“Corpolatria e cordialidade: uma mestiçagem?” por Stéphane Malysse

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“Corpolatria e cordialidade: uma mestiçagem?”
por Stéphane Malysse
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Malysse S., (H)altères-ego: olhares franceses nos
bastidores da corpolatria carioca. In Nu e Vestido,Miriam
Goldemberg (org), Record, RJ, 2002.
“A tradição sociológica brasileira (Freyre, 1933; Buarque de Hollanda, 1936)
descreveu o Brasil como uma sociedade de tipo “cordial”. Esse tipo ideal de cordialidade é
apresentado pelos dois autores como o contraponto perfeito da civilidade conforme seria
descrita e estudada por Norbert Elias (1976), no sentido em que ele designa um modelo de
sociedade no qual as relações pessoais, a proximidade e a autoridade familiar patriarcal são
os fundamentos das redes de intimidade e tornam-se elementos estruturais do campo social.
Para Buarque de Hollanda, o medo das distâncias sociais é um dos traços mais marcantes
do “espírito brasileiro”, e ele chega a afirmar que nenhum povo está mais distante de uma
sociabilidade ritualizada do que o brasileiro: “nosso modo normal de convívio social é, no
fundo, exatamente o contrário da boa educação, que pressupõe uma distância educada em
relação ao outro. A boa educação é um tipo de espontaneidade cordial, e a manifestação
normal do respeito é visível no desejo de criar uma intimidade com o outro” (1936). Hoje
em dia, essa cordialidade mítica se exprime nas interações verbais pela ausência de marcas
de respeito no discurso (não há o tratamento formal, o sobrenome é omitido com
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freqüência, muitas vezes um vínculo familiar imaginário é criado: tio, titia, minha filha,
meu filho) e no uso de diminutivos que permitem, pelo discurso, tornar todos os homens
mais próximos, mais acessíveis, mais íntimos. No entanto, mais do que a língua em si, é o
corpo que parece funcionar como um poderoso vetor de cordialidade, e trata-se assim de
uma cordialidade não necessariamente verbal, uma cordialidade à flor da pele que parece
eliminar as tensões sociais e formar uma espécie de rede interativa de encontros comuns.
Esse mito do homem cordial que, assim como a ideologia luso-tropical de Freyre, é “a
expressão acadêmica dos lugares-comuns ideológicos a respeito do espírito do povo
brasileiro” (Geffray, 1995) parece continuar a mascarar a complexidade das relações sociais
no Brasil em prol de uma visão holista da sociedade. Como observa um antropólogo
brasileiro: “No Brasil nós temos o carnaval e as hierarquias, a cordialidade do encontro
cheio de sorrisos e a terrível violência do ‘sabe com quem está falando?’” (Da Matta,
1990), mas também a corpolatria e suas hierarquias estético-sociais discriminantes. Foi por
isso que associei a essa cordialidade o papel e a expressividade do corpo nas relações interpessoais, mostrando de que modo ele funciona como uma forma de contato. Mais do que a
troca de palavras, a expressividade dos corpos e o uso dos sentidos introduzem um jogo e
um movimento constantes nesse sistema social potencialmente rígido.
No Brasil, o toque pontua todas as interações sociais: as pessoas se encontram
fisicamente, começando pelo abraço para dizer bom dia, e em seguida trocam inúmeros
contatos durante a conversa: a positividade em relação ao corpo pode ser lida facilmente em
todos os aspectos da sociabilidade brasileira. Ao observar os diferentes alo-contatos
efetuados durante conversas amigáveis, comecei a me perguntar se esses gestos de
cordialidade poderiam ser considerados elementos recorrentes de uma língua “corporal”.
Nos ambientes que freqüentei, os contatos de cordialidade não me pareciam exprimir uma
mensagem racional, nem possuir um sentido fixo equivalente a uma interjeição, a uma
palavra ou a uma frase, mas esse acesso ao corpo do outro durante as conversas parece-me
ser simplesmente uma técnica corporal que permite o estabelecimento de laços de
intimidade corporal, de proximidade. Assim, a cordialidade, “aquilo que conecta”, não é a
rigor uma figura de linguagem não-verbal, mas sim uma prática socializante, uma técnica
de ligação social, que procura colocar o corpo do outro à vontade, torná-lo confiante, e que
deve, portanto, ser mais sentida do que compreendida, pois caracteriza apenas a própria
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interação, ou seja, a própria evidência do encontro. A sociabilidade do corpo está no centro
da concepção brasileira de pessoa, e a fachada pessoal à qual Goffman se refere é, portanto,
antes de tudo corporal. O Brasil valoriza o corpo, e é essa ligação com o concreto que serve
de base para a cordialidade da vida social brasileira: “o concreto é o solo do qual brota a
sociabilidade” (Simmel, 1981). Devido a seu importante papel nas interações sociais, o
corpo, no Brasil, deve ser entendido não apenas como vetor de cordialidade, mas também
como mensagem de corpolatria. No final das contas, todas as construções corporais
descritas neste estudo são a concretização, no nível da aparência física, da cordialidade
funcional que fundamenta as redes imaginárias da sociedade em suas interações. No
entanto, quando observamos com mais atenção essas interações “cordiais”, logo
descobrimos que a cordialidade não passa de uma figura de estilo “à moda brasileira”:
simples fórmula de boa educação, ela não compromete em nada os acontecimentos
subseqüentes. Na verdade, atualmente existe um deslize visível do corpo (ligado à
cordialidade) em direção ao ícone, ao corpo como obra de arte (ligado à corpolatria), que
vem contrapor as duas idéias e contradizer profundamente sua suposta complementaridade.
Finalmente, as relações perniciosas entre corpolatria e cordialidade deveriam ser
consideradas mais uma colaboração: a corpolatria, símbolo da exclusão estético-social,
evidencia aquilo que a cordialidade só pode atenuar por alguns segundos, como se passasse
uma espécie de verniz neutro por cima de um julgamento social à primeira vista.
Ao estudar os modelos de comportamento e os estilos de vida “corporal” das classes
médias — que ocupam um lugar mediano e, devido a essa posição social, estão mais
propensas a estabelecer relações cordiais e a se preocupar com seus corpos para dar uma
boa impressão — , procurei mostrar como, no Brasil, as limitações sociais inerentes aos
processos de socialização dos indivíduos são menos interiorizadas e essencialmente
incorporadas por uma ideologia hierárquica da aparência muito próxima da de gênero e da
do erotismo. Essa ideologia é baseada ao mesmo tempo em uma estética e em uma ética do
consenso, tornando-se uma iconologia que permite numerosas nuances, gradações,
tonalidades e diferenças. Para Norbert Elias, a civilização dos costumes passa por um
controle íntimo dos gestos, das maneiras e da gestão social do corpo. Ao ampliar o espaço
mental e seu controle sobre o corpo por meio de uma responsabilidade individual e de uma
racionalização das condutas, esses processos de civilização do corpo participam da
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constituição de uma intimidade corporal. A interiorização das proibições sociais em relação
ao corpo constitui assim uma segunda interiorização, que consiste em ampliar a dissociação
entre corpo e espírito. No Ocidente, o corpo é concebido e vivenciado essencialmente como
uma entidade material, um organismo biológico em grande parte controlado por processos
naturais e portanto, de certo modo, anti-social, e as interações sociais logicamente têm
pouco espaço nas concepções ocidentais daquilo que anima e mantém o corpo fisicamente.
O europeu parece então viver uma relação bastante egoísta com seu corpo, que se mantém
separado do corpo dos outros durante as interações e parece estar hermeticamente fechado
por aquilo que Anzieu chama de “eu-pele” (1991). Na Europa, portanto, a corporeidade
modal e o ideal corporal que a simboliza refletem logicamente os valores sociais desse
fechamento, tais como: a disciplina, o controle, a restrição, a economia, a autonomia.
Apagado em público, o corpo é totalmente privatizado, e parece que na Europa o longo
processo de civilização dos costumes corporais causou uma espécie de isolamento do corpo
em esferas protetoras intransponíveis, feitas de barreiras sociais, de proibições religiosas e
de uma profunda limitação dos usos sociais do corpo à esfera da intimidade: “A orientação
do movimento civilizatório rumo a uma privatização cada vez mais pronunciada e completa
de todas as funções corporais, rumo a seu recuo para locais privados, fora do campo de
visão da sociedade” (Elias, 1973). Assim, a espontaneidade e a proximidade, fundamentos
práticos da sociabilidade em público, perdem seu uso: é o “declínio do homem público”
(Sennet, 1979). A partir daí, assistimos na Europa àquilo que Le Breton chama de
“desaparecimento ritualizado do corpo” (1993) nas interações sociais; o corpo não participa
mais da vida social e, esvaziado de suas funções comunicativas, torna-se uma imagem, uma
simples fachada pessoal. Na cena social, essa pantomima —
refinada por inúmeras
tentativas e correções — exige de cada um uma forte interiorização das limitações sociais
ligadas ao corpo, traduzindo-se assim por um severo e austero autocontrole do corpo e de si
mesmo, uma atitude que deixa pouco espaço para um encontro espontâneo e cordial. A
harmonização dos usos do corpo por meio dos processos de civilização parece assim ter
tido influência no isolamento dos indivíduos, criando o que Dumont chama de “uma
sociedade de indivíduos” (1991).
No Brasil, a severidade dos ritos de interação social parece menor. Buarque de
Hollanda enfatizou uma certa resistência dos brasileiros em relação ao exercício da
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civilidade corporal e à incorporação de sua forma derradeira: o autocontrole. Para ele, o
homem cordial é o oposto do homem bem-educado, civilizado. Nesse sentido, a boa
educação e a civilidade são para ele “uma organização defensiva em relação à sociedade,
equivalente a um disfarce que permite a cada indivíduo manter intactas suas sensibilidades
e suas emoções. É a vitória do espírito sobre a vida. Protegido por essa máscara, o
indivíduo pode manter sua supremacia em relação ao social, pois a boa educação pressupõe
uma presença contínua e soberana do indivíduo” (1936). Mais tarde, ao abordar novamente
esse conceito ambíguo, Da Matta estabelece uma distinção significativa entre indivíduo e
pessoa, retomando as teorias de Dumont. Para ele, o “Você sabe com quem está falando?”
(1990), usado no Brasil para colocar alguém em seu lugar “social”, é a negação da
cordialidade, da flexibilidade das interações sociais, e “permite estabelecer o conceito de
pessoa onde antes existia apenas o de indivíduo” (1990). A partir dessas oposições entre
formalidade e cordialidade, ele define o conceito de pessoa como um papel social, “uma
máscara usada pelo indivíduo” (1990), e mostra de que maneira, no Brasil, indivíduos e
pessoas são ambos incorporados às diversas redes de sociabilidade. Essa dialética remete,
portanto, à distinção feita por Dumont (1979) entre sociedades igualitárias e individualistas,
onde predominam os indivíduos isolados e a “frieza” das relações sociais, e sociedades
hierarquizadas, divididas, contrastantes, nas quais a unidade social é a pessoa, e a realidade
social não é, portanto, o indivíduo em si, mas “como pode ser visto claramente na
umbanda, a relação que permite transcender as diferenças individuais e construir ligações
entre os grupos de modo a obter uma totalidade” (Da Matta, 1990), uma grande rede
cordial, um verdadeiro corpus social.
Esse holismo superficial, que pode ser sentido nas interações, mostra a que ponto a
cordialidade confunde, desclassifica, descategoriza e cria a ilusão de uma sociedade unida e
homogênea. Um certo realismo irônico aparece nas relações sociais no Brasil, marcadas ao
mesmo tempo pela violência (valores hierárquicos) e por uma familiaridade que beira o
passional. No entanto, Geffray interpreta esse mito do Brasil amável, “onde pobres e ricos
andam lado a lado sem pudor, unidos por um instinto inato da festa”, povoado pelo “mais
aberto, mais dinâmico e mais caloroso dos povos”, e mostra efetivamente como essa visão
paradisíaca não passa de “um clichê colorido, romanesco e superficial, como se a
representação que esses brasileiros fizessem de sua própria coletividade pudesse estar
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contida inteiramente em seus cartões-postais” (Geffray, 1995). Na verdade, a cordialidade
nada é senão a forma que a boa educação européia, feita de distâncias e meandros
impessoais, tomou no Brasil: familiaridade, proximidade e afetividade. Uma outra máscara
social, em suma, o que não impede que a cordialidade continue a ser uma espécie de verniz
simbólico, logo removido pela realidade das exclusões sociais.
A cordialidade social também é funcional: trata-se de uma forma de boa educação
que sabe utilizar toda a expressividade corporal, o que de certo modo explica por que as
relações com o corpo também são por sua vez funcionais e funcionalizadas no Rio de
Janeiro. No contexto do culto carioca ao corpo, este é portador de valores de distinção
social. No Rio, não é apenas a beleza em si que constitui o valor fundamental dessa
distinção social, mas também a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir
sua aparência: o que vemos do outro é o controle sobre si mesmo estampado no corpo,
como um título ou uma função estampadas em um cartão de visitas. Essa relação de espelho
com o corpo confirma de maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca, e os
corpos se cristalizam de modo generalizado, incorporando as imagens-normas da
corpolatria ambiente. Próxima, nesse sentido, do dualismo cartesiano que separa o sujeito
de seu corpo, a ideologia da corpolatria fundamenta o conceito de pessoa ao cristalizá-lo
socialmente em torno do “eu-físico”, em torno de uma aparência corporal a (re)construir.
Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a retomar posse daquilo que lhe
escapa socialmente. Nesse contexto, ao mesmo tempo fator de individualização e fator de
identificação, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A corpolatria seria então uma
ensomatose (uma queda dentro do corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada e
esteticamente orientada por imagens-normas ou por uma iconologia desse culto ao corpo.”
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