UNIVERSIDADE GAMA FILHO ANA CRISTINA SILVA IATAROLA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Princípio norteador de justiça tributária e sua limitação pelos direitos fundamentais: mínimo existencial versus não confisco tributário DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Área de Concentração: Direito, Estado e Cidadania Rio de Janeiro 2005 2 UNIVERSIDADE GAMA FILHO CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Princípio norteador de justiça tributária e sua limitação pelos direitos fundamentais: mínimo existencial versus não confisco tributário ANA CRISTINA SILVA IATAROLA Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Gama Filho como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Lobo Torres. Agosto/2005 3 Dedico este trabalho a minha pequena Victória Maria pelas horas em que lhe privei do meu convívio e de nossas brincadeiras, pelas incansáveis perguntas sobre quem é essa “tal de Justiça”, o que era “Tributo” e de quando eu terminaria, na esperança de um mundo melhor. E por colorir a minha vida. Ao Marco, meu grande amor, por sua paciência e por seu apoio incondicional nesta jornada em busca do conhecimento. Aos meus pais, exemplo de vida, de fé e de otimismo, e por serem simplesmente perfeitos dentro de suas limitações humanas. 4 Agradeço ao Prof. Dr. Ricardo Lobo Torres, por ter compartilhado seu conhecimento, por seu empenho e preciosas orientações, por ter aberto caminhos para serem trilhados e por sua dedicação e talento como mestre. Aos professores do Mestrado da Universidade Gama Filho, em especial ao Prof. Dr. José Ribas Vieira e ao Prof. Dr. Francisco Mauro Dias, pelos incentivos na busca pelo conhecimento. Débora, por sua amizade, gentileza e por sua certeza de que chegaríamos ao fim. 5 “Nada mostra mais claramente o caráter de uma sociedade e de uma civilização do que a política fiscal que o seu setor público adota.” Schumpeter 6 RESUMO O princípio da capacidade contributiva tem origens no ideal de justiça fiscal, para o qual deve haver uma distribuição eqüitativa, justa e adequada da carga tributária entre os membros da sociedade. Cada pessoa deve contribuir para as despesas do Estado na proporção de sua capacidade contributiva, de forma que o ônus tributário suportado guarde relação com sua capacidade econômica, assegurando a não tributação do mínimo existencial, protegendo o cidadão contra o excesso da exigência tributária que possa ter o efeito de confisco. Assim, para que a atividade tributária atenda aos interesses da coletividade e respeite os direitos fundamentais aclamados constitucionalmente, deve pautar-se dentro dos parâmetros de razoabilidade, observando o limite mínimo e máximo dessa atividade. O princípio da capacidade contributiva está inserido no artigo 145, § 1º de nossa atual Constituição. É um princípio constitucional expresso, consagrado como critério de justiça distributiva, uma vez que propaga a tese igualitária da distribuição da carga tributária. Tem alcance amplo e se traduz num instrumento eficaz na concretização de uma tributação ideal, exprimindo a finalidade de justiça fiscal visada em nossa Carta Política. Reúne em sua observância os direitos fundamentais da limitação do poder de tributar, evitando que a tributação possa cercear os direitos constitucionalmente consagrados. Palavras Chaves: Capacidade; justiça; mínimo-existencial; confisco. 7 ABSTRACT The contributing capacity principle relies on the fiscal justice ideal, based on a balanced, fair and adequate taxation charge system for the various elements of society. Every citizen should contribute for the state’s general obligations and expenses, so that the taxation system keeps a closer relationship to every individual’s economic condition, assuring no taxation on the minimum living possessions and activities, thus protecting all citizen against over taxation that characterizes a confiscation act. Therefore, in order that the taxation government activity can meet the legal interests of community and show respect to its constitutionally recognized fundamental rights, it must be established within reasonability parameters, regarding both upper and lower limits for these taxation activities.The contributing capacity principle is established by the 145 article, § 1st of our present State Constitution as a clear explicit constitutional principle, assumed to be the main distributive justice criteria, considering that it carries the idea (thesis) of a balanced taxation charge policy. It has a wide approach and reveals to be efficient for an ideal taxation system achievement, expressing the real targets of fiscal justice as stated in our constitution. It includes in its observance, the fundamental rights associated to the taxation activity limitations, thus avoiding constitutional universal rights constraints. Key words: Capacity contributive; justice; minimum living; confiscation. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................09 CAPÍTULO I - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES . Seção I – ASPECTOS GERAIS .............................................................................14 . Seção II- A TRIBUTAÇÃO CONTEMPORÂNEA .................................................18 II.1- Pós- positivismo ......................................................................................19 II.2- Dogmática Principialista .........................................................................21 III.3- Pós-positivismo e tributação ...............................................................24 . Seção III – JUSTIÇA TRIBUTÁRIA .........................................................................28 CAPÍTULO II - O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, PRINCÍPIO NORTEADOR DE JUSTIÇA TRIBUTÁRIA . Seção I – ESCORÇO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA .........................................................................................................38 I.1- Origem e Histórico ...................................................................................38 I.2- O seu tratamento nas Constituições Brasileiras ..................................42 . Seção II- ESTUDO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA ........................................44 II.1 Conceito de Capacidade Contributiva ....................................................44 II.2- Capacidade Contributiva x Capacidade Econômica ............................51 II.3- Princípio da Capacidade Contributiva na Constituição Federal de 1988...................................................................................................................54 II.3.1- SENTIDO DA EXPRESSÃO “SEMPRE QUE POSSÍVEL” ....................55 II.3.2- SENTIDO DA EXPRESSÃO “CARÁTER PESSOAL” ............................59 II.3.3- SENTIDO DA FRASE “FACULTADO À ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA, ESPECIALMENTE PARA CONFERIR EFETIVIDADE A ESSES OBJETIVOS, IDENTIFICAR, RESPEITADOS OS DIREITOS INDIVIDUAIS E NOS TERMOS DA LEI, O PATRIMÔNIO, OS RENDIMENTOS E AS ATIVIDADES ECONÔMICAS DO CONTRIBUINTE”. ......................................61 II.4- O Princípio Da Capacidade Contributiva no Direito Comparado........64 . Seção III- APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.......70 III.1- Os Impostos e a Capacidade Contributiva ..........................................70 III.1.1- IMPOSTOS SOBRE O PATRIMÔNIO ..................................................71 III.1.2- IMPOSTOS INDIRETOS........................................................................74 III.2- Os Tributos Vinculados e a Capacidade Contributiva .......................77 III.2.1- CONTRIBUIÇÕES E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA .........................79 9 III.2.2- CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA E A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA................................................................................................82 III.2.3- TAXAS E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA ...........................................83 III.3- Tributos Extrafiscais .............................................................................86 . Seção IV- OS SUBPRINCÍPIOS: PROGRESSIVIDADE, SELETIVIDADE E PROPORCIONALIDADE ............................................................................................89 Iv.1- Progressividade .....................................................................................89 Iv.2- Seletividade ............................................................................................95 Iv.3- Proprocionalidade ................................................................................97 CAPÍTULO III - A LIMITAÇÃO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................................................................................100 . Seção I- O MÍNIMO EXISTENCIAL .......................................................................104 I.1- Mínimo existencial no Brasil ..............................................................106 I.2- Os fundamentos da proteção ao mínimo existencial .........................110 I.2.1- FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA LIBERDADE ...............................111 I.2.2- FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL.........113 I.2.3-FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA (IN)CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.............................................................................................114 . Seção II- O NÃO CONFISCO TRIBUTÁRIO ........................................................117 II.1- Conceito de confisco ..........................................................................118 II.2- Efeito de confisco ................................................................................121 II.2.1EFEITO DE CONFISCO E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA ............................................................................................127 . Seção III- A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA ............................................................................................................129 CONCLUSÃO ...........................................................................................................135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................141 ANEXOS ...................................................................................................................147 9 INTRODUÇÃO Em nenhuma outra época vivemos problemas tão gigantescos e numerosos com evidência para o aumento das desigualdades sócio-econômicas culminando com o desrespeito aos direitos fundamentais que comprometem a democracia e a paz. Devido ao aumento crônico dos déficits públicos, pela maciça expansão da despesa pública provocada pela máquina administrativa ineficiente e onerosa das políticas econômicas mal sucedidas, pela incapacidade de diminuição de gastos públicos e também pela corrupção, temos presenciado a constante necessidade de o Estado aumentar o volume da arrecadação tributária; sendo que o poder tributário, muitas vezes, é exercido com inobservância dos princípios invocados por nossa Constituição. O poder de tributar é um dos mais fortes poderes do Estado. É um importante instrumento de política pública e está no centro das atenções e revoltas políticas, econômicas e sociais. Há outras formas de custeio do Estado, mas a atividade tributária é uma das principais e a mais adequada em termos de sustentabilidade a longo prazo, desde que desenvolvida dentro dos parâmetros que nossa Carta Constitucional traçou; pois a necessidade financeira do Estado não permite uma distribuição arbitrária dos tributos entre os cidadãos, sendo necessário que seja exercida de uma maneira justa e adequada, para a obtenção de uma estrutura tributária ideal. O dever de contribuir é um pressuposto à existência do Estado, uma vez que é da atividade tributária que se tem maior quantitativo de receitas para custear a máquina estatal, sendo também um instrumento de transformação da sociedade e um elemento contribuidor para o fortalecimento dos princípios democráticos. Assim, 10 é necessário que haja uma relação juridicamente determinada entre o dever de contribuir e os direitos de quem suportará o ônus tributário, pois sem essa conformação não há como falar em Estado Democrático de Direito. É uma tendência da doutrina contemporânea a vinculação entre a atividade tributária e os direitos fundamentais, onde a proteção desses direitos é um fator essencial para a solidificação de um Estado Democrático de Direito. E nesta visão contemporânea, temos que a tributação existe como forma de realização da justiça social, com o propósito de se alcançar uma vida digna para todos; sendo os direitos dos contribuintes construídos a partir dos direitos de liberdade e de propriedade. Como a tributação hodierna envolve questões de uma sociedade pluralista, desigual e injusta, deve-se buscar justiça na tributação, sendo necessária a definição de um sistema tributário igualitário; de modo que o Estado ao exercer a atividade tributária distribua de forma equânime a carga tributária entre os membros da sociedade, para que os cidadãos contribuintes paguem tributos proporcionais e razoáveis em conformidade com a sua capacidade contributiva. Sendo o princípio da capacidade contributiva o mais importante princípio de justiça tributária, este é imprescindível para o exercício dos outros direitos assegurados na Carta Magna, uma vez que possui grande relevância na compreensão da igualdade na tributação, na afirmação da cidadania e na redução das desigualdades sociais. O princípio da incidência segundo a capacidade contributiva é de verificação bastante complexa, e enquanto princípio geral de direito tributário encontra-se limitado pelos direitos de liberdade. As limitações constitucionais desse princípio podem ser analisadas sob dois aspectos: um quantitativo e outro 11 qualitativo. O quantitativo protege o cidadão contra o excesso de tributação e do desrespeito ao mínimo necessário à sobrevivência digna; o aspecto qualitativo garante o contribuinte contra as discriminações arbitrárias e os privilégios odiosos concedidos a terceiros e também pelas imunidades subjetivas previstas no texto constitucional1. O presente trabalho tem a pretensão de estudar o princípio da capacidade contributiva, princípio mais importante de justiça tributária, a sua origem, evolução histórica através dos tempos, sua inserção em nosso atual ordenamento jurídico constitucional, sua aplicação e a sua limitação sob o aspecto quantitativo pelos direitos fundamentais. Para isto, primeiramente, foi necessário traçar o cenário constitucional em que nosso estudo se acha encartado, o que foi feito no primeiro capítulo, onde analisamos a tributação contemporânea, sob uma dogmática principialista, onde os princípios passaram a ocupar o coração das Constituições modernas. No segundo capítulo, tratamos do estudo do princípio da capacidade contributiva, seu histórico, conceituação e também como a norma constitucional acolheu este princípio, procuramos distinguir as expressões relacionadas à capacidade contributiva e o sentido das expressões “sempre que possível” e “caráter pessoal” dadas por nosso texto constitucional. Foi feito um balanço doutrinário e jurisprudencial no direito pátrio e também no direito comparado, uma vez que, atualmente, é raro um texto constitucional que não exige, expressa ou implicitamente, que os cidadãos contribuam para o custeio das necessidades do Estado segundo a sua capacidade contributiva. Uma vez que é universal a consciência desse princípio como norma de 1 TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação da capacidade contributiva e dos direitos fundamentais do contribuinte. In SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário - homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, V.I, 2003, p. 435. 12 justiça, este é um critério impossível de ser desprezado na busca por uma tributação justa. Para perquirir este estudo, utilizamos a metodologia de revisão bibliográfica, fazendo um estudo descritivo-analítico das questões, elaborando análise de conteúdos e confrontação das correntes doutrinárias e jurisprudenciais pertinentes ao tema. Sobre a aplicação do princípio da capacidade contributiva, analisamos a aplicação às diversas espécies tributárias, no sentido de verificar se em todas elas este princípio se faz presente, uma vez que as posições doutrinárias são divergentes. Para bem expor o princípio da capacidade contributiva,foi necessário também, tratar de seus subprincípios, pois o estudo da capacidade contributiva obrigatoriamente passa pela análise dos princípios da progressividade, da seletividade e da proporcionalidade. No último capítulo, ponto central do trabalho, centramos a pesquisa no estudo da limitação deste princípio norteador de justiça tributária pelos direitos fundamentais, uma vez que estes direitos são constantemente questionados diante do poder de tributar. Na análise da limitação, examinamos o relacionamento entre este princípio e os direitos fundamentais sob o aspecto quantitativo, traduzidos na imunidade do mínimo existencial e na vedação dos tributos com efeito de confisco, posto que estes assumem a característica de mandamentos limitadores do princípio da capacidade contributiva, e são garantias constitucionais do contribuinte decorrentes dos direitos fundamentais. Assim, procuramos estabelecer o limite vertical da capacidade contributiva, onde está somente terá início após a dedução dos gastos necessários ao mínimo vital e como não é possível mensurar onde esta capacidade termina, 13 analisamos o princípio da vedação de tributos com efeito de confisco como seu limite superior. No final do último capítulo analisamos a carga tributária brasileira e como o nosso sistema tributário vem sendo exercido; nessa seção fizemos uma comparação entre a tributação de nosso país e a dos países desenvolvidos em termos de carga tributária, no sentido de verificar se nosso país vem obedecendo o princípio constitucional da tributação em conformidade com a capacidade contributiva. Sendo esse princípio um dos pilares da justiça fiscal, um princípio que busca uma justa tributação pelo seu conteúdo igualitário, temos que este colabora para o exercício da cidadania, para a constituição da democracia e para a implantação de uma sociedade livre e justa. Assim, a importância deste tema vem da necessidade latente de se alcançar uma estrutura tributária ideal, sob o ponto de vista da igualdade, da equidade e da justiça em termos fiscais, assegurando o exercício dos direitos fundamentais consagrados por nossa Carta Magna. O assunto é bastante árido e pluridimensional, embora se torne apaixonante à medida que se avança na pesquisa. Evidentemente, este trabalho não teve a pretensão de esgotar o estudo sobre o princípio da capacidade contributiva, limitamos a trabalhar nossa atenção em algumas das principais questões atinentes a este princípio, tencionando empreender uma reflexão sobre a fenomenologia deste princípio basilar da justiça fiscal e de sua limitação sob o aspecto quantitativo pelos direitos fundamentais. 14 CAPÍTULO I- ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Seção I- ASPECTOS GERAIS Da análise histórica da humanidade, em suas diversas perspectivas, verificamos que a idéia de tributação2 surge muito antes da de Estado e está intrinsecamente ligada à noção de poder, aparecendo sempre que este está presente3, consolidando uma realidade onipresente que, inevitavelmente, acompanha o modo da vida dos homens, pois o tributo é o instrumento básico viabilizador de qualquer sociedade. E em cada época, de acordo com a concepção particular de Estado há um sistema tributário diferente. Da impossibilidade de viver isoladamente e a constante necessidade de evoluir levou o homem a buscar a união com seus semelhantes para alcançar os objetivos que seriam inatingíveis por um só indivíduo. Dessa forma, da união das famílias, dos clãs, surgiram os primeiros agrupamentos sociais, que em princípio, organizaram-se politicamente para se fortalecerem e defenderem seus interesses comuns. Da vida em sociedade, vários foram os interesses oriundos da vivência em grupo, e de alguma forma, estes deveriam ser custeados pelos membros da sociedade, que deveriam colaborar/contribuir para fazer face aos custos dessas necessidades comuns, dentre elas, a principal foi a de organização de defesa, traduzida como necessidades militares. 2 A atividade tributária existe nas mais remotas e primitivas organizações sociais, embora a tributação dos tempos modernos seja diferente da dos tempos antigos, onde a tributação de hoje somente tem em comum com aquelas o nome. Nas palavras de Ricardo Lobo Torres, “Tributo é uma figura que surge historicamente na época moderna, sendo inútil procurá-lo em períodos anteriores, nos quais só por analogia pode ser visualizado”. (TORRES, Ricardo Lobo . Ética e justiça tributária. In SCHOUERI, Luís Eduardo, ZILVETI, Fernando Aurélio. Direito tributário – Estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética. 1998, p. 173). 3 O tributo é vetusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ela se projeta sobre o solo de sua dominação. (BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Atualiz. Misabel de Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.1) 15 No início, os governantes, procuraram atender seus próprios interesses, ambições e, também, daqueles que o mantinham no comando. Neste contexto, os tributos assumiram um caráter de fiadores dos interesses desses governantes, deixando as necessidades comuns de serem atendidas primeiramente, intensificando a tributação das classes mais abastadas4. A introdução de valores humanistas na sociedade, através de movimentos filosóficos, contribuíram para que se procurasse uma justa atividade tributária. Os movimentos sociais e filosóficos passaram a assumir a idéia de que a sociedade deveria organizar-se politicamente, para instituir uma ordem maior e justa. Como sociedade politicamente organizada, instituição necessária ao convívio e desenvolvimento humano, surge o Estado como gestor do interesse comum, onde recebe atribuições e encargos na organização da vida social. Para cumprir suas finalidades e promover o bem-estar coletivo, proporcionando utilidades e comodidades à sociedade que o criou, este necessita de recursos financeiros, o que obtém, basicamente, através de seu poder fiscal, exigindo coercitivamente dos membros da sociedade, determinada quantia para custear os serviços públicos colocados à disposição dos mesmos. Contudo, o poder de tributar deve ser exercido dentro de certos parâmetros e deve buscar a promoção do bem comum e se tornar um instrumento de política sócio-econômica, onde o tributo ultrapassa o limite meramente fiscal, deixando de ser apenas uma fonte de receita para o Estado para assumir a posição de meio de realização de justiça social. 4 Na Idade Média, em tese, a única tributação sobre os nobres era o serviço militar, ou o pagamento da Fonsadera, tributo exigido para gastos de guerra, reparo de fossos e castelos, sendo pago somente por aqueles que não podiam ir pessoalmente ao campo de batalha. 16 Assim, o tributo5, desde suas origens, pode ser representado por duas formas, uma como instrumento de submissão e a outra como meio de solidariedade do grupo social. Solidariedade porque é através dos tributos que o Estado possui condições de redistribuir a renda entre os mais carentes e positivar a idéia de fraternidade defendida na Revolução Francesa. Na conversão da atividade tributária como instrumento de desenvolvimento político socioeconômico, o tributo assume um papel de fomentador das estruturas da cidadania e do fortalecimento da dignidade da pessoa humana. A noção de tributo como via de participação no processo de construção social é um axioma basilar de nossa época, podendo ser visto como um instrumento de cidadania, uma vez que a tributação moderna não mais está adstrita à função de obtenção de recursos para o Estado6. Hoje, se constitui em um dos principais instrumentos de repartição de riqueza e desenvolvimento econômico, sendo também utilizado como instrumento de intervenção do Estado na economia. Apesar dessa visão moderna dos tributos, o poder de tributar também pode ser visto como o poder de destruir, quando não exercido dentro de certos limites. É muito conhecida a tese do juiz americano John Marshall, que em 1819, no caso “McCulloch versus Maryland”, pontuou que “o poder de tributar envolve o poder de destruir”7. Assim, para que a atividade tributária não seja vista como uma relação 5 Tributo aqui mencionado tal como entendemos nos dias de hoje. Pois embora a atividade tributária tenha surgido com o próprio nascimento da coletividade, a tributação das civilizações antigas e mesma a da sociedade medieval, não se equivale à definição moderna, pois o tributo era sinônimo de prestação típica de sujeição de um povo para outro, somente assumindo as características hodiernas a partir da Idade Moderna. ( neste sentido ver : TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 2). 6 Não devemos esquecer que o tributo não é cobrado para atender os interesses e as necessidades do Estado. Ele tem destinação específica: é a de servir como instrumento concretizador da satisfação das exigências materiais e imateriais dos componentes da textura social, fortalecendo, assim, a expressão da cidadania e da valorização da dignidade humana em sua conceituação máxima. ( DELGADO, José Augusto. A interpretação contemporânea do Direito Tributário e os princípios da valorização da dignidade humana e da cidadania. In FISCHER, Octávio Campos (coord.).Tributos e direitosfFundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 156). 7 No original:” the power to tax involves the power to destroy”. (UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. Tradução GRECO, Marco Aurélio. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 19) 17 de força e de submissão, esta deve ser balizada sob certos limites para que atenda aos interesses da coletividade e respeite os direitos individuais. O poder do Estado de tributar não é absoluto, não atua livremente, se manifesta dentro do conceito de ordem jurídica e a ela está subordinado, possuindo limites de atuação. Nesse diapasão, o poder de tributar não pode ser uma atividade abusiva, deve observar os limites da imposição tributária e ser compatível com as liberdades dos contribuintes, respeitando os direitos fundamentais daquele que suportará a carga tributária. E no afã de restringir o poder de tributar, muitas Constituições modernas açambarcaram os princípios em seus textos, de forma implícita ou expressa, reconhecendo, nos direitos fundamentais do homem, a proteção necessária contra as agressões às liberdades individuais. Nesta seara, a necessidade financeira do Estado não permite uma distribuição arbitrária dos tributos entre os cidadãos, é necessário que seja exercida de uma maneira justa e adequada para a obtenção de uma estrutura tributária ideal, sob o ponto de vista da igualdade, da equidade e da justiça fiscal, onde a justiça fiscal pode ser entendida como justiça distributiva. Deve haver uma correspondência justa entre o gravame e a capacidade econômica daquele que irá suportar encargo tributário. Assim, a atividade tributária deve pautar-se dentro de certos parâmetros de razoabilidade8, observando o limite mínimo e máximo da tributação, para que haja uma distribuição eqüitativa do ônus tributário entre todos os membros da sociedade, devendo estes colaborarem para o financiamento dos gastos do Estado 8 Nas palavras de Ricardo Lobo Torres: a razoabilidade permite o equilíbrio entre o mínimo existencial e a capacidade contributiva e a determinação do limite máximo de riqueza suscetível de imposição, além do qual se caracteriza o efeito confiscatório.( TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 2003, p.452.) 18 na proporção de sua capacidade de contribuição, podendo esta ser maior ou menor de acordo com sua capacidade econômica . Como limite mínimo, a fixação da carga tributária deve respeitar a não tributação do mínimo existencial9, que se configura no respeito da dignidade da pessoa humana com os direitos sociais. E como limite máximo a proibição da tributação com efeito de confisco, onde a imposição tributária não deve inviabilizar o exercício das liberdades econômicas e o direito de propriedade. Diante dessa necessidade de restringir a atividade tributária e visando assegurar os direitos dos contribuintes contra os arbítrios do poder estatal, as Constituições modernas passaram a fazer referência à cobrança de tributos e traçar limites ao poder de tributar. Seção II- A TRIBUTAÇÃO CONTEMPORÂNEA O Direito Tributário recebeu forte impacto de uma perspectiva póspositivista e principiológica do fenômeno jurídico. A relação da tributação contemporânea não é apenas uma relação de poder, mas uma relação jurídica e, assim, está submetida a um disciplinamento jurídico que nada mais é que um sistema de normas orientadas por princípios jurídicos. A tributação de nossa época está subordinada a princípios e diretrizes na elaboração, interpretação e aplicação de suas normas, onde estes princípios norteadores da atividade tributária garantem os direitos fundamentais do ser humano contra o poder estatal de tributar. 9 O mínimo existencial confunde-se com a própria questão da pobreza e abrange qualquer direito considerado em sua dimensão essencial e inalienável. “É necessário garantir que todos tenham acesso àqueles bens essenciais que se considera constituírem as condições mínimas para que se possa agir como agente moral- por outras palavras, agir livremente, ou fazer o uso da liberdade”. ( ESPADA, João Carlos. Direitos sociais e cidadania. Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, p. 263). 19 II.1- O Pós-positivismo A partir da superação histórica do jusnaturalismo, com o advento da promulgação dos códigos, incorporando de forma generalizada o direito natural aos ordenamentos positivos, o positivismo tornou-se a filosofia dos juristas. O direito positivado passou a ser acreditado como única forma legítima de se fazer justiça. Mas com o tempo, este movimento sujeitou-se a várias e profundas críticas, provenientes de uma reação intelectual que chegou a um fracasso político. A decadência deste estava associada à indignação diante das barbáries promovidas pelos episódios históricos, que em nome da lei10, se valeram para disfarçar os arbítrios praticados pelos regimes totalitários, arbítrios estes que promoveram um desrespeito ao ser humano que ultrajou a consciência da humanidade. Os acontecimentos da época, diante das desastrosas conseqüências geradas pelo desrespeito aos direitos da pessoa humana, serviram para mostrar que a estrutura meramente formal do positivismo desassociado dos valores éticos já não era passível de aceitação. O inconformismo deu margens a um conjunto amplo de reflexões à cerca do Direito, promovendo um novo movimento denominado póspositivismo11. Este movimento retomou a discussão do direito sob um novo prisma, que sem retornar à razão subjetiva do jusnaturalismo, ultrapassou o legalismo do positivismo e introduziu idéias de justiça e legitimidade, consagrando o respeito aos 10 A decadência do positivismo é emblemática associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro da legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e da obediência a ordens emanadas da autoridade competente. ( BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 325). 11 O pós-positivismo identifica um conjunto de idéias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturlismo. Sua marca é ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao Direito. O pluralismo político e jurídico, a nova hermenêutica e a ponderação de interesses são componentes dessa reelaboração teórica, filosófica e prática que fez a travessia de um milênio para o outro. (BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In Revista Diálogo jurídico. Salvador : CAJ –Centro de Atualização Jurídica. V.1 nº6. setembro, 2001. Disponível em http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 21 de dezembro de 2004.) 20 direitos fundamentais da pessoa humana como forma de orientação da atuação estatal. Para Luís Roberto Barroso: ... o Pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre Ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente12. Assim, a partir da segunda metade do século XX, os desejos humanitários promoveram uma reaproximação entre a ética e o direito, ao reintroduzir no ordenamento jurídico as idéias de justiça e eqüidade. Com a virada kantiana, a partir da década de 70, a partir da releitura do imperativo categórico de Kant – “age como se a máxima de tua conduta pudesse se transformar em lei universal”, a liberdade estava relacionada com a legalidade, uma vez que era entendida como princípio de direito; agora, passa a ser vista sob um novo enfoque. Ao lado da idéia de liberdade, foi incluída a regra de justiça, passando a norma ética a exercer influência sobre a ordem jurídica positivada. Assim, faz surgir todo um campo de estudos que salienta a utilização da argumentação para uma melhor compreensão do Direito, uma aproximação da teoria dos direitos fundamentais e da teoria da justiça, como também um reconhecimento dos princípios na ordem jurídica. Com a reproaximação entre o direito e a ética, bem como do reconhecimento dos valores na órbita jurídica, houve uma promoção e uma referência aos princípios constitucionais, expressos ou implícitos. 12 BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., 2003, p. 326. 21 Este movimento contemporâneo promoveu a ascensão dos valores, o resgate da teoria dos direitos fundamentais e fez surgir uma dogmática principialista. Inaugurou uma nova concepção sobre a eficácia e a importância dos princípios, por reconhecer a sua normatividade e a sua relevância no sistema jurídico, passando a ser a síntese dos valores fundamentais consagrados no novo ordenamento jurídico. II.2- Dogmática principialista Com o pós-positivismo, os princípios obtiveram uma posição de relevo e denunciaram a insuficiência da subsunção como método de aplicação das normas. Foi concebido um sistema jurídico composto por regras e princípios, e assim, fez nascer a teoria contemporânea dos princípios jurídicos, onde merece destaque, dentre outros autores, o trabalho de Ronald Dworkin e Robert Alexy. A teoria dos princípios tem como principal autor Ronald Dworkin, que numa crítica ao positivismo propõe um modelo diferente; procura mostrar que os métodos clássicos de produção de direito não são únicos e que o direito pode ser redescoberto por seus operadores. Em sua tese, constrói uma teoria monista onde direito e moral se confundem, ou seja, não mais são entendidos em termos de separação estrita, pois ele reconhece a condição jurídica dos princípios-morais. O modelo de Dworkin constrói um ordenamento jurídico aberto e propõe um sistema formado por regras e princípios. Estes últimos têm a sua importância ressaltada, sendo proclamados como normas jurídicas, passando a ter validade jurídica, podendo, assim como as regras, imporem obrigação legal, uma vez que a eles é atribuída eficácia plena. Robert Alexy, posicionou-se muito próximo às idéias de Ronald Dworkin, principalmente com a inserção dos princípios em seu modelo de sistema jurídico, 22 embora não adotando o conceito restritivo do jusfilósofo americano13. Mas de forma diferente, o seu modelo compõe-se de regras, princípios e procedimentos. Em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, Alexy coloca que a distinção entre regras e princípios14 pode ser considerada como o marco de uma teoria normativo material dos direitos fundamentais, sendo o ponto inicial para responder às dúvidas sobre a possibilidade e os limites de racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais. E, para a aplicação dos princípios, Alexy propõe procedimentos racionais de ponderação, através de um processo argumentativo. Diante desta nova fase, os princípios jurídicos passaram a ocupar um novo espaço dentro do constitucionalismo contemporâneo, projetaram-se como normas basilares de todo o ordenamento jurídico, dando coesão ao sistema, assumindo uma posição hierárquica. Converteram-se em fonte primária de normatividade e as novas Constituições promulgadas acentuaram a hegemonia axiológica dos mesmos, convertendo-se, nas palavras de Paulo Bonavides15, no coração das Constituições. Por conseguinte, a positivação dos princípios nos textos constitucionais traduz uma eficácia que vincula, de forma obrigatória, a sua observância, pois estes sintetizam a idéia de direito e justiça vigentes ao refletirem os valores eleitos constitucionalmente pela sociedade. 13 Dworkin, dividiu os princípios entre princípios em sentido estrito e diretrizes políticas, Robert Alexy não faz esta distinção, para ele tudo são princípios, tanto as normas de direitos fundamentais do indivíduo como as que ordenam a persecução de interesses da comunidade, e em relação aos direitos fundamentais concede apenas uma prioridade prima facie, indicando um ponto de partida. 14 Alexy coloca que embora os princípios sejam espécies de normas, estes podem distinguir-se daquelas pela generalidade e também pela forma qualitativa, demonstrando que essa diferença desponta com maior intensidade quando se tem uma colisão de princípios ou um conflito de regras. Mas, o ponto decisivo para distinção entre regras e princípios, é a idéia de que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na sua maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes, onde as regras são mandatos definitivos e os princípios são mandatos de otimização, que se caracterizam por poder serem cumpridos em diversos graus. Por isso a forma de aplicação dos princípios é a ponderação (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 83 e ss). 15 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 281. 23 Assim, os princípios assumiram uma posição de fonte primária de normatividade no constitucionalismo contemporâneo, sendo incorporados aos valores sociais, políticos e éticos, de forma explícita ou implicitamente, na tentativa de construção de uma sociedade justa e democrática. Paulo Bonavides ao sintetizar a evolução da teoria dos princípios, assim se pronunciou: Em resumo, a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transposição crucial da ordem jusprivatista ( sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicista (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios. Fazem eles a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São qualitativamente a viga-mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição. 16 Pode-se dizer que, esta nova dimensão do constitucionalismo, tem-se mostrado como uma resposta adequada17 para impor respeito aos direitos individuais e como limitação do poder estatal. Embora no limiar deste novo século, esteja havendo um refluxo do constitucionalismo, uma tendência à desconstitucionalização em nome da complexidade das transformações sócioeconômicas e da transnacionalização dos mercados; a Constituição, muitas das 16 Idem, ibidem, p. 294. O constitucionalismo chega vitorioso ao inicio do milênio, consagrado pelas revoluções liberais e após haver disputado com inúmeras outras propostas alternativas de construção de uma sociedade justa e de um Estado democrático. A razão de seu sucesso está em ter conseguido oferecer ou, ao menos, incluir no imaginário das pessoas: (i) legitimidade – soberania popular na formação da vontade nacional, por meio do poder constituinte; (ii)limitação do poder – repartição de competências, processos adequados de tomada de decisão, respeito aos direitos individuais, inclusive das minorias; (iii) valores- incorporação à Constituição material das conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade. ( BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 310) 17 24 vezes, é colocada como entrave ao funcionamento do mercado, à competitividade e à expansão da economia, apontando, assim, para o ritmo de regressão dos direitos sociais e dos direitos humanos18. II.3- O pós-positivismo e a tributação Essa perspectiva contemporânea, onde a discussão ética volta ao centro do Direito, e as perspectivas principiológicas do pós-positivismo provocaram um grande impacto na área tributária, os princípios passaram a exercer grande influência na elaboração e aplicação do direito tributário19. A virada kantiana no Direito Tributário repercutiu pelo reconhecimento de valores que inspiraram os princípios da tributação, constitucionalmente expressos ou implícitos. No campo Tributário, o representante da virada kantiana foi Klaus Tipke20, que sob a luz das teorias contemporâneas examinou o ordenamento positivo tributário, formulou a teoria de que os postulados éticos se concretizam na ordem jurídica. Ou seja, a ética não permanece no plano abstrato, pelo contrário, ela se positiva na lei (visão kantiana suprapositiva), se transforma em direito tributário 18 Criticando a tendência do refluxo da Constituição em matéria tributária, Alberto Nogueira assim se pronunciou: “Está, sem dúvida, na contramão da história, a idéia de “desconstitucionalização”, no pertinente a matéria tributária, sendo ela própria, e não o texto em vigor, dessincrônica. Só poderá servir para a ruína da única parte do sistema estruturado na Constituição, que tem a seu favor a tradição de instrumento eficaz de contenção dos abusos legislativos, freqüentemente cometidos em parceria com o Poder Executivo. Desmontado esse sistema constitucional, restará o descalabro inconteste da legislação infraconstitucional existente, que faz amontoar o entulho autoritário anterior à redemocratização com o posterior, que se somarão às futuras investidas do legislador ordinário e do Executivo. (NOGUEIRA, Alberto. Os limites da legalidade tributária no Estado democrático de direito. Fisco x contribuinte na arena jurídica: ataque e defesa. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, 2ª ed., p. 106). 19 No Brasil esta influência aconteceu de forma lenta, pois nossos tribunais adotaram o modelo de regras, conforme o previsto no Código Tributário Nacional, artigo 108, que ao adotar estas regras de interpretação, reservaram um papel secundário para os princípios; e a doutrina pátria apegou-se apenas ao princípio da legalidade. Porém, nos últimos anos, algumas exceções foram observadas pelo Supremo Tribunal Federal, recuperando, assim, em parte a importância dos princípios. (ADIn-1655, Relator Ministro Maurício Corrêa, publicado no DJ de 24/10/97. Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 18/12/2004). 20 Klaus Tipke, jurista Alemão foi autor do livro Justiça Fiscal na Teoria e na Prática e posteriormente publicou um tratado, onde expôs a sua doutrina da justiça fiscal, intitulado como O Ordenamento jurídico tributário, em três volumes, onde, traça os fundamentos sistemáticos e os princípios jurídicos do Direito Tributário, trata da teoria da justificação dos impostos na Alemanha e busca demonstrar um sistema tributário coerente baseado no princípio da capacidade contributiva. 25 positivo. Defende que a justa repartição do ônus tributário é um imperativo da ética, vinculando esta à idéia de justiça. Embora com esta visão moderna, Klaus Tipke tem sofrido críticas por parte de Paul Kirchhof21, que preocupado mais com a liberdade do que com a justiça, coloca como pano de fundo no relacionamento entre a ética e o direito a questão dos direitos fundamentais, onde a justiça fiscal deve ser buscada na moldura desses direitos. Mas a tributação deve encontrar um equilíbrio entre liberdade e justiça, pois esta relação é ponto de constante tensão no pensamento jurídico. No Direito Tributário contemporâneo foi resgatada a idéia de justiça tributária que havia sido repudiada pelo positivismo, e que, na atualidade, ganha concretude constitucional através dos princípios constitucionais tributários, que passam a ser o canal de comunicação entre o sistema jurídico e o sistema de valores éticos. Assim, a importância dos princípios no campo tributário é enfatizada, obrigando a sua observância, na tentativa de assegurar uma tributação racional, justa, equilibrada e harmônica. A atividade tributária passa a ser examinada sob a luz das teorias da justiça e dos direitos humanos, frutos da aproximação entre a ética e o Direito; a ética tributária se revela num equilíbrio entre a necessidade de recursos por parte do poder estatal e a liberdade do cidadão. Neste contexto, a tributação justifica a limitação da liberdade individual em nome da liberdade coletiva, onde o cidadão busca no Estado proteger a sua liberdade individual e o Estado exige uma contraprestação pecuniária para garantir-lhe a liberdade coletiva. 21 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário - valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, volume II, 2005, p. 9. 26 No Estado democrático fiscal, a liberdade adquire feição de igual liberdade, se caracterizando como a liberdade que se aproxima da justiça na mesma equação valorativa22, embora a tensão entre liberdade e tributo seja constante, pois este pode implicar em opressão daquele quando exercido além dos limites aceitos. Para Ricardo Lobo Torres “o tributo surge no espaço aberto pelas liberdades fundamentais, o que significa que é totalmente limitado por essas liberdades”, e conclui que: O relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia de liberdade e, ao mesmo tempo, possui extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legalidade, quando oprimida pelo tributo ilegítimo.23 ( os grifos não são do original) É justamente pelo relacionamento dramático da relação tributária que o poder fiscal fica restringido pelas liberdades individuais. A constante invasão do Estado sobre a esfera dessas liberdades em busca de recursos tributários, faz com que seja indispensável a aplicação dos direitos fundamentais na relação jurídicotributária, para a proteção das liberdades individuais contra as investidas do Estado arrecadador. E, assim, esses direitos exercem uma permanente limitação do poder do Estado em impor o dever de pagar tributos. Um outro aspecto, também visualizado dentro constitucionalismo moderno, e que traz conseqüências frente à tributação, causando uma intrigada relação de força, é a pressão do Estado para executar as políticas características do Estado social de direito e a necessidade de arrecadação para suportar essas mesmas políticas, uma vez que as garantias individuais são constantemente questionadas pelo poder de tributar. 22 23 Idem, ibidem, p. 83 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 2005, p. 4-6. 27 Este ponto é ainda mais sensível nos países subdesenvolvidos, intitulados como de terceiro mundo, onde os custos estatais estruturais são elevadíssimos e o Estado não consegue cumprir o seu papel no atendimento dos direitos sociais contemplados nas Constituições, na promoção das políticas públicas destinadas à atenuação das desigualdades sociais e na criação de ambiente econômico saudável; tendo ainda como agravante uma carga tributária alta e uma dívida pública elevadíssima.24 Assim, as Constituições modernas, além de uma inserção de direitos sociais, possuem como traço comum as limitações do poder público e as garantias dos direitos e liberdades do indivíduo, embora as limitações do poder estatal não precisam de estar necessariamente escritas. No plano tributário, esses direitos de liberdade não se relativizam, pelo poder de tributar, pelo contrário, são limitadores do poder de tributar. Servem de substrato, de parâmetros para que a imposição tributária seja exercida em conformidade com a justiça fiscal, com uma distribuição igualitária do ônus tributário, respeitando a capacidade de cada cidadão em poder contribuir para as despesas públicas dentro dos limites impostos pela Constituição. É dentro desse novo cenário constitucional que o nosso estudo se acha encartado. 24 A arrecadação dos impostos e contribuições administrados pela Receita Federal e das demais receitas (taxas e contribuições controladas por outros órgãos, excluídas as contribuições previdenciárias) atingiu o valor de R$ 322,5 bilhões no período de janeiro a dezembro de 2004 e em 2005, no período de janeiro a junho assumiu o patamar de R$ 175, 7 bilhões. E o serviço da dívida pública brasileira (interna e externa) consome mais da metade do orçamento, em 2004, do orçamento federal foram 70,49% (soma das rubricas encargos financeiros da União - 12,51% e refinanciamento da dívida pública mobiliária federal – 57,98%). Fonte: Lei n° 10.837 de 16 de janeiro de 2004. 28 Seção III- JUSTIÇA TRIBUTÁRIA O ideal de justiça está inserido na alma do homem, que ao se tornar consciente, principalmente com o convívio social iniciado com a experiência na família, já sente em seu âmago a transformação moral, que passa a ser limite para todos os seus atos. A concepção de justiça justifica várias ações do homem ou de uma sociedade, e em nome dela, muitas guerras, revoltas e conflitos foram e ainda são gerados. A formulação de uma noção de justiça é bastante complexa, embora seja um valor universalmente prestigioso e aclamado por todos. Não é objeto de nosso trabalho o estudo profundo de suas teorias, mas tão somente entender como o valor justiça tributária ganha concretude por seu princípio maior que é o respeito da capacidade contributiva. O tema da justiça é um assunto conflitante. E, embora exista uma variedade de concepções sobre o que é justiça e a sua natureza, é inegável a idéia de igualdade como elemento comum à maioria das concepções, pois esta é essencial na aplicação de sua noção, numa tentativa de análise lógica do que é justiça, de como estabelecer suas regras e de como efetivá-la. Ou seja, a igualdade é o objetivo de quem pretende ser tratado com justiça. Sendo sua conceituação um tanto confusa, a análise lógica de sua noção é um permanente desafio aos filósofos do Direito, e não existe consenso entre estes estudiosos sobre o seu significado. São vários os sentidos, planos e ideologias que modelam o desenvolvimento de uma teoria da justiça. Segundo Chaim Perelman: ... toda visão do mundo molda a sua maneira os critérios de conduta válida, não se ficará nem um pouco espantado de constatar, ao estudar os textos relativos a noção de justiça, que esta se encontra imersa na ambigüidade e na confusão, à primeira vista ainda mais irremediáveis por resultarem, a um só tempo, da 29 variedade das ideologias que a modelam e da diversidade dos planos nos quais se encontra desenvolvida uma teoria da justiça.25 No campo tributário não é diferente, a idéia de se fazer uma tributação justa sempre foi aspiração da humanidade. A justiça tributária é um ideal almejado por todos, mas não é uma mera utopia, uma figura retórica, é um valor que deve alicerçar toda a atividade da tributação, principalmente por ter esta a capacidade de “destruir” ou de “conservar”.26 Com a aproximação da ética e do direito no pós-positivismo, houve também uma reaproximação entre justiça e liberdade no campo tributário, através do resgate da teoria da justiça tributária, que compreende o processo justo na cobrança dos tributos. A justiça tributária é uma das formas da justiça fiscal, que é um termo amplo que comporta a própria justiça tributária, a financeira (que abrange transferências intergovernamentais e subvenções econômicas e sociais) e a orçamentária (que trata do justo nas despesas e nas receitas públicas)27. É através da justiça fiscal que se pode concretizar a justiça política, onde o Estado promove a redistribuição de rendas através de suas instituições, procurando alcançar os objetivos traçados constitucionalmente pelo Estado Democrático de Direito. A justiça fiscal é um dos instrumentos para a promoção da distribuição e redistribuição de rendas. Pode-se dizer que a justiça tributária é por excelência uma justiça distributiva, Klaus Tipke coloca que esta se concretiza como justiça contributiva, e 25 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.68. A jurisprudência americana, através do julgado de Marshall afirmou que o poder de tributar envolve o poder de destruir. Contrapondo à teoria de Marshall, o juiz Holmes afirmou que o poder de tributar não é o poder de destruir, mas o dever de conservar e Frankfurter disse que o poder de taxar é o poder de assegurar a sobrevivência do contribuinte. ( TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1999, p. 45). 27 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit. 2005, p. 121-124. 26 30 para Ricardo Lobo Torres28 é em parte distributiva, com seus princípios específicos (capacidade contributiva, distribuição de rendas), e também comutativa, no que concerne às taxas e às contribuições. Na vertente da justiça fiscal como justiça distributiva, a capacidade contributiva é o mais importante dos princípios, onde cada um deve pagar o tributo em conformidade com sua riqueza, consistindo, assim, em uma das regras de ouro da justiça. Na tentativa de dar um sentido à justiça material, Chaim Perelman tentou definir a justiça a partir de uma lógica formal, optou por estabelecer como regra de justiça a igualdade formal. Definiu a justiça formal como um princípio de ação, segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados do mesmo modo. Interessou-se em criar com a Nova Retórica, uma doutrina de confrontação de argumentos contrários, que através de uma lógica de juízos de valores, capazes de fornecerem critérios objetivos e universais, poderiam persuadir por meio do discurso. Fez da igualdade o elemento invariável na relação de justiça, uma vez que a idéia de igualdade sugere a todas as pessoas certa noção do que é justiça, ou seja, ser justo é tratar de um mesmo modo as pessoas iguais, os seres pertencentes à mesma categoria. Mas a concepção de igualdade fundamenta-se em valores escolhidos de forma aleatória. E assim, dentro de um conceito formal de justiça enumerou algumas fórmulas de justiça distributiva 29: 1º - a cada qual a mesma coisa: esta fórmula preconiza uma concepção igualitária de justiça e parece realizar o ideal de justiça perfeita, onde todos devem 28 29 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1998, p. 185 PERELMAN, Chaim. Op. cit., p. 19. 31 ser tratados da mesma forma, uma distribuição idêntica de tudo a todos,sendo que todos deve ser entendido como os membros da mesma categoria essencial. 2º - a cada qual segundo seus méritos: esta fórmula coloca a aplicação da justiça de forma proporcional ao mérito da pessoa, o valor intrínseco do indivíduo. 3º - a cada qual segundo suas obras: para aplicação desta lição deve-se levar em conta o trabalho, a produção ou o conhecimento dos indivíduos, nesta fórmula o critério distributivo se atém aos resultados da ação humana. 4º - a cada qual segundo suas necessidades: esta fórmula pressupõe uma desigualdade que deve ser evitada ou diminuída, se aproxima de uma concepção de caridade, embora não possa ser considerada sinônima desta. Indica que devem ser tratados da mesma forma as pessoas da mesma categoria com as mesmas necessidades, sendo estas necessidades essenciais ao homem. 5º - a cada qual segundo sua posição: esta fórmula consiste no tratamento das pessoas conforme a categoria a que pertençam. Considera como justo o tratamento diferenciado para membros das classes diversas. 6º - a cada qual segundo a lei lhe atribui: com esta fórmula temos que o justo é conceder a cada um o que a lei prescreve, ou seja, cabe ao juiz aplicar às mesmas situações a mesma disposição legal, não sendo assim a aplicação da lei um ato discricionário, mas uma observância da regra estabelecida; esta regra se ajusta a todo e qualquer sistema jurídico, pois prescreve que a justiça deve respeitar o direito positivo. Dentre estas fórmulas, o princípio da capacidade contributiva se enquadra na terceira, no sentido de que quem produz mais deverá contribuir com mais, e quem possui menos condições irá contribuir com menos. Neste sentido, a tributação deve respeitar o mínimo existencial e um máximo suportável, para que a tributação 32 não desestimule a pessoa, para que esta possa continuar produzindo. Também se enquadra na quarta fórmula, onde o sentido da mesma remete para a sociedade a obrigação de zelar por seus membros, um dever de solidariedade que se encontra embutido na concepção do tributo. Mas aplicando esta fórmula ao princípio da capacidade contributiva, temos que a tributação somente pode atingir o excedente das condições mínimas indispensáveis a uma vida digna, onde este mínimo deve estar excluído da tributação. Klaus Tipke30 completa estes seis critérios apontados por Perelman com um sétimo: a cada um segundo a sua capacidade, a significar que quem possui maior renda ou maior patrimônio, deve pagar mais imposto. Embora, posteriormente, moderou a sua visão da ética moral, extraindo dos princípios do Estado Social de Direito e da justiça material o princípio da capacidade contributiva, afirmou que este é o princípio fundamental de uma tributação materialmente justa e que encontra sua justificativa na consciência jurídica geral e na razão prática. O princípio da capacidade contributiva corresponde ao princípio do Estado Social, não na medida em que todos devam pagar igualmente o mesmo, mas na medida em que a carga tributária do indivíduo seja mensurada segundo sua renda: quanto mais alta a renda, mais alto o imposto31. Analisando as fórmulas apontadas por Perelman e fazendo uma comparação de como o princípio da capacidade contributiva foi tratado pelas Constituições Brasileiras de 1946 e 1988, Tércio Sampaio Ferraz Júnior32 conclui que a imposição deste princípio na Carta Magna de 1946 está em conformidade com 30 TIPKE, Klaus. Apud TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1998, p. 186 O princípio do Estado social dá à justiça um acento social; ele cuida para que a justiça não se esgote na igualdade perante a lei, mas também vise mais a igualdade material, a fim de que a distribuição de renda e patrimônio não seja tão ruim, a ponto de ameaçar a paz social. (TIPKE, Klaus. YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 43-44) 32 JUNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. Interpretação e estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1990, p. 54-58 31 33 a 3ª fórmula - a cada um segundo suas obras, onde este princípio foi colocado como um valor que o legislativo deve respeitar ao tipificar as tributações. Já a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 145, § 1º, aderiu a 4ª fórmula, a cada um segundo suas necessidades, tendo o sentido de preceito material de justiça. Esta Lei Maior autorizou o legislador a articular e configurar o interesse público, levando em conta suas tarefas sociais; estabeleceu, assim, uma missão ao Estado, pela via tributação, de diminuição das injustiças sociais, sendo que para isto, possibilitou à Administração identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Por outro lado, na reflexão da justiça tributária como justiça distributiva, John Rawls fornece uma filosofia política através de sua Teoria da Justiça33, oferecendo várias reflexões político-filosóficas acerca da justiça sobre a reformulação procedimentalista do contratualismo clássico, de forma a reabilitar o liberalismo político através de uma articulação teórica dos ideais de liberdade, igualdade e de justiça num sistema de direitos. Indica os princípios básicos e demonstra, com a definição desses princípios, que a sua concepção política de justiça pode ser compartilhada em uma sociedade democrática, de cidadãos racionais, livres e iguais. Os princípios básicos escolhidos pela sociedade de pessoas originalmente iguais ou em situação de igualdade, livres e racionais deveriam encaminhar para a formação de bases fundamentais a serem utilizadas nos acordos vindouros e na cooperação social. Neste pacto hipotético, na posição original e sob o “véu da ignorância”, os princípios 33 Em sua “Teoria da Justiça”, publicada originalmente em 1971, Rawls objetivou apresentar uma concepção de justiça que servisse para generalizar e elevar a um nível superior a teoria do contrato social, já conhecida e desenvolvida por pensadores como John Locke, J. J. Rousseau e Kant. Discute a concepção de justiça como eqüidade, examinando a maneira pela qual as idéias intuitivas básicas de sua concepção de justiça combinam com uma concepção política da justiça para uma democracia constitucional. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editorial Presença, 1993. 34 que iriam vigorar posteriormente eram escolhidos. Com isto, acredita-se que os princípios de justiça seriam o resultado de uma negociação eqüitativa, uma vez que os participantes do processo estariam em situação de igualdade, sendo assim incapazes de apregoar princípios que lhe pudessem beneficiar diretamente. Sendo assim, os acordos fundamentais estabelecidos na posição original seriam eqüitativos, consolidando a justiça como eqüidade. A teoria da justiça, enquanto idéia contratualista, do jurisfilosófo John Rawls tem influenciado com certa relevância o pensamento contemporâneo da filosofia do direito, na medida em que apresenta uma correlação entre a justiça e a igualdade, onde esta pode ser pensada entre os homens como possível de se perceber na origem da sociedade. Esse jurista americano trabalha o ideal de justiça apontando os princípios mais apropriados aos cidadãos dotados de personalidade moral e habilitados a participar da sociedade. Segundo Rawls, os princípios de justiça capazes de garantir a liberdade e a igualdade e que serviriam para efetivar a distribuição eqüitativa dos bens primários ou bens tidos como fundamentais para todos os homens, seriam: 1º - cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; 2º - as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da 34 sociedade (princípio de diferença) . Com este dois princípios imantados pela igualdade, Rawls coloca que os valores sociais devem ser distribuídos igualmente, somente aceitando a desigualdade quando esta venha a trazer vantagens aos grupos menos privilegiados da sociedade. O segundo princípio além de trazer a idéia da desigualdade, trata da 34 RAWLS, John. Justiça como equidade – uma reformulação. Tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 60. 35 distribuição de renda e de bens, posto que este princípio tem a função de corrigir os defeitos da igualdade formal de oportunidades. O princípio da diferença, que trata da distribuição dos bens na sociedade, pode ser decomposto em três partes. A primeira diz respeito à distribuição da desigualdade no âmbito da sociedade, devendo maximizar o bem-estar dos menos favorecidos, de modo que traga um benefício maior para os representativamente mais pobres. A segunda exige que as posições e funções na sociedade têm de estar abertas a todos indistintamente. E, como última parte, coloca que os indivíduos devem se encontrar em uma posição eqüitativa de oportunidades, com condições mínimas de existência, uma vez que sem estas há uma inviabilização das liberdades asseguradas pela ordem jurídica. Assim, Rawls coloca que todos os homens têm o direito à liberdade e, em função da existência das desigualdades sociais, deve-se prever um sistema de vantagens para os menos favorecidos e uma justa igualdade de oportunidades. A justiça como eqüidade objetiva mostrar uma base pública de justificação nas questões de justiça política, levando-se em conta a existência de um pluralismo razoável. A busca primordial da justiça consistirá na forma pela quais as instituições sociais distribuem os direitos e deveres fundamentais, e de como determinam a divisão dos benefícios na sociedade. Colocando a teoria da justiça como equidade de John Rawls no campo da justiça tributária, temos que com base em seus princípios de justiça, a atividade tributária deve respeitar e promover o mínimo existencial e evitar as desigualdades injustificadas. Ricardo Lobo Torres ao analisar a teoria de Rawls aponta as principais influências dessa teoria no âmbito da justiça fiscal: 36 No campo da justiça fiscal John Rawls extrai importantes conseqüências a partir do princípio do “maximin”, que se inclui na concepção de “justice as fairness” e que leva as pessoas, em razão do véu da ignorância, a aceitar desigualdades que maximizem as expectativas dos grupos menos afortunados da sociedade, ou seja, que lhes garanta, na pior das hipóteses, um mínimo social. Desenvolve, com base no economista americano Richard Musgrave, extensa lição sobre a igualdade entre gerações e sobre o mínimo existencial.35 A atividade tributária se enquadra na idéia de justiça distributiva e deve obedecer a idéia de igualdade eqüitativa na repartição do ônus tributário. Ou seja, cada qual deve contribuir para as despesas do Estado na medida de sua riqueza, de modo que, através da tributação e do dever de cooperação social da sociedade para com todos os seus membros, possa haver uma distribuição de rendas e uma promoção do mínimo necessário a uma vida digna. Klaus Tipke ao construir sua teoria a respeito da justiça tributária denota a influência recebida da visão procedural e da teoria da justiça com imparcialidade de John Rawls, bem como da teoria da justiça formal de Chaim Perelman. Concretiza o conceito de justiça como: “Justiça por meio de um tratamento isonômico; tratamento isonômico segundo um critério adequado à matéria; justiça social- tributação socialmente justa com base num princípio adequado à matéria, que somente pode ser sacrificado por princípios do mesmo valor”.36 A partir da retomada da ética fiscal, formula uma teoria onde a justiça se forma a partir de princípios justos, que cria uma medida uniforme e proporciona um tratamento isonômico e imparcial a todos. Afirma que o princípio da igualdade é uma decorrência do postulado da justiça, onde qualquer desigualdade deve vir justificada. E, ao apontar o princípio da capacidade contributiva como o critério justo de repartição da carga de impostos, estabelece que a atividade tributária deve ser uma política de justiça e não mera política de interesses. 35 36 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 2005, p. 85. TIPKE, Klaus. YAMASHITA, Douglas. Op. cit., 2002, p. 22. 37 Assim, o princípio da capacidade contributiva é ressaltado como expressão da justiça fiscal e utilizado para justificar os tributos, apoiando-se na tese da interpretação da norma tributária pelo método teleológico, analisa os parâmetros que o legislador deve utilizar para determiná-lo. No Direito Tributário, a justiça se dá por meio do tratamento isonômico, que deve ser orientado pelo princípio da capacidade contributiva, pois este é o único princípio justo de comparação para a aplicação do princípio da igualdade37 . Em sua teoria estabelece duas regras de justiça financeira: a cada um de acordo com a sua necessidade e a cada um de acordo com a sua capacidade, a primeira orienta a justiça das subvenções de acordo com os interesses conjunturais ou econômicos do Estado e a outra, a justiça tributária. Assim, a justiça tributária tem como pressuposto a defesa da igualdade na tributação, mediante eqüitativa repartição da carga fiscal, tendo como expressão maior o princípio da capacidade contributiva, que é a medida de justiça fiscal por excelência; deve haver uma igualdade na distribuição do ônus tributário, respeitando o mínimo existencial e, devendo a igualdade ser entendida como universalidade da tributação38. O princípio da capacidade contributiva está subordinado à idéia de justiça distributiva, uma vez que promove a tese igualitária. É o mais importante dos princípios de justiça fiscal por reunir em sua observância os direitos humanos fundamentais da limitação do poder de tributar, formando, assim, um quadro valorativo de tensão e ponderação na aplicação das garantias constitucionais39. 37 TIPKE, Klaus. Sobre a unidade da ordem jurídica tributária. In SCHOUERI, Luís Eduardo, ZILVETTI, Fernando Aurélio. Direito Tributário – Estudos em homengem a Brandão Machado. Trad. Luis Eduardo Schoueri. São Paulo: Dialética. 1998, p. 64. 38 TIPKE, Klaus. Princípio da igualdade e idéia de sistema no direito tributário. In MACHADO, Brandão .Direito tributário – Estudos em homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Editora Saraiva, 1984, p. 518. 39 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 2003, p. 434 38 CAPÍTULO II - O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, PRINCÍPIO NORTEADOR DE JUSTIÇA TRIBUTÁRIA Seção I- ESCORÇO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA A questão da capacidade contributiva, como justiça da tributação não é um problema novo da ciência jurídica, pelo contrário, a doutrina aponta sua elevada antiguidade. Há milênios, aqueles que são obrigados a contribuir pugnam pela justiça na decretação e liquidação dos tributos. Podem ser encontrados registros desta questão ao longo da história, até mesmo na antiguidade clássica, e sua origem remonta do próprio surgimento da atividade tributária e da idéia de justiça fiscal. I.1- Origem e histórico Segundo Becker40, este princípio deriva do tronco filosófico da justiça distributiva que deita raízes na Grécia Antiga, não sem antes haver preocupado os egípcios, ou seja, no Antigo Egito já prevalecia a idéia de que o tributo deveria guardar relação com a riqueza daqueles que os deveriam pagar. Na Inglaterra, a Magna Carta, assinada pelo rei João Sem-Terra em 1215, apesar de ser um documento essencialmente feudal, representou um avanço no delineamento de direitos hoje consolidados, embora lhe faltasse o elemento essencial da universalidade. Carlos Palao Taboada41 indica que, provavelmente, desde que se criaram os impostos, em algum momento remoto da história, percebeu-se que estes 40 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 1972, p. 437. TABOADA, Carlos Palao. Isonomia e capacidade contributiva. In Revista de direito tributário nº 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 126. 41 39 deveriam ser recolhidos de acordo com a riqueza daqueles que deveriam pagá-los. A filosofia medieval deu maior precisão a essa idéia, creditando a Santo Tomás de Aquino a determinação de que cada um deveria pagar os tributos secundum facultatem ou secundum equalitem proportionis; e segundo este teólogo haveria impostos justos ou injustos, conforme obedecessem ou não a este critério, ou seja, a não instituição de impostos justos seria pecado e os impostos injustos não deveriam ser pagos, pois correspondiam a um procedimento arbitrário dos soberanos. Esta idéia levou Adam Smith a demonstrar uma necessidade de equidade na tributação, devendo haver relação entre a capacidade contributiva e o valor a ser determinado como tributo. Através de sua obra a fundamentação deste princípio ganhou contornos de ciência e acabou por se propagar nas sociedades ocidentais como expressão maior da justiça tributária, sustentou que: “os súditos de cada Estado devem contribuir o máximo possível para a manutenção do Governo, em proporção a suas respectivas capacidades, isto é, em proporção ao rendimento de que cada um desfruta, sob a proteção do Estado”.42 Pregava que os cidadãos tinham o dever de contribuir para as despesas do Estado na proporção de seus recursos para que possam gozar da proteção do Estado, ou seja, o ônus suportado pelos cidadãos deveria sê-lo apenas e tão somente na medida de sua aptidão econômica para concorrer com o financiamento das despesas estatais. Adam Smith traçou quatro regras tributárias – justiça, certeza, comodidade e economia, conhecidas com os cânones ou máximas, onde o cânone da justiça sugere a observância do princípio da capacidade no custeio dos gastos do 42 SMITH, Adam. A Riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Trad. de Luiz João Barúna. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1985, p. 247. 40 Estado. Nestas máximas, ainda hoje válidas, estão fixadas as raízes do sistema tributário. Com o advento do liberalismo, em que a principal idéia era o absenteísmo estatal da vida social, não houve uma preocupação especial com os efeitos econômicos dos gastos públicos ou com a arrecadação tributária. Com efeito, a doutrina liberal orientou-se pela noção de que a administração pública era ineficiente e com gastos improdutivos; difundiu-se a crença de que a arrecadação tributária deveria limitar-se ao máximo indispensável, balizada apenas por objetivos puramente fiscais. Para neutralizar os excessos do liberalismo, surgiu a convicção de que apenas através do Estado seria possível obter a contraposição capaz de suprir as necessidades sociais emergentes. Neste contexto, o Estado começa a ser cada vez mais solicitado a intervir na vida social, toma corpo a doutrina do intervencionismo e de Estado dirigista. São exigidas medidas de planejamento econômico e social, uma intervenção direta e dirigente na economia e um sistema de prestações em todos os níveis da vida social. O tributo passa a não se revestir mais do aspecto meramente fiscalista, de simples meio de obtenção de recursos para o Estado, passando também a encerrar objetivos extrafiscais que visam a uma dimensão nitidamente social. Na evolução histórica do princípio da capacidade contributiva formaramse várias teorias na busca de um critério justo para a distribuição do encargo fiscal. A teoria do igual sacrifício da doutrina utilitarista defendeu que a tributação em conformidade com a capacidade contributiva encontrava sua justificativa no igual sacrifício dos contribuintes e, serviu de embasamento para a idéia de progressividade. A teoria do benefício também se prestou para fundamentar o 41 princípio da capacidade contributiva. Benvenuto Griziotti43, para verificar o potencial econômico do contribuinte, defendeu a tese de que se deveria criar um nexo de causalidade entre a capacidade contributiva e a obrigação tributária. Na história da humanidade, a idéia de justiça fiscal se enraizou e os acontecimentos de muitos fatos históricos relevantes podem ser atribuídos ao arbítrio na atividade de tributação, que, em maior ou menor grau, desrespeitava a dignidade e o sentimento de justiça dos obrigados ao seu pagamento, como por exemplo, a Revolução Francesa e a Inconfidência Mineira, dentre outros. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789 fez referência ao princípio da capacidade contributiva em seu artigo 13: “doit être également répartie entre tous les citoyens, en raison de leurs facultés”, a contribuição para as despesas da administração deveria ser igualmente repartida entre todos os cidadãos do Estado na proporção de seu patrimônio. A Constituição Francesa de 1791 influenciou a maioria das Constituições que acolheram o princípio da capacidade contributiva em seus textos ou que passaram a respeitá-lo como um corolário do princípio da igualdade. Desenvolveu o conceito de que os tributos são uma contrapartida para os benefícios concedidos pelo Estado na proteção de sua pessoa e de sua propriedade. Assim, esta Constituição declarou que a regra da distribuição do encargo das despesas públicas deveria ser feito de modo igual entre os cidadãos, respeitando suas faculdades. Posteriormente este tema passou a fazer parte de vários textos constitucionais, a Constituição Francesa de 1848, por exemplo, em seu artigo 15 rezava que “cada cidadão contribui para o imposto na proporção de suas faculdades e de sua fortuna”. A Constituição Alemã de 1919 (Weimar), em seu artigo 134 43 ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de direito tributário e a capacidade contributiva. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 149. 42 também fez menção ao princípio da capacidade contributiva. Outro exemplo que deve ser lembrado, é a Constituição Italiana de 1947, que em seu artigo 53 expressou que “todos são obrigados a pagar impostos em conformidade com sua capacidade contributiva.” A Constituição Brasileira, a Constituição Argentina, a Espanhola, também fazem menção a este princípio, mas utilizam a expressão capacidade econômica como sinônima de capacidade contributiva. Podemos dizer que vários foram os países que consagraram este princípio em suas Constituições. Assim, a partir do século XX, nos países ocidentais este princípio passou a ser aceito como um princípio constitucional que deverá orientar o poder tributário do Estado, um princípio que convalida a tributação e garante a justiça fiscal. É neste contexto histórico que se identifica a origem da capacidade contributiva, que acabou por se tornar marca presente na quase totalidade das ordenações ocidentais contemporâneas. I.2- Seu tratamento nas Constituições Brasileiras Em nosso país, historicamente, este princípio apareceu na Constituição Imperial de 1824, que em seu artigo 179, inciso XV mencionava que “ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado, na proporção de seus haveres”. Assim, sob a influência das Declarações de Direitos do século XVIII, inscrevia-se a noção da correspondência entre pagamento de tributos e capacidade de contribuir; estava também embutido neste artigo o princípio da generalidade, onde “ninguém” se traduzia na idéia de generalidade. As Constituições posteriores deixaram de prestigiar o princípio da capacidade contributiva, se omitindo em relação a ele, embora a consciência jurídica do país o reconhecesse. 43 A Constituição Federal de 1946 trouxe de modo expresso este princípio em seu artigo 202: “Os tributos terão caráter pessoal sempre que isto for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. Apesar de vir de modo expresso e de forma clara, tal proposição diretora não era vista como provida de executoriedade. A Emenda Constitucional 18 de 1965 retirou este dispositivo do texto da Constituição, revogando, assim, o princípio da capacidade contributiva como mandamento constitucional. Este princípio não figurou na Constituição de 1967 e não na Emenda Constitucional 1/1969. Embora tenha sido deixado de constar expressamente no texto constitucional, ficou ínsita a sua idéia no sistema tributário, uma vez que continuou a nortear a tributação via anseio de justiça tributária, onde para muitos doutrinadores, continuava implícito na Carta de 1969, por esta adotar um regime democrático44. Com o advento da Constituição Federal de 1988, na seção I do capítulo do Sistema Tributário Nacional, o princípio da capacidade contributiva ressurge novamente na seara constitucional como princípio expresso e com um significado particularmente importante. Foi acolhido na Carta Magna como um princípio segundo o qual o cidadão tem a garantia de não sofrer uma exação fiscal acima de sua capacidade econômica. A forma como está colocado este princípio em nossa atual Constituição foi alvo de muitas críticas, também ensejou interpretações divergentes à vista da redação de seu texto, bem como se entrelaça com outros direitos e garantias constitucionalmente consagrados. É o que passaremos a analisar. 44 Na visão de Baleeiro este princípio permaneceu na CF de 1969, pois que esta adotou um regime democrático, assegurando que todos são iguais e declarando que a especificação de direitos e garantias expressas não excluía outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adotava. ( BALEEIRO, Aliomar, op. cit, p.687). 44 Seção II- ESTUDO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA II.1- Conceito de Capacidade Contributiva Conceituar de forma precisa e abrangente o que é capacidade contributiva é uma tarefa árdua e tem sido objeto de várias discussões, principalmente pela idéia de justiça a que está vinculada. Mas na doutrina, tanto na nacional quanto na estrangeira, podemos encontrar vários entendimentos sobre o conceito deste princípio, bem como sobre as expressões capacidade econômica e capacidade financeira para se referirem à capacidade contributiva. O conceito do que possa representar a idéia de capacidade contributiva encontra-se ligado à noção de justiça em matéria de tributação, e carrega em si a marca do princípio constitucional da igualdade. A noção de capacidade contributiva está ligada a duas considerações básicas para a imposição tributária, que são o conteúdo econômico e a idéia de justiça da tributação. Assim, no que diz respeito ao princípio da capacidade contributiva não se pode negar o fundamento econômico-financeiro do conceito, muitas vezes identificável com “capacidade econômica”, e não se pode refutar seu conteúdo jurídico-político, na medida em que se encontra amalgamado com a idéia de justiça tributária, que é fruto da visão pós-positivista de nosso tempo. O conceito de capacidade contributiva foi proposto pelo financista italiano Benvenuto Griziotti para significar a capacidade econômica de pagar tributos, definiu este princípio como “a potencialidade que possuem os submetidos à soberania fiscal para contribuir para os gastos públicos”.45 Este autor estabeleceu uma correlação entre a capacidade contributiva e os serviços públicos, onde esta erigia-se como elemento causal da obrigação tributária. Ou seja, este autor concebeu a capacidade contributiva como causa última do dever de pagar impostos, onde estes eram 45 GRIZIOTTI, Benvenuto. Principios de la ciência de las finanzas. Buenos Aires, Depalma, 1949, p. 215. 45 graduados de acordo com os benefícios recebidos pelos indivíduos por meio dos serviços públicos. Em sua conceituação, temos que a capacidade contributiva é a riqueza disponível após serem satisfeitas as necessidades elementares de existência. Este financista introduziu na dogmática jurídico-tributária o conceito de capacidade contributiva, atraindo a atenção dos juristas para o assunto que não tinha reconhecimento da ciência jurídica. Embora no campo tributário houvesse quem negasse qualquer traço jurídico deste princípio, considerando-o apenas como um conceito financeiro estranho à juridicidade da tributação, um conceito vago e de difícil aplicação concreta46. A tese de Griziotti foi repelida na doutrina italiana, pois defenderam que no plano jurídico era impossível formular um juízo sobre a existência da relação entre serviços públicos e o imposto. Com o excessivo e estéril positivismo provocado pelo progressivo distanciamento das teses sustentadas pela Escola de Pavia, o trato da capacidade contributiva pelos positivistas a conduziu a uma noção parajurídica47 e de insuscetível aferição concreta, o que a relegou a um plano secundário. Este conceito parajurídico recebeu várias críticas, pois neste sentido o princípio da justiça dos tributos era considerado como um princípio não jurídico. Sainz de Bujanda48 defendeu a juridicidade do princípio da capacidade contributiva, criticou este Nesta linha, apontamos Giuliani Fonrouge e no direito brasileiro Alfredo Augusto Becker. (OLIVEIRA José Marcos Domingues de. Op. cit. p.26-27). 47 Como exemplo, temos a orientação excessivamente positivista do mestre do Direito Tributário - Giannini, que sustentou que o princípio da capacidade contributiva era um conceito parajurídico. (GIANNINI. Apud OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Op. cit. p. 26 e 32-33) 48 O que em nenhum caso se poderia afirmar com fundamento é que seja um conceito parajurídico, já que, inclusive nos ditos ordenamentos, a repartição tributária só poderá reputar-se legítima se inspirada em uma idéia de justiça, ainda que esta tenha de buscar-se fora da letra dos textos positivos. (os grifos não são do original). SAÍNZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda y derecho. V. III. Madri: Instituto de Estúdios Políticos, 1963, p. 181-185. 46 46 conceito, colocando que no máximo poderia ser um conceito paralegal quando não consagrado expressamente nos ordenamentos tributários. O jurista italiano Emilio Giardina49 revitalizou o princípio da capacidade contributiva, definindo-o como a possibilidade de suportar o ônus tributário; ou seja, é a capacidade econômica de pagar tributos, traduzida como a posse de uma riqueza em medida suficiente a fazer frente à exigência fiscal. Este autor, na tentativa de dotar de eficiência o artigo 53 da Constituição Italiana, acabou por criticar conceitualmente este princípio, destacando a sua força econômica e colocando-o como sem parâmetro científico para determinar o papel do contribuinte no custeio das despesas estatais. Mas a obra de Giardina é importante como um indicativo de mudança de atitude frente ao princípio da capacidade contributiva, onde passaram a admitir a possibilidade de declarar inconstitucional uma lei por ofensa a este princípio. Outros afirmaram que apesar do conceito econômico-financeiro possuir feições jurídicas, por ser verdadeiro pressuposto da lei tributária, entre os que assim o conceituaram temos Rubens Gomes de Sousa50. Ruy Barbosa Nogueira51 considerou que: “a capacidade contributiva está inserida no sistema tributário como um conceito jurídico indeterminado”, fazemos aqui a ressalva de que mesmo sendo considerado como indeterminado, não deixa de ser jurídico por esse motivo. 49 GIARDINA, Emílio. Le basi teoriche del princìpio della capacità contributiva. Milano: Dott.A. Giuffrè Ed., 1961, p.3 e 434-439. 50 Em síntese, capacidade contributiva é a soma de riqueza disponível depois de satisfeitas as necessidades elementares da existência, riqueza essa que pode ser absorvida pelo Estado sem reduzir o padrão de vida do contribuinte e sem prejudicar as suas atividades econômicas. Trata-se, portanto, de um conceito tipicamente econômico, mas que adquire um efeito jurídico desde que seja adotado pela lei como base da tributação.(SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1982, p. 95). 51 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p.13. 47 Pela linha histórica, se afirmou como um princípio jurídico de grande valor no debate da igualdade no campo tributário. A patente correlação entre o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva levou-o a correntes doutrinárias divergentes, onde alguns sustentam ser o princípio da capacidade contributiva um desdobramento, uma manifestação do princípio da igualdade e outros defendem que a capacidade contributiva é um princípio com conteúdo próprio. Juristas como Ignazio Manzoni52, Roque Antônio Carrazza53, José Maurício Conti54, Misabel Derzi55 e Alcides Jorge Costa56 dentre outros, conceituaram a capacidade contributiva como um desdobramento do princípio da isonomia, ou seja, um critério para mensurar a igualdade ou desigualdade; com isto, vislumbram a capacidade contributiva como um simples aspecto em que se desdobra o princípio da igualdade e não uma regra autônoma. Esta corrente também é alvo de críticas, principalmente em nosso Direito pátrio após a edição da Constituição Federal de 1988, pois esta deu status de princípio à capacidade contributiva no sistema tributário nacional, uma vez que diz respeito à composição estrutural e funcional do sistema. 52 O principio da Capacidade contributiva é uma afirmação da uniformidade ou igualdade tributária (MANZONI, Ignazio. Il principio della capaictà contributiva nell’ordinamento constituzionale italiano. Torino, G.Giappichelli Editore, 1965, p. 14) 53 O princípio da capacidade contributiva – que informa a tributação por meio de imposto- hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos”. (CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 8ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p.60 ). 54 O princípio da capacidade contributiva nada mais é do que um desdobramento do princípio da igualdade no sistema constitucional tributário. (CONTI, José Maurício. Princípios tributários da capacidade contributiva e da progressividade. São Paulo: Dialética, 1997, p. 26). 55 A capacidade contributiva é um desdobramento de um mesmo e único princípio, o da igualdade. (DERZI, Misabel Abreu Machado. Princípio da igualdade no direito tributário e suas manifestações. In V Congresso brasileiro de direito tributário – Princípios constitucionais tributários. São Paulo: IDEPE/RT, 1991, p. 163). 56 A igualdade tributária no Brasil, consiste em tributar da mesma forma todos os que têm a mesma capacidade contributiva.( COSTA, Alcides Jorge. Capacidade contributiva. In Revista de direito tributário nº 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 300). 48 Na linha de que a capacidade contributiva não é um mero desdobramento do princípio geral da isonomia tributária, temos Luciano Amaro57 e Hugo de Brito Machado58 que defendem a tese de que a capacidade contributiva não deve ser interpretada como simples forma de manifestação do princípio geral da isonomia. Na mesma postura, Marco Aurélio Greco critica quem define o princípio da capacidade contributiva como um desdobramento da igualdade, afirmando que este posicionamento era aceito quando o mesmo não estava consagrado pela Constituição Federal de modo expresso. O modo como foi disposto na Carta Magna de 1988 modifica a relação entre os dois princípios; pois o da capacidade contributiva se antepõe ao da igualdade, tendo como objetivo uma justa tributação, e o da igualdade tributária aparece no texto constitucional como limitação ao poder de tributar. Nas palavras de Marco Aurélio Greco: Neste contexto, a igualdade tributária deixa de ser um princípio informador da tributação para se transformar em critério de distribuição da carga tributária, `a vista da mesma manifestação de capacidade contributiva. A capacidade contributiva deixa de ser um desdobramento da igualdade para se vincular diretamente à liberdade e à solidariedade no sentido de busca da justiça. Ou seja, detectada a capacidade contributiva a ser captada pelo imposto ( e, em certas hipóteses, pelas contribuições), o respectivo poder de tributar deverá ser exercido positivamente no sentido de alcançá-la, ao mesmo tempo em que deverá atender a uma limitação, qual seja, fazê-lo com isonomia, sem discriminações. Em suma, isonomia é o critério de atingimento da capacidade contributiva ( pelo menos em se tratando de impostos e contribuições) e parâmetro de aplicação e interpretação das normas que disciplinam a exação. (os grifos não são do original)59. Nesta linha crítica, temos então que antes da Constituição Federal de 1988 os dois princípios se conjugavam; assim, para se ter igualdade tributária dever57 O postulado em exame avizinha-se do princípio da igualdade, na medida em que, ao adequar-se o tributo à capacidade dos contribuintes, deve-se buscar um modelo de incidência que não ignore as diferenças evidenciadas nas diversas situações eleitas como suporte de imposição. E isto corresponde a um dos aspectos da igualdade, que é o tratamento desigual aos desiguais. Mas em situações iguais o princípio da capacidade contributiva não se resume a dar igualdade de tratamento. ( AMARO. Luciano, Direito tributário brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª ed., 2003, p. 138.) 58 MACHADO, Hugo de Brito. Temas de direito tributário. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1993, p.28. 59 GRECO, Marco Aurélio. Contribuição (uma figura sui generis). São Paulo: Dialética, 2000, p. 193. 49 se-ia observar o princípio da capacidade contributiva. Agora, do modo que veio expresso em nossa Carta Constitucional, temos que primeiro deve-se verificar a existência de capacidade contributiva para que a tributação se justifique, para depois ser instituída a imposição tributária sem violação da igualdade. A evolução do conceito de capacidade contributiva é vislumbrada em três momentos por Carlos Palao Taboada60, no primeiro a noção de capacidade contributiva não passando de um princípio de justiça intuitiva, em que a tributação deveria guardar alguma relação com a riqueza de quem suportaria o ônus tributário. No segundo momento, é visto como conteúdo material e formal do princípio da igualdade, uma complementação desta. Nesta fase começa a absorvê-la para passar a ser entendida como um limite a partir do qual atua o princípio da igualdade. E no último, é entendido como a especificação concreta do princípio da igualdade, onde não mais é visto como princípio abstrato e formal, mas com conteúdo autônomo e determinado. Segundo este autor, a crise em relação ao conceito de capacidade contributiva se dá justamente pelo retorno deste princípio à sua concepção original, como princípio norteador de justiça passa a se identificar com a idéia de que a atividade tributária não pode deixar de manter um relacionamento estreito com a riqueza de quem sofrerá a imposição tributária. Geraldo Ataliba e Cléber Giardino61 registram que o princípio da capacidade contributiva se traduz na exigência de moldar a tributação de modo a adaptá-la à riqueza dos contribuintes, e a define como a “real possibilidade de diminuir-se patrimonialmente, sem destruir-se e sem perder a possibilidade de persistir gerando a riqueza de lastro à tributação”. 60 TABOADA, Carlos Palao. Op. cit., p. 125-154. ATALIBA, Geraldo. GIARDINO, Cléber. Imposto de renda – capacidade contributiva -aparência de riqueza- riqueza fictícia- renda escritural- intributabilidade de correções monetárias. In Revista de direito tributário nº 38. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro-dezembro, 1986, p. 143. 61 50 José Marcos Domingues de Oliveira analisa a capacidade contributiva sob os aspectos objetivos e subjetivos, onde o objetivo leva em conta a riqueza do contribuinte e o subjetivo as particularidades pessoais do contribuinte, afirma que: A capacidade contributiva é um conceito que se compreende em dois sentidos, um objetivo ou absoluto e outro subjetivo ou relativo.No primeiro caso, capacidade contributiva significa a existência de uma riqueza apta a ser tributada (capacidade contributiva como pressuposto da tributação), enquanto no segundo, a parcela dessa riqueza que será objeto da tributação em face das condições individuais (capacidade contributiva como critério de graduação e limite do tributo).62 Assim, o conceito objetivo é visto como um pressuposto ou fundamento jurídico do imposto, uma diretriz para a eleição das hipóteses de incidência, embora não se esgote nesta escolha63. Já o aspecto subjetivo é aquele que está vinculado aos critérios relacionados à aptidão real de cada pessoa em poder arcar com o ônus tributário, assim, a partir do critério subjetivo, temos que a capacidade contributiva se inicia após a dedução dos gastos da exploração e manutenção da atividade econômica , bem como do mínimo necessário a um vida humana digna. Klaus Tipke64 ressalta o princípio da capacidade contributiva como expressão da justiça fiscal e na defesa da validade jurídica deste princípio o justifica com a teoria do mínimo existencial. Podemos, assim, verificar que o conceito de capacidade contributiva pode ser analisado sob o ângulo estrutural, ou seja, a capacidade de suportar o ônus tributário, bem como sob o ângulo funcional, segundo o qual é usado como critério na aplicação do princípio da igualdade. 62 OLIVEIRA, José Marcos, Domingues. Op. Cit. p. 33. A capacidade econômica objetiva não se esgota na escolha da hipótese de incidência, já constitucionalmente posta, na quase totalidade dos impostos. É necessária a realização de uma concreção paulatina, que somente se aperfeiçoa com ao advento da lei ordinária da pessoa jurídica competente. Ou seja, é necessário que o legislador saiba, que nos impostos incidentes sobre a renda, o patrimônio, a propriedade e seus acréscimos por quaisquer formas de transmissão, autorizar a dedução imprescindível das despesas e gastos necessários à aquisição e manutenção da renda, da propriedade e do patrimônio. E será, no quadro comparativo entre a Constituição e as leis inferiores (complementares e ordinárias), que a questão da capacidade econômica objetiva ganhará importância. ( DERZI, Misabel Abreu Machado. “Notas e atualização”. In BALEEIRO, Aliomar. Op. cit.p. 692). 64 TIPKE, Klaus. Op. cit., p. 27-29 63 51 Ricardo Lobo Torres65 conclui que o conceito de capacidade contributiva somente pode ser entendido pela intermediação dos princípios legitimadores da igualdade, ponderação e razoabilidade, concomitantes com as limitações constitucionais ao poder de tributar e com a possibilidade fática da mensuração da riqueza daqueles que irão suportar a imposição tributária; uma saída procedimentalista e discursiva onde se procura encontrar o significado da norma e encaixá-la ao fato pela teoria da argumentação. II.2- Capacidade Contributiva X Capacidade Econômica Capacidade contributiva é algo diverso de capacidade econômica. As duas expressões muitas das vezes são usadas como sinônimas, mas mesmo usadas de forma equivalente, estas são distintas. Existem ainda autores que utilizam a expressão “capacidade financeira”. Juristas italianos defenderam a tese de que estas expressões não significam a mesma coisa, e as diferenciaram em suas doutrinas. Dentre eles podemos citar Frederico Maffezzoni e Francesco Moschetti. Este último, ao buscar as justificativas das isenções dos tributos na Constituição Italiana, assim as distinguiu: Capacidade econômica é apenas uma condição necessária para a existência de capacidade contributiva, posto que esta é a capacidade econômica qualificada por um dever de solidariedade, quer dizer, por um dever orientado e caracterizado por um prevalente interesse coletivo, não se podendo considerar a riqueza do indivíduo separadamente das exigências coletivas.66 Estas distinções colocaram que a capacidade contributiva é aquela capacidade relacionada com a imposição parcial ou total, sendo a capacidade 65 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 2005, p. 292. MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidad contributiva. Madri: Instituto de Estúdios fiscales, 1980, p. 279. 66 52 econômica da pessoa enquanto sujeito passivo da relação jurídico-tributária, já a capacidade econômica é aquela ostentada por uma pessoa que não é contribuinte. Ives Gandra da Silva Martins67 também adota a tese de distinção entre estas duas expressões, afirma que apesar de serem dimensões da capacidade de pagar tributos, estes dois conceitos não se confundem; faz a distinção destes afirmando que a capacidade contributiva está relacionada com a imposição específica ou global e que, nos termos da lei, vincula a dimensão econômica particular com o poder tributante e a capacidade econômica existente independente dessa vinculação, é apenas uma exteriorização do potencial de riqueza do indivíduo. Para este mesmo autor, a capacidade contributiva somente se inicia após as deduções dos gastos destinados à satisfação das necessidades básicas do contribuinte. Assim, para os defensores da distinção entre as duas expressões, deveria ser feita a diferenciação segundo um critério de avaliação formulada de acordo com o extrato social em que se aplica, uma vez que a capacidade econômica é um pressuposto necessário para a existência da capacidade contributiva, pois esta somente se iniciaria a partir da satisfação daquela. Ou seja, a capacidade econômica é um dado anterior à capacidade contributiva, esta somente se configurará se aquela ultrapassar um mínimo necessário à dignidade da existência humana. Assim, podemos dizer que a capacidade contributiva constitui uma capacidade econômica específica, referindo-se apenas à aptidão do contribuinte de arcar com determinada imposição tributária. Admite-se a possibilidade de uma pessoa ter capacidade econômica e não ter condições de contribuir para o Fisco. 67 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Capacidade econômica e capacidade contributiva. In MARTINS, Ives Gandra da Silva ( coord.) Caderno de Pesquisas Tributárias. Vol.14 São Paulo: Editora Resenha Tributária e Centro de Estudos de Extensão Universitária, 1989, p. 33. 53 Porém, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 145, § 1º, não reconhece a distinção entre os dois conceitos e faz uso da expressão capacidade econômica como sinônimo de capacidade contributiva. Misabel Derzi68 justifica que a Constituição Federal de 1988 adotou a expressão capacidade econômica para afastar as criações jurisprudenciais, administrativas ou legais que buscassem atingir fatos que não estivessem assentados em realidades econômicas. Diante da forma constitucional de tal princípio, Ricardo Lobo Torres considera as expressões sinônimas e assim disserta: Capacidade contributiva é capacidade econômica do contribuinte, como, aliás, refere a Constituição Federal de 1988, mantendo a tradição da Constituição Federal de 1946, coincidindo também com a Constituição da Espanha. É, pois, capacidade de pagar (ability to pay) como dizem os povos de língua inglesa, significando que cada um deve contribuir na proporção de suas rendas e haveres, independentemente de sua eventual disponibilidade financeira.69 Comparando a posição doutrinária acima, verificamos que a mesma está compatível com o texto de nossa Carta Magna, onde as duas expressões são utilizadas como sinônimas. Pois nosso texto constitucional ao determinar que os impostos devem ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, não utiliza a expressão capacidade contributiva, mas capacidade econômica ao se referir à capacidade contributiva. Assim, para o direito brasileiro, capacidade contributiva é o mesmo que capacidade econômica. Hugo de Brito Machado70 afirma que as construções doutrinárias italianas não são válidas para o direito brasileiro, porque nossa Constituição, diferentemente da Italiana, não se reporta à capacidade contributiva, mas à capacidade econômica. 68 DERZI, Misabel Abreu Machado . “Notas e atualização”. In BALEEIRO, Aliomar. Op. cit.p. 690 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 79. 70 MACHADO, Hugo de Brito. Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988. São Paulo: Dialética, 2001, p. 75. 69 54 Zilveti71 conclui que capacidade econômica é o mesmo que capacidade contributiva, envolvendo tanto as condições pessoais do contribuinte quanto a riqueza que possui, a fim de opor a obrigação de respeito a esse princípio. O entendimento mais difundido por nossa doutrina é de que não existe distinção entre os referidos conceitos, pois a capacidade econômica é sempre presumida, pois sem ela não se pode nem falar em tributação. Com relação à expressão capacidade financeira, esta não se refere a capacidade contributiva, como alguns autores afirmam, pois a Constituição Federal de 1988 ao afirmar a aplicação do princípio da capacidade contributiva levou em conta a capacidade econômica do contribuinte e não a financeira, assim, o contribuinte deve pagar impostos de acordo com as rendas e patrimônio, independente da falta de capacidade financeira. II.3- Princípio da Capacidade Contributiva na Constituição Federal de 1988 O princípio da capacidade contributiva está presente na Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 145, §1º que dispõe o seguinte: Art. 145- (...) § 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. O constituinte brasileiro não foi feliz na redação do referido texto acima, pois a forma como está expresso suscita interpretações divergentes e dúvidas a respeito de sua aplicação no direito brasileiro. Da análise do texto acima, e para um perfeito entendimento deste princípio, mister se faz apurar o real sentido das expressões “sempre que possível” e “caráter pessoal” constantes no enunciado, bem 71 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit.251 55 como a faculdade concedida à administração tributária para poder identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte para conferir efetividade ao caráter pessoal e ao princípio da capacidade contributiva. II.3.1- SENTIDO DA EXPRESSÃO “SEMPRE QUE POSSÍVEL” Para compreendermos o alcance da expressão “sempre que possível” no enunciado do artigo iremos analisar se esta se refere apenas ao caráter pessoal dos impostos ou também à sua graduação segundo a capacidade econômica do contribuinte. O alcance da referida expressão sobre o princípio da capacidade contributiva enseja posições dúbias a seu respeito, muitas delas controversas. Há autores que defendem que a expressão “sempre que possível” somente se aplica ao caráter pessoal e não à capacidade econômica. Dentre estes podemos citar Ives Gandra da Silva Martins72 que critica o fato da expressão ter sido colocada no início do parágrafo, permitindo que se entenda que a expressão comandaria não apenas a graduação pessoal, mas também a capacidade contributiva, para este autor a expressão trata-se de uma imperfeição lingüística, onde está inadequadamente localizada dentro da frase. Leandro Paulsen73 também seguiu a corrente de Ives Gandra, afirmou que “a expressão sempre que possível refere-se ao caráter pessoal do imposto”. Américo Lacombe74 ao interpretar o texto constitucional salienta que a expressão se refere apenas ao caráter pessoal dos impostos, conclui que “sempre que possível os 72 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. cit., 1989, p. 42 PAULSEN, Leandro. Direito tributário constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ltda, 2003, p. 76. 74 LACOMBE, Américo Lourenço Masset. Igualdade e capacidade contributiva. In V Congresso brasileiro de direito tributário – princípios constitucionais tributários. São Paulo: Edição IDEPE/RT- separata da Revista de Direito Tributário, 1991, p. 157 73 56 impostos terão caráter pessoal, sendo graduados, em qualquer caso, segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Seguindo este mesmo raciocínio, Hugo de Brito Machado assim conclui sua interpretação do citado artigo constitucional: ... Realmente, a expressão sempre que possível diz respeito apenas à atribuição de caráter pessoal aos impostos. Não à graduação destes segundo a capacidade econômica dos contribuintes. (...) Por isto não temos dúvida em afirmar que o sentido da cláusula sempre que possível contida no artigo 145 § 1º, da Constituição Federal, é o de permitir a existência de impostos sem caráter pessoal, e não de permitir imposto que não seja graduado segundo a capacidade econômica do contribuinte75. (os grifos não são do original) Assim, com base nesta corrente podemos verificar que todos os impostos, ainda que não permitam uma aferição direta da capacidade contributiva, sujeitam-se a este princípio. Em outro capítulo abordaremos a aplicação deste princípio às demais espécies tributárias. Por um outro lado, contrapondo à posição acima, existem autores, como é o caso de Alcides Jorge Costa76 e Luciano Amaro77, que admitem que a expressão se refere também à capacidade contributiva, pois existem impostos incompatíveis com esta espécie de graduação. Para os defensores desta corrente, o espírito da norma constitucional é a obrigatoriedade do imposto ter caráter pessoal e ser graduado segundo a capacidade econômica do contribuinte, quando, por sua natureza, o tributo se prestar a esta observância. Assim, a cláusula “sempre que possível” deve ser entendida como aplicável aos requisitos de caráter pessoal e de graduação segundo a capacidade contributiva. 75 MACHADO, Hugo de Brito. O Princípio da capacidade contributiva. In Caderno de pesquisas tributárias 14. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1989, p. 124-126. 76 COSTA, Alcides Jorge. Op. cit.p. 301 77 AMARO, Luciano. Op. cit., p. 137. 57 Adotando a última posição doutrinária, temos que o constituinte ao utilizar a expressão “sempre que possível” também se referiu à graduação dos impostos em conformidade com a capacidade econômica do contribuinte em suportar o ônus tributário. Mas neste caso, não podemos afirmar que se trata de uma mera recomendação constitucional; o legislador infraconstitucional não é livre para obedecer, ou não, a este preceito constitucional; apenas foi infeliz a redação do artigo 145, § 1º da Carta Magna, pois reconheceu, em algumas hipóteses, o fato de uma norma poder não ter aplicação, não em razão de inexistir vontade do legislador infraconstitucional, mas por não ser, tecnicamente, possível sua aplicação em alguns impostos. Adam Smith78 em sua obra “A Riqueza das Nações: Investigação sobre sua Natureza e suas Causas” já fazia referência ao sentido da expressão “sempre que possível” ao afirmar em sua clássica definição que “os súditos de todos os Estados devem contribuir para a manutenção do governo, tanto quanto possível, em proporção das respectivas capacidades”. Assim, nas palavras desse autor a cláusula não é permissiva, mas deverá ser observado o referido princípio tanto quanto possível. A este respeito, Aliomar Baleeiro79, também coloca que a cláusula não é permissiva, tampouco instrumento de atribuição de poder discricionário ao legislador, pois o advérbio sempre acentua o grau de imperatividade e abrangência do dispositivo. Segundo Marco Aurélio Greco80 são três as noções ligadas à expressão em estudo que podem delimitar o seu alcance. Na primeira hipótese a mesma 78 SMITH, Adam. Op. cit. p. 485. BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 694. 80 Nas palavras de GRECO, há três noções na expressão “sempre que possível”: um sempre que possível sem força; um sempre que possível fraco e um sempre que possível forte. (GRECO, Marco Aurélio. Op.cit., p. 187/188). 79 58 poderia assumir uma noção de simples recomendação, que o legislador deveria observar sempre que fosse possível. Esta primeira noção nega qualquer sentido ao dispositivo, pois assume uma posição sem força. Outra noção que se pode extrair da referida expressão é o sentido negativo do princípio; este limite negativo impõe que somente se crie um imposto onde houver manifestação de capacidade contributiva, não podendo existir esta figura tributária sem capacidade de suportar o ônus tributário; ou seja, sem a capacidade contributiva faltaria um dos pressupostos constitucionais para a exigência do imposto. A terceira noção envolveria não apenas o sentido negativo, mas também um aspecto positivo; nesta noção assumiria o sentido de que somente quando não fosse possível é que o legislador poderia deixar de atender à capacidade contributiva. Ou seja, assume uma interpretação de sempre que possível forte, onde somente não terá aplicação quando não for possível a sua captação, pois quando esta puder ser aferida, a lei sempre terá que atender ao princípio. Assim, tanto pelo aspecto negativo (ausência de capacidade contributiva) quanto pelo aspecto positivo (era possível determinar a capacidade e não foi observada) a norma tributária poderá ser considerada inconstitucional. Temos, então, que o alcance deste princípio é amplo e não se restringe apenas para obrigar a aplicabilidade do mesmo quando for detectada a existência de capacidade contributiva. O sentido da expressão “sempre que possível” indica um caminho que o legislador deve percorrer, sempre que isto for possível, pois introduz na discussão a existência de um juízo de direcionamento, que deve guiar a apuração dos valores a serem atendidos no contexto da atividade tributária. 59 II.3.2- SENTIDO DA EXPRESSÃO “CARÁTER PESSOAL” É importante estabelecer qual a intenção do legislador constituinte ao afirmar que os impostos terão caráter pessoal sempre que possível. O texto constitucional de 1988 consagrou a pessoalidade tributária ao determinar que os impostos deverão ter caráter pessoal. Ao destacar expressamente este preferência, a Constituição Federal de 1988 está adotando a clássica distinção de que os impostos podem ter caráter pessoal ou caráter real81. Podemos dizer que houve a constitucionalização dessa classificação, e também, uma preferência do legislador constituinte pelos impostos pessoais, pois estes são aqueles que melhor expressam a capacidade contributiva daquele que suportará a imposição tributária. Sacha Calmon82 ao tecer comentários sobre a Constituição Federal de 1988 faz críticas a este artigo no que diz respeito a “pessoalidade“, pois o próprio constituinte não levou em consideração essa recomendação ao formular a lista dos impostos que os entes públicos poderiam criar. Para este autor, caberia ao constituinte obedecer suas prescrições ao listar a distribuição das competências tributárias, de modo a não permitir a repercussão da transferência do encargo financeiro a terceiros. Hugo de Brito Machado define imposto pessoal como aquele em cuja quantificação, seja através da base de cálculo, seja da alíquota, ou de ambas, são 81 ZILVETI faz uma crítica a esta classificação colocando que o imposto não incide sobre a “coisa/ bem” mas sim sobre a riqueza que a “coisa”representa. Uma vez que quem responde pela riqueza gravada pelo imposto é sempre a pessoa do contribuinte, onde a obrigação tributária será sempre pessoal, e para argumento de sua crítica, utiliza a Súmula 539 do STF que entendeu como inconstitucional a lei municipal que reduzia o imposto predial urbano sobre imóveis ocupados para residência do proprietário, neste sentido reconheceu o STF que não há como abstrair a pessoalidade dos impostos classificados como “reais”. (ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit.p. 266-267). 82 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1993, p. 89. 60 consideradas as condições pessoais de cada contribuinte; e o imposto real aquele cuja quantificação leva-se em conta apenas a matéria tributável objetivamente83. Assim, os impostos ditos pessoais são aqueles que levam em consideração na determinação da hipótese de incidência elementos nitidamente integrantes do aspecto pessoal inerente à pessoa do sujeito passivo da obrigação tributária, considerando a sua condição econômica especial e levando-se em conta os índices que melhor valorem esta situação, por sua natureza são diretos. Os impostos reais são aqueles cujo aspecto material da hipótese de incidência descreve um fato ou acontecimento independentemente do elemento pessoal. O legislador constituinte privilegiou, pela redação do texto constitucional, a criação de impostos de caráter pessoal, onde a personalização dos impostos está condicionada à viabilidade jurídica na sua criação, por isso utilizou a expressão “sempre que possível os impostos terão caráter pessoal”. Assim, somente será aceita a criação de impostos reais quando não for possível a pessoalidade dos mesmos, ou seja, foi determinado ao legislador para que sempre que possível institua a tributação com o uso do critério da pessoalidade. Neste sentido, Misabel Derzi ao fazer comentários a este princípio em notas do livro de Aliomar Baleeiro afirma que: a cláusula não é permissiva, nem confere poder discricionário ao legislador; ao contrário, acentua o grau de imperatividade e abrangência do dispositivo, deixando claro que, apenas sendo impossível, deixará o legislador de considerar a pessoalidade para graduar os impostos de acordo com a capacidade econômica subjetiva do contribuinte.84 A expressão indica que a personalização está condicionada à viabilidade jurídica de ser considerada a situação individual do sujeito passivo numa dada 83 84 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., 1989, p.68. DERZI, Misabel de Abreu Machado. “Notas e atualização”. In BALEEIRO, Aliomar. Op. cit.p. 694 61 hipótese de incidência tributária, onde sempre que a estrutura do aspecto material de incidência tributária o comportar deverá ser observado. A relação entre essa classificação e o princípio da capacidade contributiva é a possibilidade econômica de pagar o tributo, que os ingleses chamam de ability to pay (habilidade para pagar), onde essa possibilidade de suportar o peso econômico do tributo varia de acordo com as características de renda e patrimônio de cada contribuinte, em análise nitidamente pessoal85. Assim, a personalização do imposto pode ser vista como uma das faces da capacidade contributiva, à qual, o imposto pessoal deve sempre ser adequado a este princípio. Isto não significa dizer que os impostos reais não devam ser informados pelo princípio da capacidade contributiva, devem observar também este postulado universal de justiça fiscal. II.3.3- SENTIDO DA FRASE “FACULTADO À ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA, ESPECIALMENTE PARA CONFERIR EFETIVIDADE A ESSES OBJETIVOS, IDENTIFICAR, RESPEITADOS OS DIREITOS INDIVIDUAIS E NOS TERMOS DA LEI, O PATRIMÔNIO, OS RENDIMENTOS E AS ATIVIDADES ECONÔMICAS DO CONTRIBUINTE”. A faculdade atribuída pela Constituição Federal ao administrador para poder identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte é inerente ao exercício de atividades próprias da autoridade administrativa, uma vez que sem esta faculdade não teria como efetivar o poder de tributar. Esta faculdade corresponde ao poder investigatório do fisco para aferir as atividades, os bens e as rendas dos contribuintes, de modo a fortalecer os elementos de controle e apurar o cumprimento da obrigação tributária. 85 BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. São Paulo: Dialética, 1998, p. 58. 62 O texto constitucional confere esta faculdade à administração tributária principalmente para possibilitar a observância dos princípios enunciados no § 1º do artigo 145, ou seja, conferir o caráter pessoal, gradual e a capacidade contributiva do contribuinte. A referência a essa faculdade não deve ser entendida como restritiva, e a expressão “especialmente” não significa exclusivamente. Ives Gandra da Silva Martins86criticando a disposição constitucional, assim se pronunciou: Considero que o final do discurso do § 1º do artigo 145 é a demonstração inequívoca do caráter ideológico e pouco científico que a dicção possui.De inicio, o direito de fiscalizar é um direito inerente à Administração dentro das regras próprias do Direito Administrativo. (...) À nitidez, tal direito de a Administração fiscalizar, que já tinha no passado e continua no presente, é irrelevante como fonte geradora de imposição, que só pode ser de lei para conferir o caráter pessoal a um incidência ou determinar sua graduação. Por esta razão, a própria expressão “nos termos da lei” é a expressão que reduz às suas dimensões atuais o princípio constitucional. ( os grifos não são do original) A crítica de Ives Gandra é que esta faculdade concedida ao fisco neste artigo da Constituição é simplesmente explicitante, pois esse direito está implícito no poder de tributar, assim como a limitação deste já está consagrada em outras prescrições constitucionais. O poder investigatório do fisco, também de forma expressa sofreu limitações que o próprio texto constitucional mencionou, que são o respeito aos direitos individuais e a observância da lei; ou seja, somente pode exercer esse direito de fiscalização nos termos em que a lei dispuser e esta não pode ferir os direitos e garantias individuais do contribuinte. A expressão “nos termos da lei” é utilizada para indicar que é este o instrumento competente para demarcar a atividade da administração tributária, e 86 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. cit., 1989, p. 84. 63 esta deverá observar as limitações constitucionais dessa demarcação. Neste sentido, a lei que reger o direito investigatório não poderá violar qualquer dos princípios constitucionais e nem outros que a lei, mesmo a ordinária, outorgar aos indivíduos, uma vez que o texto constitucional não é exaustivo. Em relação a esse direito e sua limitação, em 2001 a Lei complementar 105 que tratou da quebra de sigilo bancário por procedimento administrativo foi alvo de críticas e de demandas judiciais87, trouxe à discussão o questionamento de que o poder investigatório concedido ao fisco através da quebra do sigilo bancário por procedimento administrativo88, independente de autorização judicial, estaria violando os direitos fundamentais, fundados no direito de preservação da intimidade e à vida privada do contribuinte( artigo 5o inciso X da CF/88) ou no sigilo de dados (inciso XII do art. 5o da CF/88). Como cabe à lei dizer os meios e os modos pelos quais a Administração utilizará a faculdade concedida pelo texto constitucional, podemos dizer que não existe campo para o arbítrio no exercício desse direito investigatório do Fisco, pois este ficará jungido aos limites traçados na Constituição Federal e na lei. 87 A respeito, ver Embargos Infringentes em Apelação Cível nº 2002.04.01.002515-4/RS – Relator Desembargador Federal Wellington Mendes de Almeida, sessão do dia 04/12/2002, onde decidiram que à utilização pelo Fisco das informações bancárias a fim de lançar crédito tributário é imprescindível a autorização judicial ( Informativo do TRF4, dez/2002). Decidindo contrariamente, AI 2001.04.01.045127-8/SC, onde foi afirmado que o acesso fiscal a dados da movimentação financeira dos contribuintes, no bojo de procedimento fiscal instaurado, não afronta os direitos e garantias individuais de inviolabilidade da intimidade, da vida provada, da honra e da imagem das pessoas e de inviolabilidade do sigilo de dados assegurados no artigo 5º, incisos X e XII da CF/88, conforme entendimento sedimentado no tribunal. ( Informativo TRF4, set/2001). 88 Esta Lei concedeu ao fisco, independente de autorização judicial, o direito de utilizar as informações de dados da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF para constituição de crédito tributário , uma vez instaurado o procedimento administrativo (Embora a redação original da lei que instituiu a CPMF - Lei 9311/96 vedasse a utilização das informações dessa para constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos). 64 II.4- O Princípio da Capacidade Contributiva no Direito Comparado. Na consciência contemporânea de todos os povos civilizados, o princípio da capacidade contributiva está arraigado na idéia da atividade tributária; foi difundido por todo o mundo e é amplamente aceito, onde podemos dizer que são várias as nações que o constitucionalizaram ou, no mínimo, o positivaram. No direito comparado, há bons exemplos da efetividade deste princípio, que já mereceu uma vasta elaboração doutrinária mundial. O tema da capacidade contributiva tem levado as cortes constitucionais de diversos países a se manifestarem sobre a validade deste princípio na tributação e também sobre a sua relação com o princípio da igualdade. Como ressaltamos, a capacidade contributiva vem consagrada de modo expresso em vários textos constitucionais contemporâneos, por conseguinte, muitos dos países que não o adotam expressamente em suas leis fundamentais não estão alheios a ele, pois o consideram de modo implícito ou através da jurisprudência de seus tribunais, é o que passaremos a analisar. A Carta Constitucional Italiana é explícita ao proclamar este princípio, utilizando, inclusive, a expressão “capacidade contributiva” em seu artigo 53: “todos tem a obrigação de contribuir para as despesas públicas na medida de sua capacidade contributiva. O sistema tributário é inspirado nos critérios de progressividade”. O texto constitucional italiano não deixa dúvidas quanto à adoção do princípio da capacidade contributiva, onde este princípio tem sido relacionado à igualdade na tributação, também tem sido invocado no combate à evasão fiscal, onde se considera esta conduta antisonômica na repartição da carga fiscal. Um bom exemplo jurisprudencial é a decisão nº 97 da Corte Italiana de 10/07/1968, que firmou a isenção do mínimo existencial como atuação do princípio 65 da capacidade contributiva e como igualdade na tributação, assumindo a posição de que a tributação não pode confiscar os meios indispensáveis à existência fundamental do homem89. Assim como na Constituição Italiana, a capacidade contributiva está também contemplada na Constituição Boliviana90 que faz previsão em seu artigo 8º, determinando como dever fundamental das pessoas contribuir em proporção da sua capacidade econômica para o sustento dos serviços públicos. A Carta Magna da Republica Dominicana91 faz também referência expressa a este princípio, colocando a sua observância junto com o dever fundamental de contribuir para as despesas públicas. Do mesmo modo, a Carta Constitucional do Peru92, em seu artigo 77º, estabelece este princípio como uma determinação constitucional de que todos devem contribuir com os tributos de forma eqüitativa. A Constituição Espanhola93, em seu artigo 31º determina de forma direta que a imposição tributária deverá ater-se, dentre outros, ao princípio da capacidade contributiva; afirma que todos, mediante um sistema tributário justo, inspirado nos princípios da igualdade e progressividade, contribuirão para as despesas públicas em harmonia com sua capacidade econômica, vedando o alcance confiscatório. A jurisprudência espanhola dá uma grande relevância ao princípio da capacidade contributiva, onde é visto como um dos critérios para a justa distribuição 89 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit.p. 361. Artículo 8º - Toda persona tiene los siguientes deberes fundamentales: (...) d. De contribuir, em proporción a su capacidad econômica, al sostenimiento de los servicios públicos. (disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005). 91 Art. 9º. .. e) Contribuir em proporción a su capacidad contributiva para las cargas públicas. (disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005). 92 Art. 77º: Todos tienen el deber de pagar los tributos que les corresponden y de suportar eqüitativamente las cargas estabelecidas por la ley para el sostenimiento de los serviços públicos. (disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005). 93 Todos contribuirán al sostenimiento de los gastos públicos deacuerdo com su capacidad econômica mediante um sistema tributário justo inspirado em los princípios de igualdad y progressividad, que, em ningún caso, tendrá alcance confiscatorio. ( disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005). 90 66 da imposição tributária. A Corte Constitucional o considera como “o mais valioso suporte da equidade na distribuição dos impostos”94. Neste sentido, a Corte Constitucional tem se manifestado a respeito desse princípio como limite ao legislador na hora de legislar sobre tributação; como exemplos, temos a decisão 221/1992 de 11 de dezembro de 1992 e o Acórdão nº 37/1987, afirmando que para a instituição de impostos deve ser respeitada a justa repartição do ônus tributário em conformidade com a capacidade econômica dos contribuintes. Este princípio foi indicado também como limite para a utilização da extrafiscalidade pelo legislador na decisão nº 150/199095. Tem sido também entendimento dessa Corte que o princípio contido no artigo 31 da Carta Espanhola não esgota o princípio da justiça tributária, o qual exige outros critérios como a proporcionalidade e a generalidade para torná-lo efetivo; assim também, tem aceitado a progressividade para atender ao princípio da capacidade contributiva, com o objetivo de conquistar a justiça redistributiva96. A Constituição Bolivariana da Venezuela de 1999, assim como no Brasil, também não utiliza a expressão capacidade contributiva em seu artigo 31697, também trata deste princípio como forma de um sistema tributário justo, onde este deverá fazer a distribuição das cargas públicas segundo a capacidade econômica dos contribuintes. 94 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit., p. 360 Idem, ibidem, p. 358-360. 96 Idem, ibidem,p.358-359. 97 Artículo 316. El sistema tributario procurará la justa distribución de las cargas publicas según la capacidad económica del o la contribuyente, atendiendo al principio de progresividad, así como la protección de la economía nacional y la elevación del nivel de vida de la población, y se sustentará para ello en un sistema eficiente para la recaudación de los tributos.( disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005.) 95 67 A Suíça98 faz também menção a este princípio, quando afirma que as pessoas jurídicas devem ser tributadas segundo a sua capacidade econômica, de acordo com um critério tão uniforme quanto possível. A Constituição da Nicarágua99 de 1987, também faz referência a este princípio em seu artigo 114, embora não utilize a expressão capacidade contributiva. No Chile100, a Constituição garante a todos a igual repartição dos tributos em proporção da riqueza daqueles que irão suportar o encargo tributário ou segundo a progressividade fixada em lei; também garante a igualdade da repartição dos demais encargos públicos. Nesse país, vincula os princípios da igualdade, da progressividade e também da proporcionalidade para cumprir o princípio da capacidade contributiva, afirmando que, em nenhum caso, a lei poderá estabelecer tributos desproporcionais ou injustos. A Constituição da República Portuguesa não traz uma menção específica sobre a capacidade contributiva; limita-se, em seu artigo 103, colimar a satisfação das necessidades financeiras do Estado a uma justa repartição dos rendimentos e das riquezas, e, em seu artigo 104 traça as balizas na cobrança dos impostos. Assim, dá relevância à igualdade na tributação com o objetivo de uma justa distribuição das cargas fiscais, ou seja, através da formulação genérica do princípio da isonomia, se chega ao princípio da capacidade contributiva. Também na Holanda, Síria, na Argentina, no México, no Equador e Grécia, dentre outros, são encontrados dispositivos constitucionais tratando do 98 Art. 41 ter, c, sobre o imposto para a defesa nacional.( OLIVEIRA, José Marcos Domingues. Aspectos jurídicos do princípio da capacidade contributiva. In Revista de direito da procuradoria geral . Rio de Janeiro: Publicação do Centro de Estudos Jurídicos, 1987, nº39, p. 170). 99 Artículo 114 – (...) El sistema tributário debe tomar em consideración la distribuiçõn de la riqueza y de lãs rentas. (disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005.). 100 Articulo 19- La Constitución asegura a todas lãs personas: (....) 20º- La igual repartición de los tributos em proporción a las rentas o em la progresión o forma que fije la ley, y igual reparticion de las demás cargas públicas. (Constitución Política de la República de Chile/ 1980 - disponível em www.presidencia.cl , acessado em 04/04/2005). 68 princípio da capacidade contributiva; usando ou não esta expressão, ou como corolário de outros princípios, mas com o significado de que a tributação deve sempre ser praticada levando-se em conta a capacidade de contribuir do sujeito passivo, na medida de que se deve buscar uma justa distribuição das cargas tributárias. Contrariamente aos sistemas constitucionais do Brasil e da Itália, a Constituição Canadense não menciona o princípio da capacidade contributiva, mas a sua Suprema Corte, considerou a igualdade na repartição do ônus tributário e o respeito ao mínimo existencial101. O sistema norte americano também não contém em sua Constituição dispositivo expresso sobre o princípio da capacidade contributiva, mas a Suprema Corte Americana também firmou jurisprudência a respeito desse princípio, colocou que o poder fiscal do Estado deveria ser exercido em consonância com os direitos individuais assegurados na Constituição. O sistema constitucional germânico, plasmado pela Lei Fundamental de Bonn, promulgada em 1949, não dispõe de modo expresso sobre o princípio da capacidade contributiva, mas, mesmo assim, este princípio possui uma relevância fundamental no Direito Alemão. Este princípio está arraigado como um pressuposto de fato para a imposição tributária, e vem sendo aclamado pela doutrina e pela jurisprudência independentemente de estar jurisdicizado. O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha tem exercido um papel incisivo na exigência de moderação da atividade tributária, dá preponderância ao princípio da igualdade consignado no artigo 3º, § 1º de sua Lei Fundamental, e também, pela percepção voltada para o artigo 20, que define a República Federal da Alemanha como Estado federal, democrático e social, demonstrou, assim, a 101 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op.cit. p. 158. 69 necessidade de se assegurar o pagamento dos tributos ajustados à capacidade econômica dos cidadãos. Praticamente o positivou na efetivação do princípio da igualdade da tributação através da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal e também como um direito fundamental vinculado ao princípio do Estado Social102. Podemos dizer que a doutrina e a jurisprudência alemã reconheceram o princípio da capacidade contributiva como conceito de igualdade e, também, como um direito fundamental vinculado ao princípio do Estado Social. Klaus Tipke falando sobre este princípio de justiça fiscal na Alemanha, aduz que o princípio da capacidade é o critério adequado para efetivação do princípio da igualdade aceito tanto pela doutrina quanto pelo Tribunal; pois o princípio do imposto per capita e o princípio da equivalência não se mostram adequados, onde o primeiro não leva em consideração o mínimo existencial arraigado na dignidade humana e o segundo, equivale ao imposto como preço pelos serviços prestados pelo Estado. Neste sentido entra em conflito tanto com o princípio do mínimo existencial quanto com o princípio do Estado Social: A Constituição Alemã não estatui critério algum para uma tributação justa; em especial ela não menciona o princípio da capacidade contributiva. Uma vez que o princípio da igualdade, também positivado na Constituição Alemã, exige um critério adequado de comparação, a ciência tributária teve de se ocupar da questão: qual o critério de comparação ou qual o princípio de comparação adequado ao Direito Tributário? Na Alemanha a doutrina dominante na ciência dos impostos e também na ciência do Direito dos impostos declara-se favorável ao princípio da capacidade contributiva. Também vários acórdãos do Tribunal Constitucional Federal se baseiam nesse princípio. ( os grifos não 103 são do original) . A jurisprudência alemã tem considerado o respeito à capacidade contributiva como um princípio constitucional de justiça fiscal igualitária, sendo um 102 O princípio da capacidade contributiva corresponde aos princípio do Estado Social de Direito e à consciência jurídica. É um princípio realista, pois devem pagar apenas aqueles que podem pagar. A inversão do princípio (pagar impostos na proporção inversa da capacidade contributiva) é inaceitável sob o aspecto do Estado Social (TIPKE, Klaus. Op. cit, 2002, p. 29) 103 Idem, ibidem, p. 28. 70 princípio que o legislador deve perseguir na elaboração das leis tributárias. Tem como aliado para sua fixação na distribuição equânime da tributação o mínimo existencial, uma vez que relacionou a proteção à família com o princípio da capacidade contributiva, impondo ao legislador tributário o dever de proteger a base econômica individual e familiar; por conseguinte, auxiliou na afirmação deste princípio no direito tributário alemão104. Seção III- APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Nesta parte do trabalho será analisado a aplicação do princípio da capacidade contributiva com as várias espécies tributárias, no sentido de verificar se em todas as espécies este princípio se faz presente; pois diferentemente do que determinava o texto da Constituição de 1946, em seu artigo 202, que fazia referência a “tributos”, a Carta Constitucional de 1988, em que pese a falta de clareza do dispositivo, trouxe de forma expressa que o princípio da capacidade contributiva informa apenas a tributação por meio de impostos. O que interessa saber é se este preceito constitucional deve ser interpretado nesse sentido literal, ou se estenderia às demais espécies tributárias, norteando a criação dos demais tributos. Para perquirir o assunto será feito uma análise da aplicação do princípio da capacidade contributiva às diversas espécies tributárias. III.1- Os impostos e a Capacidade Contributiva No tocante aos impostos a tese da aplicação do princípio da capacidade contributiva é menos conflituosa, pois além da determinação constitucional expressa, 104 BverfGE 82, 60-105, onde a decisão considerou a obrigação de sustento da família como uma expressão da justiça fiscal vertical e horizontal, na avaliação do mínimo existencial das crianças. ( ZILVETTI, Fernando Aurélio. Op. cit. P. 366) 71 é na tributação por meio dos impostos que se tem facilitada a mensuração dos atributos do sujeito passivo do ônus tributário, ficando mais notadamente marcado o caráter pessoal impresso no mandamento constitucional. Ou seja, como princípio informador dos impostos, a capacidade contributiva imprime a tendência de personalização dos mesmos. Em relação aos impostos vamos analisar a aplicação do referido princípio apenas aos impostos sobre o patrimônio e também sobre os impostos indiretos, uma vez são nestes que a doutrina diverge quanto a sua aplicação. III.1.1- IMPOSTOS SOBRE O PATRIMÔNIO A tributação sobre o patrimônio e a sua justificativa segundo o princípio da capacidade contributiva é também um ponto polêmico na doutrina, tanto na nacional quanto na estrangeira, onde encontramos teses favoráveis à aplicação do referido princípio e teses que apontam que a tributação sobre o patrimônio é um afronta a tal princípio, uma vez que não está tributando o rendimento patrimonial mas o próprio patrimônio. Klaus Tipke105, ao discorrer sobre a ordem tributária, afirma que a propriedade embora seja um sinal de capacidade contributiva que corresponde a uma riqueza, não representa a capacidade do proprietário do imóvel; defende que estes impostos não podem ser cobrados da substância do patrimônio, mas de seus rendimentos, pois sendo o patrimônio renda acumulada este já foi tributado por ocasião da obtenção da renda. Gaffuri e Birk, ambos citados por Zilveti106 sustentam, assim como Tipke, que a tributação sobre o patrimônio não encontra justificativa alguma no princípio em 105 106 TIPKE, Klaus. Op. cit, 1998, p. 66. ZILVETI. Fernando Aurélio. Op. cit., p. 271. 72 estudo, além de provocar um desestímulo à poupança, é também, um fomento à evasão de divisas. No Brasil, Paulo de Barros Carvalho, José Maurício Conti107 e Roque Antônio Carrazza108 , dentre outros, são discordantes do entendimento de Klaus Tipke, sustentam a tese da justificação desses impostos segundo a capacidade contributiva, uma vez que esta revela-se com o próprio bem, sendo uma das formas pelas quais ela se exterioriza, um vez que representa uma riqueza. Corroborando com esta linha doutrinária, temos a posição de Geraldo Ataliba109 que ao analisar o Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU concluiu que este está sujeito ao princípio da capacidade contributiva. Elizabeth Carrazza110 se manifesta que os impostos reais por incidirem sobre o direito de propriedade, fizeram que o legislador infraconstitucional levasse em conta o princípio da capacidade econômica como de natureza objetiva, pois a propriedade de um bem móvel ou imóvel presume riqueza do contribuinte. Assim, segundo esses autores, os impostos reais devem obedecer ao princípio constitucional da capacidade contributiva, e para tornar concreto esta observação apontam a progressividade. No mesmo sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo111 analisando a ADin 014.927.0/8 julgou improcedente a ação, afirmando ser constitucional a progressividade das alíquotas do IPTU. A fundamentação de voto do Desembargador Bueno Magano afirmou que no campo tributário a justiça distributiva é realizada pela isonomia tributária e pelo princípio da capacidade contributiva, e 107 CONTI, José Maurício. Op. cit., p.92. CARRAZZA, Roque Antônio. Op. cit., p. 62. 109 ATALIBA, Geraldo. IPTU- progressividade. In RDT, , n° 56, p. 83 110 CARRAZZA, Elizabeth Nazar. IPTU- Capacidade e progressividade. Igualdade e capacidade contributiva. Curitiba: Juruá Editora, 1992, p. 92. 111 CONTI, José Maurício. Op. cit. p. 93-94. 108 73 que os impostos deveriam ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, de modo que aquele que tem maior capacidade para ser tributado deve receber maior carga fiscal, ou seja, sofrerá maior gravame quem tiver maior riqueza. O STF, em decisões112 prolatadas antes da Emenda Constitucional n° 29, de 13.09.00, firmou o entendimento de que os impostos de natureza real não podem variar segundo a presumível capacidade contributiva do sujeito passivo prevista no § 1º do art. 145 da Constituição Federal, porque a capacidade econômica do contribuinte, aquilatada mediante identificação do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte, não tem sentido quando se está diante do IPTU, que no sistema tributário nacional é inequivocamente um imposto real. Porquanto, tem ele como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado na zona urbana do Município, sem levar em consideração a pessoa do proprietário, do titular do domínio útil ou do possuidor. Por conseguinte, os impostos sobre imóveis não estariam submetidos ao princípio em referência, somente acatando a progressividade para a cobrança extrafiscal. Mas a referida Emenda Constitucional autorizou a progressividade do IPTU tanto para o caráter fiscal quanto na cobrança extrafiscal. Uma vez que com a nova redação ao artigo 156, § 1°, da CF, o valor é agora variável em razão dos seguintes critérios: valor, localização, uso, e função social. Com efeito, introduziu-se, assim, o princípio da seletividade no regime jurídico do IPTU. Destarte, o STF publicou, recentemente, a Súmula nº 668113 a fim de ratificar o entendimento já consolidado, tanto em doutrina quanto na jurisprudência. 112 BRASIL. Supremo tribunal Federal . RE 229298-1 – Relator Min. Sydney Sanches, publicado no DJ de 28/08/98 p. 23; AI 230057/ SP- Relator Min, Maurício Corrêa, publicado no DJ de 12/11/1998, p 64; RE 215124/SP- Relator Min. Sydney Sanches, publicado no DJ 14/04/2000, p. 74. (Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 03.05.2005). 113 É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da emenda constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana. 74 Neste sentido, como adiante analisaremos, a progressividade é um subprincípio da capacidade contributiva servindo para efetivar o princípio em estudo. Assim, comungamos da idéia daqueles que apontam ser compatível a sujeição desses impostos ao princípio da capacidade contributiva, considerando que a progressividade é um instrumento inerente e eficiente na concretização com maior perfeição de tal princípio; embora, em nossa doutrina pátria, haja quem defenda que os sistemas de tributação progressivos não medem capacidade econômica, pois são meros instrumentos de distribuição de riquezas no exercício da justiça social114. III.1.2- IMPOSTOS INDIRETOS A classificação dos impostos em diretos e indiretos, que apesar de ser uma classificação frágil, carecedora de relevância jurídica para alguns115, é uma classificação que no estudo da política da imposição fiscal assume grande interesse, pois por meio dessa classificação podemos verificar os traços evolutivos da exação. Os impostos diretos são aqueles que gravam diretamente a riqueza, traduzida pela simples circunstância do sujeito passivo possuir patrimônio ou renda; e os indiretos aqueles que não incidem sobre a riqueza em si, mas pela utilização, circulação ou consumo. Podemos dizer também que os métodos impositivos diretos são aqueles que não comportam a transferência do encargo tributário; e indiretos, aqueles que permitem a transferência do ônus tributário para uma terceira pessoa. (BRASIL. Supremo tribunal Federal. Súmula 668, publicado no DJ de 09/10/2003, p. 4. Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 03.05.2005). 114 ZILVETI, Fernando Aurélio. Capacidade contributiva e mínimo existencial. In Direito tributário estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 41. 115 Na linha crítica da divisão dos impostos em diretos e indiretos temos Geraldo Ataliba que informa que esta classificação nada tem jurídica (ATALIBA, Geraldo. Op. cit. p. 142) e Becker que afirma ser esta divisão impraticável por não estar baseada em critérios científicos ( BECKER, Alfredo Augusto. Op. cit. p. 538). Entretanto o STF reconheceu esta classificação ao editar a Súmula 71, na qual faz menção a tributo indireto. 75 Os impostos indiretos de maior relevância no sistema Tributário Brasileiro são o imposto sobre produtos industrializados – IPI e o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação - ICMS. Estes impostos possuem previsão constitucional de serem regidos pelo princípio da seletividade, levando em conta a essencialidade dos produtos no caso do IPI e a essencialidade das mercadorias ou serviços no que se refere ao ICMS. Justamente em função dessa seletividade é que há controvérsias na doutrina a respeito da aplicação ou não do princípio da capacidade contributiva a estes impostos. Aqueles que defendem a tese da não aplicação do princípio adotam a postura de que a seletividade não equivale à graduação ou à personalização, pois a variação se dá em decorrência da essencialidade dos produtos, mercadorias ou serviços e não da capacidade econômica de quem irá suportar o ônus tributário. Pois tanto quem possui capacidade econômica ou quem não a possui pagarão o mesmo imposto sobre o que vierem a consumir, somente sofrendo diferenciação em razão de ser um produto essencial ou não. Criticando este argumento, temos que, realmente, os produtos essenciais são consumidos por toda a população, mas os produtos supérfluos apenas são adquiridos por aqueles que já tendo satisfeito as suas necessidades essenciais possuem recursos para a aquisição, e neste sentido, esta diferenciação se constitui num critério que implica na homenagem do princípio da capacidade contributiva. Assim, temos que a seletividade em função da essencialidade é uma forma pela qual se aplica o princípio da capacidade contributiva, uma vez que a 76 seletividade é um subprincípio deste, onde segundo Ricardo Lobo Torres116 “o tributo deve incidir progressivamente na razão inversa da essencialidade dos produtos”. Carrazza117 sustenta a tese de que certos impostos, por sua natureza, não permitem que se atenda à capacidade contributiva, pois a carga destes são repassadas para o preço da mercadoria. Corroborando este posicionamento, Alcides Jorge Costa 118 coloca como incompatível a aplicação deste princípios aos impostos indiretos, uma vez que o IPI e o ICMS são informados pela seletividade. No mesmo sentido, o jurista alemão Kirchhoff119 defende que uma vez que o princípio da capacidade contributiva se refere à carga individual, não é possível ajustar os impostos indiretos à capacidade contributiva daqueles que suportam o ônus tributário, pois estes se mantém no anonimato do mercado. Porém, na doutrina estrangeira prevalece a tese da aplicação do princípio da capacidade contributiva a todos os impostos, inclusive os impostos indiretos, onde há transferência do ônus tributário para terceiros. Segundo Tipke, o princípio da capacidade contributiva vale para todos os impostos, sendo eles diretos ou indiretos, que precipuamente servem à finalidade fiscal, e conclui que “o princípio da capacidade contributiva cuida da unidade do ordenamento jurídico tributário”120. Aqueles que defendem a aplicação deste princípio a estes impostos afirmam que este se entrelaça no debate sobre o consumo como critério de mensuração da capacidade contributiva; segundo Conti121 é possível vislumbrar a capacidade contributiva nas relações de consumo. E, para este autor é possível a 116 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit, 2004, p. 375. CARRAZZA, Roque Antônio. Op. cit, p. 65. 118 COSTA. Alcides Jorge. Op. cit., p. 301. 119 KIRCHHOFF, Paul. Apud ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 276. 120 TIPKE, Klaus. Op. cit, 2002, p. 32 121 CONTI, José Maurício. Op. cit.,p. 42. 117 77 aplicação deste princípio aos impostos indiretos, mas de maneira restrita, obrigando a não tributação do mínimo vital e a não-utilização do tributo com efeito de confisco. Zilveti122 também aceita a possibilidade da aplicação do princípio da capacidade contributiva aos impostos indiretos, mas faz uma ressalva quando ocorrer o fenômeno da substituição tributária. Assim, estes impostos por não permitirem de forma clara a individualização da renda do contribuinte, de forma a mensurar a capacidade econômica, trazem a problemática de estarem ou não sujeitos ao princípio da capacidade contributiva, mas esta dificuldade não exclui a aplicação do referido princípio a estes impostos. III.2- Os Tributos vinculados e a Capacidade Contributiva Embora expressa na Constituição Federal vigente a aplicabilidade apenas aos impostos e não ao gênero tributos, há, na doutrina, quem defenda uma abrangência mais ampla deste princípio, advogando que ele se aplica às demais espécies tributárias. Na defesa de que o princípio da capacidade contributiva não se aplica aos tributos vinculados123 temos, dentre outros, Américo Lacombe124 que afirma que “as taxas não podem ser graduadas segundo a capacidade econômica dos contribuintes, uma vez que a base de cálculo a elas inerente não mensura um atributo ou algo próprio do sujeito passivo, mas uma atividade do sujeito ativo”. 122 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 278. Geraldo Ataliba classificou os tributos em duas grandes espécies, distinguindo-as pela diversidade dos regimes jurídicos a que se submetem e, para tal classificação utilizou como fundamento a previsão ou não, na hipótese de incidência da norma tributária, de uma atuação estatal em relação ao contribuinte. Segundo tal critério, aquele mestre classificou os tributos em vinculados e não vinculados. Sendo que os primeiros seriam aqueles em que o legislador vinculou o nascimento da obrigação tributária a uma atuação estatal, e os segundos, aquele em que não houver tal vinculação. (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Revista dos tribunais, 1991, p.121). 124 LACOMBE, Américo Lourenço Masset. Princípios constitucionais tributários. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 158. 123 78 No mesmo sentido, Elizabeth Nazar Carrazza125 aponta que a capacidade contributiva aplica-se somente aos impostos, já que somente esses incidem sobre fatos do mundo econômico independentes de qualquer atuação estatal. Misabel Abreu Machado Derzi126 afirma que enquanto a base de cálculo dos impostos deve mensurar um fato que indique capacidade econômica do próprio contribuinte, nos chamados tributos vinculados, principalmente as taxas e contribuições, ela dimensiona o custo da atuação estatal ou a vantagem imobiliária auferida pelo contribuinte, advinda da obra pública. Ricardo Lobo Torres salienta que apesar do princípio da capacidade contributiva não informar diretamente os tributos vinculados, pois estes são regidos pelo princípio do custo/benefício127, admite-se que esses tributos possam ser influenciados pelo princípio da justiça fiscal no que concerne à isenção de certas taxas e de contribuições de melhoria à população de baixa renda e aos carentes. Esta tese sofre opiniões divergentes da doutrina que não comunga da aplicação desse princípio aos tributos vinculados, pois para estes, na concessão dessas isenções não quer dizer que se esteja aplicando este princípio, pois isto somente ocorreria se o Estado pudesse cobrar, pelo mesmo serviço prestado ou obra pública executada que acarretasse valorização imobiliária, valores diferentes, de acordo com a riqueza individual de cada contribuinte. Mas há aqueles que defendem que o princípio da capacidade contributiva se estende às demais figuras tributárias, dentre eles, citamos Fernando Aurélio 125 CARRAZZA, Elizabeth Nazar. Op. cit., p. 54. DERZI, Misabel Abreu Machado. Comentários na atualização da obra de BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2005, p. 201. 127 O princípio do custo/benefício expressa a adequação entre o custo do bem ou serviço público e o benefício auferido pelo cidadão. (TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 2004, p. 95-96) 126 79 Zilveti128 que em sua obra sobre o referido princípio, sustenta que as taxas e contribuições de melhoria podem encontrar justificativa neste princípio. Hugo de Brito Machado129 ao discorrer sobre o assunto, afirma que no que se refere à contribuição de melhoria este tem aplicação pela própria natureza desse tributo, mas em relação às taxas, o princípio da capacidade contributiva há de ter um tratamento específico, distinto do tratamento aos impostos. José Maurício Conti também defende a corrente que este princípio deve ser aplicado às demais espécies tributárias, afirmando que: ... o princípio da capacidade contributiva é aplicável a todas as espécies tributárias. No tocante aos impostos, o princípio é aplicável em toda a sua extensão e efetividade. Já no caso dos tributos vinculados, é aplicável restritivamente, devendo ser respeitados apenas os limites que lhe dão contornos inferior e superior, vedando a tributação do mínimo vital e a imposição tributária que tenha efeitos confiscatórios.130 ( os grifos não são do original) Adota-se a posição de que independentemente de previsão constitucional explícita, o princípio da capacidade contributiva pode ser admitido em relação aos tributos vinculados, embora não seja uma obrigatoriedade, o mesmo pode ser aplicado como uma orientação, funcionando em seu aspecto negativo. III.2.1- CONTRIBUIÇÕES E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA As contribuições, ou contribuições especiais, como são chamadas por alguns doutrinadores, estão previstas no artigo 149 da Constituição vigente, e possuem como característica a validação constitucional finalística da exigência, são vinculadas ao motivo de sua criação. 128 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 284. MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit. p. 70. 130 CONTI, José Maurício. Op.cit. p. 65. 129 80 Assim, as contribuições têm como fundamento para sua exigência a solidariedade que emana da participação de um determinado grupo a que está relacionada a finalidade constitucionalmente qualificada. Nesta espécie tributária, também podemos apontar controvérsias quanto a aplicação da capacidade contributiva, embora este princípio não seja o fundamento para a exigência das contribuições, pois capacidade contributiva não é finalidade, que é o elemento de validação constitucional das mesmas. Assim, temos autores que defendem a sua aplicação a esta espécie tributária, se não pelo motivo que inspira a sua instituição, mas pelo fato gerador da contribuição, onde pode ser identificada a capacidade contributiva do sujeito passivo que suportará o ônus tributário. Como no Brasil temos contribuições sociais com base de cálculo onde é possível a individualização do objeto a ser tributado; deste modo, é possível aferir a capacidade contributiva, pois em alguns casos, a base de cálculo destas se equivale à dos impostos131. Neste caso nos leva à polêmica da aplicação do princípio a este tipo de exação, embora outros tipos de contribuições, não comportem tal análise, pois incidem sobre qualquer manifestação de riqueza, não sendo o fato gerador identificável à capacidade contributiva. Neste sentido, Leandro Paulsen132 afirma que não há incompatibilidade entre a aplicação do princípio da capacidade contributiva a esta espécie tributária, pois estas podem ser constituídas com um fato gerador não-vinculado. 131 A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL tem como fato gerador a renda líquida do contribuinte, meio de onde se conhece a verdadeira capacidade contributiva. Também, a contribuição do programa de integração social - PIS e a contribuição para o financiamento da seguridade social – COFINS, por terem o fato gerador semelhante ao do imposto de renda encontram identificação com o princípio da capacidade contributiva ( ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 281) 132 PAULSEN, Leandro. Op. cit. p. 81 81 Regina Helena Costa133 aduz que o princípio da capacidade contributiva tem aplicação no âmbito da contribuição social, na medida em que o texto constitucional em seu artigo 195, § 9º, impõe tratamento diferenciado consoante aspectos distintivos dos contribuintes. Douglas Yasmashita134 defende a corrente de ser possível a aplicação deste princípio às contribuições, embora entenda ser somente aplicável àquelas que possuem finalidade arrecadatória, e diferentemente de Regina Helena Costa, quando observado o § 9° do artigo 195 da Constituição Federal de 1988 estas deixam de observar o referido princípio, pois assumem caráter extrafiscal. Marco Aurélio Greco expõe que a capacidade contributiva não se aplica sempre às contribuições, nem se aplica obrigatoriamente a todas as contribuições; o fato de não se aplicar sempre e nem obrigatoriamente, não significa que nunca possa vir a ser aplicada. Neste sentido, conclui que embora não sendo obrigatória a aplicação do princípio da capacidade contributiva em todas as espécies de contribuição, esta deverá ser observada quando a lei instituidora da referida espécie adotar um fato gerador que seja índice de capacidade econômica135. Fernando Aurélio Zilveti136 também entende ser possível a aplicação desse princípio a algumas contribuições previstas em nosso ordenamento jurídico, quando o fato gerador escolhido for a renda do contribuinte. 133 COSTA , Regina Helena . Op.cit.,p. 60. TIPKE, Klaus. YASMASHITA, Douglas. Op. cit. p. 66. 135 De fato, quando a lei indicar um fato gerador que denote manifestação de capacidade contributiva, esta deverá ser atendida, pois embora situado num segundo momento da formulação da exigência, seu regime deverá atender aos parâmetros de proporcionalidade e racionalidade, em função do próprio critério assumido pelo legislador para fins de tributação. Se o legislador escolheu determinado fato, não o fez aleatoriamente. E se este fato denota capacidade contributiva é porque esta foi reputada relevante e, portanto, deve ser levada em consideração. (GRECO, Marco Aurélio. Op. cit. p. 195- 197). 136 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 283. 134 82 III.2.2- CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA E A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA No que seja pertinente às contribuições de melhoria, a norma constitucional, que trata da instituição de tal tributo, afirma que a sua cobrança se dará em decorrência de obras públicas que ocasionem valorização mobiliária. A legitimação para a cobrança desta espécie tributária está na absorção, pelo Estado, do plus acrescido ao valor do imóvel, provocado pela obra pública. Neste plus acrescido ao valor do imóvel é que se encontra a discordância entre os doutrinadores acerca da aplicabilidade do princípio da capacidade contributiva, pois para alguns esta valorização não corresponde a índice de capacidade contributiva, uma vez que o fato da obra pública valorizar o imóvel das pessoas por ela beneficiadas, não significa aumento de riqueza. Rubens Gomes de Sousa137 se manifesta que como estas contribuições incidem sobre a valorização mobiliária estão sujeitas ao princípio em estudo, pois esta valorização é um índice de capacidade contributiva. Comungando da mesma opinião, Hugo de Brito Machado138 afirma residir a aplicabilidade de tal princípio às contribuições de melhoria, embasando sua idéia na afirmativa de que, na referida espécie tributária, a base imponível não está em nenhuma dimensão da atuação do Estado, mas sim na medida de sua conseqüência, que é a valorização imobiliária. Rebatendo esta posição Regina Helena Costa ressalta que: Tentam, alguns, ver nessa mais-valia imobiliária causada pelo Estado um índice de capacidade contributiva. Aparentemente a assertiva é sedutora: a valorização do imóvel representa riqueza, à qual se associa, necessariamente, a idéia de capacidade contributiva. Ocorre, porém, que a aludida riqueza foi proporcionada pelo Poder Público, sendo alheia à capacidade contributiva do sujeito, do mesmo modo como se verifica nas taxas.139 137 SOUSA, Rubens Gomes de. Op. cit., p. 438. MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit, 2001, p. 71. 139 COSTA, Regina Helena, Op.cit. p. 59. 138 83 Na concepção dessa autora, não significa aumento de riqueza o fato da obra pública valorizar o imóvel das pessoas por ela beneficiada, principalmente quando exigido o pagamento do referido tributo que corresponde ao plus acrescido. Ricardo Lobo Torres140 salienta que mesmo não aplicando este princípio às contribuições de melhoria, esta espécie tributária deve também sofrer influência desse princípio de justiça fiscal, não em relação à discussão rebatida acima, mas em relação à observação de que as comunidades carentes devem estar isentas a este tipo de tributo, pela incapacidade do cidadão de arcar com tal tributo. III.2.3- TAXAS E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Na doutrina nacional a aplicabilidade do princípio da capacidade contributiva às taxas é controvertida. Grande parte da doutrina pátria tem-se inclinado pela não aplicação do princípio da capacidade contributiva a esta espécie tributária, principalmente por ser esta um tributo vinculado cuja hipótese de incidência consiste numa atuação estatal diretamente referida ao obrigado, configurando o seu caráter remuneratório em relação a tal atuação do Estado, que se traduz no exercício do poder de polícia ou na prestação de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou colocado à sua disposição. Justamente devido a seu caráter remuneratório é que alguns doutrinadores141 justificam a não aplicação do princípio da capacidade contributiva às taxas. Argumentam que o referido princípio é incompatível com a natureza dessa 140 TORRES, Ricardo Lobo. Op cit, 2004, p. 95. Paulsen ao tratar do assunto afirma que: “O princípio da capacidade contributiva baseia-se num ideal de justiça fiscal. Relativamente às taxas, porém, a justiça fiscal reside na sua simples cobrança, na medida em que, além do pagamento dos tributos em geral, as pessoas que individualmente se beneficiem de serviço público específico e divisível ou que exerçam atividade que exija fiscalização por parte do Poder Público, suportarão os respectivos ônus. A própria cobrança da taxa, com vista ao ressarcimento do custo da atividade estatal, pois, já realiza o ideal de justiça fiscal. Não é adequado, por ofensivo à própria natureza da taxa, pretender fazê-la variar conforme a capacidade contributiva do contribuinte, eis que esta não entra em questão nas taxas, cujo fato gerador é a atividade estatal e não fatos reveladores da riqueza do contribuinte”. (PAULSEN, Leandro. Op. cit. p. 75). 141 84 exação, que é informada pelo princípio da retributividade. Portanto, deve manter equivalência com a despesa efetuada pelo Estado, sem se verificar a capacidade contributiva daquele que sofrerá a imposição tributária, pois esta é irrelevante para a hipótese de incidência ou para a graduação da taxa, uma vez que o que se pretende com a taxa é a remuneração da atuação estatal, sendo que essa remuneração deve reportar-se ao custo da mesma, e não à capacidade contributiva do sujeito passivo. Roque Antônio Carrazza142 se filia a doutrina de que a cobrança de taxas não tem relação com o princípio da capacidade contributiva, sendo este princípio aplicável apenas aos impostos, sendo as taxas informadas pelo princípio de retribuição. Com efeito, não discordamos de que o princípio da retributividade informa às taxas, notadamente em virtude da natureza vinculada dessa exação, pois o que se pretende é a remuneração do Estado, mas não vislumbramos uma absoluta incompatibilidade delas com o princípio da capacidade contributiva. Ao revés, somos partidários de que os dois princípios não se excluem mutuamente, mas conjugam-se na determinação da taxa, embora a aplicação do princípio da capacidade contributiva se dê apenas no aspecto negativo. Ou seja, a aplicação do princípio da retributividade se dá na determinação do montante máximo a ser cobrado pelo Fisco a título de remuneração pela atuação estatal, mas nada impede que a cobrança seja graduada de acordo com a capacidade contributiva negativa dos contribuintes. Entendemos que, em virtude dos princípios plasmados na Constituição Federal, as taxas não possuem sentido apenas de remunerar a atividade estatal, se prestam também como instrumento de 142 O valor da taxa, seja de serviço, seja de polícia, deve corresponder ao custo, ainda que seja aproximado, da atuação estatal específica. É claro que, neste campos, não precisa haver uma precisão matemática; devendo no entanto existir uma razoabilidade entre a quantia cobrada e o gasto que o Poder Público teve para prestar aquele serviço público ou praticar aquele ato de polícia.. Esta razoabilidade é aferível, em última análise, pelo Poder Judiciário, mediante provocação do contribuinte interessado. (CARRAZZA, Roque Antônio. Op. Cit. p. 281). 85 políticas públicas de erradicação da pobreza e de distribuição de justiça fiscal. Assim, a capacidade contributiva seria aplicada apenas em seu aspecto negativo, como princípio da (in)capacidade contributiva. Sacha Calmon Navarro Coêlho143 faz interessante abordagem sobre o assunto, apresentando sugestiva resposta sobre a extensão do princípio da capacidade contributiva aos tributos vinculados, onde a capacidade contributiva é medida de forma negativa nestas espécies tributárias, ou seja, é a incapacidade contributiva que irá desonerar o contribuinte. Ou melhor, não se perquire se o contribuinte tem capacidade contributiva, mas se não tem. E é esta incapacidade é que é o fundamento para concessão de isenção subjetiva de taxas. Assim, podemos afirmar que as taxas não podem ter valor superior ao custo da atividade econômica em função do princípio da retributividade, mas poderão ter valor inferior, em virtude da incapacidade econômica dos destinatários da atuação estatal, de maneira a respeitar a proteção ao mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana. Pelos valores sociais talhados no texto constitucional, deve-se dar um tratamento diferenciado aos cidadãos desprovidos de capacidade contributiva, principalmente por ser estes os que mais necessitam de oferta de serviços públicos. Essa situação já vem sendo observada por alguns Municípios e Estados que isentam do pagamento de taxas as pessoas que não podem pagar. Dentre as opiniões doutrinárias a favor da aplicabilidade do princípio em estudo às taxas, embora em seu aspecto negativo, podemos citar dentre outros, Ricardo Lobo Torres144, Fernando Aurélio Zilveti145 e Aurélio Pitanga Seixas Filho146. 143 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 148/149. 144 O princípio da capacidade contributiva também se aplica às taxas, embora não o explicite a CF (...) Ao fixar o valor das taxas o Estado não se limita a repartir os custos, senão que deve distribuir equitativamente a 86 III.3- Tributos Extrafiscais O motivo primeiro e maior para a cobrança de tributos é a arrecadação para os Estados, de modo a custear suas necessidades. Ocorre que nem sempre o Estado tributa visando exclusivamente objetivos arrecadatórios, mas também para incentivar , desestimular, induzir ou coibir comportamentos, tendo em vista outros fins e a realização de outros valores. Ou seja, o Estado usa da atividade tributária para poder executar suas políticas, sob o ponto de vista econômico ou social, uma vez que o peso dos tributos é tão forte que faz com que isso seja possível. Quando a atividade tributária é exercida com a finalidade extrafiscal, o Estado está apenas fazendo uso de um instrumento de que dispõe para intervir na economia e, com isto, realizar uma finalidade determinada pelo interesse público. Assim, a extrafiscalidade consiste no uso dos instrumentos tributários visando alcançar outros objetivos, que não apenas a captação de recursos para o Estado, e sim o desenvolvimento de determinada política, tendo uma finalidade regulatória, e sendo também uma forma do Estado praticar justiça social. Um bom exemplo em nosso país é o IPTU progressivo previsto no artigo 182, § 4°, inciso II da CF/88, pois o imposto assume caráter de sanção com a finalidade de reprimir a má utilização do solo urbano, de modo que o proprietário atenda a função social estabelecida na lei. No direito comparado também existem exemplos de tributação extrafiscal, uma vez que se busca através da tributação outros objetivos almejados pelo Estado responsabilidade fiscal, de modo a não onerar exageradamente aqueles que possuem renda menor. (TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit, 2004, p. 402). 145 A capacidade contributiva do cidadão deve ser respeitada pelo legislador, quando ele for fixar o valor das taxas, de modo que não onere excessivamente aqueles que não tenham condições de suportar a carga, porém precisam fazer uso dos serviços públicos. ( ZILVETI, Fernando Aurélio. Op cit, p. 285) 146 A carência de capacidade contributiva para pagar a taxa, se for total poderá levar o legislador a conceder isenção integral do seu pagamento, como tem reconhecido a doutrina. (SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Taxa: doutrina, prática e jurisprudência. Rio de Janeiro: Editora forense, 1990, p. 58) 87 que não simplesmente a arrecadação, como por exemplo, o imposto sobre cães cobrado na Alemanha com a finalidade de desestimular a superpopulação canina147. Segundo Luís Eduardo Schoueri148 esses tributos são chamados de “tributos indutores”, uma vez que induz o contribuinte por meio de incentivos ou desincentivos a determinadas condutas ou abstenções. Através de incentivos fiscais, o poder público, reduzindo ou eliminando determinado tributo, objetiva estimular os contribuintes a desempenharem certas atividades. Ao agravar alíquotas, desestimula condutas consideradas lícitas, mas não convenientes, sob o aspecto econômico, político ou social. Outro exemplo de extrafiscalidade em nosso país foi a taxa de controle e fiscalização ambiental –TCFA criada pela lei 10.165 de 27 de dezembro de 2000, onde foi estabelecido um valor progressivo variando de acordo com o tamanho da empresa e de seu potencial poluidor. Mas nem sempre a extrafiscalidade tem relação com a capacidade contributiva, principalmente quando usada como mecanismo inibitório. E esta relação da extrafiscalidade com a capacidade contributiva é outro tema que divide a doutrina, pois existem duas correntes de pensamento: a primeira, que assevera ser a extrafiscalidade uma exceção ao princípio da capacidade contributiva, e os que proclamam a observância do referido princípio na tributação extrafiscal. A corrente doutrinária que entende ser possível a harmonização entre a observância da capacidade contributiva e atuação extrafiscal defende ser possível a aplicação pelo menos quanto ao atendimento dos limites que o mesmo impõe, como por exemplo, a observância do mínimo necessário e a não ocorrência de confisco. 147 148 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 195. SCHOUERI, Luís Eduardo. Apud ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 190. 88 Para os que defendem a não aplicação do postulado da capacidade contributiva quando se adota uma tributação extrafiscal, asseveram que se deixa de fazer essa aplicação justamente para que sejam atingidas outras finalidades constitucionalmente protegidas que não a mera captação de dinheiro para o Erário. Elizabeth Nazar Carrazza149 entende não existir óbices constitucionais à utilização das isenções com finalidades extrafiscais, uma vez que quando estas forem exercitadas devem ser respeitados os parâmetros de razoabilidade, bem como os princípios constitucionais que regem a atividade tributária do Estado.Para esta autora, a tributação extrafiscal não pode se valer de suas características para ferir o sentimento de justiça prevalecente no seio da sociedade a que se destina. Sacha Calmon150 entende de forma diferente e defende que o princípio é incompatível com a tributação extrafiscal, uma vez que esta funciona com o objetivo de se buscar efeitos inibitórios. Este autor analisa a extrafiscalidade através de isenções e outras técnicas exonerativas que funcionam como incrementos do desenvolvimento econômico. Zilveti151, assim como Tipke, adotam o sentido de que a extrafiscalidade não guarda relação com o princípio da capacidade contributiva, pois a extrafiscalidade têm condão de servir de política intervencionista no domínio privado e neste sentido não é possível justificar a extrafiscalidade pela capacidade do cidadão de arcar com o ônus tributário. Concordamos com os autores que informam existirem parâmetros para o exercício da extrafiscalidade, mas cremos que nesta prática é afastado o princípio da capacidade contributiva. 149 CARRAZZA, Elizabeth Nazar. Op. cit. p. 82 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit, 2002, p. 83. 151 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 199. 150 89 Seção IV- OS SUBPRINCÍPIOS: PROGRESSIVIDADE, SELETIVIDADE E PROPORCIONALIDADE Como todos os demais ramos da ciência jurídica, o Direito Tributário está subordinado a princípios e limitações na elaboração, interpretação e aplicação de suas normas. E, estas diretrizes são fixadas pela Constituição Federal sob a forma de princípios e limitações ao poder de tributar, tutelando, assim, a atividade tributária e, constituindo um instrumento de garantia dos direitos fundamentais do ser humano e da sociedade. Sendo a capacidade contributiva um princípio aberto e indeterminado, temos que este pode se concretizar através de seus subprincípios na busca por uma tributação justa. Assim, nesta parte do trabalho iremos tratar da relação dos subprincípios da progressividade, da seletividade e da proporcionalidade, pois o estudo do princípio da capacidade contributiva envolve necessariamente a análise desses outros, uma vez que estes estão voltados para dar maior justeza na distribuição da carga tributária entre os contribuintes. IV. 1 - Progressividade O princípio da progressividade é também um dos caminhos para se atingir a justiça tributária. O estudo da capacidade contributiva se coaduna com a análise da questão da progressividade. Para a verificação da progressividade temos que distinguir progressividade fiscal da progressividade extrafiscal; sendo esta última, a progressão de alíquotas independente da variação da expressão econômica da matéria tributável, visando certas atitudes ou omissões para se alcançar uma 90 determinada finalidade. Para a análise do princípio da capacidade contributiva apenas nos interessa a progressividade fiscal, ligada ao objetivo de repartição equânime do ônus tributário. Aires F. Barreto152 assevera que a progressividade opera-se pelo estabelecimento de alíquotas tanto maiores quanto o forem os níveis de intensidade ou de grandeza de um específico fator ou aspecto do fato tributário. No mesmo sentido, Aliomar Baleeiro153 conceitua os tributos progressivos como aqueles cuja alíquota cresce à medida que se eleva a riqueza ou seu volume, destoando dos tributos apenas proporcionais. Rubens Gomes de Sousa154 define o imposto progressivo como um imposto proporcional, onde esta proporcionalidade aumenta à medida que aumenta o valor da matéria tributada. Fernando Perez Royo155 considera progressividade como sendo uma forma de tributação cujas pessoas que possuem maior riqueza pagam proporcionalmente mais do que aquelas que possuem menos. Para Hugo de Brito Machado 156 a principal função da progressividade é a redistribuição da riqueza, onde quem tem mais paga não apenas proporcionalmente mais, mas paga progressivamente mais. 152 BARRETO, Aires F. Capacidade contributiva, igualdade e progressividade na Constituição de 1988. In V Congresso brasileiro de direito tributário- Princípios constitucionais tributários. São Paulo: IDEPE/RT, 1991, p.78. 153 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 275. 154 SOUSA, Rubens Gomes. Op. cit. p. 171. 155 Se entiende por progresividad aquella caracterísitica de um sistema tributário según la qual a medida que aumenta la riqueza de cada sujeto, aumenta la contribución em proporción superior al incremento de riqueza. Los que tienen más contribuyen em proporción superior a los que tienen menos. (ROYO, Fernando Perez. Derecho financiero y tributário- parte general. Madrid: Civitas, 1997, p. 39). 156 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit, 2001, p.123. 91 Segundo Misabel Derzi157 progressividade é a graduação dos impostos, de tal forma que, os economicamente mais fortes paguem progressivamente mais por esses gastos do que os mais fracos, levando a uma maior justiça social. Como o princípio da capacidade contributiva determina a variação da cobrança dos tributos de acordo com a possibilidade do contribuinte suportar seu peso econômico, o princípio da progressividade é um instrumento para se aferir a justiça fiscal. Por meio da progressividade, as alíquotas se ascendem na proporção em que a base de cálculo cresce, e neste sentido temos que o percentual a ser pago do tributo cresce à medida que aumenta a capacidade econômica do contribuinte. Assim, a progressividade faz com que as alíquotas dos impostos variem de acordo com a capacidade contributiva. E neste sentido, para os adeptos do vinculo entre os dois princípios, a progressividade é um instrumento para alcançar equidade na tributação, objetivo primordial do princípio da capacidade contributiva. A progressividade, historicamente, sofreu sérios questionamentos a respeito de sua legitimidade e sobre o caráter de justiça fiscal em uma tributação progressiva. Neste sentido, colecionou críticos e defensores sobre o vínculo entre a capacidade contributiva e a progressividade, no sentido de ser tal instrumento realizador ou não do princípio da capacidade contributiva. Na defesa desse princípio, Conti158 conclui seu estudo sobre a progressividade afirmando que este instrumentaliza a realização da capacidade contributiva e por conseqüência o da igualdade, pois é o instrumento fundamental de um ordenamento jurídico baseado na igualdade, bem como leva a uma tributação justa e eqüitativa. 157 158 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Op. cit., p. 178. CONTI, José Maurício. Op. cit. p. 80. 92 Geraldo Ataliba159 ao tratar sobre progressividade e a sua relação com a capacidade contributiva se coloca a favor da progressividade, afirmando que esta é uma excelente maneira de se fazer realizar o princípio da capacidade contributiva informador dos impostos e que como todos os impostos estão sujeitos à capacidade contributiva, assim também estão sujeitos à progressividade. Com o mesmo entendimento, Américo Lacombe160 sustenta que não há como respeitar a capacidade contributiva sem a progressividade, uma vez que este é uma decorrência lógica daquela, e, por conseguinte, todo imposto para atender ao princípio deve ser progressivo. Argumentando de forma contrária, Zilveti coloca que a progressividade é pouco eficaz como instrumento de política fiscal distributiva da carga tributária, diante da dificuldade de se medir a capacidade contributiva a partir da progressividade, o que leva a afastar um princípio do outro. Para este autor: Mesmo que procurássemos na progressividade a justificação da igualdade na tributação, concluiríamos, forçosamente, que os sistemas de tributação progressiva não medem capacidade econômica, são meros instrumentos políticos de distribuição de riqueza. Equivoca-se, portanto, quem afirma que a igualdade de sacrifícios no suporte do custeio do Estado não se atinja pela proporcionalidade e sim pela progressividade161. Comungando do mesmo raciocínio, Leandro Paulsen162 entende que a progressividade é incompatível com o princípio da capacidade contributiva, uma vez que afasta o ideal de igualdade na tributação. Aires F. Barreto163 também coloca que o fundamento da progressão na Constituição de 1988 não é o princípio da capacidade contributiva, e que a relação 159 ATALIBA, Geraldo. Progressividade e capacidade contributiva. In V congresso brasileiro de direito tributário- Princípios constitucionais tributários. São Paulo: IDEPE/RT, 1991, p. 49. 160 LACOMBE, Américo Lourenço Masset. Op. cit., p. 32. 161 ZILVETTI, Fernando Aurélio. Progressividade, justiça social e capacidade contributiva. In Revista dialética de direito tributário. São Paulo: Dialética, n° 76 Janeiro / 2002, p. 29-31. 162 PAULSEN, Lenadro. Op. cit. p. 74. 163 BARRETO, Aires F. Op. cit., 1991, p.78- 79. 93 entre este princípio e a progressão de alíquotas não autoriza a progressividade ao impor a graduação dos impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte. Sobre este ponto, o STF já firmou entendimento de que a progressividade tributária somente é aceita nas hipóteses taxativamente indicadas no texto da Constituição Federal. A jurisprudência firmada pelo STF quando da análise da inconstitucionalidade da lei 9.783/99164 é de que somente podem-se instituir alíquotas progressivas quando houver previsão constitucional para tal, pois trata-se de matéria sujeita a estrita previsão constitucional, inexistindo em relação à progressividade tributária espaço de liberdade decisória para o legislador comum. Em um outro julgado o STF também se posicionou de que o princípio da capacidade contributiva não é o fundamento do princípio da progressividade165. Para Tipke166, a alíquota progressiva é compatível com o princípio da capacidade contributiva, embora este não exija necessariamente alíquotas progressivas. Para este autor, a aplicação do princípio da capacidade contributiva não é guiada pelo princípio da progressividade, mas pelo princípio da proporcionalidade. No Direito Comparado, temos que algumas Constituições previram expressamente a progressividade como princípio geral, é o caso da Constituição Espanhola167, que em seu artigo 31 prevê a progressividade ao lado da igualdade em seu sistema tributário como forma de orientar uma tributação justa. A 164 ADIn 2010/ DF – Relator Min. Celso de Mello, publicado no DJ de 12/04/02, p. 51. Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 08.05.2005. 165 BRASIL. Supremo tribunal Federal . RE 227.033/SP, publicado no DJ de 17/09/99, p. 59. Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 08.05.2005. 166 TIPKE, Klaus. Op. cit, 2002, p. 35. 167 Todos contribuirán al sostenimiento de los gastos públicos deacuerdo com su capacidad econômica mediante um sistema tributário justo inspirado em los princípios de igualdad y progressividad, que, em ningún caso, tendrá alcance confiscatorio. ( disponível em www.georgetown.edu/pdba/constituons/ acessado em 04/04/2005) 94 Constituição Italiana e a Constituição Chilena168, de igual forma, também fazem previsão do princípio da progressividade. Em nosso Direito Constitucional Tributário, encontramos menção à progressividade em nossa Carta Magna nos artigos 153, § 2º, inciso I – para o imposto de renda e proventos de qualquer natureza; art. 153, § 4º - para o imposto sobre a propriedade territorial rural; art. 156, § 1º - para o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana; art. 182, § 4º, inciso II – para o IPTU progressivo no tempo, para assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana; art. 195, § 9º - para as contribuições sociais devidas pelo empregador. Em relação ao imposto de renda e proventos de qualquer natureza da pessoa física, temos um bom exemplo de imposto progressivo, onde o que se busca atingir através da progressividade é a capacidade contributiva, embora a progressividade esteja contida em estreitas faixas169. Pelo que foi exposto, temos a base de cálculo como fator da progressividade, portanto, sendo maior a base econômica tributável, maior deverá ser o ônus imposto a essa riqueza no suporte econômico dos gastos do Estado. Não se trata, evidentemente da aplicação proporcional, onde se aplica uma alíquota indiferente a qualquer variação da base de cálculo. Trata-se de verificar a dimensão de uma determinada riqueza e tributá-la com maior ou menor ônus de acordo com a sua intensidade, de maneira a fazer com que a riqueza seja tributada com a mesma 168 Art. 20- La igual repartición de los tributos em proporción a lãs rentas o em la progresión o forma que fije laley, y igual reparticion de lãs demás cargas públicas. ( Constitución Política de la República de Chile/ 1980) disponível em www.presidencia.cl , acessado em 04/04/2005). 169 Importante registrar que atualmente está previsto na legislação do imposto de renda da pessoa física apenas duas alíquotas . Embora não se possa , em rigor, afirmar que essas alíquotas não sejam progressivas, uma vez que a alíquota se eleva na medida em que cresce a base de cálculo, é evidente que, ainda assim, não se atende ao desiderato da progressividade prevista na Constituição Federal. O estabelecimento de mais faixas de alíquotas, como por exemplo ocorre na Suíça ( as alíquotas variam entre 5% e 55%) ou as que vigiam no Brasil até a Lei 7.713/88, inegavelmente atenderiam mais adequadamente os desígnios constitucionais. 95 pujança. Para isto estabelece alíquotas variáveis, de modo que incida uma alíquota maior para maior base de cálculo verificada. Em outras palavras: quem tem mais deve pagar mais. Apesar das críticas, a progressividade pode ser reconhecida como um eficiente instrumento para a realização da capacidade contributiva, de modo que se reveste em um subprincípio desta. IV.2- Seletividade Ser seletivo implica em ter alíquotas diferenciadas dependendo do tipo de produto/mercadoria/serviço, pois a razão dessa tributação diferenciada se dá em função da essencialidade dos bens, produtos ou serviços a serem consumidos. O critério para essa seletividade é dado pelo próprio constituinte ao estabelecer que essa variação se dará em função do grau de essencialidade do produto, uma vez que a graduação das alíquotas obedece a uma escala de utilidade, assim, não poderá estabelecer critérios desvinculados da essencialidade do consumo. A Emenda constitucional n° 29 de 13 de setembro de 2000 também estabeleceu alíquotas diferenciadas de acordo com a localização e o uso do imóvel, o que não deixa de ser uma forma de seletividade para o IPTU. Na seletividade o que importa é o objeto da tributação e não o sujeito passivo, por isso é que há doutrinadores que não consideram os impostos que devem observar este princípio como passível de atender à capacidade contributiva, o que foi abordado no capítulo III.1.2 deste trabalho. Para outros, entretanto, a seletividade em função da essencialidade é uma forma pela qual se aplica o princípio da capacidade contributiva, uma vez que a 96 seletividade é um subprincípio desta. Assim, o tributo incide progressivamente na razão inversa da essencialidade dos produtos, ou seja, recai sobre os bens na razão inversa de sua necessidade para o consumo popular e na razão direta de sua superfluidade170. No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado171 coloca que a seletividade visa estabelecer o ônus tributário diferenciado levando-se em conta a necessidade a ser atendida pelo produto tributado, de modo que os produtos mais necessários sejam onerados em menor proporção. A seletividade também é uma expressão do princípio da proteção do mínimo existencial, pois impõe que os bens mais necessários sejam menos gravados ou não sofram tributação em razão de sua utilidade para o cidadão na satisfação de suas necessidades mais elementares. Embora para a doutrina nacional o princípio da seletividade diga respeito apenas ao abrandamento da tributação sobre produtos voltados à necessidade dos mesmos, o desenvolvimento do estudo da proteção ao mínimo existencial impõe por exigência e coerência que se atenda a não tributação de produtos, mercadorias e serviços considerados essenciais à sobrevivência humana. Nota-se que enquanto a progressividade diz respeito a um fator subjetivo, levando em conta características do contribuinte, a essencialidade refere-se a um fator objetivo, ou seja o bem. É na natureza do bem que se procura identificar a existência ou não de capacidade contributiva do consumidor contribuinte. Assim, a essencialidade do produto constitui um critério para diferenciação de alíquotas que acaba implicando em homenagem ao princípio da 170 171 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit, 2005, p. 321 MACHADO, Hugo de Brito. Op. cit., 2001, p. 115 97 capacidade contributiva, uma vez que acaba gravando os produtos supérfluos mais que os produtos essenciais. IV.3- Proporcionalidade A proporcionalidade é um parâmetro valorativo das ações do poder público, e apesar de não estar previsto expressamente no texto constitucional, este princípio encontra-se como um princípio orientador de nosso sistema tributário, e pode ser usado pelo legislador infraconstitucional para todos os tributos não sujeitos à progressividade. A proporcionalidade é uma derivação do princípio da capacidade contributiva e contrasta-se com a progressividade, pois essa promove uma elevação de alíquotas à medida que aumenta a base de cálculo, e aquela mantém a mesma alíquota percentual; em outras palavras, o tributo é considerado proporcional quando a sua alíquota não se eleva em função do aumento da base de cálculo. Assim, observe-se que, embora a alíquota expresse uma proporção, ela permanece inalterada, indiferente à grandeza da riqueza tributável, embora o valor do tributo cresça de acordo com a valor da matéria tributável, mas a proporção permanece constante. O princípio da proporcionalidade também denominado de princípio da proibição do excesso, foi desenvolvido de forma promissora pelo Tribunal Constitucional Alemão a partir da recepção das teorias francesas sobre o desvio, excesso e abuso de poder. Passou a ter status de princípio constitucional, transmigrando do Direito Administrativo para o campo Constitucional na limitação do poder estatal frente aos direitos fundamentais do cidadão após a II Guerra Mundial, 98 tendo em vista que após a existência dos regimes totalitários, muitos juristas denotaram a existência de leis injustas. O mesmo caminho foi percorrido pelo direito Suíço e pelo Austríaco. Na Itália também, por influência Alemã, a doutrina e a jurisprudência abrigaram o princípio da proporcionalidade, embora de forma implícita172. Em nosso direito pátrio, este princípio não se encontra de forma expressa em nossa Constituição, mas a norma constitucional acolheu tal princípio de forma implícita, bem como, apesar de ainda tímida, a nossa Corte Suprema vem utilizando dos preceitos da razoabilidade ou proporcionalidade, acolhendo, assim, este princípio em nosso direito pátrio. O STF consignou a aplicação do princípio da proporcionalidade a vários julgados, em diversas áreas do direito. No campo do Direito Tributário, citamos como exemplo, dentre outros julgados173, o voto do Min. Orozimbo Nonato no RE n° 18.331174, onde manifestou que a poder de tributar deve ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, comércio e da indústria e com o direito de propriedade; a Representação n° 1077 julgado em 1984 referente a Taxa Judiciária, onde foi relator o Ministro Moreira Alves, que considerou inconstitucional a taxa judiciária fluminense por falta de equivalência razoável entre o custo do serviço e a prestação imposta, onde a equivalência razoável equivale ao custo real dos serviços e o montante a que pode ser compelido o contribuinte a pagar 175. 172 CRETTON, Ricardo Aziz. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade- a sua aplicação no direito ttributário. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2001, p. 58-67. 173 Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 10.05.2005: ADin 948/GO- Min. Francisco Rezek, publicado no DJ de 17/03/2000, p.2; ADin 1651/PB- Min. Sydney Sanches, publicado no DJ de 11/09/98; ADin 1926/ PE, Min. Sepúlveda Pertence, publicado no DJ de 10/09/99. 174 CRETTON, Ricardo Aziz. Op. cit., p. 70 175 Representação 1077/RJ. Relator Min. Moreira Alves, publicado no DJ de 28/09/1984, p. 15.965. Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html. Acesso em 10.05.2005: 99 Para Zilveti176, o campo de atuação da proporcionalidade é amplo, uma vez que deve ser verificada não apenas em confronto com a lei, mas também na aferição da ação do aplicador e do intérprete na norma restritiva de liberdade, coibindo o excesso de rigor que lese o direito fundamental do cidadão. Assim, a proporcionalidade tem sua aplicação limitada à garantia dos direitos individuais, sendo uma proteção da liberdade individual do cidadão. Por conseguinte, como a capacidade contributiva garante simetria da tributação e protege ao mesmo tempo o cidadão contra uma tributação abusiva e desproporcional, temos que a proporcionalidade serve à capacidade contributiva como um instrumento para a justiça fiscal, pois para o estabelecimento desta não há como fugir de considerações de razoabilidade-porporcionalidade. Terminada a análise do princípio da capacidade contributiva, será analisado agora a sua limitação pelos direitos fundamentais. 176 ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit., p. 308. 100 CAPÍTULO III - A LIMITAÇÃO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O constitucionalismo contemporâneo trouxe a inserção de amplas declarações de direitos individuais e sociais nas Constituições atuais de vários países. Não foi diferente no Brasil, onde a Constituição Federal de 1988 esculpiu um capítulo inteiro sobre direitos e garantias fundamentais. Também a mensagem preambular de nossa Carta Magna representa uma expressão de valorização dos direitos fundamentais de cidadania; determina que a instituição de nosso Estado Democrático de Direito tem a finalidade de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. No artigo 1° são proclamados como fundamentos do Estado Democrático de Direito a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, bem como no artigo 3º estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, onde consta a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. E neste sentido, o poder de tributar tem que se coadunar com estes fundamentos e objetivos buscados por nosso Estado, de modo que possa trazer segurança nas relações entre o fisco e o contribuinte e estabelecer uma política tributária profícua para que esta possa cumprir o seu papel de realização de justiça fiscal. Mas os direitos e garantias fundamentais não são apenas aqueles expressos no artigo 5° de nossa Carta Magna, mas também todos aqueles 101 decorrentes do regime e dos princípios adotados por nossa Constituição, bem como aqueles decorrentes dos Tratados e Convenções Internacionais de que nosso país seja parte. Os princípios fundamentais constantes em nossa Carta Magna revelam o surgimento de uma ideologia constitucional em que os valores ligados à democracia social, tais como justiça, solidariedade, cidadania, dignidade da pessoa humana, trabalho, livre iniciativa são elevados à categoria de princípios informadores do ordenamento jurídico. Assim, a proteção dos direitos fundamentais177 é um fator essencial para a solidificação de um Estado Democrático de Direito, onde estes devem ser reconhecidos e respeitados, uma vez que se relacionam diretamente com a consagração da dignidade humana e, por conseguinte, na construção de uma sociedade mais justa. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet178 os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente como pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático, onde estes garantem o direito das minorias contra eventuais desvios de poder. É uma tendência da doutrina contemporânea a vinculação entre a atividade tributária e os direitos fundamentais179, uma vez que nesta visão contemporânea, temos que a tributação existe como forma de realização da justiça 177 Neste trabalho iremos utilizar a expressão “direitos fundamentais” ou “direitos humanos” indistintamente, embora para alguns autores possam ter sentidos distintos. Neste sentido vale o registro da obra de Alberto Nogueira, onde são apontadas diferenças entre os termos em precisa reflexão. (NOGUEIRA, Alberto. Reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 11-20). 178 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto alegre: Livraria do Advogado, 3ª ed., 2003, p. 66-67. 179 Os direitos fundamentais são tradicionalmente apresentados pela doutrina como um conjunto formado pelas categorias dos direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais, sendo este última categoria uma redução da locução direitos sociais, econômicos e culturais. (BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 112113). 102 social, com o propósito de se alcançar uma vida digna para todos, onde os direitos dos contribuintes são construídos a partir dos direitos fundamentais à liberdade e à propriedade. Como antes afirmado, a atividade tributária deve pautar-se por balizas jurídicas que se conformam com os princípios vetores do Estado Democrático de Direito consagrados na Constituição. Assim, os tributos devem ser exigidos de acordo com os princípios estruturais postos na Constituição Federal, não apenas os formadores do Sistema Tributário, mas todos os que regem nosso sistema jurídico, de modo a atuar como instrumento de desenvolvimento socioeconômico, conduzindo à valorização das estruturas da cidadania e fortalecendo a dignidade humana. O poder normativo tributário submete-se aos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, e ao instituir os tributos o Estado não pode embaraçar o exercício desses direitos, uma vez que a própria Carta Constitucional assegura o seu exercício, e , por conseguinte, não pode ao mesmo tempo compactuar com uma tributação que tenha como efeito o desaparecimento desses mesmos direitos. Desse modo, o exercício do poder de tributar está limitado pelos princípios constitucionais tributários e pelas imunidades, que são reconhecidos como direitos individuais da pessoa humana contra a atividade tributária arbitrária do poder público, uma vez que exortam dos direitos fundamentais do contribuinte. E, para que a atividade tributária atenda aos interesses da coletividade e respeite os direitos fundamentais aclamados em nossa Constituição deve se pautar dentro de certos parâmetros de razoabilidade, observando o limite mínimo e máximo dessa atividade. Dentro de tais limites temos a imunidade do mínimo existencial e o princípio do não-confisco tributário que são mandamentos limitadores do princípio da 103 capacidade contributiva e garantias constitucionais do contribuinte decorrente dos direitos fundamentais. Embora o princípio da capacidade contributiva seja de verificação bastante complexa e insuscetível de controle jurisdicional, este, enquanto princípio geral de direito tributário encontra-se limitado pelos direitos fundamentais. Ou seja, o Estado deve exigir que as pessoas contribuam para as despesas públicas na medida da sua capacidade para contribuir, respeitando os direitos fundamentais do contribuinte, assegurando a não tributação do mínimo existencial e protegendo o cidadão contra o excesso da exigência tributária. SegundoTorres180, o princípio da capacidade contributiva encontra-se limitado pelos direitos da liberdade, afirmando que as limitações constitucionais desse princípio podem ser analisadas sob o aspecto quantitativo e sobre o aspecto qualitativo. O quantitativo protege o cidadão, no plano vertical, contra o excesso de tributação ou o desrespeito ao mínimo necessário à sobrevivência digna. O aspecto qualitativo garante ao contribuinte, no plano horizontal, contra as discriminações arbitrárias e os privilégios odiosos concedidos a terceiros e também pelas imunidades subjetivas previstas no texto constitucional letras “a”, “b”e “c” do artigo 150, inciso VI. Neste trabalho, iremos analisar a limitação constitucional da capacidade contributiva apenas no aspecto quantitativo, envolvendo os princípios constitucionais da imunidade do mínimo existencial e da proibição de confisco, podemos dizer que a capacidade contributiva tem início após a dedução dos gastos necessários ao mínimo vital e como não é possível mensurar onde esta capacidade termina, temos que o seu limite superior é a vedação dos tributos com efeitos confiscatórios. 180 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit, 2003. p. 435. 104 Seção I- O MÍNIMO EXISTENCIAL O princípio de proteção ao mínimo existencial181 consiste na proibição constitucional de tributar aquela parcela patrimonial voltada exclusivamente à manutenção do cidadão ou à de sua família, de modo a preservar aqueles valores indispensáveis à sua sobrevivência e à de seu núcleo familiar de forma digna. Podemos dizer que a possibilidade constitucional de tributação não começa com a pura e simples existência de riqueza, é necessário que essa riqueza exceda ao mínimo necessário para a realização de direitos constitucionais básicos, sem os quais torna-se impossível viver com dignidade. Segundo Ricardo Lobo Torres182 o mínimo existencial não tem dicção própria e nem conteúdo específico, abrangendo qualquer direito considerado como essencial e inalienável a uma vida digna, ainda que originariamente não fundamental183, abrangendo, assim, todas as condições mínimas para uma existência com dignidade. Embora não previsto de forma literal em nossa Constituição, o direito de proteção ao mínimo existencial ou do mínimo vital necessário à manutenção do cidadão e de sua família deriva do desdobramento de outros princípios plasmados no texto constitucional, bem como se encontra implícito nas passagens pontuais da Carta Magna que consagra a proteção da dignidade da pessoa humana. 181 Mínimo vital, mínimo material, mínimo essencial ou mínimo indispensável - todas expressões sinônimas encontradas para a mesma realidade jurídica. 182 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. In Revista de direito da Procuradoria Geral. Rio de Janeiro: Publicação do Centro de Estudos Jurídicos n° 42, 1990, p. 69. 183 Embora não sejam originariamente fundamentais, o direito à alimentação, à saúde e à educação adquirem status de direitos fundamentais no que concerne à parcela mínima sem a qual o homem não sobrevive, uma vez que sem esses direitos a pessoa não tem a sua dignidade respeitada. ( BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit. p. 254-255) 105 Este princípio consiste no direito às condições mínimas de existência humana digna, sendo um direito público subjetivo do cidadão, que garante as condições iniciais para o exercício das liberdades. E a preocupação com o mínimo vital tem uma grande importância na história da tributação contemporânea, uma vez que esta nos dias atuais não se vale apenas para exercer função arrecadatória, mas se envolve em promover a justiça, pois assume uma posição de meio de realização de justiça social, sendo um dos principais instrumentos de repartição de riqueza e desenvolvimento econômico. Neste sentido, por exigência de justiça fiscal, se repugna a tributação de valores que estejam voltados à manutenção das necessidades básicas do contribuinte, eis que evidentemente, estes valores não são expressões da capacidade contributiva que, como visto, é pressuposto necessário à referida imposição tributária. O mínimo existencial também diz respeito à proteção das atividades produtivas, uma vez a pessoa jurídica também terá sua capacidade contributiva iniciada depois de satisfeitas as suas necessidades vitais. A primeira noção de mínimo existencial no direito positivo tributário foi na Alemanha em 1873, onde a lei fixou o valor de isenção fiscal como valor mínimo necessário para a subsistência. Podemos dizer que a doutrina alemã foi quem mais desenvolveu a não tributação do mínimo necessário para uma vida digna e esta passou a influenciar os tribunais184 e o legislador ordinário no reconhecimento da figura do mínimo existencial como intributável, bem como irradiou sua influência acadêmica para outros países185. 184 O respeito ao mínimo existencial pessoal e familiar tem grande relevância na discussão tributária da Alemanha, merecendo destaque as decisões do Tribunal constitucional, principalmente a decisão proferida em 1990, considerou que na tributação da renda uma quantia para o mínimo existencial da família deveria ficar isenta de imposto, apenas o que ultrapasse este mínimo poderia ser submetido à tributação. (ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit., p. 206) 185 As decisões do Tribunal Alemão influenciaram outros países da Europa, especialmente a Espanha. Segundo Diego Marín-Barnuevo Fabo a Espanha utilizou-se dos critérios inovadores contidos nas sentenças alemãs para a 106 I.1- O mínimo existencial no Brasil Diversamente da doutrina alemã, no Brasil a questão do mínimo existencial vem sendo tratada de forma tímida pela doutrina e jurisprudência, dentre os doutrinadores que se dedicaram ao assunto, temos como destaque Ricardo Lobo Torres que, apesar de não ser o primeiro a dedicar-se ao assunto186, foi sem dúvida quem mais versou sobre a figura do mínimo existencial em nossa pátria, colocando esta figura ao nível de direito fundamental do cidadão, uma vez que o coloca como fundamento para as condições iniciais do exercício da liberdade. Neste sentido, comungamos da teoria do citado mestre, uma vez que sem estas condições mínimas de existência digna, não há como o cidadão gozar de seus direitos fundamentais e, por conseguinte, a garantia do mínimo protege as liberdades individuais. José Souto Maior Borges187 aponta que o respeito ao mínimo existencial se dá por várias razões de ordem prática, onde uma delas é que o tributo é improdutivo se comparado com as despesas de sua arrecadação; outra razão apontada é a de exigência de justiça fiscal, pois os pequenos contribuintes não deverão sofrer maior redução em sua capacidade econômica. Também aponta que os pequenos contribuintes já suportam de maneira mais dura os ônus dos impostos indiretos, eis que estes não levam em consideração, na sua plenitude, a condição especial dos que de fato contribuem. aplicação do mínimo existencial do imposto de renda da pessoa física, principalmente quanto ao critério para estabelecimento do valor da renda que representa o mínimo indispensável e que neste caso ficaria livre do poder de tributar do Estado Espanhol, e também no estabelecimento do salário social- que constitui num valor assistencial prestados pelas Comunidades autônomas para os cidadãos espanhóis necessitados. (FABO, Diego Marín-Barnuevo. La proteccíon del mínimo existencial em el âmbito del IRRF. Madrid: colex, 1996, p. 64-74). 186 Rui Barbosa ao tratar do imposto de renda no Brasil afirmou a necessidade de excluir da incidência deste imposto o mínimo necessário à existência das classes menos favorecidas. (TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1990, nota 14, p. 76). 187 BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 53. 107 Assim, a não tributação do mínimo vital se dá também por considerações sociais diversas, mesmo porque é um contra-senso fomentar a pobreza num primeiro momento, pois se retiraria dinheiro do cidadão através da incidência tributária, para depois implementar políticas para combatê-la; eis que o Estado está obrigado, por força constitucional, a implementar políticas que garantem aos cidadãos condições dignas de sobrevivência, para fazer valer os preceitos constitucionais plasmados em nossa Carta Magna como liberdade, à saúde, dentre outros 188 o direito à vida, à . Os fundamentos deste princípio serão analisados adiante. Em nossa história constitucional, temos que na Carta de 1946, este princípio foi contemplado de forma expressa no artigo 15, § 1° que determinava que não poderiam sujeitar-se à tributação os artigos que a lei classificasse como mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica. Entretanto, essa disposição não foi reproduzida com todas as letras nas Constituições que a sucederam, mas com a promulgação da “Constituição Cidadã” em 1988, a figura do mínimo existencial, embora não de maneira expressa como no texto de 1946, foi contemplado em várias passagens constitucionais, que protegem particularmente as situações relacionadas à dignidade humana atreladas à ausência de qualquer capacidade contributiva para fazer frente à imposição tributária do Estado. Dentre as imunidades do mínimo existencial em nosso atual texto constitucional temos o direito de petição aos poderes públicos e a obtenção de 188 O Brasil pagou no mês de abril/2005 o valor de R$ 7,117 bilhões a título de benefícios assistenciais a título de amparo assistencial do idoso e das pessoas portadoras de deficiência- Lei 8742/93. (Fonte Boletim Estatístico da Previdência Social , disponível em www.mpas.gov.br) E também de acordo com a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas a média per capita com gastos na área da saúde é de R$ 109, 00 por habitante (REZENDE, Fernando. CUNHA, Armando ( coord). Contribuintes e cidadãos: compreendendo o orçamento federal. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 135.) 108 certidões independente do pagamento de taxas( artigo 5°, XXXIV da CF/88); a gratuidade da ação popular, do hábeas corpus e do hábeas-data ( artigo 5°, LXXII , LXXIII e LXXVII); a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos ( artigo 5°, LXXIV); a gratuidade do registro civil de nascimento e da certidão de óbito para os reconhecidamente pobres na forma da lei ( artigo 5°, LXXVI); a imunidade de impostos das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos (artigo 150, VI, letra c); a imunidade do ITR da pequena propriedade rural explorada pelo proprietário que não possui outro imóvel (artigo 153, § 4°, inciso II); a imunidade de contribuição para custeio da seguridade social para as entidades beneficentes de assistência social ( artigo 195, § 7°); a garantia de prestação de assistência médica independente do pagamento de taxas ou de contribuições para o sistema previdenciário ( artigo 196 e 198 da CF/88); a prestação de assistência social, independentemente de contribuição, a quem dela necessitar ( artigo 203); a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais e a obrigatoriedade e gratuidade do ensino fundamental ( artigo 206, IV e artigo 208, I); a previsão de programas suplementares de alimentação e assistência à saúde do educando no ensino fundamental (artigo 212, § 4°) e a proteção da família pelo Estado e a gratuidade da celebração do casamento civil ( artigo 226). Este princípio aparece também invocado no aspecto negativo do princípio da capacidade contributiva, nos princípios sobre os quais se baseiam o Estado Social, como por exemplo, a erradicação da pobreza e a dignidade da pessoa humana, no princípio da solidariedade e também nos direitos de liberdade, dentre outros. Neste sentido, é colocado ao legislador infraconstitucional ao estabelecer as incidências tributárias o dever de criar isenções tributárias que resguardam a 109 imunidade tributária do mínimo vital em respeito aos preceitos constitucionais que garantem esse mínimo. Neste sentido, Alfredo Augusto Becker189 adverte que a regra constitucional impõe ao legislador ordinário não apenas o dever de escolher os fatos-signos presuntivos de renda ou capital para a composição da hipótese de incidência do tributo, mas também o dever de criar isenções tributárias que resguardam a imunidade tributária do mínimo indispensável de capital e renda, colocando que a definição do mínimo cabe ao legislador ordinário. Assim, carecendo o mínimo existencial de conteúdo específico, a sua fixação será variável de acordo com o conceito que for destinado às necessidades básicas da sociedade pelo legislador ordinário, podendo esta variar no tempo e no espaço, uma vez que estas necessidades podem ser diferentes em conformidade com a conjuntura política e econômica de cada época190. Rui Barbosa191 a definiu como uma incógnita muito variável, podendo ser determinada apenas relativamente por apreciações aproximativas de financistas e legisladores. Em matéria tributária infraconstitucional, a legislação brasileira do Imposto de Renda, ao fixar a base de cálculo do imposto, procurou atentar para o estabelecimento do mínimo existencial, embora seja muito criticada por vários doutrinadores, uma vez que deturpa o conceito deste mínimo existencial ao estabelecer limites de deduções da base de cálculo de valores considerados como essenciais, tais como despesas com educação. Aires Barreto192 criticando a legislação do Imposto de Renda sustenta que somente se pode falar em capacidade contributiva a partir da garantia de integridade 189 BECKER, Alfredo Augusto. Op. cit. p. 455. Na doutrina Alemã também foi proposto por Tipke e Lang devido a esta variação na quantificação do mínimo existencial, a fixação do mínimo regional, onde este teria uma variação de acordo com o custo de vida local ( ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. Cit. P. 206-208) 191 BARBOSA, Rui. Apud TORRES, Ricardo Lobo, Op. cit, 1990, nota 14, p. 76. 190 110 do montante mínimo indispensável à satisfação das necessidades primárias do cidadão. No Brasil, como na maioria dos países subdesenvolvidos, a questão do mínimo existencial é muito delicada, uma vez que sequer os direitos sociais básicos são atendidos, e a tributação pode agravar o problema da pobreza, se não se atentar para o respeito a esta imunidade do mínimo vital. I.2- Os fundamentos da proteção ao mínimo existencial A indicação do fundamento do direito ao mínimo existencial é um assunto controvertido na doutrina, e estas divergências principalmente consistem nas peculiaridades dos textos constitucionais de cada país. Algumas Constituições trazem expressamente a indicação deste principio193, outras trazem de forma implícita, decorrendo de outros princípios consagrados pelas Cartas Constitucionais, como é o caso da Constituição Brasileira e da Italiana194, por exemplo. Assim, em alguns países a doutrina e a jurisprudência têm retirado o fundamento do mínimo vital dos princípios de justiça tributária, normalmente presentes em seus textos constitucionais, notadamente ligados ao princípio da capacidade contributiva, como é o caso da doutrina italiana195 e da espanhola196. 192 BARRETO, Aires F. Capacidade contributiva- progressividade. In Revista de direito tributário. São Paulo: RDT, a. 15, n° 58, out./dez. 1991, p. 176-178 193 A Constituição do Japão em seu artigo 25 declara : Todos terão direito à manutenção de padrão mínimo de subsistência cultural e saúde. ( TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1999, p. 142) 194 A doutrina italiana por o considerar ligado ao princípio da capacidade contributiva relaciona este ao artigo 31 que protege à família, ao artigo 32 que trata da saúde, ao artigo 34 que trata da educação, ao artigo 38 que trata das pensões para os cidadãos inábeis para o trabalho e desprovido dos meios necessários para viver e ao artigo 47 que trata do sistema de habitação. (MOSCHETTI, Francesco. Op. cit. p. 258). 195 Giardina também coloca o princípio da capacidade contributiva como fundamento do princípio do mínimo vital. (GIARDINA, Emilio. Op. cit. p. 448) 196 Na Espanha tem-se considerado que a exigência de não submeter à tributação as rendas destinadas às necessidades vitais se desprende do princípio da capacidade econômica contida no artigo 31 da Constituição Espanhola. ( ver FABO, Diego Marín-Barnuevo. La proteccíon del mínimo existencial em el âmbito del IRRF. Madrid: Colex, 1996, p. 13) 111 Porém, há casos como o da Alemanha, onde a sua Lei Fundamental não reconhece os chamados princípios de justiça tributária, e neste caso, o mínimo vital é extraído de outros princípios, como o da dignidade da pessoa humana, do Estado Social e Democrático e do princípio geral da igualdade. Por exemplo, o Tribunal Constitucional da Alemanha em 1990 em sentenças que tinham por objeto a insurgência contra a diminuição do valor estabelecido para abatimento por filho da base de cálculo a ser apurado para pagamento do imposto de renda da pessoa física, decidiu através da interpretação dos princípios da Constituição de Bonn de 1949, principalmente no princípio da proteção à dignidade humana em conexão com o princípio do Estado Social e Democrático, a obrigatoriedade de observância e preservação de valores mínimos que estejam voltados à subsistência dos cidadãos alemães e que, os valores referentes à manutenção dos filhos também estão inseridos nessa categoria, merecendo também a proteção da imposição arbitrária do Estado197. O que fica evidente em todos os casos é o grande esforço envidado pela doutrina e jurisprudência no sentido de encontrar um fundamento constitucional para a proteção do mínimo existencial. I.2.1- FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA LIBERDADE Principalmente por influência da doutrina alemã, temos autores que defendem que o fundamento do mínimo existencial é o princípio da liberdade, e dentre estes apontamos Ricardo Lobo Torres, que coloca o princípio da capacidade 197 “ Art. 1 GG: La dignidad Del hombre es intangible. Respetarla y protegerla es obligación de todo poder publico. Art. 20.1 GG: La República Federal alemana es un estado federal, democrático y social”. Esta decisão garantiu o reconhecimento do comando constitucional de deixar isentas as rendas do sujeito passivo na medida em que estas são necessárias para garantir as condições de vida mínima de uma vida digna.( Idem, ibidem, p. 3536). 112 contributiva apenas como um balizador desse princípio e não o seu fundamento, uma vez que esta começa além do mínimo necessário à existência humana digna. Este autor faz uma construção doutrinária atribuindo ao cidadão um direito público subjetivo, garantindo uma imunidade tributária constitucional. Apresenta como pré-constitucional, como decorrência do direito básico de liberdade, com validade erga omnes. Defende a teoria de que o mínimo existencial está ancorado na ética e se fundamenta na liberdade, onde sem o mínimo vital necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais para o exercício da liberdade, pois este perderia o seu valor sem a condição fática para poder exercê-lo.198. No mesmo sentido, ao escrever sobre cidadania, João Carlos Espada199 coloca que a garantia dos bens essenciais constituem as condições mínimas para agir com liberdade ou fazer uso da liberdade; deve ser garantido que todos tenham acesso a estes bens essenciais que constituem as condições mínimas para que se possa agir livremente. Fazendo um paralelo com a teoria da justiça de Rawls200 temos que este também apresenta o mínimo existencial como pressuposto lógico indispensável à coerência de sua construção teórica; pois a garantia de um conjunto mínimo de condições materiais é pressuposto para que no estado original, ou seja, na posição inicial eqüitativa de oportunidades, os indivíduos possam adotar o procedimento eqüitativo. Podemos dizer que esta posição inicial equivale a um conjunto de condições materiais mínimas, e que a carência desse mínimo inviabiliza a utilização pelo homem das liberdades asseguradas pela ordem jurídica, e neste sentido o 198 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1999, p. 146 e 151. ESPADA, João Carlos. Op. cit., p. 85/86 e 263. 200 RAWLS. John. Op. cit, 1993, p. 221-222 199 113 referido autor aponta este mínimo como pressuposto não apenas do princípio da diferença, mas também do princípio da liberdade. Neste sentido, as condições para o exercício da liberdade se expressam na imunidade do mínimo existencial, assumindo um status negativus, onde o direito é protegido negativamente contra a intervenção estatal, ou seja, limita a competência estatal para que esta não possa invadir a esfera da liberdade mínima, liberdade esta considerada como direito ao mínimo imprescindível à sobrevivência. Mas o direito de liberdade, fundamento do mínimo existencial, depende também de prestações positivas, onde a proteção estatal visa garantir as condições de liberdade. I.2.2- FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL Na doutrina, há também quem defende que o fundamento do princípio da proteção do mínimo vital é o princípio da solidariedade social. Dentre estes temos Francesco Moschetti201, que justifica o mínimo existencial no dever de solidariedade da comunidade, onde aqueles que possuem aptidão para contribuir para os gastos públicos devem fazê-lo no lugar daqueles que nada possuem. A fundamentação da proteção do mínimo vital nas lições de Moschetti que se apóiam no princípio da solidariedade são aplicáveis ao direito brasileiro, eis que nossa Carta Magna acolhe o princípio da solidariedade no artigo 3°, inciso I como nossos objetivos fundamentais. Na doutrina pátria, Aliomar Baleeiro aponta o fundamento social da proteção do mínimo existencial no princípio da solidariedade: Além das razões inspiradas na solidariedade social, outras de caráter prático e lógico condenariam impostos sobre criaturas de reduzida capacidade contributiva. Segundo a concepção atual 201 MOSCHETTI, Francesco. Op. cit. 266-269. 114 de Estado, este deve assistência a todos os necessitados por efeito de suas condições (idade, saúde, incapacidade de trabalho, fase escolar, etc.) ou econômicas (pauperismo, desemprego, etc.). Seria redondamente insensato, anti-econômico e trabalhoso retirar, pelo imposto, recursos daqueles aos quais o Estado terá de socorrer pelos canais da despesa.202 Evidentemente que o princípio da solidariedade se aplica também ao sistema tributário, seja porque se encontra elencado como princípio fundamental seja porque é perfeitamente adequado ao ímpeto constitucional de implementação de valores de justiça social, através de todos os instrumentos previstos na Constituição, inclusive o cunho extrafiscal inerente ao sistema tributário, que não serve, senão para implementação dos valores contidos nos princípios fundamentais do Estado brasileiro, previstos especialmente no preâmbulo constitucional e nos artigos 1° ao 7° da constituição da República Federativa do Brasil. I.2.3- FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA (IN)CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Na doutrina brasileira temos que prevalece a tese da capacidade contributiva como fundamento do mínimo existencial, evidentemente pelo aspecto negativo, ou seja, na ausência da capacidade para contribuir, uma vez que esta somente pode se reputar existente quando se aferir riqueza acima do mínimo necessário. Alfredo augusto Becker203 ao tratar dos alcances da eficácia da capacidade contributiva colocou o mínimo existencial como uma “deformação” sofrida pelo princípio da capacidade contributiva, uma vez que o sistema deve resguardar a imunidade do mínimo indispensável às necessidades vitais básicas do cidadão. 202 203 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p.276. BECKER, Alfredo Augusto. Op. cit., p. 453-457. 115 A doutrina espanhola e a jurisprudência de seus Tribunais204 apontam o princípio da capacidade contributiva como fundamento constitucional da proteção do mínimo vital. Sainz de Bujanda205 coloca que a isenção do mínimo vital é indissociável do princípio da capacidade contributiva, uma vez que esta somente pode-se reputar existente quando for aferida riqueza acima do mínimo existencial. Diego Marín-Barnuevo Fabo206 sinteticamente reproduz a posição doutrinária espanhola afirmando que a não submissão à tributação da renda destinada ao atendimento das necessidades vitais se depreende do princípio da capacidade contributiva prevista no artigo 31 da Constituição. A jurisprudência e também a doutrina italiana ligam diretamente a defesa do mínimo vital ao princípio da capacidade contributiva, sob um aspecto irrenunciável de uma existência livre e digna do contribuinte e de sua família, onde o contribuinte somente deve ser gravado a partir do limite mínimo indispensável para a sua sobrevivência. A doutrina critica a teoria da utilidade defendida pelos autores da “Escola de Pavia” por não respeitar necessariamente o mínimo existencial, pois esta defendia que o cidadão deveria contribuir para as despesas públicas na proporção dos serviços públicos postos à sua disposição207. Victor Uckmar208 traz a seguinte observação: Segundo a Corte italiana a isenção dos rendimentos mínimos não só é legítima, pois atrelada a uma presunção racional de falta de qualquer capacidade contributiva, mas é efetivamente 204 O Tribunal Constitucional afirmou que a capacidade contributiva deve ser apurada de acordo com as circunstâncias pessoais, determinando a efetiva riqueza do contribuinte. Reconhece o mínimo existencial como direito individual que limita o Estado a exigir do cidadão somente o que estiver de acordo com sua riqueza efetiva. (ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit., p. 212) 205 SAINZ DE BUJANDA. Op. cit. p. 197. 206 No original: Asi há sucedido en Espanã, donde, normalmente, se há considerado que la exigência de no someter a gravamen la rendta destinada por los sujetos a la atención de sus necesidades vitales se desprende, inequvocamente, del principio de capacidad económica contenido en el artículo 31 de la Constitución. (...) su formulación actual tiene lugar através del reconocimiento de uma regla constitucional, deducida del principio da capacidad econômica, que prohíbe someter a gravamen la riqueza destinada a la satisfacción de lãs necesidades elementales del individuo. (FABO, Diego Marín-Barnuevo. Op. cit., p. 13) 207 Neste mesmo sentido, ver ZILVETI, Fernando Aurélio. Op. cit. p. 210-212. 208 Victor Uckmar. Op. cit. p. 73. 116 necessária, porque o legislador, se pode estabelecer discricionariamente, em função de complexas avaliações econômicas e sociais, qual é a medida acima da qual surge a capacidade contributiva, não pode deixar de isentar da tributação aqueles sujeitos que recebem rendimentos tão modestos a ponto de serem apenas suficientes para satisfazer as necessidades elementares da vida: se assim não dispusesse, a lei acabaria por impor um dever tributário também onde não existe capacidade contributiva. Assim, o mínimo existencial não representa indicação de capacidade contributiva, mas ausência desta. A proteção desse mínimo decorre justamente da aplicação do princípio da incapacidade contributiva, podemos dizer que é uma expressão do princípio da capacidade contributiva em seu aspecto negativo, devendo o legislador infraconstitucional criar mecanismos de não tributação da parcela mínima indispensável a uma vida digna. Podemos dizer que apontar apenas o princípio da capacidade contributiva como fundamento do princípio do mínimo vital não reflete com exatidão a completa dimensão do que representa esse princípio para o Direito, deve-se conjugar o princípio da capacidade contributiva em seu aspecto negativo com o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade. A proteção do mínimo vital se coloca como um limitador da capacidade contributiva no seu patamar inferior, onde esta apenas começa quando satisfeita aquela, pois até o limite dos gastos necessários à manutenção de uma existência digna para o contribuinte e para sua família não há o que se falar em capacidade contributiva, uma vez que o patrimônio mínimo não denota capacidade de contribuir para as despesas do Estado, e sim ausência desta. E neste sentido, a imunidade do mínimo existencial se encontra calcada na reserva dos direitos fundamentais, na intangibilidade desses direitos pelo Estado. Neste contexto, podemos afirmar que tributar uma pessoa que nada tem além do mínimo indispensável para sua sobrevivência, de modo que lhe seja 117 reconhecida a dignidade, é algo que repugna ao senso comum de justiça, à própria racionalidade do sistema tributário e aos princípios esculpidos nas Constituições modernas. Seção II- O NÃO-CONFISCO TRIBUTÁRIO Não basta a fixação de um limite mínimo, abaixo do qual a tributação não pode operar seus efeitos, posto que uma tributação excessiva, que afete substancialmente a renda ou a propriedade ou que desestimule o exercício de determinada atividade econômica, é igualmente perniciosa. A vedação de cobrança de tributo com o efeito confiscatório se insere no rol das garantias dos contribuintes, sendo uma limitação ao poder de tributar, que impede que o Estado, sob o manto da tributação, apodere de parte considerável da propriedade ou da renda do contribuinte. O confisco em matéria tributária agride a ética, de modo que transforma o fato gerador em mero pretexto com finalidade de confisco, se expressando em termos de desproporcionalidade e de irrazoabilidade entre o quantum como elemento constitutivo do fato gerador. O ônus tributário não pode conduzir a um aniquilamento do direito de propriedade sobre o qual recai, pois desse modo se transformaria em instrumento de negação desse direito. Esta vedação constitucional se caracteriza como uma verdadeira imunidade fiscal, onde nas palavras de Ricardo Lobo Torres209 “é a imunidade de uma parcela mínima necessária à sobrevivência da propriedade privada”, relacionando-se desse modo, com o direito de liberdade. A vedação de cobrança de tributo com o efeito de confisco é uma garantia constitucional decorrente dos direitos fundamentais do contribuinte, uma vez que protege o direito de propriedade. É um limitador ao poder fiscal do Estado e um 209 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit, 2004, p. 64. 118 instrumento a serviço do sistema tributário justo que corresponde à conciliação do interesse público de arrecadar tributos e o interesse particular de defender a sua propriedade contra o arbítrio estatal, uma vez que o poder de tributar deve envolver também o dever de conservar210, assim, este princípio impõe uma racionalidade à atividade da tributação, protegendo o contribuinte contra o excesso. O grande problema deste limitador não está em demonstrar a necessidade de se impedir a tributação confiscatória, mas em estabelecer um conceito preciso do que vem a ser um tributo com efeito de confisco, bem como de identificar as raias do efeito confiscatório. Ou seja saber qual a medida da riqueza suscetível de imposição tributária, de modo a saber quando uma imposição tributária deixa de representar uma exigência legítima para tornar-se abusiva. II.1- Conceito de confisco A palavra confiscar vem do latim confiscare, e embora o conceito de confisco não seja preciso, podemos considerá-lo como a tomada compulsória da propriedade privada pelo Estado sem que se promova a justa indenização. Podemos considerar também como confisco a tributação excessivamente onerosa, insuportável, não razoável que absorva a própria fonte da tributação. Assim, o termo “confisco” utilizado no campo do direito tributário é conceituado diferentemente do conceito aplicado ao direito penal. 210 Contrária a tese de Marshall que dizia que “the power to tax involves the power to destroy”, a própria Suprema Corte americana se pronunciou dizendo que” o poder de tributar envolve também o de conservar”. No Brasil, a idéia não deve ser diferente, a proibição constitucional de se utilizar o tributo com efeito de confisco revela o dever de conservar a propriedade privada da tributação. Neste sentido o nosso STF já se pronunciou afirmando que : “o poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, do comércio e de indústria e com o direito de propriedade”. ( RE 18.331- disponível em http://www.stf.gov.br, acesso em 03/5/2005). 119 Ives Gandra Martins211 afirma que não é fácil definir o que seja confisco, mas entende que haverá confisco sempre que a tributação retire a capacidade do contribuinte de se sustentar e se desenvolver, entendendo ser toda a violação ao direito de propriedade sem justa e prévia indenização dos bens materiais e imateriais. Aliomar Baleeiro212 interliga o princípio do não-confisco com o direito de propriedade, com a livre iniciativa e a liberdade do exercício de profissão, considerando como confisco todo o tributo que absorva parte considerável do valor de propriedade, aniquila empresa ou impeça o exercício de atividade lícita e moral. Héctor Villegas213 define confisco como a exigência tributária que excede a razoável possibilidade de colaborar para os gastos públicos, isto é, quando a tributação vai além da capacidade contributiva do particular afetado. Carrazza214 também define como confiscatório o tributo que não leve em conta a capacidade contributiva, aquele que esgota ou que tem a potencialidade de esgotar a riqueza tributável das pessoas; dá um alcance bastante elástico, colocando como confiscatório o que ultrapassa a capacidade contributiva como aquela que alcança o mínimo vital. Rafael Bielsa215 define como “o ato que em virtude de uma obrigação fiscal determina injusta transferência patrimonial do contribuinte ao fisco, injusta pela 211 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direitos fundamentais do contribuinte.In Caderno de Pesquisas Tributárias. Nova série 6. MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 2000, p. 49- 50). 212 BALEEIRO,Aliomar. Op. cit., 2003, p. 564. 213 VILLEGAS, Héctor. Curso de Direito Tributário. Tradução de Roque Antônio Carrazza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.89. 214 CARRAZZA, Roque Antônio. Imposto de renda-pessoa física- In Revista de direito tributário. N° 74 São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 41. 215 BIELSA, Rafael. Apud TORRES, Ricardo Lobo. Direitos fundamentais do contribuinte. Caderno de Pesquisas Tributárias. Nova série 6. MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.) São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 2000, p. 168. 120 sua monta ou pela falta de causa jurídica, ou porque aniquile o ativo patrimonial”, resumindo, quando não for justa e também não razoável. Ruy Barbosa Nogueira216 dá uma dimensão bem ampla ao princípio da vedação ao confisco, definindo-o como a absorção, através da tributação, da totalidade do valor da situação ou do bem tributado, bem como de qualquer parcela que exceda à medida legalmente fixada. E Diogo Leite de Campos217, dentro da conceituação ampla dá um alcance ainda maior ao termo, se posiciona como confiscatório o imposto que ultrapassar o necessário para cobrir as despesas públicas. Na tentativa de regulamentação desta garantia constitucional o exPresidente da República, Fernando Henrique Cardoso, propôs um anteprojeto de lei complementar, definindo quando se consideraria uma tributação confiscatória, estabelecendo o ponto a partir do qual o tributo estaria sendo utilizado com efeito de confisco218. As elaborações jurisprudenciais pouco têm esclarecido a respeito da definição do confisco, ou seja, os tribunais não definem com precisão o limite entre o confisco pela tributação excessiva e a garantia do direito de propriedade219. O 216 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Op. cit. p. 125. CAMPOS, Diogo Leite de. CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito tributário. 2ª ed.. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.134-135. 218 Em seu anteprojeto previa que: “Art. 7°. Considerar-se-á caracterizada a utilização de tributo com efeito de confisco sempre que seu valor, na mesma incidência, ou em incidências sucessivas, superar o valor normal de mercado dos bens, direito ou serviços envolvidos no respectivo fato gerador ou ultrapassar 50% do valor das rendas geradas na mesma incidência. (...) § 2°. Para os efeitos deste artigo computar-se-ão todos os tributos federais, estaduais ou municipais, que incidam no bem, direito ou serviço com fatos geradores simultâneos, ou decorrente de um único negócio.” Entre as justificativas do projeto, coloca que não é possível examinar o confisco a partir de cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte. Pois, se a soma dos diversos tributos incidentes representa carga que impeça o pagador de viver e de se desenvolver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado, ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão. Coloca que a solução esteja na criação de um rito processual posto à disposição dos contribuintes, de modo que cada um, julgando-se atingido por confisco em virtude da tributação por um ou vários impostos que tenha que suportar, possa ter como ajustar a carga tributária que entende confiscatória. (MARTINS,Ives Gandra da Silva. Op cit., 2000, p. 50-51). 219 Na parte em que analisamos a expressão “efeito de confisco”, abordaremos algumas decisões no direito comprado sobre as tentativas de se estabelecer um percentual de limitação para a imposição tributária. 217 121 confisco é tratado como tributação excessivamente onerosa, insuportável, nãorazoável, onde a imposição absorve a própria fonte da tributação. Ou seja, o Estado apropria injustamente, através da fiscalidade, de todo ou parte do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes comprometendo-lhes a prática de uma atividade profissional lícita ou ao exercício do direito a uma existência digna, com a satisfação de suas necessidades vitais. No Brasil, o STF , em setembro de 1999, quando do julgamento da ADIn 2.010 entendeu que implicava em confisco o aumento da contribuição previdenciária do servidor público a patamares de até 25% associado à alíquota do Imposto de Renda de 27,5 %, uma vez que a tributação se tornaria excessivamente onerosa e comprometeria o exercício do direito a uma existência digna. 220 Através do exposto, temos que o conceito do princípio do não-confisco somente pode ser retirado dos princípios constitucionais que garantem o direito de propriedade e do direito de livre iniciativa, protegendo o contribuinte tanto da tributação que se situe acima ou abaixo da capacidade contributiva, pois nos dois casos o tributo estará destruindo os direitos fundamentais do contribuinte, impedindo ou dificultando o desenvolvimento de suas atividades pessoais ou profissionais, resultando, por conseguinte, o efeito de confisco. II.2- Efeito de confisco Não é fácil determinar precisamente quando um tributo tem ou não efeito de confisco, tanto a doutrina quanto a jurisprudência não fornecem solução satisfatória para esta questão, até pela própria dificuldade de conceituação do que venha a ser confisco. 220 Consulta no site do STF, disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html Rel. Min. Celso de Mello. Acesso em 28.06.2005. 122 Do exame da norma constitucional temos que a Carta Magna não proíbe apenas o ”confisco”, mas veda a utilização do tributo com “efeito de confisco”, que é mais abrangente, tem maior amplitude que a simples vedação do confisco tributário. A palavra “efeito” significa para fins jurídicos o resultado, conseqüência de uma ação, assim, exatamente no chamado efeito é que poderemos avaliar em que medida a utilização do tributo tem natureza confiscatória. A Constituição espanhola assim como a brasileira prevê expressamente o princípio do não-confisco tributário. Mas na Espanha é utilizada a expressão “alcance confiscatório”, o que nos parece que está mais ligada à noção quantitativa desse princípio. A brasileira ao usar a expressão “efeito de confisco” foi mais abrangente, não se preocupando apenas com o aspecto quantitativo221, mas também o qualitativo. Assim, temos que a garantia constitucional de não-confisco tributário deve receber uma interpretação ampla, sendo que é pelo resultado que este princípio deve ser interpretado. Diante dessa amplitude dada por nossa Carta Constitucional através da expressão “efeito de confisco”, temos que esta garantia pode ser considerada tanto uma garantia de direito, ligada aos princípios da segurança jurídica, quanto uma garantia de justiça. O efeito de confisco também pode ser verificado a partir de uma visão global das incidências tributárias ou pode ser aferido isoladamente a partir de uma incidência tributária específica, pois o efeito de confisco deve ser aferido em termos de proporcionalidade e de razoabilidade da exação e do sistema como um todo. 221 Antes da CF/88, a nossa história constitucional apenas tratou o princípio do não confisco de forma expressa na Constituição de 1934, onde inclusive chegou a estabelecer parâmetros objetivos para a caracterização do efeito de confisco pela tributação. Em seu artigo 185 estabeleceu que nenhum imposto poderia ser elevado além de 20% do seu valor ao tempo do aumento. 123 A expressão ”efeito de confisco” contida no artigo 150, IV da CF foi a maneira que o constituinte encontrou para balizar o direito de propriedade, sendo uma extensão da garantia desta, onde qualquer modalidade de tributação que restrinja o uso do bem ou inviabilize que o mesmo possa gerar desenvolvimento e vida digna ao contribuinte, ensejará no efeito de confisco. Assim, não é necessário apenas a supressão total do direito de propriedade, podemos dizer que o legislador constitucional foi muito feliz ao usar a expressão “efeito de confisco” no lugar simplesmente do termo “confisco”. A vedação pode ser entendida como a proibição de que a lei possa, ao instituir o tributo, expropriar o bem ou impedir o exercício de determinadas atividades, ou quando compromete a própria geração da “mais valia” pela fonte produtora de riqueza. O efeito de confisco implica em redução da capacidade econômica e, por conseguinte, da capacidade contributiva, pois o confisco retira não apenas a capacidade do contribuinte se desenvolver, mas também a capacidade de se manter, uma vez que inviabiliza as atividades econômicas e atenta contra o direito de propriedade, impedindo o exercício de profissão e a existência digna. Fábio Brum Goldschmidt analisa o efeito de confisco sob dois aspectos, em sentido estrito e em sentido amplo, onde em ambos há ofensa da determinação contida no artigo 150, IV do texto constitucional, pois destroem a propriedade privada pela via da tributação, de modo oneroso e irrazoável, gerando a sensação de penalização injustificada no contribuinte: O conceito basilar, pensamos, pode ser chamado “efeito de confisco em sentido estrito”. É aquele que se verifica no tributo qualitativamente imposto de forma regular e inatacável. Trata do uso qualitativamente legítimo do Poder do Estado de instituir e arrecadar tributos, porém quantitativamente destruído. A inconstitucionalidade aqui decorre do exagero no montante do tributo. Diz com exações que, em princípio, seriam irretocáveis se cobradas em valores menos elevados, mas que, na composição do quantum , extrapolam as raias da razoabilidade, acarretando a 124 impossibilidade de pleno exercício de direitos constitucionalmente assegurados( propriedade, liberdade e outros). (...) O sentido amplo, evidentemente, compreende o sentido estrito e ainda se estende para alcançar outras hipóteses de ofensa ao art. 150, IV, da Constituição, que não aquelas decorrentes do simples abuso do poder de tributar. Nesta categoria incluímos as exações viciadas do ponto de vista qualitativo, que se afiguram excessivas porque extravasam as fronteiras constitucionais/legais (não quantitativas) para a instituição de tributos. 222 ( grifamos) Assim, haverá “efeito de confisco” sempre que o legislador extrapolar qualitativamente ou quantitativamente as determinações constitucionais traçadas para o exercício do poder de tributar, sempre que houver transferência patrimonial do particular para o fisco de maneira injusta, seja pelo montante, pela destruição da propriedade ou pela falta de causa jurídica223. No direito comparado encontramos algumas decisões jurisprudenciais que fazem referência a partir de quando teríamos o efeito de confisco. Na Argentina, apesar de não ter de forma explícita o princípio do não-confisco tributário em sua Carta Magna, este direito foi garantido pela Suprema Corte Argentina224 que abordou o assunto e adotou o limite de 33% para os impostos imobiliários e sucessórios. Assim, considerou confiscatório o imposto imobiliário que consumisse mais que o percentual de 33% da renda calculada, ou seja, da renda produzida pela exploração normal média do imóvel, e também estipulou que seria confiscatório o imposto sobre heranças e doações que excedesse ao percentual de 33% do valor dos bens recebidos pelo beneficiário. 222 GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 100-101. 223 O programa de estabilização lançado em 15/03/199 pelo Presidente Fernando Collor de Mello, com o bloqueio de cruzados pelo intitulado Plano Collor teve o efeito de confisco quando analisado pelos Tribunais, uma vez que esse bloqueio tinha natureza jurídica de empréstimo compulsório, porém não criado por lei complementar e não utilizado para a finalidade articulada no artigo 148 da CF/88. ( processo 90.03.032177-9 – TRF 3ª Região, disponível em http://www.trf3.gov.br/acordao/index.php, acessado em 12.07.2005). 224 VILLEGAS, Hector. Op. cit. p. 93. 125 Na Espanha, o Tribunal Superior de Justiça da Catalunã analisou e reconheceu o alcance confiscatório do imposto sobre jogos de sorte, que foram aumentados em 300% sobre o montante das cotas únicas cobradas sobre as máquinas recreativas225. A jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão adotou o chamado princípio da repartição pela metade, onde o uso da propriedade deve servir da mesma forma ao proveito privado e ao bem da coletividade. Assim, quando a tributação supera a barreira dos 50% da renda, o Estado deixa de existir para garantir a sociedade, e a propriedade é que passa a existir para sustentar o Estado226, a decisão da Corte Alemã buscou encontrar um parâmetro dentro dos limites de razoabilidade. Em nosso direito pátrio, o STF no julgamento da ADIn 2010/DF, considerou inconstitucional a carga tributária quando ultrapassou o percentual de 50% da remuneração do servidor público. Temos que a nossa Corte Constitucional vem dando uma eficácia cada vez maior a garantia constitucional do não-confisco, a ponto de estabelecer parâmetros como acima demonstrado e estender a sua eficácia. Como exemplo, em outubro de 2002 o STF em análise da ADIN 551/RJ, onde foi relator o Ministro Ilmar Galvão, decidiu que os efeitos dessa garantia constitucional alcançam não apenas os tributos, mas também às multas na área tributária227. 225 Idem, ibidem, p. 107. O Tribunal Constitucional Federal contempla a oneração tributária do patrimônio de modo uno e estatui o princípio da repartição pela metade: “o imposto sobre o patrimônio apenas pode adicionar-se aos demais impostos sobre o rendimento, desde que a oneração tributária total dos rendimentos fictícios, numa visão tipicante de receitas, despesas dedutíveis e outras desonerações, permaneça em torno da divisão pela metade entre a mão pública e a mão privada”. (GOLDSCHMIDT, Fábio Brun. Op. cit. p. 237). 227 Na ementa da referida ADIn foi colocado que “a desproporção entre o desrespeito à norma tributariam e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal”. (disponível em http://www.stf.gov .br/jurisp.html Rel. Min. Ilmar Galvão. Acesso em 28.06.2005). 226 126 Embora o efeito de confisco não seja algo que possa ser definido de modo objetivo, pois qualquer tentativa de definição será considera insatisfatória, uma vez que qualquer abrangência sob o aspecto material não resistiria ao tempo, uma vez que sempre haveria problemas quanto ao aspecto temporal, pois uma realidade não pode ser transportada para outra sem prejuízo de seu conteúdo. Dentre os direitos e princípios consagrados em nossa Constituição podemos apontar três que devem nortear a delimitação do que venha a ser “efeito de confisco”, embora estes não sejam os únicos, pois se o efeito for analisado em sentido amplo, como acima demonstrado, qualquer violação de regras ou princípios da tributação que ensejar em obrigatoriedade de transferência patrimonial para o fisco será considerado com o “efeito de confisco”. Como tentativa de delimitação apontamos o direito de propriedade, o princípio da livre iniciativa e o princípio da capacidade contributiva, como princípio geral que deve nortear o direito tributário. A nossa Constituição garante o direito de propriedade bem como fundamenta a ordem econômica na livre iniciativa, assegurando a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica; para isto, prevê em seu artigo 150, inciso IV a proibição da instituição de tributos com efeito confiscatório, de modo que esta atividade não aniquile o direito de propriedade e não prejudique o exercício da profissão. Podemos dizer que a existência de propriedade privada é o primeiro balizador do efeito de confisco, e pressuposto basilar para a existência de um sistema tributário, uma vez que é a propriedade privada quem dá sustentação ao Estado capitalista, existindo, por conseguinte, uma relação de dependência recíproca, pois sem esta propriedade não há o que tributar. Assim, a propriedade privada é protegida contra a tributação discriminatória e exagerada. 127 A tributação deve necessariamente se harmonizar com os princípios da ordem econômica. A liberdade não pode ser tolhida pela via da tributação, ou seja, a atividade tributária não deve impedir a liberdade de iniciativa e de empresa, pois ocorrendo tal situação estaremos também diante de um “efeito de confisco”. Podemos dizer que a proibição do tributo com efeito de confisco se afirma além da capacidade contributiva, sendo o termo final desta, uma vez que é confiscatório o tributo que não respeita a capacidade contributiva. Há uma relação íntima entre a proibição de efeito de confisco e o princípio da capacidade contributiva, uma vez que ambos dizem respeito ao quantum poderá ser tributado. O efeito de confisco tributário e sua relação com o princípio da capacidade contributiva será objeto de análise no próximo tópico. II.2.1- EFEITO DE CONFISCO E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA Para muitos autores esta limitação constitucional ao poder de tributar é uma derivação do princípio da capacidade contributiva, o ponto de partida, pois as leis instituidoras dos tributos não podem obrigar o sujeito passivo a contribuir além de suas possibilidades. Assim, a relação entre a vedação da tributação com efeito de confisco e a capacidade contributiva é que os tributos não podem exceder a força econômica do contribuinte, uma vez que o tributo desproporcional à capacidade contributiva destrói esta. A tributação com efeito de confisco configura imposição inconstitucional, pois além de violar o preceito expresso na Constituição Federal, fere, também, o princípio da capacidade contributiva228. 228 A este respeito, o TRF 5ª Região analisando os autos relativos às alíquotas estabelecidas pelo artigo 5° da Lei 8033/90 relativas à incidência do Imposto sobre operações de crédito câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valores mobiliários salientou que embora seja difícil aferir a configuração de confisco, em face da ausência de sua definição objetiva no direito nacional, vislumbrou a sua presença na análise da Lei acima, uma vez que as 128 A relação entre estes princípios estabelece o indispensável atendimento à capacidade contributiva, para que seja verificado o grau entre a possibilidade e a capacidade de suportar a imposição tributária, e por conseguinte, o limite a partir do qual este grau destrói o patrimônio do contribuinte, tornando a tributação ilegítima. Podemos dizer que o princípio do não-confisco tributário limita a verificação da capacidade contributiva daquele que suportará o ônus tributário, serve de base para estabelecer o limite máximo que poderá suportar cada contribuinte com fundamento nos sinais exteriores de riqueza; uma vez que o legislador ao graduar o tributo deverá observar a capacidade econômica de cada contribuinte, respeitando os direitos fundamentais, pois a inobservância desses critérios leva à uma tributação excessiva e injusta. Carrazza229 coloca o princípio da capacidade contributiva como fundamento do não confisco, afirmando que o excesso de tributação viola diretamente o princípio da capacidade contributiva, uma vez que qualquer imposição excessiva, superior às possibilidades do contribuinte em suportar as cargas públicas sem ter afetado seu direito a uma subsistência digna possui o efeito de confisco. Na mesma linha de pensamento, José Maurício Conti230 ao analisar a vedação ao confisco por meio de tributos e a capacidade contributiva, considerou que este princípio constitucional é uma derivação da idéia de capacidade contributiva, pois ao assumir caráter confiscatório o tributo estará atingindo valor que exceda a capacidade contributiva. Já o professor Ricardo Lobo Torres defende a tese de que a vedação da utilização dos tributos com efeito confiscatório não decorre do princípio da alíquotas traduziram exacerbação à capacidade contributiva dos obrigados, inviabilizando as operações financeiras por eles realizadas. (MS 140.452/PB- relator Juiz José Delgado. Disponível em http://www.trf5.gov.br, acessado em 12.07.2005) 229 CARRAZZA, Roque Antônio. Op. cit., p. 70. 230 CONTI, José Maurício. OP. cit. p. 55. 129 capacidade contributiva. Pois a proibição de tributos confiscatórios não está ligada a idéia de justiça e não tem como fundamento a aplicação do princípio da capacidade contributiva, é uma imunidade fiscal, tendo como fundamento a liberdade individual; somente considera confisco a tributação excessivamente elevada, além da capacidade econômica como se pode depreender de sua lição231. Este princípio constitucional que veda a utilização de tributos com efeito de confisco e que limita a competência para instituir ou aumentar tributos é também um componente a mais do princípio de justiça tributária, um importante ingrediente na elaboração de uma tributação mais justa, sendo uma projeção do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a tributação não pode ir além da possibilidade dos contribuintes concorrerem aos gastos públicos, sob pena de ter o efeito confiscatório. Nos dizeres de Klaus Tipke232, “a capacidade contributiva termina de modo onde começa o confisco que leva à destruição da capacidade contributiva”. Seção III- A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E A CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA Na Constituição Federal de 1988 não há um limite quantitativo para a carga tributária total233 a ser suportada pelos contribuintes, mas a nossa Carta 231 . A imunidade contra os tributos confiscatórios está em simetria com a do mínimo existencial, fundada também na liberdade: enquanto aquela impede a tributação além da capacidade contributiva, a imunidade ao mínimo vital protege contra a incidência fiscal aquém da aptidão para contribuir. A proibição de tributo confiscatório, em suma, não decorre do postulado ético da capacidade contributiva, senão que constitui princípio de proteção da liberdade, que, pode ser violentada nos casos de tributação excessiva. (grifos no original). TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., 1999, p. 130. 232 TIPKE, Klaus. Op. cit., 1998, p. 65. 233 A carga tributária traduz a parcela de dinheiro que o Estado retira compulsoriamente dos membros da sociedade, trata-se de um coeficiente entre o total das receitas tributárias e o valor do Produto Interno Bruto-PIB, por exemplo, em 2004 o total de arrecadação de receitas tributárias foi de 634,39 bilhões e o PIB foi de 1.766,62 bilhões o que gerou um percentual de 35, 91% da carga tributária de nosso país. 130 Política estabelece princípios e limites ao poder de tributar que devem ser seguidos por cada um dos entes federados ao criar e exigir tributos. Sobre o limite da carga tributária, Tipke234 se pronunciou que este somente pode ser deduzido do princípio da liberdade, e que no Brasil a Constituição determina o confisco como limite dessa carga tributária, com base no princípio da liberdade não é admissível avançar mais o limite da carga tributária. Assim, temos que os direitos fundamentais limitam a imposição tributária, uma vez que esta não pode destruir estes direitos afirmados e garantidos por nossa Carta Política. Mas, o que temos vivenciado é um aumento a cada ano da carga tributária total suportada pelos cidadãos. Desde o nosso descobrimento até os dias atuais, o montante de tributos exigidos foi consideravelmente aumentado. A população brasileira tem acenado para a fixação do entendimento de que no Brasil a tributação alcança limites que não mais podem ser elevados. A carga tributária bruta brasileira cresceu de 29,5% do Produto interno Bruto (PIB) em 1994 para 35,91% % em 2004235, e em 2005, segundo estimativas, deve superar o percentual de 37%. Assim, temos que o Brasil é colocado na companhia de países desenvolvidos em termos de carga fiscal, como Alemanha, Espanha e Canadá236, embora no Brasil, ao contrário dos países desenvolvidos, mais da metade da carga tributária provém dos tributos indiretos que compõem o preço final dos produtos, onerando em especial as classes menos favorecidas, e com um agravante, uma vez que o aumento da carga tributária não teve a contrapartida da melhoria dos serviços prestados pelo Estado. Para podermos avaliar se uma carga tributária é alta, é necessário comparar com a prestação de serviços estatais oferecidos à população. Para um 234 TIPKE, Klaus. Op. cit., 2002, p. 48. Dados: Secretaria da Receita Federal- SRF . Anexo I: Evolução da carga tributária brasileira 236 Dados SRF– Anexo II: Ranking da carga tributária dos países membros da OCDE. 235 131 país que possui uma das mais pesadas tributações, é importante ressaltar que a natureza e a qualidade dos bens e serviços públicos oferecidos estão sensivelmente abaixo do que a arrecadação fiscal deveria proporcionar, não podendo comparar com o alto nível dos serviços oferecidos aos cidadãos dos países que possuem uma tributação semelhante a nossa. Assim, os países que se equiparam ao Brasil em termos de percentual de carga tributária, possuem um nível de desenvolvimento alto, um estado social elevado e uma sociedade mais equilibrada, o que pode ser visto no Anexo II e no gráfico comparativo entre a Carga tributária versus o nível de desenvolvimento demonstrado no Anexo III237. Por conseguinte, o Brasil aparece em contraposição a estes dados, pois está entre os países pobres, com índice de desigualdade alta238 e com uma carga tributária de país com nível de desenvolvimento elevado. Comparando a carga tributária e o índice de desigualdade social - Gini239 , temos que os países com alto índice desigualdade possuem uma carga tributária menor, ou seja, os mais desiguais tributam menos, e o nosso país é o oposto a estes dados240, pois somos um país pobre, desigual, com nível de desenvolvimento baixo e com carga tributária alta. A conseqüência é que diante desses fatos o Brasil não tem mais espaço para aumentar a carga tributária para subsidiar os mais pobres e, tributar muito num país como o nosso é tributar o pobre. 237 ANEXO III- neste gráfico foi comparado a carga tributária dos países membros da OCDE e o nível de desenvolvimento - PIB per capita do ano de 2004. 238 No Relatório de Desenvolvimento Humano 2004, elaborado pelo Pnud, o Brasil aparece com Índice de 0,576, quase no final da lista de 127 países. Apenas sete nações apresentaram índice de concentração de renda pior que o Brasil. Em estudo recente do BIRD ( setembro de 2005)foram analisados o nível de concentração de renda 129 países e o Brasil está entre os 5 mais desiguais. 239 O índice de GINI é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um , onde o valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, e o valor um está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. 240 Ver ANEXO IV - Carga Tributária X índice de desigualdade. Neste ANEXO, através desta comparação procuramos demonstrar o grande paradoxo da tributação brasileira, uma carga tributária de países de primeiro mundo, um índice de desigualdade alto- um país com uma das piores distribuição de renda. 132 Assim, o problema não está na carga tributária elevada, mas sobre quem recai esta carga tributária, pois a nossa tributação além de excessiva é mal distribuída. A tributação no Brasil tem sido usada como instrumento de concentração de renda, agravando o ônus fiscal dos mais pobres e aliviando o dos mais ricos. Para demonstrar este desnível e o desrespeito ao princípio da capacidade contributiva, onde a tributação deveria ser moldada de modo que cada um contribuísse para os gastos públicos na proporção de sua riqueza, abaixo reproduzimos os dados da carga tributária sobre salários realizada pela Secretaria da Receita Federal de nosso país em 2001 que teve como fonte primária de dados para o trabalho a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 1995-1996 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, que investigou os hábitos de consumo, a alocação de gastos e a distribuição de rendimentos da população das principais regiões metropolitanas do Brasil, demonstrando que a nossa tributação está longe de respeitar o princípio geral da capacidade contributiva: 133 Segundo os dados acima, temos que a carga tributária total sobre salários, incluindo consumo e renda para quem ganha mais de 30 salários mínimos é de 44, 81% e não muito diferente de quem ganha apenas até 2 salários mínimos,e na tributação sobre o consumo o pobre paga mais que aqueles que possuem uma maior capacidade econômica, em relação ao percentual de renda. Apesar de não ser um estudo recente, temos que a realidade de hoje é pouco diferente daquela, uma vez que da carga tributária geral arrecadada em 2004 58,72% correspondem à tributação sobre consumo, 38,02% sobre a renda e 3,26% sobre o patrimônio241. Temos um país com uma das maiores concentrações de renda do mundo, onde os 10% mais ricos ganham 28 vezes mais que os 40% mais pobres242. A tributação sobre o consumo resulta numa carga tributária maior para os contribuintes indiretos, onde a verificação da capacidade contributiva é mais difícil de concretizar. Em razão das distorções de nosso sistema tributário, alguns contribuintes têm arcado com uma carga fiscal extremamente elevada, o que torna totalmente injusto nosso sistema tributário, onde alguns pagam muito e muitos pagam pouco. E a carga tributária excessiva e mal distribuída reduz a capacidade de consumo e de poupança. O aumento da carga tributária brasileira se deu da maneira mais perversa, penalizou a parcela mais pobre da população, não respeitou o princípio da capacidade contributiva. Por conseguinte, podemos dizer que nossa tributação por não respeitar este princípio fere os direitos fundamentais do cidadão, principalmente o direito a uma vida digna, uma vez que o menos afortunado é tributado em termos 241 Na análise sobre da arrecadação foi considerado na tributação sobre a renda o imposto de renda, as contribuições para a seguridade social do empregado (regime geral da previdência social e regime da área pública – federal/estadual e municipal) e as contribuições do empregador. Dados: Secretaria da Receita Federal. 242 Dados : IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ( disponível em www.ipea.gov.br, acesso em 19/07/2005) 134 de consumo do mesmo modo que aquele que possui maiores posses, pois a tributação sobre o consumo não faz distinção sobre o contribuinte de fato, onde tanto o pobre quanto o rico pagam o mesmo valor sobre os bens consumidos. Assim, para haver justiça na tributação se faz necessário a definição de um sistema tributário igualitário, onde o princípio da capacidade contributiva tem grande relevância na compreensão da igualdade na tributação e na afirmação da cidadania e redução das desigualdades sociais. O princípio da capacidade contributiva vinculado à idéia de justiça, serve de instrumento à concretização dos direitos fundamentais, uma vez que respeita o direito à igualdade e os direitos à liberdade. É limitado quantitativamente pela imunidade do mínimo existencial e pelo princípio do não confisco tributário, onde garante o direito de propriedade, da livre iniciativa e, por conseguinte, colabora na concretização do propósito constitucional de uma vida digna para todos. Nas palavras de Torres243: “a capacidade contributiva do cidadão e da empresa é um espaço aberto pelas liberdades individuais ao legislador para que, no processo democrático, institua a tributação justa”. 243 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit, 2003, p. 438. 135 CONCLUSÕES 1. O poder de tributar é um dos mais fortes poderes do Estado, pois restringe a capacidade econômica individual para criar a capacidade econômica social. 2. Não há como dissociar a tributação da noção de justiça, uma vez que a atividade tributária traz em si mesma a finalidade distributiva, por definir quem e em quanto cada cidadão deve sustentar o financiamento do Estado. 3. O princípio da capacidade contributiva é um critério superior de justiça na atividade tributária, constituindo-se como um instrumento garantidor dos direitos fundamentais do cidadão, que não podem ser violados pela tributação injusta. 4. A capacidade contributiva está subordinada à idéia de justiça distributiva, uma vez que propaga a tese igualitária da distribuição da carga tributária, garantindo o respeito à dignidade do cidadão e exprimindo, assim, a finalidade de justiça fiscal visada pela Constituição Federal, permeando não somente a elaboração, mas também, a aplicação da lei e das normas constitucionais. 5. A tributação atual envolve questões de uma sociedade pluralista, desigual e injusta; assim se faz necessária a observância do princípio da capacidade contributiva na imposição tributária, pois este é uma orientação fundamental do Estado Democrático de Direito e imprescindível para o exercício dos outros direitos assegurados na Carta Magna. 6. A vinculação entre a atividade tributária e o respeito aos direitos humanos é uma tendência da doutrina contemporânea, uma vez que surge da 136 conscientização de que a tributação deve fundamentar-se na realização da justiça social para se concretizar o propósito constitucional de uma vida digna para todos. 7. Justiça tributária não significa apenas a observância das limitações da concepção política tributária, mas também uma adoção de procedimentos que permitem o equilíbrio e a razoabilidade na tributação, onde esta razoabilidade revela o ponto de equilíbrio entre a capacidade contributiva e o respeito ao mínimo vital e ao limite máximo da imposição tributária, uma vez que a tributação de acordo com a capacidade contributiva desenvolve-se segundo conceitos que priorizam o respeito ao mínimo vital, o direito de propriedade e da livre iniciativa. 8. Em nosso texto constitucional capacidade contributiva e capacidade econômica são expressões utilizadas como sinônimas. Pois nosso texto constitucional ao determinar que os impostos devam ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, não utiliza a expressão capacidade contributiva, mas capacidade econômica. Assim, para o direito brasileiro, capacidade contributiva é o mesmo que capacidade econômica. 9. A expressão “sempre que possível” utilizada no início do texto constitucional não diz respeito a uma mera recomendação ou a uma adoção facultativa do caráter pessoal dos impostos e da graduação segundo a capacidade econômica do contribuinte. Estes institutos devem ser buscados sempre que isto for possível, não tendo o legislador a discricionariedade na sua observância. 10. Quanto à aplicação do princípio, embora o texto constitucional faça referência restritiva apenas a impostos, outras espécies tributárias podem levar em consideração a capacidade contributiva. Assim, nos termos do § 1º, do artigo 145 da Constituição Federal de 1988, os impostos devem ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte e sempre que for possível, devem ter caráter 137 pessoal. Já as demais espécies tributárias, independente de previsão constitucional expressa, admite-se a sua influência, embora em relação a estas funcione apenas em seu aspecto negativo, ou seja, no princípio da incapacidade contributiva. 11. Há parâmetros para o exercício da tributação extrafiscal, mas o princípio da capacidade contributiva é afastado nesta prática. 12. O princípio da capacidade contributiva não deve ser interpretado como simples forma de manifestação do princípio geral da isonomia, embora exista uma relação muito grande entre os dois princípios, pois ambos são excelentes instrumentos na realização da justiça tributária. 13. A visão de que o tributo é uma norma de rejeição social é equivocada sob o ponto de vista jurídico e ultrapassada na perspectiva de uma sociedade dinâmica que se deseja mais justa e solidária. O dever fundamental de pagar tributos se transmuda no exercício de solidariedade dos membros da comunidade na implementação dos direitos sociais que são custeados entre todos os cidadãos que demonstrem capacidade contributiva, utilizando a capacidade de suportar o ônus tributário como critério para graduação dos tributos e para distinguir os iguais dois desiguais. 14. O pagamento do tributo é um dever fundamental do cidadão, mas no mesmo nível este tem o direito fundamental de só pagar aquele tributo ou aquela carga tributária autorizada pela Constituição Federal, e não deve ser apenas formal, é indispensável que seja justa, pois uma tributação excessiva, com efeito de confisco é passível de controle pelo Poder Judiciário. 15. O critério da proporcionalidade é uma política mais eficaz do que a progressividade para melhor distribuição do ônus tributário em conformidade com a capacidade contributiva. 138 16. O princípio da capacidade contributiva é de verificação bastante complexa e insuscetível de controle jurisdicional; é limitado pelos direitos fundamentais, uma vez que é assegurada a não tributação do mínimo vital e a proteção do cidadão contra o excesso da exigência tributária. Assim, estes princípios integram a norma jurídica tributária como critérios limitadores da imposição tributária, e, por conseguinte, limitam quantitativamente o princípio geral tributário da cobrança de tributos em conformidade com a capacidade daquele que suportará o ônus tributário. 17. A proteção do mínimo vital se coloca como um limitador da capacidade contributiva no seu patamar inferior, pois esta apenas começa quando satisfeita aquela, uma vez que o patrimônio mínimo não denota capacidade de contribuir para as despesas do Estado, e sim ausência desta. 18. A não tributação do mínimo vital não tem por objetivo apenas a preservação da sobrevivência digna do cidadão isoladamente considerado, destinase também a proteger a estrutura familiar e as atividades produtivas. 19. A apuração do mínimo vital deve se dar através dos dados sociais que permitam verificar as necessidades básicas dos membros da sociedade, uma vez que estas necessidades podem variar no tempo de acordo com a conjuntura política e econômica. 20. A capacidade contributiva como fundamento do princípio do mínimo vital não reflete com exatidão a completa dimensão do que representa esse princípio para o Direito; deve-se conjugar o princípio da capacidade contributiva em seu aspecto negativo com o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade. 21. O princípio constitucional que veda a tributação com efeito de confisco é uma derivação do princípio da capacidade contributiva, uma vez que quando o 139 tributo assume o caráter confiscatório, temos que este está excedendo a capacidade contributiva e ferindo os direitos fundamentais do contribuinte consagrados constitucionalmente. Esta vedação é uma limitação ao poder fiscal do Estado e um instrumento a serviço do sistema tributário justo que corresponde à conciliação do interesse público de arrecadar tributos e o interesse particular de defender a sua propriedade contra o arbítrio estatal, uma vez que o poder de tributar deve envolver também o dever de conservar. 22. Os limites confiscatórios devem ser verificados sobre a carga tributária como um todo, sendo que o limite da carga tributária deve ser definido através da observância da capacidade contributiva, pois é através desta que se pode determinar o limite que separa a tributação legítima do confisco inconstitucional. 23. O princípio do não-confisco tributário é uma imunidade tributária, porque exclui a competência dos entes públicos para instituírem tributos com efeito de confisco, sendo um princípio vinculado ao valor liberdade, mas também se vincula ao valor justiça, uma vez que se identifica com o princípio da proporcionalidade e com o princípio o princípio da razoabilidade. 24. Toda carga tributária que ultrapasse o princípio da razoabilidade impedindo o contribuinte de desenvolver as condições de sua cidadania, seja no nível pessoal, social ou profissional, assume as características de confisco. 25. O Brasil apesar de ter uma grande desigualdade de renda, com grande parte da população vivendo abaixo do nível de uma vida digna, possui uma tributação alta sobre o consumo, gerando uma carga tributária distorcida, uma vez que a tributação sobre o consumo resulta numa carga tributária maior para os contribuintes indiretos, onde a verificação do princípio da capacidade contributiva é 140 mais difícil de se concretizar, e por conseqüência, onera em especial as classes menos privilegiadas. 26. O ponto máximo da carga tributária é variável segundo o momento histórico e econômico de cada época, assim é difícil e desaconselhável fixar legislativamente esse ponto máximo. Este limite deve ser definido através do balanceamento dos princípios constitucionais, buscando o equilíbrio que decorre do Estado Democrático de Direito. Enfim, podemos dizer que o fundamento jurídico do princípio da capacidade contributiva é a justiça no estabelecimento da carga tributária, preservando os direitos fundamentais do cidadão, como a liberdade, a propriedade, o direito a um mínimo vital e a solidariedade na divisão de ônus tributário que vai financiar o aparelho estatal, cumprindo assim, os objetivos fundamentais de nosso país determinados no artigo 3º de nossa Carta Magna: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. ATALIBA, Geraldo. GIARDINO, Cléber. Imposto de renda- capacidade contributiva- aparência de riqueza- riqueza fictícia- renda escritural – intributabilidade de correções monetárias. In Revista de Direito Tributário n° 38. 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DR. RICARDO LOBO TORRES (ORIENTADOR) UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF PROF. DR. FRANCISCO MAURO DIAS UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF PROF. DR. ADILSON RODRIGUES PIRES UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UERJ Rio de Janeiro, 07 de novembro de 2005. Prof. Dr. JOSÉ RIBAS VIEIRA Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito