UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ALEXANDRE OGÊDA RIBEIRO REGULAÇÃO ECONÔMICA E O PAPEL DO BANCO CENTRAL DO BRASIL PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL São Paulo 2016 Alexandre Ogêda Ribeiro REGULAÇÃO ECONÔMICA E O PAPEL DO BANCO CENTRAL DO BRASIL PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Orientador: Bagnoli São Paulo 2016 Professor Doutor Vicente R484r Ribeiro, Alexandre Ogêda Regulação econômica e o papel do Banco Central do Brasil para o desenvolvimento econômico e social. / Alexandre Ogêda Ribeiro. – 2016. 173 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2016. Orientador: Vicente Bagnoli Bibliografia: f. 165-173 – 1. Banco Central. 2. Regulação econômica. 3. Sistema financeiro. 4. Estado. I. Título CDDir 341.38 Alexandre Ogêda Ribeiro REGULAÇÃO ECONÔMICA E O PAPEL DO BANCO CENTRAL DO BRASIL PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Aprovado em: _______________________________________________________ BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Vicente Bagnoli Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Eduardo Marcial Ferreira Jardim Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Marco Antônio Ribeiro Tura Professor Examinador Externo À minha querida esposa, Ivanyra, e ao meu filho, Frederico, grandes incentivadores deste trabalho. Aos meus colegas e professores do Curso de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, por dividirem comigo seus conhecimentos e suas motivações. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Professor Doutor Vicente Bagnoli, por acompanhar o desenvolvimento deste trabalho e por me incentivar na minha persistência em aprender. Nossos dias foram marcados pelo compartilhar de saberes, por questões certas nos momentos certos, pelo respeito e pela perseverança de fazer ensinar. Aos Professores Doutores Eduardo Marcial Ferreira Jardim e Marco Antônio Ribeiro Tura, pelo grande apoio e pelas sábias contribuições que tanto somaram para a conclusão desta dissertação. “Talvez não tenha conseguido fazer o melhor, mas lutei para que o melhor fosse feito. Não sou o que deveria ser, mas, graças a Deus, não sou o que era antes.” (MARTIN LUTHER KING) RESUMO Esta dissertação apresenta o papel do Banco Central do Brasil (BACEN) frente à economia do país e explora o tema regulação econômica, analisando como a referida instituição contribui para o desenvolvimento e o bem-estar econômico e social, por meio da garantia da estabilidade de preços, do pleno emprego, da desinflação, entre outras ações. Para tanto, relata, em um primeiro momento, a origem da formação econômica no Brasil e o histórico do Sistema Financeiro Nacional, apontando a sua relevância para o desenvolvimento econômico, com a preocupação de que as instituições financeiras tornem-se mais seguras. Em seguida, trata, especificamente, do BACEN, após fazer um breve esboço dos Bancos Centrais de outros países, revelando a sua origem e destacando o seu legítimo papel e as ferramentas de que se utiliza para a execução das políticas monetária e de crédito. Aborda, ainda, de forma sucinta, o conflito de competências entre o BACEN e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), explanando-se quais as tarefas competentes a cada órgão, a fim de dirimir a possível existência de impasse entre a defesa da concorrência e a defesa de segurança e da solidez do Sistema Financeiro. Por fim, centra o seu foco efetivamente na regulação econômica do país, revelando como o BACEN, por meio desse mecanismo, pode contribuir para o desenvolvimento econômico e social, analisando a estabilidade de preços, a estabilização da moeda e o pleno emprego. No que se refere nomeadamente ao pleno emprego, conclui-se, por todo o estudo, que tal princípio requer do Estado uma série de políticas públicas voltadas à geração de emprego, de modo que se torna necessário que o ente estatal passe a fomentar políticas e regular a atividade empresarial, impedindo o abuso de poder econômico. Palavras-chave: Banco Central. Regulação Econômica. Sistema Financeiro. Estado. ABSTRACT This dissertation presents the role of the Central Bank of Brazil (BACEN) compared to the country’s economy and explores the theme of economic regulation, analyzing how that institution contributes to the economic development and social well-being, by ensuring stability prices, full employment, disinflation, among other actions. Therefore, it reports, at first, the origin of the economic formation in Brazil and the history of the National Financial System, indicating their relevance to economic development, with the concern that financial institutions become more secure. Then, it study, specifically, the Central Bank, after making a brief outline of the Central Banks of other countries, revealing its origin and highlighting its legitimate role and the tools used for the implementation of monetary and credit policies. The dissertation approaches, also, succinctly, the conflict of powers between the Central Bank and the Administrative Council for Economic Defense (CADE), explaining to which the relevant tasks to each agency in order to resolve the possible existence of impasse between the defense competition and the protection of the safety and soundness of the Financial System. Finally, it focuses effectively on the economic regulation of the country, revealing how the Central Bank, through this mechanism, may contribute to the economic and social development, analyzing the stability of prices, currency stabilization and full employment. With regard in particular to full employment, it is clear, throughout the study, that this principle requires of the State a number of public policies aimed at job creation, so it is necessary that the state entity begins to develop policies and regulate business activity, preventing the abuse of economic power. Keywords: Central Bank. Economic Regulation. Financial System. State. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANAC Agência Nacional de Aviação Civil ATM Máquina de Atendimento Automático BACEN Banco Central do Brasil BB Banco do Brasil BCE Banco Central Europeu BCN Banco de Crédito Nacional BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento BIS Banco de Compensações Internacionais CADE Conselho Administrativo de Defesa Econômica CEPAL Comissão Econômica para a América Latina CF Constituição Federal CMB Casa da Moeda do Brasil CMN Conselho Monetário Nacional CNPC Conselho Nacional de Previdência Complementar CNSP Conselho Nacional de Seguros Privados COPOM Comitê de Política Monetária CVM Comissão de Valores Mobiliários DAC Departamento de Aviação Civil Demab Departamento de Operações do Mercado Aberto DNC Departamento Nacional do Café DPDE Departamento de Proteção e Defesa Econômica EUA Estados Unidos da América FED Federal Reserve System FGC Fundo Garantidor de Crédito FMI Fundo Monetário Internacional FOMC Federal Open Market Committee GATT Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio IBC Instituto Brasileiro do Café INPC Índice Nacional de Preços ao Consumidor IPCA Índice de Preços ao Consumidor Amplo OIT Organização Internacional do Trabalho OMC Organização Mundial do Comércio PDV Ponto de Venda PIB Produto Interno Bruto PREVIC Superintendência Nacional de Previdência Complementar PROER Programa de Estímulo à Reestruturação RAET Regime de Administração Especial Temporária SBDC Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência SDE Secretaria de Direito Econômico SEAE Secretaria de Acompanhamento Econômico SEBC Sistema Europeu de Bancos Centrais Selic Sistema Especial de Liquidação e de Custódia SFI Sistema Financeiro Internacional SFN Sistema Financeiro Nacional SPC Secretaria de Previdência Complementar STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça STR Sistema de Transferência de Reservas SUMOC Superintendência da Moeda e do Crédito SUSEP Superintendência de Seguros Privados TI Tecnologia da Informação TUE Tratado sobre a União Europeia URV Unidade de Reajuste de Valores SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12 1 DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL .............................................................. 15 1.1 A origem do Sistema Financeiro Internacional ........................................... 15 1.2 A formação econômica do Brasil.................................................................. 22 1.3 A evolução do Sistema Financeiro Nacional ............................................... 32 1.4 A estrutura do Sistema Financeiro Nacional ............................................... 35 1.5 O Sistema Financeiro e o processo de desenvolvimento .......................... 40 1.6 A Constituição de 1988 e o Sistema Financeiro Nacional .......................... 41 2 BANCOS CENTRAIS E SUA MISSÃO INSTITUCIONAL ..................................... 46 2.1 Bancos Centrais ............................................................................................. 46 2.1.1 O Federal Reserve System, dos Estados Unidos ........................................ 47 2.1.2 O Banco Central Europeu ............................................................................ 49 2.1.3 O Banco Federal da Alemanha .................................................................... 53 2.1.4 O Banco Nacional da Suíça ......................................................................... 54 2.1.5 O Banco da Inglaterra .................................................................................. 55 2.1.6 O Banco de Reservas da Nova Zelândia ..................................................... 56 2.1.7 O Banco Central do Chile............................................................................. 58 2.2 Banco Central do Brasil e sua origem .......................................................... 59 2.2.1 O BACEN após a Constituição de 1988 e suas funções .............................. 61 2.2.2 Atuação do BACEN e a evolução da regulação bancária no Brasil ............. 63 2.3 Conflito de competências entre o BACEN e o CADE .................................. 68 2.3.1 Do parecer da Procuradoria-Geral do BACEN ............................................. 71 2.3.2 Do posicionamento da Procuradoria do CADE ............................................ 73 3 REGULAÇÃO ECONÔMICA PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL ................................................................................................................ 78 3.1 Regulação econômica ................................................................................... 79 3.2 Regulação prudencial .................................................................................... 83 3.3 Regulação: teorias e princípios informadores para a concepção do Estado Regulador Contemporâneo ............................................................. 85 3.3.1 Princípios do Direito ..................................................................................... 89 3.3.1.1 Princípios gerais do Direito Econômico e da atividade econômica ........ 91 3.3.1.2 Princípios gerais do Direito Financeiro .................................................. 97 3.4 Regulação e Sistema Financeiro ................................................................ 100 3.5 A regulação econômica e a intervenção do Estado .................................. 105 3.5.1 O Estado Regulador Contemporâneo Neoliberal ...................................... 109 3.6 Regulação por meio do Direito Econômico ............................................... 112 3.7 Regulação econômica capaz de buscar solidez econômica .................... 113 3.8 Concentração X Regulação econômica ..................................................... 117 3.9 Autonomia do BACEN e desenvolvimento econômico ............................ 119 3.9.1 Autonomia e os poderes constitucionais................................................... 123 3.9.2 BACEN e a autonomia operacional .......................................................... 124 3.9.3 Aprimoramento da autonomia do BACEN ................................................ 133 3.10 Regulação do Banco Central e a contribuição para o desenvolvimento econômico e social ..................................................................................... 136 3.10.1 Estabilidade de preços............................................................................ 139 3.10.2 Estabilização da moeda .......................................................................... 144 3.10.3 Pleno emprego ....................................................................................... 150 3.10.3.1 Trabalho, ocupação e emprego ......................................................... 150 3.10.3.1.1 Trabalho ....................................................................................... 151 3.10.3.1.2 Ocupação ..................................................................................... 154 3.10.3.1.3 Emprego ....................................................................................... 155 3.10.3.2 O pleno emprego como garantia de desenvolvimento econômico e social ................................................................................................ 156 3.10.3.3 O princípio da busca do pleno emprego no Brasil ............................ 160 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 162 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 165 12 INTRODUÇÃO Sabe-se que a intervenção do Estado no domínio econômico tem um propósito fundamental, que é garantir o bem-estar econômico e social do país. E para alcançar esse escopo, seria necessário que o Estado, por intermédio do Banco Central, traçasse como objetivos principais a estabilidade de preços e a higidez financeira. É possível constatar que muitos países europeus e americanos, entre outros, após crises enfrentadas, passaram a controlar as atividades monetárias por meio de seus Bancos Centrais, conseguindo atingir a estabilidade macroeconômica. Dentro dessa concepção, resta evidente que o Banco Central contribui para o desenvolvimento e o bem-estar econômico e social, por meio da garantia da estabilidade de preços, do pleno emprego, da desinflação etc. Diante desse cenário, esta dissertação pretende explorar o tema regulação econômica, dando ênfase ao papel do Banco Central do Brasil (BACEN) para o desenvolvimento econômico e social do país. Para melhor compreensão, o presente trabalho foi dividido em três capítulos: 1) Do Sistema Financeiro Nacional; 2) Bancos Centrais e sua missão institucional; e 3) Regulação econômica para o desenvolvimento econômico e social. O primeiro capítulo abordará, de forma detalhada, o Sistema Financeiro Nacional (SFN), destacando a sua importância para a economia do país. Contudo, antes de aprofundar no assunto, trará uma breve explanação sobre o Sistema Financeiro Internacional (SFI). Em suma, o Sistema Financeiro Internacional pode ser classificado como as relações de troca ou negócios entre moedas, atividades, fluxos monetários e financeiros, empréstimos, pagamentos e aplicações financeiras internacionais entre empresas, bancos, bancos centrais, governos ou organismos internacionais. Entre as suas funções, estão facilitar o comércio e o investimento internacionais, transferir capital para onde for mais lucrativo etc. Já o Sistema Financeiro Nacional é responsável pelas estratégias econômicas do país, sendo composto por instituições financeiras ou não, interdependentes e afins, cujas funções são captar e intermediar os recursos financeiros da economia de maneira coordenada e em uma estrutura organizada. 13 Feita essa breve distinção, o capítulo seguirá com a origem da formação econômica no Brasil e o histórico do Sistema Financeiro Nacional, apontando a sua relevância para o desenvolvimento econômico do país, com a preocupação de que as instituições financeiras tornem-se mais seguras, além de abordar o tratamento recebido pelo SFN na Constituição Federal de 1988. O segundo capítulo, por sua vez, tratará, especificamente, do Banco Central, o qual, por ser parte integrante do Estado, tem como dever principal executar a política monetária orientada no intuito de contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país. Em síntese, versará sobre o legítimo papel dessa instituição e as ferramentas de que se utiliza para a execução das políticas monetária e de crédito. Cumpre mencionar que o assunto em destaque neste ponto do estudo é objeto de grandes discussões, visto que os Bancos Centrais encontram-se no centro do setor financeiro, conduzindo a política monetária dos países. O capítulo abordará, ainda, de uma maneira geral, os Bancos Centrais de outras nações, como o Federal Reserve System (FED), o Banco Central Europeu (BCE), o Banco Federal da Alemanha, o Banco Nacional da Suíça, o Banco da Inglaterra, o Banco de Reservas da Nova Zelândia e o Banco Central do Chile. Em seguida, ressaltará a origem do BACEN, suas funções após a Constituição Federal de 1988 e a sua atuação como executor da política monetária, além de trazer uma breve síntese da evolução da regulação bancária no Brasil. Encerrando a segunda seção, tratar-se-á do conflito de competências entre o Banco Central do Brasil e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, explanando-se quais as tarefas competentes a cada órgão, a fim de dirimir a possível existência de impasse entre a defesa da concorrência e a defesa de segurança e da solidez do Sistema Financeiro. No terceiro e último capítulo desta dissertação, estará em foco a regulação econômica do país, revelando como o Banco Central, por meio desse mecanismo, pode contribuir para o desenvolvimento econômico e social. Empreender-se-á um estudo sobre o que é a regulação econômica, bem como sobre as suas formas de atuação. Ademais, serão analisadas as teorias e os princípios informadores para a concepção do Estado Regulador Contemporâneo, enfatizando os princípios gerais 14 do Direito Econômico e os princípios gerais do Direito Financeiro, a fim de verificar as vigas-mestras que devem comandar o ente estatal nas ações de regulação. Estudando o Estado e a sua intervenção na regulação econômica, o Banco Central se mostra como um dos órgãos que atuam como um ente regulador da economia, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social do país, destacando-se, nesse diapasão, três atribuições que serão examinadas mais detalhadamente: a estabilidade de preços, a estabilização da moeda e o pleno emprego. Antes de analisar o pleno emprego propriamente dito, será realizada uma breve, porém relevante, exposição sobre trabalho, ocupação e emprego, esclarecendo o conceito dado a cada um deles nos diferentes momentos da existência humana. Conforme já salientado, o papel do Estado é fomentar a atividade produtiva e a criação de empregos, possibilitando a geração de renda e o bem-estar social, e, nesse sentido, a regulação do Banco Central e sua autonomia podem contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país. Por derradeiro, ainda no terceiro capítulo, discutir-se-á a questão de um Banco Central autônomo como fator de impedimento da prática de políticas de falso desenvolvimento, a cargo do governo, que pode e deve contrariar medidas em tal sentido e adotar metas não geradoras da descontrolada emissão monetária. Do mesmo modo, será evidenciada a defesa de que um Banco Central autônomo pode equilibrar a inflação, aumentando, dessa forma, o poder de compra, entre outros fatores. 15 1 DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL Este capítulo trata, especificamente, do Sistema Financeiro Nacional. Contudo, para a compreensão do tema, será realizada uma breve análise inicial do Sistema Financeiro Internacional, que é de salutar importância. A seguir, tratar-se-á da formação econômica do Brasil e da origem do SFN, bem como da sua evolução. Após, será explanada a estrutura do SFN e analisada a sua relação com o processo de desenvolvimento do país. Ao final, será abordado o tratamento recebido pelo SFN na Constituição Federal de 1988. 1.1 A origem do Sistema Financeiro Internacional O Sistema Financeiro Internacional (SFI) é a estrutura de acordos, regras, relações de troca ou negócios entre moedas, atividades, fluxos monetários, empréstimos, pagamentos, convenções e instituições em que os mercados internacionais e as firmas operam. Cumpre verificar que, no século XX, o SFI vivenciou uma grande evolução, passando por, pelo menos, três etapas principais: o sistema padrão-ouro, o sistema de Bretton Woods e as taxas de câmbio flutuantes. O sistema padrão-ouro1 foi o sistema monetário vigente de 1870 até 1914.2 Nele, cada banco tinha como obrigação vinculativa a conversão das notas bancárias que emitisse, em ouro ou prata, sempre que solicitado pelo cliente. Esse padrão estava associado basicamente à aceitação de certo número de países, e, segundo Paul Krugman, com obediência a três princípios básicos: conversibilidade das moedas nacionais em ouro, liberdade para o movimento 1 2 “O Sistema Padrão Ouro é a chave para se entender a Grande Depressão. O padrão ouro da década de 1920 preparou o palco para a depressão econômica da década de 1930 ao aumentar a fragilidade do sistema financeiro internacional. O padrão ouro foi o mecanismo transmissor do impulso desestabilizador dos Estados Unidos para o resto do mundo. Ampliou o choque desestabilizador inicial e foi o principal obstáculo para ações de neutralização à atadura que impediu os tomadores de decisão de reverter o fracasso dos bancos em conter a difusão do pânico financeiro. Devido a todos esses motivos, o padrão ouro internacional foi o fator central da depressão econômica mundial. A recuperação só foi possível, pelas mesmas razões, após o abandono do padrão ouro.” Cf. FRIEDEN, Jeffry A. Capitalismo global: história econômica e política do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 206. Richard Roberts afirma que o período do sistema padrão-ouro vai de 1816 até 1933, trazendo a Grã-Bretanha como o primeiro país que adotou o sistema, em 1816. Vide Por dentro das finanças internacionais: guia prático dos mercados e instituições financeiras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 14. 16 internacional de ouro (entrada e saída sem restrições) e um conjunto de regras que vinculavam as moedas em circulação às reservas nacionais do país.3 Logo, havia uma paridade fixa entre cada moeda e o ouro, e entre diversas moedas simultaneamente. Os países comprometidos com o padrão-ouro, como os Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, fixavam o valor da sua moeda em relação a uma quantidade concreta de ouro e também se responsabilizavam por realizar uma política monetária de compra e venda do metal, de modo a preservar a semelhança definida. Nessa época, o Banco Central de cada país mantinha a maioria dos seus ativos de reserva internacional sob a forma de ouro. Assim, os desequilíbrios das balanças de pagamentos eram sanados por meio de transferências internacionais do metal. Nota-se, dessa forma, que a função desse antigo padrão era limitar o crescimento monetário da economia mundial, assegurando, ainda, a estabilidade dos níveis de preços mundiais. Se um país fosse deficitário na sua balança de pagamentos, ou seja, se a soma de bens e serviços importados do exterior fosse superior à soma de bens e serviços exportados, o país tinha de equilibrar o déficit exportando ouro. Cabe observar que, em decorrência da Primeira Guerra Mundial, o dólar americano tornou-se o esteio do padrão-ouro. Nesse período, muitos países abandonaram o padrão ouro e passaram a estabelecer medidas macroeconômicas com a intenção de suprir as suas respectivas crises internas. Para superar essa escassez de recursos em ouro no nível internacional, o Comitê Financeiro em 1922, passou a recomendar aos países menores (em desenvolvimento) que mantivessem suas reservas em moedas estrangeiras, provindas dos países desenvolvidos [...] No entanto, com o grande endividamento público registrado nesse período, o aumento da falta de credibilidade em moedas internacionais e o aprofundamento da deterioração econômica mundial com a crise de 1929, houve um abandono completo das medidas propagadas pelo padrão-ouro, e as políticas keynesianas entraram em vigor. Muitos consideram que o principal fracasso do padrão-ouro foi que os países no pós-guerra passaram a priorizar o âmbito doméstico e suas respectivas políticas internas em detrimento da política externa, levando ao fracasso o modelo vigente (devido à necessidade deste de subordinar as políticas 4 econômicas internas aos objetivos coletivos externos). Após esse período, os representantes dos Estados se voltaram às necessidades da economia mundial. O medo do surgimento de uma nova crise 3 Economia internacional: teoria e política. 6. ed. São Paulo: Pearson, 2005 apud FERREIRA, Vanessa Capistrano. Sistema Financeiro Internacional: fracassos e necessidades de reestruturação macroeconômica. Aurora, Marília, v. 5, n. 1, p. 157-168, jan./jun. 2012, p. 159. 4 FERREIRA, Vanessa Capistrano, op. cit., p. 160. 17 internacional, como a ocorrida nos anos de 1930, levou os Estados nacionais a buscarem medidas de regulamentação para o sistema monetário do período. Assim, em 1944,5 representantes de 44 países se juntaram em Bretton Woods, com o objetivo de planejar e assinar o acordo do Fundo Monetário Internacional (FMI). No contexto da Conferência de Bretton Woods, segundo Ícaro Ivvin de Almeida Costa Lima, o mundo ainda respirava os ares da Segunda Guerra Mundial quando os EUA e a Inglaterra começaram a empenhar-se em desenhar um novo Sistema Financeiro Internacional para o pós-Guerra.6 Vivia-se, também, a ressaca da Crise de 1929, e a elevada preocupação em inaugurar uma nova ordem econômica internacional sólida fundava-se essencialmente em dois grandes temores: o de regresso à depressão econômica na qual o mundo mergulhara após a Crise de 1929, e a todas as problemáticas dela oriundas; e a aversão à possibilidade de uma “reedição” dos horrores da Guerra, a qual foi desencadeada essencialmente sob a pressão dos flagelos econômicos e das chagas sociais produzidas pela Grande Depressão, que levou diversos governos ditatoriais ao poder. Desse modo, anos antes de Bretton Woods, em dezembro de 1941, Harry Dexter White, assistente especial do Secretário do Tesouro dos EUA (Henry Morgenthau Jr.), e John Maynard Keynes,7 então conselheiro do Tesouro do Reino Unido, e já um dos mais consagrados economistas da época, foram indicados para desenvolver um projeto de novo sistema monetário internacional que pudesse evitar a ocorrência de uma depressão, como a ocorrida nos anos de 1930, e promover um 5 6 7 No entender de Richard Roberts, o período Bretton Woods vai de 1944 até 1973, e leva esse nome devido ao local em que foi realizada a Conferência, nas instalações do Hotel New Hampshire. Cf. Por dentro das finanças internacionais: guia prático dos mercados e instituições financeiras, p. 15. A governança do Sistema Financeiro Internacional: uma guinada na perspectiva pós-crise. Coimbra: Working Papers, 2014, p. 11. Keynes, o maior e mais eficiente crítico do liberalismo clássico, manteve-se fiel aos objetivos fundamentais eternizados em obras, ao apresentar seu plano em Bretton Woods: um mundo sem desemprego, sem grandes desigualdades entre as classes sociais e entre as nações, com base na gestão racional da economia pelos Estados. A ideia não seria abandonar os padrões então vigentes do capitalismo, mas romper os limites do atraso e da pobreza por meio da intervenção do Estado, a fim de multiplicar as oportunidades e de promover o bem-estar. Tentava-se, nesse momento, a conciliação entre o Estado e o mercado, sendo aquele o promotor do desenvolvimento deste. Vide BORGES, Florinda Figueiredo. Intervenção estatal na economia: o Banco Central e a execução das políticas monetária e creditícia. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 47. 18 crescimento econômico pós-Guerra, a ser debatido posteriormente na referida Conferência.8 Na conferência do Atlântico (1942) as negociações acerca de um novo sistema financeiro mundial prosseguiram; ficando desde então evidentes a rivalidade e divergência de interesses entre o velho imperialismo britânico e o emergente dos Estados Unidos. Em abril de 1943, Harry D. White e Keynes publicaram os textos das suas respectivas propostas de reforma para que pudessem receber sugestões de um número restrito de países. Em abril de 1944, chegava-se aos termos de um manifesto conjunto com as balizas do que, em julho deste mesmo ano, seria debatido na Conferência de Bretton Woods. Tal manifestação recebeu a alcunha de “Joint statement of experts on the establishment of an international monetary fund”. As duas propostas divergiam essencialmente no que tange ao padrão monetário internacional e sua implementação, bem como sobre o mecanismo de ajustes na balança de pagamentos. Nesse contexto é que, em julho de 1944, as 44 nações aliadas reuniram-se na cidade de Bretton Woods, no Estado norte-americano de New Hampshire para debater a reestruturação 9 do Sistema Econômico e Monetário Internacional. Para Keynes, o Estado deveria exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir, em parte pelo seu sistema de tributação, em parte por meio de fixação da taxa de juros, e, em parte, talvez, recorrendo a outras medidas.10 A tese de Harry Dexter White objetivava, em geral: auxiliar a reconstrução das economias devastadas pela Guerra, pregar a volta ao padrão-ouro, garantir paridades monetárias estáveis e eliminar os controles cambiais. Ele apresentou um plano diferente, e, na qualidade de representante dos Estados Unidos, defendeu o dólar como moeda-chave no sistema, consolidando a hegemonia norte-americana no âmbito monetário internacional.11 O Sistema Financeiro que surgiria de Bretton Woods seria amplamente favorável aos Estados Unidos, que, dali em diante, teriam o controle, de fato, de boa parte da economia mundial, bem como de todo o seu sistema de distribuição de capitais. É necessário destacar, ainda, que a Conferência de Bretton Woods fundou a primeira ordem internacional monetária totalmente negociada da história. Seu principal objetivo era reestruturar o sistema capitalista mundial, a partir do estabelecimento de um arcabouço regulatório mínimo da política econômica internacional. 8 LIMA, Ícaro Ivvin de Almeida Costa, A governança do Sistema Financeiro Internacional: uma guinada na perspectiva pós-crise, p. 11. 9 Ibidem, p. 11-12. 10 BORGES, Florinda Figueiredo, Intervenção estatal na economia: o Banco Central e a execução das políticas monetária e creditícia, p. 48. 11 Ibidem, loc. cit. 19 Outrossim, a ideia da criação de um organismo internacional responsável por centralizar o pagamento de todas as transações (exportações e importações) de bens, serviços e ativos – funcionando como uma espécie de Banco Central dos Bancos Centrais Nacionais – suscitou grande resistência (principalmente dos atores políticos) dos diversos Estados, com destaque para os EUA, uma vez que a maioria deles não estava disposta a abrir mão da sua autonomia decisória sobre a sua política econômica para um organismo internacional. De mais a mais, a proposta formulada por Harry Dexter White, em 1941, apresentava grande similitude com as ideias apresentadas por Keynes, em 1923, em sua obra “A tract on monetary reform”, como uma sugestão de reforma monetária para os países à época.12 O acordo relativo ao FMI entrou em vigor em dezembro de 1945. Essa instituição foi criada com a função de garantir a estabilidade do sistema monetário internacional, tendo como principais objetivos a promoção da cooperação econômica, a facilitação da expansão e do crescimento equilibrado do comércio internacional, a promoção da estabilidade de câmbios, a provisão de liquidez (quando necessário), bem como a instituição de um sistema multilateral de pagamentos para transações correntes. A fim de exercer o seu papel de estabilizador das taxas cambiais, o FMI poderia disponibilizar, aos países em dificuldade, reservas monetárias; recursos esses oriundos dos demais países membros da instituição. Segundo Richard Roberts, no final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos representavam, incontestavelmente, a economia predominante no mundo, detendo 70% das reservas mundiais de ouro. Assim, o dólar americano tinha um papel-pivô nos novos arranjos: a moeda foi ancorada ao ouro e as autoridades dos EUA incumbiram-se de sustentar a conversibilidade do dólar no metal.13 Definiu-se, então, a substituição do padrão-ouro internacional, vigente até o período anterior à Primeira Guerra Mundial, pelo padrão ouro-dólar. Por esse padrão, todas as moedas nacionais seriam referenciadas pelo valor do dólar, passando este a ser unidade contábil e padrão monetário, com uma paridade dólarouro fixada em US$ 35,00 por onça de ouro.14 12 LIMA, Ícaro Ivvin de Almeida Costa, A governança do Sistema Financeiro Internacional: uma guinada na perspectiva pós-crise, p. 12. 13 Por dentro das finanças internacionais: guia prático dos mercados e instituições financeiras, p. 16. 14 LIMA, Ícaro Ivvin de Almeida Costa, op. cit., p. 13. 20 A estipulação da manutenção de taxas fixas de câmbio justificava-se essencialmente pelo intuito de se evitar a “reedição” de um descontrole monetário internacional, motivado pela manipulação anárquica das taxas cambiais pelos países, nos moldes ocorridos após a Crise de 1929. Os EUA não chegaram a ratificar o acordo do FMI, tendo em vista a sua rejeição pelo Senado norte-americano. Nesse contexto, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla inglesa), que havia sido firmado, em caráter provisório, por 23 países na reunião de Genebra (1947), tornou-se o principal instrumento jurídico de regulação do comércio internacional, funcionando mesmo como uma organização internacional de fato até a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994. Em que pese tenha passado por alguns percalços quando da sua implementação e funcionamento – tais como a ineficiência do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e do FMI para auxiliarem na promoção da reconstrução da Europa no pós-Guerra, ou, ainda, a demora para a implementação completa do sistema multilateral de pagamentos previsto na Conferência de 1944, que só passou a existir de fato em 1958, dentre vários outros fatores –, o Sistema de Bretton Woods conseguiu promover uma profícua reestruturação do sistema econômico-financeiro internacional. Patenteando tal realidade, os dados econômicos da época apontam que, entre 1950 e o início dos anos de 1970, o produto mundial manteve uma taxa de crescimento média de 5,5% ao ano, o volume de comércio internacional foi quadruplicado e a taxa de inflação dos principais países manteve-se estabilizada em níveis semelhantes aos vigentes no período padrão-ouro.15 De 1945 até 1970, período em que vigorou a sistemática de Bretton Woods16 e do padrão dólar-ouro, com os demais países estabelecendo a paridade de suas 15 LIMA, Ícaro Ivvin de Almeida Costa, A governança do Sistema Financeiro Internacional: uma guinada na perspectiva pós-crise, p. 15. 16 O sistema de Bretton Woods ofereceu previsibilidade às decisões capitalistas e, ao cabo, permitiu a obtenção de resultados econômicos altamente favoráveis. Tratou-se, assim, de um arranjo monetário internacional que, sob a liderança americana, permitiu a construção industrial da Europa e do Japão, a industrialização periférica e o desenvolvimento de economias nacionais autônomas, sem o qual dificilmente a fase dourada do capitalismo teria ocorrido. Vide OLIVEIRA, Giuliano; MAIA, Geraldo; MARIANO, Jefferson. O sistema de Bretton Woods e a dinâmica do sistema monetário internacional contemporâneo. Pesquisa & Debate, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 195-219, 2008, p. 216. 21 moedas em relação à moeda norte-americana, pode-se dizer que o capitalismo passou por uma fase de prosperidade. Contudo, alguns fatores contribuíram para o fim do sistema Bretton Woods, destacando-se os problemas de liquidez e de ajustamento. Devido às paridades cambiais e às políticas econômicas, a manutenção de taxas fixas de câmbio em situação de desequilíbrio persistente de balanço de pagamentos tornou-se uma contradição. Assim, a partir de 1973, o Sistema Financeiro Internacional passou a conviver com taxas de câmbio flutuantes determinadas pelo mercado e sujeitas a intervenções dos Bancos Centrais e acordos multilaterais. Richard Roberts aponta que, em janeiro 1976, em reunião anual realizada em Kingston, na Jamaica, o FMI alterou os seus estatutos para levar em conta o novo regime de taxas flutuantes. O preço oficial do ouro foi abolido e deu-se maior importância à participação dos direitos especiais de saque nas reservas internacionais. Foi concedida ampla liberdade aos países-membros do Fundo para administrar suas taxas de câmbio, embora se defendesse a supervisão firme do FMI.17 Importante lembrar que o dólar, o iene e a libra esterlina pautaram-se pelas forças do mercado, e as suas flutuações foram coordenadas pelos Bancos Centrais dos respectivos países. Algumas nações em desenvolvimento ancoraram suas taxas de câmbio no dólar especificamente. Com a queda desses modelos apresentados, os mercados financeiros contemporâneos encontraram-se imersos em um sistema de constante expansão dos fluxos de capitais e das taxas de câmbio flutuantes, tidas como imprevisíveis. O atual sistema possui como objetivo viabilizar a fluidez das relações econômicas internacionais, proporcionando a maximização dos ganhos com o comércio transfronteiriço e os benefícios derivados dos movimentos constantes de capital. 17 Por dentro das finanças internacionais: guia prático dos mercados e instituições financeiras, p. 21. 22 1.2 A formação econômica do Brasil Nesta subseção, a ênfase está na formação econômica, social e política do Brasil, abrangendo aspectos importantes e fundamentais da história econômica, como as raízes rurais do comércio brasileiro, o tráfico de escravos etc. Faz-se necessário incluir o estudo da formação econômica do Brasil para adentrar a análise do Sistema Financeiro Nacional, que surgiu para organizar e controlar, com suas instituições, uma política econômica que cresceu de certa forma desorganizada, almejando regularizar a economia do país. Segundo Vicente Bagnoli, em linhas gerais, a economia se concentra nas condições da prosperidade material, em acumular riquezas e em sua distribuição aos que participam desse esforço social de produção. Por essa razão, na atividade econômica, o homem aplica os seus esforços para obter, por meio de bens ou serviços, a satisfação de suas necessidades, traduzindo-se em verdadeiro fenômeno econômico, que, quando ocorre dentro da organização social, constitui o sistema econômico.18 Para Fábio Nusdeo, a economia existe porque os recursos são sempre escassos frente à multiplicidade das necessidades humanas.19 Em seu entender, o sistema econômico tem grande importância nas Ciências Sociais, sobretudo porque se sabe que a economia é um elemento decisivo na propulsão dos acontecimentos sociais e históricos. Por isso, os economistas interessam-se por sua discussão e análise.20 Para chegar ao Sistema Financeiro que o Brasil possui hoje, todo sistematizado, com diversos órgãos, vale recordar uma história, cujo início foi bem simples. É importante, antes de tudo, diferenciar Economia e Finanças. Acima, viu-se a apresentação de Bagnoli sobre Economia. Já Marcus Abraham define Ciência das Finanças como o estudo dos elementos que influenciam a obtenção de recursos 18 Direito econômico. São Paulo: Atlas, 2013, p. 279. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 30-31. 20 Idem. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, passim. 19 23 financeiros, sua gestão e o emprego dos meios materiais (bens, serviços e dinheiro) na realização de uma das atividades do Estado: a atividade financeira.21 O que será visto nas linhas abaixo guarda relação com o que explica Abraham sobre a Ciência das Finanças. Ela interage com as demais áreas do conhecimento humano que lhe afetam, a saber: a) Economia Política, que tem por objetivo a explicação causal da realidade social e econômica; b) História, que estuda os fatos passados relacionados com as finanças públicas; c) Estatística, que ensina a registrar sistematicamente dados quantitativos referentes às finanças públicas; d) Contabilidade, que auxilia na elaboração do orçamento público, obedecendo a uma padronização necessária à sua utilização; e e) Direito, que cria as normas jurídicas para a aplicação na atividade financeira do Estado.22 O Brasil Colônia se desenvolveu fora do mundo urbano. Conforme Sergio Buarque de Holanda, foi efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da Colônia se concentrou durante os séculos iniciais da ocupação europeia: as cidades eram virtualmente, se não de fato, delas.23 Com simples dependências e pouco exagero, pode-se dizer que tal situação não se modificou essencialmente até à Abolição, em 1888, que representou o marco divisório entre duas épocas na evolução nacional, assumindo significado singular e incomparável. O Brasil industrial foi construído junto à urbanização. Nesse sentido, Darcy Ribeiro entende que estes dois elementos marcham juntos: a industrialização, oferecendo empregos urbanos à população rural; e esta entrando em êxodo na busca de tais oportunidades de vida.24 Mas não é bem assim. Geralmente, fatores externos afetam os dois processos, impedindo que se lhes dê uma interpretação linear. No século XVI, foram os carneiros ingleses que expulsaram a população do campo.25 No Brasil, foi possível observar um desenvolvimento econômico especificamente na década de 1930, quando o país entrou na Revolução Industrial, 21 Curso de direito financeiro brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 25. Ibidem, p. 26. 23 Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 73. 24 Darcy Ribeiro pontua que, no Brasil, vários processos, como o monopólio da terra e a monocultura, promovem a expulsão da população e a quantidade imensa de gente que se vê compelida a transladar-se. A população urbana salta de 12,8 milhões em 1940, para 80,5 milhões, em 1980. Agora é de 110,9 milhões. Cf. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 181-182. 25 Ibidem, p. 181. 22 24 e, do dia para a noite, deu um salto, muito impulsionado pela ruptura com o campo e também com o Brasil Colônia.26 Já no campo social, a escravidão teve um papel preponderante na sociedade brasileira, trazendo impactos para sociedade até os dias de hoje. Segundo Roberto Cavalcanti de Albuquerque: Pode-se dizer que, na segunda metade do século XIX, no cerne da questão social brasileira esteve sempre a escravidão, a maior das iniquidades. Joaquim Nabuco, autor de O abolicionismo, um dos textos fundadores da sociologia brasileira por articular uma visão totalizadora das raízes históricas do Brasil, vê na escravidão a instituição que formou o país, sustentando-lhe a economia; definindo sua estrutura na sociedade; influenciando fortemente a cultura nacional. E lamenta que os abolicionistas, bastando-se apenas com a cultura nacional dos negros, nos tenham legado um país confuso e incompleto: a frustrar a necessária reforma da sociedade, que deveria ter-se seguido aos 13 de maio de 1888. Mais que ela, a reforma individual de nós mesmos, assim resgatando os escravos e senhores do jugo que os inutiliza, igualmente, para a vida livre. Pois na alforria dos escravos estava também a salvação dos senhores dos vícios 27 fortemente arraigados do escravocrata. Essa questão social ainda impacta a sociedade brasileira, revelando-se como o pontapé inicial para a desigualdade social, que será tratada mais à frente. A questão da atual economia brasileira, com sua estrutura social e política, está totalmente ligada ao passado, ou, como apresenta Roberto DaMatta, há duas questões importantes para entender a economia do país: “De um lado, ela é moderna e eletrônica, mas de outro é uma chave antiga e trabalhada pelos anos”.28 A abordagem política aqui utilizada será histórica, que é a mesma empregada por autores como Celso Furtado29 e Sergio Buarque de Holanda30, os quais trazem como grande marco o advento de 1888, com a Abolição. 26 Luiz Carlos Bresser-Pereira entende que a decolagem da economia brasileira tem antecedentes bem definidos, como o desenvolvimento da cultura do café, que cresceu no Brasil a partir de meados do século XIX. O ciclo do café tem características diversas do ciclo do açúcar ou do ouro. Além do açúcar e do ouro ter ocorrido em plena época colonial, a diferença fundamental está no fato de que, com o café, começa a ser usado em grande escala o trabalho assalariado, ao invés do escravo. Vide Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getulio Vargas a Lula. Brasília: Ed. 34, 2003, p. 41. 27 O desenvolvimento social do Brasil: balanço dos anos de 1900-2010 e agenda para o futuro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p. 23. 28 DaMatta entende que é típico do sistema brasileiro essa capacidade de misturar e acasalar as coisas como atividade relacional, de ligar e descobrir um ponto central. Conhecemos e convivemos com suas manifestações políticas (a negociação e a conciliação) e econômicas (uma economia que é estatizante e, ao mesmo tempo, segue as linhas-mestras do capitalismo clássico), mas, de certo modo, não discutimos as suas implicações sociológicas mais profundas. E, em nossa visão, essas implicações se escondem nessa ligação, ou capacidade relacional do antigo com o moderno, que tipifica e singulariza a sociedade brasileira. Cf. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 19. 29 Formação econômica do Brasil. 32. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003, passim. 30 Raízes do Brasil, passim. 25 Porém, antes da Abolição, houve a colonização, em que os interesses políticos visavam à exploração de mão de obra europeia, após a mão de obra escrava, e à exportação de matéria-prima.31 Isso só fez acalmar alguns acontecimentos políticos na Europa, proporcionando o crescimento político brasileiro. Celso Furtado esclarece que o crescimento político aumentou o problema financeiro no país, iniciado com a decadência do ouro.32 Ocupado o reino português pelas tropas francesas, desapareceu o entreposto que representava Lisboa para o comércio da Colônia, tornando-se indispensável o contato direto desta última com os mercados ainda acessíveis. A “abertura dos portos”, decretada ainda em 1808, resultava de uma imposição dos acontecimentos. Vieram, em seguida, os tratados de 1810, que transformaram a Inglaterra em potência privilegiada, com direitos de extraterritorialidade e tarifas preferenciais extremamente baixas, tratados esses que construíram, em toda a primeira metade do século XIX, uma séria limitação à autonomia do governo brasileiro no setor econômico. A separação definitiva de Portugal em 1822 e o acordo pelo qual a Inglaterra conseguiu consolidar a sua posição em 1827 são outros dois marcos fundamentais nessa etapa de grandes acontecimentos políticos. Por último, cabe referir a eliminação do poder pessoal de Dom Pedro I, em 1831, e a consequente ascensão definitiva ao poder da classe colonial dominante, formada pelos senhores da grande agricultura de exportação.33 Com as mudanças no século XVII, foi alterado totalmente o rumo de Portugal como metrópole, pois, na época que estava ligado à Espanha, perdeu o melhor de seus entrepostos orientais. No século XVIII, ocorreu um avanço na produção de ouro no Brasil. Celso Furtado explica que o ciclo do ouro constituiu um sistema mais ou menos integrado, dentro do qual coube a Portugal a posição secundária de simples entreposto. 31 Darcy Ribeiro chama isso de “A empresa Brasil”. Todo tipo de exploração foi realizada aqui, levando fortuna para Portugal. Citando Salvador, o autor sustenta: “[...] Por mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberem falar, também lhe houveram de lhe ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam: papagaio real pera Portugal, porque tudo que querem para lá, uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída”. Cf. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, p. 124 e 160. 32 FURTADO, Celso, Formação econômica do Brasil, p. 90. 33 Ibidem, loc. cit. 26 Para sobreviver como metrópole, Portugal precisou fazer uma parceria com a grande potência da época, a Inglaterra. Os acordos concluídos com o governo inglês em 1642-1661 estruturaram essa aliança, que marcou profundamente a vida política e econômica de Portugal e do Brasil durante os dois séculos seguintes. Portugal fazia concessões econômicas e a Inglaterra pagava com promessas ou garantias políticas. Com respeito às Índias Orientais, por exemplo, Portugal cedeu Bombaim permanentemente e à Inglaterra prometeu utilizar sua esquadra para manter a ordem nas possessões lusitanas. Os ingleses conseguiam, demais, privilégios de manter comerciantes residentes em praticamente todas as colônias portuguesas. O acordo de 1661 incluía finalmente uma cláusula secreta pela qual os ingleses prometiam defender as colônias portuguesas contra quaisquer inimigos. Se tem em conta que por essa época a Espanha ainda não reconhecera a separação de Portugal e que nesse mesmo ano se estava negociando a paz com a Holanda, é fácil compreender o que significava para o governo português uma aliança que lhe garantia a sobrevivência 34 como potência colonial. As dificuldades econômicas de Portugal não cessaram; ao contrário, continuaram a agravar-se, e, com isso, causavam a desvalorização monetária. Portugal precisava urgentemente encontrar uma solução para as dificuldades da balança comercial, pois os produtos coloniais de exportação já não pareciam suficientes. Furtado comenta que essa política alcançou dar alguns frutos, e, durante dois decênios, chegou-se a interditar a importação de tecidos de lã, principal manufatura então importada. Tal política, entretanto, não chegaria a amadurecer plenamente. O rápido desenvolvimento da produção de ouro no Brasil, a partir do primeiro decênio do século XVIII, modificaria fundamentalmente os termos do problema. Conforme será analisado em detalhes nos capítulos subsequentes, o acordo comercial celebrado com a Inglaterra em 1703 desempenhou papel básico no curso tomado pelos acontecimentos.35 O benefício para o Brasil foi que o ouro permitiu financiar uma grande expansão demográfica, que trouxe alterações fundamentais à estrutura de sua população, quando, então, os escravos passaram a constituir a minoria, e o elemento de origem europeia, a maioria. A Inglaterra foi beneficiada com o ciclo do ouro brasileiro, que trouxe grande estímulo ao desenvolvimento manufatureiro e flexibilidade à sua capacidade para 34 35 Formação econômica do Brasil, p. 41. Ibidem, p. 42. 27 importar, permitindo a concentração de reservas que fizeram do sistema bancário inglês o principal centro financeiro da Europa. Sabe-se que, para Portugal, a economia do ouro proporcionou nada mais do que uma aparência de riqueza, repetindo a experiência da Espanha no século anterior. No fim do século XVIII, deu-se a decadência da mineração do ouro no Brasil e a Inglaterra entrara na Revolução Industrial. As necessidades de mercados cada vez mais amplos para as manufaturas em processo de rápida mecanização impuseram, no território inglês, o abandono progressivo dos princípios protecionistas. Celso Furtado destaca a forma peculiar como se processou a independência da América portuguesa, que teve consequências fundamentais no seu posterior desenvolvimento. Transferindo-se o governo português para o Brasil sob a proteção inglesa e operando-se a independência da Colônia sem descontinuidade na chefia do governo, os privilégios econômicos de que se beneficiava a Inglaterra em Portugal passaram automaticamente para o Brasil independente. Com efeito, se bem havia conseguido separar-se de Portugal em 1822, o Brasil necessitou de vários decênios mais para eliminar a tutela que, graças a sólidos acordos internacionais, mantinha sobre ele a Inglaterra. Esses acordos foram firmados em momentos difíceis e constituíam, na tradição das relações luso-inglesas, pagamentos em privilégios econômicos de importantes favores políticos.36 A Independência, do ponto de vista militar, constituiu uma operação simples; do ponto de vista diplomático, exigiu um grande esforço. Portugal tinha em mãos uma carta de alto valor: sua dependência política da Inglaterra. Se interpretasse a Independência do Brasil como um ato de agressão a Portugal, a Inglaterra estava obrigada a vir em socorro de seu aliado agredido. Na metade do século XIX, ocorreram alguns fatos que constituíram um período de transição durante o qual se consolidou a integridade territorial e se firmou a independência política. Os privilégios concedidos à Inglaterra criaram sérias dificuldades econômicas, conforme será visto em capítulo posterior. Essas dificuldades econômicas, por um lado, reduziram a capacidade de consolidar definitivamente o país, mas marcaram o sentido do posterior desenvolvimento. 36 Formação econômica do Brasil, p. 42. 28 Furtado afirma que, à medida que o café aumentava a sua importância dentro da economia brasileira, ampliavam-se as relações econômicas com os Estados Unidos. Já na primeira metade do século, os EUA passaram a ser o principal mercado importador do Brasil. Essa ligação e a ideologia nascente de solidariedade continental contribuíram para firmar o sentido de independência vis-à-vis da Inglaterra. Assim, quando expirou, em 1842, o acordo com este último país, o Brasil conseguiu resistir à forte pressão do governo inglês para firmar outro documento do mesmo estilo. Eliminado o obstáculo do tratado de 1827, estava aberto o caminho para a elevação da tarifa e o consequente aumento do poder financeiro do governo central, cuja autoridade se consolidou definitivamente nessa etapa.37 Olhando pela ótica econômica, o Brasil da metade do século XIX não diferia muito do que fora nos três séculos anteriores. A estrutura econômica, baseada principalmente no trabalho escravo, se mantivera imutável nas etapas de expansão e decadência. A ausência de tensões internas, resultante dessa imutabilidade, foi responsável pelo atraso relativo da industrialização. A expansão cafeeira da segunda metade do século XIX, durante a qual se modificaram as bases do sistema econômico, constituiu uma etapa de transição econômica, assim como a primeira metade desse século representou uma fase de transição política. E foi das tensões internas da economia cafeeira em sua etapa de crise que surgiram os elementos de um sistema econômico autônomo, capaz de gerar o seu próprio impulso de crescimento. Segundo Luiz Carlos Bresser-Pereira, desenvolvimento é um processo de transformação econômica, política e social, por meio do qual o crescimento do padrão de vida da população tende a tornar-se automático e autônomo. Trata-se de um processo social global, em que as estruturas econômicas, políticas e sociais de um país sofrem contínuas e profundas transformações, cujo resultado mais importante, todavia, ou pelo menos o mais direto, é o crescimento do padrão de vida da população.38 O Brasil teve o seu marco desenvolvimentista em meados de 1930, quando, então, se pode dizer, teve início a revolução nacional brasileira. O país, até essa época, era rural e semicolonial, e passava, agora, do rural para o urbano.39 37 Formação econômica no Brasil, p. 43. Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula, p. 31. 39 HOLANDA, Sergio Buarque de, Raízes do Brasil, p. 172. 38 29 Esse desenvolvimento representou uma mudança da atividade econômica, que, antes da década de 1930, estava voltada para a agricultura e a exportação, buscando um desenvolvimento produtivo interno baseado na indústria e no setor urbano, de forma rápida e urgente. O Brasil pegou “carona” na Revolução Industrial europeia. A industrialização deslocava não só a mão de obra, mas também recursos empregados na agricultura para a indústria, promovendo uma revolução social e econômica.40 Com a crescente produção em massa e a urbanização, fazia-se cada vez mais imprescindível viabilizar facilidades de distribuição, aumentar a estrutura de concessão de créditos, implantar um sistema educacional mais amplo e incumbir o governo de novas atribuições. O incremento da produtividade, ao mesmo tempo que criava novas necessidades à população, também propiciava os meios a satisfação desses anseios, elevando o padrão de vida. O consumo, o prazer, com viagens, hotéis, diversões e restaurantes, o que hoje se denomina indústria do entretenimento e do turismo, também começa a despontar. Da mesma forma que a mão-de-obra na indústria representava novos postos de trabalho, na Revolução Industrial também proliferaram os trabalhos de prestadores de serviços e profissionais liberais. Com a Revolução Industrial, 41 portanto, tem-se uma sociedade mais rica, mas também mais complexa. Bem lembrado por Vicente Bagnoli é o fato de que a ascensão social foi viabilizada pela Revolução Industrial. Muitos camponeses não eram apenas simples operários, mas faziam serviços diversos na indústria, comércio e setores terciários.42 Tornava-se comum não só fazerem escolhas para ocupar vagas de trabalho pela ascendência da pessoa ou por indicação, começando a prevalecer a seleção pela aptidão do indivíduo para o exercício do emprego, impulsionando a competição entre as pessoas para se tornarem cada vez melhores, mais aptas.43 Bresser-Pereira pontua que, no plano econômico, as transformações foram notáveis. Devido à industrialização, o Brasil substituiu as importações, passando a produzir produtos manufaturados.44 Celso Furtado explica muito bem essa fase de produção interna, após a crise cafeeira no Brasil em 1929, lembrando-se da indústria têxtil, que cresceu após a 40 BAGNOLI, Vicente. Direito e poder econômico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 29. Ibidem, loc. cit. 42 Ibidem, p. 30. 43 Bresser-Pereira diz que, em 1930, no Brasil, surgiram duas novas classes delinearmente com mais firmeza: a burguesia industrial e o proletariado urbano. Essas duas classes virão, nos nossos dias, a marcar decisivamente a sociedade nacional. Por outro lado, a classe média expande-se rapidamente. Continua ainda em grande parte ligada ao funcionalismo público parasitário. O próprio Estado, porém, deixa sua atitude passiva, de mero instrumento de uma classe dirigente objetivando a ordem social, para participar de forma ativa do desenvolvimento nacional, tornando-se principal desencadeador. Cf. Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula, p. 31. 44 Ibidem, loc. cit. 41 30 crise com a capacidade de produção estendida. O crescimento da procura de bens de capital, reflexo da expansão da produção para o mercado interno, e a forte elevação dos preços de importação desses bens, acarretada pela depreciação cambial, criaram condições propícias à instalação no país de uma indústria de bens de capital.45 O Brasil era como uma criança se desenvolvendo, afirma Bresser-Pereira, pois desconhecia a sua natureza.46 Não tínhamos noção da realidade brasileira. Quando tomamos consciência de nós mesmos, nos vimos diante do problema básico de nossa cultura, o profundo complexo de inferioridade colonial que a avassala. Julgávamo-nos racial e intelectualmente inferiores aos povos industrializados, sem a mesma capacidade de trabalho, de iniciativa e de êxito, derivando daí as três alienações básicas de nossa formação: a alienação cultural, a institucional e a econômica. A primeira se evidenciava no caráter transplantado e inautêntico de nossa cultura. Não pensávamos por nós mesmos, mas pela cabeça dos outros. Nossos livros mediam-se em qualidade e profundidade pelo número de citações. Pretendíamos conhecer o Brasil usando simplesmente, sem nenhum critério mais cientifico as categorias da cultura estrangeira. A alienação institucional se caracterizava pela nossa insistência em transferir as instituições políticas estrangeiras para o Brasil, sem considerar as diferenças econômicas, sociais e naturais que o país apresentava. Finalmente, a alienação econômica importava na tentativa de copiar as práticas econômicas e 47 financeiras dos grandes centros industriais. A década de 1930 é tida como marco do desenvolvimento econômico no Brasil. Talvez a crise instaurada em 1929 com o café tenha feito o Brasil se refazer de forma extraordinária. O significado fundamental da Revolução de 1930, que lhe confere uma importância extraordinária no quadro da história econômica, política e social do país, é a destituição do poder da oligarquia agrário-comercial brasileira, que, por quatro séculos, dominou o Brasil, inicialmente em conjugação com os interesses coloniais portugueses e, a partir da Independência, em conjugação com os interesses comerciais dos países industrializados, particularmente a Inglaterra.48 No entender de Bresser-Pereira, foi com o café que o Brasil passou a usar em grande escala o trabalho assalariado, no lugar do trabalho escravo,49 permitindo, com isso, um incipiente de mercado interno.50 45 Formação econômica do Brasil, p. 90. Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula, p. 39. 47 Ibidem, loc. cit. 48 Ibidem, p. 42-43. 49 Ibidem, p. 41. 50 Segundo Celso Furtado, o crescimento da procura de bens de capital, reflexo da expansão da produção para o mercado interno, e a forte elevação dos preços de importação desses bens, 46 31 Ainda no campo econômico, como antecedentes da Revolução Industrial brasileira, vale citar: o desenvolvimento da indústria têxtil, a partir da metade do século XIX; o surto industrial que ocorreu nessa época, marcado pela figura do Barão de Mauá; a instalação de um sistema de transporte ferroviário, ainda que totalmente destinado a servir às necessidades de exportação, e não às de integração econômica nacional; e o aparelhamento da infraestrutura econômica geral do país, que se tornou possível com a prosperidade trazida pelo café.51 O Brasil pós-Guerra, que é desenhado por Bresser-Pereira após 1946-1955, deixou uma herança que, nos anos seguintes, facilitaria o desenvolvimento da economia brasileira: os grandes saldos cambiais estrangeiros que se acumularam nesse período, face à drástica redução das importações. Esses saldos seriam em grande parte desperdiçados com a importação maciça de bens de consumo e com a compra de empresas europeias de serviços públicos.52 Com o fim da Guerra, caiu Getúlio Vargas, cujo governo teve o apoio da industrialização brasileira. O governo posterior abriu o caminho para as importações, o que deu uma alavancada na economia brasileira, trazendo consigo o desenvolvimento. Mas a verdadeira consolidação do desenvolvimento industrial se deu entre 1956-1961. Conforme ilustra Bresser-Pereira, um dos pontos positivos foi a liderança de alguns personagens históricos, dentre eles Juscelino Kubitschek. Um homem visionário, como se nota pelo registro histórico e também pela arquitetura de Brasília, e, mais do que isso, que queria fazer o Brasil crescer 50 anos em cinco, fazendo com que fossem realizadas as obras e mudanças a todo o vapor. O presidente Juscelino estava rodeado de técnicos que, de acordo com Bresser-Pereira, fizeram bastante diferença: Temos que o novo presidente soube rodear-se de uma equipe de técnicos, particularmente de economistas, que começaram a surgir no Brasil a partir do fim da Segunda Guerra, em torno da Fundação Getulio Vargas, da SUMOC [Superintendência da Moeda e do Crédito], do Banco do Brasil e do Ministério da Fazenda. Essa equipe de técnicos, muitos deles formados no exterior, e sofrendo a influencia do pensamento econômico da CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina], constitui um fato novo no Brasil. Na segunda metade dos anos 1950, esse grupo de economistas, que vinha se constituindo como uma verdadeira classe burocrática, estava em acarretada pela depreciação cambial, criaram condições propícias a instalação no país de uma indústria de bens de capital. Cf. Formação econômica do Brasil, p. 207. 51 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula, p. 42. 52 Ibidem, p. 49. 32 condições de assumir o controle crescente da economia nacional e de 53 planejar seu desenvolvimento. Com isso, ocorreu o grande afluxo de capital estrangeiro no país, e grandes incentivos cambiais, tarifários, fiscais e creditícios foram proporcionados pelo governo federal. Por fim, cumpre acrescentar que, somadas a todo esse desenvolvimento, estavam as características marcantes do período, que, na ótica de Bresser-Pereira, fomentaram tão grande crescimento do país: industrialização; substituição de importações; limitação à capacidade de importar; surgimento de uma classe de empresários industriais; alta relação marginal produto-capital; estatização; urbanização; aumento da taxa de crescimento da população; distribuição regional da renda desequilibrada; e aumento de salários.54 1.3 A evolução do Sistema Financeiro Nacional A origem do Sistema Financeiro Nacional remete ao ano de 1808, com a instalação do Banco do Brasil (BB), que executava as funções de banco central e banco comercial. Com o passar dos anos, ocorreram algumas mudanças e fusões. Newton Ferreira da Silva Marques narra a história da criação do BB: Em 12 de outubro de 1808 foi criado o Banco do Brasil (BB), em função da abertura dos portos brasileiros às nações amigas; de novos acordos comerciais e da criação de relações econômicas internacionais. Em 1821 passou a ter dificuldades, e em 23 de setembro de 1829 foi decretada a sua liquidação, em razão de D. João VI ter desviado lastro metálico depositado no BB, por ter excedido em suas despesas bancadas pela instituição, além do excesso de despesas militares e gastos com a criação de um exercito e 55 de uma marinha de guerra. Com a fase de expansão da economia, devido ao crescimento das atividades de produção e exportação de café, começaram a ser criados bancos privados: Banco do Ceará (1836), Banco Comercial do Rio de Janeiro (1838), Banco da Bahia (1845), Banco do Maranhão e Banco do Pará (ambos em 1847), e Banco Comercial do Pernambuco (1851). Em 1896, o governo avocou para si toda a responsabilidade pelas emissões bancárias. Em 1905, foi criada a Caixa de Conversão, tendo como finalidade manter a estabilidade cambial. Em 1906, foram reativadas as operações 53 Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e política de Getúlio Vargas a Lula, p. 56. Ibidem, p. 61-74. 55 Estrutura e funções do Sistema Financeiro no Brasil: análises especiais sobre política monetária e dívida pública, autonomia do Banco Central e política cambial. Brasília: Thesaurus, 2003, p. 31. 54 33 do BB, o qual mantém essa denominação até hoje. Ao final da década, já existiam 21 bancos comerciais no Brasil, dos quais cinco eram estrangeiros.56 Percebe-se a expansão das atividades de intermediação financeira no país e a primeira tentativa de integração do sistema monetário brasileiro, com a criação, em 1920, da Inspetoria Geral dos Bancos, órgão finalizador dos bancos e das casas bancárias. Em 1933, foi aprovada a Lei de Usura (Decreto nº 22.626, de 7 de abril), que limitava os juros a 12% a.a., sendo considerada um dos principais entraves aos financiamentos de médio a longo prazo. Em 1945,57 foi criada a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), como órgão normativo, cuja finalidade era exercer o controle do mercado monetário, por meio das seguintes funções: (i) fixação dos percentuais de reservas obrigatórias dos bancos comerciais, das taxas de redesconto e dos juros sobre os depósitos bancários; (ii) supervisão dos bancos comerciais; (iii) orientação sobre a política cambial; e (iv) representação do país junto a organismos internacionais. Ou seja, o objetivo da SUMOC era a fiscalização do Sistema Financeiro Nacional. A ideia inicial era esvaziar a função do Banco do Brasil como autoridade monetária, mas não obteve sucesso. As atribuições do BB eram: (i) banco dos bancos, como depositário dos encaixes voluntários e compulsórios; (ii) fornecedor de assistência financeira de liquidez; (iii) administrador do serviço de compensação; e (iv) agente financeiro do governo federal, por meio dos recebimentos, pagamentos e financiamento do Tesouro Nacional.58 Pode-se dizer que o Sistema Financeiro passou a ser controlado pela SUMOC, como órgão normativo e supervisor; pelo Banco do Brasil, como órgão executor; e pelo Tesouro Nacional, como órgão emissor de papel-moeda. Essa situação se manteve até o ano de 1964, quando a SUMOC foi substituída pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central do Brasil (BACEN), que foi criado para desempenhar o papel de banco dos bancos. Com as mudanças, a Lei da Usura se enfraqueceu, sendo que as taxas de juros altas e a introdução do mecanismo de correção foram condições determinantes 56 MARQUES, Newton Ferreira da Silva, Estrutura e funções do Sistema Financeiro no Brasil: análises especiais sobre política monetária e dívida pública, autonomia do Banco Central e política cambial, p. 32. 57 Marques diz que, com a SUMOC, nasceu a fase embrionária de um banco central no Brasil, que somente foi criado pela Lei nº 4.595/64. Cf. Ibidem, p. 33. 58 Ibidem, loc. cit. 34 para o direcionamento de recursos para o Sistema Financeiro. Esses mecanismos de correção monetária evitavam que os agentes sofressem perdas geradas pela desvalorização da moeda em decorrência da inflação. Na década de 1970, foi estimulada a formação de conglomerados financeiros, baseados no modelo japonês, em que a holding do grupo econômico era uma instituição financeira, unindo interesses dos capitais industriais e financeiro. No Brasil, inicialmente, esse estímulo visava à verticalização dos recursos financeiros. Assim, a participação das instituições financeiras no Produto Interno Bruto (PIB) aumentou de forma muito significativa a partir da década de 1980. Tal fato ocorreu em virtude da relação inversa dos ativos monetários e do imposto inflacionário, que nada mais é do que a perda de poder aquisitivo da moeda, devido à alta inflação, onde o governo penaliza a população e sai beneficiado. Vale observar que os altos ganhos que o Sistema Financeiro conseguiu obter na década de 1980 se deram por meio da operação de floating, que serviu de alavanca para a sua expansão na renda nacional, ao canalizar recursos das mais diversas fontes para os cofres públicos. Essa operação pode ser entendida como uma permanência de recursos transitórios dos clientes nos bancos, e é por meio dela que tais bancos obtêm parte de sua remuneração pela prestação de diversos serviços. É importante considerar que os bancos sempre têm um volume de recursos transitórios de terceiros circulando sob sua responsabilidade, que não são remunerados (por exemplo, contas correntes). Eles podem aplicar esses recursos, ou ao menos parte deles, em instrumentos financeiros de curto prazo com correção monetária mais os juros reais. Outra característica importante do Sistema Financeiro ao longo da década de 1980 foi a contração de crédito por parte do setor privado, fazendo com que este deixasse de ser o principal financiador da produção e tornando as instituições públicas praticamente as únicas concessoras de crédito. Pode-se falar que foi na década de 1980 que a Constituição Federal (CF) de 1988 trouxe a reforma financeira promovida pelo CMN e pelo BACEN. Antes da sua promulgação, foi extinta a carta patente de instituição financeira, que passava a ter requisitos de capital mínimo. 35 1.4 A estrutura do Sistema Financeiro Nacional No Brasil, o Sistema Financeiro Nacional é um conjunto de instituições e órgãos que controlam e fiscalizam as medidas referentes à circulação da moeda e de crédito dentro do país. De acordo com Newton Ferreira da Silva Marques: “O Sistema Financeiro é o conjunto de instituições financeiras ou não, interdependentes e afins, cujas funções são de captar e intermediar os recursos financeiros da economia de forma coordenada e em estrutura organizada”.59 Na verdade, o Sistema Financeiro Nacional é uma forma de as diversas entidades se prepararem para a máquina do governo continuar trabalhando. Sua função é de acompanhamento e coordenação das atividades financeiras. Nas palavras de Leonardo Vizeu Figueiredo,60 o artigo 1º da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, expressamente prevê que o Sistema Financeiro é constituído pelos seguintes órgãos e entidades: Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil, Banco do Brasil S.A., Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, e demais instituições financeiras públicas e privadas.61 É mister observar que o atual Sistema Financeiro Nacional não sofreu muitas alterações desde a sua concepção em 1964, nem mesmo pelo advento da Constituição de 1988. Assim, é válido estruturar o SFN em órgãos normativos,62 entidades supervisoras 59 e operadores. Aos órgãos normativos compete disciplinar, Estrutura e funções do Sistema Financeiro no Brasil: análises especiais sobre política monetária e dívida pública, autonomia do Banco Central e política cambial, p. 28. 60 Lições de direito econômico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 410. 61 Para Marques, o Sistema Financeiro Nacional, segundo está disposto no artigo 192 da CF (tal artigo foi alterado pela Emenda Constitucional nº 40/2003), é composto: (i) das instituições financeiras, que compreendem os bancos comerciais, múltiplos, de investimento e de desenvolvimento, as sociedades de crédito, financiamento e investimento, as sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo, as cooperativas de crédito, as companhias hipotecárias e a Caixa Econômica Federal; (ii) das sociedades de arrendamento mercantil (leasing), agências de fomento, de sociedade de crédito ao microempreendedor e administradoras de consórcios; e (iii) do sistema de distribuição e intermediação do mercado de capitais, que é composto pelas bolsas de valores, de mercadorias e futuros, sociedades corretoras de seguros e sociedades seguradoras e de seguro de saúde, empresas de capitalização e entidades abertas de previdência privada ou entidades fechadas de previdência privada. Cf. Op. cit., loc. cit. 62 Os órgãos normativos são centros de competência despersonalizados, responsáveis por estabelecer e disciplinar as políticas públicas referentes ao Sistema Financeiro Nacional, sem quaisquer funções executivas. São, dessa forma, os principais órgãos deliberativos que propõem as políticas públicas estratégicas para o Sistema Financeiro Nacional. Cf. FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Op. cit., loc. cit. 36 regulamentar e estabelecer as políticas para o setor. Por sua vez, às entidades supervisoras compete a fiscalização dos entes operadores.63 Os órgãos normativos do SFN são: o Conselho Monetário Nacional (CMN), o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC). Como órgãos supervisores, estão: o Banco Central do Brasil (BACEN), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) e a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC). Por sua vez, os operadores são: bancos e caixas econômicas, administradoras de consórcios, bolsa de valores, seguradoras e resseguradores, entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão), cooperativas de crédito, corretoras e distribuidoras, bolsa de mercadorias e futuros, entidades abertas de previdência, sociedades de capitalização, instituições de pagamento e demais instituições não bancárias.64 O Conselho Monetário Nacional é um dos mais importantes dentre todos os órgãos do Sistema Financeiro Nacional. Foi instituído pela Lei nº 4.595/64, e é responsável por expedir diretrizes gerais para o bom funcionamento do SFN. O CMN foi criado para substituir o Conselho da extinta Superintendência da Moeda e do Crédito, e é eficaz para tomar as decisões a fim de que o país funcione de forma correta. O CMN é composto por três membros, a saber: o Ministro da Fazenda (Presidente), o Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, e o Presidente do Banco Central do Brasil. Dentre as suas atribuições, estão: (i) adaptar os meios de pagamentos às reais necessidades da economia nacional e seu processo de desenvolvimento; (ii) regular o valor interno da moeda, prevenindo ou corrigindo os surtos inflacionários ou deflacionários de origem interna e externa; (iii) regular o valor externo da moeda e o equilíbrio do balanço de pagamentos do país; (iv) orientar a aplicação dos recursos das instituições financeiras públicas ou privadas, de forma a garantir condições favoráveis ao desenvolvimento equilibrado da economia nacional; (v) propiciar o aperfeiçoamento das instituições e dos instrumentos financeiros, de modo a tornar mais eficiente o sistema de pagamentos e mobilização de recursos; 63 64 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 410. GIACOMET JUNIOR, Isalino Antonio. Função normativa do Sistema Financeiro Nacional nos crimes econômicos. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012, p. 28. 37 (vi) zelar pela liquidez e pela solvência das instituições financeiras; (vii) coordenar as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e da dívida pública interna e externa; e (viii) estabelecer a meta de inflação.65 No ano de 1999, a política monetária passou a ser chamada de Regime de Metas para a Inflação, sendo estabelecida por um decreto presidencial e servindo de ajuste para a liquidez da economia, no intuito de alavancar o crescimento econômico sustentado. O BACEN tem a obrigação de alcançar essas metas. O BACEN é o responsável pela produção do dinheiro que circula no território brasileiro. Ele desempenha, junto com o Conselho Monetário Nacional, um trabalho de inspeção nas instituições financeiras do país. Dentre as suas funções, está a de realizar operações bancárias, empréstimos, cobrança de crédito, entre outras atribuições, que serão mais bem exemplificadas no capítulo 2. Criado pela Lei nº 4.595/64, o BACEN é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda. Pode-se dizer que é o principal executor das orientações do Conselho Monetário Nacional, sendo responsável pelo poder de compra da moeda nacional. Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é uma entidade da Administração Pública federal indireta, autarquia essa vinculada ao Ministério da Fazenda, pela Lei nº 6.385/76, cuja responsabilidade é promover a regulamentação, o desenvolvimento, o controle e a fiscalização do mercado de valores mobiliários do país. Sobre a consecução das responsabilidades da CVM, Leonardo Vizeu Figueiredo assim se manifesta: Para consecução de tais responsabilidades, exerce as funções a seguir listadas: assegura o funcionamento eficiente e regular dos mercados de bolsa e de balcão; proteção ao titulares de valores mobiliários; evita ou coíbe modalidades de fraude ou manipulação no mercado; assegura o acesso do público a informações sobre valores mobiliários negociados e sobre as companhias que os tenham emitidos; assegura a observância de práticas comerciais equitativas no mercado de valores mobiliários; estimula a formação de poupança e sua aplicação em valores mobiliários; promove a expansão e o funcionamento eficiente e regular do mercado de ações, além de estimular as aplicações permanentes em ações do capital social das 66 companhias abertas. Já o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) é o órgão que fixa as diretrizes e normas da política de seguros privados, sendo responsável por julgar os 65 66 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 411. Ibidem, p. 413. 38 recursos e as decisões da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), bem como pela organização, funcionamento e fiscalização das entidades que exercem atividades subordinadas à SUSEP. A SUSEP é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, responsável por supervisionar e controlar a fiscalização do mercado de seguro, previdência privada aberta, capitalização e resseguro, na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP. Nessa seara, cabe acrescentar que existe, ainda, a Secretaria de Previdência Complementar (SPC), um centro de competência despersonalizado, integrante da Administração Pública federal direta, sendo órgão desconcentrado do Ministério da Previdência Social. Sua principal competência se traduz na fiscalização das atividades das entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão). A SPC se relaciona com os órgãos normativos do Sistema Financeiro na observância das exigências legais de aplicação das reservas técnicas, fundos especiais e provisões que as entidades, sob o seu campo de atuação, são obrigadas a constituir, com diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional.67 Analisados os seus principais órgãos, cumpre observar que o SFN pode ser dividido em Subsistema de Supervisão e Subsistema Operativo.68 O Subsistema de Supervisão é responsável por fazer regras para transferência de recursos entre uma parte e outra, e supervisionar o funcionamento de instituições que façam atividades de intermediação monetária. O Subsistema Operativo, por sua vez, faz com que as regras de transferência de recursos sejam colocadas em prática. 67 68 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 413. Newton Ferreira da Silva Marques subdivide o SFN em subsistema normativo de intermediação e subsistema de instância de recursos. O subsistema normativo é composto pelo CMN, que é constituído pelo Ministro da Fazenda (Presidente), pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e de Gestão e pelo Presidente do Banco Central do Brasil. Esse subsistema também é composto pela Comissão Técnica da Moeda de Crédito, integrada pelo Presidente (coordenador) e pelos Diretores do Banco Central do Brasil, pelo Presidente da Comissão de Valores Mobiliários, pelos Secretários Executivos dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão, e pelos Secretários do Tesouro Nacional e da Política Econômica; pelo MINIFAZ; pelas Comissões Consultivas de Normas e Organização do Sistema Financeiro; de Mercado de Valores Mobiliários e de Futuros; de Crédito Rural; de Crédito Industrial; de Crédito Habitacional, e para Saneamento e Infraestrutura Urbana; de Endividamento Público; e de Política Monetária e Cambial. O Sistema de Intermediação é composto, além dos bancos, das instituições que criam moeda escritural e auxiliares. Esse subsistema compõe-se dos bancos múltiplos, comerciais públicos e privados e da Caixa Econômica Federal etc. Cf. Estrutura e funções do Sistema Financeiro no Brasil: análises especiais sobre política monetária e dívida pública, autonomia do Banco Central e política cambial, p. 29. 39 Segue a composição do Subsistema de Supervisão: Conselho Monetário Nacional, Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários, Conselho Nacional de Seguros Privados, Superintendência de Seguros Privados, Brasil Resseguros (IRB), Conselho de Gestão da Previdência Complementar e Secretaria de Previdência Complementar. O Banco Central é a autoridade que supervisiona todas as outras, além de ser o banco emissor de dinheiro e o executor da política monetária. O Conselho Monetário Nacional funciona para a criação da política de moeda e do crédito. A Comissão de Valores Mobiliários tem o papel de aprovar a movimentação das bolsas de valores e do mercado acionário; isso abrange gerar negócios relacionados à bolsa de valores, proteger investidores e outras medidas. Já o Subsistema Operativo é composto por: instituições financeiras bancárias, Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, Sistema de Pagamentos, instituições financeiras não bancárias, agentes especiais e Sistema de Distribuição de Títulos e Valores Mobiliários. As instituições financeiras bancárias representam as caixas econômicas, as cooperativas de crédito e os bancos comerciais e cooperativos. As instituições financeiras microempreendedor, as não bancárias são companhias as sociedades de hipotecárias e as crédito agências ao de desenvolvimento. A autoridade do Sistema Financeiro Nacional pode ser dividida em dois grupos: autoridades monetárias e autoridades de apoio. As monetárias são responsáveis por normatizar e executar as operações de fabricação de moeda. Já as de apoio são instituições que auxiliam as autoridades monetárias na prática da política monetária, possuindo poderes de normatização limitados a um setor específico. As deliberações adotadas pelo Conselho Monetário Nacional, e depois pelo Sistema Financeiro Nacional, guardam relação com a situação da economia do país. Suas mudanças são decisivas para o funcionamento do mercado financeiro. É importante salientar que a bolsa de valores tem empresas, produtos e ações que se transformam de acordo com o que é feito no Sistema Financeiro Nacional. Além das funções mencionadas acima, vale ressaltar, ainda, que o Sistema Financeiro Nacional, mediante a atuação de seus órgãos reguladores e fiscalizadores, e das suas instituições operadoras, também representa o âmbito mais apropriado para o Estado disciplinar, viabilizar e aplicar suas políticas econômicas. 40 De fato, os órgãos e as instituições públicas estatais que compõem o Sistema Financeiro Nacional, cada um com suas respectivas competências normativas e âmbitos técnicos de atuação, são criados para intervenção do Estado na economia, com ações que venham a incidir nos diversos setores e mercados econômicos.69 1.5 O Sistema Financeiro e o processo de desenvolvimento O Sistema Financeiro desempenha papel fundamental na economia moderna, ao concentrar recursos dos poupadores e canalizá-los aos investidores, os quais agregam mais produtos e serviços à sociedade. Quando os bancos se desviam desse objetivo, podem ocorrer sérias consequências, como ficou muito claro na crise ocorrida em 2008. A função dos bancos e sua intermediação financeira no funcionamento do sistema econômico são muito importantes para o desenvolvimento financeiro. Uma das preocupações dos órgãos reguladores é tentar fazer com que as instituições financeiras se tornem mais seguras, e, para tanto, são aperfeiçoados, em escala mundial, os controles internos e de gestão de riscos. Os bancos implantaram sofisticados sistemas de informação com a finalidade de diminuir custos e agilizar atendimento e negócios. A quantidade e a velocidade atual das operações executadas no mercado financeiro seriam difíceis de prever há alguns anos. Os recursos investidos em Tecnologia da Informação (TI), durante décadas, tornaram as instituições financeiras muito avançadas nessa área, comparativamente a outros segmentos da economia. Segundo Alessandra Dodl e José Barros, a teoria da intermediação financeira está fundamentada na funcionalidade dos intermediários financeiros, o que remete à existência de assimetria de informações nas relações estabelecidas entre tomadores e credores dos recursos financeiros.70 O Sistema Financeiro também pode possibilitar, por meio dos bancos, com transferências bancárias, o recolhimento de recursos dispersos pela população e o direcionamento aos que necessitam de empréstimos. 69 GIACOMET JUNIOR, Isalino Antonio, Função normativa do Sistema Financeiro Nacional nos crimes econômicos, p. 28. 70 Desafios do Sistema Financeiro Nacional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 44. 41 Para Ademir Antonio Pereira Junior, a atividade dos bancos é caracterizada pelo efeito multiplicador: uma vez que o capital é emprestado, é novamente depositado. A capacidade dos bancos em incrementar o potencial de multiplicação da moeda depende do desenvolvimento das instituições que os cercam quanto ao desenvolvimento organizacional.71 A perspectiva não é só da população, mas também dos ofertantes de crédito, que terão uma maior oferta de crédito. Com isso, o banco aumentará a reserva em relação ao volume de depósitos. Cabe notar que o financiamento das atividades produtivas é um aspecto muito relevante no desenvolvimento, geralmente atribuído ao sistema bancário e ao mercado de capitais. No caso brasileiro, a despeito do crescimento do mercado de capitais nos últimos anos, ele ainda é restrito a grandes empresas, sendo o financiamento bancário essencial para os setores produtivos. Observa-se que o setor bancário no Brasil foi muito competente para sobreviver à instabilidade, mas não se mostrou capaz de gerar o volume de crédito e o investimento em condições razoáveis para estimular o crescimento econômico sustentável.72 1.6 A Constituição de 1988 e o Sistema Financeiro Nacional A Constituição de 1988 apresenta um marco divisor no Estado brasileiro, tendo sido fundamental para a definição da nova institucionalidade. Segundo Filomeno Moraes, a Carta Magna de 1988 consagra, a partir do seu preâmbulo, a prevalência dos direitos fundamentais, de modo que os constituintes proclamaram-se reunidos para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução das controvérsias.73 71 Sistema Financeiro, desenvolvimento regional e Estado: a regulação jurídica do crédito financeiro. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 99. 72 Ibidem, p. 105. 73 A Constituição do Brasil de 1988 e a reforma política. Revista Jurídica, Brasília, v. 7, n. 72, p. 1-16, maio 2005, p. 6. 42 Verifica-se que a Constituição Federal reservou uma parte específica para tratar do Sistema Financeiro Nacional, no seu Capítulo IV (artigo 192)74: O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: A autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os 75 instrumentos do mercado financeiro bancário. Infelizmente, o período inflacionário e a incerteza econômica impediram que o SFN cumprisse eficientemente a sua função. Eros Roberto Grau trabalha a questão da liberdade, igualdade e fraternidade, salientando que à idealização dessa questão se contrapôs a realidade do poder econômico.76 A liberdade econômica, porque abria campo às manifestações do poder econômico, levou à supressão da concorrência. O proprietário de uma coisa impõe sua vontade, o poder sobre as coisas engendra um poder pessoal, e a propriedade, assim, de mero título para dispor de objetos materiais, se converte em um título de poder sobre pessoas e, enquanto possibilita o exercício do poder no interesse privado, converte-se em um título de domínio.77 A igualdade, de outra parte, alcançava concreção exclusivamente no nível formal. Cuidava-se de uma igualdade à moda e aos mais iguais. O próprio enunciado do princípio – todos são iguais perante a lei – dá conta de sua inconsistência, visto que a lei é uma abstração, ao passo que as relações sociais são reais.78 Segundo Tobias Barreto, “Liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam três coisas reciprocamente estranhas e contraditórias, principalmente as duas primeiras”.79 74 Como já ressaltado, esse artigo foi alterado pela Emenda Constitucional nº 40/2003, que modificou a redação do outrora polêmico artigo 192 da Carta Magna, privado de todos os seus parágrafos, incisos e alíneas. 75 MARQUES, Newton Ferreira da Silva, Estrutura e funções do Sistema Financeiro no Brasil: análises especiais sobre política monetária e dívida pública, autonomia do Banco Central e política cambial, p. 32. 76 A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 20. 77 Ibidem, loc. cit. 78 Ibidem, loc. cit. 79 Discurso em mangas de camisa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977 apud Ibidem, loc. cit. 43 Para Luiz Carlos Bresser-Pereira, a Constituição de 1988 foi uma volta ao passado. Foi conquistada com muita luta, porém não passou de uma volta burocrática dos anos de 1930.80 As críticas do autor continuam. Ele chama a Constituição de arcaica e burocrática ao extremo. Uma Administração Pública altamente centralizada, hierárquica e rígida, em que toda a prioridade será dada à Administração direta em vez da indireta. Em sua opinião, a Constituição de 1988 ignorou completamente as novas orientações da Administração Pública.81 A sociedade brasileira percebeu que a Constituição não era instaurada e que a descentralização havia dado espaço ao clientelismo, esse que se acentuara após a redemocratização. Com isso, surgiu a necessidade de o Estado administrar com eficiência as empresas e os serviços sociais, sendo instaurado um sistema jurídico único. Em síntese, o que se vê nos escritos de Bresser-Pereira82 é um retrocesso burocrático. A Constituição de 1988 foi uma reação ao clientelismo que dominou o país naqueles anos, mas também foi uma afirmação de privilégios corporativistas e patrimonialistas incompatíveis com o ethos burocrático. Foi, além disso, uma consequência de uma atitude defensiva da alta burocracia, que, sentindo-se acuada, injustamente acusada, defendeu-se de forma irracional. Isso contribuiu para o desprestígio da Administração Pública brasileira, não obstante o fato de que os administradores públicos do país são majoritariamente competentes, honestos e dotados de espírito público.83 Quanto ao papel do Estado, segundo Eros Roberto Grau, ele passou a ser vigorosamente questionado desde a década de 1980. No que tange à sua 80 Bresser-Pereira diz que a transição democrática, fruto de uma dura luta de muitos e muitos anos, não proporcionou, porém, o espaço para uma verdadeira reforma da Administração Pública, uma reforma que consolidasse a reforma burocrática e transformasse a reforma desenvolvimentista em uma reforma gerencial. Pelo contrário, significará, no plano administrativo, uma volta às ideias burocráticas dos anos de 1930, e, no plano político, uma tentativa de volta ao populismo dos anos de 1950. Cf. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 173. 81 Ibidem, p. 175. 82 Para Bresser-Pereira, as qualidades, que eles demonstraram desde os anos de 1930, quando a Administração Pública profissional foi implantada no Brasil, foram um fator decisivo para o papel estratégico que o Estado desempenhou no desenvolvimento econômico brasileiro. A implantação da indústria de base nos anos de 1940 e 1950, o ajuste nos anos de 1960, o desenvolvimento da infraestrutura e a instalação da indústria de bens de capital nos anos de 1970, e novamente o ajuste e a reforma financeira nos anos de 1980, bem como a liberalização comercial nos anos de 1990, não teriam sido possíveis, não fosse a competência e o espírito público da burocracia brasileira. Cf. Ibidem, p. 178. 83 Ibidem, loc. cit. 44 redefinição, reclama a identificação de setores, indevida e injustificadamente, do ponto de vista social, atribuídos ao setor privado. É a partir dessas verificações que se haveria de orientar a política de privatização das empresas estatais. A política neoliberal, também nessa matéria implementada, é incompatível com os fundamentos do Brasil, afirmados no artigo 3º da Constituição de 1988, e com a norma veiculada pelo seu artigo 170.84 Conforme salientam Claudio Lembo e Monica Herman Caggiano: A ordem constitucional do regime militar possibilitava a participação direta do Estado na economia, a fim de atender a questões de segurança nacional ou organizar determinado setor econômico nascente ou frágil. Já a Constituição Econômica de 1988 afastou o Estado da posição de agente econômico ativo, só permitindo sua intervenção direta quando imperioso à segurança nacional ou quanto a relevante interesse coletivo, conforme definido em lei. O Poder Público transformou-se de um gigantesco detentor das rédeas da economia em fiscal da iniciativa privada, a que deve prevalecer. A função do Estado passou a ser fiscalizadora, normativa, regulamentadora, fomentadora, incentivadora, planejadora da atividade 85 econômica, a qual incumbe à dinâmica iniciativa privada. Com a nova ordem econômica constitucional, reduziu-se o papel do Estado, e a dinâmica do mercado fomentou a iniciativa privada, obrigando a reestruturação estatal na economia, na função de agente do mercado. Percebe-se, no desenvolver deste trabalho, que a Constituição de 1988 foi um resultado das revoluções liberais, individuais, que são o marco da ascensão burguesa. Segue o entendimento de Ricardo Maurício Freire Soares para esse contexto: Foram as Constituições entendidas como diplomas legislativos fundamentais, que se limitariam a descrever a estrutura do Estado e assegurar os direitos individuais dos cidadãos (vida, liberdade, igualdade, propriedade, segurança), sem prescrever normas que pudessem embaraçar a dinâmica natural do sistema econômico [...] o pensamento liberal considerou como princípio fundamental da constituição econômica, implícita nos textos constitucionais liberais, o princípio de que, na dúvida, se devia optar pelo mínimo de restrições aos direitos fundamentais economicamente relevantes, tais como a propriedade, a liberdade de profissão, indústria ou 86 comércio. Cumpre notar que, como o liberalismo está fincado na livre circulação da riqueza, criou-se a imagem ilusória de que o Estado não teria necessidade de 84 A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 44. Direito constitucional econômico: uma releitura da Constituição brasileira de 1988. Barueri: Minha Editora, 2007, p. 38. 86 A ordem constitucional econômica: balanço dos 20 anos de vigência da Constituição brasileira de 1988. Portal Ciclo, [S.l.], 2015, p. 3. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/ files/anexos/33406-42914-1-PB.pdf>. Acesso em: 10 maio 2015. 85 45 intervir no mercado. Isso se agravou no início do século XX, devido aos diversos problemas sociais causados pelo sistema capitalista. A reação veio dos liberais, que visavam a acabar com as injustiças causadas pelo sistema capitalista. Surgiu, então, a ingerência do Estado Social (Welfare State). No entendimento de Norberto Bobbio, a crise do liberalismo gerou o nascimento do Estado interventivo, cada vez mais envolvido no financiamento e na administração de programas de seguro social, pelo que as primeiras formas de Welfare State buscavam contrapor-se ao socialismo real, dando origem a formas singulares de política econômica que modificaram a fisionomia capitalista do Estado contemporâneo.87 87 Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Ed. da UnB, 2008 apud SOARES, Ricardo Maurício Freire, A ordem constitucional econômica: balanço dos 20 anos de vigência da Constituição brasileira de 1988, p. 3. 46 2 BANCOS CENTRAIS E SUA MISSÃO INSTITUCIONAL O assunto em destaque neste capítulo é objeto de grandes discussões, devido ao fato de os Bancos Centrais estarem no cerne do setor financeiro, com o objetivo de conduzir a política monetária dos países. De maneira geral, os bancos são intermediários financeiros que atingem a massa, constituindo elementos essenciais na estrutura econômica do Estado. Rosa Maria Lastra afirma que existem dois grandes dilemas na atividade dos Bancos Centrais hoje em dia. O primeiro é o relacionamento entre o Banco Central e o governo. De que maneira é possível melhor desenhar um Banco Central para servir às necessidades econômicas e sociais em vez de estar direcionado aos interesses políticos? Em segundo lugar, está a relação do Banco Central com outras agências reguladoras de bancos e sistemas bancários. Diante disso, Lastra defende a necessidade de uma independência transparente do Banco Central para prevenir o abuso político dos seus poderes e as arbitrariedades no exercício de políticas discricionárias.88 2.1 Bancos Centrais A construção da estabilidade macroeconômica no Brasil está vinculada à autonomia operacional do BACEN, a partir da efetiva atribuição de sua liberdade de atuação. Nesse sentido, espelhar-se na atuação de outros Bancos Centrais que já possuem experiência de uma autonomia e estabilidade financeira pode acrescentar significativamente para que o Banco Central do Brasil possa contribuir para o bemestar social do país. A seguir, serão analisados os maiores representativos Bancos Centrais do mundo, quais sejam: Federal Reserve System, Banco Central Europeu, Banco Federal da Alemanha, Banco Nacional da Suíça, Banco da Inglaterra, Banco de Reservas da Nova Zelândia e Banco Central do Chile. 88 Banco Central e regulação bancária. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 2000, p. 17. 47 2.1.1 O Federal Reserve System, dos Estados Unidos O Federal Reserve System (FED) possui uma estrutura diferenciada das demais instituições do gênero, pois, na verdade, não é um Banco Central propriamente dito, mas sim um complexo de instituições financeiras, que, de acordo com as atividades a elas atribuídas, atuam exercendo as funções típicas de Banco Central. O FED foi estruturado de maneira pulverizada, e conta com unidades divididas por regiões geográficas nos Estados Unidos. Essa formação, não por acaso, possibilita maior proximidade com a realidade de cada região geográfica do país, permitindo um maior conhecimento das necessidades, dos problemas e dos anseios específicos de cada uma delas. Atualmente, o FED é composto pelo Board of Governors, sediado em Washington, D.C. e constituído por sete membros indicados pelo presidente e confirmados pelo Senado, e por mais 12 Reserve Banks, regionais que funcionam como extensões do FED. Em conjunto, o Board of Governors e os Reserve Banks dividem a responsabilidade de supervisionar e regular as atividades desempenhadas pelas instituições financeiras dos estados norte-americanos e de assegurar que os consumidores recebam informações e tratamento adequados sobre o sistema bancário.89 O principal órgão componente do FED é o Federal Open Market Committee (FOMC), composto por membros do Board of Governors, pelo presidente do Reserve Bank de Nova Iorque e por quatro presidentes de outros Reserve Banks que se revezam entre os 11 restantes. O FOMC supervisiona as operações no open market – a principal ferramenta do FED para influenciar as condições monetárias e creditícias do país. 89 Tim Hindle apresenta, de forma detalhada, a estrutura do FED: “É o guardião do valor do dólar. O FED é o órgão regulador dos bancos nos Estados Unidos e também o controlador do fornecimento de moeda circulante. Ele funciona mediante 12 bancos de reserva federais regionais espalhados pelo território americano. Cada um é propriedade de bancos da região, tendo nove diretores em cada regional exercendo mandatos de três anos. No topo do sistema está o Conselho da Reserva Federal (Federal Reserve Board), composto por sete membros e que tem sede em Washington, D.C. Esses membros são nomeados pelo presidente dos EUA [Estados Unidos da América] com mandato de 14 anos, período muito longo para pessoas que raramente são jovens quando iniciam a função. O FED executa o papel de banco central com responsabilidade sobre questões monetárias comuns e moeda estrangeira (FOREIGN EXCHANCE). Além disso, ele supervisiona as Companhias controladoras dos bancos americanos. Na prática ele fiscaliza os bancos americanos, dos quais é o último refúgio para empréstimos”. Cf. Tudo sobre finanças. São Paulo: Nobel, 2002, p. 91. 48 Segundo Florinda Figueiredo Borges, o FED possui, em sua estrutura, alguns comitês consultivos, sendo os principais: (i) o Federal Advisory Counsil, composto por 12 representantes do sistema bancário, que se reúnem quatro vezes ao ano e assessoram o FED em todos os temas que versam sobre o Sistema Financeiro dos Estados Unidos; (ii) o Consumer Advisory Council, representativo dos interesses dos consumidores, que se reúne três vezes ao ano, em reuniões abertas ao público em geral, para aconselhar o Board a respeito das matérias que envolvem os consumidores e os serviços financeiros a eles prestados; e (iii) o Thrift Institutions Advisory Council, que se reúne três vezes ao ano para obter informações e opiniões das instituições de crédito.90 Fundado em 1913, o FED possui os seguintes parâmetros de atuação: (i) conduzir a política monetária, influenciando as condições tanto monetária quanto de crédito para buscar o pleno emprego, a estabilidade de preços e taxas de juros de longo prazo em níveis moderados; (ii) supervisionar e regular as instituições bancárias para assegurar a higidez do sistema bancário e financeiro e proteger os direitos de crédito dos consumidores; e (iii) manter a estabilidade do Sistema Financeiro para instituições depositárias, para o governo norte-americano e para instituições estrangeiras oficiais, inclusive desempenhando papel ativo no sistema de pagamento da nação.91 Quanto à sua autonomia, entende-se que o processo de independência ocorreu de forma natural. Em 1913, já havia menção em seus estatutos, todavia, muitos defendem que tal independência era muito mais relacionada com a Wall Street do que com o governo norte-americano. Na verdade, a questão sobre o FED poder ou não ser considerado independente é polêmica: é necessário levar em conta os critérios adotados para essa avaliação, devido à sua estrutura diferenciada e ao comportamento, ora mais, ora menos independente adotado pelo seu corpo diretivo. 90 Intervenção estatal na economia: o Banco Central e a execução das políticas monetárias e creditícia, p. 102. 91 De acordo com Rosa Maria Lastra, “O sistema de poderes do FED abrange uma variedade de objetivos sem ordem de classificação explícita: estabilidade de crescimento econômico, pleno emprego, preços estáveis e solidez dos sistemas financeiro e de pagamento. Essa falta de prioridades explícitas significa que o FED pode frequentemente ser desafiado na avaliação de desempenho, quando suas decisões não satisfazem certos setores públicos ou parte do Congresso. O banco central que pode escolher entre metas potencialmente conflitantes deve ser responsabilizado por escolher entre metas potencialmente conflitantes e deve ser responsabilizado por escolher a meta errada ou o conjunto de metas erradas”. Cf. Banco Central e regulação bancária, p. 17. 49 De todo modo, pode-se dizer que o FED vem desempenhando as suas atividades de forma autônoma, mas coordenada com as diretrizes traçadas pelo governo, já que as suas decisões não são ratificadas pelo presidente nem por outro órgão do governo norte-americano, contudo, estão sob o permanente controle do Congresso. Neste ponto, cabe destacar que o FED, pela estrutura que o conforma, denota um positivo grau de proximidade com a sociedade. Além de estar dividido em unidades regionais que se reportam a um centro de poder, conforme visto, é assessorado por comitês consultivos especializados em determinados assuntos considerados relevantes. Esses comitês são compostos por membros da sociedade,92 que pertencem às classes de pessoas afetadas diretamente por sua atuação. Assim sendo, não há dúvidas de que, nessa estrutura, o controle e a prestação de contas tendem a ser mais eficazes. 2.1.2 O Banco Central Europeu O Banco Central Europeu possui uma estrutura bastante específica e recente. Suas características ainda estão sendo postas à prova, entretanto, ele vem modificando o conceito de autoridade monetária internacional. Conhecido como BCE, o Banco Central Europeu foi criado em janeiro de 1999, quando 11 países europeus abandonaram suas moedas nacionais e adotaram o euro como moeda comum, colocando a política monetária conjunta nas mãos dessa instituição. Tornou-se, nesse momento, de maneira instantânea, uma instituição extremamente importante: embora nenhuma nação europeia tenha uma economia que seja próxima da economia dos Estados Unidos, o conjunto das economias da Zona do Euro, o grupo de países que adotou o euro como moeda, 92 Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa ilustra que há uma acentuada preocupação com a transparência do sistema perante a sociedade, devendo a junta de governadores, a esse propósito, publicar, semanalmente, informações sobre a situação de cada banco federal de reserva, isoladamente e de forma consolidada sobre todos eles. Tais documentos devem demonstrar, pormenorizadamente, a composição do ativo e do passivo dos bancos federais de reserva, individual e de forma consolidada, e fornecer plenas informações sobre as reservas disponíveis e a natureza e vencimento dos títulos e outros investimentos de tais instituições. Cf. Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 212. 50 tem, aproximadamente, o mesmo tamanho que a economia dos Estados Unidos. Como consequência, o BCE e o FED são os dois gigantes do mundo monetário.93 É importante observar que os países da Europa, desde a instituição do padrão-ouro, quando surgiram os primeiros Bancos Centrais, procuram articular-se para proporcionar certa uniformidade no que tange à condução da política externa. A busca por uma atuação coordenada, e muitas vezes até protecionista, dos Estados nacionais europeus parece mesmo uma história antiga. As inúmeras guerras enfrentadas pelo continente possuem, sem dúvida, um conteúdo de disputa pelo poder, pela hegemonia e pela liderança, especialmente no que tange à Inglaterra, França e Alemanha. Com efeito, a União Europeia possibilitou que, juntas, essas potências alcançassem aquilo que sozinhas não conseguiriam: enfrentar em pé a consolidação do imperialismo, germinado com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e fertilizado com a adoção da paridade do dólar, do ouro e, posteriormente, o padrão-dólar como padrão mundial.94 Assim, a Europa, para se proteger das crises econômicas em meio à globalização, e não ficar para trás dos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século passado, integrou-se para se fortalecer. Essa estrutura é resultado de um longo e paulatino processo de integração e maturação de ideias, e vem logrando sucesso desde os primeiros estágios de sua formação até os dias de hoje, em que a moeda única, o euro, circula pelos países que a adotaram, com uma política monetária emanada do organismo supranacional mais bem-sucedido de nossa era, a União Europeia, instituído pela assinatura do Tratado da União Europeia (TUE), em Maastricht, em 1992.95 Florinda Figueiredo Borges enfatiza que, após a assinatura do referido Tratado, foi possível identificar três fases distintas de evolução pela qual passou a 93 KRUGMAN, Paul; WELL, Robin. Macroeconomia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015, p. 102. BORGES, Florinda Figueiredo, Intervenção estatal na economia: o Banco Central e a execução das políticas monetária e creditícia, p. 103. 95 O Tratado sobre a União Europeia (TUE), firmado em Maastricht, em 17 de fevereiro de 1992, e que entrou em vigor em 1º de novembro de 1993, instaurou uma nova etapa no processo de criação de uma união mais estreita entre os Estados europeus. Seus principais objetivos são a criação de um espaço sem fronteiras internas, com o reforço da coalisão econômica e social e a instauração de uma união econômica e monetária. Visa, ainda, ao desenvolvimento de estreita cooperação nos setores de justiça e dos negócios internos, além de uma atuação de política externa e de segurança comum, incluindo uma possível defesa comum dos Estados-membros. Cf. VILLATORE, Marco Antonio Cesar. Direito Internacional do trabalho. Curitiba: Iesde, 2011, p. 32. 94 51 União Europeia.96 A primeira delas, entre 1990 e 1993, caracterizou-se pela constituição de um mercado único europeu, possibilitando a livre circulação de pessoas, mercadorias, capital e serviços na Europa. A segunda fase teve início com a criação do Instituto Monetário Europeu e durou de 1994 a 1998. Trata-se do período mais decisivo na formação do Bloco, tendo em vista que possibilitou a real integração e a equiparação econômica entre os países, e foi dedicada aos preparativos técnicos para a moeda única e ao reforço da uniformidade das políticas monetárias dos Estados-membros. A terceira e última fase iniciou-se em 1999, com a fixação das taxas de câmbio, a transferência da responsabilidade pela política monetária dos Bancos Centrais nacionais para o Banco Central Europeu e, finalmente, com o euro passando a ter um curso legal em 1º de janeiro de 2002. Com a evolução do sistema, o número de países integrantes também cresceu gradualmente, à medida que as etapas evolutivas do projeto foram tomando corpo e ganhando credibilidade. Essa adesão em massa das nações europeias, especialmente da Europa Oriental, teve de ocorrer de forma equilibrada, a fim de não gerar desestabilizações para o Bloco. Nesse sentido, foram estatuídos os critérios de Copenhagen, os quais propunham um sistema de convergência hábil a determinar se os países estariam ou não prontos para ingressar na União Europeia, passando à próxima fase. No que tange às estratégias econômicas do Bloco, existe o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), composto pelo Banco Central Europeu e pelos Bancos Centrais de todos os Estados-Membros. Como nem todos os Estados-membros adotam a moeda única, o Conselho do BCE cunhou o termo Eurosistema para descrever o modo como o SEBC executa as suas funções dentro da área do euro. O Eurosistema é assim composto pelo BCE e pelos Bancos Centrais dos Estadosmembros que adotam o euro. Em virtude de disposições do TCE (artigo 122), dos Estatutos (artigo 43) e dos Protocolos anexos ao TCE (Protocolo 25, relativo a certas disposições relacionadas com Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, e Protocolo 26, referente a certas disposições respeitantes à Dinamarca, ambos de 1992), várias menções ao SEBC e aos Estados-membros da União Europeia devem 96 Intervenção estatal na economia: o Banco Central e a execução das políticas monetárias e creditícia, p. 106. 52 ser entendidas como se fossem, respectivamente, ao Eurosistema e aos Estadosmembros que adotam a moeda única.97 O objetivo primordial do Eurosistema é manter a estabilidade de preços, tal como definido no artigo 105 do Tratado. Deve, também, apoiar as políticas econômicas gerais da Comunidade Europeia. Além disso, o TUE impõe que o Banco Central do respectivo país seja independente. Nesse sentido, ao exercer as funções relacionadas com o Eurosistema, o BCE não deve solicitar ou receber instruções de instituições ou organismos comunitários, dos governos dos Estados-membros ou de qualquer outra entidade. No momento de definição e execução das políticas monetárias, o Eurosistema é também independente. O BCE está autorizado a decidir autonomamente como e quando utilizar os mecanismos hábeis a conduzir a política monetária, de acordo com os objetivos estabelecidos para a economia do SEBC. Por fim, não é permitido ao Eurosistema conceder empréstimos a organismos comunitários ou a entidades do setor público nacional, pois isso poderia interferir e comprometer o seu acordo com a independência. De todo o exposto, no que tange ao Banco Central Europeu, verifica-se que a estrutura supranacional gerada pela política financeira para fortalecer os países membros da União Europeia é bastante diferenciada e passa por uma fase de testes. Não é possível, ainda, afirmar que seus objetivos serão completamente atingidos, tampouco que todos os países permanecerão aderentes a tal estrutura, mesmo quando frontalmente os comandos supranacionais desagradarem seus interesses e necessidades. A verdade é que, em larga medida, os países integrantes da União Europeia abriram mão de sua soberania em troca de promessa de incremento nas atividades comerciais, do desenvolvimento e, também, da proteção de uma entidade política mais forte e respeitada no cenário internacional. Isso porque, somente unidos, os países da Europa poderiam concorrer em pé de igualdade com a potência norteamericana. 97 VALERIO, Alexandre Scigliano. Direitos do Bloco de Integração: contribuição para uma teoria geral e para uma crítica com base nos princípios fundamentais da União Europeia. 2013. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013, p. 174. 53 Portanto, a partir do momento em que decidiram se unir, esses países assumiram o ônus de agir de acordo com as determinações superiores, e de forma coordenada, tendo deixado de possuir todas as características definidoras do Estado Moderno como o conhecemos, uma vez que não têm mais liberdade para escolher os seus próximos passos conforme suas necessidades e peculiaridades, a não ser de forma coordenada com todos os outros membros. 2.1.3 O Banco Federal da Alemanha Com o término da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha tentou organizar um sistema bancário centralizado, no qual pudesse exercer um controle monetário livre das interferências desestabilizadoras da política, adotando um modelo bastante semelhante ao FED norte-americano, com a criação de bancos regionais independentes. No ano de 1957, foi estabelecido por lei o Deutsche Bundesbank, o qual substituiu o sistema introduzido pelo governo militar pós-Guerra, concebido como uma instituição centralizada, na qual se integraram os 11 Bancos Centrais regionais, com poderes independentes na área administrativa. A constituição legal do Bundesbank assegura estritamente a autonomia tanto institucional quanto funcional, conferindo-lhe independência do governo para o exercício de suas funções. Seu capital é totalmente subscrito pelo governo e sua autonomia é assegurada por lei. É exigido que ele dê suporte à política econômica do governo federal, desde que isso não interfira na sua função de salvaguarda da moeda. Sobre a estrutura, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa explica que o Bundesbank apresenta a seguinte conformação: a) Diretoria, b) Conselho Central, e c) Bancos Centrais regionais, contando com a colaboração meramente consultiva dos ministros do Estado. Quanto à sua administração, vale notar que é formada pelo presidente e seu suplente, ao lado da Diretoria. Paralelamente, colocam-se os presidentes dos 11 Bancos Centrais regionais, todos com poder de voto. Os membros da Diretoria, incluindo o presidente e o vice-presidente, são indicados pelo governo federal e nomeados pelo presidente da República, para o exercício de um 54 mandato de oito anos ou, excepcionalmente, para períodos menores de dois anos, podendo ser reeleitos.98 No Conselho Central do Bundesbank, o poder federal está representado por presidente, vice-presidente e diretores, enquanto a representação regional fica a cargo dos presidentes dos Bancos Centrais regionais, inexistindo subordinação hierárquica entre eles. Dessa forma, percebe-se que a lei que rege o Banco Central alemão tem o cuidado de proibir que o governo indique, de forma direta, a maioria dos membros do Conselho da instituição. Dentre as tarefas do Bundesbank, vale citar uma fundamental, que consiste em salvaguardar a moeda, regulando a quantidade em circulação e a oferta de crédito no sistema econômico. Verçosa entende que o elevado grau de independência do Banco Central alemão estaria baseado no consenso geral da sociedade alemã, que deposita elevada confiança nas políticas econômica e monetária ali praticadas. Em última análise, o Bundesbank seria o responsável perante o público alemão, em favor do qual desenvolve uma política de ativa e aberta informação, que dá suporte para a confiança nele depositada.99 O consenso geral da sociedade se justifica devido ao relacionamento e à seriedade com o público alemão, por meio de publicações, conferências de imprensa e palestras realizadas pelos membros da Diretoria. 2.1.4 O Banco Nacional da Suíça Foi em 1907 que a Suíça teve o apoio político necessário para criação de um Banco Central. Nessa seara, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa salienta: O Banco Nacional da Suíça foi constituído na forma de uma companhia com capital de cinquenta milhões de francos suíços, adquiridos pelos cantões, pelos Estados locais, pelos bancos cantonais e pelo público: de uma maneira geral, cidadãos suíços e entidades legais exclusivamente suíças, mantendo-se registro de propriedade dos títulos para o fim do controle da nacionalidade dos seus proprietários. O governo federal foi proibido de possuir ações daquele banco. Uma parte de seu lucro (até 2% do capital) é destinada a formar um fundo de reserva. Outra parte é dividida entre os 98 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 282. 99 Ibidem, p. 289. 55 cantões e os acionistas e, finalmente, o restando permanece aplicado como reservas para o fim de compensar as perdas cambiais com relação às 100 reservas em moeda estrangeira. Quanto à independência com relação aos interesses individualizados, sua atuação não deve servir aos objetivos de determinadas regiões, grupos ou setores econômicos, e menos ainda do setor público, não se envolvendo com questões políticas, sejam elas de níveis regionais ou nacionais. O Banco Nacional da Suíça pratica uma política monetária objetivadora, buscando a estabilidade monetária, da qual decorre a manutenção dos preços, fazendo com que os setores econômicos exerçam atividades dentro de um quadro positivo para decisões mais seguras. Atua ainda nos mercados de câmbio e aberto, com a compra e venda de títulos. O Conselho Federal do Banco nomeia o presidente e o vice-presidente. Após a nomeação, é realizada uma assembleia dos acionistas, que elegem 15 membros do Conselho. O Conselho Federal escolhe os restantes 25 membros, a fim de ter representatividade regional e econômica. Dentre os escolhidos, apenas cinco podem pertencer ao Parlamento Federal. O Banco Nacional da Suíça é independente, existindo coordenação em sua atuação entre instituição e governo federal em diversos níveis. Trata-se de um banco transparente perante a sociedade, sendo estabelecidas pelo sistema auditorias vigentes de natureza interna e externa. 2.1.5 O Banco da Inglaterra O Banco da Inglaterra teve a sua criação em 1694, como instituição de natureza privada, com o objetivo determinado de financiar a guerra contra a França. No decorrer da história, obteve o monopólio da emissão de moeda e tornou-se o banqueiro do governo e seu contador. Segundo narra Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa: [...] foi no final do século XIX que o Banco Central inglês deixou de operar como banco comercial e passou a exercer o papel de banco dos bancos, época em que iniciou o controle da taxa de juros [...] Em 1946, foi nacionalizado e em 1979 obteve o poder de fiscalizar os bancos e outras 101 instituições financeiras em todo o Reino Unido. 100 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 290. 101 Ibidem, p. 296. 56 Como tem sido possível notar, a constituição dos Bancos Centrais europeus é parecida. O Banco da Inglaterra é administrado por uma Junta, composta por um governador, um vice-governador e 16 diretores nomeados pela Coroa. Desses diretores, quatro são executivos, trabalhando em regime de dedicação integral. Os outros 12 se originam dos bancos comerciais, da indústria e do meio acadêmico. Os seus administradores são designados pela Coroa. Dentre as suas funções, está a de fazer empréstimos diretos de curto prazo ao Tesouro, para a cobertura de despesas orçamentárias correntes. Procura-se estabelecer metas monetárias determinadas pelo período de três anos, acompanhando-se o crescimento monetário e o fiscal, bem como os gastos do governo, aos quais é dado grande relevo, de maneira a impedir-se o excessivo crescimento financeiro. Ainda atua como caixa do governo, recebendo impostos e fazendo o pagamento do seguro social, utilizando-se, para isso, da rede de bancos do país. As negociações da moeda estrangeira e de ouro são feitas por meio da movimentação de contas do governo. Verçosa ilustra que existe autonomia do Banco quanto ao controle governamental, mas que há uma estreita harmonia entre ele e o Tesouro, pois a orientação financeira do governo depende das condições financeiras gerais. Assim, o Banco não deixa de consultar o Tesouro sobre a política do governo, havendo inevitável influência recíproca entre ambos.102 Outro aspecto importante no que tange à autonomia está na designação dos seus administradores para o cumprimento de mandatos por prazo determinado. A autonomia se completa em sua liberdade quanto ao seu quadro de pessoal, nas contratações ou demissões. 2.1.6 O Banco de Reservas da Nova Zelândia O Banco Central da Nova Zelândia (Reserve Bank of New Zeland) é apontado como um modelo a ser seguido por vários países que ainda não tenham instituição do gênero ou que desejem aperfeiçoar a que já existe. Leandro Amaral Matta, citando The Economist, apresenta a Nova Zelândia como a pioneira a adotar metas inflacionárias, em 1990, seguida por Canadá, 102 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 306. 57 Finlândia, Inglaterra e Suécia, países esses que acreditaram que o regime funcionou como um regime bem-sucedido, contribuindo para a redução da inflação a níveis que, de outro modo, não teriam sido atingidos.103 Sem precisão na definição de alternativas, o governo da Nova Zelândia, até o período entre 1982 e 1984, mantinha uma relação com importância relativa nas políticas de governo, sem direcionar qual seria a estratégia para alcançar a estabilidade da moeda. Para Patrick Downes e Reza Vaez-Zadeh, o governo e a autoridade monetária optavam, em conjunto, por bem-estar social, desenvolvimento, promoção (crescimento) de mercado, produção, pleno emprego e manutenção de preços estáveis no mercado interno.104 A administração do Banco Central neozelandês cabe a um governado, a um ou dois vice-governadores e a uma Junta de Diretores. O governador é indicado pela Junta de Diretores e nomeado pelo ministro da Fazenda, ocupando, concomitantemente, o cargo de presidente executivo daquele órgão. Compete ao governador assegurar que o Banco exerça efetivamente as funções que lhe foram destinadas pelo seu estatuto, devendo agir com autoridade própria em todos os casos quanto aos quais não haja matérias reservadas à competência da Junta de Diretores.105 A principal função do Banco da Nova Zelândia corresponde à formulação e execução da política monetária, com o objetivo de alcançar e manter a estabilidade do nível de preços. Nas palavras de Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa: O interesse primordial em manter-se a atuação daquele banco central na perseguição da estabilidade dos preços, por via da formulação e execução da política monetária, somente admite, como exceção, justamente a possibilidade de adequação daquele objetivo à necessidade do atendimento de políticas econômicas específicas a cargo do Estado, consideradas 106 suficientemente importantes e justificadoras da quebra da regra geral. O Banco Central neozelandês é obrigado a informar periodicamente o ministro da Fazenda sobre os sistemas de taxas de câmbio, a administração das 103 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda. 2002. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) – Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2002, p. 31. 104 The evolving role of Central Banks. Washington: International Monetary Fund, 1991 apud Ibidem, p. 73. 105 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 346. 106 Ibidem, p. 348. 58 reservas correspondentes às operações e outros assuntos relacionados com o mercado de câmbio. O Banco é favorecido com o monopólio da emissão de moeda, inclusive sob o seu aspecto formal, sendo responsável por cancelar a emissão, fazendo certos volumes de moeda perderem o seu curso legal. É, ainda, responsável pela supervisão das instituições financeiras autorizadas, a fim de manter um sólido e eficiente Sistema Financeiro. Seu papel se inicia com o registro dos bancos, acompanhando os mesmos, inclusive na questão de prestação pública das instituições. Sob a ótica da independência do Banco, é ela alçada pelas regras sobre a nomeação e a demissão dos seus administradores, respeitando a execução da política monetária, tendo o seu estatuto procurado criar um sistema de equilíbrio entre os interesses do governo. 2.1.7 O Banco Central do Chile O Chile, em 1980, e as Filipinas, em 1987, estão entre os poucos países que constitucionalizaram a independência de seus Bancos Centrais. A maioria das nações opta por outorgar independência a seus Bancos Centrais por meio de leis. Luiz Carlos Bresser-Pereira apresenta o Banco Central chileno, que, em 1989, sofreu uma reforma que reduziu a taxa da inflação de maneira significativa. Muitos analistas chilenos vinculam esse resultado à independência do Banco Central. Atualmente, o Banco Central chileno goza de grande credibilidade, a qual não foi obtida automaticamente, ao ser assinado o decreto-lei de sua autonomia, mas sim em 1990, quando a taxa de inflação chilena anual chegou a 2,3%, e o Banco Central decidiu implementar, de modo explícito, a partir de dezembro de 2000, uma política associada à meta de inflação, que varia entre 2% e 4%, centrando-se em 3% por um prazo de 12 a 24 meses. O Banco Central aplica a política monetária sempre que há a possibilidade de a taxa de inflação se desviar da meta estabelecida. A ideia implícita é que essa meta de inflação funcione como uma âncora permanente da política monetária.107 107 Nação, câmbio e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2008, p. 298. 59 O seu objetivo legal resume-se no cuidado com a estabilidade da moeda e no funcionamento dos pagamentos internos e externos. Assim, a instituição deverá regular a quantidade de dinheiro em circulação, o crédito e a execução das operações internacionais, estabelecendo normas em matéria monetária, creditícia, financeira e de câmbio. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, por sua vez, explica que a administração do Banco fica a cargo de um Conselho Central, constituído por cinco membros, designados pelo presidente da República, com prévia aprovação dos seus nomes pelo Senado. Os conselheiros são nomeados para exercício de mandatos de 10 anos, renováveis parcialmente a cada dois anos, podendo ser reeleitos. O presidente do Banco é escolhido pelo presidente da República, entre os membros do Conselho Central, devendo exercer um mandato de cinco anos, ou aquele que corresponder ao seu tempo restante como conselheiro, facultada a sua reeleição.108 Dentre as funções do Banco Central chileno, estão: (i) abrir linhas de crédito em benefício de instituições financeiras em geral; (ii) fixar as bases dos recolhimentos compulsórios; (iii) negociar com títulos próprios e de instituições financeiras; (iv) receber recursos em moeda nacional ou estrangeira; (v) emitir títulos; (vi) operar mercado aberto; e (vii) fixar as taxas de juros. 2.2 Banco Central do Brasil e sua origem É de grande importância para o entendimento do Banco Central do Brasil a apresentação dos Bancos Centrais de outros países, como se deu nas subseções anteriores. Neste momento, a ênfase do estudo será, exclusivamente, no BACEN. O BACEN é uma autarquia federal constituída com recursos próprios, que integra o Sistema Financeiro Nacional. Ele está ligado ao Ministério da Fazenda do Brasil e é a autoridade monetária principal do país. Trata-se de uma entidade autônoma, descentralizada, que auxilia a Administração Pública e se sujeita à fiscalização e à tutela do Estado. Nas palavras de Antonio José Maristello Porto, Antonio Porto Gonçalves e Patricia Regina Pinheiro Sampaio: 108 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 353. 60 A criação do Banco Central do Brasil (BACEN) ocorreu em 31 de dezembro de 1964 com o Decreto-Lei n. 4.595. A iniciativa do Brasil na criação de seu Banco Central foi tardia, realizada há apenas 46 anos. O primeiro país a adotar a instituição foi a Inglaterra, em 1694. Os principais objetivos dessa 109 criação foram os seguintes : 1) zelar pela adequada liquidez da economia; 2) manter as reservas internacionais do País, em nível adequado; 3) estimular a formação de poupança em níveis adequados às necessidades de investimento do país; e 4) zelar pela estabilidade e promover o 110 permanente aperfeiçoamento do Sistema Financeiro Nacional. Antes da criação do Banco Central, a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) exercia o controle monetário, o Banco do Brasil desempenhava as funções de banco do governo e o Tesouro Nacional emitia o papel-moeda. A SUMOC era responsável pelo controle monetário e por preparar a organização de um Banco Central, e, dessa maneira, deveria supervisionar a atuação dos bancos comerciais, orientar a política cambial etc. De acordo com Leandro Amaral Matta, em 31 de dezembro de 1964, foi promulgada a Lei nº 4.595, extinguindo a SUMOC, que desempenhava as funções de autoridade monetária. A SUMOC foi criada em 1945 para ser o embrião de um Banco Central no país. A lei também promulgou a criação do Conselho Monetário Nacional (CMN) como órgão formulador de políticas econômicas e do BACEN como o órgão executor e fiscalizador dessas políticas.111 Com a Reforma Monetária de 1964, a configuração da estrutura das autoridades monetárias mudou. O Banco Central substituiu a SUMOC, com todas as suas atribuições, e, para substituir o Conselho da mesma, criou-se o CMN. A emissão de moeda ficou sob a inteira responsabilidade do Banco Central, assim como as operações de crédito ao Tesouro, que seriam feitas por meio da aquisição de títulos por ele emitidos. Em 1985, iniciou-se um processo de reordenamento financeiro do setor público, com o objetivo de tornar as suas contas mais transparentes e controláveis. O reordenamento se deu com a separação das contas e das funções do Banco Central, do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional. Em 1986, o fornecimento de recursos do Banco Central ao Banco do Brasil passou a ser claramente identificado 109 Outros autores defendem esses mesmos objetivos para a criação do BACEN, como, por exemplo, Vicente Bagnoli (Cf. Direito econômico, p. 148), porém, neste trabalho, a ênfase encontra-se no fato de que o Banco Central também promove o pleno emprego, havendo, inclusive, adiante, uma subseção abordando esse tema. 110 Regulação financeira para advogados. Rio de Janeiro: Elsevier; Ed. da FGV, 2012, p. 69. 111 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 7. 61 nos orçamentos das duas instituições e foi extinta a conta movimento do Banco do Brasil. Vale notar que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu regras importantes para a atuação do Banco Central, já que foi criado o orçamento das operações de crédito, fazendo com que a referida instituição perdesse a sua função de fomento. A seguir, ver-se-á um pouco mais sobre o Banco Central após a Constituição de 1988. 2.2.1 O BACEN após a Constituição de 1988 e suas funções Depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, ficaram bem definidas as funções do Banco Central do Brasil. A função principal de um Banco Central é administrar a política econômica do país, assim como garantir a estabilidade e o poder de compra da moeda, definindo também as taxas de juros e câmbio, e regulamentando o Sistema Financeiro. Hoje podemos relacionar suas competências como sendo as seguintes: 1) a emissão de dinheiro seja em papel ou em moeda metálica; 2) efetivação dos serviços de meio circulante; 3) recolhimentos compulsórios dos bancos comerciais; 4) cumprir operações de desconto e empréstimos de assistências à liquidez as instituições financeiras; 5) ajustar a execução dos serviços de compensação dos cheques e dos outros papéis; 6) executar operações de compra e venda de títulos públicos federais (política monetária); 7) autorizar, normatizar, fiscalizar e intervir nas instituições financeiras; e 8) controlar o fluxo de capitais estrangeiros, garantindo o 112 correto funcionamento do mercado cambial. Cabe também ao Banco Central acompanhar as práticas adotadas pelos participantes do mercado, com estudos e análises sobre o comportamento e as tendências dos seguimentos livres e flutuantes, assim como monitorar as operações de câmbio do país, para medir acordos irregulares, orientando a atuação dos agentes de mercado. Outras competências atribuídas ao BACEN são: conduzir os processos administrativos instaurados contra pessoas física e jurídica que praticam desvios com operações de câmbio, aprimorar as normas do mercado de câmbio e revisar constantemente as matérias já regulamentadas para assegurar a adequação e a modernidade das práticas adotadas pelas instituições que operam no mercado. 112 PORTO, Antonio José Maristello; GONÇALVES, Antonio Porto; SAMPAIO, Patricia Regina Pinheiro, Regulação financeira para advogados, p. 72. 62 Gustavo Franco ressalta que existem dois tipos de funções que também cabem ao Banco Central: As autoridades monetárias devem cumprir duas funções: uma função macro, que é a de administrar a moeda, no sentido de controlar sua emissão e a taxa de juros; a segunda é uma função micro, qual seja, a de cuidar da saúde do sistema financeiro. Historicamente, a função micro tem prevalecido, sendo esta a que explica a própria criação de Bancos Centrais hoje com autonomia operacional, como o Federal Reserve dos Estados Unidos. A função de emprestador de última instância é uma das mais importantes do Banco Central, e a noção, por parte das instituições 113 financeiras. Segundo Tatiane Antonoviz, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu dispositivos importantes para a atuação do Banco Central, dentre os quais se destacam o exercício exclusivo da competência da União para emitir moeda e a exigência de aprovação prévia pelo Senado Federal, em votação secreta, após arguição pública, dos nomes indicados pelo presidente da República para os cargos de presidente e de diretores da instituição. Além disso, a Constituição Federal vedou ao Banco Central a concessão direta ou indireta de empréstimos ao Tesouro Nacional.114 De acordo com Leandro Amaral Matta, o fim da hiperinflação, em 1994, impulsionou a adoção, por parte do BACEN, que ficou numa posição privilegiada, da implementação de pacotes de socorro às instituições privadas e estaduais, pacotes esses que, em troca de assistência financeira, exigiam reformas, visando a adaptálas a uma economia com baixos patamares inflacionários.115 O BACEN criou o Programa de Estímulo à Reestruturação (PROER), o Programa ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional e o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária, buscando impedir que as instituições realizassem operações de alto risco, contando com um eventual socorro do governo federal.116 113 Gradualismo e dolarização. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 13, n. 2, abr./jun. 1993 apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 12. 114 Contabilidade das instituições financeiras. Curitiba: Iesde, 2012, p. 36. 115 Op. cit., p. 14. 116 Segundo Eduardo Lundberg, o BACEN sinalizava às instituições financeiras a necessidade das mesmas em se ajustar aos novos tempos, já que a moeda encontrava-se estável. A seguir, decretou também o Regime de Administração Especial Temporária (RAET) em uma série de bancos estaduais, entre os quais o Banespa e o Banerj, dando início a uma longa negociação para dar solução aos recorrentes problemas dessas instituições. Cf. Saneamento do Sistema Financeiro. Rio de Janeiro: BACEN, 1999, p. 54. 63 Quanto à independência, o BACEN é, hoje, considerado como dependente, pois é subordinado ao Conselho Monetário do Nacional.117 Entretanto, quanto ao seu exercício, a atuação do BACEN é considerada independente. Para ser totalmente independente, contudo, a instituição precisaria se eximir do financiamento do déficit público, sendo isolada de qualquer tipo de pressões políticas.118 2.2.2 Atuação do BACEN e a evolução da regulação bancária no Brasil Como executor da política monetária, o BACEN atua com instrumentos destinados a controlar a liquidez do sistema e a quantidade de moeda em circulação, de modo compatível com a estabilidade do nível geral de preços, a dinâmica do produto e a estabilidade cambial.119 Desse modo, o Banco Central desempenha importante função de regulação e supervisão do Sistema Financeiro Nacional. Além disso, o site120 do BACEN apresenta o banco como provedor de serviços de liquidação, e, nesse papel, ele opera o Sistema de Transferência de Reservas (STR)121 e o Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), respectivamente um sistema de transferência de fundos e um sistema de liquidação de operações com títulos públicos. 117 PORTO, Antonio José Maristello; GONÇALVES, Antonio Porto; SAMPAIO, Patricia Regina Pinheiro, Regulação financeira para advogados, p. 72. 118 Leandro Amaral Matta entende que o cumprimento da função primordial do BACEN, manter a estabilidade da moeda, está intrinsecamente ligado ao cumprimento das metas inflacionárias. No entanto, apesar de sua importância, é preciso mais do que executar as decisões emanadas do CMN para cumprir sua função; o BACEN precisa abandonar sua sugestionabilidade às medidas políticas de curto prazo, e, para tanto, necessita ter: mandato fixo para seus diretores, sistema de accountability amplo, transparências em suas ações e poder para interferir nas ingerências políticas em decisões técnicas. Cf. Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 14. 119 ESTRELA, Márcio Antônio. Moeda, Sistema Financeiro e Banco Central do Brasil: uma abordagem prática e teórica sobre o funcionamento de uma autoridade monetária no mundo e no Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 2013, passim. 120 BRASIL. Banco Central do Brasil. Papel do Banco Central. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?SPBBC>. Acesso em: 2 mar. 2016. 121 O STR é, por assim dizer, o centro de liquidação das operações interbancárias em decorrência da conjugação dos seguintes fatos: primeiro, por disposição legal (Lei nº 4.595), todas as instituições bancárias têm de manter suas disponibilidades de recursos no Banco Central do Brasil; segundo, por determinação regulamentar (Circular nº 3.057), os resultados líquidos apurados nos sistemas de liquidação considerados sistematicamente importantes devem ter sua liquidação no final do Banco Central do Brasil, em contas de reservas bancárias; e, finalmente, também por disposição regulamentar (Circular nº 3.101), todas as transferências de fundos entre contas de reservas bancárias têm de ser feitas por intermédio do STR. Cf. MARQUES, Wagner Luiz. Diário de um empreendedor. Cianorte: Bacon, 2009, p. 126. 64 Como operador do STR, sistema no qual há a liquidação final de todas as obrigações financeiras no Brasil, o BACEN deve executar as ordens de transferência de fundos; observar os requisitos, inclusive os de segurança, aplicáveis às situações de recebimento e de emissão de mensagens de transferência de fundos; assegurar o contínuo funcionamento do sistema, observando índice de disponibilidade mínimo de 99,8%; obedecer às disposições legais aplicáveis ao sigilo de dados; e prestar aos participantes, tempestivamente, informações sobre o funcionamento do sistema. O BACEN pode, também, a seu critério, suspender ou excluir participante que esteja colocando em risco o funcionamento do Sistema Financeiro Nacional ou do STR, ou operando em desacordo com o disposto no regulamento do STR ou nas demais normas que regulam o funcionamento do SFN. Wagner Luiz Marques explica que o Banco Central também tem atuado de forma mais intensiva, no sentido de promover o desenvolvimento dos sistemas de pagamentos de varejo, sobretudo ganhos de eficiência relacionada, por exemplo, com maior uso de instrumentos eletrônicos de pagamento, com a melhor utilização das redes de máquinas de atendimento automático (ATM) e de transferências de crédito a partir do ponto de venda (PDV), bem como com maior integração entre pertinentes sistemas de compensação e de liquidação.122 É relevante considerar que o BACEN atua como executor da política monetária do Brasil e também como prestamista de última instância. Porém, quando faz política monetária, o foco de sua atuação é o controle da liquidez do sistema bancário (agregados monetários), com o objetivo de atuar sobre a taxa de juros. Quando atua na função de prestamista de última instância, seu foco é resolver problemas de liquidez de instituições específicas. Nesse último caso, o mercado pode estar líquido e a instituição estar ilíquida ou insolvente, não conseguindo financiamento no interbancário e recorrendo ao redesconto do Banco Central do Brasil. Cumpre mencionar que Ana Paula Mussi Szabo Cherobim, Cláudio Miessa Rigo e Antonio Barbosa Lemes Júnior classificam o redesconto como a forma na qual o Banco Central atua junto aos bancos comerciais, concedendo-lhes crédito contra garantias em títulos, tanto para descasamentos de curto prazo entre suas 122 Diário de um empreendedor, p. 126. 65 operações credoras e devedoras quanto atuando como prestamista de última instância.123 Importa salientar, ainda, que o Banco Central atua na política cambial e nas relações financeiras no exterior, onde mantém ativos de ouro e de moedas estrangeiras para atuação nos mercados de câmbio, de forma a contribuir para manter a paridade da moeda e para induzir desempenhos das transações internacionais do país, de acordo com as diretrizes da política econômica. O BACEN atua regulando o mercado de câmbio, buscando o equilíbrio de balanço de pagamentos, administrando as reservas cambiais do país, acompanhando e controlando os movimentos de capitais e negociando com as instituições financeiras e com os organismos financeiros estrangeiros e internacionais – Fundo Monetário Internacional, Banco de Compensações Internacionais (BIS) etc. Urge mencionar que, quando se fala em BACEN, não se pode olvidar o papel da Casa da Moeda do Brasil (CMB) e do Comitê de Política Monetária (COPOM). Com relação à CMB, que é empresa pública, ela produz com exclusividade o dinheiro brasileiro desde 1969, conforme definido em lei. O Banco Central relacionase com a CMB por meio de contrato de fornecimento de cédulas e moedas, sendo esse o seu papel direto no processo. Quanto ao COPOM,124 trata-se do órgão decisório da política monetária do BACEN, responsável por estabelecer a meta para a taxa Selic, cujo principal objetivo é o alcance das metas de inflação. A respeito das metas de inflação estabelecidas pelo CMN, faz-se necessário relembrar, como já destacado linhas atrás, que, desde 1999, a política monetária no Banco Central do Brasil é conduzida sob o Regime de Metas para a Inflação. Uma das missões do Banco Central do Brasil é assegurar a estabilidade do poder de compra da moeda e garantir um Sistema Financeiro sólido e eficiente. No exercício das suas diversas funções, e por sua atuação autônoma, pela qualidade dos seus produtos e serviços e pela competência dos seus servidores, é uma 123 Administração financeira: princípios, fundamentos e práticas brasileiras. Rio de Janeiro: Campus, 2010, p. 71. 124 O COPOM é composto pelos oito membros da Diretoria Colegiada do Banco Central, com direito a voto, e é presidido pelo presidente do BACEN, o qual tem voto de qualidade. Também integram o grupo de discussões os chefes de departamentos, os consultores, o secretário-executivo da Diretoria, o coordenador do grupo de comunicação institucional e o assessor de imprensa. Vide COSTA, Luiz Guilherme Tinoco Aboim; SANTOS, Aguinaldo; COSTA, Luiz Rodolfo Tinoco Aboim. Análise de investimentos. Curitiba: IESDE BRASIL, 2012, p. 23. 66 instituição essencial à estabilidade econômica e financeira, indispensável ao desenvolvimento sustentável e à melhor distribuição de renda no Brasil. Tratando-se da política monetária, ela influencia a evolução dos meios de pagamento e controla o processo de criação da moeda e do crédito, mediante os seguintes instrumentos clássicos dos Bancos Centrais: a) encaixe legal (depósito compulsório); b) redesconto; e c) operações de mercado aberto. Maiores taxas de encaixe legal ou depósito compulsório implicam menor capacidade dos bancos comerciais para conceder crédito e multiplicar a moeda. A reserva legal esteriliza parte dos recursos que, de outra maneira, seriam utilizados pelas instituições bancárias para realizar operações ativas, isto é, empréstimos ou investimentos. Dessa forma, ao aumentar o requisito de encaixe, o Banco Central reduz a capacidade potencial dos bancos para expandir o crédito. O redesconto, por sua vez, embora esteja muito mais relacionado à função de prestamista de última instância, como já salientado, também é considerado instrumento de política monetária. Ao se destinar o redesconto a sustentar instituições com problemas de liquidez ou a fomentar atividades prioritárias, injeta-se liquidez no sistema bancário. Amplia-se a base de reserva dos bancos, sustentando níveis de crédito de outra maneira inacessíveis, com efeitos expansionistas sobre a oferta monetária. Ao contrário, uma diminuição do redesconto, seja por intermédio da contração dos montantes ou por elevação das taxas correspondentes, provoca restrição creditícia e monetária, ao diminuir a liquidez no sistema bancário. O controle da liquidez ocorre principalmente com o uso dos instrumentos clássicos de política monetária, que são o recolhimento compulsório ou encaixe legal, as operações de redesconto ou assistência financeira de liquidez, e as operações de mercado aberto (open market). Observe-se que tanto os recolhimentos compulsórios como as operações de redesconto não afetam imediatamente a liquidez, haja vista que as instituições financeiras dispõem de um prazo para se adequar a eventuais mudanças no compulsório, enquanto a realização de operações de redesconto, ou assistência financeira de liquidez, depende da ocorrência de maior necessidade de liquidez. Na execução da política monetária, a venda de títulos pelo Banco Central do Brasil ao sistema bancário provoca a redução das reservas bancárias, e o contrário ocorre no caso de compra de títulos. As intervenções (compras e vendas de títulos), realizadas pelo Departamento de Operações do Mercado Aberto (Demab), são de 67 dois tipos: operações compromissadas, voltadas para ajustes de liquidez; e operações definitivas, voltadas para mudanças de tendência. Nas operações compromissadas, o BACEN toma (ou empresta) recursos por prazo definido, vendendo (ou comprando) títulos com o compromisso de recomprá-los (ou revendêlos) em data combinada, a um determinado preço. Nesse tipo de operação, o BACEN atua no mercado por meio de instituições dealers, credenciadas periodicamente. Esclarecida a atuação do Banco Central do Brasil, cumpre destacar que o Procurador-Geral do BACEN, Isaac Sidney Ferreira, traz um esclarecedor histórico sobre a evolução da regulação bancária no país.125 Como primeira referência para a regulação bancária e financeira, incluindo o aspecto da supervisão no Brasil, ele cita a vigente Lei nº 4.595/64, além do artigo 164 da Constituição Federal, relativo à política monetária e cambial. A respeito da supervisão, menciona as medidas de saneamento, que foram tratadas pela Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, e pelo Decreto-lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987.126 Ferreira ressalta que, diante das mudanças sofridas no cenário macroeconômico, principalmente com o controle da inflação, tornou-se possível e necessário reestruturar a regulação do Sistema Financeiro, que, segundo ele, tinha como características “[...] significativa participação de bancos estatais, ganhos inflacionários e ausência de diversidade de instrumento, deficiência nos controles de riscos e limitada competitividade”.127 Nesse processo de reforma, podem ser citadas medidas que levaram ao saneamento e redução da presença do poder público no sistema financeiro, convergência aos padrões internacionais relativos a normas prudenciais, alteração das regras de acesso ao sistema, aperfeiçoamento do sistema de monitoramento, aprimoramento do Sistema Brasileiro de Pagamentos, fomento ao acesso a produtos e serviços bancários, incremento da competição no mercado financeiro e alterações importantes no mercado de câmbio para simplificá-lo e atualizá-lo [...] Relativamente ao saneamento e desestatização do sistema financeiro, lembra, inicialmente, do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional-Proer, regulado pela Medida Provisória nº 1.179, de 1995, e Resolução nº 2.208, de 1995 que cria incentivos fiscais para incorporação 128 de instituições financeiras. 125 Evolução da regulação bancária no Brasil. Brasília: Banco Central do Brasil, 2012. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pec/appron/apres/Apresentacao_Isaac_Sidney_Seminario_Direito_Bancario .pdf>. Acesso em: 3 jan. 2015. 126 Ibidem, p. 29. 127 Ibidem, loc. cit. 128 Ibidem, loc. cit. 68 Vale registrar que também dessa época é o Decreto-Legislativo nº 15, de 19 de março de 1997, que aprovou a adesão do governo brasileiro como membro associado do Convênio Constitutivo do Banco de Compensações Internacionais (BIS). O Decreto nº 3.941, de 27 de setembro de 2001, promulgou o Convênio, embora ele já estivesse em vigor desde 25 de março de 1997 para o Brasil, segundo os termos desse Decreto.129 Ainda na linha das importantes mudanças ocorridas no Brasil, Ferreira salienta a criação do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), regido pelas Resoluções nº 2.197 e nº 2.211, de 1995, e nº 4.087, de 2012, além de ter sido contemplado na Lei de Responsabilidade Fiscal.130 O Acordo de Basileia, marco da regulação prudencial, foi adotado no âmbito brasileiro por meio da Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 2.099, de 17 de agosto de 1994. Nela, foram previstas condições para acesso ao Sistema Financeiro Nacional, normas sobre instalação de dependências e valores mínimos de capital e patrimônio líquido ajustado, o qual deveria ser mantido em valor compatível com o grau de risco das operações ativas.131 Da diversidade de normas voltadas à atuação prudencial preventiva, Ferreira destacou as seguintes: a Resolução nº 3.380, de 2006, relativa ao risco operacional; a Resolução nº 3.464, de 2007, que trata do risco de mercado; a Resolução nº 3.721, de 2008, que cuidou da estrutura de gerenciamento do risco de crédito; e a Resolução nº 4.090, de 2012, que regulou o risco de liquidez.132 Enfim, para consolidar as medidas prudenciais preventivas de modo a impor às instituições supervisionadas a sua observância, foi editada a Resolução nº 4.019, de 29 de setembro de 2011.133 2.3 Conflito de competências entre o BACEN e o CADE Ainda neste capítulo, no intuito de melhor entender as atribuições do BACEN, faz-se necessário dirimir o aparente conflito de competências existente com o 129 FERREIRA, Sidney Isaac, Evolução da regulação bancária no Brasil, p. 30. Ibidem, loc. cit. 131 Ibidem, loc. cit. 132 Ibidem, p. 31. 133 Ibidem, loc. cit. 130 69 Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), como se passa a explanar nas subseções a seguir. Liana Issa Lima classifica esse conflito de competências como positivo. As questões foram desenvolvidas por Gesner Oliveira (então presidente do CADE), em 2000, no estudo “Concorrência e regulação: o caso do setor bancário”. Porém, o caso está paralisado perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e foi apresentado em 9 de dezembro de 2008, quando a União, o CADE e o BACEN, por meio de seus procuradores, protocolaram a petição nº 309502/2008, defendendo o argumento de que a existência de indefinição acerca da partilha de atribuições entre duas autarquias geraria insegurança jurídica. Contudo, essa questão ainda não está finalizada, apenas pacificada.134 Segundo Vicente Bagnoli, a discussão relativa à competência entre o BACEN e o CADE para análise de casos do Sistema Financeiro teve início em 2001, quando a Procuradoria-Geral da União emitiu um Parecer (AGU/LA-01/2001) reconhecendo a competência exclusiva do Banco Central para analisar e aprovar atos de concentração de instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, bem como para regular as condições de concorrência entre instituições financeiras.135 Atualmente, a matéria encontra-se em análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF), após a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que não definiu conflito de competência existente entre BACEN e CADE, o que vem causando insegurança jurídica. A Primeira Seção do STJ decidiu a análise do Mandado de Segurança com pedido de liminar no Ato de Concentração nº 08012.002381/2001-23, impetrado pelo Banco Bradesco S.A. e pelo antigo Banco de Crédito Nacional S.A. (BCN) contra decisão do CADE que aprovou a operação de constituição e o desfazimento da joint venture do BCN pelo Bradesco, mas multou os bancos em R$ 127.692,00, pela submissão intempestiva da operação à apreciação da autoridade de defesa da concorrência.136 Bagnoli salienta que, em dezembro de 2008, CADE e BACEN assinaram um protocolo de entendimentos, reconhecendo a competência do órgão de defesa da concorrência para zelar pela concorrência também no setor bancário. Tanto o CADE 134 Conflito positivo de competências entre CADE e BACEN. Arcos, [S.l.], 2011. Disponível em: <ht tp://www.arcos.org.br/artigos/conflito-positivo-de-competencias-entre-cade-e-bacen/>. Acesso em: 22 fev. 2016. 135 Direito econômico, p. 245. 136 Ibidem, loc. cit. 70 quanto o BACEN entendem que cada qual possui o seu papel específico nesses procedimentos, como expressam os Projetos de Lei nº 344/2002 (em trâmite na Câmara dos Deputados) e nº 265/2007 (já aprovado pelo Senado e aguardando julgamento na Câmara). Ao BACEN, caberia apreciar a operação analisando o risco no Sistema Financeiro, enquanto ao CADE cumpriria analisar a questão concorrencial das operações.137 Pelos projetos de lei citados, e também no entendimento do CADE e do BACEN, fica determinado que, no caso de a operação afetar o Sistema Financeiro (risco sistêmico), caberá somente ao BACEN decidir. Já as operações que não ofereçam riscos ao Sistema Financeiro são de análise inicial do BACEN e, posteriormente, repassadas ao CADE. Ao CADE, ainda caberia a competência para aplicar as sanções previstas na Lei de Defesa da Concorrência para as práticas de infração à ordem econômica ocorridas no Sistema Financeiro. Como salienta Bagnoli, após o acontecimento da crise financeira de 2008/2009, internamente o BACEN adotou outra posição, e sob a justificativa de higidez do mercado contra risco sistêmico, retomou o entendimento da sua competência exclusiva, de modo que a Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil, em sessão realizada em 24 de abril de 2012, com base no artigo 18, § 2º, da Lei nº 4.595/64, e tendo em conta o disposto no artigo 10, inciso X, alíneas “c” e “g”, da referida lei, resolveu publicar a Circular nº 3.590, de 26 de abril de 2012, determinando que serão analisadas sob o ponto de vista de seus efeitos sobre a concorrência, sem prejuízo do exame relativo à estabilidade do Sistema Financeiro, as operações autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil.138 Outrossim, por meio de Comunicado nº 22.366, de 27 de abril de 2012, o BACEN divulgou o Guia para Análise de Atos de Concentração envolvendo instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil. Para Aline Lícia Klein, a solução da questão passa pela análise dos dispositivos legais que estabelecem a competência. Porém, quando a legislação em vigor é passível de gerar controvérsias tão intensas, acaba instaurando um ambiente de insegurança jurídica e também econômica. Operações que já foram analisadas, aprovadas pelo BACEN e implementadas pelas instituições poderão vir a ser 137 138 Direito econômico, p. 246. Ibidem, p. 247. 71 questionadas pelo CADE, não se destacando que os entes de regulação setorial e de defesa da concorrência se manifestam de modo antagônico.139 Por isso a necessidade da definição legislativa do assunto para dar clareza às competências do ente regulador setorial e de defesa da concorrência. 2.3.1 Do parecer da Procuradoria-Geral do BACEN O parecer da Procuradoria-Geral do Banco Central sobre a questão, após breve relato sobre os mencionados atos de concentração, especialmente no setor financeiro, faz uma análise de regulação das instituições financeiras, a cargo do Banco Central, enfatizando a possível existência de impasse entre a defesa da concorrência e a defesa de segurança e da solidez do Sistema Financeiro.140 Quanto ao artigo 192 da Constituição, alterado pela Emenda Constitucional nº 40/2003, assevera-se que esse dispositivo determina que o Sistema Financeiro Nacional seja regulado por lei complementar. Quanto à Lei nº 4.595/64, afirma-se haver sido ela recepcionada como lei complementar, só podendo ser modificada ou revogada por lei de igual espécie. Em prosseguimento, refere-se o Parecer da Procuradoria-Geral do Banco Central à Lei n. 8.884/1994, que disciplina a defesa da concorrência. Anotase, então, que os defensores da competência do CADE para apreciar os atos da concentração de instituições financeiras baseiam-se em dois argumentos: primeiro, no fato de a então vigente Lei 8.884/1994 não prever nenhuma exceção à competência do CADE para analisar atos potencialmente lesivos à concorrência, conforme dispõe seu art. 54; segundo no fato de a então vigente Lei n. 8.8884/1994 ser posterior à Lei n. 4.595/1964 e, assim, aquela derrogaria em parte as disposições desta sobre 141 competência para a defesa da concorrência. Leonardo Vizeu Figueiredo assevera que o artigo 18, § 2º, da Lei nº 4.595/64, trata, indubitavelmente, de uma atribuição do Banco Central, qual seja a de regular as condições de concorrência entre instituições financeiras, coibindo-lhes os abusos, concluindo que tal fato corrobora a proposição inicial, que pugna pela competência do Banco Central para a análise de atos de concentração de instituições financeiras, 139 Conflito de competência entre CADE e BACEN: comentários a acordão do TRF. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamani, Curitiba, n. 8, out./2007. Disponível em: <http://www.justen.com.br//informativo.php?&informativo=8&artigo=755&l=pt#> Acesso em: 5 set. 2016. 140 Leonardo Vizeu Figueiredo entende que, após essas considerações, passa o parecer a tratar especificamente da competência para análise e aprovação de atos de concentração de instituições financeiras. Reporta-se, então, ao artigo 192 da Constituição Federal (alterado pela Emenda Constitucional nº 40/2003) e à Lei nº 4.595/64. Cf. Lições de direito econômico, p. 371. 141 Ibidem, loc. cit. 72 por força do status de lei complementar da norma que a estabelece, sendo certo que não poderia ser, como não foi, revogada pela vigente Lei ordinária nº 8.884/94.142 Finalizando essas considerações, Figueiredo sustenta que o parecer da Procuradoria-Geral do Banco Central aduz que a edição da Lei nº 9.447/97 robustece os argumentos ali lançados, ao deferir ao Banco Central não apenas a análise de atos de concentração de instituições financeiras, mas, muito mais que isso, o poder de determinar reorganizações societárias, inclusive mediante incorporação, fusão ou cisão, transcrevendo o artigo 5º da mencionada lei.143 Referindo-se às manifestações do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, proferidas em processos que apreciaram atos de concentração praticados no âmbito do Sistema Financeiro, em desacordo com entendimentos travados entre as duas autarquias, que se somariam à insegurança jurídica antes apontada, o parecer afirma ser urgente a necessidade de se dirimir o aparente conflito de competências entre o CADE e o Banco Central. Relevante se faz comentar que, no âmbito da Administração Pública, existe uma questão que suscitou colisão de atribuições entre o Banco Central, ente regulador do Sistema Financeiro Nacional, e o CADE. Conforme Figueiredo: O conflito de atribuições foi oriundo das posições defendidas pelo parecer da Procuradoria-Geral do Banco Central, de um lado, e, de outro, pelos pareceres da Procuradoria Geral do CADE e da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, bem como do estudo do Dr. Gesner Oliveira. O Bacen suscitou conflito positivo de competência n. 0001.006908/2000-25, sustentando ter exclusividade para regular o setor financeiro, sendo que o CADE defendeu posição diversa, argumentando que a atividade é 144 complementar, ou seja, os entes analisam os fatos sob ângulos diversos. A seguir, apresenta-se o posicionamento da Procuradoria do CADE sobre a questão. 142 Lições de direito econômico, p. 372. “Tal artigo sobreleva a intenção do legislador de deferir ao Banco Central a responsabilidade de coordenar os atos de concentração das instituições a ele submetidas. Se, por disposição expressa da lei, o Banco Central pode, ex officio, determinar atos de concentração, que se dirá de aprová-los mediante provocação dos interessados? Ressalte-se que, com essa conclusão, não se exclui o setor financeiro da defesa da concorrência, mas tão somente se atribui à autoridade reguladora – Banco Central – o papel de analisar o aspecto concorrencial dos atos de concentração, sopesando o potencial dano à concorrência e a eficácia do sistema financeiro, para a qual a existência de um mercado competitivo é, sem dúvida, essencial.” Cf. Ibidem, loc. cit. 144 Ibidem, p. 370. 143 73 2.3.2 Do posicionamento da Procuradoria do CADE A primeira legislação brasileira envolvendo aspectos de direito concorrencial foi o Decreto-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938, que tipificava como crimes certas práticas empresariais, como os acordos visando ao aumento arbitrário dos lucros e competitividade. Mais tarde, foi criado o CADE, aprovado em 1962, com a promulgação, em 10 de setembro, da Lei nº 4.147, cuja finalidade é regular a repressão ao abuso do poder econômico. Leonardo Vizeu Figueiredo fala da estrutura do CADE: É a entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, que se constitui autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal, sendo constituído pelo Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, pela Superintendência-Geral e pelo Departamento de Estudos Econômicos. Além da estrutura organizacional e do apoio técnico prestado pela Secretaria de Acompanhamento Econômico, atuam junto ao CADE uma Procuradoria Federal Especializada, vinculada a AdvocaciaGeral da União, órgão que prestando-lhe, com exclusividade, consultoria jurídica, bem como um órgão do Ministério Público Federal, que oficia nos 145 processos de apuração de infração da ordem econômica. Segundo Vicente Bagnoli, o CADE também poderá considerar legítimo o ato previsto no caput do mesmo dispositivo, quando necessário, por motivo preponderante da economia nacional e do bem comum, desde que não implique prejuízo ao consumidor ou usuário final, e desde que atenda pelo menos a três das condições previstas nos incisos do artigo 54 da Lei nº 8.884/94.146 Cabe notar que o CADE não detém poder normativo, não é uma agência reguladora, mas o controle estrutural por ele exercido significa que o órgão desempenha não apenas a função de repressão, mas também a de prevenção na área concorrencial.147 145 Lições de direito econômico, p. 261. Direito e poder econômico, p. 168. 147 Figueiredo apresenta as inovações e polêmicas que cabem ao CADE. A primeira inovação reside no fato de que o controle passa a ser prévio, isto é, as empresas que intencionem promover união empresarial devem aguardar a decisão favorável do CADE antes de realizarem a concentração econômica. A segunda inovação permite que o CADE aprove atos de concentração econômica que causem danos graves e substanciais à concorrência, desde que eficiências econômicas sejam produzidas pela união, sendo garantido aos consumidores o repasse de parte relevante de tais benefícios. A Lei nº 12.529, de 2011, nesse sentido, em nada inovou, confiando ao Tribunal a definição da política mais adequada a cada momento histórico, político e econômico. A terceira inovação é a que altera o critério de apresentação de uniões empresariais: suprime-se o critério de apresentação na hipótese de detenção de 20% ou mais do mercado relevante, bem como se exige que a empresa a ser adquirida tenha, ao menos, faturamento de R$ 30 milhões, inaugurando-se o sistema de dupla trava cumulativa. Cf. Op. cit., p. 381. 146 74 Trata-se de inovação148 da Lei nº 8.884/94 em relação ao sistema que vigorava nas leis anteriores. O artigo 54 da referida lei exige que quaisquer atos que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, devem ser submetidos à apreciação do CADE. Cabe ao mesmo decidir pela existência ou não de condutas contrárias à legislação concorrencial, realizando, quando necessário, multas e sanções. É o CADE que decide sobre a legitimidade de atos jurídicos: fusões, corporações ou quaisquer tipos de integração horizontal, que restringem ou eliminam a concorrência. O processo administrativo que analisa tais atos jurídicos é chamado de Ato de Concentração, ou simplesmente AC. Os atos de concentração podem ser aprovados sem restrições pelo CADE149, aprovados com restrições ou não aprovados. O CADE pode celebrar, quando entender que determinado ato jurídico deve ser aprovado com restrições de ordem comportamental, o chamado Termo de Compromisso de Desempenho. O Parecer nº 876/2000, da Procuradoria do CADE, divide a questão, fazendo distinção entre o controle preventivo de concentração de instituições financeiras e o controle repressivo de condutas infrativas à ordem econômica praticadas por instituições financeiras, concluindo que, quanto à análise dos atos e contratos, são complementares as competências do CADE e do BACEN, e que, quanto aos aspectos de condutas, a competência é exclusiva do CADE. Figueiredo entende ser necessário observar o Parecer nº 876/2000, da Procuradoria do CADE, antes das conclusões e após referir-se aos artigos 20 e 21 da então vigente Lei nº 8.884/94, relativos a condutas que representam infração à ordem econômica, de acordo com a anterior e já revogada Lei de Proteção da Concorrência, pois o diploma que regulamenta a atuação do Banco Central não sanciona tal conduta, não havendo sequer delegação de competência a essa autarquia para aplicar a Lei nº 8.884/94.150 148 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 238. 149 GRANDINO RODAS ADVOGADOS. Cartilha de direito concorrencial. São Paulo: FIESP, 2008, p. 4. 150 Lições de direito econômico, p. 374. 75 Assim, o autor afirma que esses dispositivos admitem convivência pacífica no ordenamento jurídico por tratarem da defesa de concorrência, de forma geral e específica. A nova lei do CADE, Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011,151 faz profundas alterações no controle de estruturas, com a introdução do sistema de análise prévia de atos de concentração, há muito recomendado pelas melhores práticas internacionais. O Brasil era um dos únicos países do mundo em que se facultava às empresas pedir a aprovação ao CADE após a consumação da concentração econômica. Tal procedimento, realizado a posteriori, era não só ineficiente do ponto de vista econômico, como ineficaz na proteção e defesa do interesse público. Com a entrada em vigor da nova lei, as operações passaram a só poderem ser consumadas após a aprovação do CADE, e o fechamento da operação antes de sua aprovação sujeita as partes a multas que variam de R$ 60 mil a R$ 60 milhões.152 As sucessivas legislações que disciplinaram a matéria foram a Lei nº 8.884/94, a Medida Provisória nº 1.708/98 (posteriormente convertida na Lei nº 9.873/99) e a Lei nº 12.529/2011, hoje em vigor. Então, passou-se à análise das espécies de prescrição previstas na nova Lei nº 12.529/2011, reconhecendo-se que esse diploma normativo cuidou, apenas, das modalidades de prescrição da pretensão punitiva – relativa ao direito do Estado de punir o infrator –, não disciplinando a prescrição da pretensão executória – relativa ao direito estatal de executar a pena administrativamente imposta. Várias são as mudanças verificadas na Lei nº 12.529/2011, quando comparada com a Lei nº 8.884/94, a antiga Lei do CADE. É possível apontar, dentre as diversas alterações, três pontos de destaque, referentes: (i) ao controle preventivo; (ii) ao controle repressivo; e, finalmente, (iii) à estrutura administrativa do CADE. Em relação ao controle preventivo, a principal mudança é que o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) agora adotou o sistema de análise prévia de atos de concentração. 151 A Lei nº 12.529/2011 alterou não só a estrutura do Sistema Brasileiro da Concorrência (SBDC), como introduziu o Sistema de Análise Prévia dos atos de concentração em lugar da análise posterior à sua materialização, que vigeu durante a revogada Lei nº 8.884/94. Ambas as mudanças foram materializadas como forma de dotar o Estado de mecanismos mais eficientes nas análises de mercado e no combate às condutas perpetradas em face da livre concorrência. 152 ESCOLA DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO; LEAL, Victor Nunes. A nova lei do CADE. Publicações da Escola da AGU, Brasília, ano IV, n. 19, jul./2012, p. 27. 76 Na sistemática da Lei nº 8.884/94, os agentes econômicos tinham de notificar determinada operação econômica ao CADE no prazo de 15 dias úteis contados da sua realização (artigo 54, § 4º). O CADE, por sua vez, tinha um prazo de análise de 60 dias (artigo 54, § 6º). Esse prazo, apesar de ter natureza peremptória, vez que a sua não observância implicava a aprovação tácita da operação (artigo 54, § 7º), era diversas vezes suspenso para a realização de instrução processual (artigo 54, § 8º). Na prática, a análise de operações mais complexas podia demorar alguns anos. Em relação ao controle repressivo, foi consideravelmente alterado o parâmetro para o estabelecimento das sanções pecuniárias por infração a ordem econômica. Segundo o art. 23 da Lei 8.884/1994, o valor da multa era, nos casos de empresas, no valor de 1% (um por cento) a 30% (trinta por cento) do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca seria inferior à vantagem auferida, quando quantificável. Pela sistemática da Lei 12.529/2011, mais especificamente do art. 37, inciso I, a multa para as empresas será de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação. Ou seja, além de reduzir o valor mínimo da multa para 0,1%, a nova legislação prevê que esse valor incidirá sobre o faturamento restrito ao ramo da atividade empresarial referente à conduta sancionada. A jurisprudência do CADE precisará definir o que essa expressão significa exatamente (uma das Quanto à estrutura administrativa, o CADE deixa de ser apenas um tribunal administrativo em forma de autarquia e passa a englobar uma Superintendência-Geral, um Departamento de Estudos Econômicos e um Tribunal Administrativo de 153 Defesa Econômica (art. 5º da Lei 12.529/2011). Ainda pela nova lei, a Superintendência-Geral passa a exercer funções de investigação e de instrução de processos administrativos (função repressiva), que antes ficavam a cargo da Secretaria de Direito Econômico (SDE), mais especificamente do Departamento de Proteção e Defesa Econômica (DPDE), órgãos que estavam vinculados ao Ministério da Justiça. Além disso, adquire atribuição para instruir e oferecer pareceres em atos de concentração econômica, papel desempenhado, sob a égide da Lei nº 8.884/94, prioritariamente pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda. Em síntese, diante do exposto, percebe-se que as tarefas do Banco Central assemelham-se às de um órgão regulador, responsável pela regulação técnica e pela observância das regras de defesa da concorrência no setor, devendo proceder à investigação de práticas que possam ser consideradas infrativas à ordem econômica. Do mesmo modo, deverá o Banco Central proceder à autorização de 153 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 139-140. 77 qualquer transferência societária. E, para cumprimento dessa tarefa, deverá o Banco Central se atentar para os efeitos de tais transferências, aquisições e fusões sobre a concorrência, elaborando parecer técnico sobre o assunto. As funções do CADE assemelham-se à de um Tribunal154 Administrativo que, de modo independente, procede ao julgamento administrativo dos processos que visem a apurar dano à concorrência, bem como daqueles que visem à aprovação de ato de concentração econômica.155 Com o conteúdo apresentado por Leonardo Vizeu Figueiredo, pode-se concluir a natureza jurídica de competência legal de cada entidade: ao Banco Central cabe instruir os processos administrativos visando ao bem-estar econômico e social; já ao CADE, cabe apreciar, como instância de decisão administrativa, os processos instaurados pelo Banco Central. 154 Em verdade, o CADE não só assemelha-se a um tribunal, como, de fato, é um tribunal. Segundo Pedro Aurélio de Queiroz, a Lei nº 12.529/2011, em seu Título II, Capítulo II, Seção I, especificamente no artigo 5º, diz que o CADE é constituído dos seguintes órgãos: I - Tribunal Administrativo de Defesa Econômica; II - Superintendência Geral; e III - Departamento de Estudos Econômicos. Cf. Direito econômico. Ribeirão Preto: IELD, 2013, p. 125. 155 Lições de direito econômico, p. 375. 78 3 REGULAÇÃO ECONÔMICA PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL No capítulo anterior, procurou-se apresentar uma visão geral do Banco Central do Brasil, destacando a sua importância e identificando qual o seu papel como executor da política monetária. Cabe, agora, explanar a sua função frente à atividade produtiva, bem como identificar a maneira como pode fomentar a criação de empregos e melhorar a distribuição de renda por meio de sua autonomia, possibilitando o bem-estar econômico e social, e garantindo, assim, a preservação das relações sociais. Entende-se que o Banco Central, por ser parte integrante do Estado, tem como principal objetivo executar a política monetária, a fim de corroborar os objetivos desse Estado para contribuir com a sociedade. John B. Taylor entende que dado o conflito de curto prazo entre a estabilização da inflação e do emprego, Bancos Centrais cujas metas incluam o pleno emprego podem ser percebidos como decidindo arbitrariamente em favor de uma das metas. Esses Bancos Centrais têm enfatizado, entretanto, que não existe conflito entre a estabilização da inflação e do emprego no longo prazo, e que a melhor maneira de o Banco Central apoiar o crescimento econômico é mantendo uma taxa de inflação baixa. Em outras palavras, a manutenção da estabilidade dos preços no longo prazo seria a melhor contribuição da política monetária para o crescimento econômico.156 Na verdade, o Banco Central, associado ao Ministério da Fazenda, não deve limitar-se a um único mandato, mas deve ter o que Luiz Carlos Bresser-Pereira chama de mandato triplo: controlar a inflação, manter a taxa de câmbio competitiva (neutralizando a tendência à sobrevalorização da taxa de câmbio) e alcançar razoavelmente o pleno emprego.157 Para desempenhar essas tarefas, o Banco Central opera não com um único instrumento, mas com vários instrumentos além da taxa de juros: ele pode, por exemplo, comprar reservas e estabelecer controles de ingresso de capitais para 156 How should monetary policy respond to shocks while maintaining long-run price stability? Conceptual issues. Achieving price stability, Federal Reserve Bank of Kansas City Symposium Series, Kansas, 1996. 157 Globalização e competição: por que alguns países emergentes têm sucesso e outros não. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2009, passim. 79 evitar a tendência da taxa de câmbio a uma apreciação relativa. A taxa de juros é um instrumento de controle da inflação, mas pode ser consideravelmente mais baixo do que o previsto pela ortodoxia convencional.158 Diante desse cenário, este capítulo apresenta a regulação econômica por meio do Estado, que é uma potencial fonte de recursos ou de ameaças a toda atividade econômica na sociedade. 3.1 Regulação econômica Por regulação econômica entende-se o ramo da Economia que estuda o sistema econômico como um todo interativo, de forma a analisar a regularidade de preços e de quantidades produzidas, ofertadas e demandadas, por meio da interação entre respectivas partes que o compõem, a saber, o Estado, as empresas, os credores, os trabalhadores, os consumidores e os fornecedores. Objetiva-se, com a regulação econômica, prevenir e corrigir falhas de mercado, potenciais ou efetivas.159 Segundo Richard Posner, a regulação econômica se refere a todos os tipos de impostos e subsídios, bem como aos controles legislativo e administrativo explícitos sobre taxas, ingresso no mercado e outras facetas da atividade econômica.160 Posner ainda descreve a regulação econômica com mais precisão, apontando os seus pontos fortes e as suas fraquezas. A teoria é baseada em ideias simples, mas que o autor julga importantes. A primeira é que, dado que o poder coercitivo do governo pode ser usado para dar benefícios valiosos a indivíduos ou grupos específicos, a regulação econômica – a expressão desse poder na esfera econômica – pode ser vista como um produto cuja alocação é governada por leis de oferta e procura. A segunda ideia é que a teoria dos cartéis pode ajudar a identificar as curvas de oferta e procura.161 158 Globalização e competição: por que alguns países emergentes têm sucesso e outros não, passim FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 125. Há de se ter em mente que a regulação jurídica, exercida pelo Estado, se trata de um dos instrumentos pelos quais a regulação econômica se operacionaliza. 160 Teorias da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo (Coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 49-80, p. 50. 161 Ibidem, loc. cit. 159 80 No entender de George Stigler, o Estado162 tem o poder de proibir ou compelir, de tomar ou dar dinheiro. O Estado pode (e efetivamente o faz) ajudar ou prejudicar, seletivamente, um vasto número de indústrias. Assim, por exemplo, ao passo que a indústria petrolífera, um verdadeiro peso-pesado da política, é um imenso consumidor de benesses políticas, agentes de seguro marítimo recebem parcelas modestas de benefícios.163 Para Marco Antônio Ribeiro Tura, o Estado, para sobreviver como ordenador supremo (último) da totalidade da vida social, necessita reformular a sua atuação como algo menos, como um coordenador dos processos econômicos, preservando a capacidade decisória por meio do seu compartilhamento com os grupos sociais diretamente afetados pela decisão, unindo, a um só tempo, eficiência (cálculo de custos) e legitimidade (cálculo de benefícios), aproximando o ser do dever.164 Com as sequentes crises financeiras, o ideal seria a implementação de reformas e a criação de um Sistema Financeiro forte e inovador, capaz de detectar com precisão as vulnerabilidades e melhor avaliar os riscos. Para tanto, exigir-se-á, em alguns casos, maior regulação, e, em outros casos, um melhor direcionamento dos poderes que as autoridades de controle já detêm. As tarefas principais da regulação econômica são: justificar quem receberá os benefícios ou quem arcará com o ônus da regulação, decidir qual forma a regulação tomará e identificar quais os efeitos da alocação de recursos. De forma ampla, pode-se conceituar a regulação como um conjunto de regras impostas pelo Estado aos agentes privados, com as devidas limitações e punições, em determinadas situações, em caso de descumprimento de regras, sem as quais poderia haver danos à sociedade como um todo. 162 Marco Antônio Ribeiro Tura afirma que o Estado regulador nada mais é do que o ápice alcançado após um longo processo de adaptação ente estatal no lidar com os campos do Direito e da Economia, bem como com suas respectivas linguagens, com a finalidade única de sobreviver como poder social qualificado pela soberania decisória. O autor ressalta, ainda, que o Estado é repressor e a repressão foi primeira forma propriamente moderna assumida pelo Estado. O Estado assim caracterizado era o policial das relações sociais e, no exercício do chamado poder de polícia, limitava-se essencialmente a atuar coativamente de maneira diretiva para estabelecer uma conformação geral e abstrata de comportamentos, operando, pois, negativa e indiretamente, como último ator relevante na preservação do curso do processo econômico. Cf. A contribuição à crítica da concepção dominante da regulação da atividade econômica pela ótica de Jean Tirole. 2015. Relatório de Pesquisa (Programa de Pesquisa em Finanças Públicas) – Escola de Administração Fazendária, Ministério da Fazenda, Brasília, 2015, p. 9. 163 A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo (Coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 23-48, p. 23. 164 Op. cit., loc. cit. 81 Como explica George Stigler, a regulação tanto pode ser ativamente perseguida por uma indústria, como também pode ser imposta a ela. O autor apresenta duas visões alternativas principais da regulação que são largamente empregadas. A primeira é a de que ela é instituída fundamentalmente para a proteção e benefício ou do público em geral ou de uma grande parcela dele. A partir desse ponto de vista, as regras de regulação que prejudicam a coletividade são o preço de uma espécie de objetivo social (no caso de defesa nacional) ou, eventualmente, perversões da filosofia regulatória. A segunda visão é essencialmente a de que o processo político carece de uma explicação racional: a política é um imponderável, uma mescla de forças das mais diversas naturezas, constante e imprevisivelmente cambiante.165 O Estado regulador da economia foi oriundo do insucesso dos modelos que pregavam intervenção tanto econômica quanto social. Assim, houve a necessidade de o Estado repensar e interferir no processo de geração de riquezas, bem como na realização de políticas públicas de inclusão social e de repartição de rendas. Conforme Leonardo Vizeu Figueiredo, o Estado Regulador caracteriza-se em uma concepção que envolve a sua presença na economia, como ente garantidor e regulador da atividade econômica, que volta a se basear na livre iniciativa e na liberdade de mercado, assim como na desestatização das atividades econômicas e na redução sistemática dos encargos sociais, com o fito de garantir equilíbrio nas contas públicas. Contudo, não desvia o Poder Público da contextualização social, garantindo, ainda, que esse último possa focar esforços nos serviços públicos essenciais.166 Pode-se dizer que o principal desafio dos organismos de regulamentação é assegurar que a busca contínua de lucros pelos bancos individuais seja efetuada em condições adequadas, ou seja, sem ameaçar a estabilidade do sistema bancário em seu conjunto. Pela supervisão e fiscalização estrita de normas e regras continuamente aprimoradas, as autoridades de regulamentação devem prevenir a ocorrência de práticas perigosas de alguns bancos que, impulsionados pela lógica concorrencial, têm a tendência de assumir riscos excessivos. É importante salientar que a intervenção indireta, por via de regulação da atividade econômica, surgiu como pressão do Estado sobre a economia para 165 166 A teoria da regulação econômica, p. 24. Lições de direito econômico, p. 51. 82 devolvê-la à normalidade, isto é, para garantir a livre concorrência, evitando-se práticas abusivas pelos agentes mais fortes em face dos mais fracos, bem como em detrimento do mercado e, por consequência, de toda a sociedade. As primeiras medidas interventivas, de acordo com Figueiredo, manifestaramse por meio de um conjunto de atos legislativos que intentavam restabelecer a livre concorrência. Nesse sentido, cumpre destacar que as primeiras ações estatais de caráter intervencionista foram as Leis Antitruste, criadas no final do século XIX, no Canadá (Competition Act) e nos Estados Unidos (Sherman Act). Outrossim, a ordem econômica somente foi positivada com força e norma constitucional na Carta Mexicana de 1917, marco das constituições sociointervencionistas.167 No histórico feito por Figueiredo, a regulação nos EUA como forma de intervenção indireta implementada via Executivo surgiu em 1887, ante a necessidade de se criar regras homogêneas para a normatização do comércio interestadual, evitando-se, assim, a guerra fiscal entre as unidades da Federação. Na década de 1930, avançou em virtude de se estudar e normatizar o monopólio natural decorrente de linhas ferroviárias, bem como da necessidade de se coibir a prática de condutas abusivas nesse mercado.168 Já na Europa, foi oriunda do processo de desestatização da economia, decorrente da mudança do Estado Intervencionista (bem-estar social) para o Estado Neoliberal Regulador. A experiência reguladora no Brasil, por sua vez, data igualmente do início do século XX. Uma das primeiras medidas intervencionistas na ordem econômica brasileira teve origem na necessidade de se controlar a oferta e a demanda do setor cafeeiro para o mercado externo, que resultou, por ordem do governo federal, na queima de excedente de produção, sem, contudo, contar com um aparelhamento estatal estruturado para a regulação do setor.169 O Estado brasileiro tomou gosto pela regulação da economia e, assim, passou a regular o setor de transporte aéreo civil, mediante a criação de um órgão ministerial, o Departamento de Aviação Civil (DAC), o qual foi substituído pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), em 2005. Em 1952, o setor cafeeiro foi 167 Lições de direito econômico, p. 125. Ibidem, loc. cit. 169 Ibidem, p. 126. 168 83 regulado pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC), substituído pelo Departamento Nacional do Café (DNC), em 1989. Com o processo de modernização econômica da ordem jurídica pátria, ante a necessidade de se normatizar e regular o mercado financeiro, o Estado brasileiro passou a adotar o modelo norte-americano para regular, inicialmente, o Sistema Financeiro Nacional, por meio da criação de um Banco Central independente e autônomo ao governo, o qual teve como marco regulador a edição da Lei nº 4.595/64. Como é possível notar, o Estado Regulador170 se caracteriza por reservar ao Poder Público um papel subsidiário na ordem econômica. 3.2 Regulação prudencial Armando Castelar Pinheiro destaca que o objetivo principal da regulação prudencial é dar às instituições financeiras os incentivos socialmente corretos para a assunção do risco. Isso porque, em um mercado financeiro não regulado, os bancos têm uma tendência a correr riscos excessivos. Essa tendência advém do fato de os bancos trabalharem de forma muito mais alavancada do que outras empresas, o que, junto com o instituto de responsabilidade limitada, faz com que seja interessante para o acionista participar de projetos arriscados. Afinal, ele ganhará desproporcionalmente se as coisas derem certo, e, no pior cenário, perderá apenas o seu capital.171 A forma encontrada para incentivar os bancos é exigir que utilizem tanto mais capital próprio quanto mais arriscada for a composição de seus ativos; ou seja, que o teto permitido para a sua alavancagem seja tão mais baixo quanto mais arriscados 170 Armando Castelar Pinheiro apresenta cinco maneiras principais de o Estado interferir no mercado financeiro: (i) por meio dos instrumentos usuais de política monetária, procurando suavizar o ciclo econômico, em grande parte por meio do canal da disponibilidade e do custo do crédito; (ii) estimulando o acesso ao sistema de pagamentos; (iii) reduzindo a assimetria informacional, por meio da imposição de regras contábeis uniformes e obrigações de disponibilização de informações, assim como pela manutenção de registros públicos de informação de créditos; (iv) influindo na composição dos ativos das instituições financeiras, seja alterando o retorno relativo das diversas operações financeiras, por meio de tributos e subsídios, seja obrigando a destinação de fluxos financeiros para certos setores ou devedores (crédito direcionado), ou ainda por meio de bancos públicos; e (v) como regulador prudencial e emprestador de última instancia de forma a proteger o sistema de pagamentos, estimular a intermediação financeira e proteger o pequeno poupador. Cf. Notas sobre a reforma regulatória do Sistema Financeiro. In: CARNEIRO, Dionisio Dias (Org.). A reforma do Sistema Financeiro americano: nova arquitetura internacional e o contexto regulatório brasileiro. Rio de Janeiro: LTC, 2010. cap. 2, p. 14. 171 Ibidem, loc. cit. 84 os seus negócios. Ainda que haja outras formas de influir na disposição do banco de correr riscos com recursos de investidores pouco informados, como, por exemplo, um prêmio de seguro de depósitos proporcional ao risco embutido nos ativos, essa forma é o elemento central dos modelos de regulação prudencial, como os que inspiraram os chamados Acordos de Basileia. Foi basicamente com esse modelo, ou, mais precisamente, a forma como ele foi adotado, que a crise de 2008 mostrou ser insuficiente para proteger os sistemas financeiros. Fernando Cardim de Carvalho ressalta que, em junho de 2004, com substancial atraso em relação aos planos iniciais, o Comitê de Regulação Bancária da Basileia divulgou finalmente o documento International Convergence of Capital Measurement and Capital Standard, conhecido com Basileia II. Esse documento, cuja última versão atualizada foi lançada em novembro de 2005, completa a revolução na regulação prudencial iniciada com o primeiro acordo da Basileia, assinado em 1988.172 Vale observar que regras de regulação prudencial para o setor bancário foram desenvolvidas historicamente em resposta à percepção de que problemas em instituições bancárias individuais poderiam acabar causando turbulências muito mais profundas em todo o setor e, eventualmente, em toda a economia. Em outras palavras, dificuldades em bancos individuais envolviam o espectro de risco sistêmico, isto é, a possibilidade de que todo o sistema fosse contagiado por aqueles problemas. Um colapso no setor bancário leva inevitavelmente a um colapso de toda a economia, pela impossibilidade de liquidação de transações comerciais e financeiras de qualquer natureza. A virtual paralisação do sistema bancário brasileiro durante o Plano Collor, em 1990, ou, mais recentemente, na Argentina, com o corralito, ilustra que as consequências da cessação de atividades de outro setor são tão importantes para a operação de todos os mercados quanto as do setor bancário, e é por essa razão que crises bancárias geram preocupações com riscos sistêmicos.173 Nesse sentido, a regulação prudencial teve como prioridades definir índices adequados de liquidez para os bancos, por meio da obrigação de manutenção de reservas, primárias e secundárias, e evitar a exposição a riscos, por meio, por 172 Estrutura e padrões de competição no sistema bancário brasileiro: uma hipótese para investigação e alguma evidência preliminar. In: AMADO, Adriana et al. Sistema financeiro: uma análise do setor bancário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. cap. 5, p. 155. 173 Ibidem, p. 158. 85 exemplo, da imposição de limites ao descasamento de ativos e passivos, e da restrição de linhas de negócios permitidas aos bancos. Todas as prioridades acima foram importantes para o fortalecimento do papel do Banco Central enquanto regulador prudencial, na contramão das reformas adotadas por vários países nos últimos anos para funções típicas de política monetária. 3.3 Regulação: teorias e princípios informadores para a concepção do Estado Regulador Contemporâneo Lucas de Souza Lehfeld defende que o termo regulação remete ao final da Idade Média. Desde o momento em que a produção jurídica tornou-se monopólio do Estado, a ele são reconhecidos poderes de natureza regulatória, uma vez que a regulação é da própria essência do Direito.174 O termo “regulação”, para Ricardo Martins, viria do ramo da Cibernética, lá significando a manutenção do equilíbrio de um sistema.175 Lehfeld busca a etimologia da palavra e apresenta o seguinte: A tradução mais próxima da língua portuguesa das expressões regulation e regulator poderia ser regulamentação e regulamentador, ocorre, no entanto, que a primeira expressão já possui características específicas no direito brasileiro, razão pela qual não parece a tradução corresponder ao que realmente quer expressar regulation. Isso porque já sedimentada no sistema jurídico pátrio a ideia de regulamentação como expressão que representa o desempenho de atividade executiva, fundamentada no art. 84, IV, da Constituição Federal de 1988, e que estabelece como competência do Presidente da República, dentre outras, os atos de sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. Trata-se de função normativa infralegal que especifica as condições necessárias para ampliar a eficácia de certos dispositivos legais, cuja generalidade e abstração proporcionam certa dificuldade na sua 176 aplicação a casos concretos. A busca da compreensão dos padrões da natureza pela Física inspirou Adam Smith na utilização desse método para compreender o funcionamento da sociedade. Segundo Ricardo Feijó: “O método newtoniano que influenciou Hume e Smith 174 Controles das agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2008, p. 65. Martins também enfatiza que essa acepção passou a ser utilizada no âmbito da Economia, onde, na visão de Adam Smith, ocorreria naturalmente, como que regida por uma mão invisível. Cf. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 85. 176 Op. cit., p. 66. 175 86 consiste na busca de princípios que possibilitam identificar uma ordem subjacente a fenômenos aparentemente caóticos”.177 Robert Baldwin e Martin Cave lembram que a regulação é abordada por uma série de teorias, como a teoria do interesse privado, a teoria do interesse do grupo, a teoria do interesse público, a teoria da força das ideias e a teoria institucional.178 Já no entender de Johan den Hertog: Pode-se dizer que a regulação, no campo da economia, é tratada, em síntese, por duas grandes teorias: a chamada teoria da regulação de interesse público e a teoria da regulação de interesse privado. No artigo que tratou do assunto, o autor esclarece que não há na literatura jurídica e econômica definição precisa do termo “regulação”, mas, para os fins de seu estudo, conceitua-a como “o emprego de instrumentos legais para a 179 concretização de objetivos de política socioeconômico.” Atualmente, todavia, não podem ser desconsideradas as recomendações para que haja interferência humana dirigida a promover eficiência e equidade, quando a mão invisível não as realiza.180 Em busca de um conceito jurídico de regulação, Jairo Saddi sustenta que a visão mais ampla abrangeria toda forma de controle social, advinda ou não do Estado. A intermediária abrangeria toda a ação estatal dirigida ao controle social. A mais restrita consistiria no conjunto normativo coercitivo editado pelo Estado, sendo somente essa acepção, segundo ele, a mais relacionada com o âmbito do Direito.181 Cabe notar que, na área econômica, o termo regulação também tem significação própria e pressupõe dois fenômenos, os quais, mesmo com suas peculiaridades, apresentam intrínseca relação: primeiro, a redução da intervenção estatal direta na economia, e, segundo, o crescimento dos atos de concentração econômica em função da flexibilização do monopólio do Estado em setores agora privatizados.182 É importante considerar que, independentemente da postura que se adote, não se deve deixar de compreender o significado da regulação no sistema normativo que integra o Direito, iniciando-se pela norma maior, a Constituição Federal. Partindo dela, assevera Ricardo Martins que a regulação abstrata autônoma somente pode ser efetivada por meio de lei. Já quando analisa o significado de 177 História do pensamento econômico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 111. Understanding regulation: theory, strategy and practice. Oxford: University Press, 1999, p. 18-33. 179 Review of economic theories of regulation. Igitur, [S.l.], v. 10, n. 18, 2010. Disponível em: <http://igitur-archive.library.uu.nl/USE/2011-0110-200311/10-18.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2015, p. 3. 180 MANKIW, N. Gregory. Introdução à economia. São Paulo: Thomson Learning, 2007, p. 10-12. 181 Crise e regulação bancária: navegando por mares revoltos. São Paulo: Textonovo, 2001, p. 22. 182 LEHFELD, Lucas de Souza, Controles das agências reguladoras, p. 67. 178 87 “regulador” constante do artigo 174 da Constituição, o autor afirma que “[...] regular é, nesse dispositivo, para os fins constitucionais, efetuar ponderações no plano concreto”.183 Por isso, para Martins, “[...] nos termos do inciso IV do art. 84 da CF e do inciso I do art. 25 do ADCT, à Administração é permitido efetuar ponderações no plano abstrato apenas e tão somente para concretizar as ponderações legislativas e constitucionais”. Além disso, a regulação seria “[...] uma atividade estatal voltada aos particulares, à esfera da liberdade destes, e não à atuação do Estado”, de modo que as atividades estatais não estariam sujeitas à regulação.184 Como se vê, então, o termo regulação não surgiu no âmbito jurídico. Talvez porque aqui seja comum a edição de regras, de modo que, por se estar no meio do fenômeno, sua nitidez pode ter ficado prejudicada e a necessidade de sua delimitação pode ter sido dispensada. O que há de novo é o fato de as normas editadas no âmbito da regulação necessitarem de constante mudança e aprimoramento para se adaptarem ao sistema a que se destinam, além de modelarem esse próprio sistema. Isso porque, na medida em que o sistema seja instável, a busca do equilíbrio é uma constante. Essa regulação é efetuada por meio da atuação estatal, e busca alcançar os objetivos da República. Tais objetivos estão mais especificados para os âmbitos econômico e social no artigo 170 da Constituição.185 Leandro Sarai enfatiza que não é demais lembrar que o mercado sobre o qual incide a regulação não é uma “terra de ninguém”, em que os agentes podem livremente perseguir seus objetivos egoísticos ou não. Em se tratando de patrimônio nacional, assim como qualquer bem público, seu fim só pode ser público, na medida em que ele é nada mais do que um instrumento para tanto.186 183 Regulação administrativa à luz da Constituição Federal, p. 103. Ibidem, p. 115, grifos do autor. 185 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” 186 Notas gerais e críticas sobre o regime dos bens públicos. BDA - Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, p. 664-682, jun. 2012, p. 664. 184 88 Para o objeto da presente dissertação, juridicamente, importa afirmar que regulação é a ação estatal com o objetivo de direcionar a sociedade a alcançar os fins constitucionais, independentemente do meio lícito utilizado para tanto. Preferese dizer agir em vez de editar regras, visto que uma ação estatal pode influenciar a sociedade até mais do que uma simples norma. Basta imaginar a ação de um banco estatal que baixa seus juros. Isso pode levar as demais instituições a também reduzirem seus juros, ainda que não haja nenhuma norma nesse sentido. Não se ignora, todavia, que qualquer ação estatal depende de base em alguma norma preexistente, em razão do princípio da legalidade. Essa ação possui um objetivo previamente estabelecido na Constituição. O que entra em questão aqui, então, não é tanto o meio próprio para esse direcionamento, mas o cabimento ou não da ação estatal com esse propósito.187 Isso porque, uma vez comprovado que tais fins são atingidos de forma mais eficiente sem a ação estatal, esta não só será incabível como também inconstitucional, justamente por violar o artigo 3º da Carta Magna. Se, por outro lado, a sociedade se mantiver inerte na consecução desses fins, a ação estatal será indispensável, por força do mesmo dispositivo. Calixto Salomão Filho sustenta que a ação estatal seria necessária, em suma, para sanar a assimetria de informações, evitar externalidades, buscar estabelecer uma concorrência equilibrada por meio do combate à concentração do poder econômico e garantir a estabilidade dos sistemas, tudo em busca do desenvolvimento.188 Vicente Bagnoli, a propósito, esclarece que, ao lado das forças que movem os agentes em concorrência em benefício da eficiência e da qualidade da produção, a 187 A lei brasileira não confere ao BACEN, única e exclusivamente, a missão de prosseguir e promover o pleno emprego, como se vê com o FED, porém, o pleno emprego faz parte do desenvolvimento de qualquer nação, que, para tanto, precisa de uma economia forte. A questão será abordada mais adiante, na subseção 3.10.3.2 O pleno emprego como garantia de desenvolvimento econômico e social, ao ser comentado que Marcio Pochmann entende que se torna necessário considerar, na análise da problemática atual do emprego no Brasil, tanto variáveis endógenas (salário, custo do trabalho, qualificação, entre outras) como exógenas (investimento, inserção internacional, inovação tecnológica, entre outras) ao funcionamento do mercado de trabalho. Sendo um processo que surge devido à globalização, é inevitável, e precisa que o Estado se valha dos órgãos competentes para manter e demandar o pleno emprego. 188 Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 200. 89 ausência do Estado pode levar a conglomerados dominantes e reverter tais efeitos benéficos.189 Assim, sendo necessária a regulação, cabe destacar algumas de suas peculiaridades quando aplicada no Sistema Financeiro Nacional. 3.3.1 Princípios do Direito Os princípios são a viga-mestra do Direito, constituindo comandos gerais dotados de alto grau de abstração, com amplo campo de incidência e abrangência, que orientam a produção do ordenamento jurídico. Traduzem-se, portanto, em comandos de orientação para a atividade legislativa de produção do direito positivo, isto é, das leis escritas. Em razão de sua função precípua, resta claro que os princípios não se prestam, prima facie, a investir no indivíduo titularidade de direito subjetivo, uma vez que são normas cujo campo de aplicabilidade não se encontra previamente definido pelo legislador, em face da coletividade sobre a qual incidem seus efeitos. Outrossim, os princípios podem estar ou não explícitos dentro do ordenamento jurídico, servindo, muito mais, como instrumentos de interpretação e de integração do Direito, nesta hipótese, tão somente, nos casos em que ocorram vácuos legislativos, isto é, ausência de norma específica incidente sobre o campo de aplicabilidade para o caso sub examine.190 Os princípios são comandos orientadores da vontade do legislador, os quais refletem quais as diretivas que devem ser obrigatoriamente observadas quando da produção das leis escritas, do direito positivo. Marco Antônio Ribeiro Tura afirma que, para falar de princípios conforme uma concepção do Direito como sistema, é necessário que se defina o que se deve compreender com o vocábulo sistema. Para isso, ele se vale dos autores Valéria Álvares Cruz, Claus Wilhelm Canaris e Tércio Sampaio Ferraz Junior, que entendem que, em todo sistema, comparecem, ao menos, dois elementos: unidade e ordem. Não há sistema que não apresente uma certa ordenação de suas partes. Mas a ordenação de suas partes só se mostra possível, em um sistema, tendo em vista uma certa unidade. Um sistema, por isso, pode ser definido como uma totalidade 189 190 Direito e poder econômico, p. 35. FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 19. 90 ordenada segundo uma unidade de sentido. Tal definição abrange os sistemas em geral, e a especificação dos sistemas pode fazer com que elementos da definição, embora sejam substancialmente os mesmos, variem adjetivamente. Assim é que os sistemas podem ser sistemas cognitivos, isto é, sistemas de conhecimento, ou sistemas objetivos, isto é, sistemas de objetos de conhecimento. Segundo uma tal classificação, o Direito pode ser um sistema cognitivo e, também, um sistema objetivo. Como sistema cognitivo, o Direito pode ser uma ciência, a Ciência do Direito. Como sistema objetivo, pode ser objeto de uma ciência, o objeto da Ciência do Direito.191 Os sistemas jurídicos são sistemas normativos na medida em que se compõem de normas, embora não só. E como sistemas normativos os sistemas jurídicos predispõem-se a regular as competências e comportamentos, as organizações e funções. Da regulação das competências e dos comportamentos, das organizações e das funções, um sistema jurídico, como sistema normativo que é, não pode abdicar. Entretanto, um sistema jurídico, como sistema social que também é, não pode prescindir de abrir-se às situações e aos sujeitos regulados. E é por isso que um sistema jurídico, como sistema normativo, é formado por dois 192 tipos fundamentais de normas: princípios e regras. Assim, Tura entende que, quanto à definição de princípio a partir da caracterização e da solução do conflito normativo, a crítica sustenta que a ponderação não é método privativo dos princípios e o peso não é dimensão dos princípios, mas das situações; o mandado de otimização e o juízo de concorrência não constituem o núcleo dos princípios, mas se referem ao uso dos princípios. Por isso, conclui afirmando os princípios como normas diretamente referidas a fins e indiretamente a condutas. Tendo em vista a tríade valor, norma e fato, o princípio estaria imediatamente referido ao valor e mediatamente referido ao fato, enquanto a regra estaria imediatamente referida ao fato e mediatamente referida ao valor. Diferenças, portanto, existem entre princípios e valores, do contrário não se refeririam aqueles a estes. Ocorre que princípios têm um caráter deontológico e 191 CRUZ, Valéria Álvares. Direito, complexidade e sistemas. São Paulo: Fiúza Editores, 2001; CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Ca-louste Gulbenkian, 1989; FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001 apud TURA, Marco Antônio Ribeiro. O lugar dos princípios em uma concepção do Direito como sistema. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, ano 3, n. 1, p. 671-703, 2014, p. 674. Disponível em: <http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2014/01/2014_01_00671_00703.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2016. 192 TURA, Marco Antônio Ribeiro, op. cit., p. 678. 91 valores possuem um caráter axiológico, conforme defendem Robert Alexy e Jürgen Habermas.193 “Princípios são, portanto, dotados de caráter normativo; dizem o que deve ser feito, e não o que seria o melhor a ser feito.”194 Tura ainda difere princípios de axiomas, postulados e critérios: Diferenças também existem entre princípios e axiomas, entre princípios e postulados e entre princípios e critérios (ÁVILA, 1999). Como disse, axiomas são fórmulas tidas como verdades auto-evidentes. Princípios, para serem utilizados, dependem da comprovação de sua existência. Assim, não se confundem princípios e axiomas (Idem, ibidem). Também não se confundem princípios e postulados. Postulados são condições de possibilidade de conhecimento de determinado objeto. Ora, nesse sentido, os postulados estão para a ciência do direito, como as normas estão para o direito. Inconfundíveis, pois, princípios com postulados (Idem, ibidem). Também, enfim, princípios não se confundem com critérios. Os critérios não são normas, mas dizem como devem ser aplicadas as normas. Os critérios são, portanto, meta-regras de aplicação de normas; critérios não são as próprias normas. Como princípios são normas, inconfundíveis são, portanto, 195 com os critérios (Idem, ibidem). 3.3.1.1 Princípios gerais do Direito Econômico e da atividade econômica De acordo com Leonardo Vizeu Figueiredo, os princípios têm por finalidade precípua orientar a produção de leis, isto é, do direito objetivo, sendo de norte imprescindível para a atividade parlamentar, servindo de diretiva para o legislador, bem como, para o operador de Direito, de parâmetro de delimitação de aplicabilidade do direito positivo às situações fáticas cotidianas a serem a ele subsumidas. Em razão de seu maior campo de amplitude, os princípios admitem maior flexibilização às situações sociais, quando da aplicação da literalidade do texto da norma aos casos concretos.196 O referido autor faz uma distinção entre princípios e regras, dizendo ser possível verificar que tal diferenciação se encontra em grau de abstração. Observese que tanto princípios quanto regras se concretizam na medida em que vão sendo positivados no texto legal, ganhando, assim, compreensão cada vez maior. Há de se 193 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993; HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I e II apud TURA, Marco Antônio Ribeiro. O lugar dos princípios em uma concepção do Direito como sistema. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, p. 690. 194 TURA, Marco Antônio Ribeiro, op. cit., loc. cit. 195 Ibidem, loc. cit. 196 Lições de direito econômico, p. 20. 92 ressaltar, conforme já visto, que as normas regras são comandos concretizados da vontade do legislador, no sentido de definir, dentro do ordenamento jurídico, quem poderá individualizar, em seu patrimônio pessoal, direitos subjetivos, exercendo-os em face de outrem.197 No campo do Direito Econômico, em que pese a singularidade que o caracteriza enquanto ramo de Direito Público, é possível destacar três princípios gerais, a saber: economicidade, eficiência e generalidade, que servem como sustentáculo desse ramo, não obstante o alto grau de regionalização que o Direito Econômico possui em relação à política e ao sistema econômico adotados pelo ordenamento jurídico ao qual pertence. Os princípios gerais do Direito Econômico são fundados, norteados e permeados, concomitantemente, tanto em valores de Direito Público quanto em valores de Direito Privado, dado o ecletismo que caracteriza esse ramo jurídico, concedendo aos referidos princípios traços próprios e específicos que os distinguem de sua aplicação em outros ramos do Direito. Figueiredo assim apresenta os três mencionados princípios:198 Princípio da economicidade: é oriundo do Direito Financeiro, com previsão expressa no artigo 70, caput, da Constituição Federal. Todavia, a aplicação desse princípio no Direito Econômico deve ser precedida de um exercício sistemático de hermenêutica constitucional, sendo ainda norteada e permeada pelo ecletismo de valores do Direito Privado que caracterizam esse ramo jurídico. Desse modo, interpretando-se sistematicamente o artigo 70, caput, combinado com os artigos 3º, inciso II, 170, caput, e 174, caput, todos da Carta Magna, a economicidade no campo do Direito Econômico significa que o Estado deve focar suas políticas públicas de planejamento para a ordem econômica em atividades economicamente viáveis tanto em curto prazo quanto em longo prazo, garantindo, assim, o desenvolvimento econômico sustentável e racional do país. Igualmente, esse princípio estabelece que o ente estatal, na busca da realização de seus objetivos fixados em sua política econômica, deve alcançar suas metas com apenas os gastos que se fizerem necessários, de modo a não onerar excessivamente o erário e toda a sociedade. Dessa forma, o Estado, ao estabelecer suas decisões políticas, bem 197 198 Lições de direito econômico, p. 21. Ibidem, p. 2-24. 93 como para orientar o mercado, deve primar pelas condutas que impliquem menor custo social, conjugando quantidade com qualidade; Princípio da eficiência: oriundo do Direito Administrativo, com previsão expressa no artigo 37, caput, da Constituição Federal, é aplicado no Direito Econômico mediante exegese sistêmica do referido dispositivo com as previsões contidas no artigo 180 e incisos da Carta Magna, mormente a livre iniciativa e a livre concorrência. No campo do Direito, a eficiência determina que o Estado, ao estabelecer suas políticas, deve pautar sua conduta com o fim de viabilizar e maximizar a produção de resultados da atividade econômica, conjugando os interesses privados dos agentes econômicos que melhor atendam ao interesse público, assegurando, assim, o êxito de sua ordem econômica; e Princípio da generalidade: confere às normas de Direito Econômico alto grau de generalidade e abstração, ampliando o seu campo de incidência ao máximo possível, a fim de possibilitar a sua aplicação com relação à grande multiplicidade de organismos econômicos, à diversidade de regimes jurídicos de intervenção estatal, bem como às constantes e dinâmicas mudanças que ocorrem no mercado. O ordenamento de Direito Econômico deve ser capaz de adaptar-se às alterações mercadológicas de maneira célere, assegurando a eficácia de sua força normativa, como instrumento disciplinador do fato econômico. Como exemplo de estatuto jurídico maleável, característico do Direito Econômico, cabe destacar a lei brasileira de proteção à concorrência (antiga Lei nº 8.884/94, e Lei nº 12.529/2011, em vigor), cujo campo de incidência estende-se e adapta-se perfeitamente a toda a atividade econômica na ordem nacional. Segundo Rosemiro Pereira Leal, o Direito Econômico, como braço auxiliar da problemática abordada, não pode abranger somente o que está contido nas normas econômicas que venham a regular a política econômica adotada na ordem jurídica de um Estado, mas há de ser, sobretudo, um ramo historicamente autônomo das Ciências Jurídicas, fundado em princípios, regras, institutos e instituições, todos bem delineados. Na sua visão, alguns princípios básicos do Direito Econômico são: “Princípio da Intervenção; princípio do planejamento; princípio da liberdade de iniciativa com as contentações do princípio da intervenção; princípio da expansão do 94 emprego; princípios da harmonia e da solidariedade; princípios da repressão do abuso do poder econômico”.199 Isabel Vaz também apresenta uma lista de princípios, contendo os acima enumerados por Leal, porém acrescenta a economicidade (também apontada por Figueiredo), que, com a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 70, caput, adquiriu a dignidade de princípio constitucional.200 Já Modesto Carvalhosa, por sua vez, entende que a economicidade, na esfera do Direito Econômico, não representa uma mera afirmação de princípios jurídicos, mas se mostra como um método rigorosamente científico, no qual prevalecem os critérios de avaliação comparativa do sacrifício efetivamente suportável.201 Para Vicente Bagnoli, cumpre ressaltar que a Constituição Federal de 1988, inicialmente, em sua redação original, concentrava-se, no que se refere à atividade econômica, em três pontos: (i) discorrer acerca dos princípios; (ii) estabelecer o protecionismo à empresa brasileira de capital nacional; e (iii) dispor sobre a atuação do Estado no domínio econômico. Diante disso, Bagnoli apresenta 18 princípios gerais da atividade econômica, os quais são de extrema importância e encontram-se elencados a seguir: 1) Ordem econômica: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”. Bagnoli esclarece que esse artigo estabelece a estrutura geral do ordenamento jurídico-econômico, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, cuja finalidade da política econômica adotada pelo Estado está em assegurar a existência digna; 2) Soberania nacional: por este princípio, o referido autor entende que uma nação que se diz soberana no campo político dificilmente conseguirá exercer em plenitude a sua soberania se não for soberana no campo econômico, pois ela contribui decisivamente para a independência de um Estado em relação a outros Estados; 3) Propriedade privada: a Constituição de 1988 traz o princípio da 199 Direito econômico: soberania e mercado mundial. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 18. Direito econômico das propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 256. 201 Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 331. 200 95 propriedade privada em seu artigo 5º, inciso XXII, como garantia ao indivíduo e como princípio de ordem econômica, pressuposto da liberdade de iniciativa. A propriedade privada é princípio típico da liberdade de iniciativa e das economias capitalistas, sem o qual não existiria segurança jurídica para os agentes econômicos atuarem nos mercados; 4) Função social da propriedade: presente na Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XXIII, e no artigo 170, inciso III, tal princípio confirma o direito do indivíduo sobre a propriedade, mas determina que ela deve cumprir a sua função social, não mais aceitando o direito da propriedade em sua plenitude, típico do liberalismo, como constava das Cartas de 1824 e 1891; 5) Livre concorrência: Bagnoli diz que a Constituição de 1988 prevê este princípio, que garante aos agentes econômicos a oportunidade de competirem de forma justa no mercado; 6) Defesa do consumidor: este princípio se apresenta de forma direta, num contexto microeconômico e microjurídico, mas também de forma ampliada, por meio da livre concorrência. Garantir a livre concorrência no mercado significa, numa perspectiva de análise, defender o bem-estar econômico do consumidor, que sai beneficiado com produtos e serviços de maior qualidade e preços mais vantajosos; 7) Defesa do meio ambiente: Bagnoli entende que o meio ambiente, início da atividade econômica com a exploração dos recursos naturais, está estreitamente relacionado com a ordem econômica, sobretudo a partir da análise da economia e do desprezo à ética e à moral, que coloca o lucro máximo acima de qualquer valor ou princípio; 8) Redução das desigualdades regionais e sociais: é importante salientar que a redução das desigualdades regionais e sociais, independentemente de medidas emergenciais, deve ser feita por meio da ordem econômica, cujos fundamentos estão na valorização do trabalho e na livre iniciativa; 9) Busca do pleno emprego: o Estado, respeitando o fundamento da ordem econômica da valorização do trabalho, deverá estruturar a sua política econômica de modo a viabilizar o trabalho para os indivíduos. A busca do pleno emprego, portanto, deve ser compreendida como os mecanismos colocados em prática pelo Estado para reduzir o desemprego e, assim, garantir trabalho aos cidadãos, de modo que, pelos proventos do seu trabalho, cada indivíduo tenha assegurada a sua existência digna em sociedade; 96 10) Tratamento favorecido para empresas de pequeno porte: para Bagnoli, este princípio favorece as empresas de pequeno porte desde que constituídas em conformidade com o regime legal brasileiro e cuja sede e administração encontremse no país, como uma forma do Estado de intervir na liberdade econômica, privilegiando o empresário que está disposto a investir no desenvolvimento de sua região e viabilizar o pleno emprego; 11) Livre exercício da atividade econômica: segundo o paragrafo único do artigo 170, é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Bagnoli diz que este princípio é típico das sociedades capitalistas modernas, sendo colocado como fundamento da ordem econômica disposta no artigo 170; 12) Empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional: o protecionismo à empresa brasileira nacional de capital nacional ficava evidente no texto constitucional de 1988, nos parágrafos do artigo 171 e em seus incisos e alíneas, que dispunham que a lei poderia conceder benefícios a tal empresa em detrimento da empresa nacional. Era, portanto, uma proteção à empresa brasileira contra a concorrência global que se iniciava, de fato, no Brasil; 13) Capital estrangeiro: de acordo com o artigo 172 da Constituição de 1988, a lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessas de lucros; 14) Atuação do Estado no domínio econômico: os artigos 173 e 174 da Constituição de 1988 são muito importantes, pois traçam a nova forma pela qual o Estado deve atuar no domínio econômico. Não se trata mais de um Estado agente econômico e monopolista em muitas situações, tampouco de um Estado ausente nos padrões liberais, deixando que a concorrência entre agentes privados, por si só, regulasse a economia; 15) Outras formas de atuação do Estado no domínio econômico: a Constituição de 1988, nos artigos 175 a 181, apresenta outras formas da atuação do Estado, como a prestação de serviços públicos sob o regime de concessão, a propriedade de jazidas, o monopólio do petróleo e do gás natural, transportes aéreo, marítimo e terrestre, e o turismo; 16) Política urbana: nos artigos 182 e 183, a Constituição de 1988 prescreve que a política de desenvolvimento urbano é executada pelo Poder Público municipal, conforme as diretrizes gerais fixadas em lei, e tem por objetivo ordenar o pleno 97 desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; 17) Política agrícola, fundiária e reforma agrária: dispõe a Constituição de 1988, nos artigos 184 a 191, que é competência da União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel que não esteja cumprindo a sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária; e 18) Sistema Financeiro Nacional: de acordo com o artigo 192 da Constituição de 1988, o SFN é estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, e será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram (Redação do artigo 192 dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 19 de maio de 2003).202 São esses os princípios que presidem a atividade econômica, segundo Bagnoli. Alguns deles serão mais bem detalhados no decorrer deste trabalho, como ordem econômica, redução das desigualdades regionais e sociais, pleno emprego, atuação do Estado no domínio econômico e Sistema Financeiro Nacional. 3.3.1.2 Princípios gerais do Direito Financeiro Nesta subseção, será apresentada a visão de Eduardo Marcial Ferreira Jardim sobre os princípios constitucionais de índole financeira. O referido autor trabalha os seguintes princípios: estrita legalidade, anualidade, universalidade, unidade, proibição de estorno, especialização e publicidade.203 O primado da legalidade, em sua feição genérica, comunica efeitos a todo o Direito. Sem dúvida, é um dos princípios sobranceiros do sistema normativo brasileiro, daí representar, também, um dos vetores do Sistema Constitucional Financeiro. Genericamente considerada, a legalidade significa que apenas a lei pode criar direitos e deveres, consoante preceitua o artigo 5º, inciso II, da Carta Magna. A função administrativa, verbi gratia, traduz hipótese de atividade infralegal, portanto, sujeita à preeminência da legalidade lato sensu. Exemplifica hipótese do 202 203 Direito econômico, p. 76-103. Manual de direito financeiro e tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 67. 98 princípio em apreço a disposição legal que investe a Administração Pública de poderes para exercer a atividade censória relativa a espetáculos teatrais ou cinematográficos, pois, nesses casos, a lei formula um conceito indeterminado que deve ser aquilatado e implementado pelo Executivo, segundo critérios subjetivos. Igual sorte se verifica, amiúde, nos mais variados campos do Direito.204 No Sistema Financeiro, por outro lado, a legalidade assume foro de intenso rigor, donde adjetivar-se como estrita, pois nessa seara não basta a lei criar um dado direto ou dever apenas em tese, mas é de mister fazê-lo de modo exaustivo e pormenorizado, emitindo conceitos determinados, de que falam Larenz e Roxin, em contranota aos comandos incompletos ou elásticos. Como corolário, temos que a estrita legalidade não deixa espaço para o Executivo expedir decretos que introduzam critérios subjetivos na aplicação 205 da lei, vedando, ainda, a edição de atos administrativos discriminários. A legalidade estende-se aos programas, às operações de crédito, à transposição de recursos de uma dotação orçamentária para outra, à abertura de crédito suplementar etc. Jardim classifica a anualidade como comportando dois sentidos, pois tanto pode significar o lapso temporal de vigência da lei orçamentária como pode dizer respeito ao pré-requisito que autoriza a cobrança dos tributos num dado exercício, na medida em que estejam eles incluídos no orçamento.206 Ilmo José Wilges sustenta que o princípio da anualidade orçamentária indica que o Poder Legislativo deve exercer o controle político sobre o Executivo pela renovação anual de permissão para a cobrança de tributos e a realização de gastos, sendo inconcebível a perpetuidade ou a permanência da autorização para a gestão financeira.207 Por sem dúvida, a anualidade representa uma expressiva manifestação do postulado da segurança jurídica. Nesse sentido, constitui um limite ao poder interventivo do Estado Democrático de Direito, pois a cada ano os mandatários do povo votam e aprovam o respectivo orçamento. Com isso, evita-se a adoção de um período mais amplo, que poderia desequilibrar a atuação do Estado, que pela estipulação de poderes excessivos ao Executivo, como meio de tornar exequível um orçamento a longo prazo, quer, na hipótese inversa, pela restrição dos poderes do Executivo, comprometendo, assim, o próprio interesse público. Sobremais, um período menor do que um ano seria insuficiente para a realização dos objetivos 208 públicos. De acordo com esse princípio, o orçamento pode subordinar-se ao regime de caixa, ao orçamento de gestão ou ao regime de competência. 204 JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira, Manual de direito financeiro e tributário, p. 67. Ibidem, loc. cit. 206 Ibidem, p. 68. 207 Finanças públicas: orçamento e direito financeiro. Porto Alegre: AGE, 2006, p. 106. 208 JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira, op. cit., p. 69. 205 99 Jardim salienta que, no Brasil, o princípio da universalidade foi adotado com a postura preconizada na doutrina francesa, que entrevê, no aludido princípio, não só a obrigatoriedade de registro de todas as receitas e despesas, mas a não afetação das receitas públicas como um aspecto mais profundo a prescindir o orçamento público.209 Wilges ressalta que o princípio da universalidade estabelece as parcelas da receita e da despesa que devem figurar em bruto orçamento, isto é, sem quaisquer deduções. Esse princípio, hoje, tem sentido de globalização orçamentária, significando a inclusão de todas as rendas e despesas dos Poderes, fundos, órgãos, entidades da Administração direta e indireta etc.210 Vale notar que a contabilização de todas as receitas e despesas, conquanto represente algo aparentemente óbvio, exprime um importante avanço na contabilidade pública, em termos de rigor técnico e de moralidade administrativa. Já o princípio da unidade, conforme Jardim, estava consagrado na Constituição de 1934, por meio do seu artigo 50 e, na Carta Magna de 1937, pelo artigo 68, assim como no Estatuto Político de 1946, por intermédio do artigo 73. Para o autor, a unidade ganhou cores novas e passou a denotar a existência de um orçamento básico, em torno do qual se agregam orçamentos miniaturas, que, ao cabo de contas, se incorporam e se integralizam ao aludido orçamento-base, compondo um todo indivisível. Essa é a visão atual do postulado da unidade.211 Como salienta Wilges, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 165, § 8º, a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão de receita e à fixação de despesa, não se incluindo na proibição a autorização da abertura de créditos suplementares e a contratação de operações de crédito, inclusive por antecipação da receita, nos termos da lei.212 Para Jardim, trata-se de um princípio positivado na Lex Suprema, o qual já fora constitucionalizado em Textos anteriores. Com efeito, o aludido comando proíbe expressamente que a lei orçamentária contenha disposições estranhas a receitas e despesas.213 Quanto à proibição de estorno, em resumo, Wilges entende que esse 209 Manual de direito financeiro e tributário, p. 70. Finanças públicas: orçamento e direito financeiro, p. 108. 211 Op. cit., p. 72. 212 Op. cit., p. 103. 213 Op. cit., p. 73. 210 100 princípio proíbe a transferência de recursos de uma dotação orçamentária para outra, sem que, para tanto, haja uma prévia autorização do Poder Legislativo.214 Por fim, os princípios de especialização e publicidade. O primeiro, de acordo com Jardim, é tido por alguns autores, como José Afonso da Silva, e na doutrina francesa, como o primado da especialização, cujo significado compreende a obrigatoriedade de pormenorização de todas as receitas e despesas públicas, vale dizer, a lei do orçamento haverá de especificá-las e identificá-las, sublinhando rigorosamente a sua origem e sua destinação. O segundo não representa um princípio orçamentário exclusivamente, mas um postulado magno de índole genérica, como tanto se conhece, e, por isso mesmo, aplicável a todo o Direito.215 3.4 Regulação e Sistema Financeiro Especificamente em relação aos bancos, Hyman Minsky aponta que, segundo a literatura sobre sistemas bancários, banqueiro prudente seria aquele que “aceita apenas a quantidade certa de risco”.216 Embora a busca pelo lucro seja uma constante, a forma como ela é realizada se altera conforme a evolução da economia. Com as intervenções governamentais nos bancos insolventes e com a criação de seguros aos depositantes, estes passaram a acreditar que seria desnecessária a fiscalização da ação do banqueiro, fato que acabaria lhe dando mais liberdade de ação. Da mesma forma, o controle do mercado também seria amenizado quando se conta com o auxílio governamental. Minsky assinala que as mudanças na economia ocorridas ao longo da história levaram a alterações na teoria econômica. Nesse sentido, logo após a crise de 1929-1933, estava legitimada a regulação financeira. A literatura bancária tradicional se consolidou no sentido de que os bancos deveriam ser solventes e com liquidez. Já a partir da década de 1970, essa tradição foi deixada de lado, sendo acompanhada por um movimento de desregulamentação, e os bancos passaram a se expor demais, em parte em razão da expectativa de socorro pelas autoridades governamentais, por meio de injeções de liquidez (bail-outs).217 214 Finanças públicas: orçamento e direito financeiro, p. 113. Op. cit., loc. cit. 216 Estabilizando uma economia instável. Tradução de Sally Tilelli. Osasco: Novo Século, 2009, p. 325. 217 Ibidem, p. 277. 215 101 A atuação estatal provocaria instabilidade, na medida em que interromperia um fluxo natural da estrutura capitalista. Essa instabilidade acabaria gerando incerteza, que, por sua vez, inibiria investimentos de longo prazo.218 Em um ambiente de incerteza, o instrumento mais adequado para defesa é o mais líquido, o instrumento financeiro. Em última análise, a instabilidade levaria a um ambiente propício à especulação financeira, em busca de ganhos no curto prazo, prejudicando a atividade produtiva. Um elemento-chave da crise seria a fuga de capitais. A solução para essa crise, com a injeção de liquidez pelos financiamentos de última instância, gera potencialidades para a inflação.219 Segundo Minsky, restaria apenas o controle da análise bancária, com técnicas contábeis superficiais que não conhecem a realidade de cada negócio. Enfim, de acordo com o autor, a ausência de controles efetivos, aliada à pressão por lucros, leva ao alavancamento e a desajustes no fluxo de caixa.220 José Xavier Carvalho de Mendonça já mencionava que havia muita discussão sobre a necessidade de fiscalização dos bancos. Em sua visão, haveria, fundamentalmente, duas posições: A que defendia a total liberdade, fundada principalmente no fato de que os tomadores de crédito seriam já pessoas do comércio, da indústria e profissionais que não necessitariam de tutela; e a corrente que afirmava a necessidade de uma completa regulamentação, para manter o grau de crédito e garantir os depósitos, além de pregar que essa regulamentação deveria ser específica, em razão da peculiaridade da atividade bancária, cuja falência afetaria a vida da sociedade. Com relação a essa segunda corrente, haveria a teoria de que a regulamentação deveria ser rígida e uniforme para todos os bancos e a teoria que admitiria uma disciplina 221 facultativa, com vantagens para os que a ela se submetessem. Após mencionar essas teorias, Mendonça expressa a opinião de que a fiscalização dos bancos meramente comerciais geraria dois problemas. De um lado, 218 Por outro lado, “[...] com a recessão nas vendas, nem mesmo com taxa de juros mínima, ninguém acha que pode tomar empréstimos, investir e ganhar dinheiro. O dinheiro simplesmente se acumula nos bancos, pois deixa de haver demanda de crédito. Quando surge a ‘armadilha da liquidez’, é aplicável a grande descoberta keynesiana: o governo deve não apenas emitir dinheiro, mas também assegurar sua aplicação e sua velocidade, gastando-o. Foi dessa maneira que o mundo saiu da Grande Depressão de 1929.” Cf. COSTA, Ana Clara; FERNANDES, Talita. O Banco Central e o extraordinário mundo das fraudes. Revista Veja, São Paulo, 4 nov. 2012, p. 479. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/economia/o-banco-central-e-o-extraordinario-mundo-das-fraudes>. Acesso em: 7 jan. 2015. 219 MINSKY, Hyman P., Estabilizando uma economia instável, p. 364. 220 Dentro dessas transformações, a criatividade dos agentes econômicos para fugir das normas que restringem a sua atuação dá início ao surgimento de derivativos. Esses instrumentos, contudo, não eliminariam o risco de variação abrupta dos ativos, mas apenas o repartiriam e ampliariam o risco sistêmico. Para complicar, até então, eles não ficariam registrados nos balanços, dificultando a fiscalização. Cf. BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Antecedentes da tormenta: origens da crise global. São Paulo: Unesp, 2012, p. 62. 221 Tratado de direito comercial brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. v. VI, p. 94. 102 poderia acarretar a responsabilidade estatal, além de passar a falsa imagem de que a União garantiria os depósitos. De outro, causaria entraves ao normal funcionamento das operações bancárias.222 A respeito da ação estatal e das formas de gerir crises, Charles Kindleberger e Robert Aliber mencionam que, em um primeiro momento, um remédio seria a inércia, isto é, deixar a crise se resolver sozinha, por meio de ajustes na economia. O fundamento para essa postura seria afastar um risco moral, ou seja, evitar que investidores, acreditando que haveria uma ajuda governamental para minorar suas perdas, deixassem de ter uma conduta mais cautelosa em suas operações especulativas. Além disso, uma eventual ajuda poderia representar uma recompensa indevida e injusta àqueles que especularam por sua conta e risco. Mas o problema se complica quando a crise se alastra e atinge também quem não especulou e tem sólidos empreendimentos, fazendo o dinheiro simplesmente sumir, ainda que tenha o seu preço elevado.223 Ainda no entender de Kindleberger e Aliber, cumpre observar que há um grande dilema quanto à liberdade da autoridade para injetar liquidez. De um lado, quanto maior a liberdade, mais adequada pode ser a atuação em cada caso concreto. Porém, essa mesma liberdade, quanto mais ampla, mais abre caminho para arbitrariedades e punições ou favorecimentos indevidos. Em princípio, somente os agentes solventes deveriam ser atendidos. Da mesma forma, em relação ao momento certo para agir, para os referidos autores, deve-se procurar proteger os agentes sólidos, deixando perecer os falidos, mesmo porque se trata de socorro de liquidez, e não de insolvência. O tema do credor de última instância também é tratado no âmbito internacional, em razão de a deflação de um país poder atingir outros. Nesse cenário, seu papel é possibilitar a adaptação da taxa de câmbio conforme as necessidades de cada economia.224 Para Rosa Maria Lastra: Considerando a peculiaridade da atividade financeira, a ação estatal, de modo amplo, seria concretizada pela regulação. Fazendo uma análise dos argumentos favoráveis e contrários à regulação bancária, constata que, historicamente, a ação estatal sempre aparece como uma resposta governamental a uma crise ou a um conflito [...] também aponta as externalidades causadas pelas quebras dos bancos como perdas adicionais à economia, donde a necessidade da atuação do governo e, por outro lado, 222 Tratado de direito comercial brasileiro, p. 95. Da euforia ao pânico: uma história das crises financeiras. Tradução de Leonardo Abramowicz. São Paulo: Gente, 2009, p. 236. 224 Da euforia ao pânico: uma história das crises financeiras, p. 280. 223 103 lembra que eventual sistema de proteção oficial pode induzir bancos a 225 condutas mais arriscadas, isto é, o abuso moral ou moral hazard. Ao lado dos argumentos econômicos, Lastra cita ainda os seguintes fundamentos utilizados para justificar a regulação: (i) a responsabilidade assumida pelo governo na manutenção da solidez do Sistema Financeiro; (ii) a forte vinculação da atuação dos bancos na execução da política monetária, também conduzida pelo governo; (iii) a preocupação de certos governos com os depositantes individuais e investidores, em razão da hipossuficiência ou vulnerabilidade de alguns; (iv) o interesse de alguns governos em limitar a desnecessária concentração de recursos financeiros e poder econômico; (v) a preocupação de alguns governos em direcionar a alocação de crédito; (vi) a intenção de alguns governos em manter a autonomia nacional em relação a empresas internacionais; e (vii) o eventual interesse histórico em preservar certas instituições financeiras.226 E a autora complementa, dizendo que a atuação do Estado na crise, como doador de última instância, por meio de seguro de depósito governamental ou por diversos tipos de pacotes de salvamento, “[...] é uma das maiores razões que justificam a regulamentação e supervisão públicas”.227 Tratando dos fundamentos da regulação do mercado financeiro, Jairo Saddi sustenta que as peculiaridades desse mercado demandam uma “justificativa própria e específica”. Segundo assevera o autor, a função da intermediação financeira de propiciar poupança e investimento se torna mais eficiente quando há uma organização e coordenação dos intentos dos agentes que possuem recursos disponíveis e daqueles que necessitam de tais recursos.228 Não obstante a regulação desse mercado objetive corrigir falhas, ela vai além, na medida em que a atividade bancária consiste em operar recursos de terceiros, ao 225 Banco Central e regulação bancária, p. 63-64. Na conclusão do capítulo relativo à regulação, sobre o seu cabimento, sustenta Lastra: “A despeito dos méritos dos argumentos econômicos e lógica padrão que justificam a regulamentação bancária governamental, hoje em dia a liberalização financeira e desintermediação, uma certa hostilidade à regulamentação pública e uma tendência intrínseca da autoridade de super regular – independente de quem esteja com poderes de regular – nos conduz a um tratamento mais cuidadoso sobre as vantagens e desvantagens de tal regulamentação. Se a regulamentação deixa de ajudar a melhoria do mercado ou, ainda pior, se ela prejudica o mercado, então ela deveria ser revisada ou repelida. A regulamentação deve ser eficiente e benéfica para o mercado como um todo. A regulamentação não pode ser o controle absoluto, excessivamente trabalhosa ou uma colcha de retalhos. Mesmo considerando que as autoridades deveriam sempre se preocupar com a segurança e solidez dos bancos e a ameaça de risco sistêmico, elas deveriam se ocupar menos – ser menos ‘intervencionistas’ – no detalhamento das regras de proteção ao consumidor, que geralmente impõem um custo regulatório elevado aos bancos.” Cf. Ibidem, p. 126-127. 227 Ibidem, p. 128. 228 Crise e regulação bancária: navegando por mares revoltos, p. 60. 226 104 passo que o capitalista, conforme certa acepção desse termo, trabalha com seus próprios recursos. Os depositantes não possuem condições de avaliar a solvência da instituição financeira, assim como não podem reaver seus recursos, se todos os demais correntistas pretenderem fazer o mesmo simultaneamente.229 Por sua vez, Calixto Salomão Filho salienta que uma preocupação importante existente em áreas como o Sistema Financeiro Nacional é a conciliação dos objetivos de manter a concorrência e, ao mesmo tempo, garantir a higidez do sistema. Isso porque a proteção da estabilidade acabaria criando condições propícias à concentração do poder econômico. Dessa forma, seria ilógica a defesa de formações monopolísticas e oligopolísticas do sistema, fundadas na busca da estabilidade, na medida em que isso poderia ser conseguido com normas de organização interna, como capital mínimo e alavancagem, entre outras. Já as normas relativas à concorrência seriam um elemento externo às estruturas das instituições financeiras, que impediria a concentração de poder e levaria à proteção ao consumidor, por inibir abusos. Além disso, a diminuição desse poder faria reduzir o risco de contágio ou o risco sistêmico decorrente de problemas de uma instituição específica.230 Ana Clara Costa e Talita Fernandes afirmam que “[...] não haveria mercado em funcionamento sem a presença ativa do Estado”, e, no caso de instituições financeiras, “[...] por trabalharem com um bem público universal, composto pelos meios de pagamento, os interesses corporativos necessariamente devem se submeter a alguma forma de regulação da chamada autoridade monetária”.231 No que diz respeito ao papel do Banco Central dentro da atuação estatal, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa traz um interessante panorama, em que apresenta as posições favoráveis e também as contrárias à existência daquele ente. A corrente que defende a inexistência de um Banco Central, denominada “free banking”, seria minoritária e sustentaria, com base nas ideias do livre comércio de Adam Smith, que deveria haver um sistema bancário competitivo, sem uma autoridade com poder monopolista de emissão, pois não haveria necessidade de um controle externo especial em relação aos bancos. Para essa corrente, o governo não 229 SADDI, Jairo, Crise e regulação bancária: navegando por mares revoltos, p. 60. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos, p. 59-60. 231 O Banco Central e o extraordinário mundo das fraudes. Revista Veja, p. 409. 230 105 teria autoridade nos assuntos relativos à moeda, e os Bancos Centrais, em sua origem, teriam servido para beneficiar o governo.232 Por outro lado, A corrente majoritária denominada central banking, estaria escorada em cinco aspectos. Em primeiro lugar, as quebras dos bancos causariam prejuízos principalmente à população mais carente e menos informada, fato que não seria devidamente tratado no outro sistema. Em segundo, o Banco Central seria um melhor instrumento para controlar a inflação. Em terceiro, o Banco Central, em situação de crise, teria como servir de apoio, por meio de empréstimos de última instância, contendo o pânico que se alastraria em um sistema sem esse instrumento. Em quarto, o desenvolvimento da política monetária de forma racional exigiria um ente centralizador, sem o que os agentes econômicos perseguiriam apenas os próprios interesses em prejuízo da sociedade. Por fim, a existência de um Banco Central possibilitaria a integração e colaboração internacional, que não ocorreria no sistema do free banking. Assim, a melhor postura seria a adoção do sistema do central banking, porém com controles para evitar abusos 233 governamentais. Na evolução da abordagem regulatória, Gustavo José Marrone de Castro Sampaio menciona que, em um primeiro estágio, a preocupação estaria em restringir determinadas práticas, com foco no passivo das instituições. Em seguida, com a passagem da atenção para o lado ativo das operações bancárias e o risco das operações a ele ligadas, entra em cena o Acordo de Basileia de 1988. O próximo estágio se relaciona à constatação da insuficiência dos riscos considerados na abordagem anterior. Por fim, o foco das autoridades supervisoras se voltaria ao procedimento das instituições na gestão de seus riscos.234 3.5 A regulação econômica e a intervenção do Estado Por volta do século XVIII, o Estado cumpria a sua missão, editando leis que disciplinavam genericamente a ação dos agentes privados. Ocupava-se do manejo do poder de polícia e de atividades de relevância social e elevadas à condição de serviços públicos. Posteriormente, no início do século XX, essa intervenção passou a ser vista na própria exploração de atividade econômica pelo ente estatal, com as empresas estatais e as sociedades de economia mista, entre outros agentes. 232 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 31-32. 233 Ibidem, p. 32-34. 234 O princípio da subsidiariedade como critério de delimitação de competências na regulação bancária. 2011. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 83-84. 106 Como leciona Luís Roberto Barroso, “o Estado passou de protagonista na execução dos serviços a planejador, regulamentador e fiscalizador das empresas concessionárias”.235 Nessa seara, cabe citar o artigo 174 da Constituição Federal, que trata da intervenção indireta do Estado na economia, fazendo com que o Estado Regulador transfira aos particulares diversas atividades que satisfaçam a necessidade ou a conveniência de caráter geral, sem abandonar esses setores, pois remanescerá regulando e pautando a conduta privada.236 O Estado passa a ser entendido como um conjunto de órgãos e entidades públicas a serviço de políticas econômicas constitucionalmente adotadas para a implementação dos seus fins, e, assim, sua atuação no domínio econômico pode se manifestar de diversas formas, sempre com a finalidade de implementar suas políticas econômicas. Nas palavras de Giovani Clark: O Estado passou a adotar uma nova técnica de ação na vida econômica, ou seja, o neoliberalismo de regulação. O poder estatal continuou a intervir indiretamente no domínio econômico, por meio das normas legais (leis, decretos, portaria); assim como de forma intermediária, via agências de regulação. Todavia, diferentemente das empresas estatais, as agências não produzem bens nem prestam serviços à população, mas somente fiscalizam e regulam o mercado ditando “comandos técnicos” de expansão, qualidade, índices de reajuste de preços etc. É, porém, prudente frisar que a técnica intervencionista de regulação permite a existência de algumas empresas estatais, em menor número, atuando no âmbito do mercado. Mas sem desempenhar o papel anterior e possuindo uma reduzida capacidade de 237 ingerência na vida econômica. O Estado age diretamente como sujeito atuante no mercado, por intermédio das empresas públicas, das sociedades de economia mista e subsidiárias. Paula Joyce de Carvalho Andrade de Almeida238 entende que o Estado também pode atuar sob o regime de monopólio legal (artigo 177 da CF) ou como agente regulador pelo regime econômico privado, conforme o artigo 173, §§ 1º e 2º, da CF. Assim, diz o caput do artigo 173 da Constituição que “[...] a exploração direta de atividade econômica só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. 235 O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993 apud ALMEIDA, Paula Joyce de Carvalho Andrade de. O controle da atuação das agências reguladoras federais brasileiras. 2007. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Faculdade de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2007, p. 19. 236 CLARK, Giovani. Política econômica e Estado. Estudos Avançados [online], v. 22, n. 62, p. 207217, 2008, p. 212. 237 Ibidem, p. 209. 238 Op. cit., p. 20. 107 A atuação indireta do Estado é feita pela normatização ou regulação da economia e pela intervenção, que, por sua vez, apresenta-se como a produção de normas de transformação da economia, com o objetivo de instrumentalizar a realização das políticas econômicas adotadas pela Constituição. Almeida vê a regulação como a forma de atuação estatal mais condizente com o regime político brasileiro, democrático constitucional, e a que mais se coaduna com os princípios da subsidiariedade e da eficiência, norteadores do Direito Econômico.239 A fiscalização é exercida pelo poder de polícia do Estado, que atua como repressor de condutas contrárias aos fundamentos e princípios da ordem econômica estabelecidos em lei e regulamentos. O Estado, enquanto garantidor da ordem social e regulador das transações que se realizam no seio dessa sociedade, é também interventor em diversos assuntos. Desse modo, a sua intervenção vai desde o controle de transações financeiras, com agências específicas ligadas à regulação do Sistema Financeiro Nacional, até a questão da compra de um bem próprio que deve ser registrado em cartório específico para que se dê publicidade ao ato e o Estado possa estar a par da transação. Dessa forma, o desenvolvimento econômico e o processo de industrialização observados ao longo do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos, tornaram evidente a necessidade de intervenção dos poderes públicos nos domínios econômico e social, apesar da ausência de previsões constitucionais nesse sentido. Como muito bem assinalam Lênio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais, quando abordam o surgimento do intervencionismo estatal: Evidentemente que isto trouxe reflexos que se expressaram nos movimentos socialistas e em uma mudança de atitude por parte do poder público, que vai se expressar em ações interventivas sobre e no domínio econômico, bem como em práticas até então tidas como próprias da iniciativa privada, o que se dá por um lado para mitigar as consequências nefastas e por outro para garantir a continuidade do mercado ameaçado 240 pelo capitalismo financeiro [...]. 239 ALMEIDA, Paula Joyce de Carvalho Andrade de, O controle da atuação das agências reguladoras federais brasileiras, p. 20. 240 Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000 apud CRUZ, Paulo Márcio. Intervenção e regulação do Estado. Florianópolis, 2000, p. 7. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32828-40714-1-PB.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2015. 108 É entendimento comum que a industrialização deu lugar ao aparecimento de amplos setores sociais que reclamavam melhores condições de vida, cuja atuação conduziu a conflitos sociais cada vez mais intensos. A expansão da indústria, por outro lado, só era possível com o Estado providenciando políticas de criação de infraestruturas e de estímulo econômico. Isso tudo junto com a concentração da atividade industrial e a criação de monopólios, o que dificultava, muitas vezes, o bom funcionamento do mercado, tornando inexorável a intervenção e regulação do Estado.241 A intervenção do Estado, ao longo do século XIX, foi levada a cabo, em que pese a falta de previsões constitucionais, por meio da atividade legislativa, principalmente nos países industrializados, com uma atividade que cobria os mais diversos âmbitos da vida econômica.242 Assim, a regulação das condições de trabalho nas fábricas, com o primeiro diploma legal nesse sentido tendo sido a Lei de saúde e moralidade para regular o trabalho infantil nas fábricas de algodão, na Inglaterra, em 1802, seguida da Lei do horário de trabalho, estabelecendo a jornada de 12 horas diárias na França, em 1848, e da Lei do seguro de doença para os trabalhadores, na Alemanha, em 1883, é um bom exemplo disso. Por outro lado, a atividade estatal de promoção de setores da economia, como ferrovias, comunicações telegráficas, entre outros, foi muito intensa em todos os países europeus.243 Tratavam-se, porém, como se viu, de medidas legislativas e governamentais, sujeitas ao humor do momento político e sem garantia de permanência. Além disso, cobriam somente aspectos parciais da vida e das relações econômicas. A intervenção do Estado nos domínios econômico, social e cultural, prevista nas Constituições do século XX, corresponde a um movimento principalmente programático. É como escreve Paulo Bonavides: “a ordem econômica e social durante a primeira fase de aceitação positiva do princípio do Estado social nas Constituições do século XX corresponde em grande parte a uma pauta programática.244 241 CLARK, Giovani. Política econômica e Estado. Estudos Avançados, p. 212. MENDONÇA, José Xavier Carvalho de, Tratado de direito comercial brasileiro, p. 66. 243 Ibidem, loc. cit. 244 Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995 apud CRUZ, Paulo Márcio, Intervenção e regulação do Estado, p. 8. 242 109 A Constituição brasileira de 1934, que teve vida curta, tendo sido revogada em 1937, seguindo essa tendência, estabelecia amplas disposições que possibilitavam a intervenção estatal. Essa tendência do constitucionalismo fez-se ainda mais evidente depois da Segunda Guerra Mundial. É a ideia de Welfare State, que se comporá efetivamente no pós-1945, quando o aspecto promocional passa a integrar definitivamente o vocabulário político do século XX, como assinala Ubiratan Borges de Macedo.245 Deve-se anotar que regulação e intervenção são categorias diferentes. A intervenção dos poderes públicos como agentes econômicos, produzindo ou comercializando, diretamente, insumos e bens, ou prestando serviços típicos da iniciativa privada, é que caracteriza a intervenção do Estado na economia. Regular ou regulação é outra coisa, bem distinta.246 3.5.1 O Estado Regulador Contemporâneo Neoliberal Lucas de Souza Lehfeld247 classifica Welfare State como um sistema estatal intermediário entre o liberalismo e o marxismo248. Também chamado de “Estado do Bem-Estar Social”, surgiu com o propósito de amenizar os problemas sociais do pósGuerra, como miséria e fome, e, consequentemente, o fracasso do Estado Liberal.249 Os partidos socialdemocratas que assumiram o poder em vários países da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial pareciam oferecer a resposta 245 Liberalismo e justiça social. São Paulo: IBRASA, 1995, p. 189. MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (anotações à Lei Federal nº 7.492/86). São Paulo: Malheiros, 1999, p. 90. 247 Controles das agências reguladoras, p. 57. 248 BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do Estado. Barueri: Manole, 2003, p. 2. 249 O Estado Liberal que emergiu da Revolução Francesa e que predominou durante o século XIX operou uma dissociação bem nítida entre a atividade econômica e a atividade política. O representante típico do liberalismo econômico, qual seja Adam Smith, em 1776, considerava que, de acordo com o sistema de liberdade natural, o soberano tem somente três deveres a cumprir. Três deveres de grande importância, na verdade, mas claros e inteligíveis ao senso comum: o primeiro, o dever de proteger a sociedade da violência e da invasão por outras sociedades independentes; o segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade da injustiça e da opressão de qualquer outro membro, ou o dever de estabelecer uma adequada administração da justiça; e, em terceiro lugar, o dever de erigir e manter certas obras públicas e certas instituições públicas que nunca serão do interesse de qualquer indivíduo ou de um pequeno número de indivíduos. Erigir e manter, porque o lucro jamais reembolsaria as despesas para qualquer indivíduo ou número de indivíduos, embora possa frequentemente proporcionar mais do que o reembolso a uma sociedade maior. Cf. VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico: o direito público econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 5. 246 110 definitiva à superação desses problemas nos marcos do regime capitalista.250 Assim, esses partidos implantaram no pós-Guerra o denominado Welfare State em vários países da Europa Ocidental. O seu principal objetivo era o de impedir a emergência da revolução socialista nos moldes soviéticos na Europa Ocidental. Tal fato contribuiu decisivamente para que, nesses países, os detentores do capital fizessem concessões, nos planos político, econômico e social, aos trabalhadores e ao povo em geral. Em verdade, o Welfare State surgiu como resultado das grandes críticas do liberalismo econômico, que já era observado desde o século XIX. Nesse diapasão, Lehfeld salienta que: O Estado passou a atuar como empresário, utilizando-se de entidade da Administração Pública indireta, como as empresas estatais e sociedades de economia mista, para intervir na economia, concorrendo com a iniciativa privada. Por outro lado, também se valeu da criação de normas, especialmente constitucionais, para assegurar os objetivos de uma política econômica que atribui à iniciativa privada a propriedade e a atividade econômica, sem esquecer de regular e incentivar a economia com o objetivo de suprir as deficiências do mercado (para o seu bom 251 funcionamento) e estabelecer mecanismos de concorrência. A Constituição de Weimar (1919) e também a Constituição Mexicana (1917) apresentavam com clareza esse assunto, trazendo princípios democráticos nas áreas econômica e social. Nas palavras de Fábio Nusdeo: Assim, a dualidade centros decisórios começa a se impor a partir da primeira conflagração europeia e, logo após a mesma, forma o seu marco jurídico com a Constituição de Weimar, de 11.8.1919, quando surge um título especialmente dedicado à vida econômica. Não é necessário ressaltar aqui que dois anos antes, em 1917, a Constituição Mexicana já havia inaugurado essa nova matéria constitucional tratando extensamente de diversos aspectos da atividade econômica, inclusive reforma agrária e outros tópicos. No entanto, o fato passou praticamente despercebido dos estudiosos do assunto que debruçaram em maior profundidade, dado o peso politico e cultural da civilização teuta e a influência por ela exercida 252 sobre as letras jurídicas do mundo civilizado. No final da década de 1920, nos Estados Unidos, também ocorreu a repercussão dessas ideias intervencionistas, em razão da enorme crise econômica que culminou com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque (1929), acarretando projeção internacional. Houve a necessidade de intervenção direta e agressiva do governo norte-americano na economia.253 250 ALCOFORADO, Fernando. Globalização. São Paulo: Nobel, 1997, p. 120. Controles das agências reguladoras, p. 58. 252 Curso de economia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997 apud Ibidem, loc. cit. 253 LEHFELD, Lucas de Souza, op. cit., loc. cit. 251 111 Essa política intervencionista, conhecida como New Deal,254 implantada pelo então presidente Franklin D. Roosevelt, somente se efetivou com o apoio da Suprema Corte norte-americana.255 E o intervencionismo fez o Estado padecer de nova crise, pela excessiva oneração de suas prestações sociais e pela falta de recursos para supri-las. A partir desse momento, uma nova forma do capitalismo liberal foi instaurada, em substituição ao Estado do Bem-Estar Social, que, já desprovido de recursos, não conseguia cumprir tudo aquilo que tinha prometido. O neoliberalismo, ao contrário do modelo estatal anterior, nada promete, mas parece tudo cumprir, com uma mudança do papel do Estado fomentador da atividade econômica, que passa agora a ser regulador. O Estado Neoliberal tem uma proposta de um comércio livre, com ampla circulação de capital, mas com uma liberdade voltada, à época, a toda e qualquer manifestação da vida humana. Lehfeld afirma que o Estado agora se preocupa com a não intervenção na vida de seus cidadãos, entretanto, sem deixar de manifestar as suas atenções ao mercado e a atribuições menores.256 Ficou perceptível que o Estado neoliberal, diferentemente do liberalismo, preocupa-se com uma economia de mercado com menor controle de capital. Busca-se uma maior liberdade por parte da iniciativa privado no campo da economia, reduzindo o intervencionismo estatal até então preponderante em razão do chamado Estado do Bem-Estar Social. Na realidade o neoliberalismo conduz a uma modificação do papel do Estado, que deixa de ser fomentador da atividade econômica e passa a ser regulador, preocupando-se de forma direta apenas com relação àquelas atividades essenciais, inerentes à sua criação, como segurança, saúde, habitação, educação (exemplos: previdência social, assistência social e gratuidade da saúde e educação). Esse é o denominado Estado mínimo (seria melhor Estado diferente, em razão da dificuldade de aplicação dessa política econômica neoliberal na prática, como será abordado 257 oportunamente). Marçal Justen Filho entende que a solução dita neoliberal reflete o desengajamento do Estado como instrumento utilizado pelos trabalhadores em favor 254 LEHFELD, Lucas de Souza, Controles das agências reguladoras, p. 60. Lehfeld diz que, embora muito reticente no início, com o posicionamento de se tratar de uma atuação estatal atentatória à garantia da liberdade, posteriormente aceitou sua necessidade por meio de uma alteração no critério interpretativo referente à liberdade econômica. Essa política exercida nos EUA consistia em um conjunto de medidas com três objetivos delineados: a busca do equilíbrio do mercado, a promoção do pleno emprego e o aumento da capacidade aquisitiva dos trabalhadores. O Estado funcionava como incentivador do ritmo da economia, especialmente com os gastos públicos. Cf. Ibidem, p. 58. 256 Ibidem, p. 60. 257 Ibidem, p. 61. 255 112 da realização de seus interesses, em uma permanente e interminável luta contra os proprietários do capital. A solução regulatória reflete a concepção de que a luta de classes deve prosseguir fora do aparato estatal e desenvolver-se no âmbito do domínio econômico propriamente dito. É uma vitória política dos titulares do capital, o que evidencia uma derrota dos trabalhadores.258 Vale notar que a própria iniciativa privada não vislumbrou, no perfil regulador do Estado Neoliberal, uma restrição à liberdade.259 Ao contrário, essa participação estatal acabou por se revelar altamente benéfica para os detentores de capital, já que o Estado passou a ser consumidor de grande porte e protetor dos mecanismos de livre concorrência, seja ela em âmbito interno ou em seara internacional.260 3.6 Regulação por meio do Direito Econômico O Direito sempre buscou regular a vida em sociedade. E por meio dessa vertente é possível dizer que o regulamento das atividades econômicas está intrinsecamente ligado à questão do poder, uma vez que o poder está relacionado à economia de alguma forma.261 Ainda é possível constatar que, segundo os estudiosos Abraham Kaplan e Harold Lasswell, o poder é um valor de deferência que interessa particularmente à Ciência Política; ele pode ser descrito em termos de seu domínio, alcance, peso e coercitividade. É possível distinguir formas de poder, conforme o valor sobre o qual ele está baseado. Também se classificam relações de influências para as quais o poder é uma base.262 258 Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005 apud LEHFELD, Lucas de Souza, Controles das agências reguladoras, p. 61. 259 LEHFELD, Lucas de Souza, op. cit., p. 63. 260 Lehfeld entende que a necessidade de mudança de papel do Estado, que se disseminou no continente europeu e também nas Américas, produziu no Brasil efeitos relevantes para a atividade econômica, a qual sofreu intensa abertura à iniciativa privada recentemente, em razão de um plano nacional de desestatização implantado na década de 1990, em que houve flexibilização do monopólio estatal de diversas áreas estratégicas, como energia elétrica, petróleo e telecomunicações. Cf. Ibidem, loc. cit. 261 Para Thomas Piketty, a maneira mais simples de comprovar a evolução do papel do Poder Público na vida econômica e social consiste em examinar a importância que o conjunto de impostos e arrecadações passou a exercer na renda nacional. O autor demonstra isso por meio de gráficos, usando como exemplo países desenvolvidos. Cf. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 462. 262 BAGNOLI, Vicente. Introdução ao direito da concorrência: Brasil-Globalização-União EuropéiaMercosul-ALCA. São Paulo: Singular, 2005, p. 23. 113 Dessa feita, o Direito Econômico, cujo preceito fundamental é a tentativa de regulação da economia como um todo, tem o seu fundamento na política econômica, para que, diante dela, possa desenvolver os mecanismos necessários à consecução dos seus objetivos. Dentre as formas do poder manifestar-se, tem-se o poder econômico, conforme a explicação de Abraham Kaplan e Harold Lasswell: “[...] Em situações concretas, é importante distinguir claramente entre o poder como valor e os valores sobre os quais o poder está sendo exercido. Uma pessoa pode ter poder sobre a riqueza (“poder econômico”), por exemplo, sem ocupar uma posição correspondente favorável com relação à própria riqueza – é o caso, por exemplo, de poderosos líderes sindicais. Uma pessoa pode controlar a distribuição do respeito sem ser respeitada - esse 263 pode ser o caso de um editor ou publicista. E assim por diante”. Seguindo-se o contexto do poder econômico, é possível afirmar que, quando o ser humano presta-se a observar a troca de produtos como forma de sustento, volta-se ao contexto do mercado comercial. Ou seja, a questão social perde relevância perante o fator econômico. Nesse sentido são as palavras de Max Weber a respeito do tema: “a troca é a forma especificamente pacífica de obter poder econômico”.264 Ainda com relação ao poder, e sua força perante às relações comerciais e jurídicas, pode-se dizer que o Estado, enquanto mantém-se apático a essa realidade, promove o dissabor de ver as regras serem impostas pelas partes. No entanto, a partir do momento em que se inicia a interferência do Estado perante as relações individuais, por meio de leis e regulamentos de setores da economia, mostra-se com força e virtudes para promover o correto e bom andamento das negociações bilaterais. A fiscalização do Poder Público é inerente aos atos praticados pelos entes comerciais privados e não compreende a negociação em si. 3.7 Regulação econômica capaz de buscar solidez econômica Pode-se asseverar que o Direito Econômico e as primeiras concepções acerca de regulação surgiram em contraposição aos ideais da não intervenção estatal proposta pelo liberalismo econômico. Portanto, não se pode falar em Direito Econômico sem que se fale em República de Weimar e em Primeira Guerra Mundial. Sobre o tema, Vicente Bagnoli ensina que: 263 BAGNOLI, Vicente, Introdução ao direito da concorrência: Brasil-Globalização-União EuropéiaMercosul-ALCA, p. 23. 264 Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: Ed da UnB, 2000. v. 1 apud Ibidem, loc. cit. 114 Antes mesmo da celebração do armistício da Primeira Guerra de 11 de novembro de 1918, a Alemanha foi palco de diversas disputas internas que culminaram na República de Weimar. Na noite de 7 de novembro, proclama-se na Baviera uma República Democrática e Socialista por meio dos partidos de esquerda mais radicais. Aos 9 de novembro, o partido socialista alemão proclama a República na chancelaria de Berlim. No final de 1918, já com uma nova lei eleitoral, realizam-se as eleições para formar o congresso dos representantes das províncias imperiais, que, eleito, vota em janeiro de 1919 pela convocação da Assembleia Nacional 265 Constituinte. O fim da Primeira Guerra Mundial coincidiu com o surgimento da Primeira República Alemã, instituída e elaborada na cidade da Saxônia: Weimar. Gilberto Bercovici entende existir três níveis de organização econômica na Constituição de Weimar. O primeiro nível seria o dos direitos fundamentais, sociais e econômicos, como o direito ao trabalho (artigo 163), a proteção ao trabalho (artigo 157), o direito à assistência social (artigo 161) e o direito de sindicalização (artigo 159). Outro nível social seria o do controle da ordem econômica capitalista por meio da função social da propriedade (artigo 153) e da possibilidade de socialização (artigo 156). Finalmente, o terceiro nível seria o mecanismo de colaboração entre trabalhadores e empregados por meio de Conselhos (artigo 165).266 Com essa organização, a ordem econômica de Weimar tinha o claro propósito de buscar a transformação social, dando um papel central aos sindicatos para a execução dessa tarefa. Percebe-se, assim, por meio da Constituição de Weimar, uma nova proposta: a de se construir uma atividade econômica voltada para o bem-estar social. Na época, outros textos também exaltavam o mesmo objetivo, tais como a Constituição do México, de 1917, e a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, de 1891, que tratava da condição dos operários e lhes propunha auxílio. Esses ideais começaram a surgir como crítica ao Estado Liberal, que, por sua vez, surgiu em contraposição ao Estado Absolutista e, pautado nos ideais iluministas, contando com a força da burguesia, tinha por base a igualdade, a liberdade e a propriedade. Todavia, a liberdade proposta pelo Estado Liberal devia ser considerada como meramente formal, mera liberdade de mercancia, uma vez que a propriedade era privada – ou seja, o favorecido era a própria burguesia. Para Washington Peluso Albino de Souza, as Constituições (ditas) liberais brasileiras – tanto a do Império, de 1824, quanto a (dita) Republicana, de 1981 – 265 Introdução ao direito da concorrência: Brasil-Globalização-União Européia-Mercosul-ALCA, p. 3. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 18. 266 115 declaravam adotar a linha de abstenção do Estado na atividade econômica. Sendo assim, a técnica de legislar foi a de não se referir ao fato. Havia, portanto, um conjunto de princípios garantidores da liberdade de iniciativa e de uso pleno da propriedade privada, sendo que tanto o conceito de livre iniciativa quanto o de propriedade privada eram tidos como definidores das bases ideológicas necessárias e dos fundamentos da definição liberal.267 Influenciado por esses princípios, o Brasil copiou o modelo europeu de exploração da atividade econômica na época do surgimento e exaltação do liberalismo. Posteriormente, notou-se a tendência da transferência do poder de direção da economia para o Estado, o que se intensificou no contexto pós-Segunda Guerra. O cenário requeria a figura de um mantenedor do equilíbrio econômico, político e jurídico. Surgiu, então, um novo Estado, o Estado Social. A verdade é que o modelo liberal sempre encontrou diversas críticas, mas a conjuntura econômica mundial era muito mais forte, de modo que a crise econômica gerou um sentimento antissemita e antimarxista. Instaurou-se, assim, o Partido Nacional Socialista Trabalhador Alemão, liderado por Adolf Hitler, um dos maiores fomentadores da Segunda Guerra Mundial. É por isso que a intervenção do Estado no domínio econômico só existiu, de fato, no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, momento que inaugurou, a partir da perspectiva do Direito Econômico, a intervenção regulatória, cujo intuito é estabelecer limites jurídicos ao poder econômico.268 A noção de intervenção regulatória está amparada pelos conceitos de neoliberalismo e de keneysianismo das décadas de 50 e 60, e é verificada como ato político e de natureza originariamente política, politizando, assim, o ato econômico. Tal intervenção, contudo, exige um aperfeiçoamento crescente do comando da área econômica. A agência reguladora, nesse aspecto, tem-se feito elemento importante para o desempenho da atividade de normalização, uma vez que garante a referida especificidade. Ou seja, a interferência da agência reguladora é pressuposto para que exista a 269 atividade regulatória. Bagnoli enfatiza que o poder econômico representa uma concepção de “natureza política”, já que é uma das manifestações do poder. Direitos e obrigações se contrapõem, desde a imposição do domínio absoluto até os relacionamentos mais democráticos e igualitários.270 267 Primeiras linhas de direito econômico. São Paulo: LTr, 2005 apud BAGNOLI, Vicente, Direito e poder econômico, p. 270. 268 BAGNOLI, Vicente, op. cit., loc. cit. 269 Ibidem, loc. cit. 270 Ibidem, loc. cit. 116 O poder, ou seja, a capacidade de agir, tem como elemento fundamental a ação. Não necessariamente essa ação deve ser praticada, podendo se assinalar apenas como potencial. Assim, o poder pode se materializar por ambas as formas, sem nenhum prejuízo para a sua distinção. No Direito da Concorrência, não se pode falar na existência de apenas um mercado, e sim de vários, inter-relacionados, em maior ou menor grau. Desse modo, ao falar de um mercado de alimentos, a menção pode ser a um mercado de carnes, e mais ainda, ao de carne bovina, ao de carne suína, ao de aves, mercados esses em que há um maior ou menor nível de concorrência entre os agentes econômicos. Nessa mesma linha de raciocínio, o produtor de automóveis, por exemplo, não integra esse mercado de alimentos e, por isso, não tem possibilidade de exercer poder econômico nele. Ressalta-se que a oferta e a procura são elementos de grande importância para a caracterização do mercado relevante. A possibilidade de substituição de produtos, bem como a facilidade para a entrada de novos concorrentes, indubitavelmente interferem no mercado relevante. A maior ou menor intensidade com que os consumidores exerçam a sua opção entre um ou outro produto, segundo variações de preço, será expressa pelo índice de elasticidade cruzada da procura, ou seja, a razão das variações da procura por um determinado produto em função de variações no preço de outro produto. Já em relação à oferta, o mercado relevante poderá sofrer interferência de duas formas diferentes. A primeira, por meio da inclusão no mercado relevante de agentes que, mesmo não participantes do mercado, possam facilmente redirecionar a sua produção, passando a produzir bens semelhantes, atraídos por um eventual aumento de preços. A segunda, quando tais agentes não sejam incluídos no mercado relevante, mas a facilidade de seu ingresso em tal mercado seja considerada sob o aspecto de baixas barreiras à entrada, limitadoras do poder econômico do player analisado.271 Dessa forma, a apuração do grau de participação de mercado, principal elemento em que se baseia a análise antitruste, é complexa em decorrência de inúmeras nuances. A previsão dos impactos anticoncorrenciais não faz parte de uma 271 BAGNOLI, Vicente, Direito e poder econômico, p. 270. 117 ciência exata, pois uma série de fatores devem ser levados em conta, muitos dos quais podem ser avaliados aproximadamente. 3.8 Concentração X Regulação econômica Comumente, a doutrina associa as origens da concentração econômica no Brasil com o processo de colonização, o qual foi baseado na forte apropriação de renda por um pequeno grupo da sociedade. A desigualdade e a pobreza estão no cerne desse processo e, mais do que um resultado indesejado do processo concentrador, constituem elementos definidores da própria colonização.272 Nesse período, o papel desempenhado pelo Direito limitava-se a legitimar o processo de concentração do poder econômico, contribuindo fortemente para acentuar a extração de renda e, por consequência, fixando uma das bases em que se sustenta o subdesenvolvimento do país.273 Modernamente, as características da concentração econômica estão relacionadas ao sistema de mercado do capitalismo, voltadas ao aperfeiçoamento das relações de mercado e dos produtos e serviços. Isso não significa afirmar que a concentração deixou de possuir alguns dos traços do período colonial (principalmente no que tange à potencialidade de extração de renda e criação de pobreza). Vê-se, porém, uma mudança na postura do Direito, que passa a disciplinar o poder econômico com esteio em princípios constitucionais, como a livre iniciativa, a livre concorrência, a valorização do trabalho humano. Nesse percurso jurídico-legal, também se percebem mudanças no posicionamento do legislador com relação ao fenômeno da concentração econômica no que tange à sua (i) licitude. Essa análise demonstra a evolução do direito brasileiro diante da transformação das relações de mercado impostas pelo sistema capitalista, o que fez mudar a natureza jurídica dos atos de concentração bem como a forma do seu 274 controle. Em um primeiro momento, Vicente Bagnoli entende que, mais precisamente no contexto do Decreto-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938, a fusão de empresas que visasse a impedir ou dificultar a concorrência era considerada um crime contra a economia popular, que deveria ser duramente reprimido.275 272 BAGNOLI, Vicente, Introdução ao direito da concorrência: Brasil-Globalização-União EuropéiaMercosul-ALCA, p. 1. 273 Idem, Direito e poder econômico, p. 268. 274 Conquanto hoje não mais se enquadre a concentração de poder econômico no Direito Penal (tipificado como “crime”), vê-se que já havia a preocupação das autoridades com relação ao fenômeno concentracionista que então tomava volume. Apesar da força com que esse decreto procurava punir possíveis violações à livre concorrência, Benjamin M. Shieber pondera que esses dispositivos não tiveram efetiva aplicação, provavelmente em decorrência da inexistência de um órgão público específico para tratar dessas situações. Cf. Ibidem, loc. cit. 275 Ibidem, loc. cit. 118 Uma operação de concentração de empresas é geralmente definida como um ato ou contrato, cujas partes envolvidas deixam de ser centros decisórios autônomos, passando a atuar no mercado como um único agente em suas atividades econômicas de forma permanente. Isso significa dizer que tanto o comportamento do agente no mercado quanto a forma interna de produção devem sujeitar-se a um único centro decisório – ou seja, uma unidade de comando ou controle –, de modo que seja possível considerá-las um único agente em todas as operações econômicas por elas realizadas. Tal situação demanda uma alteração na estrutura dessas empresas que seja duradoura e que permita verificar uma verdadeira uniformidade econômica. O fato de a unificação dos centros decisórios nas concentrações empresariais referir-se a todas as atividades econômicas desempenhadas pelas empresas constitui o elemento central na distinção das situações de concentração daquelas de cooperação empresarial. O elemento essencial para a caracterização de uma concentração econômica consiste na existência de uma alteração estrutural e duradoura das empresas envolvidas na operação. Na fusão e na incorporação de empresas essa alteração estrutural é bastante evidente, pois, mais do que econômica é física e jurídica. A fusão consiste na forma mais perfeita de concentração por promover a integração econômica de forma total e definitiva. Haveria uma absorção completa da individualidade econômica das empresas envolvidas, de forma que a nova empresa, resultante dessa 276 operação, ficaria sujeita a um único. Nos casos do exercício de controle de empresas, vê-se que a unidade de comando também se faz presente, envolvendo não apenas as empresas controlada e controladora, mas também aquelas empresas que eventualmente estejam controlando ou sendo controladas pela primeira. Por fim, cumpre observar que a regulação econômica tem um papel crucial na busca pelo pleno funcionamento da sociedade, e mais que isso, que essa seja dotada de valores e princípios humanos e civis. As atividades econômicas, predominantemente de cunho capitalista, têm como ponto fulcral o mercado financeiro, e este, por sua vez, volta-se à operação por meio do poderio econômico de empresas particulares e governo, que, atualmente, desponta como poder público estatal e também como agente econômico, quando atua por meio de suas empresas públicas, sejam estatais ou autarquias etc. 276 BAGNOLI, Vicente, Direito e poder econômico, p. 268. 119 A busca pela construção ou transformação da sociedade de forma a aplicarse a justiça social e a solidez econômica é uma constante, e assim o deveria ser. Isso porque, a exemplo do que aconteceu em 2008, quando por conta de problemas oriundos do mercado financeiro estourou a bolha nos Estados Unidos, o país inteiro, e quiçá o mundo, sofreram ou sofrem, ainda hoje, em decorrência dessa problemática. Sinal de que, tanto o crescimento da economia quanto a sua estagnação estão ligados com o mercado econômico-financeiro e o Estado, de modo que a apatia do Estado nas ações de grande vulto do mercado econômico pode transformar o país, enquanto Estado poderoso, em um Estado falido. Percebe-se que o controle econômico das atividades comerciais e financeiras por parte do Estado, assim como das grandes negociações e do mercado internacional, constitui uma necessidade latente, e mais ainda nos dias atuais, tendo em vista as facilidades promovidas pelo desenvolvimento de novas tecnologias que permitem o investimento financeiro por meio de computadores. Tem-se, ainda, que os limites de atuação do Poder Público, em detrimento do ente privado, vão continuar crescendo e assim o devem ser, tendo em vista que, sem a regulamentação, o Estado permite a ocorrência de certos atos, como a concorrência desleal ou a formação de cartéis etc. Os controles sobre a economia vão desde os Bancos Centrais atuando nas intermediações financeiras até as transações empresariais de compra e venda de empresas, em que há a atuação do CADE. Contudo, as preocupações pela construção de uma sociedade economicamente mais sólida e justa do ponto de vista social vão muito mais além do que o simples controle estatal sobre as operações, devendo haver aprendizado do próprio ser humano em constituir-se perante seus pares e entender que todos participam da mesma cadeia produtiva e de consumo. 3.9 Autonomia do BACEN e desenvolvimento econômico A concessão de autonomia aos Bancos Centrais em todo o mundo capitalista transformou-se, sobretudo a partir da década de 1990, em tema de acalorados 120 debates que passaram a mobilizar não apenas o mundo político, mas também parte significativa dos círculos acadêmicos.277 De forma geral, o termo autonomia, quando aplicado a Bancos Centrais, significa que eles dispõem de liberdade operacional para cumprirem o seu papel, seja de combater a inflação, como no Brasil, seja, também, da manutenção do crescimento econômico e de baixas taxas de desemprego, como nos Estados Unidos.278 Os Bancos Centrais autônomos são mais eficientes quanto à tarefa de manter baixos índices de inflação, uma vez que os governos, pela sua própria natureza política, temem, principalmente nos períodos eleitorais, adotar medidas impopulares, como aumentar as taxas de juros, o que afetará o crescimento econômico, elevando o nível de desemprego. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa assevera a necessidade de atribuição da autonomia aos Bancos Centrais, porque acredita que o isolamento das pressões políticas de curto prazo permite-lhes uma atuação mais eficaz quanto ao alcance de metas econômicas de longo prazo. Essa opinião é unânime, acreditando-se, de outro lado, que manter as autoridades políticas responsáveis pela realização dos objetivos econômicos representa uma melhor garantia de resultado do que passar essa responsabilidade para os Bancos Centrais.279 Alguns autores, como o citado Verçosa e Mario Henrique Simonsen, entendem que o Banco Central deve estar desvinculado do Ministério da Fazenda, gozando a autonomia bastante profunda, a partir do estabelecimento de mandatos fixos para os seus administradores, exercendo um quarto poder, o emissor monetário, ao lado dos Poderes Executivos, Legislativo e Judiciário. Ao Banco Central do Brasil, assim constituído, caberia a responsabilidade pelo comando da política monetária, pelo controle das taxas de juros, pela negociação da dívida 277 RAPOSO, Eduardo. Banco Central do Brasil: o leviatã ibérico, uma interpretação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Hucitec, 2011, p. 219. 278 Ibidem, loc. cit. 279 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 79. 121 externa, funcionando como um freio contra a inflação e obrigando o Estado a definir suas prioridades e orçamentos.280 Verçosa diz que tem sido contestada a ideia de um Banco Central autônomo para países que se encontram em fase de desenvolvimento econômico. Nessas situações, é pela posição estritamente monetarista daqueles órgãos que muitos Bancos Centrais têm exercido um significativo papel desenvolvimentista. Verifica-se, no entanto, que o elevado preço da inflação recai sobre as classes economicamente menos favorecidas, podendo ocorrer um desenvolvimento global com crescimento do PIB, mas gerando o nascimento a seríssimas distorções no campo da distribuição da renda nacional, cuja maior parte fica nas mãos de pequena parcela da população, e dando-se, além disso, grande força aos setores financeiros, em detrimento dos demais, como seja, indústria, comércio e serviços. Nesse contexto, o Banco Central autônomo é fator de impedimento da prática de políticas de falso desenvolvimento, a cargo do governo, podendo e devendo contrariar medidas em tal sentido e adotar metas não geradoras da descontrolada emissão monetária.281 O renomado autor ainda salienta que o desenvolvimento não pode estar baseado em emissões deficitárias de moeda, pois essa prática causa inflação, a qual, como se sabe, atinge justamente as classes sociais economicamente mais fracas, que não têm condições mínimas de defesa contra a perda do valor monetário, como o fazem outros segmentos mais abastados da sociedade, por meio da aplicação de recursos financeiros em operação de curto prazo.282 Mas não se deve esquecer que o tema do desenvolvimento tem sido também utilizado para a justificativa da existência de bancos públicos, federais e estaduais. Nesse diapasão, por conhecidas razões históricas e econômicas, as primeiras decorrentes da maneira pela qual o sistema bancário brasileiro foi criado, e as 280 Posição em sentido contrário apresenta José Serra, para quem existe um equívoco nas propostas que tentam garantir a autonomia do Banco Central do Brasil, mediante a sua caracterização como uma espécie de quarto poder da República. Segundo o economista, o Banco Central é, constitucionalmente, uma entidade vinculada e subordinada ao Poder Executivo, não representando um novo poder e não sendo órgão auxiliar do Congresso Nacional. Merecendo tratamento especial, devem estar previstas em lei as suas particularidades em relação aos demais órgãos do Executivo, não se podendo, no entanto, excluí-lo das normas gerais previstas para toda a Administração Pública federal. Cf. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc, Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 79. 281 Ibidem, p. 109. 282 Ibidem, loc. cit. 122 últimas relacionadas ao fato de o país ter sido retardatário no processo de industrialização, os bancos públicos foram largamente utilizados, entre outros instrumentos legais, a exemplo dos benefícios fiscais e do crédito subsidiado, como substitutos da inexistência de sistema bancário privado adequado e de satisfatório mercado de capitais, para o fim de financiamento à produção.283 Jean-Paul Veiga da Rocha diz que estamos vivendo a mais grave crise financeira, dando visibilidade para algumas características dos sistemas econômicos e políticos contemporâneos. Segundo o autor, em primeiro lugar, não é necessário ser economista para compreender que os bancos e as demais instituições financeiras exercem papel sui generis na economia moderna; em segundo lugar, percebeu-se a importância de um maior acompanhamento, por parte de especialistas e da opinião pública em geral, dos efeitos colaterais das deliberações de política monetária, como o possível incentivo a bolhas econômicas; e em terceiro lugar, constatou-se o atual grau de integração financeira, ao mesmo tempo em que se viabilizou um aumento extraordinário de eficiência e rentabilidade.284 O controle social, se entendido como o poder desfrutado pela sociedade para intervir nas decisões estatais a respeito da regulação de determinado setor da economia, constitui-se em um dos elementos fundamentais para que as agências de regulação não se submetam às investidas dos setores regulados. Nesse sentido, Veiga da Rocha salienta: Embora o Estado-nação já não possua capacidade para desenhar de forma autônoma seu sistema financeiro, os bancos centrais e demais órgãos reguladores do sistema financeiro, que já eram historicamente dotados de amplo poder de intervenção na economia e em empresas financeiras, saem 285 da crise ainda mais robustecidos. Assim, a política monetária e a regulação financeira, funções estatais distintas, porém imbricadas, tornam-se objeto de intenso debate prático e acadêmico. 283 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc, Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 111. 284 Regulação financeira, direito e democracia. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Regulação, direito e democracia. São Paulo: Perseu Abramo, 2002. p. 27-42, p. 27. 285 Ibidem, loc. cit. 123 3.9.1 Autonomia e os poderes constitucionais É evidente que a autonomia dos Bancos Centrais está ligada à existência de um sistema democrático, no qual se respeite a interdependência harmônica dos poderes. Cumpre observar que o problema em causa tem uma abrangência extrema, pois não se reduz às relações entre os Bancos Centrais e o governo ou o Congresso. Para falar-se em efetiva autonomia dessas instituições, deve-se colocar, como condição prévia, no plano democrático, o funcionamento equilibrado e estável dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, onde haja interdependência e harmonia. Esses fatores devem estar ajustados no Brasil, ao menos por enquanto, ao regime presidencialista, conforme estabelecido pelo plebiscito realizado anos atrás.286 O ponto de partida necessário para o alcance de tal situação ideal reside na solução dos problemas existentes no Legislativo, a começar pela instituição de mecanismos de real representatividade perante a população e pelo funcionamento dos partidos políticos estáveis, dotados de programas perfeitamente definidos, a cujos ditames os seus membros deveriam estar obrigatoriamente vinculados, proibindo-se a troca gratuita por agremiação durante o período de mandato. Na esfera governamental, dever-se-á ter um chefe de governo forte, eleito por um partido efetivamente representativo, condição ideal para a deflagração de políticas sociais e econômicas voltadas para o bem-estar da coletividade, do que decorrerá que um governo dessa natureza não fará pressões indevidas sobre políticas monetária, creditícia e cambial adotadas pelo Banco Central. Conforme Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, a referida autonomia do Banco Central deve ser a expressão de uma clara tomada de posição pela sociedade, encetada por um Congresso Nacional verdadeiramente representativo, no sentido da outorga de poderes plenos para alcançar-se a estabilidade da moeda, colocando-se, em certa medida, acima das interferências do governo, do próprio Poder Legislativo e do Judiciário.287 286 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc, Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 101. 287 Ibidem, p. 102. 124 O verdadeiro regime democrático é caracterizado pela existência de um sistema de freios e de contrapesos entre os diversos poderes e, no caso dos Bancos Centrais, pela utilização de alguns mecanismos necessariamente existentes e conjugados entre si, começando pelo estabelecimento de fronteiras muito bem definidas quanto às atribuições do próprio órgão do governo e do Congresso, e passando pela impossibilidade da demissão ad nutum dos seus diretores pelo chefe de governo que se julgar contrariado no exercício de sua política ou nos seus caprichos pessoais. Como bem lembra Verçosa, a Constituição Federal, nos incisos XII e XIII do seu artigo 48, atribuiu ao Congresso Nacional competência para legislar sobre matérias financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações, bem como sobre a moeda, seus limites de emissão e o montante da dívida mobiliária federal.288 Entende-se que não basta criar um Banco Central autônomo, mas torna-se necessário rever o equilíbrio dos poderes constitucionais, no tocante à competência legislativa atualmente prevista nos dispositivos acima mencionados, evidentemente não para criar um poder supremo nas mãos do Banco Central, mas com o fim de proteger o exercício de suas funções das ingerências externas, nem sempre preocupadas com a estabilidade da moeda. 3.9.2 BACEN e a autonomia operacional Segundo Jairo Saddi, a palavra autonomia advém do grego autós (próprio, peculiar) e nomos (lei, regra), pressupondo a ideia composta de direção própria, de agir ou deixar de agir, de possuir a faculdade de organização, administrativa e jurídica. A noção de autonomia pode ser expressa também como a direção própria daquilo que é próprio.289 Na verdade, a autonomia é apenas uma faculdade dada a um órgão da Administração para regrar-se, proporcionando, assim, a visão de que não é possível a existência de um Banco Central com autonomia operacional para todos os países, 288 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 102. 289 Crise e regulação bancária: navegando por mares revoltos apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 14. 125 mas só para os que já atingiram um padrão mínimo de ordem financeira e administrativa, capaz de permitir o seu funcionamento eficaz. Marco Antônio Ribeiro Tura apresenta a etimologia do termo autonomia, que é expressiva de um dos três pilares da liberdade antiga, ao lado dos termos autocrinia e autarquia. Autocrinia expressa a capacidade judiciária própria, a possibilidade de julgar a si mesmo. Autarquia expressa a capacidade administrativa própria, a possibilidade de governar a si mesmo. E autonomia expressa a capacidade legislativa própria, a possibilidade de regular a si mesmo. A precisão do termo, verificada a linguagem antiga, contudo, perdeu-se. O substantivo autonomia tem-se feito acompanhar de diversos adjetivos, como uma estratégia para conferir ao termo uma precisão perdida. Fala-se, por isso, em autonomia pública, autonomia privada, autonomia estadual, autonomia municipal, autonomia funcional, autonomia pessoal, autonomia individual, autonomia didática, autonomia científica, autonomia financeira etc. Não obstante isso, em todas essas adjetivações da autonomia, algo substancialmente idêntico se encontra: a ideia de um âmbito de organização e de atuação exclusivas, livres de quaisquer interferências externas.290 Leandro Amaral Matta lembra que, no período compreendido entre os anos de 1980 e 1990, a proposta de autonomia operacional para o BACEN ganhou impulso, em especial, por causa da observação das pressões políticas sofridas pelos Bancos Centrais, tidos como vítimas delas, já que se desviavam da sua função natural de defender o poder de compra da moeda. Alguns pontos da autonomia operacional de um Banco Central podem ser definidos por meio das seguintes características: (i) existência de respaldo político para operar com autonomia; (ii) a responsabilidade pela condução da política monetária é responsabilidade das lideranças políticas eleitas; e (iii) caso as lideranças políticas decidam delegar tal responsabilidade para o Banco Central, esta deverá estar atrelada a uma ação transparente, com metas preestabelecidas e com objetivos de longo prazo.291 Cabe considerar que o conceito de Banco Central com autonomia operacional, nas diversas acepções do termo, com o arcabouço teórico que o subsidia, sugere a implementação nas diversas visões no âmbito da questão, entre 290 291 Agências reguladoras no Brasil, p. 12. Ibidem, loc. cit. 126 elas situações favoráveis e desfavoráveis, dependendo do sentido e da direção da política econômica balizada pelo governo. Alan Blinder acrescenta que o argumento a favor da autonomia operacional é baseado no conflito existente com os incentivos políticos de curto prazo e a meta permanente da estabilidade monetária. Quando se consegue tal autonomia, não se desvincula totalmente o Banco Central do governo, pois ele não se toma independente.292 Para Lourdes Sola et al., a discussão sobre a possibilidade da criação de um Banco Central autônomo no Brasil foi possível somente após a estabilização de preços e o sucesso do Plano Real, momento em que as circunstâncias econômicas e políticas passaram a propiciar condições para o seu estabelecimento.293 Dentro da perspectiva de condutor de políticas econômicas de um país, o Banco Central tem o importante papel de manter uma postura perante a sociedade, contando com o depósito de confiança dado pela mesma, devendo ter como contrapartida não o silêncio, mas sim a prestação de contas e a divulgação pública dos critérios que norteiam suas decisões. O procedimento autônomo que permite ao Banco Central manter a credibilidade e preservar a discrição necessária para lidar com choques inesperados, sem sacrifício da estabilidade, sugere a conciliação entre credibilidade e flexibilidade, requerendo o desenvolvimento de novas molduras institucionais e a criação de novos processos decisórios. Para António José Avelãs Nunes, o Banco Central sem autonomia operacional, submetido a razões de Estado e, consequentemente, a razões eleitorais, não consegue impedir que as variáveis naturais sejam afastadas de sua trajetória nem evitar as pressões políticas que surgem para manter a taxa de juros abaixo do patamar condizente com a estabilidade de preços. Do mesmo modo, não consegue elevar a emissão de base monetária como forma de financiamento do déficit do setor.294 Assim, a atuação do Banco Central com autonomia operacional deve adquirir uma postura transparente em seu gerenciamento-operacional. Segundo Matta, uma 292 Bancos centrais: teoria e prática. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 72. Banco Central, autoridade política e democratização. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2002, p.118. 294 Nota sobre a independência dos Bancos Centrais. Revista de Direito Mercantil: Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, c. 103, 1996 apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 58. 293 127 das características de um Banco Central com autonomia operacional é o sistema de carta aberta, que implica um maior grau de transparência e é reforçado pelo aumento da comunicação entre a autoridade monetária e o público, revelando-se como fundamental por três razões: (i) deixa claro que o Banco Central e o governo estão comprometidos com uma política de baixa inflação ao longo do tempo; (ii) trata-se de um mecanismo de prestação de contas e de responsabilidade, podendo, inclusive, levar à substituição de sua Diretoria; e (iii) reconhece a amplitude arbitrária do intervalo de tolerância. A carta aberta permite ao Banco Central, sob o escrutínio da sociedade, lidar com choques de oferta intensos e inesperados, sem impor à sociedade sacrifícios desnecessários.295 Para Eric Roll, o Banco Central com autonomia operacional deve ter a sua área de ação bem definida, assim como as suas metas a serem atingidas pela política monetária também devem ser explicitadas. Para tanto, promulgar uma lei é o primeiro passo para estabelecer normas operacionais, estabelecendo a forma de prestação de contas da instituição – accountability – e seu comportamento em algumas situações – guerras externas e outras –, estas últimas, épocas em que a política monetária não pode confrontar iniciativas do Executivo.296 É importante acrescentar que a lei também deve estabelecer normas para nomeação e demissão da Diretoria, determinando mandatos longos, não coincidentes com os da Presidência da República. Apesar das limitações e do controle jurídico, a lei ampara o Banco Central, permitindo-lhe maior arbítrio operacional, não o deixando dependente das medidas políticas de cunho de curto prazo do Executivo.297 Quanto ao nível de autonomia a ser conferido ao BACEN, ele dependerá de quanto se queira flexibilizar a política monetária, adotada para assegurar a estabilidade da moeda, retraindo as ingerências de ordem política. O BACEN deve ser poupado de pressões políticas para financiar o Tesouro Nacional. Embora alguns Bancos Centrais com autonomia operacional atuem comprando títulos de seus governos, essa forma de financiamento tem sido mal empregada no Brasil. Matta salienta que o caráter de autoridade monetária foi outorgado ao BACEN 295 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 59. 296 Independent and accountable: a new mandate for the Bank of England. Londres: Center of Economic Policy Research, 1993 apud Ibidem, p. 61. 297 MATTA, Leandro Amaral, op. cit., p. 61. 128 pela Constituição Federal de 1988, preservando-o como autarquia com atribuições determinadas que, em resumo, lhe concedem a responsabilidade pela estabilidade da moeda no Brasil. Todos os ganhos obtidos com o BACEN, que atua com uma postura que promove autonomia operacional em seus atos, podem facilmente ser perdidos mediante uma nova administração, uma vez que tais atos não estão consubstanciados em lei que rege a sua atuação.298 Em todo o processo que envolve a discussão pela qual se enseja a autonomia operacional do BACEN, é necessário, em especial, abstrair ideologias adversas que se constituem em medidas de cunho político, buscando apenas o objetivo fundamental de um Banco Central, ou seja, garantir a estabilidade da moeda e obter baixas taxas de inflação. Verifica-se que já houve um grande avanço nas funções do BACEN desde a Constituição de 1988, época em que ocorreu uma definição estruturada de seu papel, perdendo funções que nada tinham a ver com a autoridade monetária e garantindo liberdade de atuação. Só que essa estruturação tem sustentação frágil, devido à influência do Executivo, que pode trazer interrupção, a qualquer momento, pelo presidente da República. Para Matta, o modelo de autonomia operacional deve abranger, basicamente, os seguintes aspectos: (i) mandato por prazo determinado para a sua Diretoria, como forma de garantir continuidade de ações, maior autonomia operacional e credibilidade à condução da política monetária; (ii) objetivo estatutário claramente definido e o mais restrito possível (manter a estabilidade da moeda); (iii) imposição de limites ao financiamento direto ao Tesouro, garantindo maior disciplina fiscal e evitando que o financiamento de déficits governamentais, por parte do Banco Central, comprometa a estabilidade da moeda; (iv) sólido mecanismo de accountability, como forma de mostrar-se transparente em suas ações, garantindo a justificativa e a coerência com os objetivos estatutários, e permitindo a prestação de contas; (v) autonomia orçamentária como aspecto fundamental, principalmente para evitar pressões ou retaliações nas despesas de custeio do Banco Central, em função da adoção de medidas que contrariem determinados interesses de curto prazo em relação ao governo; e (vi) estrutura institucional (o aparato jurídicoinstitucional que dá respaldo às ações do Banco Central), pois, é por meio da 298 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 76. 129 adequação ou não da estruturação institucional que a independência formal e a real serão mais ou menos próximas.299 No entendimento de Marcos Holanda e Leonardo Freire, é possível estabelecer duas interpretações para essa discussão quanto ao caráter da autonomia operacional. A primeira encontra-se mais ligada ao conceito de “não subordinação” ao Executivo, em que um Banco Central com autonomia operacional é tido por sua habilidade em manter-se afastado da influência do governo, no sentido financeiro e político, mantendo a governabilidade dos atos que lhe são próprios. A segunda liga-se ao conceito de “não conexidade”, pelo qual um Banco Central com autonomia operacional é aquele que administra a política monetária sem considerar os objetivos, às vezes conflitantes, da autoridade fiscal.300 Holanda e Freire entendem que ambas as interpretações sobre a autonomia operacional do Banco Central residem no objetivo de possuir capacidade de buscar prioritariamente a estabilidade da moeda, mesmo que seja por meio de medidas de política monetária de pouco cunho político, não agradando o governo, podendo, até mesmo, tais medidas ocasionarem o aumento no índice de desemprego. 301 Cristina Terra diz que, num contexto de inflação e desemprego, a independência dos Bancos Centrais é a forma de resolver esse problema. Com uma forte preferência por taxas baixas de inflação, o Banco Central estaria imune às pressões políticas para inflacionar, com o intuito de estimular a atividade econômica, gerando expectativas baixas de inflação. Esse exemplo aconteceu com o Banco da Alemanha. Frente a esse problema, o Banco Central brasileiro, com certa autonomia, poderia se posicionar diante da crise que o país está passando com forte pressão inflacionária e desemprego em crescimento.302 Para Matta, de uma maneira geral, a caracterização do Banco Central com autonomia operacional envolve aspectos institucionais, organizacionais e legais, que abrangem: (i) objetivos institucionais; (ii) responsabilidade e monitoramento das 299 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 79. 300 Medindo a independência do Banco Central do Brasil, Revista Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 133-146, jan./jun. 2003, p. 139. 301 Ibidem, p. 140. 302 Finanças internacionais: macroeconomia aberta. São Paulo: Elsevier, 2013. 130 políticas monetárias; (iii) limites de financiamento ao governo; e (iv) instrumentos de política disponíveis e restrições ao seu uso.303 No que se refere aos aspectos organizacionais, no entendimento de Matta, eles envolvem: (i) função, composição, designação e demissão do presidente e dos diretores do Banco Central. De maneira geral, considera-se que um mandato mais longo e com prazo prefixado de seu presidente e diretores, de preferência desencontrado do mandato do Poder Executivo, contribui para conferir grande independência ao Banco Central; e (ii) financiamento das atividades do Banco Central. O ideal em um Banco Central seria ter o poder de elaborar e aprovar o seu próprio orçamento. Os Bancos Centrais com autonomia operacional, geralmente, têm melhor gerenciamento financeiro em relação aos governos e quase sempre determinam seus próprios gastos orçamentários.304 Sylvia Maxfield enfoca a ótica das fontes políticas à independência do Banco Central, apresentando a força política de diferentes grupos setoriais que privilegiam a estabilidade de preços ou o emprego. Os primeiros preferem um Banco Central independente, enquanto os segundos optam por um controle político do Banco. A natureza das instituições políticas e o sistema partidário, ou seja, a extensão da competição política, moldam o custo da mudança e a necessidade de financiamento do governo.305 No entanto, na perspectiva da importância das condições internacionais de autonomia operacional, pode-se constatá-la, uma vez que os detentores de ativos financeiros internacionais podem inclinar-se a investir em países com Bancos Centrais autônomos. Lourdes Sola et al. explicam que, no início do ano 2000, o Comitê de Política Monetária (COPOM) aprovou a Resolução nº 2.685, visando a disciplinar mais estritamente a capacidade dos bancos de utilizar as linhas de redesconto e de assistência de liquidez. As instituições precisam demonstrar a real necessidade 303 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 80. 304 Ibidem, loc. cit. 305 Gatekeepers of growth: the international political economy of Central Banking in developing countries. Princeton: Princeton University Press, 1997 apud Ibidem, p. 81. 131 financeira, e, ainda, a taxa de redesconto foi delegada ao COPOM, de modo que a utilização desenfreada do sistema acarreta a punição com altas taxas de juros.306 Para os referidos autores, a adoção do sistema de metas inflacionárias pelo BACEN trata-se de um item impulsionador na reforma institucional do mesmo, aumentando a transparência da autoridade monetária.307 As metas de inflação adotadas para a estabilização das expectativas inflacionárias conferem maior previsibilidade à política monetária. A Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada pelo Congresso no início de 2000, passou a ter um impacto sobre os trabalhos da autoridade monetária. Sola et al. acrescentam que o mencionado diploma legal impõe limites para o gasto público em todos os três níveis de governo, além de uma série de penalidades para eventuais violações. Essa lei exige do Banco Central relatórios periódicos sobre os custos incorridos em suas operações, incluindo a sua participação no mercado de taxa de câmbio. A discussão sobre a estrutura e o funcionamento do Banco Central e o seu papel institucional deve ocorrer no âmbito do artigo 192 da Constituição Federal de 1988 (alterado pela Emenda Constitucional nº 40/2003), que remete a matéria à lei complementar.308 Cabe considerar que uma transformação assumida pelo Banco Central foi o caráter transparente que a instituição passou a assumir perante a sociedade, indo além do exigido pela lei vigente. A preocupação com a transparência é relevante, por exemplo, porque, ao reduzir as incertezas dos agentes econômicos em relação à política monetária, o Banco Central contribui para uma maior eficácia da sua própria política. Segundo Andréa Fernandes Andrezo e Iran Siqueira Lima, a maior transparência por parte do Banco Central permite uma maior eficácia da política monetária, com base no argumento de que, atualmente, a maior parte dos Bancos Centrais controla alguma taxa de juros de curto prazo para alcançar os seus objetivos de política econômica. Esta exerce uma significativa influência sobre as expectativas do mercado acerca das demais taxas futuras de curto prazo, que, por 306 Banco Central, autoridade política e democratização, p. 191. Ibidem, loc. cit. 308 Ibidem, loc. cit. 307 132 sua vez, afetam outras taxas importantes da economia, tais como as taxas de médio e de longo prazos, taxa de câmbio etc.309 A autonomia operacional se dá a partir da necessidade da aplicação de medidas eficazes de combate à inflação. Constata-se, pela história do BACEN, que o seu direcionamento se deteve inicialmente na relação com o governo, essencialmente financiando o déficit público. O cenário de combate à inflação embutiu no imaginário da sociedade a ideia de que estabilidade de preços se trata de um bem de primeira ordem a ser perseguido. Com a implementação do Plano Real, em 1994, a inflação foi debelada gradativamente, e a política monetária foi centralizada no Banco Central. No entanto, com o fim da inflação, as finanças dos governos estaduais ficaram debilitadas, impondo dependência ao governo federal. O grande desafio agora para o BACEN seria a definição da velocidade com que tentaria trazer a inflação para os níveis definidos na meta de inflação, uma vez que a regra desse sistema é a antecipação de percentuais de inflação que se deseja alcançar. Uma vez que a autonomia operacional possibilita o discernimento de que a autoridade monetária se pautará pela transparência de seus atos, adicionando credibilidade à moeda, devido ao seu maior grau arbítrio na implementação da política monetária, percebe-se que o BACEN já atua com certo grau de autonomia operacional, visto que a instituição adotou um processo de amadurecimento na busca efetiva da estabilidade da moeda. Observa-se que não existe nenhum vínculo automático entre autonomia e o baixo nível de inflação, ao mesmo tempo em que não há evidências teóricas e empíricas claras de que o Banco Central deva ou não ter autonomia operacional. Tampouco é possível afirmar que a autonomia do Banco Central seja suficiente para evitar crises econômicas ou pressões políticas. O que se tem, com base em experiências positivas de outros países, é que essa forma de conduta para a política monetária representa forte mudança institucional. São criados elementos formais a favor de uma política voltada para a estabilidade de preços. No entanto, vale ressaltar que a experiência brasileira 309 Mercado financeiro: aspectos históricos e conceituais. São Paulo: Thomson Learning, 2002 apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 88. 133 agrega argumentos particulares a esse debate, mostrando que, em virtude das condições históricas e institucionais que marcaram a atuação do BACEN, adotar a autonomia operacional só poderia trazer resultados positivos para a economia brasileira, visto que existiria mais chance de sucesso para as estratégias de longo prazo, defendendo a política monetária dos desejos momentâneos do governo. 3.9.3 Aprimoramento da autonomia do BACEN Muito bem experimentada no Velho Continente, a autonomia dos Bancos Centrais em países em desenvolvimento é algo novo. No caso do Brasil, um plano de autonomia do BACEN diminuiria significativamente a inflação. Normalmente, quem mais sofre com a inflação nas alturas são as classes economicamente menos favorecidas, posto que esse fenômeno pode causar um desenvolvimento do PIB, mas, ao mesmo tempo, trazer algumas distorções no campo da distribuição da renda nacional, cuja maior parte fica nas mãos de pequena parcela da população. O atual presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, declarou em entrevista ao Portal G1, ser favorável à autonomia do Banco Central, inclusive com a previsão de mandato para o presidente, mas afirmou que não concorda com a sua independência em relação ao governo. Segundo Goldfajn, é [...] imprescindível manter e aprimorar a autonomia do Banco Central [...] Não se trata de ambição ou desejo pessoal, mas de medida que beneficia a sociedade mediante a redução das expectativas de inflação, da queda do risco país e da melhora da confiança, todas essenciais para a retomada do 310 crescimento de forma sustentada. Cabe lembrar que o BACEN já contribui muito com a sociedade. E, como autônomo, a facilidade para manutenção de um Sistema Financeiro sólido e eficiente, capaz de prestar serviços adequados à população, de permitir o gerenciamento de riscos financeiros de consumidores e de empresas, e de intermediar recursos com eficácia entre poupadores e tomadores, seria potencializada. 310 MARTELLO, Alexandro. Em Sabatina, Goldfajn defende mandato fixo para diretoria do BC. Portal G1, Rio de Janeiro, 7 jun. 2016, sem paginação. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noti cia/2016/06/indicado-para-o-bc-goldfajn-diz-que-vai-buscar-inflacao-de-45-no-brasil.html>. Acesso em: 4 set. 2016. 134 O Banco Central conta com uma regulação prudente e com uma supervisão abrangente e profunda, reconhecidas por sua eficácia e sucesso, conforme foi demonstrado no passado e o tem sido no presente. Segundo Goldfajn, o BACEN possui duas dimensões na manutenção e no aprimoramento do Sistema Financeiro no curto, no médio e no longo prazo: A primeira dimensão é a resiliência do sistema. O sistema financeiro se encontra sólido, líquido e bem capitalizado. Nossa tarefa, mesmo frente a cenários por vezes desafiadores, será manter a solidez e a resiliência desse importante setor da economia. Tenho a consciência da importância das áreas de regulação, de autorização e de supervisão para a preservação dos atuais níveis de solidez e de resiliência do Sistema Financeiro Nacional. À frente do Banco Central, trabalharemos para aprimorar continuamente a atuação dessas áreas, de forma equivalente para bancos públicos e privados. A segunda dimensão é o trabalho contínuo do Banco Central – em conjunto com outras instituições – de aprimorar o sistema financeiro, corrigindo distorções que reduzem sua eficiência e simplificando as regras. Os objetivos são melhorar e reduzir o custo da intermediação dos recursos da sociedade, elevar a poupança na economia, principalmente de longo prazo, e aumentar a eficiência da política monetária, reduzindo os custos 311 das ações do Banco Central. Ao contrário do que ocorreu no Brasil e ocasionou o impeachment da expresidente Dilma, um Banco Central autônomo é fator de impedimento da prática de políticas de falso desenvolvimento, a cargo do governo, podendo e devendo contrariar medidas em tal sentido e adotar metas não geradoras da descontrolada emissão monetária. No entender de Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, o desenvolvimento não pode estar baseado em emissões deficitárias de moeda, pois essa prática causa inflação, a qual, como se sabe, atinge justamente as classes sociais economicamente mais fracas, que não têm condições de mínima defesa contra a perda do valor monetário, como o fazem outros segmentos financeiros em operações de curto prazo. Ora, assim sendo, a inflação provocada com fins desenvolvimentistas tem efeito justamente oposto ao desejado, visto que acarreta um processo de deterioração acentuada da distribuição de renda. Por esse motivo, com maior razão, devem os países em desenvolvimento adotar o modelo da distribuição de renda.312 O aprimoramento na autonomia do Banco Central ideal se dá quando consegue cumprir o seu papel no combate à inflação, que é um dos objetivos do 311 MARTELLO, Alexandro. Em Sabatina, Goldfajn defende mandato fixo para diretoria do BC. Portal G1, sem paginação. 312 Bancos centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 110. 135 novo presidente do BACEN, Ilan Goldfajn, englobando a manutenção ou a volta do crescimento econômico do país e o pleno emprego. Mas, para que esse último seja realidade, é necessário um equilíbrio que só possivelmente virá com a autonomia, já conquistada por alguns Bancos Centrais ao redor do mundo, como se vê nas bibliografias utilizadas neste trabalho.313 Conforme analisado neste capítulo 3, a autonomia do Banco Central deve ser a expressão de uma clara tomada de posição pela sociedade, encetada por um Congresso Nacional verdadeiramente representativo, no sentido da outorga de poderes plenos para se alcançar a estabilidade da moeda, colocando-se, em certa medida, acima das interferências do governo, do próprio Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Isso já seria o bom começo para o aprimoramento da autonomia, visto que os poderes estão enfraquecidos pela corrupção, o que coloca em xeque qualquer alteração quanto ao futuro do Banco Central. Outro ponto que precisa ser julgado pelo STF e finalizar a história para o aprimoramento da referida autonomia é o conflito de competências entre CADE e BACEN, o qual também foi tratado neste capítulo e necessita de um acompanhamento de perto dos poderes. Vale acrescentar que alguns pontos da autonomia operacional de um Banco Central precisam ser revistas para o aprimoramento, como: desenvolver um respaldo político para operar com autonomia; entender que responsabilidade pela condução da política monetária é responsabilidade das lideranças políticas eleitas; e, caso as lideranças políticas decidam delegar tal responsabilidade para o Banco Central, é necessário utilizar uma forma bem coordenada e supervisionada pelo Ministro da Fazenda e pelo Presidente da República. A exemplo de outros Bancos Centrais, o aprimoramento sempre se deu com a desinflação, como foi o caso do Banco Central Europeu, do FED e também dos Bancos Centrais da Nova Zelândia e do Chile, cujas propostas foram ousadas e 313 Ciente da importância do funcionamento harmônico e do complemento das instituições brasileiras, o presidente Michel Temer, na recente reforma da estrutura administrativa do Governo Federal, estabeleceu como requisito para a retirada da condição de ministro do presidente do Banco Central a aprovação de uma Emenda Constitucional que sedimente, na Carta Magna, a autonomia operacional (ou técnica) dessa autarquia para perseguir os objetivos estabelecidos pelo governo e que façam parte do seu mandato, como as políticas monetária e cambial e a estabilidade do Sistema Financeiro. Para esse fim, será relevante também discutir, com o restante da equipe econômica, a autonomia orçamentária do Banco Central. Cf. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Discurso de Ilan Goldfajn na cerimônia de transmissão de cargo de Presidente do Banco Central. Brasília, 13 jun. 2016. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pec/appron/apres/Discurso_Ilan_Gold fajn_transmissao_cargo13060216.pdf> Acesso em: 3 set. 2016. 136 servem de modelo para o aprimoramento da autonomia do Banco Central brasileiro, incluindo: realizar a divisão geográfica nos estados brasileiros, o que, a exemplo do FED, possibilitará maior proximidade com cada região do país; fragmentar o poder entre vários membros e formar uma Diretoria com membros indicados pelo Senado, Câmara, presidente da República e órgãos financeiros; salvaguardar a moeda, com a manutenção dos preços; e aplicar a política monetária sempre que a taxa de inflação se desviar da meta estabelecida, como é o caso chileno na atualidade. As propostas acima tiveram origem na observação minuciosa dos Bancos Centrais mundiais, os quais obtiveram a autonomia e melhoraram seus índices inflacionários, desenvolveram o pleno emprego, entre outros benefícios. 3.10 Regulação do Banco Central e a contribuição para o desenvolvimento econômico e social Até o momento, neste capítulo, deu-se ênfase para a importância da política econômica, tratando da regulação econômica de maneira geral. A partir de agora, a ideia é mostrar como essa regulação pode contribuir para o desenvolvimento do Brasil. A política econômica consiste na atuação do Estado nas relações financeiras, no intuito de organizá-las, possibilitando o enriquecimento de forma equilibrada. Assim, o Estado regula e intervém, aplicando recursos para o cumprimento de objetivos socialmente necessários, tais como controlar a distribuição de renda, conter crises e garantir o bem-estar econômico e social. Eugênio Gudin relata que a ênfase da política econômica de 1930 para cá passou a destacar o incremento da produção e do volume de emprego. O objetivo geral da política econômica passou a ser o de maior e melhor aproveitamento dos fatores de produção, assim como a maior e melhor utilização possível dos recursos materiais e do potencial humano, de modo a maximizar a renda nacional e o padrão de vida. Tal política importa forçosamente no combate às oscilações gerais da 137 atividade econômica, por meio de medidas tendentes a manter em alto nível a renda nacional e o volume de emprego.314 A política monetária se dá por intermédio do Banco Central, que detém o monopólio da emissão da moeda no país. Desse modo, essa política pode ser identificada como a ação do Estado, via Banco Central, para controlar a moeda, garantindo a sua estabilidade e contraindo e expandindo o crédito no mercado, de forma coordenada com as políticas fiscal e cambial, com o objetivo de promover o bem-estar econômico e social. A política monetária pode promover o bem-estar por meio do crédito, que também é um elemento para o desenvolvimento, pois, sendo um meio de adquirir bens e serviços, traduz-se em um veículo que permite aos empresários aprimorarem as suas atividades por meio da inovação. Em sua obra “A teoria do desenvolvimento econômico”, Joseph Schumpeter consolida a importância do crédito: Nesse sentido, portanto, definimos o cerne do fenômeno do crédito da seguinte maneira, o crédito é essencialmente a criação de poder de compra com o propósito de transferi-lo ao empresário, mas não simplesmente a transferência de poder de compra existente. A criação de poder de compra caracteriza, em princípio, o método pelo qual o desenvolvimento é levado a cabo num sistema com propriedade privada e divisão do trabalho. Através do crédito, os empresários obtêm acesso a corrente social dos bens antes que tenham adquirido o direito normal a ela. Ele substitui temporariamente, por assim dizer, o próprio direito por uma ficção deste. A concessão de crédito opera nesse sentido como uma ordem para o sistema econômico se acomodar aos propósitos do empresário, como um comando sobre os bens de que necessita: significa confiar-lhe forças produtivas. É só assim que o desenvolvimento econômico poderia surgir a partir de mero fluxo circular do equilíbrio perfeito. E essa função constitui a pedra angular para a moderna 315 estrutura de crédito. Outra forma tradicional de adquirir bens e recursos é o redesconto, por meio do qual a instituição financeira apresenta e redesconta títulos em seu nome perante o Banco Central, e permanece responsável pela cobrança dos deveres originais desses títulos, comprometendo-se a recomprá-los em data previamente acordada. Esse mecanismo funciona em razão do valor da taxa cobrada pelo Banco Central para realizar o redesconto, ou seja, se for uma taxa inferior à adotada no mercado, as instituições financeiras são incentivadas a elevar o seu crédito no Banco Central e a expandir a concessão de créditos ao mercado, o que, por sua vez, aumenta a quantidade de moeda em circulação. 314 315 Princípios de economia monetária. Rio de Janeiro: Agir, 1954, p. 3. A teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 74. 138 O BACEN também se vale do mecanismo de open market, o qual serve como instrumento de atuação sobre o nível de liquidez da economia, comprando e vendendo títulos públicos da sua própria carteira, o que enseja o ajuste do saldo de reservas bancárias das instituições financeiras. Ao comprar os títulos, o Banco Central influencia a expansão da base monetária, aumentando os meios do pagamento, e, ao vendê-los, promove a diminuição da quantidade de moeda no mercado. Conforme José Tadeu De Chiara, oferecendo os títulos públicos no mercado financeiro a taxas atraentes, ou recompensando-os em condições de compensadora liquidez para os respectivos detentores dos mesmos, obtém o Estado o resultado de aumentar ou diminuir o volume de dinheiro em circulação, ou, mesmo, de disciplinar a velocidade de circulação da moeda, nas épocas próprias em que não há exagerada demanda de crédito, e retirando-o de circulação sempre que haja circunstância evidente de uma situação de utilização do crédito em formas propiciadoras de inflação monetária.316 O Banco Central fixa e determina a taxa de juros para que os bancos possam obter financiamento e cobrir seus desequilíbrios de caixa. É a taxa de juros básica que informa globalmente ao mercado qual a expressão da equivalência entre as disponibilidades monetárias e a preferência em manter a liquidez. A taxa de juros influenciará os juros cobrados pelos bancos ao concederem crédito ao mercado, e, portanto, se for extremamente alta, dificultará a circulação dos meios de pagamento e acarretará maior custo de produção e, consequentemente, desaquecimento econômico. Considerando a premissa de que o Estado deve atuar na economia, nos termos das conclusões alcançadas no primeiro capítulo, este trabalho presta-se a defender que a busca pelo pleno emprego e crescimento nunca deveria ter sido substituída pela estabilidade de preços, que não é fim em si mesmo, não devendo ser um objetivo, mas um meio para alcançar determinados fins. Nesse sentido, o Estado e seus organismos, entre eles o Banco Central, têm o dever de concentrar suas forças na busca pelo desenvolvimento social.317 316 Disciplina jurídica das instituições financeiras. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 41-42, p. 289-307, 1977, p. 292. 317 BORGES, Florinda Figueiredo, Intervenção estatal na economia: o Banco Central e a execução das políticas monetária e creditícia, p. 84. 139 Uma questão importante para que o Banco Central possa atuar no desenvolvimento social e na economia do país é a autonomia, como apontado páginas atrás. Rosa Maria Lastra destaca, ainda, que, se fosse independente, o Banco Central estaria livre das pressões políticas, especialmente no período próximo às eleições, em que os políticos, a fim de elegerem seus sucessores, determinam a implantação de uma política expansionista, com baixas taxas de juros e redução do desemprego, e, logo após o pleito, sujeitam a nação a grandes sacrifícios pelo estabelecimento de política contracionista, a fim de conter a inflação.318 Em 1993, os economistas Alberto Alesina e Larry Summers publicaram um artigo seminal, argumentando que a independência de um Banco Central mantém a inflação sob controle, sem consequências negativas para o desempenho econômico.319 Como já salientado, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa entende que o elevado preço da inflação recai sobre as classes economicamente menos favorecidas, podendo ocorrer um desenvolvimento global com o crescimento do PIB, mas dando nascimento a seríssimas distorções no campo da distribuição da renda nacional e gerando, além disso, grande força aos setores financeiros, em detrimento dos demais, quais sejam indústria, comércio e serviços.320 Nesse diapasão, um Banco Central autônomo configura-se como fator de impedimento da prática de políticas de falso desenvolvimento, a cargo do governo, podendo e devendo contrariar medidas em tal sentido e adotar metas não geradoras da descontrolada emissão monetária. As subseções a seguir trazem atribuições do BACEN, dentro da regulação econômica, que contribuem para o desenvolvimento econômico do país. 3.10.1 Estabilidade de preços Não se pode afirmar qual foi e quando surgiu a primeira moeda. Sabe-se que surgiu na Antiguidade e que a sua utilidade foi percebida rapidamente. Na verdade, 318 Banco Central e regulação bancária, p. 23. DAVIES, Howard. A independência dos Bancos Centrais. Valor, São Paulo, 28 ago. 2015, p. A15. 320 Bancos Centrais no direito comparado: o Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (o regime vigente e as propostas de reformulação), p. 31-32. 319 140 surgiram alguns bens que, por terem aceitação geral, passaram a ser usados como moeda. Segundo Leandro Amaral Matta, os metais preciosos tiveram uma aceitação geral e passaram a se sobressair, mas, como era preciso a pesagem para se determinar o seu valor, precisou-se superar esse problema com as cunhagens, por meio das quais se imprimia na moeda uma figura para mostrar o seu valor.321 Matta salienta que, a partir daí, surgiu um novo problema, a recunhagem: quando um governante necessitava de dinheiro para pagar suas contas, aproveitava uma efeméride qualquer para retirar de circulação as moedas existentes e lançar outras com nova efígie. Entretanto, como as recunhagens tinham o objetivo de financiar o Tesouro Real, de cada 10 moedas antigas retiradas, eram lançadas 11 novas, ficando uma para o soberano.322 Normalmente, o resultado dessa operação era a inflação, pois, para a mesma quantidade de bens existentes, havia agora uma maior quantidade de moeda, acarretando acréscimo na demanda e elevação dos preços. Mario Henrique Simonsen e Rubens Cysne acrescentam que, no processo de evolução da moeda, destaca-se, ainda, o papel-moeda e a moeda escritural.323 O papel-moeda surgiu com o natural desenvolvimento econômico, passando por três etapas: inicialmente como certificado de depósito dos bancos comerciais; em uma segunda etapa, como certificado transferível de depósito; e, finalmente, como certificado inconversível, na forma do papel-moeda. Nesse momento, a existência do papel-moeda representa uma mudança importante, pois a moeda passa a valer não por sua utilidade intrínseca, mas por sua capacidade de adquirir bens e serviços. Quanto à moeda escritural, ela teve origem com o desenvolvimento dos bancos comerciais. Especificamente, é representada pelos depósitos bancários à vista, que possuem liquidez equivalente à moeda legal. Eduardo Lundberg ressalta que a moeda, mesmo atualmente, cumpre não só as tradicionais funções de meio de troca, de unidade de conta das transações e de reserva de valor, mas também, pelo seu preço (juros) e por sua estabilidade interna (inflação/deflação) e externa (câmbio), influencia e serve de referência importante para avaliar as condições e as perspectivas econômicas do país que a emite. A 321 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 21. 322 Ibidem, loc. cit. 323 Macroeconomia. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1992 apud Ibidem, p. 22. 141 evolução dos mercados monetários começa pelo sistema de troca direta, pela busca de uma unidade de troca capaz de facilitar as relações comerciais, servindo como referência de valor para as transações – a moeda.324 Segundo Regina Maria Arruda Bastos Machado, o uso generalizado da moeda, dada a confiança generalizada em sua plena conversibilidade, abriu caminho para as primeiras emissões de certificados ou notas bancárias desprovidas de encaixe metálico, denominadas papel-moeda. A partir de então, não mais existiam plenas garantias de conversibilidade, e, desse modo, se as casas bancárias não agissem com prudência, evitando o excesso de emissões, todo o sistema bancário desmoronaria. Dessa constatação, surgiu um dos motivos que levaram à criação dos primeiros Bancos Centrais, com o dever de centralizar a emissão da moeda.325 A inflação trata-se de uma mazela para os Estados, podendo-se constituir em uma enfermidade crônica. Ela pode ser entendida sob vários critérios, entre os quais se destacam a emissão monetária, a mudança de preços e o crédito bancário, resultando em uma grande incerteza para o futuro de um país.326 A inflação se tornou um problema bastante característico na economia brasileira, e, em particular, na década de 1950 e início dos anos de 1960, a principal fonte de inflação era déficit do Tesouro, lastreado pela necessidade do governo em suprir a infraestrutura adequada de transportes, energia, saneamento etc., para fazer face ao desenvolvimento acelerado da época. André Franco Montoro Filho et al. explicam que, como o governo não podia elevar os impostos, já bastante excessivos, optou pelas emissões de dinheiro, constituindo uma típica inflação de demanda. Quanto mais dinheiro corria na economia, maiores eram as compras, em um momento em que a economia ainda não estava preparada para produzir um volume correspondente ao do aumento de procura.327 A partir de 1964, o governo brasileiro passou a adotar medidas para a contenção da escalada inflacionária. Em um primeiro momento, com o chamado 324 Histórico e organização de Bancos Centrais. Rio de Janeiro: BACEN/CFS, 1993 apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 22. 325 Bancos Centrais: Banco Central do Brasil. Rio de Janeiro: BACEN/CFP, 1993 apud Ibidem, p. 23. 326 MACHADO, Regina Maria Arruda Bastos. Bancos Centrais: Banco Central do Brasil. Rio de Janeiro: BACEN/CFP, 1993 apud MATTA, Leandro Amaral, op. cit., p. 22. 327 Manual de economia. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 19. 142 tratamento de choque, por meio de uma rígida política monetária, fiscal e salarial, passando por uma política gradualista, correspondendo ao combate por etapas planejadas. A estratégia adotada pelo governo, ao longo da década de 1970, foi de utilização das autoridades monetárias como bancos de fomento, no processo de desenvolvimento econômico, como forma de atender à meta de crescimento com endividamento. Grandes volumes de recursos eram levantados sem elevação na carga tributária, ou seja, sem desestabilizar o regime vigente.328 Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti reforçam a questão, afirmando que a inflação brasileira era provocada pela combinação de déficits públicos elevados, financiados predominantemente com senhoriagens; indexação generalizada de preços e salários; e passividade monetária. E essa passividade era gerada pelo procedimento do BACEN de operar fixando a taxa real de câmbio.329 A autoridade fiscal primeiro decidia o nível dos gastos, para depois buscar os recursos, e, nesse sentido, os procedimentos seguidos pelo BACEN garantiam o necessário financiamento inflacionário. O Tesouro somente poderia financiar o déficit emitindo dívida pública, mas, devido às regras operacionais do BACEN, ele, de fato, o fazia com expansão monetária. Conforme Rosa Fontes e Marcelo Arbex, ao longo do ano de 1993, o principal instrumento de política econômica utilizado para conter essa escalada de preços foi a taxa overnight,330 principal sinalizador de política monetária do governo e o referencial diário da taxa primária de juros do mercado, que fechou o ano 22% acima da inflação. Resultado fortemente influenciado pelas taxas de juros de final de ano, quando o BACEN foi obrigado a tornar a política monetária ainda mais ativa, no intuito de conter o recrudescimento inflacionário causado pelas pressões de demanda.331 328 MONTORO FILHO, André Franco et aI., Manual de economia, p. 19. Inflação e estabilização: algumas lições da experiência brasileira. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999, p. 26. 330 Segundo Maura Montella, as operações overnight foram aplicações de curtíssimos prazos que rendiam juros da noite para o dia. Esse tipo de aplicação costumava ser mais procurado quando a inflação era tão alta que o poder de compra do dinheiro chegava a ser corroído em poucas horas. Cf. Descomplicando a economia: 305 perguntas e respostas. São Paulo: Clube de Autores, 2013, p. 91. 331 Credibilidade das políticas econômicas no Brasil: uma análise empírica do período 1991-1998. Revista de Economia Aplicada, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 1-115, jan./mar. 1999, p. 40. 329 143 O mecanismo operacional do BACEN, no período pré-Real, consistia basicamente na fixação do patamar de juros em um nível igual à taxa esperada de inflação para o próximo mês, acrescida da taxa real de juros que se objetivava praticar. As autoridades monetárias fixavam a taxa real de juros no nível mínimo necessário para garantir a demanda por títulos públicos, evitando a fuga maciça de recursos para ativos financeiros estrangeiros. O objetivo não era reduzir significativamente a inflação, mas somente evitar a hiperinflação.332 Em 1994, o Plano Real, segundo entendimento de Pastore e Pinotti, eliminou a indexação quase que instantaneamente. A taxa cambial passou a funcionar como uma âncora monetária a partir do momento em que o BACEN adotou o regime de crawlingpeg, alterando os regimes monetário e cambial, entre março e junho de 1994, na fase que antecedeu a reforma monetária. Foram separadas duas funções da moeda, a de unidade de conta e a de meio de pagamento. A de unidade de conta foi assumida por um novo índice (baseado em três índices de preços): a unidade de reajuste de valores (URV).333 A moeda corrente do país, o cruzeiro real, manteve a função de meio de pagamento. Pastore e Pinotti acrescentam que todos os preços, os valores nominais de contratos e a taxa de câmbio passaram a ser reajustados diariamente pela URV. Ocasião em que a adesão voluntária aos reajustes pela URV havia atingido grande abrangência.334 Para Leandro Amaral Matta, a reunificação eliminou a indexação simultaneamente em todos os preços, nos contratos e na taxa de câmbio, tratandose de um artifício que permitiu o declínio da taxa de inflação de forma imediata.335 Já Lourdes Sola et al. entendem que o Plano Real interrompeu a renovação de um ciclo hiperinflacionário, combinado com a expansão da demanda e o crescimento do PIB, dando origem a um excessivo otimismo. Com a crise mexicana de dezembro de 1994, evidenciou-se a contrapartida do uso da âncora cambial, ainda que flexível, induzindo ao déficit em conta corrente.336 332 FONTES, Rosa; ARBEX, Marcelo A. Credibilidade das políticas econômicas no Brasil: uma análise empírica do período 1991-1998. Revista de Economia Aplicada, p. 40. 333 Inflação e estabilização: algumas lições da experiência brasileira, p. 10-19. 334 Ibidem, loc. cit. 335 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 29. 336 Banco Central, autoridade política e democratização, p.104. 144 As medidas adotadas nos quatro anos de vigência do referido programa antiinflacionário, no âmbito das políticas monetária e cambial, contribuíram para o alcance e a consolidação da estabilização de preços. Vale notar que dois episódios evidenciaram a suscetibilidade da economia brasileira, dificultando a conduta posterior da política macroeconômica: a crise asiática de 1997 e a moratória da Rússia em 1998. Tais episódios provocaram uma crescente fuga de capitais do país e, consequentemente, uma redução das reservas cambiais.337 A perda de credibilidade gerada por esse cenário levou novamente o governo a utilizar a política monetária restritiva como forma de convencer o público, interno e externo, do seu compromisso com a estabilização macroeconômica. Não foram adotadas modificações na área cambial, mantendo-se a regra de não desvalorizações, tendo o governo optado por uma elevação da taxa de juros. O Banco Central, como meio de preservar a estabilidade do mercado, precavendo-se, inclusive, de uma eventual corrida dos bancos, e também como meio de executar sua política monetária, determina que parcela dos valores detidos pelos bancos comerciais, como resultado das atividades de intermediação financeira que realizam, seja mantida em seu poder a título de reserva compulsória, o que interfere diretamente no efeito multiplicador dos depósitos. Assim, se o Banco Central aumentar ou diminuir o volume de reservas compulsórias, automaticamente diminuirá ou expandirá a quantidade de moeda no mercado e, consequentemente, de crédito. 3.10.2 Estabilização da moeda O principal papel de um Banco Central é zelar pela estabilidade da moeda, o que significa manter a inflação tão baixa que faça com que os consumidores aceitem reter a moeda sem percepção de perda significativa do seu poder de compra. Segundo Antonio Delfim Netto, até a década de 1980, a política econômica era basicamente entendida como um problema mecânico de controle. Existiam os objetivos da política econômica – crescimento econômico, estabilidade dos preços e 337 MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 30. 145 equilíbrio externo – e a autoridade manejava discricionariamente os instrumentos – política fiscal, monetária, cambial etc. –, de forma a atingi-los.338 Atualmente, a política econômica monetária mudou, tratando-se de um jogo entre a autoridade e os agentes, em que a primeira deve dizer clara e honestamente o que pretende, e os segundos, se acreditarem nela, aceitam o objetivo e entendem como irá atingi-lo. Para o referido autor, o esperado de um sistema de metas inflacionárias é a baixa da inflação e a pequena volatilidade, ajudando a acelerar o crescimento econômico, permitindo uma melhor alocação dos fatores de produção, uma escolha mais adequada dos investimentos e, consequentemente, um aumento da produtividade.339 Um dos problemas que se colocam para acompanhar o desenrolar da inflação consiste em estabelecer um core, ou seja, um “âmago da inflação”, que seja relativamente estável e capaz de distinguir as perturbações produzidas por efeitos transitórios sobre os preços (quebra de safra, choque de preços da energia, aumento de impostos e de tarifas alfandegárias ou públicas) daquelas que resultam de pressões estruturais de oferta e procura que podem ser influenciadas pela política monetária.340 No entender de Arnaldo Galvão, tanto as perturbações produzidas por efeitos transitórios quanto as que resultam de pressões estruturais de oferta e procura são acompanhadas pelo BACEN, na análise de suas metas inflacionárias. Alguns aumentos de preços são provocados por fatores temporários, não fazendo sentido o BACEN elevar a taxa básica de juros como consequência dessas situações, uma vez que o aumento de juros desacelera a economia e provoca elevação do desemprego.341 Galvão ainda atenta que o Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) é utilizado pelo BACEN para o acompanhamento dos objetivos estabelecidos no sistema de metas inflacionárias, balizando a política monetária. O índice mede as variações de preços ao consumidor ocorridas em regiões metropolitanas, como Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, 338 Sobre as metas inflacionárias. Revista de Economia Aplicada, São Paulo, v. 3, n. 3, jul./set. 1999 apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 38. 339 Op. cit., p. 30. 340 Sobre as metas inflacionárias. Revista de Economia Aplicada apud Ibidem, loc. cit. 341 Política econômica: meta de inflação do BC. Valor Econômico, São Paulo, 8 abr. 2002 apud MATTA, Leandro Amaral, op. cit., p. 38. 146 Curitiba, Porto Alegre, Brasília e Goiânia, refletindo a variação de preços das cestas de consumo de todas as famílias que recebem aproximadamente entre 1 e 40 salários mínimos ao mês.342 Para Vera Saavedra Durão, o atual sistema de metas inflacionárias utilizado pelo BACEN tem tolerância de dois pontos percentuais para baixo e para cima, e os preços administrados representam 30% do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Em julho de 2001, o Comitê de Política Monetária decidiu que a definição de preços administrados passaria a incluir um conjunto ampliado de itens com peso de 30,7% no INPC, e esse conjunto é integrado por eletricidade, gasolina, telefone fixo, ônibus urbano, plano de saúde, água e esgoto e gás de botijão etc.343 As metas inflacionárias objetivam a estabilização das expectativas inflacionárias e a construção de um mecanismo de coordenação dos preços. Com a manipulação da taxa de juros nominal de curto prazo – que é variável sob controle do BACEN –, espera-se influenciar a taxa de juros real de longo prazo e a taxa de câmbio real, para controlar a demanda. O núcleo de inflação, ou core inflation, é imune aos efeitos primários de oferta. Esse é um bom medidor de preços, porque registra somente os efeitos secundários das variações de preços, coincidindo com a política adotada pelas atas do Comitê de Política Monetária no mês de abril de 2002, não levando em conta na trajetória da política monetária os aumentos do petróleo, ou seja, os impactos primários de oferta.344 O respeito às metas inflacionárias, de fato, é a essência do regime, e a tentativa contínua de sua observância é a chave da credibilidade do BACEN, mas tais metas não são um fim em si mesmas, e sim um instrumento para alcançar a estabilidade. No entanto, nessa linha de pensamento, deve-se observar que a condução do BACEN rumo às metas inflacionárias é vulnerável quando sobrevêm choques que estão além do alcance da política monetária, valendo a representatividade do contexto econômico adotado pelo Executivo. 342 Política econômica: meta de inflação do BC. Valor Econômico, São Paulo, 8 abr. 2002 apud MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 40. 343 O core inflation do BC. Valor Econômico, São Paulo, 10 abr. 2002 apud Ibidem, loc. cit. 344 MATTA, Leandro Amaral, op. cit., p. 41. 147 Para Leandro Amaral Matta, a Nova Zelândia tornou-se um modelo de país que mantém a estabilidade de sua moeda. Precursor no uso da conduta de meta de inflação, viabilizando mudanças quando necessário, mostrou que a flexibilidade representativa do sistema não o tornou estático.345 No Brasil, já existe um consenso de que, a partir da introdução do regime de metas inflacionárias em 1999, houve uma satisfatória autonomia operacional do BACEN na condução da política monetária. O BACEN pôde, nesse período, ajustar a sua política monetária de forma a perseguir o seu objetivo principal de meta inflacionária, mostrando que essa autonomia pode ser benéfica do ponto de vista econômico. É importante destacar, contudo, que existem mais atribuições ao BACEN, além da busca pela estabilidade da moeda, tratando-se do zelo pela liquidez e pela solvência das instituições financeiras, e, também, da condição de emprestador de última instância no âmbito do mercado financeiro doméstico, além da busca do pleno emprego e melhor distribuição de renda. A representatividade de um BACEN com autonomia operacional já foi alcançada em outros países. No caso brasileiro, a representatividade caminha na teoria, embora efetivamente, na prática, essa condução já se estabeleça, necessitando avançar mais. A autonomia no Brasil, em um primeiro momento, se contrapõe às questões políticas que os legisladores desejam conduzir.346 A conquista da credibilidade se constitui como fator preponderante na condução de qualquer política de médio e longo prazo. Assim, com o distanciamento da interferência política, a atuação do BACEN se prolongará com efeitos no gerenciamento da moeda brasileira. Para Alan Blinder, instituir concomitantemente o conceito de credibilidade ao BACEN é um fator relevante, visto que, quando se investe nesse aspecto, é possível alcançar mais vantagens em curto prazo.347 Tome-se, como exemplo, uma situação em que, em um dado momento, o BACEN queira abandonar uma meta inflacionária de crescimento monetário, sem que se pense que mudaram sua estratégia de longo prazo. Com credibilidade, terá margem suficiente para atuar. 345 Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 42. 346 Ibidem, p. 43. 347 Bancos Centrais: teoria e prática, p. 82. 148 A adoção do BACEN com autonomia facilitaria a execução de suas estratégias de longo prazo, no entanto, a destreza operacional da instituição colidiria, muitas vezes, com medidas econômicas de caráter imediato do governo, constituindo um dos dilemas com que o BACEN se depararia. Em caso especial, o dilema é ter de optar entre as medidas econômicas capazes de favorecer a estabilidade de preços em longo prazo e os efeitos negativos dessas medidas sobre o crescimento econômico em curto prazo. A autonomia do BACEN é desejável para funcionar como mecanismo preventivo, após estabilizações bem-sucedidas, vide alguns exemplos de países que optaram por esse sistema operacional. Um Banco Central autônomo é um instrumento importante para a estabilidade. Ele será tanto mais eficiente quanto mais responsável for a política fiscal. Sua efetivação envolve a capacidade de autoajuste da economia e a concepção de moeda até a coordenação entre políticas econômicas e a interação economia-política.348 Para António José Avelãs Nunes, é relevante transitar, neste momento, pelo real significado da palavra autonomia operacional da autoridade monetária quando são estudadas as suas dimensões. Podendo ser independente, mas devendo haver discussão sobre a necessidade da existência de limites para a utilização dos instrumentos monetários ou de quaisquer outros instrumentos.349 A autonomia pode ser acompanhada da imposição de normas legais que impeçam o financiamento monetário de gastos públicos, como, por exemplo, restrições ao uso dos recursos do BACEN pelo governo, mas, fundamentalmente, confere ao BACEN um poder discricionário quase absoluto. Segundo Matta, para que o BACEN possa perseguir o seu objetivo, qual seja o de assegurar a estabilidade de preços e o poder de compra da moeda, o processo institucional de determinação da política monetária e o monitoramento do seu desempenho devem impedir a sua sujeição às pressões do governo. Ou seja, deve haver autonomia operacional.350 348 MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 45. 349 Nota sobre a independência dos Bancos Centrais. Revista de Direito Mercantil: Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, c. 103, 1996 apud Ibidem, p. 43. 350 Op. cit., p. 47. 149 A autonomia operacional, por sua vez, consiste na existência de um orçamento próprio para o BACEN, com incorporação dos resultados operacionais da instituição no seu próprio patrimônio. Esse ponto surge também em oposição à transferência de resultados ao Tesouro, como contrapartida da receita de senhoriagem, que é criticada por alguns como mantenedora do financiamento monetário à política fiscal. O BACEN não deve ficar ao sabor do ciclo político ou permitir que a gestão da moeda obedeça aos desejos e impulsos das mudanças do governo. Deve-se ressaltar a importância do controle político da instituição. Todo o processo operacional do BACEN deve ser transparente tanto para o governo quanto para seus eleitores. Do contrário, a democracia perde sua razão, dado o predomínio do mercado financeiro em relação aos demais setores econômicos da sociedade.351 O princípio da autonomia é basilar para que o BACEN possa cumprir o seu papel. Assim, além de manter personalidade jurídica própria, a instituição pode controlar as suas medidas de gestão administrativa, sem a ingerência de medidas políticas. Do ponto de vista técnico, a autonomia do Banco Central conduz a uma grande dependência de personalidades e a uma ênfase indevida no ponto de vista dos banqueiros, sugerindo a adoção de regras fixas de conduta para as autoridades monetárias, dando ao público maior controle sobre estas, por intermédio da autoridade política, sem submeter a política monetária às interferências diárias dos políticos.352 Em contraste a isso, o estabelecimento de metas explícitas de inflação ancora as expectativas de preço de maneira muito mais direta, pois combina um regime transparente e baseado em regras com a garantia de alguma liberdade de ação tática ao BACEN. 351 MATTA, Leandro Amaral, Em busca da autonomia operacional do Banco Central do Brasil como instrumento de estabilidade da moeda, p. 47. 352 As finanças públicas brasileiras antes de 1980. [S.l.], 2000. Disponível em: <http://www.economiabr.net/economia/7_financas-antes80.html>. Acesso em: 26 nov. 2015 apud Ibidem, p. 49. 150 3.10.3 Pleno emprego Antes de se falar em pleno emprego propriamente dito, se faz necessário discutir, nesta parte do trabalho, o entendimento que foi dado, ao longo da história, às questões pertinentes ao trabalho, à ocupação e ao emprego, procurando esclarecer o conceito que se deu a cada um deles nos diferentes momentos da existência humana. 3.10.3.1 Trabalho, ocupação e emprego O objetivo econômico de qualquer nação, como de qualquer indivíduo, é alcançar bons resultados. Todo progresso econômico da humanidade consiste em obter maior produção com o mesmo trabalho. Verificou-se que, nos últimos, as sociedades industrializadas conviveram com crescimento econômico, progresso material, avanço da ciência e da tecnologia, e melhoria geral das condições de vida. Porém, esse desenvolvimento gerou muitos empregos, mas as crises, principalmente a imobiliária nos Estados Unidos, e agora a chinesa, deixaram os governos ainda mais endividados, e as economias estão cada vez mais longe de proporcionarem condições de emprego àqueles que já estão ou acabaram de entrar no mercado de trabalho. Segundo Aimoré Woleck, paradoxalmente, esses fatos estão acontecendo em um período de crescimento e de elevada produtividade. Por outro lado, são poucos os países que fogem dessa condição crítica, pois quase todos enfrentam a crise do desemprego e a degradação social por ela causada. O declínio do emprego retrata, portanto, a possibilidade objetiva de um cenário social caótico nos países em que ele se torna agudo, a não ser que surjam alternativas que permitam às pessoas o exercício do trabalho autônomo e outras formas de ocupação que lhes propiciem meios de vida. Essas foram as alternativas consagradas ao longo da história, uma vez que o emprego é um fenômeno da Modernidade.353 Urge notar que, após a década de 1970, os países cêntricos experimentaram um grande desemprego, que afetou também o Brasil. 353 O trabalho, a ocupação e o emprego: uma perspectiva histórica. Revista de Divulgação Técnicocientífica do Instituto Catarinense de Pós-Graduação, Vale do Itajaí, p. 33-39, 2002, passim. Disponível em: <http://www.posuniasselvi.com.br/artigos/rev01-05.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2016. 151 Marcio Pochmann salienta que, por sofrer diversas influências, como o processo de globalização produtiva e financeira, a redefinição do papel do Estado na economia e o novo ciclo de inovações tecnológicas, o nível de qualidade de emprego relaciona-se, no mundo do trabalho, com a precarização das condições e relações de emprego e a permanência de elevadas taxas de desemprego, não devendo ser desassociado do movimento geral do capitalismo contemporâneo neste século.354 Em 1994, diante da estabilização da moeda, o Brasil se inseriu na nova divisão internacional do trabalho, contudo, o tímido crescimento econômico comprometeu a geração de empregos, o que resultou na ampliação do desemprego e dos postos de trabalho informal. Do ano 2000 até o atual momento, o processo de reestruturação produtiva combinou a ampliação do saldo comercial com a elevação do nível geral de emprego. No entanto, as crises dos últimos anos citadas acima aumentaram o desemprego no Brasil, com a economia mergulhada numa grande recessão, a qual se revela como a maior dos últimos 25 anos.355 3.10.3.1.1 Trabalho Na Antiguidade, o trabalho era entendido como a atividade dos que haviam perdido a liberdade. O seu significado confundia-se com o de sofrimento ou infortúnio. Isso porque o homem, no exercício do trabalho, sofre ao vacilar sob um fardo. O fardo pode ser invisível, pois, na verdade, é o fardo social da falta de independência e de liberdade, como entende Robert Kurz.356 Nas palavras de Aimoré Woleck: Os gregos utilizavam duas palavras para designar trabalho, a palavra ponos, que faz referência a esforço e à penalidade, e ergon, que designa criação, obra de arte. Isso estabelece a diferença entre trabalhar no sentido de penar, ponein, e trabalhar no sentido de criar, ergazomai. Parece que a contradição “trabalho-ponos” e “trabalho-ergon” continua central na 354 O emprego no desenvolvimento da nação, p. 10. Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, o mercado de trabalho brasileiro passou por uma significativa piora em 2015, com reflexos sobre o emprego, a renda e a formalização do trabalho. Cf. PAMPLONA, Nicola. Taxa de desemprego do Brasil cresce para 8,5% na média de 2015. Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 mar. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/03/1750059-taxa-de-desemprego-do-brasil-crescepara-85-na-media-de-2015.shtml>. Acesso em: 20 mar. 2015. 356 A origem destrutiva do capitalismo: modernidade econômica encontra suas origens no armamentismo militar. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 mar. 1997, p. 3, c. 5. 355 152 concepção moderna de trabalho. Pode-se observar em diferentes línguas (grego, latim, francês, alemão, russo, português) que o termo trabalho tem, em sua raiz, significados: esforço, fardo, sofrimento e criação, obra de arte, 357 recriação. O referido autor ainda salienta que é por meio do trabalho que o homem cria coisas a partir do que extrai da natureza, convertendo o mundo num espaço de objetos partilhados.358 O trabalho, na Antiguidade, não se desvinculava do entendimento da escravatura, que foi um recurso usado para excluí-lo da condição de vida do homem. Essa exclusão só podia ser viabilizada pela institucionalização da escravatura, dadas a capacidade de produção e a concepção de vida e de sociedade vivenciadas no período. Já no final da Idade Média, expressava-se o trabalho com o sentido positivo que passou a incorporar: era encarado como uma ação autocriadora, e o homem, em seu trabalho, como senhor de si e da natureza. Deu-se valorização positiva ao trabalho, considerado, então, como um espaço de aplicação das capacidades humanas.359 No século XVIII, com a ascensão da burguesia, o desenvolvimento das fontes produtivas, a transformação da natureza e a evolução da técnica e da ciência, enfatizou-se a condenação do ócio, sacralizando-se o trabalho e a produtividade. Na Idade Moderna, passou-se a fazer diferenciação entre o trabalho qualificado e o não qualificado, entre o produtivo e o não produtivo, aprofundando-se a distinção entre o trabalho manual e o intelectual. Essas concepções diferenciadas não deixam de ser o entendimento subjacente à distinção fundamental entre labor e trabalho do período helênico. O que ocorreu foi o deslocamento do labor, que possui, tanto na esfera pública como na esfera privada, uma produtividade própria, por mais fúteis ou pouco duráveis que sejam os seus produtos e seu consumo. Nessa era, o trabalho tornouse uma atividade compulsiva e incessante; a servidão tornou-se liberdade, e a liberdade, servidão.360 O trabalho é a categoria que funda o desenvolvimento do mundo dos homens como uma esfera distinta da natureza; não é apenas a relação dos homens entre si no contexto da reprodução social, visto que o seu desenvolvimento exige o 357 O trabalho, a ocupação e o emprego: uma perspectiva histórica. Revista de Divulgação Técnicocientífica do Instituto Catarinense de Pós-Graduação, p. 3. 358 Ibidem, loc. cit. 359 Ibidem, p. 4. 360 KURZ, Robert, A origem destrutiva do capitalismo: modernidade econômica encontra suas origens no armamentismo militar. Folha de S. Paulo, p. 3, c. 5. 153 desenvolvimento concomitante das relações sociais. O modo antigo de produção baseia-se no trabalho do escravo; o feudal, no trabalho dos servos da gleba; o capitalista, no trabalho do empregado assalariado.361 Tecidas essas considerações, relevante se faz discorrer um pouco sobre o trabalho na Constituição Federal de 1988. O trabalho é inerente à condição humana, que necessita dele para a subsistência. Desse fato fundamental, é possível induzir, de imediato, a necessária correlação dos direitos fundamentais dele decorrentes. A necessidade histórica do direito ao trabalho, como garantia da efetividade dos direitos fundamentais individuais, afirma-se na proteção constitucional. Pois a Constituição prescreve ordens de proteção do trabalho no Título I, nos princípios fundamentais; no Título II, no rol de direitos e garantias individuais, sociais e coletivos; no Título VII, quando trata da ordem econômica e financeira, assentada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano, em vista da garantia da existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social, por meio da busca do pleno emprego (artigo 170, caput e inciso VIII); e no Título VIII, ao cuidar da ordem social, colocada sob o primado do trabalho e os objetivos do bem-estar e da justiça social (artigo 193). Cabe ao Estado o compromisso político definitivo de proteção do direito ao trabalho. Interessa, aqui, estabelecer que o mesmo dever também cabe à sociedade. E isso decorre não só da dimensão objetiva do direito ao trabalho, obviamente de eficácia universal própria das normas jurídicas, base para a sua irradiação sobre todos os âmbitos, e, portanto, também sobre o Direito Privado.362 Robert Alexy afirma que a Constituição adotou os princípios da livre iniciativa, da liberdade individual de trabalho e da economia de mercado (artigo 1º, inciso IV; artigo 5º, inciso XIII; e artigos 170 e 173), reconhecendo aos particulares a liberdade que constitui a razão pela qual sobre o objeto do Direito do Trabalho “o Estado tem controle apenas limitado”, não lhe sendo possível, desse modo, obrigar alguém a prestar trabalho. 363 Segundo Carmén Camino, o Direito do Trabalho se materializa nos contratos de trabalho, em geral, e nos contratos de emprego. No plano das relações entre 361 WOLECK, Aimoré, O trabalho, a ocupação e o emprego: uma perspectiva histórica. Revista de Divulgação Técnico-científica do Instituto Catarinense de Pós-Graduação, p. 5-6. 362 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 101. 363 Ibidem, loc. cit. 154 empregado e empregador, a Constituição Federal, buscando alcançar um maior equilíbrio na relação contratual, tanto individual quanto coletiva, esmerou-se em determinar o denominado contrato mínimo – o que evoca a garantia do mínimo existencial –, em seus artigos 7º a 11, além de incluir, indiretamente, no artigo 114, a judicialização de outros direitos individuais, sociais e coletivos.364 3.10.3.1.2 Ocupação Para os gregos, havia as ocupações de caráter inferior e as de caráter superior. As atividades superiores estavam vinculadas à participação do homem na pólis. As ocupações eram entendidas como atividades que visavam à satisfação pessoal e eram desenvolvidas por escolha própria. O aparecimento da economia monetária acentuou a distinção entre ocupação como meio de ganhar a vida e ocupação como meio de manter o status quo. Cada sociedade, na sua dinâmica estrutural e conjuntural, cria e recria a ocupação humana. A estrutura das ocupações nas sociedades modernas é resultante do avanço e da aplicação da ciência ao processo de produção; é consequência, portanto, do desenvolvimento da tecnologia, da divisão e organização do trabalho, da expansão dos mercados e do crescimento de polos comerciais ou industriais.365 O principal uso do termo ocupação, em Ciências Sociais, segue o sentido comum, que é o de emprego, negócio ou profissão. A ocupação de uma pessoa é a espécie de trabalho feita por ela, independentemente da indústria em que esse trabalho é realizado e do status que o emprego confere ao indivíduo. Trabalho não é ocupação; todas as classes sociais detêm a sua forma de ocupação, e todas as pessoas mantêm a sua ocupação.366 A percepção do status ocupacional é mutante, acompanhando a dinâmica da sociedade e a evolução do sistema produtivo. Assim, a ocupação humana, numa dada sociedade, também leva em conta as crenças e os valores que perpassam a vida humana associada, e não é por acaso que a lógica subjacente às relações sociais reduziu e circunscreveu a ocupação ao trabalho e ao emprego na sociedade atual. 364 Direito individual do trabalho. 3. ed. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 232. WOLECK, Aimoré, O trabalho, a ocupação e o emprego: uma perspectiva histórica. Revista de Divulgação Técnico-científica do Instituto Catarinense de Pós-Graduação, p. 5. 366 Ibidem, p. 6. 365 155 3.10.3.1.3 Emprego Nas palavras de Paulo Renato Souza, a conotação moderna do termo emprego reflete a relação entre o indivíduo e a organização onde uma tarefa produtiva é realizada, pela qual aquele recebe rendimentos, e cujos bens ou serviços são passíveis de transações no mercado.367 No passado pré-industrial, antes que as fábricas transformassem o trabalho em rotina, as pessoas trabalhavam arduamente, mas não utilizavam um emprego para estruturar e conter suas atividades. Anteriormente ao século XIX, as pessoas não tinham empregos no sentido fixo e unitário; faziam serviços na forma de um fluxo constantemente mutante de tarefas. “Seus empregos não eram supridos por uma organização, mas pelas exigências de suas condições de vida, pelas exigências de um empregador e pelas coisas que precisavam ser feitas naquele momento e lugar”.368 Na sociedade centrada no mercado de hoje em dia, o emprego passa a ser o critério que define a significação social dos indivíduos. Com o estabelecimento da divisão do trabalho, o homem vive numa base de troca. Isso lhe garante, por meio do exercício do emprego, os bens e serviços de que necessita, pois recebe em troca um salário com o qual compra o que é necessário para sobreviver ou, pelo menos, o que seja possível adquirir para viver. Contudo, muitos deles, atualmente, não conseguem mais viver com dignidade com os salários que recebem. Na verdade, os empregos tornaram-se tanto comuns quanto importantes; passaram a ser, nada menos, do que o único caminho amplamente disponível para a segurança, para o sucesso e para a satisfação das necessidades de sobrevivência.369 Para a economia, como concebida em suas origens, o emprego formal é pedra angular para o seu funcionamento. Vale afirmar que não é apenas o emprego que passa por profundas transformações; como já se viu neste trabalho, a economia em si também passa. 367 O que são empregos e salários. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 26. BRIDGES, William. Mudanças nas relações de trabalho: como ser bem-sucedido em um mundo sem empregos. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 38. 369 WOLECK, Aimoré, O trabalho, a ocupação e o emprego: uma perspectiva histórica. Revista de Divulgação Técnico-científica do Instituto Catarinense de Pós-Graduação, p. 8. 368 156 Segundo Jeremy Rifkin,370 com o passar do tempo, as pessoas foram aprendendo ofícios que as tornaram detentoras de empregos, passando, a partir daí, a ser parte do tipo de força de trabalho que emergia. Dentro da lei da oferta e da procura, proporcionar-se-ia emprego a todos os indivíduos que estivessem dispostos a trabalhar. Portanto, não é de estranhar que, durante toda a Idade Moderna, as pessoas tenham sido medidas por seu valor no mercado de trabalho, uma vez que esse valor se expressava, também, no potencial de consumo que elas representavam. Agora que a mercadoria valor do trabalho humano está se tornando cada vez mais tangencial e irrelevante, em um mundo cada vez mais automatizado, novas maneiras de definir o valor humano e os relacionamentos sociais precisão ser exploradas.371 Na segunda metade do século XX, o trabalho “de massa” no mercado, ou o emprego, decresceu em praticamente todas as nações industrializadas do mundo. Máquinas inteligentes estão substituindo seres humanos em incontáveis tarefas, empurrando milhões de operários e trabalhadores de escritórios para as filas do desemprego, para as filas do auxílio-desemprego ou, ainda, para outras formas de ocupação que lhes garantam a sobrevivência. 3.10.3.2 O pleno emprego como garantia de desenvolvimento econômico e social De acordo com Marcio Pochmann, com o pleno emprego, os países cêntricos registraram um desempenho econômico satisfatório, o que significou alta taxa de crescimento do produto nacional, estabilidade monetária, melhor distribuição da renda e redução do nível de pobreza. Ao mesmo tempo, os adicionais de produtividade e os avanços decorrentes da continuada difusão do progresso técnico não foram prejudiciais à geração de emprego e à qualidade das ocupações.372 Um conjunto somado pela redistribuição do tempo de trabalho, pelo aumento dos ganhos de produtividade e pela manutenção de elevado nível da demanda 370 Segundo João Marcos Rainho, os profetas do Apocalipse do antigo mundo do pleno emprego são Jeremy Rifkin e William Bridges. Rifkin, para ele, é um dos pensadores que mais influenciaram a política americana, com a publicação do livro o “Fim dos empregos”, em que defende que as tecnologias ocupariam o lugar dos homens. Cf. Jornalismo freelance: empreendedorismo na comunicação. São Paulo: Summus, 2008, p. 33. 371 O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 41. 372 O emprego no desenvolvimento da nação. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 9. 157 agregada e, por consequência, do nível de emprego conformaram os reconhecidos anos de ouro do capitalismo. Cabem, aqui, as palavras de Jeremy Rifkin, ao dizer que, em menos de um século, o trabalho em massa será eliminado em todas as nações do mundo e o homem será substituído por máquinas inteligentes. Toda essa situação provoca sentimentos de aflição e desespero nos indivíduos. As mulheres e os homens estão preocupados com o futuro; os jovens sentem-se frustrados em relação à incerteza de suas vidas, podendo desencadear comportamentos agressivos; e os homens com mais de 60 anos de idade estão confusos e resignados frente a lembranças de um passado próspero e um futuro sombrio.373 Pochmann destaca que o aumento substancial das importações, do endividamento público e da internacionalização do parque produtivo interno contribuiu para a contenção dos empregos e, em contrapartida, para o avanço do desemprego aberto nacional.374 Isso é uma realidade instituída pelo capitalismo, onde as máquinas substituem os homens. Além disso, o trabalho, nos últimos dias, está agregado à subsistência material, que é o emprego. Por outro lado, há as permanentes mudanças nos modos da produção econômica, impostas pelo sistema neoliberal. O pleno emprego é a manutenção e geração de novos empregos, na medida em que se deseja diminuir o nível de pobreza e desigualdades na sociedade brasileira. Na visão de Anita Kon, o pleno emprego, de modo geral, pode significar que, em determinado momento, a população economicamente ativa realiza o volume de atividade máxima que é capaz de realizar. Ademais, o pleno emprego se traduz numa situação em que todo o indivíduo que se apresenta no mercado de trabalho à procura de ocupação a encontra. O conceito de pleno emprego, em Economia, tem como base uma situação em que não existe qualquer forma de desperdício, seja do capital ou do trabalho. O pleno emprego significa a utilização da capacidade máxima de produção de uma sociedade e, evidentemente, deve ser usado para elevar a qualidade de vida da população.375 373 O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho, p. 5. 374 O emprego no desenvolvimento da nação, p. 15. 375 Pleno emprego no Brasil: interpretando os conceitos e indicadores. Revista Economia & Tecnologia, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 5-22, abr./jun. 2012, p. 7-8. 158 O conceito de pleno emprego teoricamente pode ser abordado quer com base na análise neoclássica, quer na keynesiana, e ainda sob o ponto de vista da conceituação mais atualizada definida por vários países, sob a égide da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Para os neoclássicos, o conceito de pleno emprego, em Economia, tem como base o estado de equilíbrio entre a oferta e a demanda dos fatores de produção, com capacidade máxima de produção da sociedade instalada. Nessa situação, não existe desperdício, em qualquer de suas formas, nem do capital nem do trabalho, e como a oferta de trabalho era igual à demanda de trabalho, no equilíbrio não existe o fenômeno do desemprego.376 Para os neoclássicos, só existiam dois tipos de desemprego: o “friccional” e o “voluntário”, em que o volume de emprego é determinado pela oferta e demanda por trabalho a um salário de equilíbrio. O desemprego friccional ou natural ocorre em um período de tempo em que um ou mais indivíduos se desempregam de um trabalho para procurar outro, ou quando o trabalhador está em um período de transição de um trabalho para outro. Portanto, resulta da mobilidade da mão de obra. De outro lado, o desemprego voluntário designa a condição do trabalhador que não quer trabalhar a preços de mercado, ou seja, prefere não trabalhar do que receber o salário que lhe é oferecido no mercado ou está mudando de emprego. Keynes, por sua vez, tentando entender a situação de crise econômica iniciada no final da década de 1920, questiona o fato de que esta teoria não explica o chamado desemprego involuntário, quando pessoas dispostas a trabalhar pelo salário de equilíbrio não encontram emprego. Para o autor, o ciclo econômico não é autoregulado como salientam os neoclássicos, uma vez que é determinado pelo “espírito animal” (animal spirit no original em inglês) dos empresários. Conclui que os salários não são os determinantes do emprego e que a rigidez dos salários não pode ser a responsável pelo desemprego involuntário, assim como a flexibilidade dos mesmos não garante a automaticidade da economia à posição de pleno emprego, o que quer dizer que a posição “normal” de uma economia capitalista corresponde ao ponto em que prevalece o equilíbrio 377 com desemprego involuntário. Dessa forma, Keynes considera a incapacidade do sistema capitalista conseguir empregar todos os que querem trabalhar, pois podem acontecer situações na economia em que há um excesso de poupança, em relação ao investimento, e, consequentemente, a demanda efetiva se mantém abaixo da oferta, tendo como resultado uma situação de redução do emprego até um ponto de equilíbrio em que a poupança e o investimento se igualem. 378 Keynes prossegue com a ideia de que, para a obtenção do pleno emprego, nessas condições, o Estado deveria intervir, imprimindo moeda e aumentando a demanda efetiva por meio de déficits governamentais. Sua conclusão lógica era de 376 KON, Anita, Pleno emprego no Brasil: interpretando os conceitos e indicadores. Revista Economia & Tecnologia, p. 8. 377 Ibidem, loc. cit. 378 Ibidem, p. 9. 159 que, quanto maior fosse a produção da economia, maior seria o volume de emprego demandado, e, portanto, o volume de emprego oferecido num país dependia do volume de sua produção, que é determinada pela demanda efetiva.379 Vale acrescentar que E. F. Costa entende por pleno emprego aquele estado em que o número de indivíduos efetivamente empregados é igual ao número de indivíduos que desejam estar ocupados, menos o contingente de desemprego, supondo-se que não existem vagas para serem ocupadas.380 O pleno emprego está associado à utilização da capacidade produtiva instalada, ao aquecimento da economia e a uma atitude proativa do governo na implementação de medidas que favoreçam o bom desempenho da economia e permitam a geração de empregos. Segundo a OIT, o pleno emprego é fundamental para a erradicação da pobreza e da fome. A população tem direito ao pleno emprego e cabe à sociedade estabelecer as leis e as normas que possibilitem a utilização integral da oferta de trabalho, considerando que o pleno emprego é uma condição necessária para a restauração da dignidade dos trabalhadores e uma condição essencial para a estabilidade e o progresso da sociedade. Anita Kon, ao citar a OIT, diz que a organização busca melhores condições de vida para os indivíduos, o que implica a existência de: (i) oportunidades para encontrar um emprego produtivo com rendimento justo, que garanta aos trabalhadores e suas famílias desfrutar uma qualidade de vida decente; (ii) liberdade para a escolha do trabalho e a livre participação em atividades sindicais; (iii) condições de tratamento justo aos trabalhadores, sem discriminação, de modo a que sejam capazes de conciliar trabalho e responsabilidades familiares; (iv) condições de segurança para proteger a saúde dos trabalhadores e proporcionar-lhes a proteção social adequada; e (v) condições de dignidade humana para que todos os trabalhadores sejam tratados com respeito e possam participar na tomada de decisão sobre suas condições de trabalho.381 Não há dúvidas de que as questões de políticas públicas contemporâneas requerem um tratamento especial pela visão microeconômica da Macroeconomia. 379 KON, Anita, Pleno emprego no Brasil: interpretando os conceitos e indicadores. Revista Economia & Tecnologia, p. 9. 380 Comentários breves à Constituição Federal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989, p. 242. 381 Op. cit., p. 10. 160 Tão relevante quanto definir o conceito de pleno emprego a ser tomado como base, é entender o que representa o pleno emprego para a economia. Kon assevera que a população ativa do Brasil inclui indivíduos alocados em situações favoráveis de trabalho e remuneração e protegidos por contratos registrados em proporção inferior do que a proporção de indivíduos em condições insatisfatórias de trabalho e de baixa remuneração. Trabalho precário e diferenças regionais impedem o Brasil de ser considerado um país com pleno emprego no sentido de possibilidade de elevação do nível de bem-estar da população.382 Verifica-se que o princípio do pleno emprego requer do Estado uma série de políticas públicas voltadas à geração de emprego. Assim, o Estado deixa de ser um agente econômico e passa a fomentar políticas, regulando a atividade empresarial e impedindo o abuso de poder econômico. 3.10.3.3 O princípio da busca do pleno emprego no Brasil Nas palavras de Leonardo Vizeu Figueiredo, o subtema acima se refere à expansão das oportunidades de emprego produtivo, conforme positivado na Carta Política de 1967, que tem por fim garantir que a população economicamente ativa esteja exercendo atividades geradoras de renda, tanto para si quanto para o país.383 O autor supracitado ainda ressalta que, quanto maior o número de cidadãos economicamente ativos laborando de forma rentável, maior será a renda per capita do país e maior será o volume de arrecadação com tributos, diminuindo-se os gastos com despesas oriundas da Seguridade Social, que poderá focar seus esforços e recursos, notadamente para previdência e assistência, tão somente naquele que é, de fato, necessitado.384 Cuida-se da maximização de resultados no que tange ao uso do fator da mão de obra, dentro dos parâmetros estabelecidos pelas normas jurídicas legisladas pelo Estado. Cumpre destacar que, dessa forma, busca-se, por corolário, garantir-se a 382 Pleno emprego no Brasil: interpretando os conceitos e indicadores. Revista Economia & Tecnologia, p. 10. 383 Lições de direito econômico, p. 79. 384 Ibidem, loc. cit. 161 maximização de resultados por parte do exercício das atribuições sociais do Poder Público.385 O Estado, em qualquer esfera, deve cumprir os mandamentos legais, prestar contas à sociedade e também gerar trabalho, como prevê o artigo 170 da Constituição Federal de 1988: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VIII busca do pleno emprego. O legislador constituinte ao colocar o pleno emprego como um princípio estava indicando uma direção a ser seguida ao gestor de política econômica. Entendimento diferente desse dispositivo é o mesmo que interpretá-lo como letra morta, o que não seria o caso por tratar386 se de um princípio norteador da ordem econômica. Para a nação, quanto mais pessoas estiverem ativas trabalhando, gerando rendas, maior será o volume de arrecadação do Poder Público, via receitas derivadas, sendo menores os gastos com o setor de Seguridade Social, uma vez que menos cidadãos vão ter que se valer do assistencialismo social, por não necessitarem de auxílios externos para o seu sustento e o de sua família. Diante dessa conjuntura, Figueiredo entende que o Estado pode focar seus gastos em atividades promotoras de desenvolvimento tecnológico, pesquisa científica, cultura, dentre outras.387 Todavia, a contrario sensu, quanto menor o número de indivíduos exercendo atividades produtivas e geradoras de renda, menor será o volume de arrecadação do Poder Público, sendo maiores os gastos com a Seguridade Social para atender à demanda dos necessitados e hipossuficientes que não conseguem, por si só, adquirir o conjunto mínimo de bens para a sua subsistência digna, fato que, tão somente, contribui para o aumento do déficit público. Observe-se que, para tanto, o Estado deve adotar políticas anti-inflacionárias, com o fito de preservar o real valor dos rendimentos dos trabalhadores, mantendo seu poder aquisitivo, atuando, ainda, no sentido de garantir condições dignas de trabalho. 385 Cabe ao Poder Público, também, fazer valer o que se vê na Constituição Federal de 1988, em que os direitos humanos são acolhidos como princípios e garantias. No que tange ao trabalho, a Carta Magna de 1988 o reconhece como um direito social, pautado em um Estado Democrático de Direito que tem como alicerce o que denomina de valor social do trabalho. Ademais, busca-se a redução das desigualdades sociais e o pleno emprego. Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Poder Legislativo, 1988, p. 73, art. 170. 386 Ibidem, loc. cit. 387 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu, Lições de direito econômico, p. 80. 162 CONCLUSÃO A atuação do Estado como promotor da ordem econômica é fundamental e imprescindível para o bem-estar econômico e social do país. É seu dever atuar como o formulador de políticas que visem ao desenvolvimento da nação, de acordo com os interesses da sociedade. Diante disso, a presente dissertação foi dividida em três capítulos, os quais convergiram e levaram ao entendimento de que Banco Central, como regulador da economia, pode trabalhar para o bem-estar econômico e social do Brasil. O primeiro capítulo analisou o Sistema Financeiro Nacional, revelando que a Constituição Federal de 1988 se tornou um marco divisor no Estado brasileiro, tendo sido fundamental para a definição da nova institucionalidade. Foi a partir do seu preâmbulo, que prega a prevalência dos direitos fundamentais, que os constituintes proclamaram-se reunidos para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução das controvérsias. A análise do SFN foi de salutar importância para o tema, pois as suas funções englobam controlar todas as instituições que são ligadas às atividades econômicas dentro do país, inclusive o Banco Central, que é o responsável pela produção do dinheiro que circula no território brasileiro. Ele desempenha, junto ao Conselho Monetário Nacional, um trabalho de inspeção nas instituições financeiras do país. É relevante salientar a atuação do Sistema Financeiro Nacional, mediante a atuação de seus órgãos reguladores e fiscalizadores, e das instituições operadoras, representando o âmbito mais apropriado para o Estado disciplinar, viabilizar a aplicar suas políticas econômicas. O Banco Central, por sua vez, ao conquistar, no século XX, a posição de executor da política monetária e creditícia, deve agir em consonância com os objetivos do Estado, proporcionando condições adequadas de desenvolvimento para a sociedade, pois somente assim será capaz de executar a verdadeira política monetária. Avançando no tema, nos segundo e terceiro capítulos, verificou-se que o BACEN deve agir no sentido de utilizar adequadamente os mecanismos de controle 163 e execução de política monetária e creditícia que estão à sua disposição. Para controlar a moeda, garantindo a sua estabilidade, deve contrair e expandir o crédito no mercado de forma coordenada com as políticas fiscal e cambial, ou, ainda, fazer uso do redesconto. Especificamente no capítulo 2, o Banco Central foi apresentado de forma sucinta, deixando claro que se trata de uma autarquia federal executora da política monetária, que atua com instrumentos destinados a controlar a liquidez do sistema e a quantidade de moeda em circulação compatível com a estabilidade do nível geral de preços, a dinâmica do produto e a estabilidade cambial. Restou claro que as funções do Banco Central não se limitam apenas ao crédito e ao redesconto, visto que pode também aumentar ou diminuir o volume de reservas compulsórias, automaticamente diminuindo ou expandindo a quantidade de moeda no mercado, e, consequentemente, de crédito. Um dos instrumentos poderosos do Banco Central é o open market, que serve como instrumento de atuação sobre o nível de liquidez da economia, comprando e vendendo títulos públicos da sua própria carteira, o que enseja o ajuste do saldo de reservas bancárias das instituições financeiras. Além disso, o Banco Central fixa e determina a taxa de juros para que os bancos possam obter financiamento e cobrir seus desequilíbrios de caixa, informando globalmente ao mercado qual a expressão da equivalência entre as disponibilidades monetárias e a preferência em manter a liquidez. A literatura apresentada avalia uma questão importante para que o Banco Central possa atuar no desenvolvimento econômico e social do país, que é a autonomia. Mostrou-se notável a relação entre a independência do Banco Central e a desinflação, a exemplo de outros Bancos Centrais, principalmente europeus e o FED, que constataram episódios desinflacionários relacionados à maior independência do Banco Central. Alguns autores, principalmente Rosa Maria Lastra, ressaltam que, se fosse independente, o Banco Central estaria livre das pressões políticas, especialmente no período próximo às eleições, quando os políticos, a fim de elegerem seus sucessores, determinam a implantação de uma política expansionista, com baixas taxas de juros e redução do desemprego, e, logo após o pleito, sujeitam a nação a grandes sacrifícios, pelo estabelecimento de política contracionista, no intuito de conter a inflação. 164 Foram analisadas, também, dentro do terceiro capítulo, as ações de regulação que podem ser realizadas pelo BACEN, visando a contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país. Assim, foram destacados a estabilidade de preços, a estabilização da moeda e o pleno emprego. Nomeadamente com relação ao último, após uma diferenciação entre trabalho, ocupação e emprego, a qual serviu de base para trabalhar a questão, chegou-se à conclusão de que esse princípio requer do Estado uma série de políticas públicas voltadas à geração de emprego. Garantindo o pleno emprego, o Estado passa a fomentar políticas e regula a atividade empresarial, impedindo o abuso de poder econômico. Verificou-se, ao final de todo o estudo, que as sociedades industrializadas conviveram com crescimento econômico, progresso material, avanço da ciência e da tecnologia e melhoria geral das condições de vida. Porém, esse crescimento gerou muitos empregos, mas as crises, sobretudo a imobiliária nos Estados Unidos e agora a chinesa, deixaram os governos ainda mais endividados, e as economias estão cada vez mais longe de proporcionarem condições de emprego àqueles que já estão ou acabaram de entrar no mercado de trabalho. Desse modo, o Estado deve intervir na economia de forma mais expressiva para priorizar questões centrais, a fim de garantir não só empregos, mas também o desenvolvimento e a melhor distribuição de renda e riqueza. Nesse sentido, a política monetária, especialmente quando voltada aos interesses nacionais de coletividade, ao ser bem formulada e executada, seguramente pode contribuir para a consecução de tais objetivos. Diante de todo o exposto, o presente trabalho buscou dar um tratamento mais cuidadoso ao Banco Central como regulador da economia, destacando como pode contribuir para promover o bem-estar econômico e social do país. A partir dos resultados encontrados, algumas conclusões principais foram obtidas, como controlar a inflação (principalmente por meio da autonomia), ampliar o crédito e promover o pleno emprego. Nessa linha de raciocínio, vê-se que o Banco Central tem um longo caminho a percorrer, mas, se conseguir executar essas funções, o sucesso logo virá para o país. O Brasil é capaz de conceder maior autonomia ao BACEN, a fim de que priorize os itens acima, sem trazer custos adicionais à sua atividade. 165 REFERÊNCIAS ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de. O desenvolvimento social do Brasil: balanço dos anos de 1900-2010 e agenda para o futuro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. ALCOFORADO, Fernando. Globalização. São Paulo: Nobel, 1997. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. ALMEIDA, Paula Joyce de Carvalho Andrade de. O controle da atuação das agências reguladoras federais brasileiras. 2007. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Faculdade de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2007. AMADO, Adriana et al. Sistema financeiro: uma análise do setor bancário. 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