tribunal de justiça do estado do rio de janeiro terceira câmara

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
TERCEIRA CÂMARA CÍVEL
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010263-81.2004.8.19.0023
2ª VARA CÍVEL DE ITABORAÍ
APELANTE: VERA LÚCIA CEZARIO DA SILVA
APELADO: ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RELATOR: DES. CEZAR AUGUSTO RODRIGUES COSTA
Apelação Cível. Ação indenizatória em face do Estado do Rio de
Janeiro por danos morais sofridos reflexamente pela autora,
esposa de paciente de unidade hospitalar estatal que
supostamente não teve tratamento adequado. Sentença de
improcedência pautada no fato de que a autora não possuía
legitimação para pleitear a indenização, pois o necessário liame
afetivo entre ela e seu esposo foi cindido, já que as provas
mostraram que viviam separados de fato, habitando em
endereços distintos. Apelação da autora. Dano moral por
ricochete que afeta indiretamente pessoa que não seja a vítima
da ofensa. Negar legitimação àquela que é esposa, ainda que
eventualmente viva sob outro teto, não é condizente com a
melhor interpretação do instituto. A intensidade e a dimensão
dos laços de afinidade não podem ser ponderados simplesmente
pelo logradouro de suas residências devendo ser balizados pelos
elos que os uniam, ainda que de pura amizade, carinho e
consideração. O liame de proximidade entre ambos está
comprovado pelo fato da autora ter ficado como responsável
por ele durante toda a internação. Prontuários que confirmam o
fato. Cabimento à hipótese do dano moral em ricochete.
Alegados danos de ordem moral comprovados. Direito
constitucional à saúde. Dever do Estado em materializá-lo.
Responsabilidade objetiva. Teoria do risco administrativo. As
alegações de abandono e falta de higiene presumem-se
verdadeiras. Primeiro porque o Estado não impugnou nenhum
destes fatos. Preclusão lógica que provoca a presunção relativa
de veracidade dos fatos alegados. Artigo 473 do Código de
Processo Civil. Ônus da contestação especificada. O segundo
argumento a favor da verdade dos fatos são as provas
carreadas aos autos. Depoimentos das testemunhas confirmam
a falta de higiene e abandono. Extensas escaras de decúbito
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que acometem pacientes que ficam acamados por longos
períodos. Métodos preventivos ou atenuantes que não foram
adotados pelo hospital. Falta de aplicação de recursos da saúde
na aquisição de bens para tratamento dos doentes. Registros
de prontuário que não comprovam a realização de mudança de
decúbito e higienização. Falta de zelo do qual necessitava o
doente. Réu que alega ter a vítima entrado no hospital em
péssimo estado de saúde, mas que o deixou sem visitação
médica por aproximadamente 36 horas. Configurada a atitude
omissiva do réu e a verossimilhança dos fatos aduzidos pela
autora. Paciente que foi retirado da unidade pela autora sem a
devida alta hospitalar. Dúvida quanto a liberalidade permitida
pelo hospital. Através do exame das fotos dos ferimentos é
espantoso que pudessem ser tratados por pessoa sem
qualificação em área médica. Morte superveniente, um mês
após a saída do estabelecimento hospitalar. Dano moral in re
ipsa. Quantum reparatório que deve atender a um parâmetro
de razoabilidade e um caráter punitivo-pedagógico. Valor
determinado de R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais).
Sentença reformada in totum. Recurso que se conhece e se DÁ
PARCIAL PROVIMENTO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº
0010263-81.2004.8.19.0023 em que é apelante VERA LÚCIA CEZARIO DA
SILVA e apelado o ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
ACORDAM os Desembargadores da Terceira Câmara Cível, por
unanimidade, em CONHECER e DAR PARCIAL PROVIMENTO AO PRESENTE
RECURSO, reformando a sentença do Juízo a quo, nos termos do voto do
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2012.
Cezar Augusto Rodrigues Costa
Desembargador Relator
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2ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE ITABORAÍ
APELANTE: VERA LÚCIA CEZARIO DA SILVA
APELADO: ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RELATOR: DES. CEZAR AUGUSTO RODRIGUES COSTA
RELATÓRIO
Trata-se de apelação cível interposta por VERA LÚCIA CEZARIO
DA SILVA contra sentença proferida pelo Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca
de Itaboraí em ação de responsabilidade civil, pelo rito ordinário, que julgou
improcedente o pedido de indenização por danos morais pleiteado pela
apelante em face do ora apelado, ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Em peça inicial, fls. 02/04, a autora aduziu ser esposa de Antonio
Vieira da Silva, doente que foi internado em unidade hospitalar do réu em maio
de 2004, Hospital Estadual João Batista Caffaro. Alegou que o agravamento
do estado de saúde de seu marido se deu em decorrência de uma injeção que
lhe gerou um caroço nas costas e que veio a interferir em sua mobilidade.
Além disto, sustentou haver omissão dos réus em não providenciar tratamento
adequado ao paciente, abandonando-o ao leito e sequer realizando os
procedimentos de higiene. Destarte, a autora, por presenciar o descaso junto
à vítima, requereu a condenação do réu por danos morais em nome próprio no
valor de R$400.000,00 (quatrocentos mil reais). Contestação, às fls. 28/36,
sustentando preliminarmente a ilegitimidade ativa e no mérito, em síntese,
argumentando que a responsabilidade civil só se aplica ao Estado em caso de
erro médico por culpa de preposto do hospital, o que refutou. Esclareceu,
ainda, que o paciente deu entrada no hospital em péssimo estado de saúde e
que as escaras presentes nas fotos trazidas pela autora são comuns em
pacientes que ficam acamados por longo período.
Preliminares rejeitadas em fls. 604. Promoção da promotoria no
sentido de improcedência do pedido, fls. 653/656. Sentença, fls. 658/660, de
improcedência do pedido inicial sob justificativa de ser evidente que a autora
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vivia separada de fato de seu marido, habitando em endereço distinto e que,
destarte, estavam desfeitos os laços afetivos necessários a sua legitimação
para pleitear indenização decorrente de danos morais. Inconformada, a
apelante pleiteia a procedência do pedido, em fls. 676/679, reiterando as
alegações iniciais. Contrarrazões do Estado, fls. 684/691, prestigiando a
sentença.
Parecer recursal do Ministério Público em fls. 693/694,
manifestando-se pelo conhecimento do recurso e seu desprovimento.
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RELATOR: DES. CEZAR AUGUSTO RODRIGUES COSTA
Apelação Cível. Ação indenizatória em face do Estado do Rio de
Janeiro por danos morais sofridos reflexamente pela autora,
esposa de paciente de unidade hospitalar estatal que
supostamente não teve tratamento adequado. Sentença de
improcedência pautada no fato de que a autora não possuía
legitimação para pleitear a indenização, pois o necessário liame
afetivo entre ela e seu esposo foi cindido, já que as provas
mostraram que viviam separados de fato, habitando em
endereços distintos. Apelação da autora. Dano moral por
ricochete que afeta indiretamente pessoa que não seja a vítima
da ofensa. Negar legitimação àquela que é esposa, ainda que
eventualmente viva sob outro teto, não é condizente com a
melhor interpretação do instituto. A intensidade e a dimensão
dos laços de afinidade não podem ser ponderados simplesmente
pelo logradouro de suas residências devendo ser balizados pelos
elos que os uniam, ainda que de pura amizade, carinho e
consideração. O liame de proximidade entre ambos está
comprovado pelo fato da autora ter ficado como responsável
por ele durante toda a internação. Prontuários que confirmam o
fato. Cabimento à hipótese do dano moral em ricochete.
Alegados danos de ordem moral comprovados. Direito
constitucional à saúde. Dever do Estado em materializá-lo.
Responsabilidade objetiva. Teoria do risco administrativo. As
alegações de abandono e falta de higiene presumem-se
verdadeiras. Primeiro porque o Estado não impugnou nenhum
destes fatos. Preclusão lógica que provoca a presunção relativa
de veracidade dos fatos alegados. Artigo 473 do Código de
Processo Civil. Ônus da contestação especificada. O segundo
argumento a favor da verdade dos fatos são as provas
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carreadas aos autos. Depoimentos das testemunhas confirmam
a falta de higiene e abandono. Extensas escaras de decúbito
que acometem pacientes que ficam acamados por longos
períodos. Métodos preventivos ou atenuantes que não foram
adotados pelo hospital. Falta de aplicação de recursos da saúde
na aquisição de bens para tratamento dos doentes. Registros
de prontuário que não comprovam a realização de mudança de
decúbito e higienização. Falta de zelo do qual necessitava o
doente. Réu que alega ter a vítima entrado no hospital em
péssimo estado de saúde, mas que o deixou sem visitação
médica por aproximadamente 36 horas. Configurada a atitude
omissiva do réu e a verossimilhança dos fatos aduzidos pela
autora. Paciente que foi retirado da unidade pela autora sem a
devida alta hospitalar. Dúvida quanto a liberalidade permitida
pelo hospital. Através do exame das fotos dos ferimentos é
espantoso que pudessem ser tratados por pessoa sem
qualificação em área médica. Morte superveniente, um mês
após a saída do estabelecimento hospitalar. Dano moral in re
ipsa. Quantum reparatório que deve atender a um parâmetro
de razoabilidade e um caráter punitivo-pedagógico. Valor
determinado de R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais).
Sentença reformada in totum. Recurso que se conhece e se DÁ
PARCIAL PROVIMENTO.
VOTO
O recurso interposto é tempestivo e ostenta os demais requisitos de
admissibilidade, razão porque o conheço. Tratam os autos de ação
indenizatória em face do Estado do Rio de Janeiro por danos morais sofridos
reflexamente pela autora, esposa de paciente de unidade hospitalar estatal
que supostamente não teve tratamento adequado.
A sentença de
improcedência do pedido autoral se pautou, única e exclusivamente, no fato de
que a autora não possuía legitimação para pleitear a indenização por danos
morais, pois o necessário liame afetivo entre a autora e seu esposo doente foi
cindido já que as provas mostraram ser evidente que a autora vivia separada
de fato de seu marido, o ofendido direto, habitando em endereço distinto.
Neste sentido também foi o parecer Ministerial em ambas as instâncias.
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Este, contudo, não é o melhor entendimento para consideração dos
legitimados a pleitear a indenização do denominado dano moral por ricochete
(reflexo ou indireto), que afeta indiretamente pessoa que não seja a vítima da
ofensa. Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi1, “embora o ato tenha sido
praticado diretamente contra determinada pessoa, seus efeitos acabam por
atingir, indiretamente, a integridade moral de terceiros. É o chamado dano
moral por ricochete ou préjudice d'affection, cuja reparação constitui direito
personalíssimo e autônomo”. No voto, a Ministra ainda cita o professor Caio
Mário da Silva Pereira: “falecendo ou ficando gravemente ferida uma pessoa, o
dano pode atingir outra pessoa que o morto ou ferido socorria ou alimentava,
ou em caso de dano moral, aquela que pela vítima cultivava afeição, e que
'sofreu os seus sofrimentos”. Conclui ao final que “assim, são perfeitamente
plausíveis situações nas quais o dano moral sofrido pela vítima principal do ato
lesivo atinjam, por via reflexa, terceiros como seus familiares diretos, por
lhes provocarem sentimentos de dor, impotência e instabilidade emocional.”
Não há dúvidas, à vista disso, que aqueles ligados ao lesado são também
afetados e tornam-se vítimas indiretas do ato abusivo e que, assim, o dano
moral indireto alcança a indenização de parente que sofre de maneira
contumaz com a enfermidade do outro, pois o trauma e a angústia profunda
provocados por uma situação de calamidade do enfermo pode ocasionar o
direito à indenização. Confirmando o entendimento aqui exposto vale dar
destaque ao seguinte julgado deste Tribunal:
APELAÇÃO CIVEL. DIREITO À SAÚDE. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO MÉDICOHOSPITALAR. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO. TEORIA DO RISCO
ADMINISTRATIVO. OMISSÃO ESPECÍFICA. DEVER DE INDENIZAR. DANO
MORAL EM RICOCHETE. SOBRINHO.1 - Agravo retido rejeitado. Legitimidade
ativa do Autor. Aplicação da teoria da asserção; Dano moral em ricochete, autor
pleiteia direito próprio em nome próprio; rejeição da preliminar; 2 - Cinge-se a
presente questão em perquirir a responsabilidade do Município quanto aos danos
de ordem moral suportados pelo Autor, uma vez que este acompanhou seu tio
junto a hospital municipal para atendimento médico, cuja falha de prestação de
serviço levou-o a óbito; 3 Responsabilidade civil do Estado rege-se pela aplicação
da teoria do risco administrativo. Artigo 37, §6º da CR e artigo 43, do CC.
Igualmente aplicável a teoria do órgão, pela qual a atuação da Administração se
dá através de seus órgão e agentes, em exercício do múnus público; 4- Diante
dos fatos narrados, não restam dúvidas acerca da falha na prestação de serviço
público de saúde, diante da absoluta negligência dos agentes do ente público em
prestar adequado e eficiente atendimento médico junto à unidade hospitalar,
tendo o Autor acompanhado de perto total descaso a seu ente querido, cujo
martírio terminou com o seu falecimento; 5- Elo afetivo e proximidade entre
sobrinho e tio comprovado justamente pelo fato do sobrinho ter feito não apenas o
encaminhamento do tio ao hospital, mas ter ficado como único responsável por
1
REsp 1208949 / MG - RECURSO ESPECIAL - 2010/0152911-3 - TERCEIRA TURMA - 07/12/2010.
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ele, durante toda a internação; Excepcionalidade da proximidade e laços afetivos
entre tio e sobrinho, a justificar a indenização; 6- a Constituição de 1988, ao cuidar
da ordem social, assegurou a todos os indivíduos o direito à saúde, estipulando o
correlato dever jurídico do Estado de prestá-la, consoante dispõe o artigo 196 da
CRFB/88. Garantia correlata ao próprio Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, que consiste em um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito. Realidade da rede pública de saúde, que evidencia o péssimo estado de
conservação e a má gestão da unidade hospitalar municipal, responsabilidade do
estado calcada na sua omissão específica, ausência de atendimento médico, ou
precariedade deste; 7 Caráter difuso e extremamente subjetivo do dano moral,
que se dá in re ipsa, ou seja, dispensa provas materiais concretas, pois deriva do
próprio fato ofensivo. Autor que experimentou verdadeiro martírio junto ao seu
ente querido, na expectativa de obter o atendimento médico adequado. Contudo,
ao contrário, assistiu de perto a sua agonia, acompanhando intenso abalo
emocional decorrente do serviço público flagrantemente deficiente, indesejável e
reprovável, que culminou no seu óbito, dano moral em ricochete; 8 - Valor do dano
moral moderadamente arbitrado pelo douto magistrado a quo, de acordo com os
critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Manutenção da sentença. Negado
provimento ao recurso.
Óbvio que conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos que
sofreram com a perda de alguém é fora de propósito e significaria uma
obrigação sem fim ao causador do dano, em alcance desproporcional ao ato
motivador. Entretanto, negar legitimidade àquela que é esposa, que consta
como responsável nos prontuários médicos do prejudicado e que o acompanhou,
ainda que eventualmente viva sob outro teto, também não é condizente com a
melhor interpretação do instituto. A intensidade e a dimensão dos laços de
afinidade não podem ser ponderados simplesmente pelo logradouro de suas
residências, com mais razão, deveriam ser balizados pelos elos que os uniam,
ainda que de pura amizade, carinho e consideração. Por este motivo e não por
outro, foi a autora que cuidou, dentro dos limites próprios, de seu marido. O
liame de proximidade entre ambos está comprovado justamente pelo fato
daquela ter ficado como responsável por ele durante toda a internação – fls.
50. Assim sendo, ostenta a autora legitimidade para pleitear direito próprio à
reparação por danos morais.
Ademais, os próprios autos, em outros momentos, confirmam o elo
entre a autora e o lesionado direto. Conforme fl. 55, o doente se declarou
“casado” quando deu entrada no estabelecimento hospitalar, não existindo
maior prova do vínculo que os unia do que a própria declaração do paciente.
Por outro lado, a psicologia e o serviço social do hospital, à fl. 574, dão à
autora o título de “esposa” e se referem à “casa” dos mesmos: “... fiz o
atendimento a sua esposa, D. Vera Lucia Erário ...”; “... compareceu o serviço
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social a esposa do paciente Antonio, a qual informou-nos que estava retirando
da unidade para levá-lo para casa ...”. Portanto, a tese adotada na sentença
deve ser rechaçada porque a autora assistiu de perto a agonia do doente,
suportando intenso abalo emocional diante de serviço público deficiente.
Ultrapassada a questão do cabimento à hipótese do dano moral em
ricochete em favor da autora que pleiteia direito próprio em nome próprio,
cinge-se a controvérsia quanto aos supostos danos de ordem moral suportados,
uma vez que aquela alega ter sido precário o atendimento médico. Tratam os
autos de tema relacionado ao direito constitucional à saúde e à própria vida,
bem maior do ser humano, direito público subjetivo e indisponível assegurado a
todos no artigo 6º da Carta Magna: ”São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição”. Cuida-se do dever do Estado em materializar o direito à
saúde à generalidade das pessoas, que impõe a sua responsabilização ao
fornecimento gratuito e de qualidade a todos.
O dever jurídico do Estado de garantir a todos o direito à saúde,
encontra-se respaldado na Constituição Federal: “Artigo 196 - A saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação” e o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento de que
a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público é objetiva,
sobre a qual incidem as normas da Constituição Federal, artigo 37, § 6º, que
destaca a responsabilidade mediante aferição de seus elementos
constitutivos: o fato administrativo, o dano e o nexo de causalidade entre
ambos. Na teoria do risco administrativo basta a comprovação de que o dano
foi resultante da atuação ou omissão estatal, ficando comprovada a relação de
causa e efeito entre a ação e o evento danoso. A Constituição da República
responsabiliza as pessoas jurídicas de direito público pelos danos causados
pelos seus agentes a terceiros, com mais razão ainda quando se trata do bem
maior a ser tutelado pelo Estado, a vida.
Tendo em vista o direito à vida e a aplicação imediata das normas
relativas à saúde, este direito merece integral proteção, devendo o ente
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federativo gerir e empreender todos os recursos com a devida competência
para garantir os direitos fundamentais à saúde através da prestação de
serviços adequados, eficientes e seguros.
Considerando que a autora
acompanhou o descaso direcionado a seu esposo, merece ser acolhido o
inconformismo da recorrente diante dos fatos narrados, das provas
testemunhais e de acordo com os documentos elencados pela autora e pelo
próprio réu. Não restam dúvidas acerca da falha na prestação de serviço
público de saúde, diante da conduta dos agentes do ente público na má
prestação de atendimento médico junto ao paciente na unidade hospitala ré.
Entre as alegações autorais, diga-se que não há provas nos autos
quanto ao caroço na parte de trás do corpo do paciente ter sido provocado por
uma aplicação descuidada de injeção - fls. 02, portanto, deve ser refutado
este fato por falta de verossimilhança. Além do mais, o réu trouxe aos autos
provas em contrário no sentido de que até mesmo uma má aplicação de injeção
não poderia originar a protuberância no doente - fls. 617/618. Entretanto, os
argumentos de abandono e falta de higiene hão de ser considerados
verdadeiros. Primeiro, porque o Estado não impugnou nenhum destes fatos na
ocasião da apresentação da contestação, portanto o fenômeno da preclusão
lógica se operou quanto aos mesmos e a consequencia jurídica da falta de
negação especificada é a presunção relativa de veracidade dos fatos alegados,
nos termos do artigo 473 do Código de Processo Civil: “É defeso à parte
discutir, no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se
operou a preclusão.”.
A contestação é a peça de defesa do réu mais importante porque é o
primeiro momento em que tal parte deve expor todos os argumentos de defesa
que se contrapõem às pretensões que o autor alega na inicial, desta forma, o
ordenamento jurídico impõe ao réu o ônus da contestação especificada, ou
seja, deve defender cada fato citado pelo autor. Certo é que o réu nega
somente o suposto erro médico praticado por preposto do Estado na aplicação
da injeção no paciente e a falta de nexo de causalidade quanto ao
aparecimento de um caroço que teria contribuído para a superveniente
imobilidade dos membros inferiores. Se o desamparo e o desleixo com a
higiene não foram impugnados pela unidade hospitalar em sua peça de defesa,
os fatos se tornaram incontroversos. Contudo, a presunção de veracidade é
relativa e deve ser aferida diante de outras provas e, desta forma, o segundo
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argumento a favor da verdade dos fatos são as provas carreadas aos autos.
Por exemplo, os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora:
Fls. 650 – “ ... nas vezes que foi ao hospital fazer a visita,
constatou que Antonio não era bem cuidado, inclusive com fezes
e urina no próprio leito ... o mesmo dizia que a depoente que já
estava nessa condição a algum tempo ...”.
Fls. 651 – “...Antonio não estava com um cheiro muito bom e
pareceu a depoente que se tratava de fezes ... Antonio reclamou
com a depoente dizendo que queria sair do hospital porque era
mal tratado ... salvo engano, Antonio estava só com um pano
enrolado na altura da cintura ... tórax e pernas estavam a
mostra ...”.
Do mesmo modo, dos depoimentos das testemunhas trazidas pela
parte ré pode-se inferir a incapacidade do hospital em prover o asseio dos
enfermos sob sua responsabilidade:
Fls. 616 - “ ... nos casos como o presente, é comum dar
autorização às famílias dos pacientes para que ajudem na
higiene e alimentação ...”.
E, mais, sobre o aparecimento das extensas escaras de decúbito (ou
úlceras de pressão) que podem ser observadas nas fotografias anexadas – fls.
15/19 e 674/675 - extrai-se do depoimento de médico preposto do hospital
que existem métodos preventivos ou atenuantes para tais úlceras que
acometem pacientes que ficam acamados por longos períodos:
Fls. 618 – “ ... que a mudança de decúbito do paciente a cada
duas horas pode contribuir para evitar o aparecimento das
escaras; que para a prevenção é indicada a utilização de um
colchão de ar, ou colchão d’água; que não sabe informar se o
hospital em referência dispõe desses colchões; que
considerando as fotos acostadas, não pode afirmar se ao
paciente foi dispensada ou não a mudança de decúbito a cada
duas horas ...”.
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Pois bem, de acordo com artigo 25 da Resolução do Conselho Federal
de Enfermagem nº 311/07 – Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem
– é responsabilidade do enfermeiro “Registrar no Prontuário do Paciente as
informações inerentes e indispensáveis ao processo de cuidar.”, o que,
evidentemente, engloba a higienização e, também, a mudança da posição do
corpo do assistido. Porém, ao compulsar as folhas de evolução de enfermagem
e os prontuários acostados pela casa de saúde, fls. 48/578, percebe-se que
não existem anotações a cada duas horas sobre a mudança de decúbito. Aliás,
raramente aparecem tais anotações, que não constam sequer com regularidade
diária.
Desta forma, por falta absoluta de comprovação infere-se que não
houve o zelo do qual necessitava o doente e que a atitude do hospital
contribuiu para o aparecimento e agravamento das espantosas escaras,
capazes de causar repugnância extrema.
Frise-se que, embora os
procedimentos não impeçam o aparecimento das úlceras, a prevenção sequer
foi adotada pelo hospital. Ainda mais grave é a outra afirmação do médico de
que os ferimentos ocorrem em 90% (noventa por cento) dos pacientes
longamente acamados, mas que não sabe informar se o hospital possui os
colchões apropriados. Se a quase totalidade dos pacientes em internação
prolongada sofrem do mal, é imperioso que haja utilização de recursos da
saúde aplicados na aquisição de tais bens em observância ao Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana.
A mesma crítica quanto à falta de registros sobre a mudança de
decúbito se aplica sobre a higiene diária do cuidado.
Tais anotações
imprescindíveis formam o único documento que relata todas as ações da
enfermagem junto ao paciente e destina-se a garantir a comunicação efetiva
entre toda a equipe de saúde. Considerando que não há referência regular
sobre a realização dos procedimentos, configurada está a atitude omissiva dos
responsáveis pela saúde e a verossimilhança dos fatos aduzidos pela autora.
Como se não bastasse, o Estado alega em sua defesa que o marido da
autora deu entrada no hospital em péssimo estado de saúde, com distúrbios
multifatoriais entre os quais, desnutrição, alcoolismo, tuberculose não tratada
e hérnias inguinais bilaterais – fls. 32. O ingresso no estabelecimento se deu
em 09/05/04 às 10:20, quando o paciente obteve diagnóstico de médico da
emergência, entretanto, apesar da péssima condição reconhecida pelo réu,
permaneceu o doente sem visitação médica até às 22:00 do dia seguinte,
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aproximadamente 36 horas de abandono clínico. Neste sentido, registro de
10/05/04 às fls. 62: “Paciente até o momento sem avaliação médica. Foi
solicitado várias vezes no período. Ciente equipe de enfermagem. Paciente sem
prescrição. Foi administrada prescrição anterior. Paciente anúrico.”. Não
deixam as provas nenhum resquício de dúvida quanto à atitude omissiva e
irresponsável do réu. Não há como sustentar, portanto, a inexistência de
liame entre a omissão estatal e o evento danoso.
Por fim, em 12/10/04, o paciente foi retirado da unidade pela autora
sem a devida alta hospitalar - fl. 574. Entretanto, se o estado de saúde do
mesmo era péssimo como sustenta o réu, seria o caso de se ter por impossível
esta liberalidade por parte da autora, já que se presume pelas alegações do
hospital que este teria total condição de tratar adequadamente o caso. Custa
ao leigo acreditar, através do exame das fotos do esposo da autora - fls.
15/19 e 674/675 -, que os ferimentos pudessem ser tratados por pessoa sem
qualificação em área médica.
Outro não foi o final da história, com
superveniente óbito em novembro no mesmo ano, 1 mês após a saída do
estabelecimento hospitalar, mesmo tendo dada entrada em outra casa de
saúde, em 07/11/04, aparentemente, em momento tardio.
Por todo o exposto, conclui-se que foi o comportamento do réu que
representou o fato decisivo para a ocorrência do dano de ordem moral
suportado pela autora em verdadeiro martírio ao acompanhar a situação de
saúde seu marido, destarte, o nexo causal está confirmado, sendo hipótese de
responsabilidade do Estado na reparação dos danos. O dano moral se dá in re
ipsa, ou seja, dispensa provas materiais concretas, pois deriva do próprio fato
ofensivo.
Finalmente, forçosa a análise do quantum reparatório a ser
arbitrado por compensação de danos morais. Este não pode ser excessivo a
ponto de ensejar um enriquecimento sem causa, porém deve ser significativo
para compensar o vitimado pelo descaso a que foi submetido, devendo atender
a um parâmetro de razoabilidade e um caráter punitivo-pedagógico com a
finalidade de incentivar o ente estatal a prestar um serviço de saúde de
melhor qualidade aos cidadãos. Considerando as circunstâncias avistadas, o
valor determinado é de R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais) em consonância
com o já citado Recurso Especial nº 2010/0152911-3.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010263-81.2004.8.19.0023
RMP
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
TERCEIRA CÂMARA CÍVEL
O caso em tela só contribui para confirmar a realidade da rede
pública de saúde e a má gestão das unidades hospitalares, a incidir, no caso
concreto, a responsabilidade do Estado fundada na sua omissão e precariedade
de seus recursos médicos. Outrossim, distancia-se a sentença da justa solução
do caso, merecendo ser reformada in totum.
Por tais razões, VOTO no sentido de CONHECER e DAR PARCIAL
PROVIMENTO ao recurso para reformar sentença guerreada e condenar o
Estado do Rio de Janeiro ao pagamento do valor de R$25.000,00 (vinte e cinco
mil reais) à autora a título de verba compensatória pelos danos morais,
acrescida de juros de 1% (um por cento) ao mês a contar da citação e correção
monetária a contar desta data e ao pagamento das custas e honorários
advocatícios fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2012.
Cezar Augusto Rodrigues Costa
Desembargador Relator
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010263-81.2004.8.19.0023
RMP
Certificado por DES. CEZAR AUGUSTO R. COSTA
A cópia impressa deste documento poderá ser conferida com o original eletrônico no endereço www.tjrj.jus.br.
Data: 30/05/2012 20:00:25Local: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - Processo: 0010263-81.2004.8.19.0023 - Tot. Pag.: 14
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