A desconstrução da técnica da ponderação

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revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais
outubro | novembro | dezembro 2010 | v. 77 — n. 4 — ano XXVIII
A desconstrução da técnica da ponderação
aplicável aos direitos fundamentais,
proposto por Robert Alexy: uma reflexão
a partir da filosofia de Jacques Derrida
Isabelle de Baptista
Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade
de Direito de Vitória (FDV). Graduada em História pela
Universidade Federal do Espírito Santo e em Direito
pelo Centro Universitário Vila Velha. Docente no Centro
Universitário Vila Velha (UVV). Advogada.
Resumo: Este artigo se propõe a analisar a teoria de Robert Alexy, especialmente a técnica da
ponderação aplicável aos direitos fundamentais, a partir da leitura filosófica de Jacques Derrida
que propõe a desconstrução como método de trazer à tona aspectos contraditórios dos textos
carregados de toda a tradição ocidental de pensamento. Também será analisada a utilização
da teoria de Alexy no Brasil, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de uma
interpretação desconstrutora.
Palavras-chave:
Ponderação.
Direitos
fundamentais.
Princípio
da
proporcionalidade.
Argumentação. Racionalidade. Desconstrução. Logocentrismo.
Abstract: This article aims to analyse Robert Alexy’s theory, specially the balancing technique
applicable to the constitucional rights, from the reading of Jacques Derrida’s philosophy, that
proposes desconstruction as a method of bringing up contradictory aspects of texts loaded with
the whole Western tradition of thought. There will also be analysed the use of Alexy’s theory
in Brazil, principally by the Supreme Federal Court, in the perspective of the desconstructive
interpretation.
Keywords: Balancing. Constitucional rights. Proportionality principle. Reasoning. Rationality.
Desconstruction. Logocentrism.
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1 Introdução
A teoria elaborada por Robert Alexy é, atualmente, considerada uma referência para estudos na
área da Filosofia do Direito, da Teoria da Constituição e para a própria aplicação prática do Direito,
uma vez que o julgador, por diversas vezes, não consegue decidir com base, unicamente, nas
regras postas pelo ordenamento jurídico. Em muitos casos, o julgador, para implementar a melhor
decisão, necessita interpretar e ponderar pela aplicação de princípios que, em determinado caso
concreto, estão em conflito. Assim, na apreciação de casos difíceis o julgador deve ponderar ante
a tensão permanente existente entre interesses constitucionalmente tutelados.
A construção teórica feita pelo filósofo do Direito alemão é considerada como verdadeiro
divisor de águas para a moderna Ciência do Direito por permitir levar em consideração aspectos
negligenciados e afastados pelo positivismo jurídico e que tanto prejudicou o alcance da
finalidade precípua do Direito que é a satisfação da justiça, como o relevante valor dado aos
princípios constitucionais.
Segundo Alexy, o julgador deve buscar uma decisão “racional” diante de conflitos entre princípios
constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro
a análise do princípio da proporcionalidade — que se subdivide em adequação, necessidade
e proporcional idade em sentido estrito — e fazer a opção pelo princípio que contenha o
mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos
de otimização e, como tal, pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível.
Nesse caso, para Alexy, estamos diante da “lei da ponderação” que consagra que quanto
mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do
cumprimento do outro princípio que está em conflito (ou seja, a proporcionalidade em sentido
estrito). O detalhe é que para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma carga de
argumentação.
No Brasil, a teoria de Alexy tem sido muito utilizada como referencial teórico para os muitos
casos jurídicos (hard cases) em que o pano de fundo é a discussão e apreciação de causas que
envolvam conflitos de princípios.1 Todavia, uma das críticas que será travada neste artigo é
demonstrar como teorias construídas sob determinado referencial jurídico, social e histórico é
aplicado em outro ordenamento jurídico sem qualquer tipo de contextualização.
Para tanto, a reflexão crítica da teoria de Robert Alexy, principalmente no que tange à técnica
da ponderação será feita a partir da leitura da filosofia de Jacques Derrida, essencialmente em
relação à metodologia por ele denominada de desconstrução.
1 Cite-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes julgados: ADI 2716-6/RO, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 07/03/2008;
ADI 3070-1/RN, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 19/12/2007; ADI 3305-1/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 24/11/2006;
ADI 3112-1/DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 26/10/2007; ADI 3689-1/PA, Relator Ministro Eros Grau, DJ de
29/06/2007; ADI 2240-7/BA, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 03/08/2007; ADI 3489-8/SC, Relator Ministro Eros Grau, DJ de
03/08/2007; ADI 3316-6/MT, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 29/06/2007; AC0 876-MC-AgR/BA, Relator Ministro Menezes
Direito, DJ de 01/08/2008.
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Derrida, ao longo de sua vasta obra, empreende algo aparentemente ambicioso: questionar os
elementos tradicionais do pensamento ocidental, numa abordagem que não sugere a remoção
ou a extinção dos elementos e paradoxos existentes, mas, tão somente, revelá-los, trazê-los à
tona. E é neste sentido que a presente investigação caminhará. Não se trata de condenar à morte
a teoria desenvolvida por Alexy, mas de evidenciar os pontos incoerentes e controversos, acima
de tudo se observados sob a perspectiva da incidência de uma teoria não ajustada propriamente
à realidade brasileira. É preciso enfrentar tal temática, pois em nome da ponderação, do
balanceamento, verdadeiros direitos e garantias fundamentais poderão, legitimamente, serem
relativizados pelo Poder Judiciário.
Este artigo se propõe a realizar um diálogo entre os contornos teóricos da filosofia de Jacques
Derrida — enfocando seus aspectos fundamentais e a discussão desconstrutora que tece
principalmente em relação ao direito e à lei, com base na obra Força de lei: fundamento
místico da autoridade, juntamente com os pontos essenciais da teoria desenvolvida por Alexy,
para, finalmente, realizar a tarefa de desconstruir pontos contraditórios e obscuros da teoria
desse grande filósofo do Direito da atualidade. Derrida, ao efetuar a desconstrução da lei e do
direito, demonstra que a força para a criação do direito compreende um ato de violência, uma
vez que não há comprometimento com o justo, mas reflete um ato de autoridade.
Assim, apresentados os fundamentos teóricos imprescindíveis para a compreensão da discussão
central do presente artigo, compete evidenciar, a partir de uma reflexão filosófica derridiana,
como a teoria de Robert Alexy possui profundas deficiências, principalmente se analisada e
aplicada ao sistema jurídico brasileiro sem qualquer tipo de contextualização.
2 Desconstruir a teoria de Robert Alexy
2.1 Desconstruindo a Teoria da Argumentação Jurídica
Antes de adentrarmos ao tema deste capítulo, mister apresentar, sinteticamente, as bases
da filosofia de Jacques Derrida (1930-2004). O filósofo argelino dedicou-se a efetuar severas
críticas aos aspectos fundamentais do pensamento ocidental. Sua obra não compreende uma
filosofia sistemática, com contornos metodológicos, conceitos e definições bem definidos. Ao
contrário, tece sua abordagem filosófica através da identificação de aporias e neologismos
próprios. Sua filosofia baseia-se num processo de leitura com outras obras ou de situações em
que efetua um diálogo crítico.
O resgate do movimento e da criatividade são as grandes pretensões do filósofo, em contraposição às
leis do pensamento ocidental, que são: a simplicidade, pois em tudo existe uma realidade essencial,
desprovida de qualquer contradição; homogeneidade, ou melhor, tudo possui uma mesma substância
ou ordem; e separada e distinta de qualquer complexidade que envolva a discussão sobre a origem e
a consciência de si. Tudo o que está fora dessas “leis”, tende a ser excluído. Dessa forma, exclui-se
a complexidade, a mediação e a diferença, passando a serem tratados como “impureza”.
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Outro traço característico do pensamento moderno é a instituição de conceitos sempre voltados
para significados apresentados de forma dual: sensível/inteligível, ideal/real, interno/externo,
bem/mal, bom/ruim, ficção/verdade, natureza/cultura, fala/escrita, atividade/passividade
etc. Para fazer a crítica a esse dualismo tão presente na metafísica ocidental, Derrida propõe a
noção de différance, melhor traduzido para o português como diferença, que remete tanto às
diferenças semânticas, genéricas, históricas, étnicas, culturais como também à prorrogação do
sentido final, da verdade estabelecida, de forma que não há uma verdade e sim sua construção
permanente e infinita, diante da impossibilidade de deter a verdade em uma positivação. Há
sempre movimento para re-introduzir a negatividade da dúvida, que propositadamente empurra
a análise da verdade sempre para frente.
Doutrina
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Toda noção de verdade, na concepção nascida do logos, que gera uma “racionalidade”
hegemônica, simplista e homogênea que é o alvo da crítica de Derrida e que denominou de
logocentrismo.
Derrida também contesta o papel da escritura como ocupante de um papel secundário em
relação à fala. Comumente, a fala é associada à razão e à racionalidade (aqui utilizada com
a noção grega de logos) e a voz é aceita como a mais próxima da verdade, por refletir a
consciência individual. A escritura, por sua vez, é considerada como secundária ou suplemento
da voz por se tratar de uma tecnologia criada humanamente.
A importância desse movimento de desconstrução é a ampliação dos quadros de referência que
normalmente moldam nossas concepções e são tidas como verdades e acabam por proporcionar
uma restrição em nossa compreensão do mundo.
A separação entre o discurso e a escrita é insustentável para Derrida. O que está subjacente a
este entendimento é incessante trabalho filosófico de trazer à tona situações que aparentemente
são negligenciadas se vistas sob o olhar da simplicidade e da unidade. A escritura, em seu
sentido mais estrito, é virtual (como aquilo que não se realizou, mas é possível de se realizar),
e não um reflexo secundário e fenomenal. A escritura não apenas reflete o que foi produzido,
numa visão simplesmente subsuntiva, mas o que torna a produção possível.
Essas considerações são essenciais para proceder à desconstrução da teoria proposta
por Robert Alexy. Inicialmente, cabe contextualizar a produção teórica desse importante
jurista da atualidade. Segundo o relato do próprio autor no Prefácio à obra Teoria da
Argumentação Jurídica, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha exigiu, mediante a
Resolução de 14 de fevereiro de 1973, que as decisões dos seus juízes deveriam basear-se
em “argumentações racionais”.
Então, a questão foi saber o que é racional ou se a argumentação jurídica racional é algo que
interessa não apenas aos juízes do Tribunal Constitucional Federal alemão e, também, a toda
a comunidade jurídica e ao cidadão ativo na seara política. Para Alexy, a possibilidade de uma
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argumentação jurídica racional depende não só para o caráter científico da Ciência do Direito,
mas também para a legitimidade, das decisões judiciais. Dessa forma, propõe na sua obra
Teoria da Argumentação Jurídica de 1976, como deve ser entendida a argumentação jurídica,
como se efetua e com que alcance ela é possível.
Também foi um marco para Alexy a questão do novo caráter assumido pelos direitos fundamentais
no Estado Democrático de Direito, em virtude da positivação desses direitos nas constituições
modernas, com vigência imediata e, acima de tudo, o amplo controle feito por meio do Tribunal
Constitucional Federal alemão.
Dessa forma, Alexy se preocupou em dar a devida interpretação racional a esses direitos e visualizou
a necessidade de métodos específicos para interpretação e aplicação dos direitos fundamentais,
em razão da grande vagueza das formulações dos catálogos desses direitos. Nesse contexto,
publica sua importante obra denominada Teoria dos Direitos Fundamentais em 1985.
Quanto a esse aspecto, estamos diante da situação denominada por Derrida como logocêntrica,
ou seja, por mais que haja contribuição para o Direito, a ânsia da fidelidade à racionalidade,
importa na produção de uma simplicidade, homogeneidade e esgotamento da real complexidade
dos fenômenos jurídicos, extremamente prejudicial, pois se trata, na verdade, de estarmos
diante de uma nova roupagem à “camisa de força” conferida pelo positivismo ao Direito de
completa vinculação à formalidade, mas, agora, com a utilização de um discurso de satisfação
e efetivação da justiça.
É de se questionar até que ponto o juiz ao decidir com base na incidência de argumentos opta
pela decisão mais “racional”. Ora, a linguagem, como nos adverte Derrida, é composta de
elementos que vão muito além dos aspectos externos que envolvem o significante2 e o significado3
dos signos, mas envolvem aspectos internos que são arquitetadamente ocultados. Dessa forma,
é possível que o magistrado leve em consideração elementos internos que importem na opção
de um argumento em detrimento do outro, favorecendo a ocultação dos reais elementos que
levaram ao seu convencimento.
O argumento envolve um aspecto pouco levado em consideração: a persuasão. Nesse sentido,
o nível de questionamento se amplia ainda mais, diante da dúvida de se saber aferir com
precisão até que ponto o magistrado não é persuadido por conta de uma carga de valorização de
argumentos artificiosos capazes de interagir no processo de formulação da decisão jurídica.
Segundo Alexy, a argumentação jurídica leva em consideração os vetores deontológicos básicos
das questões práticas: ordenar, proibir ou permitir, assim, a argumentação jurídica é um caso
especial de argumentação prática em geral, mas se torna especial pelo fato de estar situada
sob uma série de vínculos institucionais que se pode caracterizar como vinculação à lei, ao
precedente e à dogmática, que se configuram como limites ao julgador.
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2 A imagem acústica, ou seja, a impressão psíquica do som na reprodução de um signo.
3 O conceito da representação do signo.
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Dessa forma, o magistrado para efetuar a argumentação prática limita-se à lei, ao precedente
e à dogmática para alcançar assim a “decisão mais racional”. Mas a pergunta que se coloca: ser
racional é ter coerência com a verdade? Derrida, ao criticar o que denominou de logocentrismo,
ou seja, o império do logos, demonstra que em nome da razão não há qualquer comprometimento
com a verdade. A forma se torna mais relevante que a própria verdade. Nesse sentido, como
aferir que o julgador não está diante de uma verdade racionalmente construída? Logo, a dúvida
permanece: até que ponto a teoria de Alexy, de fato, é considerada um avanço em relação ao
positivismo de Kelsen e Hart.
Doutrina
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2.2 Desconstruindo a Teoria dos Princípios e a Técnica da Ponderação
Alexy aperfeiçoa a construção teórica elaborada por Ronald Dworkin, filósofo do Direito de
Oxford, que iniciou uma grande discussão jurídica a respeito do seguinte questionamento: para
cada caso jurídico, há uma única resposta correta?
A tese de Dworkin contrapõe-se ao sistema de regras positivas de Kelsen e Hart em que o
sistema jurídico é composto por regras, regras válidas e/ou eficazes. Se diante da vagueza da
linguagem da norma e diante de casos não regulados por leis positivas, neste espaço vazio,
não cabe ao juiz agir de forma subjetiva, levando em consideração a utilização de métodos. É
preciso buscar no sistema de regras a resposta, utilizando-se de critérios como o hierárquico,
lex superior derogat lex inferiorem; o critério da especialidade, lex specialis derogat lex
generalis; e o critério cronológico, lex posterior derogat lex priorem.
Dworkin, contrapondo a esse modelo de regras do sistema jurídico, propõe um modelo de
princípios. Por este modelo, o sistema jurídico é composto por regras e, também, por princípios
jurídicos que devem permitir que o julgador encontre uma única resposta correta nos casos em
que somente as regras não determinam a única resposta correta. Esse julgador, “Hércules”,
dever ser capaz de decidir com habilidade, sabedoria, paciência e com perspicácia, portanto,
apto a encontrar a única resposta correta.
Para Alexy, a teoria de Dworkin estabelece uma grande quantidade de questionamentos e intenta
aperfeiçoar tal teoria, propondo a (i) Teoria dos Princípios e a (ii) teoria da argumentação
Jurídica, que leva em consideração o critério de razão prática.
A teoria dos princípios é um dos principais aspectos da teoria de Robert Alexy. Segundo ela, as
normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais são distinguidas entre dois tipos
de normas: as regras e os princípios. Tanto as regras como os princípios devem ser compreendidos
como normas porque ambos dizem o que deve ser. Isto é, ambos podem ser formulados com a
ajuda das expressões deônticas básicas de ordem (mandado), de permissão e de proibição.
Para ele, os princípios poderiam ser caracterizados como mandados ou ordens de otimização
(optimierungsgebote). Nas palavras de Alexy, “os princípios são normas que ordenam que algo
seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais/táticas
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existentes.”4 Ou seja, os princípios são mandados de otimização que podem ser cumpridos em
diferentes graus e na medida devida do seu cumprimento, dependente das possibilidades reais
e concretas, como também das possibilidades jurídicas existentes no momento da aplicação
efetiva do princípio.
Já em relação às regras, ocorre o contrário. As regras são normas que exigem um cumprimento
pleno e que podem ou não ser cumpridas. Caso a regra seja válida, logo é obrigatório fazer
exatamente o que ordena, nem mais nem menos, portanto, as regras contêm determinações no
campo do fático e juridicamente possível.
Por todo o exposto, conclui-se que, se a norma a ser aplicada exige a maior medida possível de
cumprimento em relação às possibilidades jurídicas e fáticas, estamos diante de um princípio.
Todavia, se a norma exige somente uma determinada medida de cumprimento, trata-se de uma
regra. Sobre essa temática, esclarece Alexy:
A base do argumento de princípio forma a distinção entre regras e princípios.
Regras são normas que ordenam, proíbem ou permitem algo definitivamente
ou autorizam algo definitivamente. Elas contêm um dever definitivo. Quando
os seus pressupostos estão cumpridos, produz-se a consequência jurídica. Se
não se quer aceitar esta, deve ou declarar-se a regra como inválida e, com
isso, despedi-Ia do ordenamento jurídico, ou, então, inserir-se uma exceção
na regra e, nesse sentido, criar uma nova regra. A forma da aplicação da regra
é a da subsunção. Princípios contêm, pelo contrário, um dever ideal. Eles são
mandamentos a serem otimizados. [...] A forma de aplicação para eles típica é,
por isso, a ponderação.5
O critério empregado por Robert Alexy afirma que entre regras e princípios existe não somente
uma diferença de grau, quantitativa, mas uma diferença de natureza qualitativa.
Os princípios não possuem um caráter de definitividade e subsunção como as regras, mas ordenam
que algo deve ser realizado na maior medida possível, levando em consideração possibilidades
jurídicas e fáticas postas no caso concreto. Assim, os princípios não são mandados definitivos,
mas apenas um dever prima facie. Os princípios representam razões que podem ser desprezadas
ou assimiladas por outras razões opostas, não apresentando, de imediato, uma solução para
resolver a problemática existente na relação entre uma razão e sua oposição. Por isso, os
princípios carecem de conteúdo de determinação com relação aos princípios contrapostos e às
possibilidades do mundo fático.
De forma diversa é o caso das regras. Como exigem que se aja exatamente como o que se
ordena, as regras contêm uma determinação no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas.
Essa determinação pode fracassar, o que pode conduzir à invalidez da regra; mas se não for o
caso, vale definitivamente, cumpre exatamente o seu comando deôntico.
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4 ALEXY, Robert. Derecho y razón práctica. México: Biblioteca de Ética, Filosofia del Derecho y Política, 2002. p. 13 (tradução
nossa).
5 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 37.
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Por isso, em um primeiro momento é possível deduzir que os princípios possuem um caráter
prima facie e as regras um caráter definitivo. Todavia, Alexy propõe um modelo diferenciado
do defendido por Dworkin, quando diz que as regras, quando válidas, são aplicadas de uma
maneira do tudo-ou-nada (all or nothing fashion) e os princípios contêm uma razão que indica
uma direção da decisão, de acordo com a dimensão de peso.
Doutrina
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Em relação às regras, a necessidade de um modelo diferenciado resulta do fato de que é
possível, com motivo da decisão de um caso, introduzir nas regras uma cláusula de exceção,
assim, a regra perde seu caráter definitivo para a decisão do caso. E a regra de exceção pode
levar a discussão para a base de um princípio.
Ademais, o caráter prima facie dos princípios pode ser reforçado se for introduzida uma carga
de argumentação em favor de determinados princípios ou de determinados tipos de princípios,
especialmente se tratarem de direitos fundamentais.6
De todo o apresentado, verifica-se que as regras e os princípios são razões de tipos diferentes.
Os princípios sempre são razões prima facie; as regras, a menos que tenha uma exceção, são
razões definitivas.
Para identificar o ponto forte da teoria dos princípios é preciso fixar a semelhança dos princípios
com o “valor”, já que “toda colisão de princípios pode expressar como uma colisão entre valores
e vice-versa”7 e que o problema identificado por ocasião da colisão corresponde também a um
problema de hierarquia de valores. Para Alexy, é possível uma teoria dos princípios que seja
mais que um catálogo e que consista de três elementos:
I. um sistema de condições de prioridade: por ocasião de colisão entre princípios,
deve-se resolver mediante a aplicação da ponderação no caso concreto, sendo
possível, também, estabelecer relações de prioridade com a decisão de outros
casos. As condições de prioridade estabelecidas até o momento num sistema
jurídico e as regras que se correspondem proporcionam informação sobre o
peso relativo dos princípios. Dessa forma, ao elencar prioridades, permite-se a
possibilidade de um procedimento de argumentação jurídica, de forma a eleger
o princípio que será aplicado ao caso concreto.
II. um sistema de estruturas de ponderação8: os princípios, enquanto mandados
6 Segundo Alexy, os direitos fundamentais são considerados como o núcleo de todo o constitucionalismo discursivo e propõe
que os direitos do homem e os direitos fundamentais possuem uma relação estreita. Os direitos do homem possuem como
características os seguintes aspectos: são (i) universais, (ii) fundamentais, (iii) preferenciais, (iv) abstratos e (v) morais. Já os
direitos fundamentais, por outro lado, são os direitos que foram acolhidos em uma constituição com o intuito de positivar os
direitos do homem. A positivação não anula os direitos do homem, mas confere validade jurídica a eles. (ALEXY, Robert. Direitos
fundamentais no estado constitucional democrático. In: ______. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008, p. 10).
7 ALEXY, op. cit., p. 16 (tradução nossa).
8 Conforme leciona Alexy, “o princípio da proporcionalidade consiste de três princípios: os princípios da adequação, da necessidade
e da proporcionalidade em sentido estrito. Todos os três princípios expressam a ideia de otimização. Os direitos constitucionais
enquanto princípios são comandos de otimização. Enquanto comandos de otimização, princípios são normas que requerem
que algo seja realizado na maior medida possível, das possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios da adequabilidade e
da necessidade dizem respeito ao que é fática ou factualmente possível. O princípio da adequação exclui a adoção de meios
que obstruam a realização de pelo menos um princípio sem promover qualquer princípio ou finalidade para a qual eles foram
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de otimização, exigem uma realização a mais completa possível, em relação
com as possibilidades jurídicas e fáticas. Quanto às possibilidades fáticas, leva
aos conhecidos princípios de adequação e necessidade. Quanto às possibilidades
jurídicas, implica numa “lei da ponderação” que pode ser formulada da seguinte
forma: quanto mais alto o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser
a importância do cumprimento do outro (proporcionalidade em sentido estrito).
Isso significa que uma teoria dos princípios conduz a estruturas de argumentação
racional, o que não significa a disposição deles num simples catálogo.
III. um sistema de prioridades prima facíe: estabelecem cargas de argumentação
e criam certa ordem no campo de princípios. Assim, não contém uma
determinação definitiva e sim uma determinação mais forte dos argumentos
em favor de uma prioridade de um princípio que julga em sentido contrário.
Com isso, a ordem depende de uma argumentação.
Tais considerações são relevantes para a observância mais aprimorada da teoria dos princípios e
da técnica da ponderação. Sobre essa análise, serão utilizadas as reflexões tecidas por Jacques
Derrida em sua obra Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, em que fomenta a
tarefa de desconstruir questões como a justiça e o direito.
Derrida deixa às claras que o direito possui, comumente, o que denominou de “enforceability”,
melhor traduzido como “aplicabilidade”. Segundo o filósofo argelino, não há direito sem força,
o direito se torna justiça na medida em que se transforma em lei para, em seguida, ser aplicado
justamente com a utilização da força. Nesse sentido, “[...] o direito é sempre uma força
autorizada, uma força que justifica ou tem aplicação justificada, mesmo que essa justificação
possa ser julgada, por outro lado, injusta ou injustificável.”9
A força para criar o direito compreende um ato de violência, pois o direito é observado não
porque ele é justo, mas sim porque reflete a imposição de uma autoridade. Daí a necessidade
de desconstrução. Ao reconhecer o direito como algo criado, e não como um direito natural, é
possível a direção do direito para aquilo socialmente reconhecido como justiça. Assim, a força
do direito não se dá por um direito natural, mas por sua força simbólica.
Nesse sentido, por mais que a técnica de ponderação proposta por Robert Alexy seja um meio,
argumentativamente construído, que forneça caminhos a fim de que o julgador tenha em suas
mãos um método para efetivar a escolha do princípio aplicável ao caso concreto, caso estejam
em conflito, observa-se que o Direito é implementado e imposto pelo magistrado não como um
fato natural, mas artificialmente construído para que, no caso sob análise, a melhor opção seja
a escolhida e o melhor princípio cumpra, de fato, seu mandado de otimização. Dessa forma,
em razão do cumprimento de um método, estamos diante de um Direito que se impõe de forma
adotados. [...] O balanceamento sujeita-se a um terceiro sub-princípio da proporcionalidade, o princípio da proporcionalidade
em sentido estrito. Esse princípio expressa o que significa a otimização relativa às possibilidades jurídicas (legal). ALEXY, Robert.
Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. [Tradução de Menelick de Carvalho Netto]. Ratio Juris. v. 16. n. 2, p.
135-136, jun. 2003.
9 104
DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2007. p. 7-8.
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legítima, por refletir, necessariamente, a imposição de uma autoridade e, consequentemente,
revestindo-se de violência.
Diante de conflitos entre princípios constitucionais, que traduzem direitos e garantias
fundamentais, a aplicabilidade de um deles em detrimento de um outro, baseado em Derrida,
sempre será um ato de força, de incidência necessária da violência da autoridade envolvida
neste caso. Dessa forma, muito se distancia da tão proclamada e almejada justiça.
Doutrina
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Ao efetuar a desconstrução da lei e do Direito, Derrida identifica três aporias em relação à
justiça e ao direito, consideradas como verdadeiros axiomas pela sociedade ocidental.
A primeira refere-se a “epokhé da regra”. É comum acreditarmos na liberdade, de tal modo
que, para ser justo ou até mesmo injusto, cada indivíduo deve ser responsável por sua decisão,
sendo que nessa esfera de liberdade ou escolha da decisão do justo deve haver simetria com
uma lei, uma prescrição ou uma regra. Se houver margem para a realização de decisões, esta
deverá ser conforme o direito e, consequentemente, justa. Nesse caso, por exemplo, o juiz
quando decide não deve apenas seguir uma lei geral, mas aprová-Ia, esclarecer seu valor,
interpretá-Ia em cada novo caso, pois o sentido do texto da lei está sempre aberto, à espera
de nova interpretação.
Acredita-se que para cada caso deverá existir uma decisão justa, diferente e interpretada
de forma única. Nesse sentido, Derrida chega a identificar a tarefa do julgador como uma
verdadeira “máquina de calcular”. Assim, a justiça enquanto aporia, compreende a imposição
de um sistema, tido como justo, como algo que nunca é aqui e agora, no presente, mas que
continua sendo válido, pois traz em si a possibilidade de ser aquilo a que se predispõe, mas em
outro caso, ou seja, no futuro. Dessa forma, além de “justo”, para Derrida o melhor seria dizer
legal ou legítimo, em conformidade com um direito, regras ou convenções que “autorizam o
cálculo”. Pelo exposto, verifica-se que, no direito, a questão da justiça é, estrategicamente,
enterrada e dissimulada.
Nesse caso, o julgador, ao implementar a técnica da ponderação, nada mais está do que
reproduzindo a “máquina de calcular”, como nos adverte Derrida. O alcance do justo está
muito distante dessa tarefa, quiçá mecânica, de cálculo, já que a ponderação será efetivada
por meio da utilização do princípio da proporcionalidade que importa na observância de
três subprincípios: primeiro, a análise da adequação; segundo, a necessidade; e terceiro, a
proporcionalidade em sentido estrito. É a verificação, matematizada, desses três critérios que
importará na aplicação racional da técnica da ponderação.
Pela adequação, o julgador deve apreciar para que a restrição de um princípio seja idônea
o suficiente para garantir a sobrevivência do outro, apesar de afastado; pela necessidade,
o julgador irá cuidar para que a restrição de um princípio deva ser a menor possível para
a proteção do interesse contrário. Já a proporcionalidade em seu sentido estrito impõe a
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observância de que a restrição a um interesse deva compensar o grau de sacrifício imposto ao
interesse antagônico.
Como bem se observa dessa fórmula “perfeitamente” matemática, o sacrifício, o ato de violência, a
imposição do entendimento de uma autoridade é o cerne de um discurso argumentativamente construído
para a efetivação de uma dissimulada justiça que terá que conviver com essas contradições.
A ponderação leva a uma visão simplista dos conflitos envolvidos, a partir do momento em
que o sacrifício de relevar um princípio constitucionalmente tutelado sempre será um ato de
violência da autoridade. Ademais, os limites para o uso da argumentação são, segundo Alexy,
a lei, a dogmática e os precedentes. Dessa forma, um entendimento alcançado por meio da
ponderação e aplicado a um caso concreto, servirá de limite para demais casos concretos, e
o questionamento que se coloca é até que ponto um caso difícil é igual a outro que permita
a aplicação, quase subsuntiva, de um entendimento “ponderado” anteriormente. Será que
os princípios que se determinam a ser um mandado de otimização não serão paulatinamente
colocados no patamar de regras que se predispõe a serem aplicadas de forma subsuntiva?
Dessas reflexões, passemos à análise da segunda aporia identificada por Derrida que denominou
de “assombração do indecidível”. Esta aporia, na verdade, trata-se de uma variante da
primeira, pois o filósofo apresenta o entendimento comum de que só há o consenso de aplicação
da justiça se houver uma decisão indecidível, ou seja, se houver dúvida na escolha entre as
várias interpretações possíveis. Se não houver essa dúvida, trata-se de aplicação programável
e calculada da lei — “Ela seria, talvez, legal, mas não seria justa.”10
Derrida, ao revelar esta aporia, nos alerta da tendência de identificar o alcance da justiça
se o julgador teve que fazer opções e teve, em suas mãos, um caso concreto aparentemente
indecidível. É a força de sua autoridade que impõe a justiça.
Mais uma vez não há como fazer uma conexão com a técnica da ponderação. Nossa tradição de
matematizar os conflitos, leva-nos a uma concordância, quase mitológica, pelas decisões que
foram arduamente sopesadas e balanceadas pela autoridade. Derrida nos leva a compreender
que a concepção de justiça está diretamente ligada à noção de ética para com o outro, todavia, a
decisão escolhida jamais consegue atender inteiramente a singularidade do outro. Jamais um ato
de violência pelo uso “racional” da força conseguirá de fato promover a justiça. Eis o simulacro,
eis a dependência imposta à sociedade de que a substituição estatal na resolução dos conflitos,
sob o argumento da jurisdição única, é a forma de se garantir o legítimo alcance da justiça.
O julgador, segundo Alexy, ao ponderar, deve levar em consideração os resultados concretos que
surtirão da decisão, já que para a solução dos casos difíceis importará em certa discricionariedade
para o julgador que poderá levar em consideração possíveis resultados concretos. Ou seja,
quanto maior o grau de abordagem da subjetividade envolvida na análise feita pelo julgador,
melhor a motivação pela escolha de um princípio em detrimento do outro.
10 106
DERRIDA, op. cit., p. 47.
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Segundo Derrida, eis um grande “fundamento místico da autoridade”, pois jamais o julgador
conseguirá inteiramente compreender a singularidade do outro e, dessa forma, a justiça que
acredita implementar trata-se, tão somente, da imposição de sua força. A justiça, nesse caso,
configura como um espectro que sempre fica alojado, independente da opção feita, já que
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[...] se há desconstrução de toda presunção à certeza determinante de uma
justiça presente, ela mesma opera a partir de uma “ideia de justiça” infinita,
infinita porque é irredutível, irredutíveI porque devida ao outro, ­devida ao
outro, antes de qualquer contrato, porque ela é vinda, a vinda do outro como
singularidade sempre outra.11
Finalmente, a terceira aporia identificada por Derrida leva em consideração que a justiça se relaciona
com a “urgência que barra o horizonte do saber”, ou seja, diante do entendimento reiterado de que
a justiça é algo que tem de estar no presente, dar conta de problemas atuais, pois “[...] a justiça,
por mais inapresentável que permaneça, não espera. [...] Uma decisão justa é sempre requerida
imediatamente, de pronto, o mais rápido possível.”12 Por ser dessa forma, a justiça não poder ser
tratada como um ideal que pode ser alcançado, deve ser aprofundada a sua análise e reflexão.
Todavia, a justiça se apresenta como aporia para Derrida, não se realiza no presente, tampouco
é refletida para se realizar no futuro. Na verdade ela nunca se efetiva, pois considerando que a
justiça reflete a responsabilidade com o outro, essa postura de alteridade é inalcançável.
Comumente somos convencidos do discurso de que quanto mais célere for a satisfação dos
conflitos, mais se alcança a justiça. O problema que se coloca é que quanto mais célere, mais
o julgador terá que se pautar na observância dos precedentes, da dogmática, da legislação
posta — e como visto é imposta pelo uso da coerção — fazendo de cada caso concreto mais um
diante de tantos, banalizando a complexidade dos conflitos humanos envolvidos em cada caso,
simplificando o que é, por sua natureza, complexo.
A técnica da ponderação pode muito contribuir para a “urgência que barra o horizonte do
saber”, como identificou Derrida, pois a partir do momento que em nome de uma celeridade,
capaz de proporcionar a satisfação da justiça, entendimentos anteriores são praticamente
subsumidos a novos casos difíceis, tornando o Direito cada vez mais imparcial, injusto e fruto
do exercício da violência pela autoridade.
Segundo o filósofo, a justiça não se refere somente a um conceito jurídico ou político, diante
da possibilidade de se abrir à transformação, à refundição ou refundação do próprio direito
e da política e, a cada avanço, é preciso, novamente, reconsiderar e reinventar os próprios
fundamentos do direito.
[...] ‘Talvez’, é preciso sempre dizer talvez quanto à justiça. Há um porvir para a
justiça, e só há justiça na medida em que seja possível o acontecimento que, como
acontecimento, excede ao cálculo, às regras, aos programas, às antecipações
11 DERRIDA, op. cit., p. 49 (grifo do autor).
12 DERRIDA, op. cit., p. 51 (grifo do autor).
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etc. A justiça, como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas
é a chance do acontecimento e a condição da história. [...] Esse excesso da
justiça sobre o direito e sobre o cálculo, esse transbordamento do inapresentável
sobre o determinável, não pode e não deve servir de álibi para ausentar-se das
lutas jurídico-políticas, no interior de uma instituição ou de um Estado, entre
instituições e entre Estados. Abandonada a si mesma, a ideia incalculável e
doadora da justiça está mais perto do mal, ou do pior, pois ela pode sempre ser
reapropriada pelo mais perverso dos cálculos. [...] Uma garantia absoluta contra
esse risco só pode saturar ou suturar a abertura do apelo à justiça.13
Essas três contradições existentes e aceitas axiomaticamente são reveladas por Derrida
e demonstram a sua ânsia pela justiça, capaz de desconstruí-Ia e almejar a construção de
um direito para além dos limites por ele mesmo definidos. É preciso ter comprometimento e
consciência do que está por vir, do que está para acontecer, a fim de ser possível a reflexão, o
repensar, o reanalisar das construções previamente estabelecidas e fomentar o movimento, o
diálogo, a mudança e, porque não, a justiça.
A intenção deste trabalho não é condenar a teoria de Alexy à sua própria sorte. Ao contrário, é
trazer à luz incoerências que, se não forem observadas pela autoridade, importará muito mais
no implemento da violência do que propriamente no alcance da justiça.
Nesse sentido é que nos adverte Derrida, a autoridade deve estar comprometida não apenas
com a formalidade, com as normas que refletem a imposição de atos de violência, com a
matematização da busca de soluções para os casos concretos, mas deve ter um total apego com
o outro, com os interesses realmente relevantes para sujeitos envolvidos no conflito, ao revés,
em nome da celeridade, da formalidade e da pretensa racionalidade, o julgador pode fazer a
opção pela violência que se coloca, nesse caso, implícita ao seu dever profissional.
2.3 Desconstruindo a tradução
Na obra Torres de BabeI, Derrida enfrenta aquilo que é a sua pedra de toque: o processo
de tradução, já que, num primeiro olhar, promove a abertura e o reconhecimento de outras
línguas, culturas, contextos e sujeitos.
Assim, a tradução destina-se a cumprir a sua vocação de confluir todas as línguas, diante do
reconhecimento do seu passado supra-histórico, babélico,14 reconciliando o que fora dispersado.
Derrida intervém nesta obra, dialogando com Walter Benjamin, e nos alerta que, em razão das
diferenças existentes, qualquer tentativa de plenitude e centralização se torna inviável. Diante
do reconhecimento desse fato, eis que se torna imprescindível a tarefa do tradutor.
13 14 108
DERRIDA, op. cit., p. 51 (grifo do autor).
Trata-se de uma referência que Derrida utiliza a respeito da passagem bíblica, constante no livro de Gênesis que relata a revolta
organizada pelo líder tirano, cujo intento era construir a Torre de Babel para unir a terra ao céu, a fim de centralizar o poder
e os povos até então reunidos. Em sua ira, Deus dispersa os povos, dando-lhes línguas diferentes, frustrando, dessa forma, o
intento centralizador do tirano.
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A tradução coloca-se como forma suplementar de promover a aproximação entre as línguas,
contudo, essa intenção de aproximação por si só não é capaz de apagar as diferenças
existentes. Além disso, é mister valorar o endividamento da tradução em relação ao original,
as repercussões da obra traduzida e sua inserção em contextos que, por sua natureza e gênese,
são essencialmente diferentes. O problema que se coloca é que como obras traduzidas são
assimiladas, não no sentido e contexto no qual foram escritos, mas segundo as necessidades de
quem as interpreta, capazes de promover verdadeiras adaptações convenientes.
Doutrina
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Esse raciocínio é fundamental para as conclusões que se almeja alcançar ao final deste artigo.
Pretende-se demonstrar que a tarefa de traduzir não é imparcial, não consegue trazer consigo
toda a complexidade de uma realidade para a qual uma teoria foi elaborada. Simultaneamente,
o original torna-se tributário do seu tradutor que impregna, naturalmente, suas próprias marcas
no texto traduzido.
Conforme entrevista concedida ao jornal Valor Econômico de 09/06/2008, o Presidente do
Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, manifestou-se no sentido de que o Tribunal
é competente para suprir as deficiências do Poder Legislativo, em razão de que os Poderes do
Estado devem ser harmônicos entre si, devendo, portanto, trabalhar de maneira ativa para a
melhor elaboração das leis na sociedade.
Para o Ministro, os parlamentares representam a população pelo voto que recebem e o Supremo
Tribunal Federal faz a “representação argumentativa” da sociedade. A base teórica que
fundamenta tal pensamento é a tese do filósofo alemão Robert Alexy para quem os tribunais
corrigem distorções do Legislativo.
Para tanto, o STF vem fomentando um ambiente mais democrático com a participação como,
por exemplo, de amicus curie, fazendo do Tribunal um espaço para a argumentação jurídica e
moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições públicas, conferindo, dessa
forma, mais legitimidade às suas decisões.
Ora, a tese acima descrita foi pensada e formulada para um contexto jurídico, para um modelo
de organização social, bem diversa da realidade brasileira. Robert Alexy desenvolveu essa
teoria diante do agigantamento que os direitos e garantias fundamentais passaram a ter nas
Constituições modernas. No hemisfério Sul, estamos, ainda, formando nossa tradição política,
fortemente influenciada pela colonização, em nosso caso, a portuguesa. Estamos praticamente
num processo de existencialismo constitucional, reconhecendo que somos tutelados por uma
ordem constitucional, repleta de garantias, e, aos poucos, vamos nos reconhecendo como
integrantes do processo político, legitimadores da vigente Carta Constitucional e destinatários
de diversos direitos e garantias.
Atualmente, os Poderes do Estado passam por uma crise de identidade justamente porque se
encontram num processo de autoconhecimento. E, nesse processo, a influência da sociedade
é primordial.
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Quanto à manifestação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes,
anteriormente reproduzida, é preciso, nesse caso, efetivar o maior legado de Derrida. É preciso
realizar a tarefa de desconstrução.
Observa-se que se trata de um ato de imposição de um entendimento construído
argumentativamente e que pode muito pouco refletir os reais interesses da sociedade como
legitimadora das decisões estatais. Trata-se, portanto, de um espectro do Poder Moderador
de outrora, pois a solução das deficiências do Legislativo brasileiro não se resolve pela efetiva
participação do Poder Judiciário, mas com o fomento das práticas realmente democráticas
e no desenvolvimento de uma cultura política, que a esmagadora maioria da população
brasileira jamais possuiu.
Não se está diante da nobre tarefa de reunir o que babelicamente foi separado, ou seja, a
tradução aqui não se refere à simples inserção de uma teoria em um ordenamento jurídico
diverso para o qual foi, inicialmente, formulada.
Com a utilização descontextualizada dessa teoria, corremos o risco de observar a mitigação e a
relativização de direitos e princípios constitucionais, em nome de uma pretensa racionalidade,
alcançada por meio da argumentação. Eis o grande legado da filosofia de Derrida: através da
desconstrução trazer à luz as próprias contradições do objeto analisado.
O caso notório citado pela imprensa nacional traduz, em sua essência, a redução da função
do Legislativo no Brasil, ampliando sobremaneira o papel do Judiciário, tudo isso através da
utilização de discursos carregados de fortes valores argumentativos.15 Por argumentos, persuadese, convence-se da necessidade de determinada decisão em detrimento de outra. Dessa forma,
não há propriamente o fomento das instituições democráticas, pois se existe o Judiciário com
poder para atuar como órgão responsável por suprir todas as lacunas legislativas16, não há que
110
15 Ingeborg Maus, em excelente artigo intitulado Judiciário como superego da sociedade, a partir da experiência do Tribunal
Constitucional alemão e utilizando elementos da psicanálise, apresenta uma relevante crítica à atividade de controle normativo
judicial que acaba por contribuir para a perda da racionalidade jurídica ou mesmo para racionalizações autoritárias, quando
assim se manifesta ‘legibus solutus’: assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento
do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente
decidido na Constituição “corretamente interpretada”, podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma
“ordem de valores” submetida à Constituição. [...] A prática judiciária quase religiosa corresponde uma veneração popular da
Justiça, como superego constitucional assume traços imperceptíveis, coincidindo com formações “naturais” da consciência e
tornando-se portador da tradição no sentido atribuído por Freud (MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Novos
Rumos. São Paulo: Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (Cebrap), n. 58, p. 184-202, 2000, p. 192).
16 Atualmente, a grande crítica tecida em relação à posição tomada pelo STF é em relação à Súmula Vinculante n. 13 que trata
da vedação ao nepotismo em todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ora, o fundamento
da Súmula deve-se eminentemente pela omissão legislativa a respeito do tema. Nesse caso, trata-se de total interferência
nas decisões administrativas pelo Poder Judiciário como meio de impor o respeito e a observância ao princípio da moralidade
contido no caput do art. 37 da Constituição Federal. Além de configurada intervenção de um Poder sobre o outro, o art. 103-A da
Constituição Federal exige que para a edição de súmulas vinculantes baseiem-se em reiteradas decisões. Apesar de a Constituição
não fixar o número preciso de decisões que sirvam como parâmetro preciso, ocorre que o STF editou a referida Súmula Vinculante
após apenas dois pronunciamentos sobre o tema e levando em consideração alguns poucos precedentes. Verifica-se que tal
decisão fundamentou-se muito mais na observação da reiterada tradição de nepotismo em todos os Poderes constituídos no Brasil,
do que propriamente em uma análise aprofundada, fortemente discutida, de precedentes judiciais que, por força do art. 103-A
da CF/88, permitem a edição de súmulas vinculantes. Ademais, fazendo, nesta ocasião, uma leitura desconstrutora, fomentar
a simplicidade, o esgotamento da complexidade é uma situação que se torna mais “adequada” às autoridades comprometidas
em se utilizar do Direito para impor a violência, uma vez que impor uma decisão dessa natureza é muito mais simples, do que
enfrentar e fomentar o profundo diálogo social, capaz de trazer à tona a tradição patrimonialista e clientelista tão presente na
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se falar no fomento de uma cultura política na população brasileira que capacite, a longo
prazo, a conscientização e a melhoria da atuação do Legislativo no Brasil.
Derrida nos adverte que o tradutor implementa sua marca na tradução e, portanto, não há
que se falar em uma tradução totalmente descompromissada com o original. As línguas foram
divinamente separadas e, agora, não há como obter o perdão de Deus pela pretensão humana
de construir a Torre de BabeI. Assim, o original torna-se tributário da tradução. Eis um grande
risco. No caso do Supremo Tribunal Federal, um grande risco à própria democracia.
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3 Considerações finais
A construção teórica de Robert Alexy possui grande relevância para a afirmação e consolidação
de uma cultura jurídica pautada na valoração de elementos negligenciados pelo positivismo
jurídico como a moral, os valores e os princípios constitucionais.
Todavia, o julgador ao implementar a tarefa da ponderação entre princípios constitucionais
conflitantes pode estar exercendo um legítimo ato de violência se sua atuação se pautar,
apenas, num cálculo matemático. É preciso muito mais que isso. Derrida nos adverte que o
compromisso deve ser, de fato, com o justo, com os interesses das partes envolvidas e que
buscam no Direito a melhor solução para seus conflitos.
É preciso avançar em relação ao dogma da racionalidade, pois decisões formuladas com base
em argumentações podem ocultar os reais interesses que, de fato, influenciaram na tomada
da decisão. O apego à racionalidade pode importar na aplicação legítima de uma violência por
parte da autoridade. Convencer-se de que uma argumentação tida como racional fornece a base
para que o julgador faça a decisão mais justa, trata-se de verdadeiro simulacro e aporia. Eis,
portanto, a importância do diálogo com a filosofia. E mais, com a filosofia de um dos pensadores
mais criticados da chamada pós-modernidade.
Derrida nos aguça o prazer de penetrar no texto. Fazer o texto falar por si. Instigar até que
seus espectros se revelem. Para os grandes linguistas, que aqui cito o seu maior representante,
Ferdinand de Saussure, a língua falada é a que mais se aproxima da verdade. Eis uma grande
ilusão da modernidade, já que a língua escrita traz em si muito mais do que está propriamente
escrito. Derrida nos adverte disso e daí a necessidade desse tipo de leitura para o Direito.
É preciso trazer à luz o que, de fato, está dissimulado nas decisões judiciais, é preciso que
julgadores tenham compromissos com as pessoas envolvidas no caso. É para elas que o Judiciário
existe e não para outros interesses que, discursivamente e argumentativamente (ou melhor,
“racionalmente”), convencem e persuadem o julgador.
formação política brasileira e, dessa forma, culturalmente promover uma mudança de entendimento em relação à coisa pública.
Sobre a tradição política brasileira, “[...] poder definir o coronelismo como umas instituições imaginárias centrais da sociedade
brasileira. Foi a instituição imaginária que permitiu durante longo tempo a existência histórica dos mais diversos personagens
políticos, dotando-os de significação. A sobrevivência do coronelismo até hoje é devida à profunda impregnação das práticas
sociopolíticas brasileiras pelo imaginário do coronel. [...] Os coronéis são, de fato, criadores de códigos de comportamento
social bem brasileiros, numa sociedade fechada à cidadania e centrada nas grandes famílias oligárquicas.” (GUALBERTO, João. A
invenção do coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro. Vitória: SPDC/UFES, 1995, p. 15).
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Os fenômenos jurídicos são, por natureza, complexos, todavia a modernidade imprimiu a árdua
tarefa de torná-Ios simples, homogêneos e desprovidos de toda a inerente complexidade. Mister
resgatar e reconhecê-Ios como tal. É preciso avançar em relação à mera “máquina de calcular”
como nos advertiu Derrida.
A técnica da ponderação reflete, incontestavelmente, uma nova fase do Direito. Contudo,
direitos fundamentais não podem ser relativizados em nome da racionalidade e do
cálculo promovido na apreciação de seus elementos como a necessidade, adequação e
proporcionalidade em sentido estrito.
Referências
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______. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
______. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
fundamentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.
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Política, 2002.
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Carvalho Netto]. Ratio Juris, v. 16, n. 2, p. 131-140, jun. 2003.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Mirian Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro.
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______. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés.
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______. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 20. ed. Tradução de Antônio Chelini, José
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SILVA, Vírgílio Afonso da Silva. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção.
Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, p. 607-630, 2003.
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