A NORMA, O SABER E O PODER

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A NORMA, O SABER E O PODER
BRAATZ, Jennifer Priscilla – FURB
[email protected]
KRAEMER, Celso – FURB
[email protected]
Eixo Temático: Educação e Saúde
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo:
O presente artigo, dedicado à noção de norma, tem como objetivo compreendê-la enquanto
um processo histórico e social, que vai sendo construído e modificado de acordo com as
necessidades econômicas e políticas de cada sociedade. A noção de norma perpassa os
diferentes espaços sociais e as mais variadas áreas de conhecimento Nesse sentido, o presente
estudo elegeu como domínio privilegiado a área da, medicina, espaço no qual o processo
histórico da norma está diretamente relacionada à noção de saúde/doença, normal/patológico,
norma vital/norma social. Ressalte-se que tanto a sociedade atual, quanto a educação se
condicionam à norma, muitas vezes assumindo-a ingenuamente, como se fosse natural. Desta
forma, cabe ao educador e ao agente de saúde, problematizar as noções de normal e os
processos de normalidade operantes na sociedade. Esta pesquisa é de caráter bibliográfico,
entende a norma a partir das relações de saber e poder, de acordo com o a perspectiva de
Canguilhem e Foucault. Segundo análises epistemológicas de Canguilhem, que discute as
teorias de Comte, Bernard e Leriche, norma vital, é a capacidade do indivíduo de tolerar e
superar as normas (saúde e doença) do biológico, enquanto a norma social é a capacidade do
indivíduo de interagir com os eventos sociais. Foucault, analisando genealogicamente a norma
como conceito operatório, percebe as relações de poder que constituem a visão moderna da
norma, tanto na medicina, psiquiatria, escola, como na formação do próprio sujeito. Tais
instituições estão diretamente relacionadas aos interesses políticos e econômicos que visam
regular a subjetividade, segundo a anormalidade das instituições.
Palavras-chave: Norma/normal. Saúde/doença. Norma. Relações de poder.
Introdução
No dia a dia somos condicionados a protocolar como patológico tudo o que se desvia
do normal. Mas o que entendemos por normal? Quais associações que se fazem entre normal
e natural? É um significado amplo ou individual? Tudo que é caracterizado como normal é
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aceito facilmente, por quê? Como a escola caracteriza a norma?
O conceito de normalidade não vai, historicamente, apenas se refinando ou se
tornando cada vez mais preciso, mas vai se modificando, na medida em que as condições
sociais vão sendo transformadas pela própria ação do homem e que geram novas necessidades
na relação indivíduo-meio social (FREITAS, 1997).
Pois, conceitos surgem, são formulados, desconstruídos e reconstruídos de acordo com
a época em que se vive, os aspectos histórico-culturais do momento; além de opiniões e
abrangência de conhecimentos sobre o assunto a ser abordado por cada indivíduo.
Segundo Coelho & Monteiro (2010), conceitos são mais do que palavras: servem
como denominação de sentido, capaz de interpretar as observações e as experiências.
É assim que Georges Canguilhem questiona o conceito de normal e patológico, muitas
vezes utilizadas em sentidos ambíguos. Ele faz uma discussão sobre os equívocos promovidos
pela incapacidade de reconhecimento das distinções entre as situações de fato e valor na
atividade médica. Explora a dimensão fenomenológica da experiência individual da doença e
da saúde, tomada num conceito descrita como totalidade orgânica individual (PUTTINI,
2011).
Michel Foucault, filósofo que possui vinculações teóricas com a tradição da
epistemologia historiográfica, tem na figura de Canguilhem uma de suas inspirações. E é
através da reflexão histórica que Foucault procura justificar a moderna visão da norma.
De acordo com Foucault (1999), todo conhecimento se enraíza numa vida, numa
sociedade, numa linguagem que têm história, e nesta história, ele encontra o elemento que lhe
permite comunicar-se com outras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras
significações; por isto, o historicismo implica sempre uma filosofia.
Deste modo, o objetivo do artigo é compreender a construção histórica da noção de
norma e sua relação com as formas de saber e poder, de acordo com as correntes de
pensamento de Comte, Bernard, Leriche, Canguilhem e Foucault.
Média, saúde e doença: Norma
De acordo com Ganguilherm (2002, p. 216), “o termo norma remonta ao latim, o qual,
por sua vez, é equivalente ao termo grego órtos, e se refere, fundamentalmente, à gramática”,
2953
isto é, à regulamentação do uso da língua, o que demonstra a preocupação do homem na
busca de regularidades em suas ações.
Segundo Puttini (2001), enquanto normalidade é um critério valorativo, que poderia
avaliar nos seres vivos estados normais e patológicos, normatividade é a capacidade para
avaliar estados humanos pela racionalidade do fenômeno vital. Segundo Canguilhem (2002),
a normatividade está presente fenomenologicamente no próprio ser vivente e na vida.
Para o conceito de média, após estudos acerca da altura do homem, num âmbito geral,
segundo este estudioso, “a existência de uma média é o sinal incontestável da existência de
uma regularidade” (CANGUILHEM, 2002, p. 124). Para Canguilhem, uma média que define
desvios “tanto mais raros quanto mais amplos forem é, na verdade, uma norma.”
(CANGUILHEM, 2002, p. 124).
Canguilhem define que a saúde “nada mais é que a indeterminação inicial da
capacidade de instituição de novas normas biológicas” (CANGUILHEM, 2002, p. 158). A
saúde constitui certa capacidade de ultrapassar as crises orgânicas para instalar uma nova
ordem fisiológica.
O limite entre o normal e o patológico torna-se impreciso para indivíduos quando
considerado “simultaneamente”, ou seja, valendo-se de médias, pois ao apresentar a doença
num determinado caso, em outro esta poderá não ser entendida como patologia.
Canguilhem afirma que a norma é individual, ou seja, capacidade de um ser de se
adaptar ao meio. Cada ser tem sua própria concepção do que seria o normal para si mesmo,
caracterizando a capacidade de tolerar as variações da norma.
Illich (1975) ressalta que a saúde do homem tem sempre um tipo de existência
socialmente definida. Globalmente, ela se identifica à cultura de que trata o antropólogo, que
é o programa de vida que confere aos membros de um grupo a capacidade de fazer face à sua
fragilidade e de enfrentar, sempre provisoriamente, um meio ambiente de coisas e palavras
mais ou menos estáveis. E, ao orientar o comportamento, a cultura determina a saúde, e é
somente construindo uma cultura que o homem encontra sua saúde.
Não somente a cultura, mas a política da época em que se encontra, também determina
os conceitos de normal e de saúde.
Por exemplo, na Antiguidade, saúde implicava a norma, o ideal, o valor, aos padrões
sociais aceitos, estimados e desejados, sendo o indivíduo considerado indissociável de um
2954
todo. Ou seja, o cuidado à saúde do indivíduo considerava o conhecimento do todo
(elementos da natureza, da região, da organização social, dos hábitos), permitindo o
conhecimento da parte e suas relações com o todo. E, a partir desse conhecimento, buscava-se
o equilíbrio necessário a cada indivíduo, encontrando o equilíbrio total: a saúde (AIUB &
NEVES, 2005). O desequilíbrio de um destes elementos caracterizava a doença; e o desvio
deste equilíbrio, considerado anormalidade.
Até o século XVIII, os princípios destes conceitos predominavam, tanto no campo da
filosofia como da medicina. A partir da Revolução Francesa, os conceitos de saúde e norma
foram modificados. Pois, a burguesia fundou uma nova ordem capaz de funcionar como
norma para toda a sociedade: a ordem econômica capitalista.
Com isso, de acordo com Coelho & Almeida Filho (2010), a medicina adotou uma
nova postura normativa. Pois, concomitantemente com a Revolução Francesa, estava
ocorrendo a industrialização e complexificação do trabalho, tornando-se necessária novas
referências de norma e padrões de comportamento. Como afirma Foucault (1998), o
rendimento e a saúde individual passaram a ser indispensáveis ao bom funcionamento da
engrenagem social.
A medicina se apoiava na análise de um funcionamento regular, normal, para detectar
onde o indivíduo teria se desviado. O termo normal começou a ser utilizado pelo povo,
significando o estado de saúde orgânica; a partir disso, a patologia consistiu, sobretudo, na
classificação das anomalias anatômicas. (CANGUILHERM, 2002; ILLICH, 1975).
O objetivo da medicina na época da industrialização, politicamente influenciada,
dedicava-se em curar algo que se teria perdido e que era necessário restaurar, para que o
indivíduo retornasse à produção o mais cedo possível.
A medicina passou a ser uma oficina de reparos e manutenção, destinada a conservar
em funcionamento o homem usado como produto não humano (ILLICH, 1975).
O homem, visto como máquina, poderia ser consertado e programado, listando suas
capacidades, bem como os parâmetros do funcionamento social normal. A normalidade
passou a ser tarefa e fundamento da psiquiatria, psicologia e sociologia (COELHO &
ALMEIDA FILHO, 2010). Para Foucault (1999, p. 476):
O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de
2955
antemão: nenhuma filosofia, nenhuma opção política e moral, nenhuma ciência
empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma
análise da sensação, da imaginação ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos
XVII e XVIII, alguma coisa como o homem, pois o homem não existia (assim como
a vida, a linguagem e o trabalho); e as ciências humanas não apareceram quando,
sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico nãoresolvido, de algum interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem para o campo
dos objetos científicos. A emergência histórica de cada uma das ciências humanas
ocorreu por ocasião de algum problema, de uma exigência, de um obstáculo de
ordem teórica ou prática; por certo foram necessárias novas formas impostas pela
sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX,
a psicologia se constituísse como ciência.
O homem tornou-se um objeto para as ciências humanas. Trata-se de um homem que,
do interior das formas de produção pelas quais toda a sua existência é comandada, forma a
representação dessas necessidades, da sociedade pela qual, com a qual ou contra a qual as
satisfaz, de sorte que, a partir daí, pode ele finalmente se dar a representação da própria
economia (FOUCAULT, 1972; FOUCAULT, 1999).
De acordo com Foucault (1999, p. 491-492):
A “região psicológica” encontrou seu lugar lá onde ser vivo, no prolongamento de
suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas,
também na suspensão que os interrompe e os limita, se abre à possibilidade da
representação; do mesmo modo, a “região sociológica” teria encontrado seu lugar
onde o indivíduo que trabalha, produz e consome se confere a representação da
sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os
quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças
mediante os quais ela é sustentada ou regulada.
Paralelamente, segundo Illich (1975), nos últimos anos do século XIX, os discípulos
de Claude Bernard empreenderam a definição e a catalogação da patologia das funções. A
saúde adquiriu, paralelamente à doença, status clínico: ela se tornou ausência de sintomas
clínicos. A boa saúde foi associada aos padrões clínicos da normalidade.
Por volta de 1840, Augusto Comte deu à palavra normal sua primeira conotação
médica. Exprimia sua esperança de que, logo que as leis relativas ao estado normal do
organismo fossem conhecidas, seria possível empreender o estudo da patologia comparada.
Durante a última década do século XIX, as normas e os tipos se tornaram os critérios
fundamentais do diagnóstico e da terapêutica. A doença enquanto desvio de uma norma
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tornava legítima a intervenção médica e fornecia orientação para a terapia (ILLICH, 1975).
Assim, a ação da norma se desencadeia tanto mais eficazmente, quanto mais íntima for
a relação entre medicina e Estado: é à luz da ordem normativa que se concebe o progresso da
nação, de forma que os valores da medicina em cada época são influenciados diretamente pela
política de cada cultura.
A seguir, será abordada a ação da norma refletidas por Canguilhem e por Foucault de
acordo com os princípios filosóficos de cada autor. Para facilitar a compreensão, a temática
será abordada separadamente na visão de cada filósofo.
Norma e Normalidade
Seria o estado patológico apenas uma variação quantitativa do estado normal1?
Este questionamento surgiu pelos exemplos encontrados por Canguilhem na história
da ciência. Em suas pesquisas, percebeu que as análises das relações entre o normal e o
patológico, desde o século XIX, concluíam que o patológico era apenas uma mera variação
quantitativa do normal.
Frente a esse dado, Canguilhem recorreu à história das ciências, explorando os
conceitos de normal e patológico no campo da filosofia da ciência e da técnica médica.
Elaborou suas concepções de saúde e doença a partir do exame crítico das ideias de alguns
filósofos do século XIX (FRANCO, 2009).
Canguilhem se dispôs a desconstruir uma abordagem hegemônica desde o século XIX:
a de Augusto Comte e Claude Bernard, autores que servem de fundamento à reflexão da
filosofia da medicina; em seus estudos, Canguilhem se depara com as posições do médico
Leriche (PUTTINI, 2011), que diverge de Comte e Bernard.
Para Augusto Comte, a distinção do normal e patológico era de natureza quantitativa,
sendo as doenças nada mais que “os efeitos de simples mudanças de intensidade na ação dos
estimulantes indispensáveis à conservação da saúde.” (CANGUILHEM, 2002, p. 28). A
política implicaria uma terapêutica das crises sociais buscando o retorno das sociedades à sua
1
Pimeiro questionamento realizado por Georges Canguilhem em sua tese de Doutorado em Medicina,
defendida em 1943, com o título: “Ensaios sobre alguns problemas concernentes ao normal e ao patológico” Sua
tese foi reeditada, e em 1966 foi lançada com o título simplificado: “O normal e o patológico” (FRANCO, 2009;
PUTTINI, 2011; SANTOS, 2010).
2957
estrutura essencial e permanente.
Claude Bernard, fisiologista, definiu que “o estado patológico não é um simples
prolongamento, quantitativamente variado, do estado fisiológico, mas é totalmente diferente.”
(CANGUILHEM, 2002, p.66). De acordo com Coelho & Almeida Filho (1999), a fisiologia
de Bernard expressou, no campo médico, a exigência de uma época que acreditava na
onipotência da técnica baseada na ciência.
Logo, para Comte e Bernard, “a doença difere da saúde, o patológico do normal, como
um atributo difere de outro, quer pela presença ou ausência de um princípio já definido, quer
pela reestruturação da totalidade orgânica” (COELHO & MONTEIRO, 2010, p. 184).
Para Coelho & Almeida Filho (1999), a ideia positivista fundamental, comum a Comte
e Bernard, é que se deve conhecer cientificamente para agir, ou seja, a técnica é a aplicação
direta de uma ciência.
Percebe-se então que, para a medicina do século XIX, a convicção de poder restaurar
cientificamente o normal é que anula o patológico. Pois, segundo Coelho & Monteiro (2010),
a doença deixa de ser objeto de angústia para o homem saudável e torna-se objeto de estudo
para o teórico da saúde. E é justamente no patológico que se pode decifrar o ensinamento da
saúde.
A doença, nesse momento, ainda era olhada pelo médico como o sofrimento
experimentado por um ser. Ela foi colocada no centro do sistema médico e submetida de
pleno direito: verificação operacional com recurso de medidas; a estudo e experimentação
clínicos; a avaliação conforme as normas técnicas (ILLICH, 1947).
De acordo com Machado et al (1978), na Revolução Industrial ocorreu a
medicalização da sociedade: a medicina em tudo intervém e começa a não mais ter fronteiras.
Exige a criação de uma nova tecnologia de poder capaz de controlar os indivíduos e as
populações, tornando-os produtivos ao mesmo tempo que inofensivos, por meio de técnicas
de normalização (que instituem e impõem exigências de ordem social como critérios de
normalidade, considerando anormal toda realidade hostil ou diferente).
Ao mesmo tempo que a escola também sanciona o aluno normal, afim de controlar a
disciplina por meio de frequências, notas; hierarquizando os alunos de acordo com seu
desempenho escolar, seus gestos, comportamento global. De acordo com Portocarrero (2004),
a sanção é normalizadora porque faz funcionar a disciplina através do estabelecimento da
2958
norma, na medida que permite avaliar e julgar, normalizando por meio da comparação, da
diferenciação, da hierarquização, da homogeneização e da exclusão.
A escola normal, que é uma escola onde se ensina a ensinar, é onde se instituem
experimentalmente métodos pedagógicos normalizados e normalizadores, onde não se
permitem desvios, punindo-os de acordo com as regras normalizadoras.
Na medicina, a produção de um novo tipo de indivíduo e de população, necessário à
existência da sociedade capitalista, antes mesmo do aparecimento das grandes transformações
industriais, está intrinsecamente ligado ao novo tipo de medicina que pela primeira vez
equaciona uma relação de causalidade entre os termos saúde e sociedade (FOUCAULT, 2000;
MACHADO et al., 1978).
Porém, nesta mesma época, ocorreu com René Leriche, um novo olhar sobre a saúde e
doença. Cirurgião francês, para Lercihe, a saúde é a “vida no silêncio dos órgãos”, o “estado
de saúde, para o indivíduo, é a inconsciência de seu próprio corpo” (CANGUILHERM, 2002,
p. 67). Para ele, a doença é vista como uma variação qualitativa do normal, definindo a
doença como “aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas
ocupações e, sobretudo, como aquilo que os faz sofrer” (CANGUILHEM, 2002, p. 67).
Leriche considera que a doença está na origem da atenção especulativa que o homem
dedica à vida. Assim, o campo da fisiologia só é revelado pela doença, pois as doenças seriam
virtualidades da fisiologia, que só poderiam ser conhecidas a partir da experiência da doença.
A doença, e não a saúde, portanto, seria o ponto de partida da Medicina e de um interesse do
ser vivo pelo estudo da própria vida. E quem determina o valor da doença é o doente, é a vida
em si mesma. (CANGUILHEM, 2002).
O estudo da perspectiva de Leriche, que aproxima o saber científico da práxis por um
olhar clínico e impregnado de técnica, afirmando que o aprendizado não vem unicamente da
ciência e da filosofia, mas sim, do próprio doente, possibilita a Canguilhem um novo olhar
sobre a doença, vista em sua totalidade orgânica (SANTOS, 2010).
Deste modo, quem ilumina e informa a fisiologia não é a patologia, mas o próprio
doente. É a experiência da doença que rompe certa imanência silenciosa entre o sujeito e seu
próprio corpo. É ela que transforma o corpo em um “problema” que determina exigências de
saber e configura necessidades de cuidado e intervenção (SAFATLE, 2006).
Tais análises permitiram a Canguilhem (2002) definir como norma vital a exigência
2959
das normas do organismo, interna e imanente à própria possibilidade de vida
(PORTOCARRERO, 2004). O estar doente é que possibilita ao organismo do indivíduo
retornar à sua saúde.
Canguilhem conclui que, não seria a ausência de normalidade que constituiria o
anormal; o patológico também seria normal, pois a experiência do ser vivo incluiria a doença.
Assim, para Canguilhem, o patológico não é contraditório lógico do conceito de
normal. O patológico não é ausência de normas, mas a presença de outras normas vitalmente
inferiores, que impossibilitam ao indivíduo viver um modo de vida anterior, permitido aos
indivíduos sadios.
Logo, Canguilhem definiu norma como normalidade de vida numa categoria mais
ampla, que engloba a saúde e o patológico como distintas subcategorias. Saúde foi definida
como norma de vida superior, pela capacidade individual de instituir novas normas e
ultrapassar o que define normal momentâneo, como abertura a eventuais modificações
(COELHO & ALMEIDA FILHO, 2010), e doença é vista como norma de vida inferior, pela
perda dessa capacidade normativa, impossibilidade de mudança, fixação, obediência irrestrita
à norma (COELHO & ALMEIDA FILHO, 2010; CANGUILHEM, 2002; FRANCO, 2009).
Em suma, o que diferencia o estado de saúde do patológico é a qualidade para abertura
de eventuais modificações. Abertura que estaria presente no estado de saúde, porém, ausente
no estado patológico, tornando-se inferior à saúde.
Porém, ao longo de seus estudos, Canguilhem não se atém mais à oposição dos
termos, como ocorrido em sua tese em 1943, ampliando sua visão sobre saúde e doença.
A doença, a partir de Canguilhem, não é vista mais apenas como uma mudança
quantitativa ou qualitativa da saúde. Ele abrange a saúde no seu âmbito social, onde saúde é
além de obedecer a normas impostas pela sociedade. Saúde é a possibilidade de escolha e
criação, tendo o indivíduo a oportunidade da não-obediência e a transformação.
A esta definição Canguilhem denominou norma social, ou seja, normalização que se
estabelece na sociedade. Ela deve-se a uma escolha e a uma decisão exteriores ao objeto
normalizado, mesmo que não haja consciência por parte dos indivíduos, por se tratar da
expressão de exigências coletivas, estabelecidas a partir do modo de relação de uma dada
estrutura social e histórica, com aquilo que se considera seu bem particular
(PORTOCARRERO, 2004).
2960
Assim, segundo Canguilhem (2002) e Coelho & Almeida Filho (2010), a saúde se
realiza não só no genótipo, mas também na relação do indivíduo com o meio, ou seja,
corresponde a uma ordem tanto implicada no fato biológico da vida, como no modo de vida,
ou seja, relacionada à capacidade do indivíduo de interagir com os eventos sociais.
Canguilhem (1990) apud Coelho & Almeida Filho (2010, p. 26-27), considera:
que a saúde é uma questão filosófica na medida em que, tal como a filosofia, ela é
um conjunto de questões no qual ela mesma se faz questão. Essa saúde filosófica
recobre a saúde individual. Ela é diferente da saúde do sanitarista, que compreende a
saúde da população. A saúde filosófica, individual, está longe de ser medida com
aparelhos, já que é livre, não condicionada e não contabilizável. Trata-se de uma
saúde sem ideia, presente e opaca, suportada e validada pelo indivíduo e seu médico;
implica o conceito de corpo subjetivo, que o médico crê poder descrever. O saber
médico constitui, então, um dispositivo de promoção e proteção da saúde subjetiva.
O médico acolhe o que o paciente lhe diz e o que o seu corpo anuncia através dos
sintomas e sinais clínicos.
Aos médicos não interessam os conceitos de saúde e doença. De acordo com Foucault
(1998), as concepções de saúde refletem os valores sociais dominantes da cultura e da época e
não seria de se esperar que uma cultura biomédica baseada nas noções de sofrimento, morte e
doença pudessem produzir um interesse institucional e acadêmico pelo antagonismo
conceitual incorporado no conceito de saúde.
Para os médicos apenas interessa diagnosticar e curar, para que o indivíduo volte ao
“normal”. Logo, o objetivo da medicina é analisar o desvio de “normalidade” da patologia,
“cure” o indivíduo, para que este se torne “normal” e com “saúde” novamente.
A norma em Foucault
Foucault analisa genealogicamente a história da medicina, indagando as formas de
poder que têm por alvo o sujeito. Assim, objetiva mostrar de que maneira as práticas sociais
podem constituir domínios de saber, que fazem aparecer formas totalmente novas de sujeitos e
de sujeitos de conhecimento; a proposta do presente item é especificar como pode se formar,
no século XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou
anormal, dentro ou fora da regra, a partir de práticas sociais do controle, da vigilância e do
exame, que se relacionam com a formação e estabilização da sociedade capitalista
2961
(PORTOCARRERO, 2004).
Foucault fez uma análise histórica das práticas médica que justifiquem a visão
moderna da norma, bem como dos poderes que atuaram diretamente sobre a norma. “Ligadas
às condições de existência e as formas de vida dos indivíduos, as doenças variam com as
épocas e os lugares” (FOUCAULT, 1998, p. 36).
Para Foucault (1994) e Illich (1975), a definição de anormalidade muda de uma
cultura para outra. Cada civilização cria suas próprias doenças, e a anormalidade, que pode ser
considerada em uma cultura doença, em outra pode ser considerada crime, manifestação de
santidade ou mesmo, resultado de pecado.
Toda cultura elabora e define um modo particular de ser sadio, de gozar, de sofrer e de
morrer. Todo código social é coerente com uma constituição genética, uma história, uma
geografia dadas e com a necessidade de se confrontar com as culturas vizinhas (FOUCAULT,
1994; ILLICH, 1975). Illich (1975) complementa que a instituição médica é uma empresa
profissional, tem por matriz a ideia de que o bem-estar exige a eliminação da dor, a correção
de todas as anomalias, o desaparecimento das doenças e a luta contra a morte.
Porém, este pensamento da medicina surgiu a partir do século XIX, pois, como afirma
Foucault (1998), até o final do século XVIII a medicina referiu-se muito mais à saúde do que
à normalidade, pois a medicina não se apoiava na análise de um funcionamento regular do
organismo para procurar onde se desviou, o que lhe causa distúrbio, como se pode
restabelecê-lo. Ela referia-se mais a qualidades de vigor, flexibilidade e fluidez que a doença
faria perder e que se deveria restaurar.
A prática médica anterior ao século XIX implicava uma regra de vida. Assim, as
práticas de saúde pública – quarentena, isolamento, fogueiras, entre outros – eram normativas,
visando a manutenção da saúde. A doença era vista como resultado de um pecado, ou seja,
quem não tem pecado, tem saúde. Estas práticas, segundo o mesmo autor, teriam substituído o
ideal religioso da salvação.
Mas, a partir do século XIX, a medicina “regula-se mais pela normalidade do que pela
saúde; é em relação a um tipo de funcionamento ou de estrutura orgânica que ela forma seus
conceitos e prescreve suas intervenções” (FOUCAULT, 1998, p. 39).
Segundo Foucault (2000), nesse momento há um esforço para organizar um corpo
médico e um quadro hospitalar, capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde. Assim, as
2962
marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos
acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo
social homogêneo, mas que têm em si mesmo um papel de classificação, de hierarquização e
de distribuição de lugares. O poder de regulamentação obriga à homogeneidade,
individualiza, permite medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar
úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras.
Assim, em todas as sociedades, as pessoas de atitudes ou comportamento estranhos
constituem uma ameaça, enquanto seus traços singulares não são designados de maneira
formal e desde que sua conduta anormal não seja assimilada num papel conhecido. Ao
atribuir-se um nome e um papel às anormalidades que atemorizam, essas pessoas se
transformam em membros de uma categoria, formalmente reconhecida.
“Ao catalogar os portadores de anormalidades, o Poder os coloca sob o controle da
linguagem e dos costumes; assim, transforma quem é uma ameaça à ordem estabelecida em
sustentáculo dessa ordem” (ILIICH, 1975, p. 57). Como afirma Machado et al (1978), a cada
dia se descobre a rede de poderes que envolve nossa existência, atinge nosso corpo e organiza
nosso desempenho social. Cada vez mais se politiza o dia a dia.
Considerações Finais
As práticas sociais, em nosso tempo, estão condicionadas pela noção de norma. A
norma é assumida como se fosse proveniente da própria natureza. O normal se tornou
sinônimo de natural. A partir da leitura de Georges Canguilhem e Michel Foucault, o presente
artigo problematizou o senso comum estabelecido em torno da norma.
Constatou-se que a norma exerce efeito de subjetividade, padronizando condutas,
gostos, escolhas. Compreendeu-se também que a norma não faz parte da natureza, não é algo
que o homem “descobre” objetivamente, através da pesquisa científica. Ao contrário, ela faz
parte de um processo de construção histórica e social, com colaboração de pesquisadores,
filósofos, práticas institucionais, interesses políticos, etc. Ao contrário de ser uma descoberta
da ciência, a norma é o que condiciona e dirige o olhar do pesquisador.
A doença que era antes considerada como anormal, foi instituída como normal a partir
de Leriche e Canguilhem, por ser considerado como parte da experiência de vida do ser
2963
humano, sendo nomeado como norma inferior. E passou-se a considerar saúde não somente a
capacidade de tolerar mudanças biológicas, mas também sociais.
Em relação à educação, para Foucault (2000), a escola funciona como um pequeno
tribunal, com leis e infrações próprias para organizar as diferenças entre os indivíduos,
atribuindo pequenas penalidades, bem como prêmios por merecimento, por considerar a
norma como padrão, punindo ou medicalizando os desvios da média.
Cabe à educação problematizar as práticas da norma, para que se constitua no
ambiente de educação maior capacidade de conviver com a diversidade, tolerância com as
diferenças, não as tratando simplesmente como desvios a serem corrigidos.
REFERÊNCIAS
AIUB, Monica; NEVES, Luis Paulo. Saúde: uma abordagem filosófica. Rev. Cadernos do
Centro Universitário São Camilo. São Paulo, v. 11, n. 1. P. 94-102. Jan/mar 2005.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria de Threza Redig de
C. Barrocas e Luiz Octávio F. B. Leite. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
COELHO, Daniela de Freitas; MONTEIRO, Silas Borges. CANGUILHEM, Georges: O
normal e o patológico. Resenha. R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 19, n. 39, p. 183-186, jan./abr.
2010
COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; ALMEIDA FILHO, Naomar de. NormalPatológico, Saúde-Doença: Revisitando Canguilhem. Physis: Rev. Saúde Coletiva, Rio de
Janeiro, 9(1): 13-36, 1999.
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FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
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