrativo-pedagógico1. Entretanto, caso
queiram praticar uma educação de qualidade e produzir uma
escola cidadã, são orientados a praticar a gestão inclusiva
e democrática e a convidar a sociedade civil organizada
a se tornar cogestora na educação das crianças e jovens
brasileiros. Por isso, além do Estado, as empresas, a mídia,
a comunidade escolar e do entorno da escola, a família dos
estudantes e as próprias crianças e jovens estão tentando
fazer a sua parte, cada vez mais e com mais intensidade.
Assim, gradativamente, essa forma de gestão vem
substituindo a gestão disciplinadora e discriminatória da
escola tradicional. Mas será que essa cogestão entre Estado
e sociedade civil, inclusiva e democrática, é mesmo nãoautoritária, como afirmam seus adeptos?
Eliana Pougy é doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP (bolsista
FAPESP, participante do Projeto Temático FAPESP Ecopolítica), mestre
em Educação pela FE-USP. É autora de livros didáticos e paradidáticos de
Arte, poeta e romancista. Contato: [email protected].
verve, 25: 129-144, 2014
129
25
2014
Como nos mostram os artigos de Alfredo VeigaNeto e Maura Corsini Lopes2, de Julio Groppa Aquino3
e a pesquisa de Giceli Maria Cervi4, a gestão inclusiva e
democrática nada mais é do que um dispositivo do governo
das condutas infanto-juvenis e funciona de forma até mais
autoritária que o dispositivo da gestão discriminatória e
disciplinadora da escola tradicional, uma vez que acaba
por minar as resistências e as práticas de liberdade. Porém,
como isso ocorre?
Dispositivo inclusivo e democrático
Desde as pesquisas realizadas por Michel Foucault5,
é impossível deixar de constatar o enorme poder que os
saberes médicos exercem na educação de crianças e jovens.
Basta olhar para a participação ativa dos psicólogos no
ambiente familiar e escolar e o intenso suporte médico e
psiquiátrico que tem sido impingido à educação infantojuvenil. Juntamente com a construção social de uma infância
e de uma adolescência tuteladas, mas ao mesmo tempo
possuidoras de direitos, temos presenciado há pelo menos
um século um intenso trabalho higienista de diagnóstico,
classificação e tratamento de crianças e jovens anormais
que precisam ser normalizados.
Contudo, hoje em dia, a “bola da vez” são as verdades
criadas pelas pesquisas neurocientíficas, que vêm permitindo
a criação da neuropedagogia – ciência que busca criar verdades
sobre como os diferentes tipos de cérebro ou inteligências
humanas funcionam ao aprender, e também como a ação
presencial e virtual dos professores, mediadores, educadores,
orientadores ou facilitadores, podem auxiliar nesse processo.
Não obstante, mais do que pensar estratégias didáticas, a ação
130
verve, 25: 129-144, 2014
verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
neuropedagógica vem ocorrendo principalmente por meio
da medicalização com remédios tarja preta6 em crianças e
jovens diagnosticados como transtornados, de acordo com a
normalização do normal 7 típica do nosso tempo.
Por conta disso, em maio de 2013 o prefeito do município de São Paulo, Fernando Haddad, sancionou a lei
15.719 que cria o serviço de assistência psicopedagógica em
toda a rede pública da cidade. A intenção da prefeitura é
que os psicopedagogos apoiem o trabalho dos professores,
coordenadores, alunos e familiares diagnosticando, apoiando e prevenindo problemas de aprendizado na Educação
Infantil e Ensino Fundamental, e solucionando os problemas que a inclusão de crianças e jovens com necessidades
especiais na escola regular vêm causando.
Nesse sentido, a inclusão não deixa de ser uma
estratégia de governamentalidade muito mais sofisticada
que a exclusão e o posterior confinamento em outras
instituições, como o asilo, o hospital ou a prisão, porque ela
age criando modulações em que todas essas instituições se
mesclam. Além disso, faz com que todos sejam passíveis
de normalizações, inclusive os ditos normais, já que agora
todos somos encarados como transtornados pela medicina
e, consequentemente, vulneráveis pela seguridade social.
Em relação à gestão escolar democrática, é possível
afirmar que ela é um efeito das pressões realizadas pela
sociedade civil organizada depois das Grandes Guerras
e de Maio de 19688. Até pouco tempo atrás, esse tipo de
gestão acontecia apenas em escolas experimentais ligadas
a comunidades alternativas e afastadas do governo da
população realizado pelo Estado –­ práticas de liberdade
que ocorrem desde meados do século XIX.9
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131
25
2014
Entretanto, desde o final do século XX e início do
XXI, essas experiências escolares têm sido patrocinadas
pela sociedade civil organizada, principalmente por meio
de ONGs que, por sua vez, são patrocinadas pelo Estado.
Para tanto, as parcerias público privadas, ou PPPs, vêm
ganhando força e espaço na área educacional. No Brasil,
a primeira PPP da área educacional relacionada à gestão
não pedagógica aconteceu em Belo Horizonte. Em
2011, a Secretaria de Educação do município repassou a
construção e a gestão não pedagógica de 37 novas escolas
municipais para um consórcio de empresas, negócio cujo
estudo de viabilidade econômica, técnica e jurídica foi
realizado pelo International Finance Corporation (IFC),
órgão do Banco Mundial para o setor privado.
Porém, as PPPs que envolvem a gestão pedagógica
acontecem desde o final do século XX, principalmente
por meio da parceria da educação estatal com institutos
de empresas multinacionais e outras entidades ligadas
ao chamado terceiro setor. Essas parcerias envolvem a
contratação, por parte do Estado, de prestação de serviços de
formação continuada de gestores e professores, produção de
material didático e até mesmo ação docente. Outro serviço
prestado pelas entidades é a revenda de equipamentos,
como computadores, datashows, lousas digitais, entre outros,
imprescindíveis para uma “educação de qualidade”.
Até mesmo as educações homeschooling e unschooling,10
que se inspiram em experiências educacionais anarquistas
baseadas na autogestão e na não aceitação de modelos
escolares estatais, vêm buscando a aprovação, a regulação e
a cogestão do Estado a fim de serem legalizadas. No Brasil,
o Projeto de Lei 3179/12, proposto por um deputado da
bancada evangélica, busca a aprovação do MEC para
132
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verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
que as mais de 800 famílias adeptas do homeschooling e
do unschooling possam continuar a educar seus filhos fora
da escola, em casa ou numa vida supostamente nômade.
Entretanto, para comprovar para o Estado a eficácia da
educação que escolheram para seus filhos, essas famílias
vêm sendo obrigadas a replicar o modelo escolar dentro
de casa, utilizando o currículo e os materiais didáticos
indicados pelo governo brasileiro e de outros países
quando optam, por exemplo, por matricularem seus filhos
em cursos de escolas virtuais que podem ser acessadas de
qualquer lugar.
Modulações educacionais e cidadania planetária
As escolas democráticas, em especial, ganharam
destaque no Brasil e se tornaram objeto de estudo mais
recorrente apenas entre o final do século XX e início do XXI.
Inspiradas na educação russa, elas se caracterizam por dar
direitos de participação iguais para estudantes, professores
e funcionários por meio de assembleias. A primeira escola
declaradamente democrática e não-libertária do Brasil foi a
Escola Lumiar, criada em 2002 pelo empresário Ricardo
Semler e pela pesquisadora e educadora Helena Singer.
A escola foi eleita como uma das 12 mais inovadoras
do mundo, de acordo com uma pesquisa realizada pela
UNESCO, Stanford University e Microsoft. Em 2005
foi inaugurada a Lumiar Pública e, em 2010, a Lumiar
Internacional – ambas em Santo Antônio do Pinhal,
interior de São Paulo. Atualmente, conta também com um
instituto a fim de disseminar suas práticas.
Nesse mesmo fluxo de reforma escolar, ocorreu a Cúpula
Mundial de Inovação para a Educação (WISE) em
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133
25
2014
outubro de 2013, em Doha, capital do Qatar11 – encontro
organizado pela Fundação Qatar, com apoio da UNESCO
e de associações universitárias, além de outras organizações.
O evento reuniu 1.200 pessoas entre ministros, educadores,
estudantes, empresários, políticos, pesquisadores e líderes
sociais de mais de cem países, que se encontraram durante
três dias em palestras, workshops e mesas redondas.
O tema do encontro foi Reinventar a Educação para a
Vida e Irina Bokova, diretora geral da UNESCO, informou que, passados treze anos do Relatório Delors Educação, um Tesouro a Descobrir, chegou o momento de criar
novas linhas de pesquisa orientadas pelos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio. Para tanto, a UNESCO
se propôs a enfrentar a “realidade da escola que exclui”
e deverá começar um processo de pesquisa e divulgação
das experiências educacionais escolares e não escolares
que incluem a “vida” no processo de aprendizagem, e que
resultam na aprendizagem e permanência do estudante na
escola e na “melhoria” do ambiente escolar, em geral, possibilitadas pelas novas tecnologias.
Em novembro de 2013 aconteceu em Brasília a Primeira
Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova
Educação (I CONANE), criada pelo Coletivo Gaia Brasília,
que por sua vez faz parte da Gaia Education ­– organização
com mais de 1.300 ONGs associadas ao Departamento
de Informação Pública das Nações Unidas. O objetivo
do encontro foi congregar educadores e interessados em
alternativas para uma “nova educação” com exposição e
debates sobre práticas/experiências realizadas no Brasil.
Segundo seus organizadores, essa conferência foi uma
contribuição oficial à “Década da Educação para o Desen134
verve, 25: 129-144, 2014
verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
volvimento Sustentável” das Nações Unidas, o que significa,
na prática, mudar o fim da educação: se antes a educação servia para preparar para o trabalho na indústria, agora ela visa
preparar para o trabalho na empresa globalizada.12 Por tudo
isso, não é à toa que os princípios que regem o novo modelo
de educação estatal, as escolas democráticas que são “escolas apesar da escola”, são: democracia, diversidade, liberdade
com responsabilidade e sustentabilidade.
Expressão popular planetária e Pedagogia
Multicultural
É possível constatar, portanto, que uma nova governamentalidade vem atuando cada vez mais intensamente na
condução de condutas infanto-juvenis a fim de formatar cidadãos planetários, ou cidadãos locais e mundiais que
vivem em meio à globalização. A imagem de que todos
somos cidadãos de uma mesma biosfera, ou da representação de um planeta não mais dividido em países, mas
organizado em redes virtuais, vem sendo intensamente
construída pela publicidade das empresas multinacionais
e também pelos conteúdos produzidos e veiculados pelos
meios de comunicação de massa, além de estar se tornando
um tópico retransmitido nas salas de aula das escolas estatais.
A partir de orientações presentes em diversos documentos
criados pelo MEC, MinC, entre outros ministérios, e pela
ONU e UNESCO13, as modulações educacionais do século
XXI rompem territórios e fronteiras institucionais e estatais,
buscando, por meio do reconhecimento da globalização em
nosso cotidiano, valorizar a “expressão popular planetária”
que parte “de baixo para cima”, ou do “local para o mundial”.
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135
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2014
Para tanto, é preciso saber mais sobre as práticas culturais dos estudantes, dos docentes, da escola, da comunidade do entorno da escola e da comunidade em que os
alunos vivem por meio do mapeamento cultural – método
de pesquisa retirado da antropologia e uma das principais
orientações didáticas da Pedagogia Multicultural, inspirada principalmente na pedagogia de Paulo Freire14.
O mapeamento cultural busca desenhar, por meio
do diálogo e da troca simbólica, quais são as práticas
culturais dos participantes do mundo escolar a fim de
capturar práticas não-acadêmicas, “democratizando” o
saber e criando um “diálogo entre culturas”. Esse diálogo
funciona da seguinte forma: desvelam-se as práticas
culturais dos integrantes da escola, descobrem-se elos
entre saberes populares/locais e saberes eruditos/globais
e, depois, criam-se sequências didáticas em que o saber
popular e local se transforma numa porta de entrada
ou num assunto que serve para despertar o interesse
dos estudantes para o aprendizado de saberes eruditos
globais. Em suma, os saberes locais são “conectados” aos
saberes eruditos, mas também criam uma hierarquização
entre as diferentes formas de saber.
Por conta disso, estão sendo criados extensos bancos
de dados online, tanto por antropólogos como por
empresas midiáticas e organizações internacionais, como
ONU e UNESCO, com informações sobre as culturas
infantis15 e as culturas juvenis16 que podem ser acessados
por qualquer educador que queira capturar essas
manifestações e transformá-las em estratégias didáticas
que visam à pacificação das diferenças, criando conexões e
hierarquizações que minimizam embates e conflitos.
136
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verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
A construção do dispositivo ludoartístico
de pacificação das condutas
Quando nos aprofundamos nas culturas infantojuvenis, o
que vemos é uma profusão de jogos, brinquedos e muita arte.
Porém, se não contextualizarmos essas manifestações nos
jogos de poder da sociedade disciplinar e biopolítica, é possível
que criemos verdades universais sobre o comportamento
infantojuvenil, tal como afirmar, por exemplo, que as crianças
e jovens se expressam por meio do brincar e da arte.17
Com certeza, eles são muito mais complexos do que
isso. É como afirmou Jean-Luc Godard: as crianças são os
prisioneiros políticos dos adultos.18 Consequentemente,
resistem a esse aprisionamento. Podemos afirmar,
portanto, que as crianças e jovens que vivem no contexto
da sociedade e da escola disciplinar e biopolítica resistem
ao governo das condutas realizado pelas gerações mais
velhas principalmente por meio do brincar e da arte.19
Em outras palavras, as práticas culturais infantojuvenis
que se manifestam a partir daí nada mais são do que
resistências ao governo de suas condutas e à construção
de suas subjetividades em meio à sociedade disciplinar
e biopolítica. Conforme afirmou Foucault, as práticas de
liberdade, ou as resistências, são sempre contingentes, e
não uma essência ou um atributo universal.20
Assim, quando assistimos à construção de bancos de
dados com informações sobre a conduta infantojuvenil,
podemos afirmar, também, que outra importante
estratégia do governo sobre esta conduta na atualidade,
além da gestão democrática e da inclusão, é a captura de
suas práticas de liberdade, que seriam, no caso, o seu brincar
e a sua arte.
verve, 25: 129-144, 2014
137
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Sem dúvida, a escola planetária utiliza-se de um
outro dispositivo: o lúdico e artístico, a fim de promover
o “acolhimento”, desenvolver a “empatia”, aumentar
a “autoestima” de todos os envolvidos no processo
educativo, e, principalmente, fomentar uma “cultura de
paz” preferencialmente em locais de vulnerabilidade,
como em escolas públicas, cujo caráter “violento” vem
sendo construído há mais de um século pela burguesia21.
Além de buscar suas práticas na arte/educação22 e
na ludo-educação23, esse dispositivo também se vale
da arte-terapia – método psicológico que, por meio da
expressão artística, visa tirar dos alunos os seus conteúdos
mais íntimos: seus medos, inseguranças, fraquezas. E, ao
exporem suas intimidades, ou ao se tornarem vulneráveis e
frágeis, crianças ou jovens se “abrem para o aprendizado” e
aceitam sem pestanejar as verdades que lhes são impostas.
Nesse sentido, a escola planetária, ou a comunidade de
aprendizagem, deve ser alegre, receptiva, colorida, cheia
de música, dança, teatro! O espaço deve ser repleto de
brinquedos e jogos, e o aprender ludicamente vem se
tornando o modo mais sedutor para manter os alunos na
escola, sem que, aparentemente, haja uma resistência mais
explícita por parte deles.
Além disso, outra prática do dispositivo lúdico e
artístico da educação planetária é o ensino individualizado
com vistas à resiliência do estudante24. Afinal, quando
um ou mais educadores se dedicam exclusivamente a
uma criança ou a um jovem em especial, todos ganham
consciência de como o aluno aprende e, principalmente,
do quanto o aluno precisa da ajuda dos mais velhos para
isso, desenvolvendo assim uma retroalimentação entre
138
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verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
resiliência e o dispositivo ludoartístico, ou entre resiliência
e “humanização” do processo educativo25.
Não podemos deixar de lembrar que a resiliência está
diretamente relacionada ao conceito de vulnerabilidade,
condição de pessoas, e principalmente de crianças, que são
acusadas de viver em situação de risco, como pobreza, baixa
escolaridade dos pais, estresse perinatal ou baixo peso
no nascimento e deficiências físicas. Segundo Oliveira26,
resiliência e vulnerabilidade são duplos complementares
que incidem majoritariamente em crianças e resultam em
práticas de proteção individual por meio do autoritarismo
da psiquiatria e da medicalização.
Sem dúvida, os anéis de uma serpente são bem mais
complicados que os buracos de uma toupeira. Mas é
também dessa forma que, certamente, as resistências
infantojuvenis irão se manifestar.
Notas
Brasil. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.
Brasília, Secretaria de Educação Fundamental, MEC/SEF, 1998; Brasil.
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília, Secretaria
de Educação Fundamental, MEC/SEF, 2000.
1
Alfredo Veiga-Neto e Márcia Corcini Lopes. “Inclusão e
Governamentalidade” in Educação e Sociedade. Campinas, v. 28, n. 100 Especial, 2007, pp. 947-963.
2
Julio Groppa Aquino e Cyntia Regina Ribeiro. “Processos de
Governamentalização e a Atualidade Educacional: a liberdade como eixo
problematizador” in Educação e Realidade. Porto Alegre, UFRGS, n. 32, v.
2, 2009, pp. 57-71.
3
Maria Giceli Cervi e Luiz Guilherme Augsburger. “Gestão democrática
escolar: escola e sociedade de controle” in verve. São Paulo, Nu-Sol, n. 24,
2013, pp. 79-91.
4
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139
25
2014
Michel Foucault. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo,
Martins Fontes, 2002; Michel Foucault. História da sexualidade I: a vontade
de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
de Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 2009; Michel Foucault. “Crise da
medicina ou crise da antimedicina” in verve. Tradução de Heliana Conde.
São Paulo, Nu-Sol, n. 18, 2010, pp. 167-194.
5
O Brasil é o segundo consumidor mundial no uso de Ritalina em crianças
na idade escolar. Essa droga é recomenda para tratar Dislexia, Transtorno
do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e Transtorno
Opositivo-Desafiador (TOD) – diagnósticos “comuns” em crianças e jovens
das escolas brasileiras. Disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/
noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro
(acesso em: 10/07/2013).
6
Edson Passetti. “Poder e anarquia: apontamentos libertários sobre o atual
conservadorismo moderado” in verve. São Paulo, Nu-Sol, v. 12, 2007, pp. 1141. Para implicação dessa noção no governo dos transtornos, ver: Leandro
Alberto de Paiva Siqueira. O (in)divíduo compulsivo: uma genealogia na
fronteira entre a disciplina e o controle. Dissertação de Mestrado. São Paulo,
PEPG Ciências Sociais, PUC-SP, 2009.
7
Michel Foucault. O nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008.
8
Edson Passetti e Acácio Augusto. Anarquismos e educação. São Paulo,
Autêntica, 2008; Helena Singer. República de Crianças: sobre Experiências
Escolares de Resistência. Campinas, Mercado de Letras, 2010.
9
O homeschooling, ou ensino domiciliar, é o processo de ensino formal
realizado no domicílio do estudante, em geral executado por um familiar que
resida no mesmo local que ele, numa forma de resistência à educação formal
regulada pelo Estado. O unschooling é um método educacional e filosófico
que rejeita qualquer tipo de educação sistematizada, seja ela institucional
ou domiciliar. Os praticantes do unschooling acreditam que as crianças são
capazes de aprender a todo momento e em todas as situações, motivadas
pelo interesse próprio da idade.
10
Ver blog de Helena Singer: http://portaldoeducador.org/helena-singer/
(acesso em: 12/09/2013).
11
140
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verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
Ver vídeo de divulgação da educação democrática. Disponível em: http://
escolapoliteia.com.br/2012/descubra-educacao-democratica/ (acesso em:
03/10/2013).
12
Brasil. Brincar para todos. Brasília, MEC/SEE, 2005; Brasil. Critérios para
um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças.
Brasília, MEC/SEB, 2009; Brasil. Escola que protege: enfrentando a violência
contra crianças e adolescentes. Brasília, MEC, SECAD, 2007; Brasil. As metas
do Plano Nacional de Cultura. São Paulo, Instituto Via Pública/Brasília,
MinC, 2012; Brasil. Orientações técnicas-serviços de acolhimento. Brasília,
MDS, 2009; Brasil. Programa Município Educadores Sustentáveis / Ministério
do Meio Ambiente. Programa Nacional de Educação Ambiental. Brasília,
Ministério do Meio Ambiente, 2005; CE (Conselho da Europa). Livro
Branco sobre Diálogo Intercultural. Brasil, 2009; CGLU. Cidades e Governos
Locais Unidos – Comissão de Cultura. Agenda 21 da cultura. Brasil, 2008;
UCLG – United Cities and Local Governments. Culture and sustainable
development: examples of institutional and proposal of a new cultural profile.
Barcelona, 2012; UCLG. Culture: fourth pilar of sustainable development.
Barcelona, 2010; UNESCO Convenção sobre a proteção e promoção da
diversidade das expressões culturais. Brasil, 2006; UNESCO. Cultura de paz:
da reflexão à ação; balanço da Década Internacional da Promoção da Cultura de
Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo. Brasília, UNESCO/
São Paulo, Associação Palas Athena, 2010; UNESCO. Governança da
cultura em países em desenvolvimento. Paris, 2005.
13
A Pedagogia Multicultural também captura práticas educativas propostas
pela pedagogia de Paulo Freire, para quem escolas multiculturais eram
imprescindíveis. Para tanto, é necessário que professores e estudantes
encontrem-se naquilo que Freire chamou de Círculo de Cultura, onde
acontece o diálogo autêntico e a síntese cultural – ou o reconhecimento do
outro e o reconhecimento de si no outro. Segundo Freire, somente num
círculo de cultura é possível a educação como prática da liberdade e é somente
nele que o mundo pode ser relido em profundidade crítica. Esse círculo,
entretanto, não é um local tranquilo, controlado, uma vez que as consciências
são comunicantes e comunicam-se na oposição.
14
Ver: http://mapadobrincar.folha.com.br/ (acesso em: 11/09/2013);
http://www.territoriodobrincar.com.br/ (acesso em: 10/01/2014); http://
revistaescola.abril.com.br/brincadeiras-regionais/ (acesso em: 10/01/2014);
http://www.projetobira.com/ (acesso em: 10/01/2014);
15
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25
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Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/
unesco-resources-in-brazil/publications/ (acesso em: 15/08/2013); http://
portalyah.com/ (acesso em: 07/11/2013).
16
Ver Maria Ângela Barbato Carneiro e Janine J. Dodge. A descoberta do
brincar. São Paulo, Melhoramentos/Boa Companhia, 2007.
17
Essa afirmação foi feitas por Godard ao final da série de doze
documentários France, tour, détour, deux enfants que realizou em 1978 em
parceria com sua mulher Anne-Marie Miéville para a Antenne 2. Neles,
Godard conversa com duas crianças, um menino e uma menina, e avalia os
efeitos dos comandos da televisão em suas vidas.
18
Ver Julio Groppa Aquino. “Jovens ‘indisciplinados’ na escola: quem são?
Como agem?” in Simpósio Internacional do Adolescente. São Paulo, 2005.
Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=MSC0000000082005000100002&lng=en&nrm=abn (acesso em:
08/01/2014).
19
Para Foucault, a liberdade não é uma essência ou um atributo de um
Eu transcendental, mas sim uma ação contingente, ou seja, “emerge de um
processo histórico variável de negociação muito específico sobre diversas
racionalizações éticas que, por sua vez, operam por um padrão cultural de
racionalidades localizado e específico. Portanto, pelo fato dessas ‘práticas
de liberdade’ serem inerentemente relacionais (e, portanto, reversíveis),
contingentes e altamente contextualizadas, elas não estão suscetíveis
a nenhum tipo de definição inequívoca sobre o que ‘liberdade’ possa ser.
Nenhuma governamentalidade pode congelar nossas negociações sobre
a liberdade: não pelo fato do eu ser o epítome ou o lugar de alguma
resistência transcendental já pressuposta por todas as formas de ação
governamental, mas porque nunca nenhum regime de governo poderá
suprimir o inesperado e as relações sempre mutáveis constitutivas da nossa
experiência de liberdade, nem a condição de sua própria contingência como
um regime particular de governo. É assim que nós podemos entender
melhor Foucault quando afirma que não há melhor garantia da liberdade
do que ela mesma” (Sébastien Malette. “Foucault para o próximo século:
ecogovernamentalidade” in Revista Ecopolítica. São Paulo, Nu-Sol, v.1,
2011. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/
article/view/7654 (acesso em: 10/07/2013).
20
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verve
O dispositivo lúdico e artístico da educação planetária
Ver Michelle Perrot (org.). História da vida privada 4. – Da Revolução
Francesa à Primeira Guerra. Tradução de Denise Bottmann e Bernardo
Joffily. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
21
A arte/educação vem sendo proposta nos últimos trinta anos, no Brasil,
principalmente por Ana Mae Barbosa (A imagem no ensino da arte. São
Paulo, Perspectiva, 2002), com base nas propostas pedagógicas de Paulo
Freire, John Dewey, Robert Read, Michael Parsons e Elliot Eisner.
22
A didática lúdica vem sendo proposta nos últimos trinta anos, no Brasil,
principalmente por Tisuko Kishimoto (O jogo e a educação infantil. São
Paulo, Pioneira, 1994), com base, principalmente, na psicologia de Jean
Piaget, Lev Vygotsky, Henri Wallon e Donald Winnicott, na filosofia de
Huizinga e de Walter Benjamin e na sociologia de Gilles Brougère.
23
Resiliência é um conceito proveniente da física que define a flexibilidade
dos materiais após uma relação de tensão ou apreensão e seu retorno ao
estado anterior. Adaptado para a psicologia com base na teoria ecológica
do desenvolvimento humano, criada pelo psicólogo russo Bronfenbrenne,
o conceito de passou a ser definido como a capacidade de um indivíduo
de se adaptar frente às adversidades da vida por meio do apoio dos outros
e, principalmente, da consciência desse apoio. Cf. José Tavares (org.).
Resiliência e educação. São Paulo, Cortez, 2001.
24
Disponível em: http://conane.org/manifesto-por-uma-nova-educacao/
(acesso em: 10/07/2013).
25
Ver Salete Oliveira. “Política e resiliência – apaziguamentos distendidos”
in Revista Ecopolítica. São Paulo, Nu-Sol, v. 4, 2012. Disponível em: http://
revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/13067/9568 (acesso
em: 10/01/2014).
26
verve, 25: 129-144, 2014
143
25
2014
Resumo
O presente artigo visa mostrar como os dispositivos democrático,
inclusivo, lúdico e artístico da educação planetária vêm
produzindo uma autoritária pacificação de embates e conflitos
e, consequentemente, a manutenção da hierarquia social.
Palavras-chave: educação planetária, dispositivo lúdico e
artístico, sociedade de controle.
Abstract
This article aims to show how the democratic, inclusive,
playful and artistic dispositives of the planetary education are
producing authoritative pacification of conflicts and clashes,
thus maintaining social hierarchy.
Keywords: planetary education, ludic and artistic device,
society of control.
The ludic and artistic device of the planetary education,
Eliana Pougy.
Recebido em 15 de janeiro de 2014. Confirmado para
publicação em 20 de março de 2014.
144
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uma carta aberta da Pussy Riot
Nós, integrantes anônimas da Pussy Riot,
gostaríamos de agradecer a todas as pessoas
que nos apoiaram durante todo esse tempo, aos
que pediram a libertação de nossas integrantes
da prisão e aos que simpatizaram conosco e com
a nossa ideologia. Somos muito gratas a todos
vocês, e apreciamos e respeitamos profundamente
todos que contribuíram para a campanha global
da Pussy Riot neste momento difícil para nós.
Nosso esforço conjunto não foi em vão:
Putin teve que se curvar diante da pressão da
comunidade internacional e deixar Nadia e Masha
livres. Assim, o dia 23 de dezembro foi uma real
celebração para nós – o Dia de Liberação dos
presos políticos e a real vitória da libertação
de toda a Pussy Riot. Mas essa anistia,
certamente, não é o fim de nossos sonhos. Nós
pedimos justiça de fato: a completa abolição do
veredicto e o reconhecimento de todo o processo
criminal contra a Pussy Riot como ilegítimo.
Nós esperamos que a justiça seja restaurada
no dia 21 de fevereiro – aniversário de nossa
performance provocativa na Catedral do Cristo
Salvador, com a música “Mãe de Deus, leve o
Putin embora!”.
Nós estamos muito contentes com a saída da
prisão de Masha e Nadia. Estamos orgulhosas da
resistência delas contra o duro julgamento pelo
que tiveram que enfrentar, e pela determinação
delas em continuar, de qualquer maneira, a luta
que haviam iniciado durante o tempo em que
ficaram nas colônias penais.
Infelizmente, para nós, elas estão tão
empolgadas com os problemas nas prisões
russas que esqueceram completamente de nossas
aspirações e ideais: feminismo, resistência
separatista, luta contra o autoritarismo e o
culto à personalidade. Tudo isso o que, na
realidade, causou suas injustas punições.
Agora, não é segredo que Masha e Nadia não são
mais integrantes do grupo e que não participarão
de ações radicais. Agora elas estão envolvidas
em um novo projeto, agora elas são defensoras
institucionalizadas dos direitos dos presos.
E como se sabe, essa defesa é dificilmente
compatível com afirmações políticas radicais
e com trabalhos artísticos provocativos, que
suscitam temas controversos em meio à sociedade
moderna. Assim como a conformidade de gênero
não é compatível com feminismo radical.
A
pode
defesa
institucionalizada
proporcionar
a
crítica
dificilmente
das
normas
e
regras fundamentais que sublinham o próprio
mecanismo da moderna sociedade patriarcal.
Sendo uma parte institucional dessa sociedade,
tal defesa, dificilmente consegue ir além das
regras estabelecidas por essa sociedade.
Sim,
nós
perdemos
duas
amigas,
duas
companheiras de ideologia, mas o mundo ganhou
duas corajosas, interessantes, controversas
defensoras dos direitos humanos, e combatentes
pelos direitos dos prisioneiros russos.
Infelizmente, nós não podemos parabenizá-las
pessoalmente por isso, porque elas se recusam a
ter qualquer contato conosco. Mas reconhecemos
a escolha delas e sinceramente lhes desejamos
sucesso em sua nova carreira.
No momento, nós testemunhamos uma colisão
ultrajante: na medida em que Nadia e Masha são
o foco da mídia e da comunidade internacional,
elas reúnem multidões de jornalistas e pessoas
atentas a cada uma de suas palavras, mas até
agora ninguém as ouviu.
Em quase todas as entrevistas elas repetem que
deixaram o grupo, que não são mais Pussy Riot,
que agem em seus próprios nomes e que não se
envolverão mais em atividades de arte radical. No
entanto, as manchetes estão repletas de menções
ao nome do grupo, todas as aparições públicas
delas são declaradas como performances da Pussy
Riot, e a saída pessoal das duas do grupo é
tida como o fim de todo o coletivo. Ignoram o
fato de que no púlpito e na Catedral do Cristo
Salvador, não havia duas, mas cinco mulheres
vestindo balaclavas, e que na performance da
Praça Vermelha, havia oito participantes.
A eclosão desse mal-entendido se deu a partir
da afirmação pública da Anistia Internacional de
que o discurso de Masha e Nadia num concerto no
Barclays Center em Nova Iorque como a primeira
performance legal da Pussy Riot. Performance
cujo pôster, em vez de conter os nomes das
duas, mostrava um homem vestindo uma balaclava
e segurando uma guitarra sob o nome de Pussy
Riot,
enquanto
organizadores
espertamente
chamavam gente para comprar os caros ingressos.
Tudo isso é uma contradição extrema aos
próprios princípios do coletivo Pussy Riot, uma
vez que somos um coletivo separatista só de
mulheres – nenhum homem nos representa, seja
num pôster, seja na realidade.
Nós pertencemos à ideologia de esquerda
anticapitalista. Não cobramos nenhuma taxa para
que possam ver nosso trabalho artístico, todos
os nossos vídeos são distribuídos livremente na
internet, os espectadores de nossas performances
são sempre transeuntes espontâneos, e nós nunca
vendemos ingressos para nossos “shows”. Nossas
performances são sempre “ilegais”, apresentadas
apenas em locais imprevisíveis e públicos, não
projetados para o entretenimento tradicional.
Além de a distribuição de nossos clipes ser
sempre através de canais de mídia irrestritos
e livres.
Nós somos anônimas porque agimos contra
qualquer
culto
à
personalidade,
contra
hierarquias orientadas pela aparência, idade ou
outros atributos sociais visíveis. Nós cobrimos
nossas cabeças porque nos opomos à própria
ideia de usar rostos femininos como marcas
registradas para promover qualquer tipo de bens
ou serviços.
A mistura da imagem punk rebelde feminista
com a imagem de defensora institucionalizada
dos direitos dos presos é prejudicial para nós
como um coletivo, assim como é prejudicial para
o novo papel que Nadia e Masha assumiram.
Finalmente, ouçam!
Desde que Nadia e Masha escolheram não estar
mais com a gente, por favor, respeitem a escolha
delas. Mas lembrem-se, nós não somos mais
Nadia e Masha. Elas não são mais Pussy Riot.
A campanha “Free Pussy Riot” acabou. Nós, como
um coletivo de arte, temos o direito ético de
preservar nossa prática artística, nosso nome
e nossa identidade visual distintos de outras
organizações.
Membros anônimos da Pussy Riot: Garadja,
Fara, Shaiba, Cat, Seraphima e Schumacher
[Esta carta foi publicada em russo no
livejournal da Pussy Riot no dia 06 de fevereiro
de 2013. Disponível em: http://pussy-riot.
livejournal.com/34528.html. No mesmo dia, a
carta foi traduzida para o inglês e publicada,
primeiramente, pelo jornal britânico The
Guardian. Esta tradução foi feita a partir do
texto veiculado na versão eletrônica do jornal.
Disponível
em:
http://www.theguardian.com/
commentisfree/2014/feb/06/nadia-masha-pussyriot-collective-no-longer.]
Tradução do inglês por Flávia Lucchesi.
verve
drogas-nocaute 21
edson passetti & acácio augusto
Cena 1: Perspectiva
Salete:
O controle das drogas é fundamental para a saúde da população.
Flávia:
O uso de substâncias que alteram a percepção e a conduta
de um indivíduo tem uma implicação coletiva que deve ser
conhecida, regulada e utilizada.
Salete:
De fato, as pesquisas científicas recentes aproximam o funcionamento do cérebro ao vício.
Edson Passetti é coordenador do Nu-Sol e do Projeto Temático FAPESP
Ecopolítica; professor livre-docente no Departamento de Política e no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUCSP. Contato: [email protected]. Acácio Augusto é pesquisador
no Nu-Sol, doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e professor no curso
de Relações Internacionais da FASM (Faculdade Santa Marcelina).
Contato: [email protected].
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25
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Acácio:
O investimento moderno da ciência sempre esteve direcionado para extrair uma positividade dessa relação e dar
utilidade ao uso de drogas.
Gus:
Hoje em dia os cientistas associam o vício aos efeitos produtivos das drogas.
Sofia:
A dopamina, substância responsável pela ativação da sensação de prazer no cérebro é também responsável por intensificar a retenção de informações na memória.
Acácio:
O que é vício? Você responderá que é uma conduta condenável moralmente, mas diante das constatações mais recentes
da ciência, o vício, mais uma vez, se transformará em virtude.
Sofia:
Vício é virtude, quando o que se convencionou chamar de
droga vira medicamento.
Acácio:
Com uma diferença, agora não é mais para a cura. É para
intensificar produtividades.
Sofia:
Vale a pena dopar-se para produzir mais, na empresa, na
universidade, nos laboratórios, nos institutos, enfim, o castigo permanece para quem desafia a conformação da moral.
Salete:
Estamos num tempo em que há mais dopados do que drogados.
Gus:
Estamos num eterno retorno do que, num momento é vício, e em outro, virtude, cura, utilidade, lucro, prazer mo154
verve, 25: 153-184, 2014
verve
drogas-nocaute 2
derado... E um tantão de coisas que muda para conservar
o conformismo.
Leandro:
Nunca vivemos, como hoje em dia, sob tantas regulamentações de condutas condenáveis e prescrições para a boa
conduta.
Judson:
Eu só sei uma coisa, em todas as culturas há evidências de
usos de substâncias que levam a estados alterados. Experimenta-se para lidar com o sobrenatural e o real, a partir do
que a natureza oferece.
Flávia:
Somos curiosos.
Acácio:
Olha-se para o mundo a partir de um ponto de vista. O
mundo não é uma explicação a partir do enunciado socrático “conhece-te a ti mesmo”. O mundo existe a partir de
perspectivas e não enquanto vontade e representação.
Salete:
O mundo existe antes e depois da filosofia. Está além e aquém
das explicações, prescrições, conservações e representações.
Sofia:
Até mesmo o que chamam de mundo não deve ser visto
a partir da Terra, da eloquência da razão, dos efeitos do
monoteísmo ou do paganismo...
Gus:
A vida acontece quando provoca transformações. E cada
um pode atiçar transformações em si, em volta de si, contra
si e contra todos.
Sofia:
A vida é muito mais do que o fato biológico.
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25
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Salete:
Só para falar de uma cultura que nos inventou, a dos gregos,
antes de pretenderem criar uma verdade que convencesse a
todos,
Leandro:
argumentando que era uma verdade desinteressada, por não
pertencer a um grupo específico, mas destinada à humanidade,
Salete:
pronunciavam verdades a partir de uma perspectiva que
não desconhecia o combate entre as verdades. Não pretendiam, ainda, serem os donos do mundo. Cuidavam de si e
inventavam maneiras livres de existir.
Judson:
Mas, minha cara, havia escravos, era uma existência aristocrática...
Salete:
Mas, meu caro, isso é ciência da história... O que eu disse é que os livres se libertaram do monarca; o que estou
dizendo é que precisamos inventar uma vida liberada dos
monarcas, tenham eles o nome de rei, povo, lei, pai, ser
superior, humano ou demasiado humano.
Judson:
Não ser escravo dos outros, nem escravo de si mesmo!
Gus:
Os gregos cuidavam do corpo e da mente no gymnasio, no
banquete, nas guerras, nas convivências, nos cuidados com
a cidade, e provavam da natureza sabores surpreendentes.
Acabaram experimentando o trágico.
Acácio:
Se você quiser chamar isso de saúde, eu compreenderei, da
mesma maneira que entendo a encenação grega em Roma
e o surgimento das perversões, das depravações.
156
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drogas-nocaute 2
Judson:
Note, meu caro, que agora a tal da verdade desinteressada
encontra o território fértil para justificar prisões, proibições, corrupções, tiranias, e a desinteressada busca pelo melhor governo. Criaram o drama.
Flávia:
Idade das trevas anunciada, ora como saída da caverna platônica, ora como Idade Média, para o equilíbrio e a sobriedade do Renascimento e do Iluminismo.
Lili:
Que porra de aula de geografia é essa?!
Judson:
Inconformados, alquimistas e feiticeiras abalavam o verdadeiro e o falso nos mostrando, mais uma vez, a diversidade
em conhecer.
Sofia:
As feiticeiras curavam e prognosticavam com suas poções,
a partir do passado o que seria o presente imediato. Os alquimistas buscavam pelo phármakon, a partir do presente,
a vida eterna.
Mayara:
Os historiadores remontavam o passado para justificar o
presente e o futuro. Os filósofos arriscavam justificar o presente e anunciar o futuro. A grande guerra contra os deuses
se transformou em guerra permanente entre os homens.
Salete:
E agora você perguntará: com quem estava a verdade?
Acácio:
Qual o uso das drogas?
Judson:
O que é droga?
verve, 25: 153-184, 2014
157
25
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Flávia:
Quanto nisso tudo não houve uma droga de vida?
Leandro:
Quanto de droga não está com quem comanda?
Acácio:
O que estamos fazendo de nós mesmos?
Gus:
O que fizemos de nós mesmos?
Sofia e Flávia:
“As pessoas inteligentes e desinteressadas poderiam perguntar-se: uma vez que as leis penais se mostram impotentes,
por que não tentar, mesmo que a título de experiência,
Todos:
o método anarquista?”2.
Cena 2: Pó de pirlimpimpim
Lili:
“Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. Deu uma pitada
a cada um, e mandou que o cheirassem. Todos o cheiraram
— sem espirrar, porque não era rapé. Só Emília espirrou.
A boneca espirrava com qualquer pó que fosse desde o dia
em que viu tia Nastácia tomar rapé. Assim que cheiraram
o pó de pirlimpimpim, que é o pó mais mágico que as fadas
inventaram, sentiram-se leves como plumas, e tontos, com
uma zoeira nos ouvidos. As árvores começaram a girarlhes como dançarinas de saiote de folhas e depois foram se
apagando. Parecia sonho”3.
158
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drogas-nocaute 2
Cena 3: Crack
Gus:
“Eu devia para o cara (...). Você tem que zerar a conta. Ou
paga direto com a vida. Dez anos no craque. Já fiz cinco tratamentos. Minha mãe reza e chora. Se descabela, a infeliz. De
joelho me pede. Lá vou eu para clínica. Fico numa boa. Mas
dou umas recaídas (...). Se você pára a fissura te pega (...). O
craque. Você não consegue largar. É diferente porque ele você
ama. Só dez segundinhos porra. Te bate no pulmão. O bruto
soco na cabeça. E o mágico tuimmm! A gente que fuma tá
sempre ligadão. Você fica o tal. Com uma força maior. Olho
de vidro, o polegar chamuscado (...). Daí o Buba veio com essa
pressão na minha cabeça (...). O traficante você conhece logo.
Tem sangue no olho. Sou pilantra. Mas não sou do crime.
Veja, tirei cursinho e tudo. Com ofício e registro na carteira.
Mais de uma firma importante. Essa foi a última roubada que
eu entrei fundo. Juro por meu Jesus Cristinho (...). O Buba
meteu a peça de guerra na minha mão. E passou a fita:
Judson:
Seguinte o lance, mano. Esse aí vai pagar é com a vida.
Certo, soldado? (...).
Gus:
E boto a arma pro safado:
— A ordem veio do comando. Vamo até ali que a gente
acerta.
Sabe o que fez o merdinha? Encarou feio, sem piscar. Tive
que dar nele (...). Uai, nem raspou, de levinho, a única bala.
Daí me apavorei. Tô fora (...). Nem eu acredito. Desta vez
era outra voz (...).
— Cê tá livre. Tá limpo com a zona! (...). Foi a mãe. Zerou
direto a dívida com o Buba. Agora, vida nova. Ei, você aí, ó
cara? Tem um craquinho aí?”.4Tuiiiimmmmm!!!
Todos:
Tuiiiimmmmm!!!
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Cena 4: Ayuasca
Acácio:
“Imediatamente depois da cerimônia de posse, Roosevelt
apareceu na sacada da Casa Branca usando vestes cor de
púrpura dos imperadores romanos (...), cuinchou para convocar os integrantes de seu gabinete e determinar a posição
que cada um deles ocuparia.
Sofia:
Os membros do gabinete chegaram apressados, grunhindo
e cuinchando como porcos que eram.
Gus:
Uma bicha velha conhecida pela polícia do Brooklyn como
‘Ana Punheta” foi nomeada para Chefe de Estado Maior,
de modo que os oficiais mais jovens do departamento foram sujeitados a indignidades impronunciáveis nos banheiros do Pentágono (...).
Judson:
Uma travesti gostosona recebeu o posto de bibliotecária do
Congresso. Imediatamente mandou barrar o sexo masculino das premissas —
Flávia:
um professor de filologia de renome mundial saiu com o
maxilar quebrado por um sapatão brutamontes quando
tentou entrar na biblioteca. A biblioteca virou local de orgias lésbicas, que ela chamou de Rituais das Virgens Vestais (...).
Lili:
O ‘Magrinho do Metrô’, um trombadinha, assumiu o cargo
de Subsecretário de Estado e chefe do cerimonial e causou
ruptura diplomática com a Inglaterra quando o embaixador inglês ‘deu em cima dele’(...).
160
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Acácio:
Esse é um termo de trombadinha para dizer que o assaltado ficou de pau duro quando seus bolsos estavam sendo
vasculhados (...).
Leandro:
Lonnie, o Cafetão tornou-se embaixador geral e saiu em
viagem junto com 50 ‘secretários’ para exercer sua função
execrável.
Flávia:
Uma drag queen, conhecida como ‘Eddie a Dama’, encabeçou a Comissão de Energia Nuclear e convocou os físicos para um coral masculino que se apresentava como
“Os Garotos Atômicos”.
Sofia:
Em resumo, homens que tinham ficado de cabelos brancos
e perdido os dentes no cumprimento do serviço leal a seu
país foram demitidos, sumariamente nos termos mais depravados possíveis — como:
Leandro:
‘Está despedido, seu velho fodido’.
Lili:
‘Tira essa bunda preguiçosa daqui agora mesmo’.
Sofia:
(...) Arruaceiros e desqualificados do mais desprezível calibre tomaram conta dos cargos mais altos (...).
Mayara:
Secretário do tesouro: ‘Mike Tabaína’, um viciado em heroína das antigas.
Lili:
Diretor do FBI: um empregado de uma sauna turca especializado em massagens nada éticas (...).
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Leandro:
Secretário da Agricultura: ‘Luke Bagre’, um garoto de rua
de Bucetavillem no Alabama, que passara 20 anos bêbado
de tintura de ópio e extrato de limão.
Gus:
Ministro para o Reino Unido: ‘Wilson Banha’, que conseguiu seu dinheiro para comprar barbitúricos fazendo chantagem com pessoas que tinham fetiche por pés e andavam
em lojas de calçados.
Acácio:
Chefe dos Serviços de Correio: ‘Moleque Pó de Ópio’, (...)
trapaceiro das favelas. Atualmente trabalha em uma rotina
chamada ‘Tirando do olho’ — planta-se uma catarata falsa
no olho do selvagem...
Salete:
Selvagem é como os trapaceiros dizem trouxa (...).
Lili:
Quando a Suprema Corte barrou algumas das legislações
perpetradas por essa corja, Roosevelt forçou os integrantes do
augusto tribunal, um por um, sob a ameaça de rebaixamento
imediato ao posto de Atendente de Banheiro Congressional,
a manter relações com um babuíno de bunda roxa, de modo
que homens veneráveis e honrados se submeteram aos carinhos de um símio lascivo e rosnento,
Sofia:
enquanto Roosevelt e sua esposa biscate e o puxa-saco veterano Harry Hopkins, fumando um cachimbo coletivo de
haxixe, assistiam à cena lamentável com arroubos de gargalhadas obscenas.
Flávia:
O ministro Blackstrap sucumbiu diante de uma hemorragia
retal ali mesmo, mas Roosevelt só riu e disse, bem grosseiro:
162
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Mayara:
Tem muito mais no lugar de onde isso aí veio.
Sofia:
Hopkins, incapaz de se controlar, rolou no chão em convulsões sicofânticas, repetindo sem parar:
Leandro:
Você está me matando chefe, você está me matando (...).
Mayara:
A melhor coisa para a indisposição é um pau de babuíno
no cu. Certo Harry?
Leandro:
Certo, chefe. Eu não uso outra coisa (...).
Acácio:
Roosevelt então indicou o babuíno para substituir o ministro Blackstrap, ‘adoentado’.
Gus:
Então, dali em diante, os processos da Corte Suprema passaram a ser conduzidos com um símio aos berros que cagava e mijava e se masturbava em cima da mesa e que, com
boa frequência, pulava em cima de algum dos ministros e o
deixava em frangalhos.
Lili:
As vagas assim criadas eram invariavelmente preenchidas
por símios, de modo que, com o passar do tempo, a Suprema
Corte veio a ser constituída por 9 babuínos de bunda roxa;
Sofia:
e Roosevelt, alegando ser o único capaz de interpretar suas
decisões, assim ficou com o controle do mais alto tribunal
do país.
verve, 25: 153-184, 2014
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Leandro:
(...) E finalmente, [eu mandei] colocar uma escavadeira
mecânica nos andares, de modo que os legisladores mais
obstinados eram enterrados vivos (...).
Sofia:
Os sobreviventes tentaram dar continuidade a seu trabalho
na rua, mas foram presos por vadiagem e mandados para o
reformatório como mendigos comuns (...).
Acácio:
Então Roosevelt entregou-se a uma conduta tão vil e desenfreada que dá vergonha até de falar.
Sofia:
Instituiu uma série de concursos com o intuito de promulgar os atos e instintos mais baixos de que a espécie humana
é capaz.
Lili:
Houve o Concurso do Ato mais Ofensivo, o Concurso do
Truque mais Baixo, A Semana do Abuso Sexual Infantil,
a Semana de Entregar seu Melhor Amigo — dedos-duros
profissionais não podiam se inscrever.
Sofia:
Exemplos de inscritos: o drogado que roubou um supositório de ópio da bunda da avó;
Lili:
o capitão do navio que vestiu roupas de mulher e correu
para o primeiro bote salva-vidas (...).
Flávia:
Aliás, Roosevelt fora acometido de ódio tal pela espécie que
desejava degradá-la a ponto de não mais ser reconhecida”5.
164
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Cena 4: Cocaína
Salete e Gus:
No motel.
Gus:
“Alex, Marquinhos, a Vendedora De Roupas Jovens Da
Boutique De Roupas Jovens e a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na suíte Escort do Motel Le Petit
Palais.
Leandro:
Alex tirou a roupa e mostrou o seu pau duro (...). A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens
exclamou:
Lili:
Nossa!
Gus:
A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, riu.
Mayara:
A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas
Jovens segurou o pau de Alex.
Lili:
Alex lambeu a orelha da Vendedora De Roupas Jovens Da
Boutique De Roupas Jovens.
Gus:
Marquinhos tirou um saquinho de cocaína do bolso. A
Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas
Jovens exclamou:
Lili:
Oba!
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Leandro:
Alex tirou a blusa jovem da Vendedora De Roupas Jovens
Da Boutique De Roupas Jovens.
Gus:
A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, apertou um interruptor e as luzes estroboscópicas da suíte Escort do Motel
Le Petit Palais se acenderam. A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas Jovens tirou a calça jovem, a
calcinha jovem e o sutiã jovem.
Leandro:
Marquinhos se ajoelhou no chão espelhado da suíte Escort
do Motel Le Petit Palais e desenhou um pênis usando a
cocaína.
Gus:
A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas
Jovens, Alex e a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, riram.
Lili:
Alex lambeu a língua da Vendedora De Roupas Jovens Da
Boutique De Roupas Jovens.
Gus:
A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, fez um strip-tease
sob as luzes estroboscópicas da suíte Escort do Motel Le
Petit Palais.
Leandro:
Marquinhos cheirou um dos escrotos do pênis de cocaína
desenhado no chão espelhado da suíte Escort do Motel Le
Petit Palais e tirou a roupa.
Gus:
Alex agarrou a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, por trás
e esfregou seu pau duro na bunda dela (...).
166
verve, 25: 153-184, 2014
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Gus:
A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas
Jovens cheirou o outro escroto do pênis de cocaína desenhado no chão espelhado da suíte Escort do Motel Le Petit
Palais e exclamou:
Lili:
Iurrúúú!
Leandro:
Marquinhos agarrou a Secretária Loura, Bronzeada Pelo
Sol, pela frente e esfregou seu pau duro nas coxas dela.
Gus:
Enquanto Alex esfregava seu pau duro na bunda dela (...).
Lili:
A Vendedora De Roupas Jovens Da Boutique De Roupas
Jovens agarrou Marquinhos, por trás, e esfregou sua boceta
na bunda dele (...).
Gus:
As caixas de som, no teto da suíte Escort do Motel Le
Petit Palais, emitiam a música (...)”6.
Cena 5: Morfina e tabaco
Gus:
“Haverá ainda pequenos bares vagabundos
Com carnes de Extremo-Oriente
Para abrigar o ano novo.
Judson:
Pequenos bares com marinheiros lendários
Cujos cachimbos consumirão antigos venenos
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Leandro:
Bares leves inflados de fumaça
Pequenos bares evanescentes à claridade da aurora.
Judson:
Bares onde o sol e seu trajeto brilham
Na profunda laca avermelhada das taças;
Salete:
Bares repletos da animação das mesas, e vidraças mortas
Onde estudantes não meterão o nariz.
Judson:
Pois haverá outros venenos a corroer
A Árvore Viva de nossas fibras prestes a eclodir,
Sofia:
Há vinhos não secretados por vinhas terrestres
tão violentos quanto catástrofes.
Judson:
Salve, ó bar que nos fornece venenos
E misérias, e dores e sustos
Flávia:
Lançando-nos na nudez de nossas almas
Em cais inacessíveis aos tormentos.
Judson:
Um silêncio te guarda e nos protege
Silêncio onde não vem se perder a medicina,
Lili:
Um silêncio que nos cura na morfina
Sem receitas, nem decretos”7.
Judson:
“Acendo um cigarro ao pensar em escrev[er]
168
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Mayara:
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Judson:
Sigo o fumo como uma rota própria,
Gus:
E gozo, num momento sensitivo e competente,
Judson:
A libertação de todas as especulações
Sofia:
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
estar mal disposto”8.
Cena 6: Heroína
Acácio:
“Charlie Parker tocava pra caralho e sabia disso. Ele deveria estar muito feliz, afinal ganhava a vida fazendo o que
gostava, tinha uma mulher bonita, inteligente e carinhosa, além de ser o melhor de todos — o Bird. Todo mundo amava o Bird. Mas, não (...). Charlie Parker queria algo,
um troço além dos sentidos, além da própria vida. E todo dia
Charlie Parker acordava já pensando em algo. E o modo mais
simples de esquecer algo era fumando um cigarro (...). Charlie
Parker bebia álcool e, quando ficava bêbado, era como se algo
estivesse com ele. Mas para eliminar mesmo a ânsia por algo,
nem que fosse, por algumas horas, Charlie Parker se picava
com heroína (...). Charlie Parker achava que Dizzy [Gillespie] tinha algo e, por isso, Dizzy não precisava beber, nem
fumar, nem se picar com heroína (...). A música bastava para
Dizzy (...). Charlie Parker parou de fumar, de beber, de se picar, e desceu ao inferno. E no inferno da abstinência não havia
algo, nem música (...). Até que um dia desses, por aí, Charlie
Parker, abstêmio, coitado, não aguentou, fumou um cigarro,
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encheu a cara, se picou e tocou pra caralho (...). Charlie Parker
voltou a ser o Bird de sempre, fumando, bebendo, se picando,
ouvindo elogios, sendo bem cuidado pela sua mulher bonita,
inteligente e carinhosa, morrendo, tocando pra caralho, naquela angústia, sentindo falta de algo”9.
Cena 7: Cultura
Sofia:
“Frustra-me que se examine sempre o problema das drogas
exclusivamente em termos de liberdade ou de proibição.
Eu penso que as drogas deveriam tornar-se elemento de
nossa cultura (...). Devemos estudar as drogas. Devemos
experimentar as drogas. Devemos fabricar boas drogas —
suscetíveis de produzir um prazer muito intenso (...). As
drogas já fazem parte da nossa cultura. Da mesma forma que
há boa música e má música, há boas e más drogas. E, então,
da mesma forma que não podemos dizer somos ‘contra’ a
música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas”10.
Salete:
“Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das ideias mais insanas,
dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais
fortes… tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.
Flávia:
Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou
dizer: E daí? Eu adoro voar! Não me dêem fórmulas certas,
porque eu não espero acertar sempre. Não me mostrem o
que esperam de mim, porque vou seguir meu coração.
Salete:
Não me façam ser quem não sou. Não me convidem a ser
igual, porque sinceramente sou diferente. Não sei amar pela
metade. Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão.
170
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Flávia:
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma
pra sempre”11.
Cena 8: Os quatro elementos
Gus:
“O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns
ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de
outros livres (...). Lembrar-se sempre do dito de Heráclito, que morte de terra é tornar-se água, morte de água é
tornar-se ar, de ar fogo, [de fogo ar, de ar água, e de água,
tornar-se terra]”12.
Cena 9: A Lei
Salete:
“Toda ciência temerária dos homens não é superior ao conhecimento imediato que eu posso ter de meu ser. Eu sou
o único juiz do que está em mim (...).
Leandro:
Não é por amor à humanidade que você delira, é pela tradição da imbecilidade. Sua ignorância do que é um ser humano só é igual à tolice que te limita.
Flávia:
Eu faço votos que sua lei recaia sobre seu pai, sua mãe, sua
mulher, seus filhos e toda sua posteridade. E agora engula
tua lei.
Judson:
Deixemos que os perdidos se percam: temos mais o que
fazer que tentar uma recuperação impossível e ademais
inútil, odiosa e prejudicial. Enquanto não conseguirmos
suprimir qualquer uma das causas do desespero humano,
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não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos
quais o homem tenta se livrar do desespero.
Mayara:
O inferno já é deste mundo e há homens que são desgraçados, fugitivos do inferno, foragidos destinados a recomeçar
eternamente sua fuga (...).
Leandro:
Há homens que sempre se perderão. Pouco importa os
meios para perder-se: a sociedade nada tem a ver com isso
(...). Ela nada pode, ela perde seu tempo, ela apenas insiste
em arraigar-se na sua estupidez (...).
Todos:
Por enquanto, não nos suicidaremos. Esperando que nos
deixem em paz”13.
Cena 10: História
Salete, Sofia e Flávia (coro):
“Boa noite meu grande amor...”
Mayara:
“Desde 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, no parágrafo 7° da postura que regulamenta a venda
de gêneros e remédios pelos boticários, estabelecia que:
Judson:
É proibida a venda e uso do pito de pango, bem como a
conservação dele em casas públicas. Os contraventores
serão multados em 20$000 e os escravos e mais pessoas,
que dele usarem, em três dias de cadeia.
Acácio
Observe-se a coincidência: a primeira lei mundial contra a maconha é promulgada no mesmo ano da morte da
172
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mais famosa maconheira da nossa história: nossa ex-rainha
Carlota Joaquina de Bourbon”14.
Sofia:
“A legislação sobre comércio de narcóticos (Lei 4294/1921)
foi assim recebida pela cronista Crisanthème, pseudônimo
da escritora Cecília Bandeira de Melo Rebelo de
Vasconcelos, em uma de suas crônicas semanais publicadas
no jornal O País do Rio de Janeiro, e em São Paulo pelo
Correio Paulistano [Diz aí madame Crisanthème]:
Gus:
‘Uma lei benfazeja: Raia sobre nós a esperança de vermos
afastado de nosso céu o terrível ciclone que ameaçava trucidar uma boa parte de nossa população. O uso da morfina e da
cocaína entrara nos hábitos de nossa mocidade chic, que principiava a ingeri-las por simples curiosidade, por simples imitação aos tarados de outras terras e acabava avassalada pelo
pavoroso vício que a estiolava, maltratava e assassinava’”15.
Leandro:
“O capital compr[a] a força de trabalho do indivíduo livre,
que, além de vendê-la, vendia a si mesmo, sua mulher, e seus
filhos. [O capital] é ao mesmo tempo individualista e autoritário.
Flávia:
As altas taxas de mortalidade infantil, [na Europa, no final do século XIX] deviam-se, principalmente, ao fato de as
mães trabalharem fora de casa. Esse desleixo se revela[va]
na alimentação inadequada ou insuficiente e no emprego de
narcóticos.
Judson:
(...) Além disso, as mães (...) se torna[va]m estranhas aos
próprios filhos, e intencionalmente os deixa[va]m morrer
de fome ou os envenena[va]m”16.
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Lili:
“Além dos escritores, figuras políticas, advogados e nobres,
operários ingleses e mulheres que trabalhavam em ateliês
franceses e austríacos tomavam e comiam, diariamente,
derivados do ópio. O láudano era ministrado por mães e
enfermeiras às crianças agitadas, recebendo o nome de ‘benção
de mãe’”17.
Gus:
“Caro Sr. Steve Jobs
Alô [aqui é] Albert Hofmann, grande inventor do LSD,
em meu aniversário de 101 anos. Eu tomei conhecimento
por relatos da mídia que você considera que o LSD te ajudou criativamente no desenvolvimento dos computadores
da Apple e em tua busca espiritual. Estou interessado em
saber mais sobre como o LSD foi útil para você”18.
Lili:
“Hassan Sabá introduziu o Cannabis em seu bando (...). A
rapidez e o júbilo com que matavam seus inimigos cristãos fizeram da seita o mais temido bando de degoladores na Pérsia
e na Síria. Como foi Hassan quem difundiu o Cannabis, este
se tornou conhecido como haxixe, ou seja, dádiva de Hassan.
Judson:
E como os homens de Hassan geralmente estavam ‘altos’
de haxixe, tornaram-se conhecidos como ‘os homens sob a
influência do haxixe’, ou em árabe, no singular hashshashin.
A palavra sobrevive até hoje em várias formas e em várias
línguas, inclusive o inglês assassin [ou o português assassino],
com suas desagradáveis conotações”19.
Cena 11: Medicalização
Leandro:
“O ‘problema de nervos’ surgiu como tema de estudo durante inquérito de morbidade referida, quando foram entrevis174
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tados 93 adultos, lavradores, em 25 comunidades rurais da
região serrana do Estado do Espírito Santo, Brasil, sobre os
problemas de saúde nas últimas 48h.
Salete:
Tenho excesso de trabalho... Tomo remédio pra nervo... Eu
tomo o Lexpiride (...).
Lili:
Tenho esgotamento, problema de nervo. Eu trabalho, mas se
puxar muito num dia, no outro não valho mais nada. Sinto
o corpo pesado, machucado. Cansaço no corpo... O médico
falou que é nervo. Se ficar sem o Valium (10 mg.) de tarde
me ataca os nervos demais., não passo sem não (...).
Salete:
Eu me dei com o remédio. O médico mesmo me disse: pode ir tomando ou parando de tomar por sua conta.
Quando estiver atacada, volta a tomar. [Improvisação sobre
a obrigatoriedade de receitas médicas e funcionamento de
postos de saúde]
Mayara:
A última vez que fui [ao médico] já tem dois anos e ele
falou: Você se dando com o remédio não precisa vir mais,
não precisa trocar.
Gus:
O que nós [eu e a patroa] já tomou de remédio pra nervo
dava pra encher uma picape... (...).
Sofia:
Sarar não sara... Só fica mais ou menos com o remédio.
Sempre volta [o problema] e tem que comprar outra vez
(...). Resolve, mas não pode parar nunca com os remédios.
Acácio:
Pobrema de nervo... Pobrema de cérebro. Eu tenho uma
bolsa cheinha de capas de remédio de nervo que eu tomo
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toda noite. Não durmo de noite, fica aquilo nervoso, começo
a gritar... Se eu ficar sem o remédio fico bambo, leve da ideia.
Agora, o remédio me enfraquece, tô fraquinhozinho”20.
Gus:
Lá no canavial, agora nóis fuma crack.
Leandro:
“Há quase vinte anos, acompanho estarrecido a crescente
marcha da nova frenologia dos distúrbios mentais. Especificamente, o desenvolvimento do que parte dos psiquiatras
e neuropsicólogos denominam de Transtorno do Déficit
de Atenção e Hiperatividade, o TDAH. (...)
Mayara:
Programas de difusão e tratamento do TDAH vêm sendo
criados, tendo como premissa que a hiperatividade infantil
é uma doença orgânica e que precisa ser medicada (...).
Flávia:
As empresas Jansen-Cilag, Elli Lilly, Novartis e
GlaxoSmithKline, que comercializam os medicamentos
Concerta, Straterra, Ritalina e Dexedrina (...), financiam
as pesquisas clínicas de associações que afirmam seguir,
dentre os valores que norteiam seus programas, a ética na
pesquisa e universalização dos conhecimentos”21.
Sofia:
“Estas drogas, usadas especialmente no tratamento de
TDAH, são utilizadas com a finalidade de melhorar a capacidade cognitiva de estudantes e pesquisadores. Trazem,
segundo os cientistas, um problema especial: seu efeito de
longo prazo (que se diz ainda desconhecido) e uma possível
concorrência desleal entre os estudantes [e pesquisadores] que
usam e os que não usam. Em suma: capitalismo, competição
e competência!”22.
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Acácio:
“As portas se abrem para novas modalidades de denúncia. O
currículo Lattes do seu colega está engordando e os pontos da
carreira dele estão ultrapassando os seus? Ele pode estar usando drogas para acelerar a capacidade cognitiva, enquanto você
fica no cafezinho. Nem todos são neuroéticos como você”23.
Lili:
“O governo da Grã-Bretanha anunciou sua intenção de
aumentar o número de castrações químicas (tratamento
com drogas inibidoras da libido) para pessoas que tenham
cometido algum crime sexual (...). Para a melhor defesa
da sociedade esta castração química deverá ser consentida
pelo libidinoso. Opa!”24.
Leandro:
“A vida produtiva neoliberal exige provas, comprovações,
certificações, prêmios, reconhecimentos aos mais simples
empregados e aos mais refinados cientistas e artistas.
Sofia:
Surpresa, a mídia científica denuncia que os cérebros estão
se dopando. Medicada desde criança anuncia-se uma geração de amantes do emprego, do salário, da disposição a
participar de qualquer convocação. Democratas, dopadas e
produtivas, essas pessoas dão corpo ao atual conformismo”25.
Judson:
“O discurso neurobiológico afirm[a] que é no córtex pré
-frontal que se situa o órgão moral, subsidiando pesquisas
recentes para instituir o que vem sendo chamado na área
de ponta a neurociência a ciência da moral.
Leandro:
Mais uma vez a psiquiatria segue como operadora de mediações para uma nova linguagem. Nenhuma ciência ou
conhecimento é neutro.
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Salete:
Ninguém pesquisa apartado do modo como toca na própria vida”26.
Cena 12: Cigarro
Judson:
“Cidade de Hamburgo, Alemanha, Segunda Guerra
Mundial. No meio de uma madrugada o escritor João
Guimarães Rosa desperta com uma vontade imensa de
fumar e nota que seu maço havia acabado. Sai e anda,
inúmeras, infindáveis quadras para conseguir cigarro. Ao
encontrá-lo já fuma um ali mesmo. Ao retornar para casa,
depara-se com os escombros do prédio onde morava. Ele
fora bombardeado e todos que ali residiam estavam mortos.
Os anos se passaram; Guimarães Rosa jamais deixou de
fumar. E toda vez que alguém o advertia ou o repreendia
dizendo que ele ainda morreria deste vício, Rosa divertido
e lépido respondia: Foi um cigarro que salvou a minha
vida”27.
Cena 13: Álcool
Acácio:
“Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso
não há equivalente com a comida (...). A bebida é uma
questão... Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem
bebe tem sua bebida favorita, mas é nesse âmbito que ele
entende a quantidade.
Gus:
Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras [meu
caro Gilles Deleuze], porque eles dizem: ‘Eu controlo, paro
de beber quando quiser’. Zombam deles, porque não se entende o que querem dizer (...).
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Acácio:
Quando se bebe, se quer chegar ao último copo. Beber é,
literalmente, fazer tudo para chegar ao último copo. É isso
que interessa (...). Eu tive a sensação de que isso me ajudava a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava, depois percebi que já não ajudava, que
me punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se
bebesse. Então se deve parar. É simples”28.
Cena 14: Cronópio
Sofia:
“Agora acontece que as tartarugas são as grandes admiradoras da velocidade, como é natural (...). Os cronópios
sabem e cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a
caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha”29.
Cena 15: O eterno retorno
Gus:
“Diz o Corpus hipocrático que ‘são drogas as substâncias
que atuam esfriando, aquecendo, secando, umedecendo,
contraindo, relaxando ou fazendo dormir’. No entanto,
para chegar a uma definição tão secularizada os gregos
percorreram um longo caminho. Na Odisséia, quando Helena serviu o nepenthés, diz o poeta que ‘a mistura de alguns
fármacos é saudável e a de outros, mortal’.
Lili:
Phármakon é remédio e tóxico; não uma coisa ou outra,
mas as duas (...). Ao mesmo tempo, drogas são também
os filtros das feiticeiras, assim como o conjunto da matéria médica vegetal. Lendo com atenção a Teofrasto se nota
que a origem deste conceito [de phármakon] provém das
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insuficiências detectadas na ideia da planta toda-benéfica
(panakéia) e da planta toda-maléfica (strychnos).
Salete:
O grego compreendeu que certas substâncias participam de
ambos os estatutos, de modo que não cabia considerá-las
só benignas ou só danosas. Daí que em Homero a mesma
palavra nomeie tanto as poções benéficas de Helena e
Agamede, quanto as misturas malignas de Circe.
Flávia:
A toxidade de um fármaco é a proporção concreta entre
dose ativa e dose letal; por isso nenhuma propriamente dita
pertence ao inócuo ou apenas ao curativo. Como dirá muito mais tarde Paracelso, sola dosis facit venenum [apenas a
dose faz o veneno]”30.
Leandro:
“Baudelaire praticamente encerrou qualquer debate sobre
a imaginação estimulada ou não do artista sob o efeito de
drogas ao alertar que elas só produzem estados de espírito
interessantes em pessoas interessantes, porque imaginações grosseiras produzem visões grosseiras”31.
Sofia:
“Cães ladram contra o que eles não conhecem”32.
Cena 16: Nocaute?!
Gus:
Porra meu, já não sei se esta é primeira vez, a quarta? É um
quarto no quarto andar? Por que me deixam aqui sozinho,
sem ao menos um quarto de LSD? (Pausa) Sem você! (Pausa)
Você gostou quando eu trouxe felicidade no meio da ditadura?
(Pausa) Eu tentei ser comum. Eu quero... Arranjar emprego,
sem LSD. Vou abandonar a construção de minha espaçonave.
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Acácio:
Eu nem sei mais se aguentarei tanta solidão. De que vale querer
mudar o mundo, quando ele não muda? Devo permanecer
mudo gritando contra tudo? Derrubar hierarquias, muros,
abrir o mar. Eles não entendem; me prendem, me medicam,
me calam. Não uso drogas, não bebo, nem fumo. (Pausa) Até
quando ficarei neste falanstério? Isso é um falanstério?
Gus:
É preciso voar.
Acácio:
Voar é para o pássaro.
Gus:
Viajar.
Acácio:
Não me mascaro.
Gus:
Meu corpo trespassado.
Acácio:
Dormir e não sonhar.
Gus:
Um lampião apagado.
Acácio:
Andar sem parar.
Gus:
Voar. Não serei seu prisioneiro.
Elenco canta com Mutantes, “A balada do louco” e sai pela plateia
FIM
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Notas
Aula-teatro 15 do Nu-Sol. Pesquisa: Acácio Augusto, Aline Santana, Ana
Salles, Andre Degenszjan, Beatriz Scigliano Carneiro, Edson Passetti, Eliane
K. Carvalho, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Lúcia Soares, Luíza Uehara,
Maurício Freitas, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues. Com: Acácio Augusto,
Eliane K. Carvalho (Lili), Flávia Lucchesi, Gustavo Simões (Gus), Judson
Cabral (convidado), Leandro Siqueira, Mayara de Martini Cabeleira, Salete
Oliveira e Sofia Osório. Produção gráfica: Andre Degenszjain. Operadora
de luz: Helena Wilke. Sonofonia: Vitor Osório (convidado). Violão e
música incidental: Wander Wilson Chaves Jr. (convidado). Ambientação:
Edson Passetti.
1
Errico Malatesta. “Uma proposição que não será aceita” in Edson Passsetti.
Das fumeries ao narcotráfico. Tradução de Dorothea V. Passetti. São Paulo,
Educ, 1991, pp. 145-146.
2
Monteiro Lobato. Reinações de Narizinho. São Paulo, Brasiliense, 1959,
pp. 248-249.
3
Dalton Trevisan. O maníaco do olho verde. Rio de Janeiro, Record, 2008,
pp. 7-11.
4
William Burroughs. Cartas do yage. Tradução de Bettina Becker. Porto
Alegre, LP&M, 2008, pp.60-65.
5
6
André Sant’Anna. Sexo. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2001, pp. 75-76.
Antonin Artaud. “Bar” in Revista Libertárias, nº 2. Tradução de Martha
Gambini, 1997, p. 80.
7
Fernando Pessoa. “Tabacaria” in Obra poética. Rio de Janeiro, Ed. Nova
Aguilar, 1987, p. 300.
8
André Sant’Anna. “Bird e algo” in Inverdades. Rio de Janeiro, 7 Letras,
2009, pp. 35-36.
9
Michel Foucault. “Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política”
in verve. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. São Paulo, Nu-Sol,
v. 5, 2004, pp. 264-265.
10
Este texto é geralmente atribuído a Clarice Lispector. Embora o
encontremos em diversos endereços eletrônicos com sua assinatura, não há
referência confiável de que seja de sua autoria.
11
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Heráclito de Éfeso. Os pré-socráticos. Tradução de José Cavalcante de
Souza et alli. São Paulo, Nova Cultural, 1999, pp. 93 e 95.
12
Antonin Artaud. “Segurança pública – a liquidação do ópio” in Escritos de
Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1983,
pp. 23-26.
13
Luiz Mott. “A maconha na História do Brasil” in Anthony Henman e
Oswaldo Pessoa Júnior (orgs.). Diamba Sarabamba. São Paulo, Ground,
1986, p. 131.
14
Beatriz Scigliano Carneiro. Vestígios dos venenos elegantes. Dissertação de
Mestrado. São Paulo, PEPG Ciências Sociais/PUC-SP, 1993, pp. 140-141.
15
Edson Passetti. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo, Educ, 1991, pp.
59-60.
16
17
Idem, p. 18.
Albert Hofmann. Dear Steve. Tradução de Beatriz Scigliano Carneiro.
Disponível em: http://www.tinyurl.com/mevv78 (acesso em: 12/03/2010).
18
John Cashman. LSD. Tradução de Miriam Schnaiderman. São Paulo,
Editora Perspectiva, 1980, pp. 22-23.
19
Brani Rosemberg. “O consumo de calmantes e o ‘problema de nervos’
entre lavradores” in Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 28, n. 4, 1994, pp.
300-308. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_art
text&pid=S0034-89101994000400010 (acesso em: 27/01/2010).
20
Mônica Lavoyer Escudeiro. “A medicalização da infância: um mercado
em expansão” in Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a
Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC). Rio de Janeiro, Instituto
de Psicologia da UFRJ, 2007. Disponível em: http://nipiac.psicologia.ufrj.
br/index.php?option=com_content&view=article&id=93:a-medicalizacaoda-infancia-um-mercado-em-expansao&catid=20:artigos-publicados-nosite&Itemid=28 (acesso em: 27/01/2010).
21
22
Nu-Sol. “Dopping mental” in Flecheira Libertária 87. São Paulo, 2008.
23
Nu-Sol. “Neuroética” in Flecheira Libertária 87. São Paulo, 2008.
Nu-Sol. “Quase laranja mecânica” in Flecheira Libertária 19. São Paulo,
2007.
24
25
Nu-Sol. “Dopadas” in Flecheira Libertária 59. São Paulo, 2008.
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183
25
2014
Salete Oliveira. “Psiquiatrização da ordem e abolicionismo penal:
neurociências, psiquiatria e direito” in Revista ponto-e-vírgula. São Paulo,
PEPG Ciências Sociais/PUC-SP, n. 4, 2008, pp. 09-10.
26
27
Nu-Sol. “Brevíssima história” in Flecheira Libertária 106. São Paulo, 2009.
Gilles Deleuze. “Letra B de beber” in Abecedário. Disponível em: http://
br.geocities.com/polis_contemp/deleuze_abc.html#beber (acesso em:
12/03/2010).
28
Julio Cortázar. História de cronópios e de famas. Tradução de Gloria
Rodríguez. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, p. 157.
29
Antonio Escohotado. Historia de las drogas, vol. 1. Madrid, Alianza
Editorial, 1998, p. 137.
30
31
Edson Passetti. Das fumeries ao narcotráfico. São Paulo, Educ, 1991, p. 89.
32
Heráclito de Éfeso, 1999, op. cit., p. 98..
Drugs-knockout 2, Edson Passetti & Acácio Augusto.
184
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DROGAS-NOCAUTE 2
aula-teatro 15
12 e 13 de maio
19h30
Tucarena, PUC-SP
[R. Monte Alegre, 1024]
Retirada de ingressos gratuitos às 18h30
www.nu-sol.org
verve
Resenhas
um arquivo sobre a educação e a cultura
anarquista no brasil
LÚCIA BRUNO
Carmen Sylvia Vidigal Moraes (org.). Educação Libertária no
Brasil - Acervo João Penteado: inventário de fontes. São Paulo,
Edusp, 2013, 384 pp.
Esta coletânea resulta de um trabalho coletivo envolvendo alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado,
bem como professores e pesquisadores do Centro de Memória da Educação, da Faculdade de Educação da USP. Os
capítulos foram escritos em coautoria por professores e alunos. As professoras Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Cecília
Hanna Mate e Dóris Accyoli e Silva – conhecida estudiosa
do anarquismo desde os anos 1980 – assinam os capítulos
com os alunos Tatiana da Silva Calsavara, Luciana Eliza
dos Santos, Daniel Righi, Fernando Antonio Peres, Débora
Pereira dos Santos, Flávia Andréa Machado Urzua, Ana
Paula Martins e a arquivista Iomar Zaia. O prefácio é do
professor da Unicamp Antonio Arnoni Prado, pesquisador
da cultura anarquista.
Educação Libertária no Brasil – Acervo João Penteado:
inventário de fontes é resultado de um trabalho iniciado em
Lúcia Bruno é professora livre-docente da Faculdade de Educação da USP
e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP
(PROLAM). Contato: [email protected].
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2005, a partir da localização do acervo relativo à Escola
Moderna nº1(1912-1919), localizada no bairro Belenzinho
em São Paulo, pela aluna do Programa de Pós-Graduação da
FEUSP Tatiana Calsavara. Fundada em 1912, a Escola foi
coordenada pelo educador de orientação anarquista João de
Camargo Penteado, escritor, ensaísta, teatrólogo, fotógrafo,
cronista, autor de fábulas e conferencista. Fechada em 1919,
pela repressão estatal, esta experiência sofreu transformações
sucessivas, vindo a assumir diferentes denominações: Escola
Nova (1920-1923); Academia de Comércio Saldanha
Marinho (1924-1943); Escola Técnica de Comércio
Saldanha Marinho (1944-1947); Ginásio e Escola Técnica
Saldanha Marinho (1948-1960), sempre sob a direção de
João Penteado. Estas mudanças observadas na história da
experiência educacional que se inicia em 1912 evidenciam
as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira
neste período, com o desenvolvimento do setor de serviços
e da burocracia, tanto estatal quanto privada, o que colocou
novas exigências quanto à qualificação dos trabalhadores
urbanos e, principalmente, indicou o avanço do controle
estatal sobre as escolas, a partir da institucionalização de
uma série de procedimentos administrativos e de uma
hierarquia que ensaiava seus primeiros passos em direção
ao modelo organizacional de Henry Fayol, um dos autores
mais celebrados da teoria clássica da administração de
empresas.
O conjunto de documentos relativos às escolas dirigidas por João Penteado inclui jornais, biblioteca, imagens,
escritos do arquivo pessoal do educador e documentos institucionais das escolas. Foram doados por Marli Alfarano,
sobrinha-neta de João Penteado, e por seu marido Álvaro
Alfarano. O arquivo recebeu tratamento minucioso por
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verve
Um arquivo sobre a educação e a cultura anarquista no Brasil
parte dos pesquisadores do Centro de Memória da Educação da FEUSP, constituindo-se hoje em fonte valiosa
de pesquisas e estudos, aberta a todos que se interessam
pela história da educação no Brasil e pelas práticas culturais e de luta dos trabalhadores anarquistas, a partir da
perspectiva autogestionária.
A primeira parte do livro apresenta em seus capítulos
diferentes olhares sobre o material que compõe o arquivo,
abordando questões variadas: a dimensão pedagógica
e a contribuição deste arquivo para a historiografia da
educação brasileira; as práticas escolares, os livros didáticos
e o ensino libertário; as imagens (fotográficas) do arquivo
e seu significado; a co-educação sexual, a relação trabalho
e educação e a trajetória e produção intelectual de João
Penteado. A segunda parte apresenta o detalhamento
do material que constitui o arquivo João Penteado e que
contém documentos pessoais do educador, bem como
documentos institucionais das escolas, instrumentos e
objetos de laboratório, peças indígenas, mobiliário e acervo
fotográfico e bibliográfico.
A Escola Moderna nº1 foi criada no bojo do movimento operário anarquista, por trabalhadores de origem
imigrante, vindos da Espanha e da Itália, imbuídos dos
princípios formulados no calor das primeiras lutas ocorridas na Europa – especialmente na Comuna de Paris, e
que levaram à criação da I Internacional dos Trabalhadores, onde Proudhon tinha grande influência, assim como
Bakunin. Os anarquistas, já neste momento, defendiam
a ideia de que a libertação dos trabalhadores deveria ser
obra deles próprios e não de vanguardas ou membros da
intelligentsia, posteriormente definida por Gramsci como
intelectuais orgânicos.
verve, 25: 189-193, 2014
191
25
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Dentro da mesma lógica que orientou a I Internacional
dos Trabalhadores, os anarquistas entenderam que a formação
das novas gerações de trabalhadores deveria ser conduzida
pelos próprios trabalhadores e não pelo Estado, pela Igreja ou
por empresários. Estabeleciam, assim, o processo formativo
como um campo de luta de classes primordial.
Nesta perspectiva fica clara a razão pela qual os anarquistas
conferiam tanta importância à educação e à cultura,
considerando-as elementos indissociáveis do processo
formativo de crianças, jovens e adultos. Daí vincularem o
aprendizado científico ao artístico, entendendo este como
um campo de criação e de liberdade, indispensável para o
desenvolvimento da autonomia intelectual e de julgamento
das novas gerações. Defendiam a educação integral,
eliminando a separação entre trabalho manual e intelectual,
e acreditavam que “aprender é aprender junto”, com base na
solidariedade, na vivência das diferenças na igualdade e na
troca sob o princípio da reciprocidade. Por isso, recusavam
a competição entre os alunos, as avaliações que ignoram as
diferenças individuais e sociais, as premiações e os castigos,
de todo e qualquer tipo.
Enquanto a escola estatal procurava instrumentalizar a
educação – visando formar mão de obra para o mercado
de trabalho e utiliza-la como um meio de propagação
dos ideais de nação através do culto ao Estado Nacional
às novas hierarquias que então se consolidavam e ao do
nacionalismo que tanto horror haveria de produzir durante
todo o século XX –, as escolas anarquistas defendiam o
internacionalismo da classe trabalhadora, denunciavam a
exploração do trabalho e a dominação política. Não deve,
portanto, nos espantar o fato de terem sido duramente
reprimidas já nas primeiras décadas do século XX.
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verve, 25: 189-193, 2014
verve
Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI
Este livro apresenta em seus diversos artigos as primeiras
análises do rico arquivo João Penteado e ilumina o que continua de certa forma pouco estudado no Brasil, no âmbito das
práticas pedagógicas libertárias; das relações que constituem
o cotidiano escolar, do papel do teatro, das artes visuais, da
literatura e das artes plásticas, além da prática de conferências, refeições coletivas ao ar livre, e o que hoje chamamos de
estudo do meio realizado fora dos muros da escola.
Cabe ressaltar que esta publicação vem preencher
importante lacuna observada na generalidade das faculdades
de Pedagogia, inclusive na da USP, que fez-se como um
silêncio em relação a essas experiências pedagógicas
anarquistas desenvolvidas no âmbito do movimento
operário no Brasil durante as primeiras décadas do século
XX. E, nesse sentido, há a certeza de que a publicação deste
livro constitui-se como um importante marco.
da ocupação do anarquismo organizado
no século XXI
FLÁVIA LUCCHESI
Mark Bray. Translating Anarchy – The Anarchism of Occupy Wall
Street. Winchester, Zero Books, 2013, 332 pp.
No decorrer do ano de 2011 eclodiram protestos,
manifestações de rua e marchas em diferentes lugares
do planeta. Dentre as que se desdobraram a partir dos
Flávia Lucchesi é pesquisadora no Nu-Sol e no Projeto Temático FAPESP
Ecopolítica, mestranda em Ciências Sociais pela PUC-SP. Contato: flalucchesi@
gmail.com.
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protestos que levaram à ocupação da Praça Tahir, na
capital egípcia, em fevereiro daquele ano, a de maior
destaque no continente americano foi a ocupação do
Parque Zuccotti, localizado no distrito novaiorquino de
Manhattan, próximo à Wall Street.
É desta ocupação e do movimento que a realizou,
conhecido como Occupy, que Mark Bray trata em seu livro
Translating Anarchy, publicado pela editora britânica Zer0
Books, ainda sem tradução para o português.
Bray é doutorando na Universidade de Rutgers e
pesquisa o anarquismo espanhol na virada do século
XX. Faz-se presente na luta anticapitalista desde a época
do colegial, quando foi animado pelas músicas rebeldes
da banda Rage Against the Machine; é membro da
organização sindical Industrial Workers of the World
(IWW), agiu em manifestações do movimento de justiça
global no início dos anos 2000, e participou da organização
do movimento Occupy, nos grupos Press Working Group
(WG) e Direct Action (DA). Tal participação intensa
possibilitou-lhe entrevistar 192 organizadores do Occupy,
no período de dezembro de 2011 a fevereiro de 2013,
o que, somado aos relatos pessoais do que vivenciou na
ocupação, embasa a obra.
Diante das muitas publicações e teses rapidamente
produzidas sobre esse evento, o livro de Bray se diferencia
por mostrar a presença de anarquistas na organização deste
movimento, atentando para a diferença entre as práticas dos
organizadores do Occupy e os clamores dos que marchavam
nas manifestações do movimento – os chamados occupiers.
A partir das entrevistas, o autor anuncia que a maioria
dos organizadores eram declaradamente anarquistas ou
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Da ocupação do anarquismo organizado no século XXI
militantes de “políticas essencialmente anarquistas” (p. 4),
aos quais ele se refere como “anárquicos”: anticapitalistas,
anti-hierárquicos, e “orientados pela ação direta”.
Os depoimentos coletados, e os números a partir
deles quantificados, levam Bray a afirmar que o Occupy
foi organizado e feito em grande parte por anarquistas.
Assim, o considera um movimento anarquista e sinaliza,
seguindo David Graeber, que o anarquismo é o movimento
do século XXI. Graeber é certamente o maior interlocutor
contemporâneo de Bray. Ao lado dele, aparecem Murray
Bookchin, Noam Chomsky, e os marxistas David Harvey e
Eric Hobsbawn. Contudo, apesar de pensar o anarquismo
como o movimento do século, os dados coletados por
Bray mostram a falta de envolvimento anterior em lutas
políticas por parte dos jovens estadunidenses. Das quase
duas centenas de entrevistados, 30% nunca haviam tomado
parte em lutas políticas antes do Occupy. Em relação aos
demais, a maioria citou como ações anteriores o trabalho
em ONGs ou o engajamento em campanhas eleitorais de
candidatos democratas ou do Green Party (p. 78).
Nesse sentido, o autor entende a importância do
movimento Occupy como um “veículo para traduzir a
anarquia” (p. 7) e, assim, politizar pessoas. Através de seu
livro, intenta dar continuidade a essa tradução, uma vez
que considera a maioria das pessoas bastante receptivas
às “ideias” anarquistas, entendendo que o que as afasta
do anarquismo é a falta de conhecimento e as “ciladas
ideológicas” (p. 5) armadas pelo 1% que controla a mídia
e a educação no país.
No entanto, com o intuito de atrair mais pessoas para o
movimento, os organizadores apostaram em uma relação
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com a grande mídia, a qual veiculou o movimento como
uma resposta ao que consideram ineficiência do governo
Obama em administrar e amenizar os abalos da crise
econômica que estourou em 2008. Interpretado como fruto
de crises, o Occupy foi utilizado para endossar afirmações
democráticas, reforçar o patriotismo estadunidense e
confirmar o investimento em capital humano nos jovens
que se mostram demasiadamente preocupados com as
corporações e com o melhor funcionamento do capitalismo.
Bem humorado, o autor lê nesse jornalismo ardiloso a
intenção em fazer do Occupy um “tea party liberal”.
Mostrando não desconhecer as inúmeras tentativas
liberais de captura de palavras libertárias, por meio
das quais também se travam lutas, Bray apresenta nota
esclarecedora acerca dos embates entre libertários e
liberais na história dos Estados Unidos, mostrando como
a palavra libertário quase foi tragada pelos liberais e como
possibilitou se falar em “anarco-capitalismo” no âmbito da
economia, na década de 1950.
A relação com a mídia interessava desde que atravessada
por uma estratégia: todos os membros do grupo de
Trabalho de Imprensa (WG) deveriam evitar se posicionar
francamente como anarquistas, assim como deveriam
evitar o uso de expressões como anticapitalista, no intuito
de disseminar os “ideais” anarquistas de modo a produzir
mais adesão ao movimento. Utilizavam “códigos” como:
“alternativos”, “independentes”, “não-hierárquicos”, “a favor
da horizontalidade”, “sem líderes” (p. 162), mesmo sendo
todas essas expressões muito usuais no discurso neoliberal.
Expressões desse tipo, alheias aos anarquismos, são
utilizadas como estratégia para conquistar legitimidade
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para o movimento. Desse modo, ao aproximarem-se da
linguagem da ordem, acabam contendo um potencial de
revolta. O movimento tende a ser capturado. A escolha
entre estratégia ou tática explicita, no interior dos
anarquismos, a distinção entre organização e associação.
A preocupação com uma estratégia é constantemente
destacada ao longo do livro. Bray é bastante elogioso às
formas organizadas do anarquismo e retoma diversos
acontecimentos históricos vinculados aos anarcosindicalistas e anarco-comunistas, além das referências
clássicas que se concentram, em maior peso, entre
Kropotkin, Malatesta e Bakunin, sendo este último
apresentado como o fundador da “doutrina anarquista” (p.
46). As formas organizadas do anarquismo são tratadas
pelo autor como uma maneira de “engajar uma parcela
mais ampla da sociedade em formas de resistência” (p.
54), de modo a introduzi-las na “doutrina anarquista”,
ao considerar que muitos são anárquicos, ou tendem
ao anarquismo sem terem o conhecimento disto. Tais
organizações, que compreende como sendo desde a
CNT até o Occupy, representam, para Bray, um “processo
de difusão ideológica” (idem), mas um movimento deve
produzir mais que ideologia.
Bray acredita em uma revolução anarquista e, numa
esteira kropotkniana, pensa ser essa revolução integrante
de um processo evolutivo, e portanto finalista. Assim,
certas diferenças são propositalmente desconsideradas.
Os chamados anarquistas individualistas, primitivistas
e mutualistas são mencionados apenas e brevemente no
segundo capítulo – “O veneno do Occupy Wall Streets
– anarquismo e o anárquico” –, como “periféricos”
(p. 55) em termos da História do Anarquismo. Nessa
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periferia evolutiva, Proudhon é classificado como “protoanarquista”, e, por conseguinte, o anarquismo se resumiria
a organização e estratégia.
A necessidade de estratégia é tamanha que a tática
black bloc, textualmente apresentada pelo autor como
tática, deve se tornar uma possível ação estratégica, na
qual muito mais do que a preocupação pacifista de certos
anarquistas, o caráter decisório acerca de sua aplicabilidade
é que define sua eficiência ou não nos rumos do processo
revolucionário, ou seja, apesar de existir, ela também é
secundária. Entretanto, o que se presencia desde então
é, simultaneamente, a expansão da tática black bloc como
sinônimo de revolta, enquanto os organizativos tendem
a se acomodar em justificativas de difusão ideológica, o
que por si só se torna uma manejada forma de captura da
radicalidade em alternativo.
Apesar disso, a leitura de Bray sobre os black blocs
destoa da profusão de julgamentos e temores que têm
sido enunciados, tanto nos Estados Unidos quanto no
Brasil. Em relação às práticas consideradas violentas, Bray
equaciona claramente porque, desde o século XIX, e em
especial devido à “propaganda pela ação”, os anarquistas
são julgados violentos, ou “porque os anarquistas executam
seus atos de autodefesa e resistência sem a legitimação do
Estado” (p. 250).
Pelo objetivo coletivo organizado, a ação direta
aparece conectada à noção de uma “política além do
voto”, apresentada pelo autor longamente no decorrer do
quarto capítulo, intitulado “Por que precisamos de uma
revolução ou: além do ‘socialismo em um parque’”. Para
Bray, é considerada ação direta uma ação que independa
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de alguma autoridade, autorização legal ou instituição,
mesmo quando vinculada a um grupo que, ainda que não
institucionalizado, circunde esse ambiente. Para tanto,
dá exemplos como a ação coletiva de arrumar uma praça
abandonada, se aproximando da ecologia social de Murray
Bookchin. Ademais, somente o fato de haver na ocupação
um grupo denominado DA (ação direta), responsável pelo
planejamento das ações que seriam praticadas, já é capaz
de deixar os leitores interessados por práticas anarquistas
no interior do Occupy um tanto confusos.
Essa confusão proposital se faz presente em diversas
passagens do livro, como quando Bray afirma que o
Occupy foi um movimento anarquista. Por outro lado,
algumas histórias, em especial no terceiro e no quarto
capítulos, empolgam ao narrar ações e invenções
anarquistas no interior do Occupy – como a tenda médica
da ocupação sinalizada como “a cruz vermelha e negra”,
e as manifestações que escancaravam o embate contra
o capitalismo, como a de Goldman Sach, em dezembro
de 2011, quando se ouviu pela primeira vez o grito
“a-anticapitalista!” –; as contestações antiglobalização, nas
quais o autor esteve presente em suas primeiras ações como
jovem punk pelas ruas de New Jersey; e, principalmente,
suas experimentações durante uma viagem à Atenas no
final de 2012.
Na percepção coletivista de Bray, o próprio slogan do
movimento, “nós somos os 99%”, elaborado por David
Graeber, foi responsável por apresentar “de maneira
digerível” (p. 155) os conceitos anarquistas, reclamando
“senso de classe” (idem) de uma maneira inclusiva
e majoritária, e atraindo também os considerados
despolitizados. Diante do sucesso desse slogan, que só foi
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lançado em agosto de 2012, os organizadores suspenderam
a estratégia de esconderem-se como “alternativos”. Um dos
entrevistados comenta que “isso [de ser anarquista] não
afugenta mais as pessoas e mostra que pessoas normais
são anarquistas” (p. 161).
Os valores da moral de alguns anarquistas, além de
confundirem o leitor, mostram que, para eles também,
certas diferenças devem ser aniquiladas. O entendimento
das práticas de liberdade como “sementes revolucionárias”,
úteis, continua a afirmar a liberdade como um valor. Assim,
se tornam meios para construir um mundo melhor e, um
dia, quem sabe, se chegar à sociedade anarquista.
Contudo, para além das dissonâncias, Translating
Anarchy mostra que a partir dos espaços de liberdade
produzidos no interior das democracias, é possível
propiciar novas experimentações e outras inventividades.
Dos depoimentos transcritos no livro, muitos contam
transformações de gente que entrou para o combate em
vez de seguir desejando reformas neoliberais para angariar
melhorias.
Mesmo que o anarquismo não seja “a bola da vez”,
como sinaliza Graeber, o que Bray busca confirmar, longe
da morte do anarquismo declarada por alguns cientistas
das humanidades, o livro mostra que há sempre aqueles
que apreciam a vida livre e certos espaços que podem
propiciar e ampliar práticas livres.
Translating Anarchy – The Anarchism of Occupy Wall
Street, apesar de conter um interesse maior, que por vezes
torna a leitura um tanto cansativa e bastante direcionada,
interessa a quem está atento às resistências na sociedade
de controle e às práticas anarquistas no presente. E talvez
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por isso, também incomode a recorrência comparativa
frequente do autor a acontecimentos do século XIX.
Por fim, o que Bray mostra, para além de seu livro e do
Occupy, é a necessidade de se ter paciência para perceber
certas nuances que atravessam ou se desdobram a partir das
movimentações atuais, e é assim que podemos encontrar
algo menor que passa despercebido pelas manchetes de
jornais e também pelas organizações de massas, tão
aclamadas por Bray.
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NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999;
flecheira libertária, semanal, desde 2007;
Aulas-teatro
Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007;
Eu, Émile Henry, outubro de 2007;
FOUCAULT, maio de 2008;
estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009;
limiares da liberdade, junho de 2009;
FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010;
drogas-nocaute, maio de 2010;
terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011;
eu, émile henry. resistências., maio de 2011;
LOUCURA, outubro de 2011;
saúde!, maio e outubro de 2012;
limiares da liberdade, maio e agosto de 2013;
anti-segurança, outubro/novembro de 2013 e fevereiro de 2014;
drogas-nocaute 2, maio de 2014.
DVDs e exibições no Canal Universitário/TVPUC
ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; exibição de set a
out/2007, jan a mar/2008 e fev a abr/2009.
os insurgentes, edição de 9 programas; exibição de abr a jun/2008, jun a
ago/2008 e dez/2008 a fev/2009.
ágora, agora 2, edição de 12 programas; exibição de set a dez/2008, abr a
jun/2009 e jun a out/2009.
ágora, agora 3, edição de 7 programas; exibição de out a nov de 2010.
carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, exibição de out
a nov/2010, 2011 e 2012.
ecopolítica-ecologia, exibição em ago/2012.
ecopolítica-segurança, exibição em nov/2012.
ecopolítica-direitos, exibição em abr/2013.
Vídeos
Libertárias (1999); Foucault-Ficô (2000); Um incômodo (2003); Foucault,
último (2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra
civil espanhola (2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008);
Vídeo-Fogo (2009).
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
Incômodo).
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004
29 títulos.
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verve
r
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(em até 10 linhas) e três palavras-chave.
Notas explicativas:
As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim
de texto.
Resenhas não devem conter notas explicativas.
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Citações:
As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto
observando o padrão a seguir:
I) Para livros:
Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.
Ex: Rogério Nascimento. Florentino de Carvalho: pensamento
social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000, p. 69.
II) Para artigos ou capítulos de livros:
Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,
página.
Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios,
vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, Coleção
Os pensadores, 1987, p. 76.
III) Para artigos publicados em periódicos:
Nome do autor. “Título” in Nome do periódico. Cidade, Editora,
volume e/ou número, ano, páginas.
José Maria de Carvalho. “Elisée Reclus, vida e obra de um apaixonado da natureza e da anarquia” in Utopia. Lisboa, Associação
Cultural A Vida, n. 21, 2006, pp. 33-46.
IV) Para citações posteriores:
a) primeira repetição: Idem, p. número da página.
b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.
c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano,
op. cit., p. número da página.
V) Para obras traduzidas:
Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor].
Cidade, Editora, ano, número da página.
Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma
T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p.42.
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VI) Para textos publicados na internet:
Nome do autor ou fonte. Título. Disponível em: http://[endereço
da web] (acesso em: data da consulta).
Ex: Claude Lévi-Strauss. Pelo 60º aniversário da Unesco. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/indexn1.htm
(acesso em: 24/09/2007).
VII) Para resenhas:
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título, da seguinte maneira:
Nome do autor. Título da Obra. Tradutor (quando houver). Cidade,
Editora, ano, número de páginas.
Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro,
Ed. Guanabara, 1987, 193 pp.
As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico
para o endereço [email protected] salvos em extensão “.docx”. Na
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São Paulo/SP.
Informações e programação das atividades
do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org
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revista
ecopolítica
jan - abr 2014
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