A garantia do Direito 1. A garantia dos direitos Quando estudamos a especificidade das normas jurídicas face às normas morais, tivemos oportunidade de mencionar que as primeiras recebiam o amparo da coacção, mas também partilhavam com as segundas o apoio da consciência de cada um. Dito de outro modo, as normas jurídicas – e consequentemente, os direitos e deveres que daí derivam – são cumpridas voluntariamente pelos cidadãos em múltiplas ocasiões. Dir-se-á que a este cumprimento não é indiferente a percepção que a sociedade possui da existência de um aparelho coactivo do Estado pronto a entrar em acção, caso alguém pretenda escusar-se às suas obrigações. Há, no entanto, cumprimento do direito que resulta de uma adesão genuína e desinteressada dos cidadãos face à bondade das suas normas. Neste sentido, um verdadeiro cumprimento dos direitos reconhecidos em cada sistema jurídico depende de estarem reunidas condições e circunstâncias de alcance profundo no contexto da organização social. A História (mormente a mais recente) ensina que sociedades modernas, tecnológica e culturalmente avançadas, podem adoptar práticas absurdamente injustas, por mais contraditório que tal nos possa parecer. Concordamos com a identificação que PUY MUÑOZ (Garantias de los derechos, in manual de teoria del derecho, p. 310 e 311) faz do elenco de causas para estes fenómenos de afastamento do Direito: guerra, doenças, pobreza, ignorância, intolerância, falta de solidariedade e insegurança. Também subscrevemos os remédios receitados para estes males, por este autor: organização de sistemas de defesa de segurança social, desenvolvimento económico em contexto de liberdade de mercado, educação, pluralismo, democracia e Estado de Direito. Como se vê, é um programa ambicioso para qualquer sociedade humana do mundo actual. Não admira, pois, que as sociedades falem frequentemente de “crise justiça”, a qual vem a ser em grande medida uma crise das garantias que o Direito oferece aos “direitos”. Há, contudo, que explicitar que a garantia de que beneficiam os direitos subjectivos atribuídos no contexto de uma relação jurídica é, na verdade, um fenómeno complexo e multimodal cuja análise é imprescindível para a boa compreensão daqueles. Passaremos, pois, de seguida à análise das diferentes categorias de garantias que o sistema jurídico português acolhe. 2. Garantias estatais ordinárias Como se disse, uma das características externas da norma jurídica é, precisamente, a coercibilidade. Já atrás tivemos ocasião de precisar este conceito. Agora importa perceber de que forma a ordem jurídica a concretiza. A tutela coerciva dos direitos subjectivos desenvolve-se por duas grandes vias: a autotutela, assente sobre os recursos próprios do titular do direito, e a heterotutela, que repousa sobre a actuação de autoridade pública. Um primeiro critério de distinção, centrado na titularidade de exercício de meios de garantia permite distinguir entre mecanismo de autotutela e de heterotutela. a) A autotutela Os meios de autotutela, como mecanismos de garantia dos direitos, são vários e encontram-se dispersos por diferentes preceitos legais. Assim, são meios de autotutela a acção directa (art.º 336.º do CC), a legítima defesa (art.º 337.º do CC), o estado de necessidade (art.º 339 do CC), a compensação (art.º 847.º do CC), o direito de retenção (art.º 754.º CC), a excepção de não cumprimento (art.º 428.º CC) ou o direito de resistência (art.º CRP). b) A heterotutela Já a heterotutela implica a actuação de uma autoridade pública, seja ela judicial (os tribunais) ou administrativa. Um outro critério de classificação dos meios de garantia de direitos assenta sobre a análise do seu modo de actuação. Neste caso, os meios a considerar seriam os seguintes: I. Tutela preventiva, consistindo num conjunto de medidas que têm por finalidade impedir a violação da ordem jurídica. Por ex: acção de fiscalização. II. Tutela compulsiva, traduzindo-se em actuações sobre o infractor por forma a coagi-lo a adoptar o comportamento devido. Por exemplo, o pagamento de juros de mora, o direito de retenção, a excepção de não cumprimento, etc. III. Tutela reconstitutiva/compensatória, correspondendo à restauração de certa situação prévia à violação de um direito. Por exemplo, a indemnização por equivalente ou a reconstituição in natura. IV. Tutela punitiva, implicando uma penalização ou castigo do infractor. Por exemplo, a aplicação de uma pena de prisão ou multa. V. Tutela sancionatória, concretizada pela estipulação da invalidade e ineficácia dos actos jurídicos. Vg, art.º 286 e 287 do CC. A tutela coerciva do Estado exerce-se de forma mais evidente através dos Tribunais, mas também através da própria administração pública. Neste último caso trata-se do que se pode designar como tutela administrativa dos direitos. Assim, a administração pública desenvolve uma acção preventiva através de iniciativas de fiscalização. Também cabe à Administração Pública a tutela dos interesses do Estado face à resistência oferecida pelos cidadãos, mediante o exercício do privilégio da execução prévia. No sentido contrário, assume ainda a garantia dos direitos dos administrados que se consubstancia nos meios graciosos: seja a reclamação, seja o próprio recurso hierárquico. A tutela judiciária é, no entanto, a garantia por excelência dos direitos subjectivos. Exerce-se pelos tribunais que são, entre nós, órgão de soberania que administra a Justiça em nome do povo. Não possuem certamente a legitimidade democrática directa que outros detêm, no entanto o processo de legitimação das suas decisões assenta sobre a autoridade que a lei lhes atribui, a vinculação à lei que devem aplicar acima das convicções pessoais ou da representação dos voláteis interesses sociais. O estatuto dos magistrados judiciais é uma peça essencial dessa construção. O exercício da magistratura judicial encontra-se vinculado ao respeito pelo dever de imparcialidade e pela lei e seus critérios objectivos de Justiça. Por outra parte, essa isenção no exercício do cargo só é possível porque os juízes são independentes, irresponsáveis e inamovíveis. O legislador constitucional, estabelecida embora a vinculação do juiz à lei, admite a falibilidade de um sistema que assenta sobre o factor humano, pelo que consagrou o direito a um duplo grau de jurisdição, ou seja, o direito do cidadão a ver reapreciada uma qualquer decisão que seja proferida em litígio em que seja parte. Isto significa que os tribunais se encontram divididos hierarquicamente entre 1.ª instância, onde se verifica o ingresso das acções judiciais e tribunais superiores de recurso. Assim actualmente a organização judiciária engloba: tribunais de 1.ª instância e cujos juízes se designam por juízes de direito; tribunais da relação ou de 2.ª instância, com sede em Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Guimarães, que recebem os recursos de decisões proferidas na 1.ª instância, cujos juízes se designam desembargadores; e, no topo da hierarquia, temos o Supremo Tribunal de Justiça, com sede em Lisboa, cujos juízes se designam Conselheiros. O critério estabelecido para a admissibilidade dos recursos das decisões assenta sobre a alçada dos tribunais e o valor atribuído às acções judiciais. Trata-se de um critério pecuniário, mas que em certos casos é ficcional, já que para garantir o direito a recurso em certo tipo de acções judiciais, a lei fixa objectivamente o valor da acção em montante que permite a possibilidade de reapreciação da decisão judicial que vier a ser proferida em 1.ª instância. A diversidade das matérias de direito que devem ser conhecidas pelos tribunais mostrou ser conveniente a criação de tribunais de competência especializada, sobretudo nos grandes centros populacionais. Ao lado destes Tribunais de jurisdição comum, o sistema jurídico português prevê ainda a existência de Tribunais Administrativos e Fiscais, com uma organização judiciária própria. 3. Garantias estatais extraordinárias e garantias internacionais Ao lado dos meios de garantia estaduais ordinários que já mencionamos, os sistemas jurídicos consagram, por vezes, mecanismos com carácter extraordinário como é o caso do recurso de amparo constitucional, que prevê o direito espanhol. Acresce que existem actualmente um conjunto de outros mecanismos de garantia dos direitos que são de natureza internacional. Estes assentam na existência de um conjunto de jurisdições internacionais: Organização das Nações Unidas, Organização da Unidade Africana, Organização dos Estados Americanos, Conselho da Europa. De todos os sistemas jurisdicionais de protecção dos direitos, a nível internacional, cabe merecido destaque o europeu. A actuação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem sido um instrumento eficaz da defesa efectiva dos direitos dos cidadãos. A reprodução total ou parcial deste texto, quando não expressamente autorizada, é proibida. Maria Clara Calheiros 4. Garantias internacionais