COMENTÁRIOS À MEDIDA DE CONCILIAÇÃO VOLUNTÁRIA NA

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EXPEDIENTE
CADERNOS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA é uma publicação do UNICURITIBA
Endereço: Rua Chile, 1678 – CEP 80220-181 – Curitiba, PR – Brasil
Telefone: (41) 3213-8700
Site: www.unicuritiba.edu.br
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UNICURITIBA
Reitor: Danilo Vianna
Pró-Reitor Acadêmico: Adriano Rogério Goedert
Pró-Reitora Administrativa: Vanessa Santamaria
COMISSÃO EDITORIAL
Cintia Rubim de Souza Netto
Fabiano Christian Pucci do Nascimento
Isaak Newton Soares
Marlus Vinicius Forigo
Paulo Ricardo Opuszka
Revisão: Cintia Rubim de Souza Netto e Marlus Vinicius Forigo
Diagramação: Marlus Vinicius Forigo
Data: 2013
APRESENTAÇÃO
O Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), visando consolidar a
pesquisa científica que realiza, apresenta à comunidade acadêmica a segunda
edição do seu “Cadernos de Iniciação Científica”.
Esta publicação tem como
propósito divulgar anualmente os resultados dos projetos de iniciação científica da
graduação e pós-graduação da Instituição nas suas diferentes linhas de pesquisa,
através de artigos produzidos pelos alunos e professores que desenvolveram as
pesquisas. Desta forma, contribui para expandir o conhecimento e a prática da
pesquisa do corpo discente e docente. Tornar público esses resultados é o
comprometimento do UNICURITIBA, através do Núcleo de Pesquisa e Extensão
Acadêmica (NPEA), complementando, portanto, outro evento de pesquisa já
consolidado, o Simpósio de Iniciação Científica (SPIC). Este Simpósio, realizado
anualmente desde 2009, visa à apresentação de resumos das pesquisas e a
discussão de seus resultados, bem como a interface com trabalhos de outras
Instituições de Ensino Superior.
Esta segunda edição do “Caderno de Iniciação Científica” é composta por
artigos produzidos pelos alunos e seus professores orientadores nas diversas áreas
abordadas pelos projetos ao longo do ano de 2012.
Boa leitura
CINTIA RUBIM DE SOUZA NETTO
Supervisora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Acadêmica
5
SUMÁRIO
COMENTÁRIOS À MEDIDA DE CONCILIAÇÃO
VOLUNTÁRIA NA RECOMENDAÇÃO N. 92 DA OIT
Cleverson Jose Gusso e Francielli Morêz............................................................................ 5
A CONCILIAÇÃO NOS JUIZADOS ESPECIAIS:
ÂMBITO PREVIDENCIÁRIO
Juliana de Abreu Cassemiro .............................................................................................. 13
ANÁLISE JURIMÉTRICA DA CONCILIAÇÃO: SANÇÃO POSITIVA
DO DIREITO NA PROMOÇÃO DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA
Juliana Cristina Busnardo Augusto de Araujo e Eloína Ferreira Baltazar .......................... 23
PRINCÍPIOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA
Luciana Piccinelli Gradowski ............................................................................................. 34
A MEDIAÇÃO COMO MEIO ALTERNATIVO (E POSSÍVEL)
À RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS
João Paulo Vieira Deschk e Paulo Ricardo Opuszka ........................................................ 46
CONCILIAÇÃO NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
ACESSO E EFETIVIDADE, DIREITO E DEVER
Luiz Eduardo Gunther, Rosemarie D. Pimpão e Willians F. L. dos Santos........................ 55
A CONCILIAÇÃO COMO UM INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA
Maria da Glória M. R. Neiva de Lima e Wagner C. Cordeiro ............................................. 69
JUIZADOS ESPECIAIS: UM CASO DE SUCESSO OU DE
FRACASSO NA IMPLEMENTAÇÃO DA NOVA FÓRMULA
DE ACESSO À JUSTIÇA E DA CONCILIAÇÃO
Nara Fernandes Bordignon................................................................................................ 86
CONCILIAÇÃO NO DIREITO COMPARADO. PRINCIPAIS ASPECTOS
RELACIONADOS À COMPOSIÇÃO DOS INTERESSES EM LITÍGIO
Simone A. Barbosa Mastrantonio e Joanna Vitoria Crippa ................................................ 99
APLICAÇÃO DA RESERVA DO ARTIGO 96 DA CISG
PELO ÁRBITRO INTERNACIONAL
Felipe Hasson .................................................................................................................. 114
ANÁLISE DAS INELEGIBILIDADES NO TEXTO CONSTITUCIONAL
Brunna Helouise Marin e Luiz Gustavo de Andrade ........................................................ 127
A DISCURSIVIDADE NO TEXTO LEGAL: POSSIBILIDADES E LIMITES
Aloísio Cansian Segundo................................................................................................. 143
A CISG E O INSTITUTO DO NACHFRIST
Bruna Bauer King ............................................................................................................ 152
6
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE DE
ACORDO COM O ARTIGO 79 DA CISG
Luana Costa Veronesi ..................................................................................................... 160
A LIBERDADE DE CRENÇA:
LIMITES AO SEU EXERCÍCIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Fabiana Soares Prestes e Maria da Glória Colucci ......................................................... 168
EXPERIMENTAÇÃO DE MEDICAMENTOS
EM SERES HUMANOS NO DIREITO BRASILEIRO
Silvia Helena da M. C. Demeterco e Maria da Glória L. da S. Colucci ............................ 189
A MECANIZAÇÃO DA LAVOURA E A REINSERÇÃO
DO CORTADOR DE CANA-DE AÇÚCAR NO
SETOR SUCROALCOOLEIRO BRASILEIRO
Bruno César Gurski e Maria da Glória Colucci ................................................................ 206
AUTONOMIA DA VONTADE E O TESTAMENTO
VITAL NO DIREITO BRASILEIRO
Jacqueline Bernardi Benatto e Maria da Glória L. da S. Colucci ..................................... 219
O DIREITO À MORTE DIGNA E O TESTAMENTO VITAL NO BRASIL
THE RIGHT TO DIE WITH DIGNITY AND THE LIVING WILL IN BRAZIL
Flávia Ludimila K. Baitello e Maria da Glória Colucci ....................................................... 222
O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIZAÇÃO NO DIREITO AMBIENTAL
E A SADIA QUALIDADE DE VIDA DE PESSOAS IMPACTADAS
PELA POLUIÇÃO MARINHA
Aimée Isabella S. Mendes e Maria da Glória Colucci ...................................................... 246
5
COMENTÁRIOS À MEDIDA DE CONCILIAÇÃO VOLUNTÁRIA
NA RECOMENDAÇÃO N. 92 DA OIT
Cleverson Jose Gusso
________________________________
Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Advogado, Pesquisador, Professor do curso de Graduação em Direito do
UNICURITIBA, da Especialização em Direito do Trabalho da PUCPR
Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Internacional
UNINTER
Francielli Morêz
________________________________
Mestra em Direitos Fundamentais e Democracia pela UNIBRASIL, Especialista
em Sociologia Política pela UFPR e em Direito Público pela Fundação Escola do
Ministério Público do Paraná – FEMPAR. Advogada, Pesquisadora e Professora dos
cursos de Graduação em Direito e Relações Internacionais do UNICURITIBA e do Centro
Universitário Internacional UNINTER, e das Especializações em Direito do Trabalho e
Comércio Exterior da PUCP
6
1
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Surgida em um contexto histórico deveras peculiar, a Organização Internacional do
Trabalho – OIT foi – e ainda é – considerada a primeira organização de caráter misto,1
multilateral e especializada no plano universal.2
Tendo se reunido sua primeira Conferência em Washington, em 1919, como parte
do Tratado de Versalhes – que pôs fim à Primeira Guerra Mundial3 e determinou a criação
da Liga das Nações4 – predecessora da Organização das Nações Unidas –, a OIT
alcançou, ao largo dos vinte anos entre guerras, a redação de mais de cinquenta
convenções,5 bem como a realização de uma série considerável de missões de inspeção
no âmbito dos seus Estados-Membros.
Em 1944, a OIT reúne a sua 26ª Conferência na Filadélfia, ocasião na qual é
elaborada a Declaração de Filadélfia, que, enquanto anexo à Carta da OIT, veio
apresentar os propósitos e princípios que norteariam a Organização no cenário pós
Segunda Guerra Mundial. Dentre este rol de princípios e de propósitos, visualiza-se a
necessidade de desmercantilização do trabalho; de erradicação da pobreza e das más
condições de vida dos trabalhadores com base na justiça social; da constituição da
liberdade de expressão e de associação como condições indispensáveis para o
progresso; da consideração equânime de representantes de empregadores, de
trabalhadores e de governos na luta para a consecução dos objetivos da Carta da OIT; e
1
Diz-se de caráter misto porque a estrutura da Organização não contempla apenas Estados, tal como
tradicionalmente concebido pela teoria clássica das organizações internacionais governamentais. No caso
da OIT, tem-se uma composição de membros consubstanciada em Estados, em outras organizações
internacionais e em organizações de empregadores e de trabalhadores, conjuntamente. (nota dos autores)
2 Vide, neste passo, SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Direito Internacional Público. 4. ed. rev. e
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 114.
3 Neste sentido, coloca Nicolas Valticus que “a Primeira Guerra Mundial produziu profundas modificações na
posição e no peso da classe trabalhadora das potências aliadas. A trégua social e cooperação que se
estabeleceu na Europa ocidental entre os dirigentes sindicais e os governantes, os grandes sacrifícios
suportados especialmente pelos trabalhadores e o papel que desempenharam no desenlace do conflito, as
promessas dos homens políticos de criarem um mundo novo, a pressão das organizações obreiras para
fazer com que o Tratado de Versalhes consagrasse as suas aspirações de uma vida melhor, as
preocupações suscitadas pela agitação social e as situações revolucionárias existentes em vários países, a
influência exercida pela Revolução Russa de 1917, foram fatores que deram um peso especial às
reivindicações do mundo do trabalho no momento das negociações do tratado de paz. Estas reivindicações
expressaram-se, tanto em ambos os lados do Atlântico como em ambos os lados da linha de combate,
inclusive durante os anos de conflito mundial. Ao final da guerra, os governos aliados, e principalmente os
governos francês e britânico, elaboraram projetos destinados a estabelecer, mediante o tratado de paz uma
regulamentação internacional do trabalho.” Citado por SOUZA, Zoraide Amaral de. A Organização
Internacional do Trabalho: OIT. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, v.
7, n. 9, p. 433-434, jul./dez. 2006.
4 A ligação entre a já extinta Liga das Nações e a OIT se devia ao fato de que os custos de funcionamento
desta foram incluídos no orçamento daquela. Ainda hoje esta lógica se mantém, considerando a vinculação
da OIT à Organização das Nações Unidas. Ver, neste sentido, GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson.
Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 59. Outrossim, todos os Estados
que subscreveram o Tratado de Paz de Versalhes tornaram-se membros efetivos da OIT. Contudo, o fato
de um Estado renunciar à Liga das Nações não implicava na sua exclusão do quadro de membros da OIT,
nem tampouco que outros Estados que não integrassem a Liga estivessem impedidos de integrar a
Organização Internacional do Trabalho. Cf. SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Op. cit., p. 114.
5 Somente na Primeira Conferência foram redigidas seis convenções, sendo que a primeira delas
correspondia a uma das principais reivindicações do movimento sindical e operário do final do século XIX e
começo do século XX: a limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 48 semanais. As demais
convenções adotadas nessa ocasião referem-se à proteção da maternidade, à luta contra o desemprego, à
definição da idade mínima de 14 anos para o trabalho na indústria e à proibição do trabalho noturno de
mulheres e menores de 18 anos. Vide <http://www.oit.org.br/content/hist%C3%B3ria>. Último acesso em
25/10/2012.
7
da exaltação dos direitos sociais como fundamentais a todos os indivíduos,
independentemente de sua condição étnica, religiosa, política ou ideológica.6
Com o fito de concretizar estes objetivos genéricos, a OIT possui uma estrutura
organizacional interna subdividida basicamente em três níveis: o pleno, consubstanciado
em sua Assembléia Geral, com legitimidade genérica para atuar acerca de todos os
pontos contemplados pelas atividades da Organização; um Conselho de Administração; e
um Secretariado de caráter permanente, denominado Escritório Internacional do Trabalho,
com sede em Genebra. Neste sentido, as finalidades de sua estrutura jurídica e
institucional prelecionam que a atuação trabalhista deve buscar o pleno emprego, o
aumento do nível de vida, a formação profissional dos trabalhadores, sua remuneração
digna, a extensão da seguridade social e previdenciária, a participação de empregados e
de empregadores na elaboração e na implementação de medidas socioeconômicas, a
proteção da infância, da juventude e da maternidade, a promoção de sistemas de saúde
adequados, a possibilidade de negociação coletiva dos contratos de trabalho e, na
eventualidade de litígios envolvendo estes contratos, o desenvolvimento de mecanismos
eficazes de composição destes conflitos, judiciais ou extrajudiciais.
Neste passo, a Recomendação n. 92 da OIT sobre a conciliação e a arbitragem
voluntárias, adotada em Genebra a 29 de junho de 1951 por ocasião da 34ª Conferência
da Organização, descortinou de forma expressa e contundente a necessidade do
desenvolvimento e do aprimoramento de dois mecanismos alternativos de composição de
controvérsias trabalhistas no âmago dos Estados-Membros: a conciliação e a arbitragem.
Preliminarmente, todavia, convém sublinhar a natureza jurídica do referido instituto, eis
que, sob o ponto de vista normativo, a OIT logra de duas modalidades distintas: as
recomendações e as convenções.
As convenções são arcabouços jurídicos de efeito vinculante, devendo ser
adotadas por no mínimo dois terços dos Estados-Membros por ocasião da Conferência na
qual forem levadas à pauta de discussão, para, a posteriori, serem colocadas à
disposição dos signatários para internalização. Nestes termos dispõe, in verbis, o artigo
19, item 5 e alíneas, da Carta da OIT:
5. Tratando-se de uma convenção:
a) será dado a todos os Estados-Membros conhecimento da convenção para fins
de ratificação;
b) cada um dos Estados-Membros compromete-se a submeter, dentro do prazo de
um ano, a partir do encerramento da sessão da Conferência (ou, quando, em
razão de circunstâncias excepcionais, tal não for possível, logo que o seja, sem
nunca exceder o prazo de 18 meses após o referido encerramento), a convenção
à autoridade ou autoridades em cuja competência entre a matéria, a fim de que
estas a transformem em lei ou tomem medidas de outra natureza;
c) os Estados-Membros darão conhecimento ao Diretor-Geral da Repartição
Internacional do Trabalho das medidas tomadas, em virtude do presente artigo,
para submeter a convenção à autoridade ou autoridades competentes,
comunicando-lhe, também, todas as informações sobre as mesmas autoridades e
sobre as decisões que estas houverem tomado;
6
Para tanto, a OIT adota a expressão trabalho decente para caracterizar o ponto de convergência dos seus
quatro objetivos estratégicos: o respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como
fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu
seguimento, adotada em 1998: a liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação
coletiva; a eliminação de todas as formas de trabalho forçado; a abolição efetiva do trabalho infantil; e a
eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do
emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social. Ver,
neste sentido, a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e seu Anexo (Declaração de
Filadélfia). Disponível em:
<http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/decent_work/doc/constituicao_oit_538.pdf>.
Último acesso em 23/10/2012.
8
d) o Estado-Membro que tiver obtido o consentimento da autoridade, ou
autoridades competentes, comunicará ao Diretor-Geral a ratificação formal da
convenção e tomará as medidas necessárias para efetivar as disposições da dita
convenção;
e) quando a autoridade competente não der seu assentimento a uma convenção,
nenhuma obrigação terá o Estado-Membro a não ser a de informar o Diretor-Geral
da Repartição Internacional do Trabalho - nas épocas que o Conselho de
Administração julgar convenientes - sobre a sua legislação e prática observada
relativamente ao assunto de que trata a convenção. Deverá, também, precisar
nestas informações até que ponto aplicou, ou pretende aplicar, dispositivos da
convenção, por intermédio de leis, por meios administrativos, por força de
contratos coletivos, ou, ainda, por qualquer outro processo, expondo, outrossim,
as dificuldades que impedem ou retardam a ratificação da convenção.
Diferentemente, as recomendações - espécie normativa neste texto em tela –, não
possuem caráter vinculante propriamente dito, de modo a não implicarem em observância
obrigatória por parte dos Estados-Membros. Neste exato sentido, corrobora o artigo 19,
item 6 e alíneas, da Carta da OIT, a seguir transcrito:
6. Em se tratando de uma recomendação:
a) será dado conhecimento da recomendação a todos os Estados-Membros, a fim
de que estes a considerem, atendendo à sua efetivação por meio de lei nacional
ou por outra qualquer forma;
b) cada um dos Estados-Membros compromete-se a submeter, dentro do prazo de
um ano a partir do encerramento da sessão da Conferência (ou, quando, em razão
de circunstâncias excepcionais, tal não for possível, logo que o seja, sem nunca
exceder o prazo de 18 meses após o referido encerramento), a recomendação à
autoridade ou autoridades em cuja competência entre a matéria, a fim de que
estas a transformem em lei ou tomem medidas de outra natureza;
c) os Estados-Membros darão conhecimento ao Diretor-Geral da Repartição
Internacional do Trabalho das medidas tomadas, em virtude do presente artigo,
para submeter a recomendação à autoridade ou autoridades competentes,
comunicando-lhe, também as decisões que estas houverem tomado;
d) além da obrigação de submeter a recomendação à autoridade ou autoridades
competentes, o Membro só terá a de informar o Diretor-Geral da Repartição
Internacional do Trabalho - nas épocas que o Conselho de Administração julgar
convenientes – sobre a sua legislação e prática observada relativamente ao
assunto de que trata a recomendação. Deverá também precisar nestas
informações até que ponto aplicou ou pretende aplicar dispositivos da
recomendação, e indicar as modificações destes dispositivos que sejam ou
venham a ser necessárias para adotá-los ou aplicá-los.
As recomendações são, portanto, manifestações com peso jurídico de
aconselhamento, e não de imposição, mas cuja redação e divulgação implicam na criação
de um ambiente favorável ao encaminhamento de soluções a variados problemas,
soluções estas que, de certa forma, tem origem na própria vontade estatal.7
Em circunstâncias tais, a ausência de obrigatoriedade jurídica propriamente dita da
Recomendação nº. 92 da OIT, dada a sua natureza jurídico-normativa, não retira a sua
relevância do ponto de vista da implementação das suas disposições, sendo, pois, o mais
expressivo instrumento alusivo à conciliação e à arbitragem voluntárias em sede
trabalhista no âmbito do Direito Internacional Público.
7
Segundo SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Op. cit., p. 115.
9
2
DA CONCILIAÇÃO VOLUNTÁRIA NA RECOMENDAÇÃO N. 92 DA OIT
À parte de questões inerentes à contemplação genérica da Recomendação n. 92
da OIT acerca da conciliação e da arbitragem voluntárias sob o prisma trabalhista,
mostra-se oportuna e necessária a distinção havida entre ambas, eis que somente a
primeira constitui o objeto deste artigo. Ambas se configuram como técnicas alternativas
de composição de conflitos trabalhistas, mas de natureza diferenciada. Enquanto que a
arbitragem é uma técnica dita heterocompositiva, determinada pela solução do embate
por fonte suprapartes, que decide com força obrigatória sobre os litigantes que, de modo
tal, são submetidos à decisão do(s) árbitro(s), a conciliação é considerada uma técnica
autocompositiva, segundo a qual o conflito é solucionado pelas próprias partes envolvidas
mediante ajuste de vontades.8
Em conformidade com o mencionado, a conciliação, enquanto forma de
autocomposição de conflitos trabalhistas, é contemplada de forma ampla pelo texto da
Recomendação n. 92 da OIT, conforme se pode extrair da literalidade do seu item 1,
capítulo I: “Devem ser estabelecidos organismos de conciliação voluntária, apropriados às
condições nacionais, com o objetivo de contribuir com a prevenção e a solução dos
conflitos laborais entre empregadores e trabalhadores.”9
De tal feita, o texto do documento em tela sublinha a importância e a necessidade
do estabelecimento deste instrumento, sem fazer alusão específica a alguma ou a
algumas de suas modalidades em Direito aceitas, estabelecendo, contudo, que as
modalidades eventualmente utilizadas sejam aplicadas de modo paritário – ou seja, de
modo a compreender uma equânime representação de empregadores e de empregados
nos procedimentos respectivos (item 2 do capítulo I) –, de acordo com a vontade das
partes envolvidas, e não de forma compulsória,10 de modo a inclusive criar-se condições
aptas à invocação da boa-fé das partes envolvidas no procedimento, sobretudo no
tocante ao compromisso da abstenção de recorrência a atuações que possam minar a
condução da prática conciliatória. Eis, neste sentido, a transcrição dos itens 3(2) e 4 da
referida Recomendação:
3(2). Deveriam ser adotadas disposições para que o procedimento de conciliação
voluntária possa ser entabulado por iniciativa de uma das partes em conflito, ou
por organismos de conciliação voluntária.
4. Se um conflito houver sido submetido a um procedimento de conciliação com o
consentimento de todas as partes interessadas, estas mesmas deveriam ser
8
Ver, neste sentido, NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 24. ed.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6-7. MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. 9. ed.
São Paulo: LTr, 2003, p. 712.
9
Tradução livre dos autores a partir da versão oficial em inglês disponível em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:312
430:NO>. Último acesso em: 28/10/2012.
10 Conforme classificação proposta por Jorge Sappia para a Oficina Internacional do Trabalho da OIT, em
estudo intitulado Justicia Laboral y Medios Alternativos de Solución de Conflictos Colectivos e Individuales
del Trabajo: “La conciliación puede asumir dos formas, la voluntaria y la obligatoria. La primera es la simple
convocatoria por la autoridad laboral, a constituir una reunión con finalidades de diálogo tendiente a la
solución del conflicto. Normalmente carece de formas y plazos reglados y se desarrolla conforme las partes
se van manifestando. La segunda por el contrario supone la citación forzosa de los contendores del
conflicto y la obligación de estar presentes en el ámbito de las deliberaciones. Suele incluir un reglamento
de actuación pero excluye la imposición de conciliar. Ambas se han revelado muy útiles en la experiencia
regional y la utilización de una u otra, depende mucho de las características del conflicto.” In SAPPIA, Jorge.
Justicia Laboral y Medios Alternativos de Solución de Conflictos Colectivos e Individuales del
Trabajo. Lima: Oficina Internacional do Trabalho - OIT, 2002, p. 13.
10
estimuladas para que se abstivessem de recorrer a greves e a lock outs enquanto
durar o processo de conciliação.11
Por ser a Recomendação nº. 92 da OIT, portanto, de referência ampla à
conciliação voluntária, presume-se a recomendação à utilização da conciliação laboral
tanto judicial quanto extrajudicial, privada ou pública, prévia ou posterior à eclosão do
embate, unipessoal ou colegiada – ou seja, em todas as espécies consignadas pela
doutrina correlata.
A respeito da conciliação judicial, tem-se o seu desenvolvimento perante o próprio
Poder Judiciário, no âmbito dos dissídios individuais – caso em que se realiza perante a
mesma Vara que aprecia a demanda – ou coletivos – caso em que se realiza previamente
à sessão de julgamento, na audiência de conciliação perante o magistrado presidente do
tribunal que decidirá o caso, ou perante o juiz do tribunal designado para a audiência de
conciliação.12 Em relação à conciliação extrajudicial, tem-se a sua realização prévia ao
ingresso da reclamatória no Poder Judiciário, sendo, via de regra, colegiada por um órgão
com atribuições para esta finalidade, sendo ele sindical ou não.13
Acerca da conciliação privada, tem-se como principal ilustração a composição
realizada pela via sindical. Já acerca da conciliação pública, tem-se como exemplos
aquelas conduzidas perante o Poder Judiciário ou o Ministério Público. 14 Ademais, a
conciliação poderá ser prévia ao surgimento do embate, tal como no caso dos
ordenamentos que, em se tratando de atividades essenciais, exigem antes da realização
da greve a tentativa de conciliação como condição da legalidade da paralisação 15 –
presume-se, portanto, que estes ordenamentos não se coadunam com as disposições da
Recomendação n. 92 da OIT, pois impelem à realização da conciliação, que no teor da
referida Recomendação deverá se dar de forma voluntária. Ou, ainda, e no mais dos
casos, poderá ser posterior à eclosão do conflito, tal como nas situações em que a
conciliação se dá de forma intercorrente ao processo trabalhista, e, portanto, após a
deflagração da lide.16
Por fim, tem-se a conciliação unipessoal e a colegiada, cada qual variando de
acordo com a figura do conciliador – se conduzido por um único indivíduo, ou por um
colegiado ou órgão de apreciação conjunta.17
Outro aspecto de relevante apreciação à luz da efetividade do mecanismo
conciliatório vem a ser aquele disposto no item 3(1) do capítulo I da Recomendação: “O
procedimento deveria ser gratuito e expeditivo; toda prestação onerosa neste sentido
11
Tradução livre dos autores a partir da versão oficial em inglês disponível em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:312
430:NO>. Último acesso em: 28/10/2012. Sublinha-se, contudo, o disposto no item 7 do capítulo III da
Recomendação, pelo qual nenhuma das disposições ali sugeridas poderão ser interpretadas em detrimento
do exercício do direito de greve.
12 Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. cit., p. 13.
13 Idem, ibidem. No caso das Comissões de Conciliação Prévia, emanadas no ordenamento brasileiro a
partir do advento da Lei n. 9.958/00 e inseridas na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT com os artigos
625-A ao 625-H, há uma série de controvérsias doutrinárias acerca do caráter voluntário ou não da sua
instituição. A polêmica em torno da questão é apreciada por autores como Amador Paes de Almeida, que
entendem, à luz das disposições do artigo 625-A, a conotação facultativa das referidas Comissões, onde
consta que as empresas e os sindicatos podem instituir Comissões de Conciliação Prévia. Por conseguinte,
a obrigatoriedade de a questão trabalhista ser submetida à Comissão de Conciliação Prévia efetivamente
existe, desde que se esta se mostrar atuante na localidade da prestação dos serviços, conforme o artigo
625-D. Em termos tais, vide ALMEIDA, Amador Paes de. Curso prático de Processo do Trabalho. 19. ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 520-522. SAPPIA, Jorge. Op. cit., p. 10.
14 Conforme NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. cit, p. 13.
15 Idem, ibidem.
16 Idem, p. 14.
17 Idem, ibidem.
11
deve ser legal e previamente fixada e se reduzir ao mínimo possível.” 18 Neste tópico,
invoca-se a referência, em um primeiro momento, aos custos da instância conciliatória per
si. Majoritariamente se tem considerado, com base neste trecho, que o trâmite do
processo de conciliação deve ser gratuito para ambas as partes. No contexto da
elaboração da Recomendação n. 92 da OIT na sua respectiva Conferência, esta
disposição se justificou por diversas frentes, dentre as quais o fato de que o Estado acaba
sendo o principal beneficiado com a instituição de um mecanismo acessível a todos na
busca pela obtenção de soluções adequadas às controvérsias laborais, soluções estas
que consolidam o descongestionamento das instâncias judiciais, sobrecarregadas com
processos complexos e morosos.19
Outrossim, a respeito da morosidade enquanto fator determinante para o
estabelecimento de procedimentos alternativos de solução de controvérsias laborais no
âmbito da referida Recomendação, tem-se que a rapidez, a flexibilidade e a economia são
algumas condicionantes que operam em favor destes sistemas. Não caberia, afinal,
ensejar o aumento da combatividade interpartes se, por uma via alternativa de
negociação direta, o conflito pode ser dissolvido.
3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da Recomendação nº. 92 permite inferir que a OIT pauta-se no pleno
emprego, no aumento do nível de vida, na formação profissional dos trabalhadores e na
sua remuneração digna, incentivando o desenvolvimento de sistemas eficazes para a
composição dos conflitos decorrentes das relações laborais.
Tal recomendação demonstra também a necessidade do desenvolvimento e do
aprimoramento constante de mecanismos alternativos de composição de controvérsias na
seara trabalhista.
Deste modo, os breves comentários postos neste artigo, podem ser utilizados para
se repensar o sistema judicial atual, com o intuito de fomentar novas políticas e
incrementar as já existentes, visando a resolução dos conflitos laborais.
Muito embora haja grande esforço do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e dos
Tribunais pátrios, depreende-se que ainda há um longo caminho a percorrer até que o
Brasil atenda ao contido na sexagenária Recomendação 92 da OIT.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso prático de Processo do Trabalho. 19. ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1990.
MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr,
2003.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 24. ed. São
Paulo: Saraiva, 2009.
18
Tradução livre dos autores a partir da versão oficial em inglês disponível em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:312
430:NO>. Último acesso em: 28/10/2012.
19 Vide SAPPIA, Jorge. Op. cit., p. 14.
12
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
<http://www.oit.org.br>.
DO
TRABALHO
–
OIT.
Disponível
em:
SAPPIA, Jorge. Justicia Laboral y Medios Alternativos de Solución de Conflictos
Colectivos e Individuales del Trabajo. Lima: Oficina Internacional do Trabalho - OIT,
2002.
SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Direito Internacional Público. 4. ed. rev. e
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
SOUZA, Zoraide Amaral de. A Organização Internacional do Trabalho: OIT. Revista da
Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, v. 7, n. 9, jul./dez. 2006.
13
A CONCILIAÇÃO NOS JUIZADOS ESPECIAIS:
ÂMBITO PREVIDENCIÁRIO
Juliana de Abreu Cassemiro
______________________________________
Aluna do curso de especialização em Direito Constitucional da ABDConst
Conciliadora da 4ª Vara do JEF Previdenciário de Curitiba – PR
Integrante do grupo de pesquisa Sistemas e Métodos de Conciliação Judicial e
Extrajudicial e a Proteção dos Direitos da Personalidade (Resolução nº 125 do CNJ)
sob a coordenação do Prof. Dr. Luiz Eduardo Gunther
14
1
INTRODUÇÃO
Em tempos atuais, observa-se a crescente elaboração de estudos a fim de
alcançar o “desafogamento” do Judiciário pátrio. Para sustentar as bases do Estado
Social, com respaldo no constitucionalismo emergente do pós-guerra, vislumbra-se a
utilização de vias alternativas para a salvaguarda do sistema, que objetiva harmonizar
políticas de inclusão e capitalismo. Nesse contexto, a judicialização parece constituir
canal importante para promover a atuação do Estado em suas bases constitucionais.
O sistema previdenciário compõe a rede de mecanismos e instituições para
proteção do trabalhador que se encontra incapacitado. Quando entende fazer jus a um
benefício previdenciário, o segurado tem o direito de requerer um benefício perante o
Instituto Nacional do Seguro Social, em regra. O indeferimento do benefício previdenciário
solicitado gera ao requerente o direito de ingressar com ação previdenciária perante a
Justiça Estadual diante da competência delegada, conferida à Vara Cível, ou perante os
Juizados Especiais Federais, quando a causa não tiver valor superior a sessenta salários
mínimos, como forma de proporcionar uma tutela jurisdicional mais célere, nos termos da
Lei nº 10.259/01.
Justamente no âmbito previdenciário, nas ações que versam sobre a capacidade
laboral do segurado, tem-se evidenciado a crescente utilização da conciliação para a
simplificação do trâmite processual. Quando da constatação de incapacidade laborativa
pela perícia médica, verifica-se o encaminhamento dos autos do processo para a
conciliação, no intuito de incentivar o acordo entre autor e réu, eliminando a necessidade
de aguardo da prolatação da sentença.
2
PERSPECTIVAS CONSTITUCIONAIS E A RESOLUÇÃO Nº 125 DO CNJ
Tratar dos temas conciliação e sistema previdenciário impõe a responsabilidade de
elucidar, ainda que sucintamente, a relação com as bases político-jurídicas nas quais
foram construídos. Inicialmente, destaca-se a co-implicação entre Estado e Constituição,
ou seja, a dialeticidade entre ambos, porquanto não há um como pensá-los
separadamente.
Conforme ensina Jose Luiz Bolzan de Morais1, o Estado é uma instituição histórica,
surgiu em um dado contexto e evolui segundo os ditames da sociedade, posto que é fruto
de uma conquista civilizatória. Nesse sentido, cabe refletir até mesmo quanto à existência
do Estado, pois não há garantias de sua eternidade. Em outras palavras, assim como o
Estado emergiu de um processo histórico-social, ele pode ser extinto por suas mesmas
origens, em razão de uma desnecessidade social de sobrevivência do Estado.
Da mesma forma, as Constituições são um pacto constituinte, produtos de um dado
momento histórico que envolve um conjunto de vontades políticas, interesses e anseios
que dialogam com o passado e com o presente. As Constituições projetam um ideal ao
futuro, estabelecendo objetivos, compondo uma tripla dimensão temporal.
Assim, o Estado Constitucional incorpora uma tradição político-jurídica que
formata o poder político sob a lógica de um poder limitado e controlado e, além
disso, reconhece os direitos humanos como conteúdos fundamentais que
direcionam o poder, voltado à sua consecução como finalidade da ação estatal; e,
como tal, é um produto da história, por isso dinâmico, bastando perceber a
1
BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. O Estado e seus limites: reflexões iniciais sobre a profanação do
Estado Social e a dessacralização da modernidade. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de
Coimbra, v. LXXXII, p. 569-590, 2007.
15
passagem – no âmbito do liberalismo – do Estado Mínimo ao Estado Social; dos
direitos de liberdade aos direitos de solidariedade etc. 2
No século XIX, o Estado Constitucional plasmava a limitação do poder político pela
submissão à Constituição. A transição do Absolutismo para o Liberalismo impunha a
concretização das conquistas políticas em jurídicas. Os direitos humanos constituíram o
substrato do Estado de Direito da época. A Constituição e os direitos humanos eram os
limitadores do poder, porquanto a liberdade dos homens consistia na contenção do poder
estatal.
Adiante, na passagem do século XIX para o século XX, o Estado passou a ser
demandado a cumprir funções, de modo a promover igualdades. A Constituição passa
não mais a prever somente freios à ação estatal, mas incorpora a igualdade a partir do
Estado, que adquire um caráter prestacional. O Estado Constitucional absorve esses
novos conteúdos, transitando para o Estado Social de Direito. Reconhece-se a
desigualdade no âmbito das relações sociais e age para a promoção da igualdade
material. Presta serviços, assegura a dignidade da pessoa humana, não com caráter
meramente assistencialista, mas como direito de cidadania.
O Estado Social objetiva a atender as demandas da nova classe social, o
proletariado, mas sustentando a própria continuidade do modelo econômico liberal.
Pretende a convivência entre políticas de inclusão e capitalismo, comprometendo-se com
o progresso social, mas vinculando este progresso à eficácia econômica. A reflexão de
Bolzan de Morais tem respaldo na limitação do diálogo entre modelo econômico do
capitalismo e a políticas de inclusão. Questiona-se a possibilidade da existência mútua
das premissas do Estado Social. Tais ponderações são decorrentes de dois fatores por
ele elencados, quais sejam a “questão social” e a “questão ambiental”. A questão
ambiental está na origem da transição do Estado Social, sintetizando-se na emergência
do processo de urbanização, no surgimento das máquinas e fábricas, do nascimento de
uma nova classe social – o operariado, e trazendo a necessidade de regulamentação
estatal.
O espaço do Estado Social sempre foi aberto e está em constante ampliação. No
final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70 ocorreram os chamados 30
anos gloriosos do Estado Social. A economia capitalista que está nas origens desse
modelo de Estado não é a mesma, assim como as preocupações econômicas. O meio
ambiente passou a ser a grande novidade. Anteriormente, os problemas estavam
adstritos em âmbito estatal, territorial, após, ultrapassaram as circunscrições fronteiriças
nacionais, rompendo com o paradigma da territorialidade e afetando a própria noção de
Estado e de Constituição3.
Somado à questão ambiental, observa-se o intenso aumento de demandas para
obter direitos que já são assegurados pela Constituição Federal. Além do maior acesso à
Justiça, uma explicação plausível é a não concretização da norma constitucional pelo
Estado, impondo a necessidade de procurar a via judicial.
Portanto, cabe questionar a sobrevivência do Estado e os caminhos que o mesmo
tem percorrido para evitar o seu enfraquecimento. Uma via possível que se vislumbra é
repensar o constitucionalismo, não iniciando propriamente pelos Estados, mas com
dimensões distintas dele. Esse é o caso do interconstitucionalismo citado por Canotilho 4,
termo utilizado para tratar das Constituições integradas, a exemplo do Projeto de criação
da Constituição Europeia. A outra alternativa está projetada no espaço da judicialização.
O Poder Judiciário é, atualmente, um espaço de destaque, não pelo viés de privatização
2
BOLZAN DE MORAIS, p. 570-571.
BOLZAN DE MORAIS, p. 570-576.
4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Princípios: Entre a Sabedoria e a Aprendizamgem. Boletim da
Faculdade de Direito. Vol. LXXXII. Coimbra. 2006. p.12. apud BOLZAN DE MORAIS, p. 586-587.
3
16
das políticas públicas por meio de ações individuais pretendendo determinadas garantias
individuais, mas por meio da própria jurisdição constitucional como um espaço para
promover o enquadramento da ação política em bases constitucionais. Nesta seara
encontra-se o instituto da conciliação como método alternativo de resolução de conflito
para a solução das lides previdenciárias.
A Constituição, como Lei Máxima do ordenamento jurídico Pátrio, posiciona-se em
patamar hierarquicamente superior às demais normas do sistema. Nesse sentido, ensina
Celso Antonio Bandeira de Mello, “é a matriz última da validade de qualquer ato jurídico.”5
Toda norma jurídica deve ser obedecida quando estabelecida no ordenamento jurídico,
razão pela qual as disposições constitucionais, como normas jurídicas que são, não
admitem contrariedades, ainda que por omissão.
O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 elenca a dignidade da
pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Este, por
sua vez, assume automaticamente o papel de garantidor da efetivação dos seus
princípios basilares. Na mesma esteira, Bandeira de Mello afirma a existência de um
conjunto normativo inserido na Constituição que compõe a Justiça Social, ressaltando-se
os artigos 6º, 7º, 170 e 193. Não cabe, no presente momento, a descrição de cada um
dos preceitos constitucionais elencados, mas apontar a proteção constitucional dos
direitos sociais. Comumente classificados como normas de caráter programático, carentes
de regulamentação, possuem, na realidade, aplicação imediata diante da leitura
sistematizada das normas constitucionais.
No mesmo sentido, todavia em um plano processual, José Antonio Savaris associa
o direito fundamental à proteção social e a função jurisdicional. A proteção social, que
consiste nos “...mecanismos institucionais que são articulados para reduzir e superar os
riscos sociais, assegurando, de modo universal, segurança econômica contra as
circunstâncias inevitáveis que afetam a subsistência e o bem-estar dos indivíduos e suas
famílias6”, vincula-se com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e
de justiça social.
Segundo Savaris, o exercício adequado da função jurisdicional assegura e protege
o direito material. “Para tanto, deve satisfazer o direito de proteção social de modo tão
célere quanto possível, fazendo coincidir a cobertura social com o imediato momento em
que surge a necessidade – e o respectivo direito7”. A satisfação do direito pela via judicial
deve se assemelhar a sua realização espontânea, sem que para tanto fosse necessário
recorrer ao Poder Judiciário.
Dos apontamentos expostos, verifica-se que a conciliação no sistema
previdenciário é um pertinente instrumento de proteção dos direitos sociais e salvaguarda
do Estado Constitucional. Conforme análise que segue, a utilização do método alternativo
de resolução de conflito para a satisfação de um direito do segurado contribui para a
obtenção do resultado rápido, útil e eficaz da prestação jurisdicional.
Na década de 90, o Poder Judiciário sofreu uma espécie de pressão para a
redução duração das demandas, razão pela qual se observou o advento da Emenda
Constitucional nº 45. O artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, destaca a importância
da duração razoável do processo e da asseguração dos meios que garantam a celeridade
da sua tramitação no plano constitucional. Da citada Emenda adveio o Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), como instituição plural, responsável pelo controle da magistratura,
conforme artigo 103-B da Carta Magna.
5
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais e Direitos Sociais. São
Paulo: Malheiros, 2009.p. 12.
6 SAVARIS, José Antonio. Princípio da Primazia do Acertamento Judicial da Relação Jurídica de Proteção
Social. In: Revista Brasileira de Direito Previdenciário. v. 6 (dez./jan.2012). Porto Alegre: Magister, 2011. p.
41.
7 Idem, p. 41-42.
17
Com base no artigo 5º, LXXVIII, da CF/88, o CNJ passou a estabelecer metas para
a realização da razoável duração do processo. Em síntese, o CNJ possui competência
para efetivar os princípios do artigo 37 da CF/88. Em 29 de novembro de 2010, foi editada
a Resolução nº 125 do CNJ, tendo por objetivos estratégicos a eficiência operacional, o
acesso ao sistema de Justiça e responsabilidade social. Portanto, os sistemas de gestão
da Administração Pública são aplicáveis também ao Poder Judiciário.
A Resolução nº 125 do CNJ, do mesmo modo, atribui aplicabilidade à Democracia,
na medida que considera o direito de acesso à Justiça como uma de suas premissas. O
estabelecimento da “política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e
dos conflitos de interesses”, em que se insere a conciliação, estimula a regulamentação
do método alternativo de resolução de controvérsia no âmbito dos tribunais.
O artigo 4º da Resolução nº 125 determina a competência do CNJ para
organização de programas de incentivo à autocomposição de litígios e pacificação social
por meio da conciliação e da mediação. A convivência entre o Poder Judiciário e as
instituições de ensino é incentivada no seu artigo 5º. No mesmo sentido, o artigo 6º da
Resolução nº 125 trata da necessidade de preparo técnico para o enfretamento da
questão. Cabe, neste momento, analisar o procedimento da conciliação para a resolução
da lide previdenciária e sua adequação com os preceitos constitucionais e parâmetros da
Resolução nº 125 do CNJ.
3. CONCILIAÇÃO NO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL PREVIDENCIÁRIO
3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O SISTEMA PREVIDENCIÁRIO
A seguridade social, como instrumento de proteção das necessidades sociais,
abrangendo uma rede de normas e relações jurídicas dela consequentes, composta pela
previdência, assistência e saúde, tem encontrado amparo na concretização dos direitos
por meio do Poder Judiciário.
O subsistema previdenciário visa a proteger, em especial, o trabalhador quando
confrontado com a impossibilidade de obter meios de subsistência através da força de
trabalho8. Para tanto, criou-se o Regime Geral da Previdência Social, previsto no artigo 9º
da Lei nº 8.213/91 e no artigo 6º do Regulamento da Previdência Social (RGPS),
aprovado pelo Decreto nº 3.048/99, com o fim de assegurar aos beneficiários meios
indispensáveis de manutenção da subsistência, por meio de contribuição.
A gerência do RGPS é incumbida, basicamente, ao Instituto Nacional da
Seguridade Social (INSS), sendo esta uma autarquia federal responsável pela
organização da previdência social. No entanto, o aumento progressivo de beneficiários do
RGPS e da expectativa de vida, combinado com o índice de desemprego da faixa
populacional ativa, dentre outros fatores, vem propiciando o “inchaço” dos cofres da
previdência social. Por não outro motivo, inúmeros benefícios previdenciários requeridos
diariamente ao INSS são indeferidos, inconformando o pretenso beneficiário.
Na hipótese do segurado do RGPS entender que se encontra incapaz para a
execução das atividades habituais, confere-se o direito de requerer o benefício
previdenciário por incapacidade que entender mais adequado junto ao INSS. A referida
autarquia agendará uma data para a realização de perícia médica a ser efetuada por
perito que atua para o próprio INSS. Da perícia administrativa resultará um laudo médico,
cujo diagnóstico analisará a eventual incapacidade ou capacidade do segurado para o
trabalho ou exercício das atividades habituais.
8
CORREIA, Marcos Orione Gonçalves. CORREIA, Erica de Paula. Curso de direito da seguridade social.
5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 30-33.
18
Desse modo, quando requerido o auxílio-doença, impõe a comprovação da
incapacidade temporária para o labor, nos termos do artigo 59 da Lei nº 8.213/91. Se não
cumprido os requisitos legais, quais sejam a qualidade de segurado e incapacidade
temporária por mais de quinze dias, o pedido é indeferido. O mesmo ocorre com os
demais benefícios por incapacidade, quando requerido o benefício de aposentadoria por
invalidez ou o auxílio-acidente; faz-se necessária a constatação da incapacidade laboral,
cumulada com os demais requisitos legais dos artigos 42 e 86 da Lei nº 8.213/91,
respectivamente.
Observando-se o indeferimento do pedido pela via administrativa por motivo de não
constatação de incapacidade laboral, o pretenso beneficiário pode interpor recurso
administrativo, a fim de alterar a decisão. Contudo, interpondo ou não o recurso
administrativo, entende-se que o simples indeferimento inicial é suficiente para a
comprovação da lesão ou ameaça de lesão a direito de concessão de benefício
previdenciário, sendo desnecessário o exaurimento da via administrativa para ingressar
com a ação no Poder Judiciário9.
Para propor ação previdenciária, no caso dos benefícios previdenciários de
natureza acidentária, tais como auxílio-acidente, auxílio-doença acidentário, e
aposentadoria por invalidez decorrente de acidente de trabalho, é competente a Justiça
dos Estados e do Distrito Federal, em respeito à redação do artigo 129 da Lei nº
8.213/9110. Após o ingresso da ação, o processo se desenvolverá pelo rito sumário, em
razão da natureza alimentar.
No entanto, para pleitear benefício previdenciário por incapacidade cuja natureza
não tenha caráter acidentário, a competência é da Justiça Federal. Neste âmbito de
competência concentraremos nossos esforços para desenvolver uma breve análise sobre
a sua efetividade, em especial, com relação ao uso do instituto da conciliação.
3.2 CONCILIAÇÃO: MECANISMO EM DESENVOLVIMENTO
As ações de competência da Justiça Federal podem ser propostas na Vara Federal
comum, quando a causa versar sobre valor superior a sessenta salários mínimos,
porquanto nos casos em que o valor da causa for até sessenta salários mínimos, são
competentes os Juizados Especiais Federais, criados por força da Lei nº 10.259, de 12 de
julho de 2001.
O artigo 3º, inciso III, da Lei nº 10.259/01, atribui ao Juizado Especial Cível a
competência para julgar ações previdenciárias com valor da causa até sessenta salários
mínimos. Significativo número de ações previdenciárias se enquadram na citada hipótese,
razão pela qual, a exemplo da cidade de Curitiba, Paraná, existem atualmente uma Vara
Federal Previdenciária de Curitiba e quatro Varas do Juizado Especial Federal
Previdenciário de Curitiba.
Embora a criação da Lei nº 10.259/01 tivesse objetivado efetivar o princípio da
celeridade processual, plasmado no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal,
acrescentado pela Emenda Constitucional n.º 45 de 08 de dezembro de 2004, o intenso
número de demandas previdenciárias ensejadas especialmente pelos recorrentes
indeferimentos administrativos dos pedidos de benefícios previdenciários, contribuindo
para o interesse do pretenso beneficiário em ser submetido à perícia judicial, aumentando
o número de ações para além da capacidade estrutural dos Juizados Especiais Federais
9
SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 3ª ed. rev. amp. et atual. Curitiba: Juruá,
2011. p. 68/69.
10 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 16ª ed. rev. amp. et atual. Rio de Janeiro:
Editora Impetus, 2011. p. 713.
19
Previdenciários, resultou na ineficácia do princípio constitucional e perspectivas da Lei nº
10.259/01.
Por tal razão, a Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná, criou um projeto
diferenciado para alcançar a celeridade processual e buscar a conciliação entre as partes
nominado SICOPP (Sistema Conciliatório Pré-Processual) 11. O Projeto de
responsabilidade do Juiz Federal da 1ª Vara do JEF Cível e Previdenciário de Curitiba,
José Antônio Savaris, cientificado e autorizado pelo Coordenador do Sistema de
Conciliação do TRF da 4ª Região, Desembargador Federal Néfi Cordeiro, foi elaborado
em 03 de dezembro de 2008, para desenvolver no âmbito da Coordenadoria Regional do
Sistema de Conciliação (SISTCON-PRO), Seção Judiciária do Paraná, conciliações junto
às quatro Varas dos Juizados Especiais Cíveis e Previdenciários da Subseção Judiciária
de Curitiba.
Na atualidade, o projeto é destinado aos processos concernentes à concessão de
benefícios previdenciários por incapacidade e aos expurgos de poupança decorrentes do
Plano Verão. A redução de prazos e custos são alguns dos objetivos da implantação do
projeto, combinados com o incentivo a conciliação e o desafogamento dos Juizados.
Integram a composição do SICOPP o Juiz Federal Coordenador do Sistema de
Conciliação (SISTCON-PR), bem como Juízes Federais designados para atuar no
SICOPP, Servidores, Estagiários Conciliadores - bacharéis e estudantes de Direito. Ainda,
o projeto prevê a participação dos agentes das entidades públicas envolvidas, com
poderes para celebrar acordos.
O procedimento das ações de benefícios previdenciários por incapacidade no
Sistema de Conciliação Pré-Processual – SICOPP foi padronizado pela Portaria nº
02/2009. Protocolada a petição inicial por meio do sistema processual eletrônico E-Proc e
efetuada a distribuição pelo mesmo sistema, a uma das Varas do JEF Previdenciário de
Curitiba, após análise de eventual prevenção, remete-se o processo ao SICOPP para
fazer a análise da exordial, conforme disposto no artigo 1º da Portaria nº 02/2009. Cabe
ressaltar que este procedimento é destinado aos processos cujos objetos são a
concessão ou restabelecimento de benefícios previdenciários ensejados pela
incapacidade laboral do segurado.
Determina o artigo 2º da Portaria nº02/2009 que recebido o processo pelo SICOPP,
os servidores analisarão a petição inicial. No caso de não observância de informações e
documentos indispensáveis ao desenvolvimento do processo, a parte autora será
intimada no prazo de dez dias para emendar a inicial, sendo este prazo prorrogável por
mais dez dias quando requerido pelo autor, nos moldes do artigo 284 do Código de
Processo Civil.
Não cumprido o ato de Secretaria, haverá o decurso do prazo e o indeferimento da
petição inicial, com consequente prolatação de sentença de extinção do processo sem
resolução do mérito, com fundamento no artigo 267, inciso I, do CPC. Em contrapartida,
dispõe o artigo 3º da Portaria nº 02/2009 que quando devidamente emendada a petição
inicial, ou inexistindo necessidade de emenda, será designada a perícia médica judicial
por ato de Secretaria de acordo com a aptidão técnica necessária para a análise da
incapacidade alegada. Alegada mais de uma doença, pertinente a diferentes
especialidades da medicina, há a possibilidade de designação de uma segunda perícia
judicial por perito diverso.
Para a realização da perícia judicial são então intimados o perito, para anexar o
laudo pericial após o exame, a Autarquia ré, a fim de anexar dados referentes ao
processo administrativo, e a parte autora, para comparecer na data do exame munida de
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e documentação médica comprovadora
da incapacidade.
11
Projeto: “Sistema Conciliatório Pré-Processual – SICOPP”.
20
Observa-se a força probatória do laudo pericial para a solução do litígio. Efetuado o
exame pericial e constada a capacidade do autor, as partes são intimidas sobre o
resultado do laudo para apresentar manifestação e, após, o processo é remetido para a
Vara de origem. No entanto, caso o perito judicial conclua pela incapacidade do autor,
serão analisados os demais requisitos essenciais para a concessão ou restabelecimento
do benefício previdenciário por incapacidade, quais sejam a qualidade de segurado e a
carência legalmente exigida. Observados os citados pressupostos, será designada a
audiência de conciliação.
Os advogados das partes são intimados, via de regra, por e-mail, porém o artigo 6º
da Portaria 02/2009 permite a intimação por telefone ou qualquer outro meio idôneo. A
pauta de audiências é disponibilizada no próprio site da Justiça Federal, Seção Judiciária
do Paraná.
A audiência de conciliação é realizada por vezes pelos juízes federais, mas na
maioria dos casos quem preside a audiência de conciliação são os conciliadores
nomeados. A condução da audiência de conciliação do âmbito do SICOPP é célere e
objetiva. Comparece a parte autora, normalmente por meio de seu procurador, e o
representante do INSS, que fará a proposta de acordo, considerando dados como data de
início da doença, data de início da incapacidade, temporariedade ou não da incapacidade
e cálculo de parcelas vencidas e vincendas para fixação dos valores em atraso e período
de concessão do benefício previdenciário.
Aceita a proposta de acordo pelo autor da ação, as cláusulas do acordo são
reduzidas a termo pelo conciliador, ata que será, então, homologada por sentença.
Posteriormente a certificação do trânsito em julgado, a chefia da Agência da Previdência
Social de Atendimento às Demandas Judiciais, AADJ, será requisitada para a implantação
do benefício concedido ou restabelecido, no prazo de 05 dias, sob pena de multa, nos
termos do artigo 9º da Portaria nº 02/2009, e o processo é então remetido para a Vara de
origem. No caso de restar infrutífera a realização da audiência de conciliação, o processo
será remetido à Vara inicial para a tramitação usual.
Importa destacar os limites de responsabilização do SICOPP determinado no artigo
13 da Portaria nº 02/2009. Embora o procedimento de conciliação se desenvolva no
SICOPP, as Varas do Juizado Especial Federal Cível e Previdenciário de Curitiba mantêm
a responsabilidade sobre os atos de execução do processo, tais como controle de prazos
para o cumprimento do acordo pelo INSS, controle das requisições de pagamento aos
peritos nomeados, cálculo do valor referente as parcelas vencidas, quando não
devidamente fixado em acordo, expedições de requisições de pagamento e instrução e
julgamento dos processos na hipóteses em que de frustração da tentativa de realização
do acordo.
O projeto SICOPP foi implantado no ano de 2009, quando já se vislumbrou a
efetividade do sistema de conciliação. No mês de agosto de 2009, quando o projeto
efetivamente iniciou, foram designadas 524 audiências, dentre as quais 519 foram
realizadas, sendo efetuados acordos em 432 audiências, computando um percentual de
86% de acordos do total das audiências realizadas. No mês dezembro de 2009, o
percentual de acordos pactuados subiu para 91% do total das audiências realizadas 12.
No ano de 2010, os percentuais de audiências realizadas com acordos
continuaram significativos. No mês de janeiro de 2010 foi de 89%, subindo para 91% no
mês seguinte e mantendo uma média de 88% de acordos efetuados durante o ano. No
mês de dezembro de 2010, o percentual chegou ao patamar mais alto, qual seja 96% de
acordos realizados13.
Dados fornecidos pela Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná, SICOPP. “Tabulação de audiências
geral – 2009”.
13 Dados fornecidos pela Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná, SICOPP. “Tabulação de audiências
geral – 2010”.
12
21
O percentual de processos em que se realizaram acordos no ano seguinte diminuiu
em 1%, desse modo das 2.223 audiências realizadas, foram efetuados 1.868 acordos,
totalizando 87% de audiências que resultaram em acordos. O mês de abril de 2011 foi o
que se evidenciou o maior percentual de acordos, quando se computou 92% de
audiências com acordos realizados14.
No início do ano de 2012, verificou-se uma queda no índice de audiências de
conciliação realizadas com acordo. Em janeiro de 2012 foram realizadas 187 audiências
de conciliação das quais resultaram 154 acordos (85% de audiências com acordos
realizados). No presente momento, foram computadas as audiências até o mês de julho
de 2012, quando ocorreram 265 audiências de conciliação. Dessas audiências, 212
resultaram em acordo entre as partes, denotando um percentual de 80%15.
Muito embora os dados fornecidos pelo SICOPP demonstrem uma diminuição no
percentual de realizações de acordos nas audiências de conciliação, o número ainda é
significativo. Como descrito, trata-se de projeto diferenciado para reduzir o número de
demandas nos Juizados Especiais Federais Previdenciários, incentivar a conciliação e
trazer ao plano da eficácia a almejada celeridade processual.
Por ora, cada Seção Judiciária da Justiça Federal possui um órgão direcionado
para a conciliação como meio alternativo para resolução de conflito, regulamentos por
meio de Portarias editadas pelas próprias Seções Judiciárias. Inexiste uma
regulamentação específica sobre a matéria, demonstrando que a conciliação no âmbito
dos Juizados Especiais Federais ainda é uma novidade, que segue caminhando para o
seu desenvolvimento ideal.
O pouco tempo de existência do SICOPP e os números percentuais apresentados
comprovam a consonância com os objetivos da Resolução nº 125 do Conselho Nacional
de Justiça, em especial a efetiva aplicação do seu artigo 1º, parágrafo único, porquanto
oferece outros mecanismos de soluções de controvérsias além da prolatação de sentença
mediante processo judicial. Trata-se de efetiva comunhão entre os princípios
constitucionais da celeridade processual e da eficiência, bem como das perspectivas
atuais Constituição Federal de 1988, e as novas metas do CNJ, formalizados na
Resolução nº 125 de 29 de novembro de 2010.
4
CONCLUSÃO
A contribuição das audiências de conciliação para a prestação da tutela
jurisdicional célere e em conformidade com os preceitos constitucionais embasados na
eficiência estatal, no que concerne às ações previdenciárias, vai ao encontro das
soluções propostas para a manutenção e sobrevivência do Estado e da Constituição da
República.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011.
Dados fornecidos pela Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná, SICOPP. “Tabulação de audiências
geral – 2011”.
15 Dados fornecidos pela Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná, SICOPP. “Tabulação de audiências
geral – 2012”.
14
22
________ . O Estado e seus limites: reflexões iniciais sobre a profanação do Estado
Social e a dessacralização da modernidade. Boletim da Faculdade de Direito.
Universidade de Coimbra, v. LXXXII, p. 569-590, 2007.
CORREIA, Marcos Orione Gonçalves. CORREIA, Erica de Paula. Curso de direito da
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______. Tabulação de audiências geral – 2010.
______. Tabulação de audiências geral – 2011.
______. Tabulação de audiências geral – 2012.
23
ANÁLISE JURIMÉTRICA DA CONCILIAÇÃO:
SANÇÃO POSITIVA DO DIREITO NA PROMOÇÃO
DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA
Juliana Cristina Busnardo Augusto de Araujo
______________________________________
Servidora Pública Federal do TRT da 9ª Região. Graduada em Direito pela PUC/PR
Especialista em Direito Empresarial pelo IBEJ
Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Integrante do Grupo de Pesquisa ligado ao Mestrado do UNICURITIBA “Tutela dos
Direitos da Personalidade na Atividade Empresarial: os Efeitos Limitadores na
Constituição da Prova Judiciária” liderado pelo Professor Doutor Luiz Eduardo Gunther
Eloína Ferreira Baltazar
______________________________________
Servidora Pública Federal do TRT da 9ª Região. Graduada em Direito pela UFPR
Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UCDD – SP
Integrante do Grupo de Pesquisa ligado ao Mestrado do UNICURITIBA “Tutela dos
Direitos da Personalidade na Atividade Empresarial: os Efeitos Limitadores na
Constituição da Prova Judiciária” liderado pelo Professor Doutor Luiz Eduardo Gunther
24
RESUMO
O presente artigo refere-se à jurimetria que converge ciência social aplicada – direito - e ciência
matemática aplicada – estatística - com o princípio básico de mensurar os fatos relacionados aos
conflitos para antecipar cenários e planejar condutas no exercício da advocacia, na elaboração
das leis e na gestão do judiciário. O objetivo central é a análise dos resultados sobre o número de
conciliações realizadas no Poder Judiciário, constituindo-se intervenção estatal na ordem
econômica mediante aplicação de sanção positiva do Direito no fomento à viabilidade econômica
das atividades desempenhadas na iniciativa privada mediante a diminuição dos riscos jurídicos,
no sentido da calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica. O significativo
número crescente dos processos conciliados, bem as ações regulamentadas pelo Conselho
Nacional de Justiça, dentre elas as Resoluções 106, de 06 de abril de 2010 e 125, de 29 de
novembro de 2010, revelam a implementação do paradigma jurídico promocional na melhoria da
economia com a diminuição dos riscos jurídicos das atividades afetas à livre iniciativa.
A pacificação dos conflitos pela conciliação pautada no modelo normativo de lógica premial
funciona como incremento à eficiência do mercado, aprimorando a segurança jurídica na criação e
no desenvolvimento das atividades econômicas, as quais, adequadamente funcionalizadas, são a
melhor forma de promover o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida da
população.
Palavras-chave: jurimetria, conciliação, promoção da eficiência econômica.
ABSTRACT
This article refers to jurimetrics that converges applied social science - right - science and applied
mathematics - statistics - with the basic principle of measuring the facts related to conflict
scenarios to anticipate and plan conducts the practice of law, in making laws and in management
of the judiciary. The main objective is to analyze the results on the number of conciliations
performed on Judiciary, becoming state intervention in the economic order by applying positive
sanction of law in promoting the economic viability of the activities performed in the private sector
by reducing legal risks in the sense of calculability and confidence in the functioning of the legal
system. The growing number of significant processes conciled and actions regulated by the
National Council of Justice, among them the Resolutions 106, April 6, 2010 and 125 of 29
November 2010, shows the implementation of legal paradigm promotional in improving economy
by reduced risk of entrerprises legal activities. The conflicts pacification through conciliation based
on rewad’s logic normative model increases market efficiency, enhancing legal certainty in the
creation and development of economic activities, which, properly functionalized, are the best way
to promote economic growth and improvement of living conditions of the population.
Keywords: jurimetrics, conciliation, promoting economic efficiency.
1
INTRODUÇÃO
O presente artigo refere-se à jurimetria que converge ciência social aplicada –
direito - e ciência matemática aplicada – estatística - com o princípio básico de mensurar
os fatos relacionados aos conflitos para antecipar cenários e planejar condutas no
exercício da advocacia, na elaboração das leis e na gestão do judiciário.
O objetivo central é a análise dos resultados sobre o número de conciliações
realizadas no Poder Judiciário, constituindo-se intervenção estatal na ordem econômica
mediante aplicação de sanção positiva do Direito no fomento à viabilidade econômica das
atividades desempenhadas na iniciativa privada mediante a diminuição dos riscos
jurídicos, no sentido da calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica.
Tal levantamento, considerada certa informatização da Justiça em todos os níveis,
demonstra elaboração viável e alberga informações extremamente interessantes não só
25
sobre os efeitos da atuação dos juízes na perspectiva econômica, mas também sobre o
impacto de todo o direito sobre a economia brasileira.
A investigação revela alta credibilidade, já que baseada em dados objetivos e
instrumentalizada por pesquisa de processos similares nas diversas regiões do país, com
demonstração analítica dos dados e resultados obtidos. É claro, preciso, traduz uma
realidade fática.
O significativo número crescente dos processos conciliados, bem como as ações
regulamentadas pelo Conselho Nacional de Justiça, dentre elas as Resoluções 106, de 06
de abril de 2010 e 125, de 29 de novembro de 2010, revelam a implementação do
paradigma jurídico promocional na melhoria da economia com a diminuição dos riscos
jurídicos das atividades afetas à livre iniciativa.
2
A JURIMETRIA NO BRASIL
A análise econômica do direito - Law and Economics – L & E – é uma forma
específica de interpretação do direito surgida em Chicago, EUA, no início dos anos 70,
inspirada na forte contraposição entre capitalismo e socialismo. A escola de Chicago
defendia a economia de mercado; em oposição, surge em Harvard a Critical Legal
Studies, politicamente socialista e comunista.
Segundo Decio Zylbersztajn e Rachel Sztajn existem “diferentes correntes
doutrinárias que buscam explicar o fenômeno econômico e propor medidas para corrigir
distorções geradas por normas de Direito positivo, com fundamento em análises
econômicas. Entre elas, encontram-se a Escola de Chicago, a de Yale, a da Nova
Economia Institucional, a Escola Pública, entre outras”1.
As esparsas pesquisas jurimétricas antes produzidas eram, em sua maioria,
voltadas para questões processuais. A preocupação social com o aperfeiçoamento da
Justiça e gestão dos Tribunais promoveu a concentração de estudos quantitativosempíricos, refletida em políticas implementadas por autoridades judiciárias em todos os
níveis, figurando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como a instituição difusora destes
anseios.
A jurimetria converge ciência social aplicada – direito - e ciência matemática
aplicada – estatística, cujo princípio básico é mensurar os fatos relacionados aos conflitos,
para antecipar cenários e planejar condutas no exercício da advocacia, na elaboração das
leis e na gestão do Judiciário.
A Estatística tem por objetivo obter, organizar e analisar dados, determinar as
correlações que apresentem, tirando delas suas consequências para descrição e
explicação do que passou e previsão e organização do futuro.
Traduz ciência e prática de desenvolvimento de conhecimento humano pelo uso de
dados empíricos, em que a aleatoriedade e incerteza são modeladas pela teoria da
probabilidade.
A premissa jurimétrica aborda discussões jurídicas “de baixo para cima” de forma a
propiciar conhecimento profundo das tendências dos conflitos como matéria-prima da
elaboração das soluções processuais. A disciplina se assenta na concepção matemáticaestatística do estudo tradicional do direito que discute de forma teórica e conceitual leis e
princípios abstratos. A Law and Economics foi criada para aplicação no sistema da
common law (de baixo para cima), parte-se da lide como realidade absoluta, do fato para
o direito posto.
1
ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 77.
26
A jurimetria pode medir, por exemplo, o percentual de decisões de um
tribunal sobre um determinado assunto ou disciplina e os resultados podem alterar as
estratégias de condução de vários casos.
Estudiosos da matéria dedicam-se a questões mais específicas, como teses
aceitas com maior ou menor frequência, a frequência em que uma norma é aplicada nos
julgamentos, o perfil decisório de um determinado juiz, a probabilidade de
descumprimento de uma cláusula contratual, bem como o número de conciliações
realizadas pelo magistrado, sendo esta última perspectiva a matriz temática deste estudo.
No Brasil, a jurimetria vem sendo objeto de estudo da Associação Brasileira de
Jurimetria (ABJ) com o apoio da Associação dos Advogados de São Paulo, Instituto de
Matemática e Estatística da USP e Sociedade Brasileira de Direito Público.
A Associação Brasileira de Jurimetria, fundada no Brasil em 2009 por um grupo de
professores de direito e estatística da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da
Universidade de São Paulo, se empenha em “reunir todo mundo que, no Brasil, já tentou
algum tipo de diálogo entre essas duas áreas do conhecimento, para compor o repertório
da disciplina”2, segundo o professor Fábio Ulhoa Coelho.
Justifica o advogado Marcelo Guedes Nunes3, presidente da Associação Brasileira
de Jurimetria (ABJ), diferentemente das normas abstratas, os processos e fatos jurídicos
surgem em populações numerosas, cujas características, entretanto, permitem uma
sumarização. Explica a jurimetria no seguinte sentido:
A jurimetria é, portanto, a disciplina resultante da aplicação de modelos
estatísticos na compreensão dos processos e fatos jurídicos. [...] a jurimetria, ao
descrever os interesses concretos dos agentes jurídicos, seus conflitos e as
soluções oferecidas pelos julgadores, pode auxiliar o direito a entender melhor o
que os cidadãos esperam das autoridades e, assim, auxiliar as autoridades a
elaborar leis mais aderentes à realidade social. Ao descrever a vida concreta do
direito, a jurimetria se torna uma ferramenta fundamental para desenvolver
instituições jurídicas mais justas e capazes de realizar as aspirações políticas da
sociedade.
Um dos campos em que o diálogo entre Direito e Economia se demonstra fecundo
reside na calculabilidade dos riscos jurídicos que envolvem a segurança jurídica.
Dependendo da forma como o Judiciário se comporta frente a um aspecto pode advir um
comportamento econômico negativo, que comprometa o estímulo às atividades
empreendedoras.
Pesquisa acerca da morosidade e da falta de previsibilidade das decisões judiciais4
demonstrou que o grande número de casos levados aos tribunais por pessoas, empresas
e grupos de interesse, a insuficiência de recursos, as deficiências do ordenamento
jurídico, o formalismo processual exagerado e a forma de atuação de magistrados e
advogados são as causas que ocupam o topo na lista das mais citadas.
A falta de credibilidade no sistema é demonstrada em outra pesquisa elaborada
Associação Nacional dos Magistrados5 que revela que 91% dos empresários avaliaram o
Judiciário como ruim ou péssimo no que concerne à sua agilidade.
2
MAGRO,
Maíra.
Estudiosos
querem
mapear
Justiça.
Disponível
em:
<
http://www.senado.gov.br/noticias/OpiniaoPublica/inc/senamidia/notSenamidia.asp?ud=20110726&datNotici
a=20110726&codNoticia=582411&nomeOrgao=&nomeJornal=Valor+Econ%C3%B4mico&codOrgao=47&tip
Pagina=1>. Acesso em: 13.09.2012.
3 NUNES, Marcelo Guedes. O que é jurimetria: como se fazem boas leis. A jurimetria a serviço da
advocacia. Disponível em: < http://abjur.org.br/o-que-e-jurimetria.php>. Acesso em: 13.09.2012.
4 ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 253.
5 VIANNA, L. W.; CARVALHO, M. A. R.; MELO, M. P. C; BURGOS, M. B. O perfil do magistrado brasileiro.
Projeto diagnóstico da Justiça. AMB/IUPERJ, 1996. In: ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e
economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 251.
27
Os que rejeitam a Law and Economics entendem que o direito estaria a serviço do
capitalismo, para maximização dos lucros. Porém os lucros são cálculos contábeis e não
econômicos, a economia analisa o comportamento do agente econômico diante de certo
fato. Assim, a análise economia comporta não somente aspectos contábeis, mas ampla
discussão acerca da sociedade.
A própria legislação econômica possui, à semelhança da maior parte do
ordenamento, um conteúdo econômico, entretanto, há, porém, neste conjunto, um plus
representado pela economicidade que transcende o dado meramente econômico,
“apresentando um núcleo caracterizado pela racionalidade econômica a serviço da
realização do justo, no âmbito sócio-econômico”6, ou seja, medida jurídica de direção e
orientação da justiça sócio-econômica estatal.
A resistência à análise econômica do direito pode ser compreendida em razão das
diferenças metodológicas utilizadas na ciência jurídica e na ciência estatística, a primeira
baseada em regra genérica a ser aplicada em casos específicos e a segunda assentada
em análise de dados gerais para extração da regra específica:
Por conta de diferentes metodologias utilizadas pelos dois ramos do conhecimento
– o modelo dogmático e abstrato ensinado nas escolas de Direito e a construção
de modelos a partir de dados empíricos recolhidos na sociedade associados a
teorias – nas escolas de economia-, os operadores do Direito veem com
desconfiança e com restrições as tentativas de associar o raciocínio econômico
aos esquemas abstratos predominantes na formulação e análise das normas
jurídicas7.
Segundo Rachel Zylbersztajn e Decio Sztajn8, as críticas ao avanço da combinação
de Direito e Economia, entretanto, vêm perdendo terreno pela demonstração de que a
contribuição é positiva, demonstrando o equívoco na afirmação de que a economia busca
eficiências enquanto o Direito se prende à promoção da questão ser/dever ser, com o
objetivo de dizer que as posições são irreconciliáveis. Justificam que os fatos
considerados sob a ótica quantitativa e empírica, própria do método econômico, em nada
destrói a argumentação jurídica, qualitativa.
O Conselho Nacional de Justiça é um órgão administrativo do Poder Judiciário e
tem como missão “contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com
moralidade, eficiência e efetividade, em benefício da sociedade”, destacando-se, dentre
suas diretrizes, a “ampliação do acesso à justiça, pacificação e responsabilidade social” –
que tem relação direta com os métodos alternativos de solução de conflitos, além da
“modernização tecnológica do Judiciário”9.
Nesse sentido, a resolução 125 de 29 de novembro de 2010 dispõe sobre a Política
Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses no âmbito do
Poder Judiciário e dá outras providências, como criar um banco de dados com plena
ênfase à tecnologia. Dessa forma, “o que esta resolução dispõe em seu capítulo III, seção
IV (Dos Dados Estatísticos), bem como no Anexo (Estatística), nada mais é que um
embrião, ainda que rudimentar, da jurimetria”10.
A resolução estabelece o dever dos tribunais criarem e manterem um banco de
dados sobre as atividades de cada centro de conciliação. As informações coletadas são
compiladas e monitoradas pelo CNJ, disponibilizados na internet no "Portal da
Conciliação" da entidade.
6
CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 318.
ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 75-76.
8 Idem, ibidem. p. 82.
9 Disponível em: < http://obrasildoprocesso.blogspot.com.br/p/jurimetria.html>. Acesso em: 13.10.2012.
10 Disponível em: < http://obrasildoprocesso.blogspot.com.br/p/jurimetria.html>. Acesso em: 13.10.2012.
7
28
A produtividade dos juízes pode, de fato, ser uma variável importante para
identificar problemas de gestão de processos. Celeridade, todavia, não significa qualidade
do julgamento. Neste ponto as variáveis “relevantes”, podem ser inúmeras, como reforma
de sentença, votos divergentes e decisões recorridas.
O “Programa Valorização da Magistratura” promovida pelo Conselho Nacional de
Justiça em Florianópolis no dia 29.06.201211, demonstra a preocupação dos magistrados
do Trabalho, compreensão a ser estendida à toda a classe da magistratura, com a
excessiva relevância atualmente atribuída aos números alcançados pelo Poder Judiciário,
retratada nas propostas consolidadas na Região Sul:
Que os métodos de avaliação estatística sirvam fundamentalmente como
instrumento para identificação dos problemas de jurimetria - e não como seu
objetivo central;
Que os critérios quantitativos deles decorrentes sejam considerados apenas
complementarmente na avaliação de desempenho da magistratura;
Que a atuação dos Juízes seja valorizada também pelos efeitos concretos de seus
atos endoprocessuais, que devem ser potencializados. Para uma valorização
política da função judicial, sentenças e decisões interlocutórias não devem ser
consideradas apenas sob prisma estatístico, mas sim na dimensão de suas
capacidades de imposição e de transformação da realidade empírica. Há que se
construir e reforçar técnicas de potencialização dos poderes do juiz na direção do
processo, amparadas na noção de “contempt of court”, além da criminalização de
condutas processuais atentatórias à eficácia da atuação judicial.
Que as avaliações estatísticas evoluam para superar o momento inicial da
jurimetria imaterial, ou jurimetria abstrata, fundada exclusivamente em indicadores
métricos de produção, técnica central das análises que se servem do conceito de
“justiça em números”. Considera-se necessário transcender essa técnica e
implementar métodos de avaliação da atuação judicial mais complexos e que
captem seu componente axiológico e seu sentido transformador da realidade, por
meio de uma jurimetria concreta, focada nos impactos efetivos da produção
judicial sobre o mundo empírico e sobre a sociedade, parametrizando os escopos
reais da jurisdição na redução da antijuridicidade;
Que se promova uma revisão estrutural das ferramentas de apoio à disposição de
Juízes para conferir maior efetividade e eficácia à prestação jurisdicional. Essa
reestruturação deve estar sustentada especialmente em meios tecnológicos, na
ênfase a métodos alternativos de solução de conflitos e no aprimoramento da
gestão de dados, e devem ser acompanhadas de uma participação mais frequente
e efetiva de Juízes de Primeiro Grau nas administrações dos tribunais.
Criar um setor responsável por analisar esses dados estatísticos, identificar em
cada região as atividades econômicas nas quais há os maiores índices de
descumprimento das normas trabalhistas e planejar ações de prevenção.
O encontro demonstra crítica à avaliação de níveis de produtividade e qualidade da
atividade judicial como reconhecimento institucional do trabalho desenvolvido. Propõe,
ainda, que se reconheça a importância de um controle estatístico, porém que ele não
deva servir como um fim em si mesmo, estimulando a produção judicial acrítica e a
concorrência interna, o que no ambiente organizacional “levam à clivagem ética do tecido
da magistratura e à desconexão comportamental, pela fragmentação de sua identidade e
de seu sentido finalístico”12.
O critério quantitativo implementado pelo CNJ e promovido pela jurimetria constituise paradigma na atual gestão do Poder Judiciário, abrangendo seu espectro à análise das
questões que envolvem a conciliação, de forma a reconhecer-se o método não
exclusivamente atrelado ao critério quantitativo, mas também à ótica qualitativa da
11
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Programa Valorização da Magistratura. Disponível em: <
http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/valorizacao-damagistratura/propostas-regiao-sul>. Acesso em: 28.10.2012.
12 Idem, ibidem.
29
análise, sob a perspectiva da influência econômica afeta à atividade conciliatória como
promoção à eficiência do mercado e a diminuição dos riscos jurídicos necessariamente
impostos pela ordem normativa vigente.
3
SANÇÃO POSITIVA DO DIREITO NA PROMOÇÃO DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA
– DIMINUIÇÃO DOS RISCOS JURÍDICOS DA LIVRE INICIATIVA
O princípio constitucional da livre iniciativa é não impor intervenção estatal ao
desenvolvimento da atividade empresarial formalmente. Materialmente é promover
investimentos, empreendedorismo e a viabilidade econômica dos projetos instituídos pela
sociedade.
O empresário no estudo da viabilidade econômica deverá se ater tanto aos custos
negociais quanto aos jurídicos, diretos e indiretos. Isto porque o risco não contabilizado
pode se converter em custo ou até mesmo em quebra.
Para que haja eficiência econômica deve haver liberdade de concorrência a qual se
baseia na segurança jurídica. Como explica Modesto Carvalhosa “o ordenamento jurídico
pesa nas opções de comportamento econômico”13.
No Brasil, os riscos jurídicos envolvidos em determinada atividade econômica
contribuem decisivamente para o aumento do valor final do preço do produto fabricado ou
vendido, ou do serviço prestado.
Isto porque as políticas públicas do Estado não convergem com as necessidades
da realidade econômica do país, como, por exemplo, as de incentivo ao
empreendedorismo e ao cumprimento da função social das empresas.
Além deste aspecto, o Judiciário se apresenta lento na resposta à demanda a ele
submetida, o que demanda tempo e custo para a empresa. A dinâmica e a complexidade
das relações comerciais no mundo atual “exigem que os operadores do direito busquem
soluções adequadas para cada situação específica, para prevenir e resolver os litígios entre
as partes”14. Por isso muitas empresas pactuam que as divergências porventura surgidas
entre as partes serão resolvidas por meio de árbitros, simplesmente eliminando a
possibilidade de recorrer ao sistema judiciário brasileiro.
A análise jurídica de determinada situação, partindo-se da lei ao fato concreto,
demanda o exame da eficácia do sistema normativo existente, o que, sem dúvida, não
direciona a uma resposta positiva, no sentido do valor a ser atribuído ao risco jurídico. As
falhas legislativas, albergando inúmeras possibilidades do não cumprimento da lei,
contribuem decisivamente para a majoração deste valor.
Estas são algumas das justificativas pelas quais se podem compreender os
motivos que levam as empresas a quebrarem em um tempo exíguo, pois menosprezam,
simplesmente desconsideram ou desconhecem os riscos jurídicos que a atividade
econômica por elas desenvolvidas comportam. Isto ao invés de fielmente contabilizá-los,
visando a análise da viabilidade do negócio, da capacidade do lucro a ser obtido e da
própria perenidade da empresa, caso estes riscos venham a se transformar em custos.
A calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica são vitais a
qualquer Estado, em nome da segurança jurídica.
O risco jurídico deriva, em parte, da qualidade das leis, que retratam ambiguidade e
instabilidade na sua aplicação. O excessivo número de normas reguladoras da atividade
empresarial no Brasil, muitas vezes conflitantes, bem como a permissão estatal da
13
CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 314.
ARBITRAGEM E MEDIAÇÃO. Roteiro de curso. Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
<http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/2/28/Arbitragem_e_Media%C3%A7%C3%A3o.pdf>.
Acesso em: 28.11.2012.
14
30
flexibilidade em sua aplicação, penalizam a competitividade e comprometem o exercício
da livre iniciativa.
É preciso evitar a ingenuidade do laissez faire absoluto, sem ignorar, porém, que o
adequado funcionamento do mercado é a melhor forma de promover o crescimento
econômico e a melhoria das condições de vida da população.
Na economia neoliberal o Estado é chamado a intervir na vida em sociedade.
Michel Foucault afirma que a liberdade não se dá de forma espontânea, precisa ser
produzida.
O Estado atua para salvaguardar o sistema (formação de trustes, concorrência
desleal, medidas inibidoras de expansão do empreendedorismo e do emprego). O
sistema de mercado produz muito atrito. O Estado intervém para preservar a
racionalidade do sistema. Para evitar efeitos maléficos das crises que ele próprio acaba
engendrando, ou seja, “da liberdade frente ao Estado evolui-se para a liberdade através
do Estado”15.
Segundo Michel Foucault16, com a instauração do neoliberalismo, a arte de
governar renovou-se em seus mecanismos, efeitos e princípios. O limite da competência
do governo passa a ser definido pelas fronteiras da utilidade de uma intervenção
governamental. O novo governo, a nova razão governamental não lida com as coisas em
si da governabilidade, que são os indivíduos, as coisas, as riquezas e as terras, de forma
direta. Tal racionalidade lida com os fenômenos da política que são os interesses
demonstrados por intermédio de determinado indivíduo, de determinada coisa, ou de
determinada riqueza, ou seja, os interesses afetos à coletividade.
Segundo o mesmo autor, para os neoliberais, o essencial do mercado não está na
troca, está na concorrência. E o problema da concorrência/monopólio, muito mais do que
o problema do valor e da equivalência, é o que vai construir a armadura essencial de uma
Teoria de Mercado. O governo liberal deve exercer ação reguladora como objetivo
principal. O Poder Público deve impedir os abusos do mercado e da liberdade contratual,
tolerando-se “que o Estado amplie suas funções para reequilibrar o processo
concorrencial”17.
Segundo Francisco Cardozo Oliveira18 a partir do séc. XIX, portanto, a
racionalidade governamental muda porque muda a racionalidade econômica. A
racionalidade do Estado é regular a concorrência, com a necessidade de uma política de
sociedade e de intervencionismo social, ativo e onipresente. Como o princípio do mercado
é a concorrência, ela precisa ser regulada, formalizada, regrada, constituindo-se este o
papel do Direito. Em última análise é o próprio Estado que determina e organiza o
mercado, dizendo quem ganha e quem perde. O Estado avança, portanto, sobre o modo
de vida da sociedade, regulando condutas individuais (biopolítica). A racionalidade
governamental vota-se para a política da vida, fazendo a forma da empresarialidade
atingir a pessoa.
Para Marcelo Neves19 o Estado Democrático de Direito caracteriza-se por ser uma
tentativa de construir uma relação sólida e fecunda entre Têmis e Leviatã, que possibilite
enfrentar os graves problemas da sociedade mundial do presente. Ou seja, o a relação
entre Estado e Direito deve ser guiada pela efetividade da tutela dos interesses da
sociedade.
15
CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 97.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo : Martins Fontes, 2008. passim.
17 CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 99.
18 OLIVEIRA, Francisco Cardozo de. Estado, direito, biopolítica e totalitarismo na atualidade. Aula
ministrada em 15.08.2008 no curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário
Curitiba - UNICURITIBA.
19 NEVES, Marcelo. Entre têmis e leviatã – uma relação difícil. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
16
31
Oliveira ensina que numa sociedade empresária, onde a concorrência é acirrada,
há mais atritos, portanto um aumento de litigiosidade. O Estado de Direito intervém no
plano econômico mediante princípios formais. Quanto mais formal a intervenção, maior a
necessidade de um serviço judiciário onipresente. A regulação social se torna necessária
para garantir a concorrência, cuja interferência se dá pela tecnologia ambiental (modo de
vida). Requer-se do Estado a promoção da “edificação dos setores econômicos
considerados básicos para a expansão da empresa privada”20.
A ideologia estatal acaba por implantar-se legislativamente, tomando o mercado a
feição proposta no projeto governamental, de forma que o Estado estimula condutas
irresistíveis mediante a criação de normas que prevejam contraprestação de prêmio à
obediência dispositiva, com vistas ao acolhimento voluntário de seus projetos sociais.
Como ainda a matéria é nova e pouco abordada no Brasil, parece que a o
problema estaria, segundo o Professor Oliveira21, na dimensão tópico-problematizadora,
na aplicabilidade do direito, que vem a ser a tensão entre a abstração da norma e a
plasticidade do fato concreto, no sentido da força de sua aplicação no caso concreto, no
exato momento da aplicação do direito.
Por isso o teoria do direito Direito buscou uma nova perspectiva, assentada em
proposições positivas do Estado, de modo a estimular condutas social e economicamente
desejáveis utilizando como uma das ferramentas para esta concretização a jurimetria, à
da coercitividade pela repressão da conduta.
Tal paradigma é assim analisado por Decio Zylbersztajn e Rachel Sztajn:
Tomando a Economia como poderosa ferramenta para analisar normas jurídicas,
em face da premissa de que as pessoas agem racionalmente, conclui-se que elas
responderão melhor a incentivos externos que induzam a certos comportamentos
mediante sistema de prêmios e punições.22”
Uma das evidências da aplicação prática desta nova lógica do sistema jurídico é
externada pela quantidade de conciliações realizadas pelo magistrado como um dos
critérios analisados para a promoção por merecimento, conforme dispõe a Resolução n.
106, de 06 de abril de 2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)23:
Art. 6º Na avaliação da produtividade serão considerados os atos praticados pelo
magistrado no exercício profissional, levando-se em conta os seguintes
parâmetros: [...]
II - Volume de produção, mensurado pelo:
a) número de audiências realizadas;
b) número de conciliações realizadas;
c) número de decisões interlocutórias proferidas;
d) número de sentenças proferidas, por classe processual e com priorização dos
processos mais antigos;
e) número de acórdãos e decisões proferidas em substituição ou auxílio no 2º
grau, bem como em Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais;
f) o tempo médio do processo na Vara. [sem grifo no original]
20
CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 99.
OLIVEIRA, Francisco Cardozo de. Estado, direito, biopolítica e totalitarismo na atualidade. Aula
ministrada em 26.09.2008 no curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário
Curitiba - UNICURITIBA.
22 ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 75.
23 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 106, de 06 de abril de 2010. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-resolucoes/12224-resolucao-no-106-de06-de-abril-de-2010>. Acesso em: 13.09.2012.
21
32
A redação do parágrafo único24 da norma revela a prevalência da conciliação frente
ao índice de sentenças como parâmetro privilegiado no cálculo da produtividade dos
magistrados:
Parágrafo único. Na avaliação da produtividade deverá ser considerada a média
do número de sentenças e audiências em comparação com a produtividade média
de juízes de unidades similares, utilizando-se, para tanto, dos institutos da
mediana e do desvio padrão oriundos da ciência da estatística, privilegiando-se,
em todos os casos, os magistrados cujo índice de conciliação seja
proporcionalmente superior ao índice de sentenças proferidas dentro da mesma
média.
Assim é que o Estado persuade a atividade individual para o atendimento prioritário
do interesse social, direcionando os Magistrados à cultura conciliatória, sendo um dos
reflexos econômicos de sua concreta aplicabilidade e aceitação pelos destinatários a
segurança jurídica de que o mercado e a livre iniciativa nutrem expectativa para seu
desenvolvimento.
Tais normas dispositivas são “o fruto de um mundo cada vez mais consciente do
valor do econômico, como elemento indispensável para a realização integral do homem
na sociedade e da impossibilidade de se desenvolver o individual, independentemente de
sua inserção em um projeto coletivo”25.
A conciliação, no Brasil, estruturada sob a égide da Resolução n. 125 do CNJ,
possui como diretriz a jurimetria, com notável contribuição à certeza jurídica, fomentando
o resultado da racional perseguição da finalidade social objetiva estatal de promoção da
eficiência econômica traduzida na minimização dos riscos jurídicos da livre iniciativa.
4
CONCLUSÃO
A pacificação dos conflitos pela conciliação pautada no modelo normativo de
lógica premial funciona como incremento à eficiência do mercado, aprimorando a
segurança jurídica na criação e no desenvolvimento das atividades econômicas, as quais,
adequadamente funcionalizadas, são a melhor forma de promover o crescimento
econômico e a melhoria das condições de vida da população.
A lógica de a sociedade empresária existir para a realização da livre iniciativa, e,
em última instância, trabalhar em nome da dignidade da pessoa humana (das pessoas
que a compõe, portanto), na perspectiva de imprimir-se os módulos da eficiência social da
entidade (atrelamento das entidades econômicas particulares aos fins sociais da
produção), é a justificativa para a criação de normas jurídicas promotoras de
comportamentos cujos destinatários se sintam impelidos a praticá-los, mediante atribuição
de vantagens aos destinatários.
As normas estatais atinentes à conciliação externalizam intervenção do Estado na
ordem econômica mediante criação de norma fiel à consecução dos objetivos
constitucionalmente traçados, dentre eles a meta sócio-econômica de promoção da
eficiência do mercado mediante a redução dos riscos jurídicos necessariamente atrelados
à atividade da livre iniciativa.
24
25
Idem. Ibidem.
CARVALHOSA, Modesto. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 313.
33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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______. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 106, de 06 de abril de 2010.
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NEVES, Marcelo. Entre têmis e leviatã – uma relação difícil. São Paulo : Martins Fontes,
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NUNES, Marcelo Guedes. O que é jurimetria: como se fazem boas leis. A jurimetria a
serviço da advocacia. Disponível em: < http://abjur.org.br/o-que-e-jurimetria.php>. Acesso
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OLIVEIRA, Francisco Cardozo de. Estado, direito, biopolítica e totalitarismo na
atualidade. Aula ministrada em 15.08.2008 no curso de Mestrado em Direito Empresarial
e Cidadania do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
______. Aula ministrada no curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.
Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Em: 26.09.2008.
ZYLBERSZTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia. Rio de Janeiro: Elsevier,
2005.
Sites consultados:
<http://obrasildoprocesso.blogspot.com.br/p/jurimetria.html>. Acesso em: 13.10.2012.
34
PRINCÍPIOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA
Luciana Piccinelli Gradowski
______________________________________
Advogada em Curitiba e Assessora Jurídica do Sindicato da Indústria da Construção
Pesada do Estado do Paraná.
Pós-graduada em Direito Administrativo e em Direito do Trabalho
Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho
Ex-Juiza Leiga do 1º Juizado Especial Cível de Curitiba
Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
35
RESUMO
Este estudo visa discutir a importância e a função dos princípios das negociações
coletivas em um mundo globalizado. A legítima aplicação desses princípios é
imprescindível para que a negociação coletiva se amolde aos ditames da democracia, do
direito e consiga equilibrar a eficiência econômica com a equidade social.
Palavras-chaves: Negociação coletiva, Princípios da negociação coletiva, OIT.
RIASSUNTO
Questo studio mira a discutire il ruolo e l`importanza dei principi della trattativa colletiva in
um mondo globalizzato. Legittima l´applicazione de questi principi è essenziale per la
trattativa colletiva se amolde i dettami della democrazia, del diritto e in grado de bilanciare
l´efficienza econômica com l´equitá sociale.
Parole chiave: Trattativa coletiva, principi della trattativa coletiva, OIT.
1
INTRODUÇÃO
A negociação coletiva sofreu o impacto das profundas transformações que
ocorreram nos últimos anos decorrentes da mundialização econômica como a aceitação
de uma economia de mercado, o fortalecimento da concorrência, o avanço tecnológico, o
encolhimento do Estado, a criação de multinacionais, a queda do Muro de Berlin e de
muitos outros fatores que resultaram dessas mudanças no mundo.
Ela ganhou relevância mundial, porém, porque se tornou um dos principais
objetivos da OIT. A Organização Internacional do Trabalho foi criada pela Conferência de
Paz, logo após a Primeira Guerra Mundial em 1919, em meio a reflexões sobre a
Revolução Industrial e seus efeitos nos trabalhadores e a “concorrência desleal entre os
países, decorrente da não observância, por alguns, de normas mínimas de proteção ao
trabalho”1.
O reconhecimento do direito a negociação coletiva para a OIT é princípio relativo
aos direitos fundamentais2. Contudo, as razões pelas quais ela vem se fortalecendo
dizem respeito em “primeiro lugar ao fato de que os códigos de trabalho envelheceram e
mostraram-se incompetentes” 3, em segundo lugar ao eficiente método de solução de
conflitos que está demonstrando ser, e por último, ao novo papel que assumiu, o de
prevenção contra o desemprego 4 na era globalizada.
No Brasil, a negociação coletiva é desregulamentada, pois não há leis que tratem
das regras pertinentes a negociação, deixando ao alvedrio das partes envolvidas o
estabelecimento de critérios para realizá-la. Essencial então, que se formulem diretrizes
para auxiliar as tratativas coletivas de modo que ao final, elas se mostrem legítimas
garantidoras de melhores condições de trabalho e dignidade para os trabalhadores.
1GUNTHER,
Luiz Eduardo. A OIT e o direito do trabalho no Brasil. Curitiba: Juruá, 2011, p. 11.
Bernard; ODERO, Alberto; Guido, Horacio. Principios de la OIT sobre la negociación
coletiva. Revista Internacional del Trabajo, v. 119, nº1, abril 2000, p. 38.
3CÓRDOVA, Efren. As relações coletivas de trabalho da América Latina. São Paulo, LTr, 1985, p. 21.
4GÓIS, Luiz Marcelo Figueiras de. Princípios da negociação coletiva de trabalho. Disponível em:
WWW.trt4.jus.br/RevistaEletronicaPortlet/servlet/.../76edicao.pdf. Acesso em: 03/08/2012.
2GERNIGON,
36
2
PRINCÍPIOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA
Princípio é uma previsão normativa de caráter geral não obrigatoriamente prevê
obrigações de caráter específico. Ele inspira o intérprete para extrair da própria norma o
melhor sentido possível para cada momento da história da sociedade; carrega, pois, força
valorativa.
Robert Alexy5 entende que os princípios são “mandamentos de otimização em face
das possibilidades jurídicas e fáticas”. Para Bandeira de Mello6, princípio é
por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o
espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência,
exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que
preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há
por nome sistema jurídico positivo.
A propósito, os princípios inseridos em uma Constituição não tem hierarquia
superior às regras, entretanto, na hermenêutica são eles que as norteiam.
“Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema
normativo”7, logo são dotados de normatividade. No entendimento de Dworkin8, os
princípios tem dimensão de peso porque aplicam-se em maior ou menor grau,
diferentemente das regras que são aplicadas ou não.
Amauri Mascaro Nascimento9 afirma que “princípio não é algo acabado, pronto,
definitivo. A palavra princípio significa começo. Logo, princípio são ideias que refletirão
numa estrutura jurídica, econômica e social, daí o sentido prospectivo dos princípios”.
Os princípios, então, como já mencionado, são cânones interpretativos carregados
de normatividade, mas “nem sempre se inscrevem nas leis” 10. São considerados por
Miguel Reale11 como “enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade
das demais asserções que compõem dado campo do saber”.
A melhor doutrina elenca vários princípios que devem ser respeitados no trato
coletivo, e esse modelo principiológico adotado no Brasil parece ser mais eficiente do que
o daqueles que tem um sistema regulamentado de negociação coletiva porque como bem
lembra Plá Rodriguez12:
Os princípios tem suficiente fecundidade e elasticidade, para não ficar presos a
fórmulas legislativas e concretas. Tem de possuir a devida maleabilidade para
inspirar diferentes normas em função da diversidade de circunstâncias. Do mesmo
modo que os princípios tem a possibilidade de inspirar diferentes legislações e
soluções em diversos países, assim também podem inspirar diversas fórmulas,
conforme as épocas e as circunstâncias.
5ALEXY,
Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros
Editores, 2012, p. 117.
6MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores,
1996, p. 545.
7BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 258.
8MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 508.
9NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Princípios do Direito Coletivo do Trabalho. Disponível em:
www.tst.jus.br/.../3.+Princípios+do+Direito+Coletivo+do+Trabalho. Acesso em: 21/07/2012.
10PIMENTA,
Wagner.
Os
novos
princípios
de
direito
coletivo
de
trabalho.
http://www.tst.jus.br/documents/1295387/1334373/5.+Os+Novos+Princ%C3%ADpios+do+Direito+Coletivo+
do+trabalho. Acesso em: 02/08/2012.
11 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 305.
12 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2000, p. 80.
37
No processo de entendimento entre as partes (sindicatos laboral e empresarial ou
sindicato laboral e empresa) o respeito a esses princípios agasalha o ato negocial com
um manto de democracia e bom senso.
A Constituição Federal, a Organização Internacional do Trabalho e a Consolidação
das Leis Trabalhistas preocupam-se, além de em garantir o mínimo que cabe ao
trabalhador, assegurar que as partes que negociam coletivamente não firam a dignidade
da pessoa humana ou o valor social do trabalho. Neste cenário entram os princípios que
doutrinariamente são elencados como necessários a negociação coletiva para alcançar o
consenso.
Otávio Pinto e Silva13 se vale de Hugo Gueiros Bernardes e sua teoria dos
princípios da negociação coletiva para afirmar que “com a adoção desses grupos de
princípios, estaria explicitado um “código ético e pragmático da negociação”, legitimador
da própria atividade negocial e estimulador da contratação coletiva”.
São vários os princípios elencados pelos doutrinadores que serão abordados a
seguir. O rol não é taxativo, pois, como bem lembrado por Bernardes, esse conjunto
principiológico está mais perto de um código de ética do que de uma normatização
estanque.
2.1
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA COLETIVA
Autônomo, independente, não depende de interferência externa. As condições de
trabalho são normatizadas pelas próprias partes interessadas. “Autonomia coletiva é a
capacidade que certos grupos sociais organizados têm de emitirem normas, através de
um processo próprio de expressão do confronto entre interesses coletivos
correspondentes” 14. Pode ser chamado também de princípio da criatividade jurídica.
A Constituição Federal valoriza as negociações coletivas e a autonomia coletiva
quando reconhece as convenções e os acordos coletivos de trabalho (art. 7º inciso XXVI).
A autonomia coletiva advém do pluralismo jurídico que não está alheio aos
interesses sociais e que “oferece formas alternativas de realização efetiva das
necessidades de uma sociedade múltipla, em face de um Estado unitário e ineficaz, que
não mais tutela os interesses e necessidades das maiorias, muito menos os da minoria”
15.
2.2
PRINCÍPIO DA INESCUSABILIDADE NEGOCIAL
A Consolidação das Leis do Trabalho prevê no seu artigo 616 que os sindicatos,
quando provocados, sejam da categoria econômica ou profissional, não podem se recusar
à negociação coletiva. Importante ressaltar que o ente coletivo não é obrigado a se
entender com a outra parte, ele precisar querer conversar, dialogar porque para o
comando legal isso é um dever, sob pena de surgirem greves legítimas ou a exclusão da
parte que se negou a negociar do processo de negociação. Pode-se substituir a parte por
entidades coletivas de grau superior.
O artigo 114, § 2º da Constituição Federal prevê que se qualquer das partes
recusar à negociação coletiva, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio
13
BERNARDES, 1989 apud SILVA, 1998, p. 107.
FILHO, Francisco das Chagas. Negociação coletiva e boa-fé: o princípio no ordenamento brasileiro
e espanhol. Curitiba: Decisório Trabalhista, 2008, p.28.
15GRIBOGGI, Angela Maria. Pluralismo Jurídico e a crise do positivismo jurídico no Brasil. Disponível
em:
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/angela_maria_griboggi.pdf.
Acesso
em:
25/10/2012.
14LIMA
38
coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito. Quanto
à essa questão, há divergências doutrinárias e jurisprudenciais no sentido da necessidade
ou não do comum acordo para que o dissídio seja aceito e julgado pelos tribunais,
entretanto a jurisprudência majoritária entende que há a necessidade do comum acordo.
Outro problema que surge da análise desse princípio diz respeito ao direito à
negociação coletiva. Arion Sayão Romita16 indica a negociação coletiva como um direito
fundamental de solidariedade. Sob esse prisma a recusa em negociar violaria um direito
fundamental; inaceitável em um Estado Democrático de Direito que preserva a dignidade
da pessoa humana e garante os seus direitos fundamentais.
Revela, então, esse princípio, um espírito democrático, que privilegia o diálogo e
acredita em um resultado de paz.
2.3
PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA ATUAÇÃO SINDICAL
Maurício Godinho Delgado17 nomeia esse princípio como da interveniência sindical
na normatização coletiva que “propõe que a validade do processo negocial coletivo
submeta-se à necessária intervenção do ser coletivo institucionalizado obreiro – no caso
brasileiro, o sindicato”.
O texto constitucional prevê a obrigatoriedade da participação do sindicato na
negociação coletiva, no seu artigo 8º, incisos III e VI. Esse dispositivo está dentro do
Capítulo II (que trata dos direitos sociais), que pertence ao Título II (Dos direitos e
garantias fundamentais). Por este motivo é considerado uma cláusula pétrea (que não
pode ser abolida) de acordo com o artigo 60, § 4º, IV da Constituição Federal.
Esse princípio terá que ser obedecido obrigatoriamente pelo sindicato profissional.
A participação do sindicato patronal não é obrigatória porque a empresa é considerada
um ente coletivo que pode firmar, por si só, acordos coletivos com o sindicato laboral de
acordo com o artigo 611 § 1º da Consolidação das Leis do Trabalho.
2.4
PRINCÍPIO DA CONTRAPOSIÇÃO
Alguns doutrinadores o entendem não como princípio, apenas como uma
constatação, eis que para existir uma negociação necessariamente há pretensões
contraditórias.
Com base nessa peculiaridade ele também é chamado de princípio do
contraditório. Abarca interesses antagônicos e em função deles é que surge a
necessidade da negociação coletiva. De um lado o interesse em melhorar as condições
de trabalho, a remuneração, garantir a preservação do emprego e de outro a
maximização dos lucros. Há interesses diferentes, mas há um em comum, o de chegar a
um consenso.
O conflito social entre os trabalhadores e a atividade econômica geradora de
empregos é consequência de uma sociedade capitalista. A negociação decorrente dessa
constatação tenta resolver os problemas gerados no âmago da relação trabalhista
coletiva, mas com eles não se confunde. Ela pode, inclusive, surgir em uma órbita
conciliadora. Exemplo disso é quando negocia-se com interesses comuns, como no caso
de os empregados desejarem continuar trabalhando e a empresa quer que eles assim o
façam, porém ela está passando por dificuldades financeiras e quer manter os empregos,
16
ROMITA apud GUNTHER, 2008, p. 104.
Maurício Godinho. Direito coletivo do trabalho e seus princípios informadores. Ver. TST,
Brasília, vol. 67, nº 2, abr/jun 2001, p. 91.
17DELGADO,
39
mas não consegue caso siga os parâmetros da legislação trabalhista. A negociação
apenas é realizada com o objetivo de adequar o direito a realidade dos fatos sem ferir a
norma vigente laboral.
Desnecessário, então, elencar como princípio da negociação coletiva o da
contraposição, sob pena de desconfigurá-la.
2.5
PRINCÍPIO DA PAZ SOCIAL
Denominado também de princípio da busca do equilíbrio social. Objetiva a
pacificação do conflito-base das negociações. Também visa os próprios negociadores que
devem buscar o entendimento em clima de harmonia e sem tirar de foco o objeto da
negociação que é obter um consenso.
Constitui este princípio “um esforço de compreensão, de convivência e de respeito
mútuo entre as partes, em que pese à diversidade de interesses imediatos, uma vez que
o objetivo mediato é a relação de trabalho, a qual deve ser preservada” 18.
É considerado fundamental porque descortina o clima hostil, põe fim ao conflito e
pacifica a coletividade.
2.6
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Também conhecido como princípio da adequação ou da proporcionalidade. Pleitos
impossíveis de serem implementados ou recusa em aceitar o que está dentro das
possibilidades não é razoável. Extremismo e irredutibilidade impedem um acordo. O
comportamento das partes e suas ações devem ser adequadas, proporcionais, tornando o
consenso um objetivo mais fácil e próximo de ser alcançado nas negociações coletivas.
2.7
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Os entes coletivos negociadores são iguais então devem ser tratados igualmente
sem a proteção ao hipossuficiente, inexistente nesta relação coletiva e presente nas
relações individuais de trabalho (empresa-empregado).
Alguns doutrinadores entendem que a nomenclatura para esse princípio é o da
equivalência entre os negociantes, porque não há hierarquia entre eles.
A garantia de emprego e estabilidade dos sindicalistas e os mecanismos que eles
tem de pressão, como a greve, faz com que haja a igualdade de nível entre trabalhadores
como ente coletivo (sindicatos laborais) e empresários.
Esse princípio quando direcionado ao fruto da negociação, ou seja, a normatização
criada, denomina-se princípio protetor e está presente tanto no Direito do Trabalho como
no Direito Coletivo do Trabalho. É ligado ao princípio constitucional da igualdade
(isonomia) porque compensa a desigualdade tratando diferentemente os desiguais.
Na negociação coletiva, a proteção aos empregados é uma das preocupações
quando da confecção dos textos das normas coletivas. O princípio protetor não é uma
premissa que afeta as partes da negociação, mas as regras coletivas criadas por elas.
18LIMA
FILHO, 2008, p.44.
40
2.8
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
A boa-fé “surge como um conceito indeterminado, que carece de preenchimento
com valorações, a operar em cada caso concreto”. 19
Ser honesto e ter consideração com o outro é ter boa-fé. Esse princípio considera
dois momentos: a negociação em si e o cumprimento do que foi acordado.
A negociação é facilitada se há a confiança e a lealdade entre as partes. Pode ser
desdobrado em outros subprincípios, que juntos formam o da boa-fé: o princípio da
lealdade (ser leal com a outra parte), do acesso à informação ou da transparência
(informar a outra parte para que a negociação seja possível), ligado à responsabilidade
das partes (pelo contratado) e do respeito mútuo aos compromissos assumidos nos
contratos coletivos (cumprimento da norma coletiva).
Há posições de doutrinadores que entendem que esse princípio encerra os demais.
O princípio da boa-fé é a bussola que norteia, mas a existência dos outros princípios é
necessária para a verificação objetiva dos pressupostos essenciais a uma boa e efetiva
negociação coletiva.
2.9
PRINCÍPIO DA SOBREVIVÊNCIA DOS DIREITOS CONCEDIDOS
CONVENÇÕES E ACORDOS COLETIVOS APÓS A EXTINÇÃO DOS MESMOS
POR
A súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho foi alterada recentemente mudando
o perfil e o entendimento quanto a sobrevivência dos direitos concedidos por instrumentos
coletivos após a extinção dos mesmos.
Na redação original, as condições de trabalho alcançadas por força de sentença
normativa, convenção ou acordos coletivos vigoravam no prazo assinado, não integrando
de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho.
Essa súmula foi alterada na sessão do Tribunal Pleno na sessão realizada em
14/09/2012 pela Resolução 185. De agora em diante o TST entende que as cláusulas
normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos
individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante
negociação coletiva, ainda que o prazo de validade destes instrumentos tenha expirado.
O princípio em comento agora ganha mais corpo para ser aplicado nas
negociações coletivas, pois pelo novo entendimento da mais alta corte trabalhista foi
instituída a chamada ultratividade das normas coletivas.
Advirão, contudo, críticas a respeito e posições doutrinárias contrárias eis que o
artigo 613 inciso II da CLT prevê que as convenções e os acordos deverão
obrigatoriamente conter prazo de vigência.
A despeito de a súmula ser um elemento facilitador do Direito, não é lei, já que ao
Poder Judiciário não cabe legislar. Ela é apenas uma linha direcionadora que o tribunal
segue a respeito de determinado assunto. Nessa esteira, cumpre analisar as futuras
decisões judiciais e as posições doutrinárias para que se alcance um nível maior de
segurança jurídica.
2.10
PRINCÍPIO DO EFEITO ERGA OMNES DOS CONVÊNIOS COLETIVOS
Antes da edição do Decreto-lei nº 229 de 28/02/1967 os efeitos dos contratos
coletivos se davam entre os associados dos sindicatos convenentes e somente se
estendiam a todos os membros da categoria por ato do Ministro do Trabalho. Esse
19
CORDEIRO, 1991 apud SILVA, 1998, p. 109.
41
comando legal deu nova redação aos artigos 611 a 625 da Consolidação das Leis do
Trabalho e conferiu a convenção e ao acordo coletivo de trabalho efeito erga omnes.
O Brasil adota o modelo legal de eficácia geral quanto aos efeitos dos convênios
coletivos, pois a convenção coletiva de trabalho não se aplica exclusivamente aos
associados do sindicato, ela se estende a todos os membros da respectiva categoria de
acordo com o artigo 611 da CLT.
2.11
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SETORIAL NEGOCIADA
Defendida por Maurício Godinho Delgado, diz respeito a harmonização entre as
regras jurídicas criadas e advindas da negociação coletiva e aquelas oriundas da
legislação heterônoma estatal.
As normas autônomas específicas e coletivas podem prevalecer sobre a geral
advinda do Estado em dois casos20:
a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial
de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma
aplicável;
b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente
parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de
indisponibilidade absoluta).
No primeiro caso, é indiscutível que, como as regras criadas são mais benéficas,
não se analisa os pormenores de uma legislação que não afronta a existente e amplia
direitos. No segundo caso, há limitações acerca do que é transacionado porque se
relaciona a direitos relativamente indisponíveis.
2.12
PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA
A função social é um conceito que permeia todo o sistema jurídico brasileiro. Há
previsão, por exemplo, da função social da propriedade nos artigos 5º inciso XXIII; 170
inciso III; 182; 185; 186 todos da Constituição Federal e da função social do contrato no
artigo 421 do Código Civil.
As negociações coletivas com objetivos políticos que visam imposições de
ideologias ou ainda mostram-se, simplesmente, como uma alternativa para negociadores
ganharem o poder, sem interesse legítimo de proteção à classe trabalhadora, não
cumprem a sua função social.
Entretanto, aquelas que adequam as relações entre trabalhadores e empregadores
ao mundo globalizado sem desconsiderar o valor social do trabalho, previsto no artigo 1º
inciso IV da Constituição Federal, cumprem a sua função social.
3
PRINCÍPIOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA DA OIT
A OIT através do conteúdo de suas normas e dos seus princípios “contribuiu para
que a negociação coletiva mantenha a sua capacidade de adaptabilidade ao meio, às
20DELGADO,
Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2009, p. 1281.
42
mudanças e garanta o equilíbrio entre as partes e as possibilidades de avanço social” 21.
Inseridos dentro das suas Convenções e Recomendações estão os princípios referentes a
negociação coletiva.
3.1
PRINCÍPIO DA LIBERDADE SINDICAL
Constante da Convenção 87 da OIT sobre a liberdade sindical e a proteção do
direito sindical, esse princípio assegura a independência dos trabalhadores e das
entidades patronais para, sem autorização prévia, constituírem organizações da sua
escolha, elaborar estatutos, constituírem federações e confederações sem a intervenção
das autoridades públicas. Assegura, também, que essas entidades não sejam dissolvidas
ou suspensas por via administrativa.
O preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho considera
que a afirmação do princípio da liberdade sindical está entre os meios viabilizadores da
melhora das condições dos trabalhadores e da garantia da paz .
O Brasil não ratificou essa Convenção, mas a liberdade sindical está prevista no
artigo 8º da Constituição Federal Brasileira, porém de forma mitigada pela unicidade
sindical constante do inciso II do mesmo comando legal. Entende-se como unicidade a
vedação à criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa
de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial.
Pode-se destacar deste princípio, o subprincípio da liberdade para decidir o nível
da negociação também chamado de princípio da ampliação progressiva do elenco das
unidades de negociação coletiva. A Recomendação nº 163 no seu inciso II, número 4,
dispõe que medidas condizentes com as condições nacionais devem ser tomadas, para
que a negociação coletiva seja possível em qualquer nível, inclusive o do
estabelecimento, da empresa, do ramo de atividade, da indústria, ou nos níveis regional
ou nacional.
Outro subprincípio destacado da liberdade sindical é o do caráter voluntário da
negociação coletiva, pelo qual as partes não podem ser obrigadas pela legislação ou
pelas autoridades a negociar.
A liberdade de associação, outro subprincípio, é a “prerrogativa obreira de
associação e de sindicalização e que alcança as prerrogativas de livre estruturação
interna, livre atuação externa, autossustentação e direito à autoextinção”22 e que “no
Direito Coletivo do Trabalho tem a sua expressão máxima na liberdade sindical”23.
A liberdade sindical, contudo, só se concretizará plenamente quando for eliminada
a unicidade sindical obrigatória e definida pelo Estado, a contribuição compulsória
também chamada de contribuição sindical e a organização apenas por categoria
profissional.
3.2
PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA
A busca pela verdade dos fatos através do conhecimento das reais condições da
empresa e do que efetivamente os empregados necessitam, fazem parte do rol de
informações necessárias para que as discussões sejam pautadas pela ética e pelo bom
senso.
21GERNIGON,
Bernard et. al. A negociação coletiva na administração pública brasileira. Rio de Janeiro:
Forense/OIT, 2002, p. 19.
22DELGADO, 2001 apud GOMES, 2012, p. 49.
23GOMES, Miriam Cipriani. Violação dos direitos fundamentais na negociação coletiva de trabalho.
São Paulo: LTr, 2012, p. 49.
43
Esse princípio está consagrado no inciso II, nº 7 da Recomendação 163 da OIT
que versa sobre a promoção da negociação coletiva de trabalho. O número 7.1 desse
instrumento enfatiza que no caso de vir a ser prejudicial à empresa a revelação de
informações, sua comunicação pode ser condicionada ao compromisso de que será
tratada como confidencial na medida do necessário.
3.3
PRINCÍPIO DA PREPONDERÂNCIA DO INTERESSE COLETIVO SOBRE O
INDIVIDUAL
A lei que define mais claramente o que é interesse coletivo é o Código de Defesa
do Consumidor (artigo 81 inciso II). Conceitua-o como sendo aquele de natureza
indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou
com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Previsto na Recomendação 91 de 1951 garante a supremacia do contrato coletivo
sobre o contrato individual de trabalho, tendo como exceção as cláusulas dos contratos
individuais mais benéficas para os trabalhadores.
Somam-se também a esses princípios da OIT, o da boa-fé, não menos importante,
mas já mencionado anteriormente, constante da Convenção nº 154 que assinala que a
negociação coletiva somente funcionará eficazmente se for dirigida com absoluta boa-fé
pelas partes, e ainda o princípio que diz respeito ao caráter vinculante dos acordos e
convenções coletivas de trabalho previsto também na Recomendação 91 da OIT.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nota-se que “gradativamente se desloca o eixo, o centro da positividade jurídica,
da lei para os contratos coletivos, como consequência, por todos os aspectos normal e
desejada, da democratização e da privatização crescente das relações coletivas”.24
Entretanto, para que os documentos coletivos firmados possam ser verdadeiros
instrumentos de pacificação social, devem, a priori, respeitar o princípio basilar sobre o
qual está fundado o nosso Estado (art. 1º inciso III da Constituição Federal) que é o da
dignidade da pessoa humana. Os fundamentos da República são de observância
obrigatória porque eles justificam o modelo de Estado em que vivemos.
No Brasil, o valor social do trabalho também é considerado princípio fundamental
previsto no artigo 1º inciso IV da Constituição Federal, por isso a importância que se dá
ao trabalho não pode ser considerada por sindicatos, Estados, cidadãos, empregados ou
patrões.
José Afonso da Silva25 assevera que “os valores sociais do trabalho estão
precisamente na sua função de criar riquezas, de prover a sociedade de bens e serviços
e, enquanto atividade social, fornecer à pessoa humana bases de sua autonomia e
condições de vida digna”.
Importante ressaltar que os valores sociais do trabalho só se materializam com
condições equitativas, “direito a uma remuneração que assegure ao trabalhador e à sua
família uma existência conforme a dignidade humana do trabalhador e seus familiares” 26.
Na globalização, o econômico é colocado como primordial e o humano, o pessoal,
é relegado ao segundo plano. Então, para assegurar condições de igualdade,
remuneração compatível e existência digna, os trabalhadores devem se valer da
24NASCIMENTO,
25SILVA,
p. 39.
26 Idem.
2012.
José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2009,
44
negociação coletiva como instrumento social de garantia, pacificação e consenso.
Os
princípios da negociação coletiva assumem, desta forma, um perfil garantidor dos próprios
princípios fundamentais insculpidos na Lei Maior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo: Malheiros Editores, 2012.
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45
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46
A MEDIAÇÃO COMO MEIO ALTERNATIVO (E POSSÍVEL)
À RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS
João Paulo Vieira Deschk
______________________________________
Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pelo (UNICURITIBA)
Especialista em Direito Empresarial Contemporâneo pelo Centro de Ensino Superior dos
Campos Gerais (CESCAGE) (2007)
Professor nos cursos de Direito e Administração das Faculdades Integradas Cescage
Paulo Ricardo Opuszka
______________________________________
Doutor em Direito (2010), área de Concentração em Direitos Humanos,
Democracia e Desenvolvimento
Mestre em Direito (2006) pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, área de Concentração em Direito Cooperativo e
Cidadania
Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania da
Unicuritiba
Professor da Especialização em Educação em Direitos Humanos da Universidade
Federal do Rio Grande e Universidade Aberta do Brasil
Professor da Especialização Direito do Trabalho, Processo e Mercado do Centro de
Estudos Jurídicos do Paraná
Professor nos Cursos de Graduação em Direito nas disciplinas de Economia e
Direito Constitucional do UNICURITIBA
47
RESUMO
A solução dos inúmeros conflitos sociais, historicamente está ligada à função jurisdicional
do Estado como única forma possível e legal para tal solução. Pretende-se demonstrar a
mediação como um meio adequado, célere e juridicamente possível para a pacificação
social, passando inicialmente pelos conceitos de jurisdição e sua função, a chamada crise
da jurisdição, e os principais pontos a serem destacados sobre a mediação e sua
aplicabilidade junto aos conflitos sociais.
1
INTRODUÇÃO
Os conflitos sociais na atualidade buscam uma solução rápida, eficaz e segura, e
para tal, surgem alternativas à busca pelo Poder Judiciário, que dentre elas se apresenta
a mediação.
Tendo em vista a infinidade de demandas levadas ao Poder Judiciário, tornando
cada vez mais morosa a prestação Jurisdicional pretendida. As alternativas ao controle
jurisdicional da solução de conflitos se apresentam como viáveis e juridicamente possíveis
para por fim a situações em que não se apresenta como obrigatória participação ativa da
jurisdição.
Quanto ao Instituto da Mediação, apesar de ainda não haver uma legislação
específica no Brasil, há um Projeto de Lei do ano de 2002, bem como a Resolução 125 do
CNJ, que não se tratam de novos institutos, pois, dentro do que se verifica na história, a
auto-composição ocorre em diversos momentos, talvez não com a denominação
específica de mediação, mas com a ideia de que um terceiro isento, facilita a negociação
entre partes litigantes, fazendo com que elas cheguem a um consenso sobre o objeto do
litígio, pacificando conflitos que fatalmente seriam levados aos tribunais.
2
JURISDIÇÃO
Mesmo se entendendo que a Jurisdição deve ser movimentada como ultima ratio,
os meios alternativos de solução de controvérsias ainda não têm uma plena utilização por
diversos motivos.
A moderna doutrina indica a mudança de nomenclatura do que hoje se chama de
meios alternativos, para meios adequados de solução de controvérsias, tendo em vista
não só as críticas que adiante serão indicadas, mas também os benefícios que os estas
maneiras diferenciadas trazem para a solução de conflitos.
Benefícios estes que podem ser elencados não só de ordem pessoal, processual e
empresarial, como também os reflexos dessas decisões, no dia a dia das pessoas, e no
desenvolvimento econômico e social.
Tendo como premissa a ideia de que a jurisdição é um poder do Estado, poder
este exercido por cidadãos investidos nos cargos por ela determinados, e que ao
exercerem sua função, buscam, dentro das limitações impostas, pacificar os conflitos
sociais a ele dirigidos, começamos a delinear os pontos destacados pela doutrina que
conceitua o tema.
Destaca-se inicialmente o conceito de Jurisdição dos autores, Antonio Carlos de
Araujo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco1 utilizada pela maioria
dos doutrinadores como base para seus estudos:
1
ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria
Geral do Processo, 26ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010. Pag. 149
48
“... podemos dizer que é uma das funções do Estado, mediante a qual este se
substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a
pacificação do conflito que os envolve, com justiça.”
A partir deste conceito, já se podem extrair diversas características, destacando-se
de antemão que a jurisdição assume a característica de poder, função e atividade. No
entanto, antes de adentrar na questão da chamada crise da jurisdição, importante
destacar outros conceitos indicados na doutrina para uma melhor compreensão do tema.
Nesta mesma linha de raciocínio, Antônio Carlos da Costa e Silva 2 conceitua o
termo jurisdição com a indicação que:
“O Estado, órgão soberano, se possui funções formais organizativas que lhe
permitem editar as normas jurídicas e promover sua execução, tem, também, que
solucionar os “conflitos de interesses”, promovendo a atuação da vontade da lei, ante
cada caso concreto”.
Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini3, não diferem na essência dos
conceitos indicado, assim conceituando jurisdição:
“A jurisdição é, portanto, no âmbito do processo civil, a função que consiste
primordialmente em resolver os conflitos que a ela sejam apresentados pelas pessoas,
naturais ou jurídicas (e também pelos entes despersonalizados, tais como o espólio, a
massa falida e o condomínio), em lugar dos interessados, por meio da aplicação de uma
solução prevista pelo sistema jurídico.”
Cita-se ainda Humberto Theodoro Junior4 que leciona sobre jurisdição aduzindo
que:
“jurisdição é o poder que toca ao Estado, entre as suas atividades soberanas, de
formular e fazer atuar praticamente a regra jurídica concreta que, por força do direito
vigente, disciplina determinada situação jurídica.”
Portanto, a partir da apresentação dos conceitos indicados pela doutrina, serão
apresentados comentários que tratam destas características, dando forma a esta solução
estatal de conflitos e que ao final deste estudo, se buscará indicar a mediação como meio
possível para solução de conflito, trazendo os reflexos econômicos da utilização desta
forma de composição.
3
CRISE DA JURISDIÇÃO
Neste ponto, objetiva-se apresentar alguns comentários ao que parte da doutrina
chama de crise da jurisdição, pois o modelo estatal de substituição às partes para
resolução de conflitos vem sofrendo inúmeras críticas por parte desta e também da
população em geral.
É sabido que alguns profissionais do direito, em todas as esferas (Advocacia,
Magistratura e Ministério Público, entre outros) não possuem a devida capacitação para o
exercício da atividade, não se pretendendo discutir o mérito de qualidade das faculdades
de direito, porém o que se vê, são inúmeros profissionais que, semestralmente, são
colocados no mercado de trabalho, com capacidade profissional no mínimo duvidosa.
Além da questão estrutural, que é preocupante, a velocidade da informação e até
mesmo o desenvolvimento econômico e social em que o Brasil passa nos dias de hoje,
faz com que o número de demandas aumente, tendo em vista o fato de que os chamados
2
SILVA, Antônio Carlos Costa e. Da Jurisdição executiva e dos pressupostos da execução civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1980, pag. 86.
3 WAMBIER, Luiz Rodrigues e TALAMINI, Eduardo, Curso Avançado de Processo Civil. Vol. 1, 11ª ed.,
Curitiba: Revista dos Tribunais, 2010 pag. 84.
4 THEODORO JUNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1, 49ª ed., Forense. Pag. 38-39
49
hipossuficientes culturais passam também a buscar seus direitos junto ao Poder
Judiciário.
As palavras de Jose Luis Bolzan de Morais5, sobre o tema, indicam este problema:
“Assim, as crises da Justiça fazem parte de um quadro cada vez mais intrincado de
problemas que são propostos à solução, tendo-se como paradigma a continuidade da
ideia de Estado de Direito - e por consequência do Direito como mecanismo privilegiado –
como instrumento apto, eficaz e indispensável para a solução pacífica dos litígios, e que
se ligam umbilicalmente ao trato do problema relativo à transformação do Estado
Contemporâneo.”
Diante desta primeira afirmação, veremos que muitos são os autores que tratam
deste tema, e que as motivações que levam às afirmações, também se equivalem.
Boa parte dos autores que tratam deste tema vinculam a crise da jurisdição, com
as dificuldades do acesso a justiça, o que de fato têm razão, pois, em não sendo
garantido um acesso rápido e efetivo à busca de seus direitos, o cidadão já se vê
cerceado de um dos seus direitos constitucionalmente garantido.
Mais precisamente quanto aos obstáculos que impedem o acesso a justiça, Zoraide
Amaral de Souza6 indica que,
“o acesso à Justiça, no Brasil, enfrenta três tipos de obstáculos para a sua
efetividade: barreiras econômicas (o custo da justiça, os honorários de advogados, os
riscos da sucumbência), barreiras geográficas (decorrentes da imensidão do território
nacional) e barreiras burocráticas (desaparelhamento e inadequação da estrutura
judiciária para enfrentar a massa de feitos que lhe são submetidos).”
Diante do que afirmou a autora, já se pode visualizar que os problemas que
envolvem o acesso à justiça, e consequentemente a Jurisdição, na busca de um dos seus
objetivos, que é fundamentalmente a pacificação social, são recorrentes na doutrina.
Luciane Moessa de Souza cita e comenta a afirmação de Luiz Guilherme Marinoni
e Horácio Wanderlei Rodrigues7, que apontam, basicamente, quatro ordens de obstáculos
para o acesso à justiça:
“a) obstáculo de natureza financeira, consistentes na incompatibilidade entre a
renda da maior parte da população brasileira e os altos valores cobrados por honorários
advocatícios no mercado privado, associada á estruturação insuficiente dos órgãos
incumbidos de prestar assistência jurídica gratuita; b) obstáculos temporais,
consubstanciados na morosidade característica do Poder Judiciário, seja por dificuldades
institucionais, relacionadas à má administração, falta de modernização tecnológica e/ou
insuficiência do número de magistrados e de servidores, seja em razão da complexidade
do nosso sistema processual, que permite a interposição infindável de recursos; c)
obstáculos psicológicos e culturais, consistentes na extrema dificuldade para a maioria da
população no sentido de até mesmo reconhecer a existência de um direito, especialmente
se este for de natureza coletiva, na justificável desconfiança que a população em geral (e
em especial a mais carente) nutre em relação aos advogados e ao sistema jurídico como
um todo e, ainda, na também justificável intimidação que as pessoas em geral sentem em
relação ao formalismo do Judiciário, e dos próprios advogados; d) obstáculos
institucionais, referentes aos direitos de natureza coletiva, em que “a insignificância da
lesão ao direito, frente ao custo e à morosidade do processo, pode levar o cidadão a
desistir de exercer o seu direito por ser a causa antieconômica”.”
5
MORAIS, José Luis Bolzan de, Mediação e Arbitragem: alternativa a Jurisdição, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1999 Pag. 99
6 SOUZA, Zoraide Amaral de. Arbitragem: conciliação: mediação nos conflitos trabalhistas. São Paulo: LTr,
2004. Pag.31
7 SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos:
negociação, mediação e conciliação na esfera administrativa e judicial. Belho Horizonte: Fórum, 2012. Pag.
38
50
Segue ainda o comentário da autora8
que sem sombra de dúvida, a primeira e a terceira ordens de obstáculos
elencados são as que impedem até mesmo o acesso formal ao Judiciário, ao
passo que os obstáculos de natureza temporal impedem, certamente, que se
obtenha um processo justo e geram, poderíamos acrescentar, a descrença da
população em relação ao aparato jurisdicional como um todo. Esta decorre
também – é preciso salientar – de problemas de conteúdo, qualidade ou justiça
das decisões, seja por questões estruturais (falta de tempo e de recursos para se
dedicar aos processo como seria necessário), seja por questões de falhas na
formação dos magistrados, que não são treinados para buscar em primeiro plano
a prestação de um serviço jurisdicional de qualidade à população, mas têm, em
boa parte, um bagagem jurídica eminentemente formalista e desvinculada dos
aspectos éticos e sociais da função judicial, seja ainda por problemas de
corrupção ou falta de independência do Judiciário, especialmente no que diz
respeito aos processo envolvendo o Poder Público.
No artigo de autoria de Roland Hasson e Hermínio Back9, em obra coordenada
pelo professor Luiz Eduardo Gunther, fruto de pesquisas realizadas no mestrado do
Unicuritiba, os autores afirmam que
“qualquer instituto de pesquisas é capaz, por meio de entrevistas com leigos, de
apontar os principais obstáculos a uma prestação jurisdicional mais eficiente. Esses
obstáculos, indicados pelos cidadãos comuns, constituem um vicioso tripé: morosidade,
onerosidade, corrupção. São três alicerces da crise, três insidiosas fontes de ineficiência e
de frustração aos que buscam a justiça.”
Cabe, porém, diante do que acima foi afirmado, levar em consideração as questões
particulares, que fazem com que as opiniões desses leigos, venham carregadas de
emoções, de questões pessoais e/ou sentimentos que podem influenciar na opinião
desses entrevistados.
Em obra já citada, organizada pelo professor Luiz Eduardo Gunther, Leandro Galli10
chama de irracionalmente morosa a prestação da atividade jurisdicional, citando que a
“atividade jurisdicional brasileira, salvo raríssimas exceções, tributáveis ao talento
individual e abnegação de alguns magistrados, é irracionalmente morosa, e, embora não
se tenham dados estatísticos seguros, a experiência forense denuncia ser normal que um
processo judicial tramite, entre ajuizamento e satisfação, por algo entre quatro e seis
anos.”
Contudo se mostra importante a citação feita por Raul Portugal Bacellar 11 onde
indica que desta denominada crise deve-se observar também as questões pertinentes às
faculdades de direito que hoje estão em atividade, dizendo o autor que é
“importante em um primeiro momento fazer uma análise daquilo que se tem
denominado crise do Poder judiciário. Essa crise parece ser uma crise não só do Poder
judiciário, mas do próprio ensino jurídico que forma os trabalhadores, servidores ou
operadores do Direito. O modelo é adversarial e o raciocínio é puramente dialético. De um
conflito entre pessoas, analisado sob o prisma da lide em disputa, resultam sempre
vencedores e vencidos.”
8
SOUZA, 2012 Pag. 39
HASSON, Roland. BACK, Hermínio, Crise na prestação jurisdicional: uma solução radical In
GUNTHER, Luiz Eduardo; (coord.). Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional. 1ª Ed. (ano
2008), 1ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2009. Pag.. 666
10 GALLI, Leandro, A crise da jurisdição e o desrespeito às obrigações negociais, In GUNTHER, Luiz
Eduardo; SANTOS Willians Franklin Lira dos (coords.). Jurisdição: crise, efetividade e plenitude
institucional. Curitiba: Juruá, 2009. Pag. 265
11 BACELLAR, Roberto Portugal, Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional/
coordenadores Morgana de Almeida Richa e Antonio Cezar Peluso.: Rio de Janeiro: Forense, 2011 Pag. 31
9
51
Deste modelo usual para resolução dos conflitos, do resultado analisado sob a
ótica de vencedores e vencidos e o que alguns chamam de cultura de sentença é que
mais uma vez se observam as soluções alternativas para resolução de conflitos como um
meio possível e eficaz para os pontos que estão sendo abordados neste capítulo.
4
A MEDIAÇÃO COMO MEIO ALTERNATIVO À JURISDIÇÃO
A doutrina especializada sobre os meios alternativos de solução de controvérsias,
ainda caminham de forma tímida tanto nas publicações, como também nos estudos das
faculdades. No entanto, autores consagrados dentro do direito processual, ao tratarem da
Jurisdição, citam estes meios alternativos como possíveis e viáveis.
Inicialmente se apresenta a lição dei Araujo Cintra, Grinover e Dinamarco 12 ao falar
do tema:
“Abrem-se os olhos agora, todavia, para todas essas modalidades de soluções
não-jurisdicionais dos conflitos, tratadas como meios alternativos de pacificação social.
Vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se
irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que
eficientes. Por outro lado cresce a percepção de que o estado tem falhado muito na sua
missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o exercício da jurisdição e através
das formas do processo civil, penal ou trabalhista.”
Vale ainda a citação de, Wambier e Talamini13 que também relatam esses meios
alternativos afirmando que:
“Os métodos extrajudiciais de solução de conflitos, também denominados pela
doutrina de equivalentes jurisdicionais, são aqueles, como o próprio nome denuncia, que
prescindem da atuação do Poder Judiciário para que o litígio entre as partes seja dirimido.
Tais métodos, em especial a conciliação, a mediação e a arbitragem, possuem como
vantagens, segundo alguns: possibilitar uma verdadeira composição da lide, de forma
menos custosa, tanto emocional quanto financeiramente, e mais célere.”
Assim, verifica-se que, mesmo a doutrina processualista, que trata
fundamentalmente com a solução de controvérsias através da Jurisdição, já trata da
mediação e de outros meios de solução de conflitos, como assunto atual dentro da nossa
realidade jurídica.
Indicada algumas das doutrinas que tratam das soluções alternativas de solução de
conflitos, que já se apresentam como solução viável e juridicamente possível para solução
de controvérsias, cabe agora indicar o que a doutrina conceitua por mediação para
podermos analisar esta forma alternativa, sua viabilidade e possibilidades.
Inicialmente o conceito de Araujo Cintra, Grinover e Dinamarco14, quando tratam da
mediação:
“A mediação assemelha-se à conciliação: os interessados utilizam a intermediação
de um terceiro, particular, para chegarem à pacificação do seu conflito.”
No mesmo sentido da conceituação acima, Cláudia de A. Lima Pisco 15, leciona que
a mediação se trata de
“métodos autocompositivos induzidos, pois as partes necessitam da intervenção de
uma terceira pessoa como um mediador ou um conciliador.”
12
ARAÚJO CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2010 pag. 31
WAMBIER e TALAMINI, 2010 Pag. 93
14 ARAÚJO CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2010 Pag. 34
15 PISCO, Cláudia de A. Lima. Técnicas para Solução Alternativa de Conflitos Trabalhistas. Revista LTr, n.
11, v. 70 p. 1.349, Nov. 2006
13
52
Verifica-se que a partir do acima indicado, a mediação é eminentemente uma
solução de conflito autocompositivo, ou seja, parte-se do consenso entre as partes, para
que a mediação possa surtir o efeito esperado.
Vale também indicar a doutrina específica sobre mediação, citando José Luis
Bolzan de Morais16, que assim conceitua mediação:
“um modo de construção e de gestão da vida social graças a intermediação de um
terceiro neutro, independente, sem outro poder que não a autoridade que lhes
reconhecem as partes que a escolheram ou reconheceram livremente. Sua missão
fundamental é (re) estabelecer a comunicação.”
Pode-se então perceber a similaridade das ideias, entre os processualistas e a
doutrina especializada quanto ao tema, apresentando a figura do mediador como o
facilitador da negociação, eleito pelos envolvidos, com poderes específicos e indicados
por estes que o elegeram.
Dentre as diversas características da mediação, tais como a oralidade, privacidade,
economia de tempo, destacamos a reaproximação das partes como característica
fundamental da mediação por podermos visualizar esta reaproximação como um ideal de
justiça e solução justa dos conflitos.
Citando novamente José Luis Bolzan de Morais17, agora quanto a reaproximação
das partes, o autor relaciona a mediação com o processo judicial, nos seguintes termos:
“O instituto da mediação, ao contrário da jurisdição tradicional, busca aproximar as
partes. Trabalha-se para resolver as pendências através do debate e do consenso, tendo
como objetivo final a restauração das relações entre os envolvidos. Não se pode
considerar exitoso o processo de Mediação em que as partes acordarem um simples
termo de indenizações, mas que não consigam reatar as relações entre elas. Por isso
dizer-se que uma das funções do mediador é a de (re) aproximar as partes.”
Exemplificando-se a citação acima indicada, pode-se utilizar das relações tratadas
sob a ótica do direito de família, quando, o conflito resolvido junto ao Poder Judiciário,
gerará instabilidade no âmbito dos envolvidos, mesmo que a solução do conflito se dê por
acordo.
O fato de a questão ser levada ao Judiciário, o trâmite processual, e principalmente
a oitiva das partes e testemunhas em audiência com a presença do juiz e do promotor, faz
com que a carga emocional envolvida, marque, para sempre, a relação entre os
familiares.
E assim, através da mediação, se busca o acordo entre as partes, com o auxílio
deste terceiro, porém, fundamentalmente, atuando como facilitador, sem interferir na
autonomia da vontade das partes e na solução do conflito.
Diante das considerações acerca da mediação, com seus princípios e
fundamentos, faz-se algumas considerações sobre o que se chamou de “Escuta Criativa”,
mais precisamente em artigo científico de autoria de Ademir Buitoni18.
Assim, no citado artigo o autor19 indica que,
“na mediação, simplesmente escutar, sem interpretar, sem julgar, buscando a
clariaudiência, ou seja, a clareza na escuta é muito importante para que a criatividade
apareça”.
Conclui-se ser de fundamental importância a isenção ao ouvir, pois, é inerente ao
ser humano, ao ouvir, formar seu convencimento e prima facie já emitir opinião, contrária
ou não sobre o caso, e em ocorrendo isto, já se está quebrando a questão da parcialidade
e se posicionando a favor de alguma das partes.
16
MORAIS, 1999 Pag. 145
MORAIS, 1999 Pag. 149
18 BUITONI, Ademir, A Mediação de Conflitos e a Escuta Criativa, em Revista de Arbitragem e Mediação,
ano 8 vol. 31. Revista dos Tribunais, 2011 Pag. 173
19 BUITONI 2011 Pag. 178
17
53
Esta isenção de opinião é ponto primordial para uma mediação bem feita, pois o
resultado positivo de uma mediação, depende da vontade das partes, e não do
convencimento do mediador.
A já citada tese da escuta criativa em que se defende o ato de ouvir como
fundamental para a mediação, e de fato se apresenta como primordial, indica que o
mediador deve ser paciente e saber esperar, colocando entre as pessoas com o objetivo
de facilitar a tentativa de se chegar a um acordo.
Buitoni20 retrata esta escuta, mesmo quando não se chegue a uma conciliação
como importante:
“Pode-se dizer que a escuta criativa na mediação sempre é produtiva, mesmo que
não haja êxito na solução da controvérsia. A mediação não é feita para obter acordo entre
as partes (se bem que isso possa ocorrer), mas para possibilitar novos comportamentos,
inovações criativas e inesperadas que serão usadas pelos mediandos nos momentos
vitais que acharem melhor.”
Portanto, esta isenção de opinião, a facilitação na conversa entre as partes, e uma
tentativa criativa de solução, é o que se chama de escuta criativa, pois se busca dentro da
mediação a pacificação do conflito, e por pacificação não devemos entender apenas o
que o direito ordena, e sim um resultado que devolva às partes o status quo ante.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve por objetivo apresentar o instituto da mediação, a partir do
entendimento da Jurisdição como a regra geral para a solução dos conflitos, e devido ao
que se chama de crise da Jurisdição, os meios alternativos de solução de controvérsias
se mostram como alternativa viável, célere, juridicamente possível, e menos oneroso para
pacificação dos conflitos sociais.
De forma especial a mediação, passando pelo que foi chamado de escuta criativa,
é possível analisá-la sob o prisma que, o mediador, como terceiro desinteressado, deverá
desenvolver as habilidades de ouvir as partes, sem tomar partido ou emitir opiniões sobre
o conflito, pois se assim fizer, estaria fadado a tornar-se parcial na tentativa de auxílio na
resolução do conflito.
Diante do que se verifica hoje, a Resolução 125 do CNJ visa atingir objetivos
numéricos expressivos de resolução de conflitos, pois, a partir dos acordos firmados,
tanto extra, quanto judicialmente, diminui a necessidade da prestação jurisdicional por
completo, ou seja, não há a necessidade de um completo trâmite processual até a
prolação da sentença, pois, as partes, com o poder de decisão que tem de seus próprios
direitos, podem decidir o caminho a ser seguido por seus conflitos sociais.
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20
BUITONI 2011 Pag. 187
54
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55
CONCILIAÇÃO NA JUSTIÇA DO TRABALHO:
ACESSO E EFETIVIDADE, DIREITO E DEVER
Luiz Eduardo Gunther
__________________________________________
Desembargador do Trabalho do TRT da 9ª Região
Professor do UNICURITIBA
Doutor em Direito pela UFPR
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho, do Instituto Histórico e
Geográfico do Paraná, do Centro de Letras do Paraná e
da Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho – ALJT
Rosemarie Diedrichs Pimpão
__________________________________________
Desembargadora Presidente do Trabalho do TRT da 9ª Região
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR
Especialista em Direito Constitucional do Trabalho, Direito
Administrativo e em Economia do Trabalho
Atuou em cursos de direção na École de Magistrature de Paris, bem como
na Cour d' Appel e na Cour de Cassation (2006)
Participou de estudos na Corte Constitucional alemã de Karlsruhe na Corte
de Trabalho Regional de Erfurt e no Parlamento alemão (Reichstag) em Berlim (2008).
Atuou no Congresso Internacional no Centro de Estudos Judiciários de Lisboa
Willians Franklin Lira dos Santos
______________________________________
Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Especialista em Direito pela UFPR e pela PUCPR
Graduado em Direito pelo UNICURITIBA e, em Letras, pela UFPR
Integrante da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC), da
Asociación Iberoamericana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social
(AIDDTSS) e da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC)
Assessor Jurídico da Presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região
56
1
INTRODUÇÃO
Desde sua criação, uma das tarefas mais importantes da Justiça do Trabalho
voltava-se ao campo da tentativa de conciliar as partes, como indicava a nomenclatura
dos seus órgãos de primeiro grau (de meados do século passado até o ano de 1999,
quando extinta a representação classista pela EC 24): Juntas de Conciliação e
Julgamento.
O tema da conciliação judicial mereceu, recentemente, um incentivo importante do
Conselho Nacional de Justiça por intermédio da Resolução nº 125, de 29.11.2010.
Indaga-se, então, diante de sua característica institucional fundamental, e da
determinação do CNJ de atenção especial dos órgãos judiciais a essa área, se a Justiça
do Trabalho vem cumprindo seu objetivo primordial de dar efetividade à conciliação como
dever ético do Juiz, em primeiro lugar, e direito das partes como garantia de pacificação
do conflito e duração razoável do processo como consequência.
2
O VOCÁBULO CONCILIAÇÃO
Quando se examina o vocábulo conciliação, convém ter presente que, no sistema
jurídico brasileiro, deve ser compreendido como uma função cometida ao juiz da causa,
que ultrapassa “seu clássico conteúdo ocupacional de ‘destinatário da prova’, para, indo
além, assumir uma postura pró-ativa”, vale dizer, “atuando como um vetor de possível
solução negociada da lide, numa evidência de que não são auto-excludentes as técnicas
impositiva e suasória”1.
As palavras conciliação e mediação podem ser diferenciadas da seguinte forma:
nesta o profissional apresenta-se como um técnico que se limita a equacionar os termos
do conflito, “distinguindo os pontos mais atritivos daqueles mais próximos de um
consenso”. O conciliador, entretanto, coloca-se mais próximo das partes, “buscando criar
ambiente de empatia entre os partícipes, no sentido de favorecer possível acordo”,
destacando, sempre, as vantagens da autocomposição, no contraste com os “ônus,
encargos e incertezas imanentes ao processo judicial”2.
No cotejo dos termos conciliação, transação e acordo, vê-se que entre eles há uma
relação de continente e conteúdo. Aquela é “o meio, o instrumento, o veículo, de que
estes últimos eventos constituem o objetivo almejado”. Em outras palavras, pode-se dizer
que “a conciliação é o modo, a técnica, o método por que se tenta a justa composição do
conflito, podendo ocorrer no plano judicial ou fora dele”, enquanto o acordo ou transação
“configuram o almejado resultado, ao final obtido por meio de concessões recíprocas”3.
Quando usamos a palavra conciliar temos em conta a ação de harmonizar, de
congraçar, de pôr de acordo. Como exemplo: conciliar dois inimigos.
Quando se procura, na Filosofia, pôr em acordo, em harmonia, textos que parecem
divergentes, “por meio de uma interpretação que os concilie, diz-se que há interpretação
conciliatória”4.
Derivada do latim conciliatione, o vocábulo conciliação significa ato ou efeito de
conciliar; ajuste, acordo ou harmonização de pessoas desavindas; congraçamento, união,
composição ou combinação.
1
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo
estado de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 232-233.
2 Ibidem, p. 233.
3 Ibidem, p. 233.
4 SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de filosofia e ciências culturais. São Paulo: Matese, 1963. p.
307. v. 1. p. 307.
57
Em sentido jurídico, entende-se por conciliação o ato judicial celebrado perante
autoridade pública, entre autor e réu, visando compor amigavelmente suas respectivas
pretensões ou diferenças.
Em nosso direito, conciliação tanto se emprega com sentido de procedimento de
órgão judiciário visando a obter o ajuste entre os interessados, como equivale ao próprio
acerto efetuado entre as partes.
Na famosa síntese de Carnelutti dos aspectos processuais e materiais da
conciliação, apresenta esta a estrutura da mediação e a substância da sentença judicial,
pois “a decisão é uma conciliação imposta às partes e a conciliação é uma decisão aceita
por elas”5.
A palavra conciliação também mereceu um verbete do Dicionário Jurídico da
Academia Brasileira de Letras Jurídicas, no qual se diz significar “ato, provocado e
persuadido pelo juiz, em consequência do qual as partes põem fim à demanda mediante
concessões recíprocas em torno da pretensão de cada uma”6.
O mesmo dicionário assevera que o termo é equivalente à transação do Código
Civil, sendo ato obrigatório na Justiça do Trabalho7.
Ao referir-se ao substantivo masculino conciliador, explica o léxico ser aquele que
concilia as partes, ou as persuade a transigir. E mais, uma figura, como ente autônomo,
inexistente no direito brasileiro, em face do qual a função é exercida pelo juiz8.
Pode-se ver que a palavra tem um múltiplo sentido, que deve ser observado
através de múltiplos olhares.
3
A CONCILIAÇÃO E O ACESSO À JUSTIÇA
Consideremos alguns problemas que dificultam o efetivo acesso à justiça. Dentre
eles podem-se assinalar, conforme estudo de Horácio Wanderlei Rodrigues, os seguintes:
a)
desigualdade sócio-econômica – grande parte da população não possui
recursos econômicos para fazer frente aos gastos de uma demanda judicial;
b)
direito à informação – a necessidade de conhecimento dos direitos por parte
do cidadão e da sociedade;
c)
legitimidade para agir – o nosso ordenamento jurídico reproduz ainda
valores clássicos do liberalismo do século XVIII, considerando a ideia do indivíduo
como titular de direitos;
d)
capacidade postulatória – deve-se considerar exigível a presença de
advogado em todo e qualquer processo?
e)
Poder Judiciário – morosidade na prestação jurisdicional, carência de
recursos materiais e humanos, centralização geográfica de suas instalações9.
Os problemas que se antepõem ao efetivo acesso à justiça não se esgotam nos
acima mencionados. Alguns outros ainda podem ser lembrados, como por
exemplo:
a)
fatores simbólicos – conjunto de fatores axiológicos, psicológicos e
ideológicos que afastam da justiça (por medo, insegurança, sentimento de
inferioridade, etc.) considerável parte da sociedade brasileira;
b)
inexistência ou ilegitimidade do direito material – inexistência de normas
jurídicas ou existência defasada em relação à realidade social;
5
GIGLIO, Wagner D. A conciliação nos dissídios individuais do trabalho. São Paulo: LTr, 1982. p. 36.
SIDOU, J. M. Othon. Dicionário jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 165.
7 Idem.
8 Idem.
9 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual brasileiro. São Paulo:
Acadêmica, 1994. p. 31-48.
6
58
c)
criação de direito material sem o correspondente instrumental processual
adequado – é insuficiente proteger no plano do direito material, se inexistirem
formas de viabilizar essa proteção;
d)
ausência de assistência judiciária preventiva e extrajudicial – quase
completa inexistência, em alguns Estados da Federação, de instituições
encarregadas de prestar assistência jurídica preventiva e extrajudicial10.
Na exegese que apresenta do princípio do acesso à justiça, Rui Portanova afirma
tratar-se de filosofia libertária, aberta e realista, que “busca, imperativa e ingentemente,
métodos idôneos de fazer atuar os direitos sociais e uma justiça mais humana, simples e
acessível”11.
Ora, na Justiça do Trabalho, quando empregado (trabalho) e empregador (capital)
são convidados para um diálogo, uma aproximação para pôr fim ao conflito, observa o juiz
o princípio da igualdade. Por isso, o acesso à justiça consiste “em um movimento para
efetividade da igualdade material almejada por todos e consagrada pelo Estado Social” 12.
Diante das dificuldades e das limitações do acesso à justiça no Brasil, onde avulta
a morosidade judicial, parece necessário buscar-se mecanismos que tornem o Judiciário
mais eficiente e célere, encontrando-se os métodos alternativos de solução de conflitos
(entre eles a conciliação) nesse caminho.
4
O OLHAR DE UM ECONOMISTA (UM CAMINHO POLÍTICO)
O Prêmio Nobel de Economia de 1998 - Amartya Sen - é conhecido em nosso país
sobretudo pela obra Desenvolvimento como Liberdade13.
Mas vamos lembrar aqui outro livro, A Ideia de Justiça14, no qual esse autor baseia
sua inspiradora teoria da justiça na noção de equidade (fairness).
Suas premissas consistem no reconhecimento de que as pessoas, embora sejam
iguais perante a lei, possuem necessidades, capacidades e desejos distintos.
A promoção da equidade na justiça, segundo Sen, é o caminho político a ser
seguido para a diminuição das brutais desigualdades sociais e econômicas do mundo
contemporâneo, bem como para a universalização de suas liberdades democráticas.
Equidade na justiça, eis aí um caminho apontado por um dos pensadores mais
importantes da atualidade.
Lembremos que equidade é a “justiça do caso particular, levadas em conta as
peculiaridades que possa apresentar”15.
Trata-se, nada mais, nada menos, do que a conciliação, que pode ser efetuada,
caso a caso, tomando-se as peculiaridades da situação in concreto.
10
Ibidem, p. 48-50.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 6. ed. Porto alegre: Livraria do Advogado, 2005. p.
113.
12 Idem.
13 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
14 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p. 325-351.
15 SIDOU, J. M. Othon. Op. cit., p. 312.
11
59
5
A VISÃO FILOSÓFICA
A palavra filosofia origina-se do grego philos, amante e sophia, saber. Conta-se
uma história que Pitágoras, perguntado sobre o que era (numa época em que muitos se
chamavam de sophoi, plural de sophos, sábio), respondeu: “sou um amante do saber
(philosophos), um amador (amateur) do conhecimento, o que revelava uma humildade
sublime”. Desse modo, cunhou-se a palavra filosofia (philosophia)16.
Assim, do ponto de vista filosófico, nós todos, que somos amigos do saber,
precisamos encontrar alguém que nos ajude com uma “teoria filosófica” a entender melhor
o vocábulo conciliação.
Vamos nos amparar em Michael J. Sandel, que leciona há duas décadas, na
Universidade de Harvard, o famoso curso Justice, pelo qual já passaram mais de 15 mil
alunos. E também em Chaïm Perelman (1912-1984), polonês de origem que viveu desde
a adolescência na Bélgica, notabilizando-se, sobretudo, por sua vocação intelectual
dedicada à emancipação do raciocínio jurídico e da lógica do pensamento jurídico das
redes e das tramas reducionistas e positivistas.
A principal preocupação de Chaïm Perelman foi o raciocínio jurídico, ou seja, como
lidar e conciliar as seguintes questões:
a)
Como se raciocina juridicamente?
b)
Qual a peculiaridade do raciocínio jurídico?
c)
Quais as características desse raciocínio?
d)
De onde extrair o juiz subsídios para a construção da decisão justa?
e)
Até onde leva a argumentação das partes em um processo?
f)
Qual a influência que a argumentação e a persuasão possuem para definir
as estruturas jurídicas?
Essas, entre outras questões, guiaram os escritos de Perelman para a formação de
um conjunto encadeado de conceitos que acabaram por se apresentar hábeis à formação
de uma sólida reflexão a respeito do julgamento e do ato jurídico de decisão17.
Para Perelman, “o direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência”, por um
lado, uma “ordem sistemática”, a elaboração de uma ordem coerente; de outro, uma
“ordem pragmática”, a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque conforme ao que
lhe parece justo e razoável”18.
Não se pode esquecer, também, segundo esse doutrinador, que as decisões de
justiça devem satisfazer “três auditórios diferentes, de um lado as partes em litígio, a
seguir, os profissionais do direito e, por fim, a opinião pública, que se manifestará pela
imprensa e pelas reações legislativas às decisões dos tribunais”19.
O que é a conciliação senão o ato judicial que persuade as partes em litígio, os
operadores de direito e a opinião pública.
Um outro filósofo, atualmente na moda, é o norte-americano Michael J. Sandel,
professor da Universidade de Harvard. Em seu livro Justiça – o que é fazer a coisa certa,
explora três abordagens da justiça. A primeira diz que a justiça significa maximizar a
utilidade ou o bem-estar – a máxima felicidade para o maior número de pessoas. A
segunda diz que justiça significa respeitar a liberdade de escolha – tanto as escolhas
reais que as pessoas fazem em um livre mercado (visão libertária) quanto as escolhas
hipotéticas que as pessoas deveriam fazer na posição original de equanimidade (visão
16
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de filosofia e ciências culturais. São Paulo: Matese, 1963. p.
656. v. 2, p. 656.
17 BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas,
2001. p. 396.
18 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2004. p. 238.
19 Idem.
60
igualitária liberal). A terceira diz que justiça envolve o cultivo da virtude e a preocupação
com o bem comum, direcionamento preferido pelo autor20.
Quando o Juiz se inclina pela conciliação e direciona toda a sua capacidade de
trabalho nesse sentido, não está cultivando a virtude e a preocupação com o bem
comum? Esse envolvimento não aproxima mais o Magistrado dos jurisdicionados,
passando a entendê-los mais e os ajudando a resolver por eles próprios seus conflitos?
6
A PERSPECTIVA HISTÓRICA
Nossa primeira Constituição (1824) previa, ao tratar do Poder Judicial, que sem se
fazer constar que se tem intentado o meio de reconciliação, não se começará processo
algum (art. 161).
A legislação trabalhista, a partir de 1932, estabeleceu a obrigatoriedade de
tentativa conciliatória nos litígios entre empregados e empregadores.
Os termos conciliação e acordo vêm consignados em mais de um dezena de
artigos da Consolidação das Leis do Trabalho e em cerca de 20 incisos legais, o que
revela não só a importância que o legislador vota ao assunto, como também a origem da
CLT, amálgama de textos esparsos.
Desde sua criação, competia à Justiça do Trabalho tentar conciliar as partes, como
indica a nomenclatura de seus órgãos de primeiro grau: Juntas de Conciliação e
Julgamento. Observe-se que a palavra conciliação precedia a palavra julgamento.
Ao que parece, reputou o legislador como primordial a função conciliadora das
partes, pois só “não havendo acordo” é que “o juízo conciliatório converter-se-á
obrigatoriamente em arbitral, proferindo decisão” (CLT, art. 764, §2º).
A importância dada à conciliação é tanta que Carlos Henrique Bezerra Leite a eleva
à condição de princípio peculiar do direito processual do trabalho21.
Ressalta o autor que embora esse princípio “não seja exclusividade do processo
laboral”, é aqui que ele se mostra mais evidente22. Destaca uma condição intrínseca para
a validade da sentença trabalhista, que somente será proferida “após rejeitada pelas
partes a proposta de conciliação” (CLT, art. 831). Ainda, existem dois momentos
obrigatórios para a proposta judicial de conciliação: no momento da abertura da audiência
(CLT, art. 846) e após o término da instrução e apresentação das razões finais pelas
partes (CLT, art. 850). Como última peculiaridade, menciona-se a equiparação prática do
termo de conciliação à coisa julgada23.
Seguindo-se esse itinerário histórico, verifica-se a importância atribuída ao instituto
da conciliação na Justiça do Trabalho contemporaneamente.
7
A CONCILIAÇÃO COMO DIREITO E COMO DEVER
No Poder Judiciário existe o mito do Juiz Conciliador, que tem dom para isso. A
contrario sensu existiria o Juiz que não teria essa característica. Será mesmo “científica”
essa afirmação? Ou se trataria apenas do juiz mais simpático, que deixa as partes mais à
vontade em audiência? Ou, ainda, aquele que aprendeu as técnicas de conciliação e as
aplica? Parece necessário, assim, falar-se no desenvolvimento de uma tecnologia da
20
SANDEL, Michael J. Justiça - o que é fazer a coisa certa. 3. ed. Tradução de Heloisa Matias e Maria
Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 321.
21 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr,
2012. p. 87.
22 Idem.
23 Ibidem, p. 88.
61
conciliação, direcionada aos dois tipos de Juízes (àqueles que já conciliam e aos que têm
dificuldade em conciliar). Nesse sentido, diz-se que “a tecnologia é o exercício de um
certo saber pragmático”. Em nosso dias, fala-se, por exemplo, de “transferência de
tecnologia”, quando nos referimos a certas trocas na sociedade industrializada e
eletrônica24.
Quando se ouve, portanto, a afirmação de que alguém tem talento inato para a
conciliação, talvez seja necessário indagar: mas não existe um aprendizado para
conciliar? Por isso fala-se em “tecnologia da conciliação”. As técnicas de conciliação
podem ser ensinadas (disseminadas) e aprendidas (praticadas). Determinadas
características dessa atividade, suas dificuldades, suas técnicas podem e devem ser
teorizadas para melhor compreensão e aplicabilidade. A partir do momento que as
técnicas de conciliação, como tecnologia, conseguem implementar-se em uma
determinada área judicial, por exemplo, deve-se atentar para a necessidade de
aprendizado e troca de informações permanentes, pois “a substituição rápida de
tecnologias” exige contínuo aprendizado de “novos códigos”25. Muda a sociedade de
tempos em tempos, modificam-se a tecnologia e os códigos da conciliação.
Não se pode nunca esquecer “que o juiz é sempre uma figura do seu tempo e do
seu meio, porque ele será sempre aquilo que for a jurisdição”26. Nessa senda, “a função
jurisdicional modela o juiz, cria-o à sua imagem e semelhança”27.
Quando se diz que o juiz deve sempre conhecer os autos nos quais atua é porque
deve estar “plenamente integrado na relação processual da qual faz parte, ciente de suas
responsabilidades e de seus poderes, que não podem descambar para o puro arbítrio”28.
Nem sempre os juízes compreendem bem as disposições do CPC (arts. 447 a 449)
e da CLT (arts. 846 e 850) quanto à possibilidade de acertamento voluntário entre os
contendores.
José Renato Nalini menciona os juízes que não possuem perfil de “bons
conciliadores” e precisam adquirir essas qualidades, “mediante vontade e empenho
pessoal”29. Mesmo com essa afirmação, pode-se dizer: os bons conciliadores precisam
continuar aprendendo novas técnicas, acompanhando tendências de boas práticas;
quanto aos “ainda não tão bons”, precisam aprender técnicas eficientes, treinar sobretudo,
compreendendo que a conciliação é uma das funções mais importantes do Juiz, sendo
necessário a ela se dedicar como tarefa de “dar a cada um o que é seu” eficientemente,
atingindo de forma consensual a duração razoável do processo.
Mesmo com essa afirmação, pode-se discutir se a tentativa de conciliação consiste
em dever funcional do juiz, ou se deve ser exigível a ativa participação do magistrado no
ato, ou mesmo se estaria essa atividade elencada no exercício das funções de direção
material do processo. Não se pode, entretanto, olvidar o aspecto da paz social, do sentido
de justiça e de democratização ínsitos na atividade conciliatória.
Quando bem-sucedida, a tentativa conciliatória faz com que se alcance a paz
social, “que é objetivo fundamental da sociedade brasileira”. Há, também, um inegável
“aspecto de democratização” na tentativa conciliatória, pois “outorgando valia às
ponderações das partes” o juiz chega mais próximo “ao destinatário do serviço público
essencial”, alcançando de maneira mais transparente “o objetivo da justiça” 30.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Ler o mundo. São Paulo: Global Editora, 2011. p. 17.
Ibidem, p. 19.
26 ROSA, Eliézer. Dicionário de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1973. p. 259.
27 Idem.
28 ARAÚJO, Justino Magno. Os poderes do juiz no processo civil moderno. Revista de Processo, ano VIII,
out-dez 1983, nº 32. São Paulo: RT, 1983. p. 104.
29 NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p. 90.
30 Ibidem, p. 90-91.
24
25
62
Torna-se essencial, assim, que a máxima “fazer com que as partes se conciliem é
também fazer justiça” habite “a consciência dos juízes, para que venham a encarar a
tentativa conciliatória como instrumento de relevância no desempenho de sua tarefa” 31.
A tarefa de conciliar atribuída ao Juiz do Trabalho pode ser criticada, como em
situação análoga, quando da análise dos juizados especiais, retratou Ada Pellegrini
Grinover: “critica-se, ainda, a atribuição da função de conciliador ao próprio juiz da causa,
em razão da dificuldade de desvincular o papel mais ativo do juiz, na obra de convicção
das partes, de um verdadeiro pré-julgamento”32.
Tal hipótese, se existe na realidade, pode ser objeto de modificação por métodos
que disseminem a cultura conciliatória e possam conduzir o juiz a se conscientizar, desde
o início da sua carreira, aprender e executar constantemente técnicas modernas
conciliatórias que o distanciem de um pré-julgamento da causa, possibilitando atingir o
desiderato de aproximar as partes.
José Herval Sampaio Júnior destaca que o juiz, no exercício das funções
conciliatórias, não pode ser confuso, indeciso, agressivo e emotivo. Para esse autor, tais
situações emocionais deixam as partes instáveis e descredibilizam a atuação judicial,
“podendo gerar desconfiança e, com isso, uma das partes ou todas não quererem sequer
começar ou continuar o ato de tentativa da solução amigável”33.
Algumas condutas do juiz, assim, devem ser evitadas, com o objetivo de manter o
equilíbrio e a harmonia no ato de conciliar, como, por exemplo:
a)
de modo algum coagir as partes a acordar sobre o que não desejam;
b)
redigir o acordo sem expressar a real vontade das partes;
c)
não entregar o termo de acordo para as partes assinarem sem que seja lido
em voz alta;
d)
propor acordo que tem ciência que uma das partes não pode cumprir;
e)
permitir acordo que tenha cláusula leonina;
f)
não permitir composição em processo onde estejam as partes dele se
servindo para fins escusos ou ilegais;
g)
conduzir o debate de forma atribulada, indo e voltando a pontos já
discutidos;
h)
sugerir, de plano, sem provocação dos envolvidos, acordo que possa ser
bom para, já que, nesse caso, dependendo dos litigantes, pode ser que um deles
fique desconfiado de que o juiz esteja prestigiando uma das partes34.
Um outro aspecto, sempre a ser lembrado, é que os juízes não podem ter aquela
ideia pré-concebida “de que um processo conciliado não conta como pronunciamento
judicial para fins de estatística”. Esse pensamento é muito pequeno para sopesar com os
escopos da atividade jurisdicional, que até mesmo não se limita ao jurídico “incluindo-se o
político e econômico, afora o mais importante, que é a pacificação social”35. Além do mais,
existe hoje uma valorização do Magistrado conciliador, pois as estatísticas mostram
frequentemente as Varas que se destacam nessa área, merecendo destaque e elogios
por isso.
Ao tratar da conduta do juiz, Sidnei Agostinho Beneti salienta como especial dever
o de tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes (CPC, art. 125, IV), registrando que não
31
Ibidem, p. 90.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Conciliação e juizados de pequenas causas. In WATANABE, Kazuo (Coord.).
Juizado especial de pequenas causas (Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984). São Paulo: RT, 1985. p.
150.
33 SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. O papel do juiz na tentativa de pacificação social: a importância das
técnicas de conciliação e mediação. In CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Org.). Bases
científicas para um renovado direito processual. 2. ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2009. p. 599.
34 Ibidem, p. 600.
35 Ibidem, p. 600.
32
63
se deve designar “todas as audiências para as 13 horas, ou para a mesma hora, qualquer
que seja”36.
Segundo esse autor, as partes, seus advogados e testemunhas têm direito ao
tratamento civilizado da hora marcada, não podendo submeter-se a “longa e inútil espera,
muitas vezes terminando com adiamento de audiências, ao fim do dia, depois de haverem
chegado no seu início ao Fórum”37.
Observa-se que a conciliação é integrada por características próprias,
especialmente na Justiça do Trabalho, sendo essencialmente um dever do juiz aplicar o
instituto e um direito das partes exercitá-lo. Não basta, portanto, apenas formalmente,
propor a conciliação (na abertura da audiência, e após o término da instrução, arts. 846 e
850 da CLT). É dever do Juiz criar um espaço próprio de aproximação entre as partes,
para que se conciliem num tempo razoável, sem pressa nem pressão.
8
A ANÁLISE PELO JUIZ DA REGULARIDADE DA CONCILIAÇÃO
Há uma pergunta recorrente na Justiça do Trabalho sobre a essencialidade ou não
de homologação do ato conciliatório.
Dois argumentos inicialmente podem ser trazidos a respeito. Primeiro, não se
poderia alcançar os efeitos que se atribui ao acordo “sem a providência elementar da
homologação”38.
Outro argumento é a aplicação subsidiária do processo civil (CLT, art. 769; CPC,
475, III), prevendo a indisponibilidade do ato homologatório “para fazer do acordo um
título executivo judicial”39. Recorde-se, ainda, que “no caso da conciliação, o termo que for
lavrado valerá como decisão irrecorrível” (parágrafo único do art. 831 da CLT).
O órgão jurisdicional trabalhista, assim, deve “não apenas escrutinar a regularidade
formal do ato, como ainda proceder ao controle de sua conveniência para o
empregado”40.
Mas, também, deve ser examinado se o acordo não é excessivamente oneroso ao
pequeno empregador ou àquele que, mesmo de grande porte econômico, esteja em
situação patrimonial difícil. Nessas condições, o acordo não deve ser homologado por
“tornar-se impraticável”, tornando inviável, eventualmente, o empreendimento econômico.
Nessas hipóteses, não serve a conciliação ao empregador e também não serve “aos seus
outros empregados, nem à sociedade em geral”41.
O importante exame judicial, na verificação da existência de alegada transação
realizada por Câmara de Conciliação Prévia, pode levar a uma desconstituição dos seus
desejados efeitos, como se lê de trecho do julgado de lavra do Desembargador Márcio
Dionísio Gapski, nos seguintes termos:
É nulo acordo em Câmara de Conciliação Prévia quando não fruto de diálogo
franco e aberto e sem amplos esclarecimentos ao trabalhador, tanto sobre os
direitos transacionados como sobre os efeitos da quitação, respeitado o princípio
da razoabilidade. Pior ainda quando se somam a ausência de regular assistência,
36
BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 163 e 44.
Ibidem, p. 44.
38 VILLELA, João Baptista. Sobre renúncia e transação no direito do trabalho. In BARROS, Alice Monteiro
de. (Coord.). Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. 2. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: LTr, 1994. V. I. p. 160.
39 Idem.
40 Ibidem, p. 161.
41 Ibidem, p. 161.
37
64
ao menos por representante de classe, e assinatura do documento, sob ameaça
de retaliações para novo emprego.42
Pode-se, então, afirmar como essencial à regularidade do ato conciliatório a análise
criteriosa do Juiz (verificar não apenas se convém ao empregado, mas se não é
excessivamente oneroso ao empregador). Do mesmo modo, para sentir todos os efeitos
desejados (coisa julgada, pacificação social), indispensável a homologação do ato
conciliatório.
Quando se tratar de acordo em Câmara de Conciliação Prévia parece possível,
também, ao Judiciário Trabalhista verificar a validade conciliatória quanto aos direitos
transacionados e os efeitos da quitação.
9
A CONCILIAÇÃO COMO EFETIVIDADE DA JUSTIÇA
Existem dois estereótipos que espreitam a Justiça do Trabalho e são difíceis de
demover, mas são irremediavelmente anacrônicos e irreais. O primeiro deles é que o
trabalhador sempre vence nas decisões perante a Justiça do Trabalho. Tal afirmação
(quando não feita de má-fé) pode ser desconstituída simplesmente com uma visita às
Varas do Trabalho, aos Tribunais Regionais ou ao próprio Tribunal Superior do Trabalho.
Melhor, a consulta a qualquer revista especializada em Direito do Trabalho torna sem
valor essa afirmação. O segundo deles, que parte de certo grupo de defensores dos
trabalhadores (a outra hipótese ajusta-se mais ao lado patronal), consiste na afirmativa de
que sempre há prejuízo na conciliação por parte do autor da ação (normalmente o
empregado). Também basta frequentar-se o foro trabalhista para essa hipótese ser
desconstruída.
Importante trazer à colação (e esclarecer), quanto a isso, a seguinte afirmativa: “no
país como um todo, metade dos processos individuais resulta em conciliação, o que quer
dizer que o trabalhador abriu mão de parte do que demandara a princípio”43.
Na transação, conciliam-se parcelas que são discutíveis, demandam prova, não
são líquidas e certas ao trabalhador. De qualquer modo, “a proposta obrigatória de
conciliação e seu amplo debate pelas partes, no transcurso da demanda, continuam
sendo um cânone tradicional do processo do trabalho”44.
Nessas condições, “aquilo que é irrenunciável e intransacionável extrajudicialmente
passar a ser transacionável e renunciável ante o juiz”. A razão disso se prende ao
fundamento de que o juiz “pode e deve fiscalizar os termos da conciliação”, garantindo,
desse modo, com sua presença e atuação, “a autenticidade e a autonomia da
manifestação de vontade do trabalhador”45.
Ao tratar dos mecanismos de mediação e conciliação, voluntários ou compulsórios,
Leonardo Greco condiciona o sucesso dessas medidas à credibilidade que possuam, vale
dizer, “da sua aptidão de gerar soluções que satisfaçam aos contendores”46.
Não se pode deixar de mencionar, sobre o tema, a obra clássica “Acesso à Justiça”
de Cappelletti e Garth. Consideram a existência de “vantagens óbvias tanto para as
42
PARANÁ. Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Ac. TRT-PR 31.329-2010-041-09-00-9, publicado
em 23/02/2012, Rel. Des. Márcio Dionísio Gapski. In Revista Eletrônica do TRT da 9ª Região. Conciliação
I, ed. maio 2012, V. 1, nº 7. Disponível em:
<http://www.mflip.com.br/pub/escolajudicial//index.jsp?edicao=1328>. Acesso em: 24.out.2012.
43 CARDOSO, Adalberto; LAGE, Telma. As normas e os fatos: desenho e efetividade das instituições de
regulação do mercado de trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 126.
44 RUSSOMANO, Mozart Victor. O decálogo do processo trabalhista. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 42.
45 Idem.
46 GRECO, Leonardo. Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Ed. Faculdade de Direito
de Campos, 2005. p. 215.
65
partes quanto para o sistema jurídico, se o litígio é resolvido sem necessidade de
julgamento”47.
Ao contrário do processo judicial, que geralmente declara uma parte “vencedora” e
outra “vencida”, registram esses autores que é significativo que um processo dirigido para
a conciliação “ofereça a possibilidade de que as causas mais profundas de um litígio
sejam examinadas e restaurado um relacionamento complexo e prolongado”48.
Do ponto de vista psicológico, os gastos (materiais e emocionais), no transcorrer de
um conflito, vão se acumulando, criando uma autêntica “caderneta de poupança de
sofrimentos”49.
Para resgatar essa caderneta de poupança, procura-se, com ansiedade, uma
vitória, que se torna, a cada momento, importante, necessária, mas sobretudo cara. O
advogado encontra frequentemente reclamantes (que foram empregados) dispostos a
tudo “para dar um troco”, “compensar o que já perdi”, etc. Os chamados “defensores das
causas impossíveis” acenam, nesse momento, com o argumento falso de que “depois de
tudo o que já passamos, não podemos voltar atrás”50.
A única forma de descongestionar efetiva e rapidamente os tribunais, tornando-os
aptos a decidirem todas as questões que lhes são colocadas num prazo razoável, é o
“recurso preferencial à arbitragem, a conciliação e à mediação”51.
Somente dessa forma o acesso dos cidadãos à Justiça surtirá os desejados efeitos
práticos, “repondo-se dessa forma a confiança das populações na administração da
justiça”52.
Quando se sabe que um dos escopos da jurisdição é pacificar os conflitos com a
justiça, e se isso pode ser mais facilmente alcançado pelo atalho da conciliação, “por que
então não incrementar esse instrumento, em vez de insistir na prolação de decisões de
mérito, que demandam mais tempo”, e, além disso, “protraem o desfecho da causa,
sujeitam-se aos recursos da parte sucumbente e implicam na espera pela coisa
julgada”53.
Apresenta Paulo Cezar Pinheiro Carneiro analogia com uma empresa que tivesse o
mesmo problema, dizendo:
Qualquer empresa que tivesse uma determinada atividade ligada à composição de
litígios, que verificasse que mais de metade deles poderiam ser resolvidos através
de mediação e conciliação, certamente dirigiria seus maiores esforços na busca e
no treinamento de funcionários capazes de cumprir e mesmo de superar tal meta.
Cabe indagar por que não fazer o mesmo no Judiciário?54
Ao contrário do que se possa supor num primeiro momento, a grande motivação do
estímulo à conciliação não está “em aliviar numericamente a sobrecarga de processos”, e
menos ainda “em dividir com as partes e advogados o mister judicante, este, de resto,
47
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 83.
48 Ibidem, p. 84.
49 FIORELLI, José Osmir; FIORELLI, Maria Rosa; MALHADAS JUNIOR, Marcos Julio Olivé. Psicologia
aplicada ao direito. São Paulo: LTr, 2006. p. 36.
50 Idem.
51 CARDOSO, Ana Carolina Veloso Gomes. Acesso à justiça em Portugal: vias alternativas de solução de
conflitos. Rev. TST, Brasília, vol. 68, nº 1, jan/mar 2002. p. 84.
52 Idem.
53 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O plano piloto de conciliação em segundo grau de jurisdição, do
Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, e sua possível aplicação aos feitos de interesse da Fazenda
Pública. In MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil: homenagem ao
Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2055. p. 857.
54 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
66
indelegável”. Busca-se, na verdade em primeiro lugar, “alcançar a deformalização do
processo, fugindo à tirania dos ritos e dogmas e rompendo com a cultura demandista”.
Em segundo momento, espera-se que a conciliação, por sua idoneidade em resolver o
conflito sem necessidade de uma decisão de mérito, “possa contribuir ponderosamente
para a redução do acúmulo dos processos, com isso liberando o julgador para dedicar-se
com mais tempo e afinco aos demais casos, singulares e complexos”55.
Não adianta exaltar as virtudes conciliatórias se esse instituto não for aplicado
permanentemente nas audiências trabalhistas. A cultura conciliatória tem por finalidade
romper com a cultura demandista produzindo o fruto da pacificação social e resultando
em efetividade da Justiça do Trabalho.
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Processo, ano VIII, out-dez 1983, nº 32. São Paulo: RT, 1983. p. 104.
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LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 10. ed. São
Paulo: LTr, 2012.
55
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 857.
67
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no
contemporâneo estado de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
______. O plano piloto de conciliação em segundo grau de jurisdição, do Egrégio Tribunal
de Justiça de São Paulo, e sua possível aplicação aos feitos de interesse da Fazenda
Pública. In MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.). Estudos de direito processual civil:
homenagem ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2055. p. 857.
NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1994.
PARANÁ. Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Ac. TRT-PR 31.329-2010-041-0900-9, publicado em 23/02/2012, Rel. Des. Márcio Dionísio Gapski. In Revista Eletrônica
do TRT da 9ª Região. Conciliação I, ed. maio 2012, V. 1, nº 7. Disponível em: <
http://www.mflip.com.br/pub/escolajudicial//index.jsp?edicao=1328>.
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PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed.
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Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de filosofia e ciências culturais. São Paulo:
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Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SIDOU, J. M. Othon. Dicionário jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
68
VILLELA, João Baptista. Sobre renúncia e transação no direito do trabalho. In BARROS,
Alice Monteiro de. (Coord.). Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio
Goyatá. 2. ed. rev. atual.
e ampl. São Paulo: LTr, 1994. V. I. p. 149-167.
69
A CONCILIAÇÃO COMO UM INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA
Maria da Glória Malta Rodrigues Neiva de Lima
______________________________________
Membro do grupo de pesquisa “Tutela dos Direitos de Personalidade na atividade
empresarial: os efeitos limitadores na constituição da prova judiciária” – UNICURITIBA
sob a coordenação do professor Doutor Luiz Eduardo Gunther
Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Especialista em Direito do Trabalho pela UNIBRASIL
Graduada em Direito pela UFPR
Wagner Chequeleiro Cordeiro
______________________________________
Membro do grupo de pesquisa “Tutela dos Direitos de Personalidade na atividade
empresarial: os efeitos limitadores na constituição da prova judiciária” – UNICURITIBA
sob a coordenação do professor Doutor Luiz Eduardo Gunther
Graduando o 6º período em Direito pelo UNICURITIBA
70
RESUMO
Na busca pela pacificação social, a sociedade e o Estado procuram implementar
instrumentos e condições que viabilizem a solução de conflitos sociais. O presente estudo
enfoca a conciliação, como instrumento de acesso e de resultado à justiça, devido a
relevância dada pelo Conselho Nacional de Justiça, com a edição da Resolução 125, de
29 de novembro de 2010. A importância histórica da conciliação no ordenamento pátrio,
bem como a sua implementação como um mecanismo primordial posto ao cidadão para a
solução dos conflitos sociais são objetos do presente trabalho. Este artigo explana as
diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça para a implementação do
acesso à Justiça por intermédio da conciliação. Denota-se nítida preocupação do Poder
Judiciário em proporcionar condições aos órgãos competentes e aos jurisdicionados na
concretização da paz social.
Palavras chave: conciliação, acesso à justiça, instrumentalização e efetividade.
RÉSUMÉ
In order to get top social pacification, the society and the State try to implement ways and
conditions that viable the solution for social conflicts. The present study approaches the
conciliation as an instrument and result of acess to the Justice due to relevant given by
National Council of Justice with edition of resolution 125 of November 29th. 2010. The
historic importance of the conciliation as well as implementation like principal mechanism
have been put in for the citizen in order to get solution for social conflitcts. They are
objects of the present work. This article explains to the directives established by National
Council of Justice in the implementation for the access by means of conciliation. It appears
clear preoccupation from Justice authority to provide conditions for competent institution
and for society on realization of social peace.
Keywords: conciliation, access to Justice, instrumentalism and effectiveness.
1
INTRODUÇÃO
Na busca pela pacificação social, a sociedade e o Estado priorizam a
implementação de instrumentos que viabilizem a solução de conflitos sociais.
A conciliação é uma forma alternativa de solução de conflitos, mas também um
direito do cidadão de exigir uma postura do Estado em proporcionar condições de
apaziguar as intempéries que estancam o exercício de direitos e os relacionamentos
sociais.
O art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal preconiza o direito subjetivo de
acesso à Justiça. O Estado tem o dever de proporcionar meios que visem à paz social e a
observância dos direitos e garantias individuais. Esse aspecto revela-se na viabilização de
instrumentos de melhoria, proveitosos e úteis para encerrar problemas decorrentes do
convívio social.
Há uma conjugação, o do pleno acesso à justiça como um direito de resposta do
Poder Judiciário, garantido pela Constituição Federal, e a conciliação como instrumento
de solução de conflitos oferecido aos cidadãos.
A ideia do desenvolvimento deste estudo originou-se da relevância dada pelo
Conselho Nacional de Justiça, com a edição da Resolução 125, de 29 de novembro de
2010. Nesse documento consta como pressupostos: a) a eficiência operacional; b) a
71
organização dos serviços prestados pelo Poder Judiciário por meio de outros mecanismos
de solução de conflitos; c) o incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais
de solução de litígios; d) o papel da conciliação na redução da judicialização de conflitos;
e) a uniformização de procedimentos quanto à conciliação no Poder Judiciário.
Denota-se uma expectativa de efetivação de um plano de trabalho estabelecido
pelo Conselho Nacional de Justiça e, por conseguinte, de implementação de novas
diretrizes do acesso à Justiça por intermédio da conciliação.
O objetivo deste estudo é o de analisar a implementação de mecanismos que
auxiliem à concretização do direito do cidadão em ter acesso à justiça, na acepção de
uma resposta adequada e rápida do Estado para o conflito. No primeiro momento,
pondera-se a busca da sociedade pela pacificação social e a atuação do Poder Judiciário.
Posteriormente, aborda-se de forma breve, a importância histórica da conciliação no
ordenamento pátrio e são expostos os fundamentos legais e constitucionais. Por último,
aprecia-se a forma de implementação da conciliação como um mecanismo primordial
posto ao cidadão para a solução dos conflitos sociais.
A presente análise não tem o intuito de tecer críticas favoráveis ou não, mas, sim,
destacar a preocupação que o Estado deve ter em viabilizar condições aos órgãos
competentes e aos jurisdicionados na busca da paz social.
2
A BUSCA DA SOCIEDADE PELA PACIFICAÇÃO SOCIAL E A ATUAÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO
A vida em sociedade tem como ideal a redução dos conflitos sociais 1. As
controvérsias são reguladas justamente porque os homens não podem [...] viver em meio
às coisas sem formar a respeito delas idéias (sic), de acordo com as quais regulam sua
conduta. [...]2.
A pacificação social é a busca pela minimização dos conflitos sociais. Nesta busca
o Direito, a partir da regulamentação de condutas, de forma deôntica, visa estabelecer os
limites do próprio Direito e ordenar a sociedade3. Os limites do Direito, quanto a sua
aplicação, tem como competente o Poder Judiciário, como detentor exclusivo da
jurisdição, de dizer o direito.
Além disso, pode-se acrescentar o exposto por Enio Galarça Lima quanto ao
processo ser um instrumento de jurisdição avançado e civilizado, para resolução de
conflitos, pois mediante o poder-dever do Estado, este se torna imparcial a partir de
critérios axiológicos e normativos para desempenhar o papel de terceiro perante as partes
na resolução do conflito.4
O judiciário é chamado a resolver os conflitos sociais intersubjetivos 5, a resolução
da lide, resultado de conflitos sociais sobre o direito ou de direito. Assim, este Direito
sobre a gerência exclusiva do Poder Judiciário conta com o suporte processual, o direito
formal, para a proteção do direito material.
1
MAGANO, Octavio Bueno. Autocomposição e tutela. In: FREDIANI, Yone. DA SILVA, Jane Granzoto
Torres. O direito do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2001.
p. 109.
2 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Tradução de Eduardo Brandão. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 15.
3 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 25.
4 LIMA, Enio Galarça. O acesso à justiça do trabalho e outros estudos. São Paulo: LTr, 1994. p. 100.
5 CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, op. cit., p. 25.
72
O legislador, ao estabelecer regras de direito processual, sempre priorizou critérios
e medidas que valorizassem a conciliação como um instrumento efetivo e facilitador de
diálogos entre os sujeitos da relação conflituosa.
2. 1
A CONCILIAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
É indispensável para o estudo da conciliação, como mecanismo primordial na
solução dos conflitos sociais, a evolução histórica no ordenamento jurídico brasileiro e a
pesquisa sobre a atual política adotada pelo Conselho Nacional de Justiça, autorizada
pela Resolução 125, de 29 de novembro de 2010.
2.1.1
Desenvolvimento Histórico
A implementação de condições e de incentivo à conciliação, como instrumento de
solução de conflitos sociais, tem sido perseguida ao longo da História. Desde a
colonização brasileira por Portugal, a conciliação se fez presente. O Ordenamento do
Reino já previa a conciliação como uma das formas de resolução de conflito no Livro
referente ao diploma do Processo Civil. A respeito, Ives Gandra da Silva Martins Filho6
pondera com propriedade sobre a subordinação do Brasil, como colônia, a Portugal:
Como Colônia portuguesa, o Brasil estava submetido às Ordenações do Reino,
que eram as compilações de todas as leis vigentes em Portugal, mandadas fazer
por alguns de seus monarcas e que passavam a constituir a base do direito
vigente. São verdadeiras consolidações gerais, que servirão de molde para as
codificações futuras (Código Civil, Comercial, Penal, Processual, etc).
E no mesmo sentido coloca Cândido Rangel Dinamarco7 sobre o encontro de
culturas ao dizer que:
O direito lusitano das Ordenações Filipinas havia sido plantado de galho em solo
brasileiro, mediante a expressa determinação, contida em lei decretada pelo
primeiro de nossos dois imperadores, de que ‘as Ordenações, leis, regimentos,
alvarás, decretos e resolução promulgados pelos reis de Portugal, e pelas quais o
Brasil se governava até o dia 25 de abril de 1821 [...] ficam em inteiro vigor na
parte em que não tiverem sido revogadas, para por elas se regularem os negócios
do interior do Império enquanto se não organizar um novo Código ou não forem
especialmente alteradas’ (lei de 20 de outubro de 1823). [...].
Posteriormente, houve a implementação de legislação nacional com as
Ordenações Afonsinas de 1466 a 1521; Ordenações Manuelinas de 1521 a 1603 e a
última, as Filipinas que teve vigência de 1603 até a edição de normas nacionais. 8 As
normas de Direito Civil contidas no Livro IV – Direito Civil e Direito Comercial das
Ordenações Filipinas permaneceram até promulgação do primeiro Código Civil Nacional,
6
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jurídica Virtual.
Brasília, v. 1, n. 3, jul. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_03/
ordenamento%20jur%20brasil.htm>. Acessos em: 5 set. 2012 e 30 out. 2012.(grifos do autor).
7 DINAMARCO, Cândido Rangel. Liebman e a cultura processual brasileira. In: RIBEIRO, José Horácio
Halfed Rezende; DINAMARCO, Pedro da Silva; COSTA, Hélio Rubens Batista Ribeiro. (Coords.) Linhas
mestras do processo civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004. p. 83.
8 CRISTIANI, Claudio Valentim. O Direito no brasil colonial. In: Antonio Carlos Wolkmer (Org.).
Fundamentos de história do direito. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 403-404.
73
em 1º de janeiro de 19169 e sob a égide da Constituição Republicana, de 24 de fevereiro
de 1891.
O instituto da conciliação surgiu no Brasil como prática judiciária nas Ordenações
do Reino, mas com o advento das Ordenações Filipinas ocorreu a edição do Decreto nº
737, de 25 de novembro de 1850 que instituiu o Processo Commercial10 (sic) e trouxe sob
o Título II - Da ordem do Juízo, o Capítulo I “Da Conciliação”, os artigos 23 a 38. O
decreto regulamentar estava previsto no artigo 2711 do Título Único do Código Comercial
(Lei nº 556, de 25 de junho de 1850). O artigo 23 do supracitado decreto exigia, como
requisito de admissibilidade da ação, a passagem por conciliação, antes do juízo
contencioso. O artigo 27 do referido diploma previa diversos requisitos da petição para a
conciliação, como: qualificação das partes, endereço para citação, exposição dos fatos,
declaração de solicitação de audiência de conciliação. Denota-se, portanto, que no ramo
do Direito Comercial, havia destaque à conciliação, como instrumento de resolução de
conflitos.
As Constituições brasileiras, desde a imperial de 1824, dispuseram sobre a
conciliação. A primeira Constituição de 1824, assim dispôs no artigo 161: “Sem se fazer
constar, que se tem intentado o meio de reconciliação, não se começara processo algum”
12.
Manoel Antonio Teixeira Filho13 destaca que o processo civil curvou-se à
conciliação, sob a influência do processo do trabalho, e reconheceu como uma forma
célere e mais adequada do ponto de vista social para a solução dos conflitos de
interesses.
Com o advento da república, nova ordem constitucional se instalou no país e, por
conseguinte, aboliu o instituto da conciliação, por meio do Decreto nº 359/1890. O texto
constitucional da época autorizou os Estados a legislar sobre a matéria de processo, o
que derivou a adoção facultativa da conciliação.
No entanto, em 5 de janeiro de 1907, o Decreto 1637 criou os sindicatos
profissionais e sociedades cooperativas, com a finalidade de harmonização na relação
trabalhista entre empregados e empregadores e estabeleceu sobre o Conselho
Permanente de Conciliação e Arbitragem que tinha o propósito de dirimir divergências
entre capital e trabalho. Segundo Josué Luís Zaar, esse Conselho se aperfeiçoou e
originou a Justiça do Trabalho, a qual tinha caráter administrativo e não judicial.14
O próximo diploma legal a substituir os Conselhos Permanentes de Conciliação e
Arbitragem foi o Decreto nº 21.39615, de 12 de maio de 1932, que instituiu a Comissões
Mistas de Conciliação com a finalidade de resolver os dissídios entre empregadores e
empregados.
9
BRASIL.
Lei
nº
3.071,
de
1º
de
janeiro
de
1916.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 7 set. 2012.
10
BRASIL:
Decreto
nº
737,
de
25
de
novembro
de
1850.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1800-1850/D737.htm>. Acesso em: 7 set. 2012. Primeiro
Código nacional que dispõe regras de Processo, Direito Civil e Direito do Trabalho.
11
BRASIL:
Lei
nº
556,
de
25
de
junho
de
1850.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0556-1850.htm>. Acesso em: 7 set. 2012.
12 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em: 4 out. 2012. Havia
previsão no art. 162 dos juízes de paz.
13 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Curso de direito processual do trabalho. v. 1. São Paulo: LTr,
2009. p. 163-164.
14 ZAAR, Josué Luís. A conciliação prévia. Cascavel: Assoeste, 2008. p. 9.
15
Senado Federal. Decreto nº 21.396, de 12 de maio de 1932. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=33743>. Acesso em: 7 set. 2012.
74
Em 16.07.1934 foi promulgada a segunda Constituição republicana, que ao instituir
a Justiça do Trabalho, previu as Comissões de Conciliação16, que tratavam de
divergências coletivas. As Juntas de Conciliação e Julgamento já haviam sido criadas
como órgãos administrativos em 1932 (Decreto Legislativo 22.132) pelo presidente
Getúlio Vargas que tinham a competência de apreciar os dissídios individuais de
empregados sindicalizados e podiam impor soluções às partes. As Constituições que se
seguiram, de 1937 e a 1946, trouxeram alterações relevantes, em especial, a última que
transformou a Justiça do Trabalho como órgão integrante do Poder Judiciário, com
competência para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e
empregadores e, as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por
legislação especial.
Em 1º.05.1943, o Decreto-Lei 5.452 aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho,
que estabeleceu no caput do art. 76417 a sujeição dos dissídios individuais ou coletivos
submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho à conciliação. No procedimento ordinário
do processo trabalhista, a proposta de conciliação deve ser feita na abertura da audiência,
conforme previsão do art. 84618 da CLT e antes da sentença, após as razões finais,
conforme preceitua o art. 85019, caput, da CLT.
Rêmolo Letteriello destaca a iniciativa da Associação dos Juízes do Rio Grande do
Sul (AJURIS) com respaldo do Tribunal de Justiça, na criação do Conselho de
Conciliação e Arbitramento, instalado em 23.07.1982 na Comarca de Rio Grande. Esse
evento, segundo o autor20, foi um dos motivos de inspiração para o advento da Lei nº
7.244, de 07 de novembro de 198421, que dispunha sobre a criação e o funcionamento do
Juizado Especial de Pequenas Causas.
16
Art 122 - Para dirimir questões entre empregadores e empregados, regidas pela legislação social, fica
instituída a Justiça do Trabalho, à qual não se aplica o disposto no Capítulo IV do Título I. Parágrafo único A constituição dos Tribunais do Trabalho e das Comissões de Conciliação obedecerá sempre ao princípio
da eleição de membros, metade pelas associações representativas dos empregados, e metade pelas dos
empregadores, sendo o presidente de livre nomeação do Governo, escolhido entre pessoas de experiência
e notória capacidade moral e intelectual. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil,
de
16
de
julho
de
1934.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 05 out. 2012.
17 Art. 764 - Os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão
sempre sujeitos à conciliação. § 1º - Para os efeitos deste artigo, os juízes e Tribunais do Trabalho
empregarão sempre os seus bons ofícios e persuasão no sentido de uma solução conciliatória dos conflitos.
§ 2º - Não havendo acordo, o juízo conciliatório converter-se-á obrigatoriamente em arbitral, proferindo
decisão na forma prescrita neste Título. § 3º - É lícito às partes celebrar acordo que ponha termo ao
processo, ainda mesmo depois de encerrado o juízo conciliatório. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 4
out. 2012.
18 Art. 846 - Aberta a audiência, o juiz ou presidente proporá a conciliação. § 1º - Se houver acordo lavrarse-á termo, assinado pelo presidente e pelos litigantes, consignando-se o prazo e demais condições para
seu cumprimento. § 2º - Entre as condições a que se refere o parágrafo anterior, poderá ser estabelecida a
de ficar a parte que não cumprir o acordo obrigada a satisfazer integralmente o pedido ou pagar uma
indenização convencionada, sem prejuízo do cumprimento do acordo. (Incluído pela Lei nº 9.022, de
5.4.1995). BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 4 out. 2012.
19 Art. 850 - Terminada a instrução, poderão as partes aduzir razões finais, em prazo não excedente de 10
(dez) minutos para cada uma. Em seguida, o juiz ou presidente renovará a proposta de conciliação, e não
se realizando esta, será proferida a decisão. Parágrafo único - O Presidente da Junta, após propor a
solução do dissídio, tomará os votos dos vogais e, havendo divergência entre estes, poderá desempatar ou
proferir decisão que melhor atenda ao cumprimento da lei e ao justo equilíbrio entre os votos divergentes e
ao interesse social. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 4 out. 2012.
20 LETTERIELLO, Rêmolo. Repertório dos juizados especiais cíveis estaduais. Belo Horizonte: Del Rey,
2008. p. 109-110.
21 O diploma legal orientava a observância dos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia
processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação das partes (artigo 2º). BRASIL. Lei nº
75
A ordem constitucional brasileira, por fim recebeu a Constituição de 1988 22,
promulgada em 05 de outubro, que preconizou como um dos direitos e garantias
fundamentais, a observância do princípio da razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação no âmbito administrativo e judicial.
Segundo Octavio Bueno Magano23, a conciliação teve destaque com a Lei nº
9.022, de 5.4.1995 (DOU de 6.4.95) e após com a Lei nº 9.958/2000 (DOU-I de
13.1.2000) que estabeleceu a possibilidade de criação das Comissões de Conciliação no
âmbito das empresas e dos sindicatos.
Contudo, ainda que a legislação pátria incentive a conciliação, é necessária a
implementação de condições e mecanismos que orientem e auxiliem os magistrados e,
por conseguinte, toda a sociedade para a promoção da paz e a solução dos conflitos.
2.1.2
A Conciliação e a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), incluído pela Emenda Constitucional nº
45/2004, tem a incumbência de proceder controle administrativo-financeiro do Poder
Judiciário, bem como exercer a correição de juízes. A respeito de suas atribuições, o
Supremo Tribunal Federal se manifestou consoante ementa da ADI 3.367-1:
Ação direta. Emenda Constitucional 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional
de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão
interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura.
Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes.
História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula
constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo
político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do
Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente.
Precedentes e Súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação dos arts. 2º e
60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Votos vencidos. São
constitucionais as normas que, introduzidas pela EC 45, de 8-12-2004, instituem e
disciplinam o CNJ, como órgão administrativo do Poder Judiciário nacional. Poder
Judiciário. Caráter nacional. Regime orgânico unitário. Controle administrativo,
financeiro e disciplinar. Órgão interno ou externo. Conselho de Justiça. Criação por
Estado-membro. Inadmissibilidade. Falta de competência constitucional. Os
Estados-membros carecem de competência constitucional para instituir, como
órgão interno ou externo do Judiciário, conselho destinado ao controle da
atividade administrativa, financeira ou disciplinar da respectiva Justiça. Poder
Judiciário. CNJ. Órgão de natureza exclusivamente administrativa.
Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar
da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados,
hierarquicamente, abaixo do STF. Preeminência deste, como órgão máximo do
Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu
controle jurisdicional. Inteligência dos arts. 102, caput, I, letra r, e 103-B, § 4º, da
CF. O CNJ não tem nenhuma competência sobre o STF e seus ministros, sendo
esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito."
7.244, de 7 de novembro de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/19801988/L7244.htm>. Acesso em: 8 out. 2012.
22 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). BRASIL. Constituição da República Federativa do
Brasil,
de
5
de
outubro
de
1988.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 8 out. 2012.
23 MAGANO, 2001. p. 111.
76
(ADI 3.367-1, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-2005, Plenário, DJ de
22-9-2006.) 24
Dentre as competências do Conselho Nacional de Justiça previstas no §4º do art.
103-B da Constituição Federal25, destaca-se a Resolução nº 125, de 29 de novembro de
201026, a qual estabelece a Política Judiciária para tratamento de conflitos de interesses
no âmbito do Poder Judiciário, a partir de padronização de procedimentos e de conceitos,
com objetivo de promover: a) a pacificação social através do uso de meios alternativos de
resolução de conflitos e de meios consensuais; b) a sistematização e aprimoramento das
práticas judiciárias existentes no território nacional; e c) a busca pela eficiência
operacional do Judiciário e garantia de acesso ao sistema judiciário.
O Conselho Nacional de Justiça é responsável pela prática fundadora da
conciliação no Brasil, com destaque ao trabalho pioneiro de sistematização e
padronização nacional. A importância dada à conciliação revela com o estabelecimento
de várias diretrizes com objetivo primordial de viabilizar o acesso à justiça e a solução dos
conflitos. A obrigatoriedade de criação de núcleos permanentes de métodos consensuais
de solução de conflitos pelos Tribunais e de instalação de centros judiciários de solução
de conflitos, previstos nos artigos 7º e 12 e Anexo I da Resolução, são estabelecidas
como atribuições dos Tribunais para viabilizar o cumprimento dos objetivos propostos
para solucionar as controvérsias sociais.
O propósito da implementação de providências e de procedimentos visa assegurar
a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e
peculiariedade. Isso porque há uma relevante expectativa dos jurisdicionados em receber
a resposta do Poder Judiciário de forma célere e adequada. Contudo, a adoção de
métodos de resolução dos conflitos, entre eles, a conciliação, deve abranger desde o
tratamento adequado às partes, à controvérsia e, ao menos, a recomposição mínima com
a satisfação dos jurisdicionados que aguardam a atuação do Poder Público na pacificação
social, ou seja, na solução do problema.
No entanto, pondera Susana Bruno 27 que:
A promoção da efetividade do acesso à justiça deve ocorrer através de várias
vertentes, simultaneamente. A solução para a insatisfação do jurisdicionado com a
resposta que recebe sobre os seus conflitos não está unicamente no incentivo à
utilização dos métodos consensuais de solução de conflito. De um lado, busca-se
a redução dos custos e da duração do processo, de outro promovem-se
esclarecimentos à população sobre direitos e deveres, além de ampliar as formas
de acesso à justiça, implementando os métodos de composição pacífica de
conflitos.
Essa preocupação revela-se com a exigência de capacitação dos conciliadores e
mediadores a partir de exigências mínimas do curso de capacitação estabelecida no
24
BRASIL. ADI 3.367-1, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-2005, Plenário, DJ de 22-9-2006.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=8750>. Acesso em: 17 out. 2012.
(grifos nossos).
25 As atribuições do Conselho Nacional de Justiça compreendem: zelar pela autonomia judiciária e pela
aplicabilidade do art. 37 da Constituição, exercer a correição funcional no Judiciário e realizar diagnósticos
quanto à situação do Judiciário. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 17 out. 2012.
26 A Resolução dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. BRASIL. Resolução nº 125 do Conselho
Nacional de Justiça, de 29 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atosadministrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de2010>. Acesso: em 30 out. 2012.
27 BRUNO, Susana. Conciliação: prática interdisciplinar e ferramentas para a satisfação do jurisdicionado.
Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 56.
77
artigo 12 e Anexo I da Resolução 125. Posteriormente, a Resolução 126, de 22 de
fevereiro de 2011, determinou no artigo 5º28, como uma das disciplinas a serem
ministradas na formação inicial dos magistrados, técnicas de conciliação. Isso porque a
atuação do julgador perante as partes, a promoção do diálogo e a forma de tratamento à
controvérsia representam fatores importantes e até decisivos para a obtenção do acordo
entre as partes.
As medidas estabelecidas na Resolução 125, de 29 de novembro de 2010,
complementada no aspecto citado, demonstram que a conciliação assume relevância
perante a sociedade e prioridade adotada pelo Poder Judiciário para a solução dos
conflitos sociais.
3
3.1
A CONCILIAÇÃO E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS
CONCILIAÇÃO: CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
O termo conciliação advém do latim conciliatio, conciliatione de conciliare. Significa
ajuste, acordo, harmonização de pessoas desavindas, combinação e composição29.
A conciliação formaliza um negócio jurídico, razão pela qual devem ser observadas
as condições de validade, agente capaz, objeto lícito, possível e determinado ou
determinável30. Trata-se de uma modalidade de resolução de conflitos atingida pela
consensualidade entre as partes, mas também representa uma forma de pacificação
social não menos legítima que a prestada pelo Judiciário.31
Teixeira Filho complementa, ao dizer que se trata de uma transação, por constituir
um negócio jurídico entre as partes bilateral, desenvolvida consensualmente, desvestida
da intervenção na resolução do conflito.32
A conciliação, sob o aspecto da forma, pode ser classificada como judicial33,
extrajudicial34 e extrajudicial e judicial35. No tocante à manifestação de vontade, a doutrina
enumera como facultativa36 e obrigatória37. Com relação à primeira modalidade, a Lei nº
Consta no art. 5º, inciso VII da Resolução: “Técnicas de Conciliação – apresenta as mais modernas e
eficazes formas de se obter a solução negociada das demandas judiciais”. BRASIL. Resolução nº 126 do
Conselho
Nacional
de
Justiça,
de
22
de
fevereiro
de
2011.
Disponível
em:
<http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/resolucao_n_126_gp_2011.pdf>. Acesso em: 20
out. 2012.
29 MARTINS, Sérgio Pinto. Comissões de conciliação prévia. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.13.
30 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou
determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei. BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 04 out. 2012.
31 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São
Paulo: Alfa Omega, 2010. p. 286.
32 TEIXEIRA FILHO, 2009. p. 165.
33 MARTINS, 2008, p. 14. O autor explica que a conciliação judicial ocorre na presença de juiz e em juízo.
34 MARTINS, loc. cit. Segundo Martins, a conciliação extrajudicial é realizada fora de juízo, em empresas,
em sindicatos e etc.
35 MARTINS, loc. cit. O autor apresenta como terceira modalidade e refere-se à existência simultânea de
mecanismos extrajudiciais de conciliação e a possibilidade de se ajuizar a ação para a discussão da
questão trabalhista.
36 A Lei nº 9.958/2000 dispôs sobre as Comissões de Conciliação Prévia e prevê a conciliação facultativa e
permite a execução de título executivo extrajudicial na Justiça do Trabalho. Art. 625-A. As empresas e os
sindicatos podem instituir Comissões de Conciliação Prévia, de composição paritária, com representantes
dos empregados e dos empregadores, com a atribuição de tentar conciliar os conflitos individuais do
trabalho. Parágrafo único. As Comissões referidas no caput deste artigo poderão ser constituídas por
grupos de empresas ou ter caráter intersindical. BRASIL. Lei nº 9.958, de 12 de janeiro de 2000. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9958.htm>. Acesso em: 30 out. 2012.
28
78
9.958, de 12 de janeiro de 2000, estabeleceu as Comissões de Conciliação Prévia no
âmbito dos sindicatos e empresas. A conciliação obrigatória encontra-se prevista nos
artigos 764, 846 e 850 da Consolidação das Leis do Trabalho. Sérgio Pinto Martins38
menciona sobre o disposto no artigo 514 do mesmo diploma legal, que prevê como um
dos deveres dos Sindicatos, promover a conciliação nos dissídios coletivos do trabalho.
No procedimento sumaríssimo39, o magistrado deve esclarecer sobre as vantagens da
conciliação às partes e o emprego de meios adequados de persuasão em qualquer
audiência. Da leitura dos dispositivos elencados, denota-se que o escopo da Justiça do
Trabalho é prestigiar a conciliação como um mecanismo de solução da controvérsia.
Outra perspectiva para classificação da conciliação é a sugerida por Letteriello40,
dividindo em pré-processual e judicial. A pré-processual ocorre sem utilização de
processo judicial, enquanto essa se constitui como um ato dentro do processo instaurado.
Nesse aspecto, Adriana Gourlart de Sena41 explica que a conciliação pode ser entendida
em um conceito mais abrangente do que o acordo, ou seja, como uma recomposição de
relações não harmônicas. Explica a autora que a conciliação judicial trabalhista
representa uma modalidade muito importante no Direito do Trabalho.
Sérgio Pinto Martins42 salienta que as partes que chegam à conciliação. Justifica
que o conciliador não faz propostas ou mediação, mas somente aproxima as partes.
Rêmolo Letteriello43, por sua vez, destaca
A conciliação, induvidosamente, sempre foi o instrumento de maior significação e
importância na mecânica do funcionamento do microssistema, eis que, imprimindo
uma filosofia diversa no tratamento dos conflitos de interesses, proporciona a
solução deles sem ingerência do Poder Judiciário, realizando a verdadeira razão
de ser da justiça especial, que é a pacificação social.
Teixeira Filho pondera uma frágil diferença no tocante à participação de terceiro e
explica a atuação do conciliador, como um elemento que formula propostas ou sugestões
direcionadas à solução do conflito, diverso do sujeito que apenas media o conflito e
aproxima os pares, aconselhando para que elas diretamente encontrem uma forma de
solução para o conflito, de maneira consensual. Na visão do autor, na conciliação, o
terceiro age de maneira mediata na busca da solução do conflito44, aspecto que a
diferencia da mediação e da arbitragem.
Raúl Jimenez45 salienta que na conciliação prescinde a atuação de um sujeito ou
órgão conciliador, porque as partes podem conciliar-se.
As observações sobre a atuação do sujeito que envida esforços para a
aproximação das partes conflituosas, revelam o papel relevante e essencial para a sua
concretização. Destaca Enio Galarça Lima46 que a conciliação
37
MARTINS, op. cit., p. 14. Segundo Martins, a conciliação obrigatória é determinada por lei, exemplo do
autor, como nas ações trabalhistas.
38 MARTINS, loc. cit.
39 Art. 852-E. Aberta a sessão, o juiz esclarecerá as partes presentes sobre as vantagens da conciliação e
usará os meios adequados de persuasão para a solução conciliatória do litígio, em qualquer fase da
audiência. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 4 out. 2012.
40 LETTERIELLO, 2008. p. 113.
41 SENA, Adriana Goulart. Formas de resolução de conflitos e acesso à justiça. Revista do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, v. 46, n. 76, p. 93-114, jul/dez. 2007. p. 98.
42 MARTINS, 2008. p. 13.
43 LETTERIELLO, 2008. p. 110.
44 TEIXEIRA FILHO, 2009. p. 168-169.
45 JIMENEZ, Raúl. Conflitos coletivos do trabalho e as soluções extrajudiciais. In: ZAINAGHI, Domingos
Sávio. FREDIANI, Yone (Coords.). Novos rumos de direito do trabalho na América latina. São Paulo:
LTr, 2003. p. 93.
46 LIMA, 1994. p. 99-100.
79
[...] é um conjunto de medidas e ações destinadas a tornar convergentes opiniões
e atitudes diferentes e contraditórias. Na prática, a conciliação laboral equivale a
possibilitar dita convergência mediante medidas e ações que supõem a presença
de um terceiro imparcial (o conciliador individual ou colegiado), que escuta as
pretensões das partes e as ajuda a estruturar e formular suas pretensões, preside
a exposição de seus fundamentos de fato e de direito, as orienta e informa a
respeito dos aspectos legais sobre os pontos de controvérsia e sobre o
procedimento de solução de conflitos, transmite a cada parte as observações e
proposições formuladas separadamente por cada uma delas, procura a existência
de condições ambientais e materiais que facilitem o diálogo, proporciona, enfim,
informações a respeito da situação econômica-financeira da empresa.
No processo da conciliação, em todas as suas modalidades, verifica-se que a
atuação do conciliador é de especial importância, desde da aproximação das partes até
os esclarecimentos sobre os aspectos envolvidos no possível ajuste de vontades.
3.2
CONCILIAÇÃO E DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS
A doutrina utiliza diversas expressões para identificar as formas de resolução de
conflitos. Segundo Enio Galarça Lima47, existem três formas de resolução de conflitos: a
autodefesa, a autocomposição e a solução processual. Segundo este autor, a autodefesa
seria uma forma de autocomposição, unilateral, enquanto a solução processual seria o
método heterocompositivo. A autocomposição compreende a vontade da parte sem
interferência de terceiro, o Estado, e a heterocomposição revela a vontade do terceiro que
recai sobre as partes.
Na linha de raciocínio de Lima, quanto à definição de formas de resolução de
conflitos, Antonio Carlos de Araujo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco, mencionam que a autocomposição representa [...] sacrifício total ou parcial do
próprio interesse [...]48, e a autodefesa ou autotutela [...] sacrifício do interesse alheio
[...]49, enquanto a heterocomposição revela [...] a defesa de terceiro, a conciliação, a
mediação e o processo (estatal ou arbitral) [...]50. Os doutrinadores acrescentam que a
autocomposição apresenta três formas, pelas quais a parte ou ambas as partes abrem
mão do interesse ou de parte dele, a saber: a) desistência, ao renunciar a pretensão; b)
transação, por meio de concessões recíprocas; c) submissão, no ato de renunciar à
resistência quanto à pretensão.51 Mas Lima52 discorda desse entendimento em relação à
conciliação, por entendê-la como método autocompositivo e não como heterocompositivo,
como nos casos de arbitragem e de mediação.
A divergência apresentada demonstra o problema de se considerar a conciliação
como método autocompositivo. Nesse aspecto, a visão de Letteriello, que propõe a
conciliação no campo intermediário entre o método autocompositivo e heterocompositivo,
porquanto trata-se de um procedimento que tem início pela vontade das partes, mas
ritualizado por terceiro imparcial.53 O autor define autocomposição como sendo um
processo de negociação direto dos sujeitos envolvidos no conflito, confundível com
processo de negociação, mas que serve de instrumento para o resultado da
autocomposição.54
47
LIMA, 1994. p. 97.
CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2011. p. 26.
49 Ibid., p. 26.
50 CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, loc. cit.
51 Ibid., p. 27.
52 LIMA, 1994. p. 99.
53 LETTERIELLO, 2008. p. 110.
54 LETTERIELLO, 2008. p. 98.
48
80
No entanto, Mauricio Godinho Delgado55 aponta como meio heterocompositivo, no
qual se revela a ingerência de um terceiro na dinâmica da solução do conflito. A
preocupação na classificação como modalidade autocompositiva ou heterocompositiva,
segundo Mauricio Godinho Delgado56 tem relevância nos aspectos dos sujeitos
envolvidos e na sistemática operacional do processo utilizado.
4
4.1
A CONCILIAÇÃO E O ACESSO À JUSTIÇA
A CONCILIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA
A conciliação revela a possibilidade de uma resolução judicial mais célere, a qual
prioriza a vontade das partes, não como negociação ou transação entre elas, mas como
uma forma de solução ao conflito, adotada pela vontade das partes, sem resolução
propriamente oriunda da vontade estatal57. Contudo, não é adequado afirmar que o
Judiciário está delegando a função de buscar a paz social, ou afastando a jurisdição da
resolução de conflitos ou afastar o direito ao processo58. A conciliação judicial possui uma
função de pacificação social alternativa a jurisdição59, bem como uma forma
autocompositiva de solução de conflitos.
A conciliação judicial, ainda que se trate de um resultado de uma atividade
assistida pelo Estado, não impede as partes, voluntariamente, resolverem o conflito.
Rêmolo Letteriello60 afirma que no âmbito dos Juizados Especiais, a conciliação
sempre exerceu o papel de proporcionar uma solução ao conflito de interesse sem
ingerência imediata de terceiro. No entanto, o autor61 salienta que pode ser intentada não
somente no início do processo ou na audiência de instrução e julgamento, mas a qualquer
momento que o juiz entenda cabível.
A conciliação como solução processual, verifica-se com a adoção do Código de
Processo Civil62, compartilhando do caminho percorrido pela Justiça do Trabalho 63, que
por excelência, sempre teve a finalidade de conciliar.
A preocupação de uma política pela viabilização da conciliação revela como uma
busca pela efetividade de direitos e de sistematização do ordenamento pátrio.
Representa, ainda, uma alternativa que garante o acesso ao sistema judiciário e a
resolução de conflitos.
55
Mauricio Godinho Delgado aponta a conciliação como uma modalidade de heterocomposição, mas
destaca a divergência doutrinária que reserva à heterocomposição apenas a jurisdição e a arbitragem.
Explica que o terceiro não tem o poder de decidir o litígio, embora seja inegável a participação na dinâmica
autocompositiva. GODINHO, Mauricio Delgado. Curso de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2004.
p. 1.444.
56 GODINHO, 2004. p. 1445.
57 TEIXEIRA FILHO, 2009. p. 163.
58 BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do estado
constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 82. Segundo o autor, o direito ao processo
contempla dois aspectos. O primeiro faz referência ao acesso à jurisdição e o segundo quanto ao direito
abstrato à tutela jurídica estatal.
59 CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2011. p. 33.
60 LETTERIELLO, 2008. p. 110.
61 LETTERIELLO, 2008. p. 111.
62 Como exemplo, os artigos 125, IV, 277, 278, 331, §§1º e 2º e 447 a 449. BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de
janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm>. Acesso
em: 30 out. 2012.
63 TEIXEIRA FILHO, 2009. p. 163-164.
81
4.2
A CONCILIAÇÃO COMO RESULTADO DO ACESSO À JUSTIÇA
As diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da
Resolução 125, de 29 de novembro de 2010, demonstram que apenas a previsão
constitucional do princípio da duração razoável do processo64 e a observância de
dispositivos legais que determinam a conciliação como obrigatória nos procedimentos
ordinário e sumaríssimo não são suficientes para que se concretize a pacificação social.
A tutela estatal, na resolução de conflitos, exercida pelo Poder Judiciário, depende
da implementação de promoção de acesso à justiça. Desta forma Mauro Cappelletti e
Bryant Garth, ao tratar do tema “Acesso à Justiça”65, dividiram o acesso à justiça em três
ondas de acesso. A primeira onda foi promover aos necessitados o acesso ao Judiciário.
Na segunda onda, destina-se a garantia do acesso, via processual, aos interesses
coletivos e difusos, e por último, a terceira onda objetiva a simplificação do processo, para
promover o acesso.
Outra perspectiva é a de Guilherme Botelho66, ao classificar o acesso à Justiça em
duas dimensões, uma objetiva – tutela jurisdicional, e outra subjetiva – tutela qualificada e
aderente ao direito material. O autor67 explica que o acesso à Justiça estabelece estudo
da instrumentalização do processo e efetivação de direitos, que ocorreu inicialmente na
Itália e Espanha, com repercussões na América Latina, a partir do movimento póspositivista. Pondera que o acesso ao Judiciário
[...] Não se configura em direito de mero acesso formal ao Poder Judiciário,
comportando uma complexidade de atos a se desenvolverem em procedimento
firmado em constante contraditório, garantindo-se, assim, um diálogo entre as
partes e o julgador.68
Susana Bruno69 compartilha que o acesso à justiça só é viabilizado, não puramente
com uma administração eficiente do Poder Judiciário, mas com a criação de meios
adequados para a tutela de direitos materiais.
Na implementação de condições de se viabilizar a conciliação e a sua efetivação
na relação endoprocessual decorrem inúmeros efeitos, que merecem especial destaque,
que, contudo, não se pretende esgotá-los nesse trabalho. A primeira hipótese de
resultado refere-se ao prosseguimento do conflito, com a busca do direito ao processo, se
frustrada a tentativa de conciliação. A segunda considera exitosa conciliação, cominando
na sentença homologatória do acordo, para dar segurança jurídica e transformar este
acordo em título executivo70, este último encontra-se previsto no artigo 475-N, inciso III do
Código de Processo Civil. Há outros efeitos, como o não comparecimento do autor que
implicará extinção do processo, conforme o inciso I do artigo 50 da Lei dos Juizados
Especiais - LJE, e se o réu não aparecer, acarretará a veracidade dos fatos e julgado a
revelia, salvo se do contrário o juiz entender, conforme artigo 20 da Lei dos Juizados
Especiais.
Contudo, a prática da conciliação judicial apresenta obstáculos a serem superados.
Letteriello71 aponta alguns problemas: a) a quantidade desmedida de feitos, bem como o
excesso de audiências simultâneas impedem o acompanhamento e desenvolvimento da
64
LETTERIELLO, 2008. p. 112.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1988.
66 BOTELHO, 2010. p. 118-132.
67 Ibid., p. 32-39.
68 Ibid., p. 112.
69 BRUNO, 2012. p. 26.
70 LETTERIELLO, 2008. p. 110.
71 LETTERIELLO, 2008. p. 112.
65
82
conciliação; b) a falta de presença do juiz togado nas sessões de conciliação para
homologar o acordo em um único ato; c) a continuidade de orientação e instrução do
conciliador. Os aspectos citados contribuem na falta de celeridade e eficácia da
conciliação, mas se comparada com o processo, revela ser mais ágil.
O autor identifica a exclusão de causas que não dispõem da conciliação como
forma de resolução, são: as de natureza alimentar, as falimentares, as fiscais, as de
interesse da Fazenda Pública, as relativas ao acidente de trabalho, conforme determina o
parágrafo segundo do artigo 3º da Lei dos Juizados Especiais. Explica que as causas não
excepcionadas pelo artigo 3º da citada lei, podem ser resolvidas por meio da conciliação,
desde que versem sobre direitos disponíveis.72
A conciliação representa e contribui para a adoção de uma conduta do Poder
Judiciário e na mudança de postura no tratamento aos jurisdicionados e na apreciação
dos conflitos sociais. Os efeitos decorrentes da conciliação demonstram a busca pela
efetividade de direitos e a sistematização do ordenamento pátrio, bem como a resolução
de conflitos de forma célere. Representa, em síntese, uma alternativa que permite o
acesso ao sistema judiciário de igual valia ao procedimento heterocompositivo judicial de
resolução de conflitos.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conciliação, sob uma forma de desformalização, de desprocessilização, tem
como objetivo aproximar os jurisdicionados da pacificação social, mediante a inclusão das
partes como autores de um processo resolutivo e não mais como meros expectadores.
O ordenamento jurídico brasileiro sempre priorizou a conciliação como uma medida
de utilidade e importância para a solução dos conflitos apreciados pelo Poder Judiciário. A
Constituição Federal de 1998 preconizou como um dos direitos e garantias fundamentais
a observância do princípio da duração razoável do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação no âmbito administrativo e judicial. Contudo, ainda que a
legislação pátria incentive a conciliação, é necessária a implementação de condições e
mecanismos que orientem e auxiliem os magistrados e toda a sociedade na promoção da
paz social.
O Conselho Nacional de Justiça, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004,
implantou com a Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, a Política Judiciária
Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder
Judiciário. A postura adotada representa a grande responsabilidade na prática fundadora
da conciliação no Brasil. O estabelecimento de diretrizes e orientações para a viabilização
de métodos consensuais aos tribunais demonstra o relevante papel na solução das
controvérsias sociais.
Apesar das divergências doutrinárias na classificação da conciliação como método
de solução de conflitos, emerge a importância da atuação do terceiro conciliador perante
as partes, com finalidade de garantir a duração razoável do processo e garantir acesso ao
Poder Judiciário.
A conciliação representa e contribui para a adoção de uma conduta do Poder
Judiciário e na mudança de postura no tratamento aos jurisdicionados e na apreciação
dos conflitos sociais. Os efeitos decorrentes da conciliação demonstram a busca pela
efetividade de direitos e a sistematização do ordenamento pátrio, bem como a resolução
de conflitos de forma célere. Representa, em síntese, uma alternativa que permite o
acesso ao sistema judiciário de igual valia ao procedimento heterocompositivo judicial de
resolução de conflitos.
72
Ibid., p. 116.
83
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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86
JUIZADOS ESPECIAIS: UM CASO DE SUCESSO OU
DE FRACASSO NA IMPLEMENTAÇÃO DA NOVA FÓRMULA DE
ACESSO À JUSTIÇA E DA CONCILIAÇÃO
Nara Fernandes Bordignon
______________________________________
Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo UNICURITIBA
Graduada em Direito pelo UNICURITIBA
Graduada em Administração pela UFPR
87
RESUMO
A efetividade dos Juizados Especiais Estaduais Cíveis, criados pela Lei 9.099 de 1995 é
analisada neste artigo como uma das formas de acesso à Justiça, tendo em vista que
este é um direito fundamental amparado pela Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. O objetivo do presente artigo consiste em analisar o acesso à Justiça,
como um princípio fundamental e amparado constitucionalmente. Posteriormente,
analisam-se as características dos Juizados Especiais e, por fim, a identificação da crise
judiciária e da efetividade dos Juizados Especiais.
Palavras-chave: Acesso à justiça, juizados especiais, efetividade.
1
INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 garante o acesso à Justiça como um direito fundamental.
Tendo em vista que, muitas vezes, para se efetivar um direito e/ou uma garantia, seja ela
individual ou coletiva, é necessário recorrer ao Poder Judiciário, verifica-se que a
efetividade de acesso à Justiça somente se dá com a possibilidade real do cidadão mover
a máquina judiciária. Para isto, importante se faz entender o que realmente é considerado
como acesso à Justiça para depois verificar-se entre uma das formas de sua efetivação
os Juizados Especiais. Neste ponto, faz-se necessário verificar a origem, a história, os
princípios norteadores e os objetivos dos Juizados Especiais, para posteriormente,
verificando-se a presente crise judiciária e as formas alternativas de solução de conflitos,
a real efetividade do acesso à Justiça permitida pelos Juizados.
2
2.1
ACESSO À JUSTIÇA
ACESSO À JUSTIÇA
O termo acesso à Justiça é de difícil conceituação, mas pode ser considerado
como a forma pela qual os indivíduos podem reivindicar direitos e solucionar seus
conflitos. Possui, ainda, como finalidades, a obrigatoriedade de ser um sistema que deve
ser acessível a todos e produzir soluções e resultados iguais e justos para todas as
situações fáticas ocorridas na vida das pessoas. Ou seja, a função principal do acesso à
Justiça consiste em dar uma solução a um litígio (AIRES, 2012).
De acordo com Motta (2012) o acesso à Justiça por parte de classes
economicamente inferiores foi ampliada com a racionalização e com a redução dos custos
necessários para a movimentação do Poder Judiciário, com a simplificação e com a
modificação dos procedimentos nas diferentes esferas jurídicas, com a representação de
causas coletivas e com a alteração no desenvolvimento dos operadores do Direito, sejam
eles juízes, advogados, promotores, defensores, etc., pois a instauração de uma cultura
democrática é urgente. A garantia ao acesso à Justiça é considerada como um direito
social que necessita da interferência do Estado para que se aplique a política de bemestar (MOTTA, 2012).
Da leitura de Cappelletti e Garth (1988) percebe-se que o acesso à Justiça está
intimamente ligado à cidadania, tendo em vista que ambos necessitam do Judiciário para
sua efetivação. Para Aires (2012) é uma função estatal a garantia dos “[...] Direitos
fundamentais do cidadão, incluindo nestes o acesso á Justiça, tendo em vista ser tal
acesso considerado um dos principais direitos conferidos ao homem, uma vez que por
meio dos demais direitos podem ser concretizados”.
88
2.2
UM DIREITO CONSTITUCIONAL E UM PRINCÍPIO FUNDAMENTAL
No âmbito positivo jurídico, o acesso à Justiça é um direito que está inserido como
fundamental na Constituição, e, no plano internacional, nos tratados, nas convenções e
nos pactos internacionais (AIRES, 2012). Para Pereira (2004, p. 34) a promulgação da
Constituição da República de 1988 reforçou as formas de se promover o acesso à Justiça.
De Cappelletti e Garth (1998) tem-se que o princípio do acesso à Justiça
pressupõe a possibilidade de que todas as pessoas, sem distinção alguma, tenham a
possibilidade de pleitear suas demandas nos órgãos do Judiciário. Sendo que este
comando possui relação as garantias de que a lesão ou a simples ameaça a um direito
possa ser objeto de apreciação do Judiciário, dando asilo estatal aos indivíduos que, por
sua hipossuficiência, não poderiam arcar com custos da demanda. Significa, ainda, que o
legislador não pode obstaculizar o acesso à Justiça, pode apenas criar condições para o
seu exercício. Para que desta forma, o acesso à Justiça seja efetivo e material, isto é, o
Estado deve apresentar uma resposta satisfatória ao cidadão, auxiliando-o a dirimir seu
conflito dentro de um prazo razoável. Ou seja, não basta o Judiciário receber a demanda,
é necessário que solucione dentro de modo célere.
Os direitos fundamentais brotam e se crescem com as Constituições, pois são
nelas é que não adotados e garantidos. O artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem declara que todo o indivíduo tem direito ao acesso à justiça em igualdade de
condições, julgada de modo independente e imparcial. Assim como o artigo 14 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Desta feita, é visível que o direito ao efetivo acesso à Justiça, seja ela interna, ou
internacional, é considerado como um Direito Humano. Percebe-se que o nascimento dos
Juizados Especiais é como o marco de uma prestação jurisdicional, como um exemplar
de justiça acessível e pouco burocratizada, por privilegiar a conciliação para a dissolução
da disputa. A conciliação “[...] significa ato ou efeito de conciliar, ajuste , acordo ou
harmonização de pessoas desavindas; congraçamento, união, composição ou
combinação” (CUNHA, 1997, p. 33)’.
De acordo com Moraes (1998, p. 23), “[...] o efetivo acesso ao aparato jurisdicional
significa direito fundamental num sistema igualitário, onde todos possam ter esse direito
garantido e não apenas declarado”. Continua que (p. 33) não se tem acesso à vias
judiciais a toda a população do país, principalmente aos pequenos litigantes, pois estes
não possuem condições econômicas, sociais e psicológicas para bater na porta do
Judiciário, tendo a defesa de seus direitos cerceada. Em função disto, complementa (p.
39) que as consequências das dificuldades de acesso à justiça acarretam em uma
litigiosidade contida, isto é, “[...] conflitos de interesses que ficam sem qualquer solução,
não chegando sequer ao conhecimento do Judiciário. Fenômeno que traz, evidentemente,
grandes riscos à tranquilidade e paz sociais”.
Paroski (2008, p. 210-296) afirma que existem diversos obstáculos ao acesso à
Justiça, como: a) fatores políticos e sociais; b) fatores de ordem econômica e financeira,
como as despesas processuais, a insuficiência econômica seja dos litigantes ou do Poder
Judiciário e a relação de custo-benefício do processo; c) os fatores relacionados à
prestação jurisdicional, como a assistência judiciaria gratuita, a defensoria pública, a
interpretação e a aplicação do direito, as técnicas processuais, a tutela de interesses
transindividuais, o acesso aos advogados e o manejo dos processos, a imparcialidade e a
neutralidade dos juízes, a morosidade processual com o excesso de demandas, a
litigiosidade do poder público, os recursos e a falta de adequada tutela jurisdicional.
Em geral, para que os cidadãos tenham o direito de acesso à justiça é necessário
que a cidadania seja exercida. Desse modo todos necessitam ter ciência de seus
direitos para ter a capacidade de cumpri-los. Na atualidade, o Brasil se apresenta
como um pais escasso financeira e intelectualmente, pois existem muitos
89
analfabetos. A cultura, apesar de estar em evolução, ainda não foi democratizada
[...]. assim, é necessária a proliferação de instrumentos viabilizadores do cesso à
justiça para que levem a cidadania e a democracia àqueles que delas necessitem.
Passa-se agora à análise dos Juizados Especiais Estaduais Cíveis como forma de
promoção do acesso à Justiça no Brasil.
3 JUIZADOS ESPECIAIS
3.1 ORIGEM, HISTÓRICO E DESENVOLVIMENTO DOS JUIZADOS NO BRASIL
No que tange à história dos Juizados Especiais, observa-se que a conciliação
originou-se na bíblia, mais precisamente no livro de Mateus, pelo qual os pacificadores
seriam considerados filhos de Deus. A partir daí, toda a civilização percebeu a vantagem
e os benefícios da solução de conflitos pela de modo mais simples.
[...] os romanos distinguiam a categoria de conciliatrix às senhoras que se
incumbiam de reunir os esposos separados. [...] Na França, em 1790 foram
criados os Juízes de Paz, de forma que nenhuma ação principal seria recebida,
sem antes o certificado de haver-se juntado previamente a conciliação. [...] Data
de 1827, quando as Ordenações Filipinas criaram os Juízes de Paz, em que estes
assumem competência para conciliação entre as partes, pretendendo demandar
por todos os meios pacíficos que estivessem ao seu alcance, mandando lavrar
termo da conciliação obtida, que era assinado pelas partes e pelo escrivão
(MARTINS, 2006).
A Constituição do Brasil de 1824 já buscava a reconciliação entre as partes
conflitantes, por isto criaram-se os chamados Juízes de Paz. Já a Constituição de 1967
previu os Juizados de Pequenas Causas que tinham como finalidade solucionar causas
de baixo valor econômico, instituto regulado pela Lei n.º 7.244/84. Destes resultaram,
conforme a Constituição Brasileira de 1988, artigos24, X e 98, I, os Juizados Especiais
que posteriormente foram organizados pela Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995
(MARTINS, 2006).
Alvim (2010, p. 17-18) continua, afirmando que a conciliação é de extrema
relevância, pois faz com que as partes no processo, possam colocar fim a seus conflitos.
Sendo o conciliador, auxiliar da justiça, essencial para uma maior celeridade processual.
Desta maneira, a conciliação não pode ser uma simples formalidade processual. Tendo
em vista que é sim, uma maneira de acalmar as almas conflitantes, seja em benefício
próprio, ou da sociedade. Garantindo um resultado mais satisfatório do que a sentença, já
que acata interesses do autor e do réu.
Restando o processo como um instrumento de jurisdição, isto é, uma “[...] relação
jurídica processual que interliga sujeitos processuais, em busca de uma idêntica
finalidade, que é a atuação da lei, mediante provocação da parte interessada”. O
julgamento consiste na ação de julgamento da lide, aplicando o direito a um determinado
caso concreto, a chamada subsunção do fato à regra jurídica, por intermédio da sentença.
E, não abrange simplesmente o mérito, mas sim todas as questões, sejam elas
processuais ou não, que apareçam no processo. O processo de execução está também
englobado por esta lei (ALVIM, 2012, p. 18-19).
Desta maneira tem-se que os Juizados Especiais Cíveis e Criminais são
instrumentos da justiça ordinária, criados nos Estados e no Distrito Federal, para
processar e julgar, seja por vontade do autor, nas causas de diminuído valor, não
superiores a 40 salários mínimos, vigentes no país; as situações do artigo 275, II do
90
Código de Processo Civil; as ações de despejo para uso próprio e possessórias, bem
como as infrações de menor potencial ofensivo.
Os processos, nos Juizados Especiais, guiam-se pelos seguintes princípios:
oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Objetivando,
quando possível, a conciliação das partes, devendo o juiz dirigir o processo de modo livre
para adotar em cada caso concreto a decisão que considerar justa e equânime. Quanto
às partes do processo, não poderão ser, incapazes, presos, pessoas jurídicas de direito
público, empresas públicas da União, massas falidas e insolventes civis. Os atos
processuais são públicos e podem ocorrer, em algumas hipóteses, no período noturno.
O pedido, oral ou escrito, feito à Secretaria do Juizado, dá início ao processo,
devendo, a sessão de conciliação realizar-se em até 15 dias. A execução da sentença
poderá processar-se no próprio juizado. Para ingressar com uma ação nos Juizados
Especiais, em primeiro grau de jurisdição, não depende do pagamento de custas, de
taxas ou de despesas. Não há, ainda, a obrigatoriedade de constituição de advogado,
exceto se o valor da causa for superior a 20 salários mínimos e em grau recursal. Diante
de todo o exposto, verifica-se que os Juizados'1 Especiais podem ser considerados, por
alguns doutrinadores, como a “justiça do futuro”.
Assim, os Juizados Especiais permitem que o juiz seja um legislador de um caso
concreto, isto é: “A lei é geral e abstrata. Ele deve, a princípio, ter a lei como bússola para
procurar resolver o caso concreto, mas muitas vezes é imprescindível quando esse
instrumento falha [...]” utilizar-se de outros princípios para se alcançar um bom termo.
“Nem sempre a lei é a solução. Justiça não é misericórdia nem caridade. Nem vingança.
Nem instrumento do mais forte. Deve-se com a justiça buscar o equilíbrio, a boa
convivência social, a paz” (TOURINHO NETO e FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 865).
3.2
COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS
A competência é conceituada como a “[...] quantidade de jurisdição atribuída pela
Constituição ou pela lei aos órgãos jurisdicionais para o julgamento de determinadas
causas, segundo determinados critérios (objetivo, territorial, funcional)”. É tida, ainda
como a medida da jurisdição, do poder de julgamento do juízo, ou seja, caso nenhuma lei
restrinja a jurisdição de um juiz, ele poderá avaliar qualquer demanda, porém, caso exista
uma lei que imponha restrições, somente poderá solucionar algumas lides, sendo a
jurisdição restringida pela competência (ALVIM, 2010, p. 25).
Desta forma, para ingressar com uma ação, verifica-se, em primeiro lugar, o local
onde deve ser proposta, ou seja, o foro. Posteriormente, caso exista mais de um juízo
competente, deve-se definir o juízo competente. Seja pelo critério objetivo, territorial ou
funcional. Conforme o artigo 4º, Lei 9.099, pelo critério objetivo analisam-se o valor da
causa, ou seja, o valor econômico do objeto do litígio, normalmente, presente no pedido; e
a natureza da causa, isto é, a substância do processo, o caráter da relação jurídica. O
critério territorial consiste na averiguação do local onde o réu está domiciliado; ou de
celebração do contrato; ou onde achar-se o bem objeto da demanda e da ocorrência do
fato; entre outras. E, por fim, o critério funcional, pelo qual se investiga a natureza da
função que o juiz deve exercer no processo. Sendo a competência relativa, pode ser
escolhida esta Justiça, por vontade do titular, por ser direito potestativo (ALVIM, 2010, p.
25-27).
Conforme Alvim (2010, p. 17), a competência dos Juizados Especiais na esfera
Cível se dará em casos de menor complexidade (artigo 3° da Lei 9.099) e na criminal, nas
infrações de menor potencial ofensivo (artigo 60° da Lei 9.099). Contudo, caso o processo
exibir fatos complexos que comprometam o juizado, aplica-se o artigo 51, II da Lei 9.099,
enviando ao juízo comum (ALVIM, 2010, p. 18, 29).
91
3.3
PRINCÍPIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS
Os princípios dos juizados especiais, também chamados de critérios informativos
do processo, são comandos nucleares de um sistema, são o alicerce, tendo em visa que
estão no cerne. São considerados como princípios dos juizados especiais aqueles
enumerados pelo artigo 2° da Lei 9.099, são eles: a oralidade, a economia processual, a
simplicidade, a informalidade e a celeridade. Passe-se agora a uma breve análise dos
princípios centrais da Lei 9.099. Por este princípio da oralidade tem-se:
[...] a) prevalência da palavra como meio de expressão combinada com o uso de
meios escritos de preparação e documentação; b) imediação da relação entre o
juiz e as pessoas cujas declarações deva apreciar; c) identidade das pessoas
físicas que constituem o juízo durante a condução da causa; d) concentração do
conhecimento da causa em um único debate, a desenvolver-se numa audiência ou
em poucas audiências contíguas; e) irrecorribilidade das decisões interlocutórias
em separado (ALVIM, 2010, p. 20).
Desta forma, tem-se o princípio da oralidade como informativo do processo, tendo
em vista que prevalece da palavra "falada", havendo a concentração da discussão oral do
conflito objeto da audiência, mas não se excluindo a forma escrita do processo. Com este
princípio, tem-se que uma melhor adequação às necessidades da vida moderna,
buscando garantir uma melhor decisão (PISKE, 2012).
Este princípio engloba outros princípios, segundo Tourinho Neto e Figueira Júnior
(2011, p. 78), são os princípios do imediatismo, da imutabilidade do juiz, da concentração
e da irrecorribilidade de decisões.
Pelo princípio da simplicidade tem-se que o processo não poderá oportunizar
obstáculos processuais, desta forma, toda matéria de defesa deve se fazer presente na
contestação ou, se houver, no pedido contraposto do réu (ALVIM, 2010, p. 21).
O referido princípio busca “[...] estimular os juizados especiais a funcionarem sem
ostentação ou pompa, a fim de que as partes e terceiros possam se manifestar
livremente, à vontade, com isso, facilitando a produção da prova oral” (PEREIRA, 2004, p.
43).
O princípio da informalidade faz com que os atos processuais, sejam eles, a
petição inicial, a contestação, as arguições incidentais, os requerimentos e as decisões
interlocutórias, não se acabam em formalidades comprometedoras de seus objetivos e de
suas finalidades. Tendo em vista que são realizados pela própria parte que não detém os
conhecimentos técnicos e teóricos necessários, seja de forma oral ou por escrito (ALVIM,
2010, p. 21).
Para Alves de Melo, Silva e Moura de Souza (2000, p. 16) o princípio da
informalidade não é a inexistência de regras. Mas sim na simplicidade, “[...] sendo
descabidas as arguições, questões prejudiciais ou mesma realização de perícias”,
conforme Moraes (1998, p. 52).
A economia processual consiste no princípio de que o processo deve ser, na
medida do possível, mais barato, gratuito. Além de conter apenas atos processuais que
sejam realmente indispensáveis ao alcance de sua finalidade. Sem a possibilidade de
correção, repetição ou anulação de ato processual que não tenha causado prejuízo algum
à parte contrária (ALVIM, 2010, p. 21).
É o princípio pelo qual o processo deve procurar, “[...] no menor espaço de tempo
possível, satisfazer as partes com a prestação jurisdicional rápida e segura, sem
delongas” (PEREIRA, 2004, p. 45). Exemplos deste princípio são: o bom emprego de atos
processuais, sempre que possível, a possibilidade de que as audiências e os serviços de
cartório sejam feitos fora da sede, podendo ser realizados em outros locais da Comarca,
etc.
92
A celeridade processual é o princípio de que o processo deve ser ligeiro, isto é, ter
o menor andamento possível, já que o conflito é, via de regra, simples econômica e
juridicamente. O referido princípio busca, alternativamente uma sentença judicial,
estimular a conciliação e a transação (ALVIM, 2010, p. 21-22).
Para Piske (2012) o “[...] princípio da celeridade diz respeito à necessidade de
rapidez e agilidade do processo, com o fim de buscar a prestação jurisdicional no menor
tempo possível”. Para Pereira (2004, p. 46) “[...] por serem os juizados especiais órgãos
jurisdicionais competentes para julgar, essencialmente, pequenas causas, deve-se
esperar deles rapidez e praticidade, além de segurança no processamento do feito [...]”.
É, portanto, caracterizado, conforme salienta Moraes (1998, p. 52) como resultante
do esforço em se evitarem os aumentos de prazos que impossibilitam que o processo se
solucione mais rapidamente e que faz com que ele se arraste no tempo.
3.4
OBJETIVOS DOS JUIZADOS ESPECIAIS
Os objetivos dos Juizados Especiais são, basicamente, os de permitir e facilitar à
população mais carente e humilde da sociedade o acesso à Justiça, sobretudo dos que
sofreram pela desigualdade social e não possuem recursos para aguentar os custos de
um processo judicial e que, em consequência disto, não buscariam o judiciário para
proteção de seus interesses.
Tomando-se por base os princípios norteadores dos Juizados Especiais, verifica-se
que seus objetivos são: fazer o processo mais rápido, mais simples, mais informal,
permitindo um maior acesso à justiça àqueles que não teriam condições em razão da
onerosidade processual. Para Aires (2012) os objetivos dos Juizados foram:
[...] propiciar solução célere aos conflitos que especifica em sua norma, de modo a
haver o menor intervalo de tempo possível entre a ofensa ao direito e a reposição
das coisas em seu status quo.[...] O objetivo precípuo dos Juizados e a
especificidade do processo que eles trazem não fazem referência apenas a regras
procedimentais simplificadoras, mas dizem respeito a um novo sistema processual
com princípios próprios, buscando a desformalização que indica e implanta a
facilitação do efetivo acesso à Justiça.
No mesmo sentido Batista (2010, p. 94), “o objetivos dos Juizados Especiais é
estender o acesso à Justiça aos cidadãos, sendo uma forma de o Poder Judiciário se
aproximar deles com uma Justiça célere e eficaz, de maneira que possam exercitar a
mediação nesse sistema que é informal e gratuito à população [...]”.
Diante de todo o exposto, verifica-se que a Lei 9.099 procurou dar efetividade ao
acesso à justiça, por intermédio de uma nova regra jurídica que criou estruturas com
vistas a desafogar à Justiça Comum. É principalmente no segundo capítulo que se
visualiza a busca por uma justiça rápida, sem burocracia, gratuita, simples, informal e
possível para os cidadãos.
4
4.1
CRISE E EFETIVIDADE DOS JUIZADOS ESPECIAIS
CRISE JUDICIÁRIA
Para Tourinho Neto e Figueira Júnior (2011, p. 42), os Juizados Especiais não
devem e nem podem ser tidos como uma justiça de segunda classe. Pois significam:
[...] um avanço legislativo de origem eminentemente constitucional, que vem dar
guarida aos antigos anseios de todos os cidadãos, especialmente aos da
93
população menos abastada, de uma justiça apta a proporcionar uma prestação de
tutela simples, rápida, econômica e segura, capaz de levar à liberação da
indesejável litigiosidade contida. [...] trata-se, em última análise de mecanismo
hábil na aplicação do acesso à ordem jurídica justa (TOURINHO NETO e
FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 42-43).
Para isto, os Juizados Especiais “são ancorados na simplicidade, informalidade,
concentração, celeridade, economia, equidade, com a ingerência da comunidade local
(justiça participativa) e fundados na autocomposição circunstanciada (ampla) (justiça
coexistencial)” (TOURINHO NETO e FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 44). Para Cunha (1997,
p. 43) “o modelo dos Juizados Especiais Cíveis, implementado em nosso País atende a
todos os requisitos da justiça coexistencial, sem os prejuízos decorrentes de uma
atividade extrajudicial [...]”. Neste cenário é que surge as chamadas justiças participativas
e coexistenciais. Pela primeira, gestão da justiça é feita por indivíduos leigos e, pela
segunda, a solução de conflitos que ainda não tenham sido jurisdicionalizados se dá pela
atocomposição.
Sendo os juízos conciliatórios “[...] manejados por cidadãos leigos da comunidade
local, que se utilizam da oralidade em grau máximo [...] em busca da solução não
adversarial dos conflitos apresentados”. (TOURINHO NETO e FIGUEIRA JÚNIOR, 2011,
p. 57). A coletividade provoca conflitos que necessitam de decisões aceleradas e
eficientes, levando os aplicadores da lei sistematizada em um ordenamento jurídico a
atuarem de modo casuístico e pragmático (TOURINHO NETO e FIGUEIRA JÚNIOR,
2011, p. 45).
Tourinho Neto e Figueira Júnior (2011, p. 50-53) afirmam que no Brasil há diversas
crises, são elas: a legislativa (processual e material); a do sistema jurídico (direito
positivo); a institucional (judiciária-administrativa); a operacional (formação de
profissionais do direito) e a jurisdicional. A crise jurisdicional se dá, basicamente, pela
vagarosidade na prestação da tutela jurisdicional; pelo excesso de demandas; pela falta e,
por vezes, ausência, de infra-estrutura; pela incompatibilidade do número de juízes e de
serventuários e, finalmente, pela qualidade dúbia dos julgados (TOURINHO NETO e
FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 50-53).
4.2
FORMAS ALTERNATIVAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
As ADRs (Alternative Dispute Resolution) estão, segundo Tourinho Neto e Figueira
Júnior (2011, p. 53-54):
[...] à disposição dos interessados de novos mecanismos de pacificação social,
como também as formas de solução e composição das lides (v.g. arbitragem,
mediação judicial e extrajudicial, conciliação, jurisdição especializada fundada no
princípio da oralidade em grau máximo, incremento judicial-processual das
audiências preliminares e/ou tentativa de autocomposicão, etc.).
Além do fato de o sistema incentivar as maneiras de solução de conflitos de forma
alternativa, como é o caso no foro extrajudicial, por exemplo, “[...] dos Conselhos de
Contribuintes e Tribunais de Impostos e Taxas; Tribunais de Comércio, Desportivos, de
Contas e de Arbitragem [...]”; na mediação com o juiz de paz em certos locais do país; na
conciliação, inclusive depois de judicializado o conflito e; em situações de conflito já
judicializado tem-se a jurisdição especializada e
[...] o incremento judicial-processual
das audiências preliminares e/ou tentativa de autocomposição [...]” (TOURINHO NETO e
FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 54).
A transação consiste em consentimentos recíprocos que previnem ou eliminam
conflitos (FIGUEIRA JÚNIOR e LOPES, 2000, p. 76). A mediação, seja ela judicial ou
94
extrajudicial, permite o encontro dos conflitantes com um mediador para que se busque
uma solução amigável do conflito e capaz de resolvê-lo definitivamente. Pois o mediador
procura permitir a conversa entre as partes, para que elas mesmas cheguem a uma saída
e coloquem fim ao litígio (TOURINHO NETO e FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 55).
Já na conciliação, “[...] o conciliador – não só aproxima as partes como ainda
realiza atividades de controle das negociações, [...] apontando as vantagens ou
desvantagens[...]” e formulando propostas buscando a autocomposição (TOURINHO
NETO e FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 55).
4.3
DESCENTRALIZAÇÃO DA JUSTIÇA E JURISDIÇÃO DIFUSA: CÂMARAS DE
AUTOCOMPOSIÇÃO
A descentralização da justiça serve para tornar a justiça, tanto de fato como de
direito, acessível a todas as pessoas. Descentralizando a justiça das comarcas para os
municípios, mas sem deixar de respeitar os seguintes valores, consoante a Tourinho Neto
e Figueira Júnior (2011, p. 62). : segurança (devido processo legal), tempo hábil
(celeridade), justiça (atenção do julgado ao princípio da congruência – pedido e
pronunciado – ao direito aplicável à espécie) e acessibilidade (proximidade entre o
jurisdicionado e a jurisdição – a justiça deve estar onde o povo está).
Os Juizados Especiais visam a abertura de diversas vias de acesso ao Judiciário,
evidenciam a descentralização da justiça, uma vez que a maioria das ações é
resolvida na primeira audiência de forma conciliatória, a qual pode ser realizada
pelo conciliador, pelo juiz leigo ou pelo juiz togado (MARTINS, 2006).
A jurisdição difusa, por meio das câmaras de autocomposição consistem em uma
opção para a facilitação do acesso à Justiça de pessoas que encontram-se bairros mais
distantes e/ou de difícil acesso (TOURINHO NETO e FIGUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 63-64).
4.4
EFETIVIDADE DOS JUIZADOS ESPECIAIS: SUCESSO OU FRACASSO?
Analisar a efetividade dos Juizados Especiais como sendo um caso de sucesso ou
de fracasso obtido pelo Poder Judiciário brasileiro, mister se faz entender o pensamento
de Batista:
Como instituto de acesso à Justiça, a legislação brasileira conta com os Juizados
Especiais, que surgiram da preocupação com a morosidade processual que atinge
o sistema processual e a dificuldade, em certos casos, de acessá-lo. São tribunais
especiais que têm finalidade de garantir direitos que tenham um valor pecuniário
pequeno, transpassando as barreiras das custas judiciais e a delonga no
procedimento ordinário. A característica dos juizados especiais é basicamente
informal, envolvendo-os num caráter competente e rápido a realização do pleito
jurisidicional (2010, 93-94).
Para se falar em efetividade dos Juizados Especiais, necessário se faz, primeiro,
definir efetividade, mesmo sem a existência de precisão conceitual do termo. Diante disto,
com sob enfoque do Direito Constitucional tem-se que a efetividade consiste na
realização do Direito, isto é, do desempenho concreto de sua função social, a
consolidação das normas legais do dever-ser no mundo real. Já quanto à efetividade do
processo ou da jurisdição, tem-se que consiste no direito do indivíduo que não poderá
fazer justiça por suas próprias mãos, de provocar o Poder Judiciário para a solução de
uma lide, exercendo seu direito de ação. Buscando a realização da justiça em um
95
determinado fato concreto, tendo em vista que o processo não é o fim desejado pela
parte, mas sim a solução de seus litígios (SILVA, 2012).
Desta forma, tem-se que a efetividade processual caracteriza-se por sua
possibilidade de eliminação das insatisfações da comunidade, buscando a justiça com o
cumprimento do direito e educando toda a sociedade. A efetividade tem relação com a
celeridade, mas não se confundem, pois esta é apenas um aspecto daquela. Assim,
quando a celeridade processual não for respeitada, a efetividade será prejudicada. Assim,
a efetividade é tida como o fim maior do processo (SILVA, 2012).
É indispensável que o processo acarrete para as partes resultados justos e efetivos
para a solução de conflitos e sossego de ânimos pela aplicação da norma jurídica a um
caso concreto (AIRES, 2012).
Complementa que a efetividade dos Juizados Especiais pode ser tida como
princípio implícito, tendo em vista que decorre dos demais e que pressupõe que o
processo alcance resultados, tutelando direitos, e garantindo o proveito das decisões, isto
é, alcançando o objetivo de solução de conflito com qualidade e quantidade.
Ao se verificar a prática do que acontece com a Lei 9.099 que se utiliza de uma
redação destinada ao cumprimento de um processo rápido e não dispendioso, nota-se
que a teoria não está sendo aplicada, pois o procedimento dos Juizados Especiais está
tão demorado e caro como os da Justiça Comum.
Ou seja, o que a lei garante na teoria não ocorre na prática. Outros exemplos são a
previsão de que, assim que registrado o pedido a Secretaria do Juizado agendará uma
sessão de tentativa de conciliação a ser realizada a até quinze dias. Porém, na realidade
ocorre extrema demora na designação da audiência conciliatória. Mais uma vez a lei não
é observada na prática quando o magistrado deveria, na audiência de instrução e
julgamento, ouvir às partes, colher as provas e proferida a sentença. Porém, não é isso
que ocorre, fazendo do processo moroso e das partes descrentes no Poder Judiciário e,
consequentemente, na Justiça.
“Em razão de não estudarem o método do juizado, muitos questionam o excesso
de facilidade e a não leitura da lei dos Juizados Especiais” (ALVES DE MELO, SILVA E
MOURA DE SOUZA, 2000, p. 16). Para Miranda Netto (2008, p. 193): “o Poder Judiciário
tem prestado um grande serviço à população por meio dos Juizados Especiais, não
obstante a lei tenha defeitos em inúmeros pontos [...]”. mas continua (p. 196), afirmando
que “não que a lei seja rigorosa; mas é que alguns juízes optam por interpretá-la contra o
cidadão, preferindo parar a marcha processual em razão de vício sanável, com a
eliminação imediata dos autos, afrontando, sem dó, o princípio da informalidade”. Já para
Martins (2006) a Lei 9.099 é mal compreendida e mal-aplicada, pois os “[...] juízes
resolveram ordinarizar o procedimento [...] Não sentenciam em audiência, particionam a
audiência de instrução e julgamento, admitem incidentes processuais incompatíveis com
os critérios que a orientam”.
Complementa que é preciso analisar-se o processo, pois este serve para
efetivação de direitos, desta forma, novas medidas devem ser tomadas, pois os Juizados
foram criados para ampliar a possibilidade de solução de conflitos pelo Judiciário, mas
está a caminho de tornar-se morosa assim como a Justiça Comum. Martins (2006) conclui
que é notório que os fóruns e os tribunais estão entupidos de processos e que os
Juizados Especiais diminuíram esse amontoamento, porém, com este novo sistema de
acesso à Justiça, a procura pelo Poder Judiciário para a solução de controvérsias cresceu
demasiadamente. Consequência disto é que o acesso à Justiça não engloba
simplesmente a acessibilidade do Judiciário, mas sim o alcance de bons resultados e a
expansão da tutela jurisdicional. Para Aires (2012):
A realidade atesta que os efetivos destinatários da Justiça não concebem o Poder
Judiciário como legítimo guardião de seus direitos, na medida em que vêem,
96
diuturnamente, seus direitos sonegados, seja por dificuldades financeiras que os
impossibilitam arcar com as custas processuais, seja pelos anos ao longo dos
quais os processos se arrastam pelos Tribunais, fazendo com que, ao final, se
alcançarem o almejado acesso à Justiça, este não mais surtirá efeitos práticos,
tendo em vista que a ausência de acesso impossibilita ao cidadão a real
satisfação de seu direito, ao se resolver o conflito.
Aires (2012) acredita que a comunidade respondeu favoravelmente a esta nova
forma de acesso à Justiça, chamada Juizados, pois vê nela possibilidade de solução de
seus conflitos. Ainda mais pelo fato de que a lei que os regulamenta tem um valor social,
tendo em vista que “[...] isenta de custas, a população, prezando pela conciliação e
resolução do conflito em primeiro grau, uma vez que o Recurso, nos Juizados, é ato
oneroso, demonstrou, mais uma vez, a preocupação em que a decisão seja proferida e
efetivamente cumprida, dentro do menor tempo possível”. Permitindo a Justiça, já que
torna os juízes mais próximos das partes, acarretando um melhor conhecimento sobre o
litígio e a diminuição das dúvidas e dos erros de decisão.
“O grande problema é que não estamos preparados para a conciliação. Nossa
formação jurídica é para discutir o processo em lugar de satisfazer o cidadão” (ALVES DE
MELO, SILVA E MOURA DE SOUZA, 2000, p. 16). Os Juizados Especiais possuem,
como forma de auxílio na sua efetivação e, principalmente, da efetivação dos direitos
individuais e da promoção da cidadania, o aumento de sua cobertura, isto é, por
intermédio de parcerias e convênios firmados com instituições de ensino superior,
públicas e particulares. Por estas parcerias, tem-se o provimento da estrutura física para
instalação das atividades do juizado e da atuação dos alunos do Curso de Direito
supervisionados por seus professores (AIRES, 2012).
A efetividade do processo nos Juizados Especiais somente poderá ser
concretizada quando realizar-se o processo obedecendo aos princípios enumerados pela
Lei 9.099, colocando termo à insatisfação da população que buscou e confiou no Poder
judiciário (SILVA, 2012). Desta forma, verificando-se que as funções do Poder Judiciário
não são cumpridas dentro de um prazo razoável, nem tampouco com a qualidade
desejada, chega-se a uma Justiça inacessível.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto no presente trabalho, verificou-se que o Poder Judiciário
vive uma crise com diversos problemas, morosidade processual, baixa qualidade nos
julgados, falta de espaços adequados à promoção da justiça, falta de informação às
diferentes classes sociais quanto a seus direitos, etc. ou seja, nota-se que o acesso à
Justiça, garantido pela Constituição, não vem sendo efetivado da forma como deveria.
Mesmo com a criação dos Juizados Especiais, órgãos que possuíam como finalidade se
aproximar do cidadão de mais baixa renda para que este tivesse acesso aos órgãos do
Poder Judiciário, não vem cumprindo com as definições e com os mandamentos de sua
lei de criação. Padecendo de problemas muito parecidos com os sofridos pela justiça
Comum. Desta forma, vê-se que a cidadania, no que tange ao acesso a uma ordem
jurídica, não vem sendo respeitada. Assim, ainda falta uma estrutura mais adequada para
a promoção da Justiça a toda a população. Incentivando, de modo eficaz as formas
alternativas de resolução de conflitos, como a conciliação, não apenas como o
preenchimento de um requisito legal, mas como uma tentativa de mostrar às partes que a
conciliação, além de ser mais barata, mais rápida, é mais eficiente para ambas as partes.
97
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em:
01
maio
2012.
99
CONCILIAÇÃO NO DIREITO COMPARADO.
PRINCIPAIS ASPECTOS RELACIONADOS À COMPOSIÇÃO DOS
INTERESSES EM LITÍGIO
Simone Aparecida Barbosa Mastrantonio
______________________________________
Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
Especialista em Direito do Trabalho pela AMATRA IX
Graduada em Direito pela PUC-PR
Integrante do grupo de pesquisa “Tutela dos direitos da personalidade na atividade
empresarial: os efeitos limitadores na constituição da prova judiciária” do Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA
Professor orientador: Doutor Luiz Eduardo Gunther
Joanna Vitoria Crippa
______________________________________
Especialista pela Universidade de Roma I, “La Sapienza - Università di Roma”/PUC
Graduada em Direito pelo UNICURITIBA
Integrante do grupo de pesquisa “Tutela dos direitos da personalidade na atividade
empresarial: os efeitos limitadores na constituição da prova judiciária” do Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA
Professor orientador: Doutor Luiz Eduardo Gunther
100
RESUMO
O presente artigo objetiva traçar uma linha comparativa entre o instituto da conciliação
nos sistemas judiciário brasileiro e italiano. A conciliação surge como uma forma de
solução alternativa de controvérsias, traduzindo-se numa via eficaz da resolução de
conflitos. As normas da OIT representam os aspectos da visão internacional acerca desse
instituto e, das quais, orienta-se o Brasil, na composição dos interesses em litígio.
Palavras-chave: conciliação. direito comparado. normas da OIT.
1
INTRODUÇÃO
Os métodos alternativos de resolução de conflitos têm obtido enfoque nas
discussões jurídicas brasileiras, devido ao elevado número de demandas judiciais e a
impossibilidade de cumprimento ao princípio da celeridade processual (CF, art. 5º,
LXXVIII)1.
Na análise do Direito Comparado, Brasil e Itália passam por momentos opostos no
que tange aos métodos alternativos de resolução de conflitos, especialmente em relação
à conciliação. É notória a influência do direito italiano no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, em decorrência da mudança social de cada país, as legislações acabaram
por se direcionar em vertentes opostas, na medida em que a legislação brasileira passa a
estabelecer normas sobre o tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito
do Poder Judiciário, apenas nos dias atuais, quando tal normatização está deixando de
fazer parte da legislação italiana.
Não obstante, procurar-se-á averiguar se a Itália, por intermédio de suas normas,
consiste num exemplo ao direcionamento que o Brasil vier a utilizar sobre a composição
dos interesses em litígio pela via da conciliação.
Objetiva-se, assim, traçar uma linha comparativa entre o instituto da conciliação
nos sistemas judiciário brasileiro e italiano. Pretende-se, portanto, averiguar quais os
caminhos e escolhas efetuadas por estes países no que diz respeito aos meios
alternativos de resolução dos conflitos.
Com o intuito de delinear um panorama sobre a Conciliação no Brasil e na Itália,
faz-se necessário proceder à evolução histórica da conciliação e delinear os aspectos da
visão internacional acerca desse instituto, utilizando como base a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), organismo dos quais o Brasil faz parte e dela se orienta.
Na mesma esteira, mister realizar a distinção entre os principais meios alternativos
de resolução de conflitos, a fim de viabilizar a análise dos institutos da conciliação,
mediação, negociação e arbitragem nos países mencionados.
2
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CONCILIAÇÃO NO BRASIL
De se notar que a partir da Resolução nº 125 do CNJ 2, o instituto da conciliação
ganhou força no sistema jurídico brasileiro. Não obstante, sempre existiu, antes mesmo
1
BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos.
Constituições. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constitui
cao/Constituicao.htm>. Acesso em: 27 set. 2012.
2 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atosda-presidencia/323-resolucoes/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de-2010%3Cbr%3E>. Acesso
em: 28 set. 2012.
101
da independência, vez que as Ordenações Filipinas, no Livro 3º, T. 20, §1º, 3 trazia norma
estabelecendo expressamente acerca da conciliação:
E no começo da demanda dirá o Juiz a ambas as partes, que antes que façam
despezas, e se sigam entre elles os ódios e dissensões, se devem concordar e
não gastar suas fazendas por seguirem suas vontades, porque o vencimento da
causa sempre he duvidoso(...)
Após a independência, na Constituição do Império de 18244, foi estabelecido no
art. 161 que “Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio de reconciliação, não se
começará Processo algum” e o artigo 162 complementava “Para esse fim haverá juiz de
paz (...)”.
O Código de Processo Criminal de 18325 trouxe Disposição Provisória sobre a
Administração da Justiça Civil, sendo a lei inspirada nas ideias liberais a que estavam
imbuídos os homens que detinham o poder, com o objetivo de transformar o processo civil
em um instrumento mais dúctil e menos complicado, com atos reduzidos e formalidades
inúteis, bem como, de recursos excessivos.
A disciplina do cargo de Juiz de Paz surgiu com a Lei de 15 de outubro de 1827 6,
que criava em cada uma das “freguezias” e das “capellas” curadas por um Juiz de Paz e
suplente, seguida da lei de 1º de outubro de 18287, que dá nova forma às Câmaras
Municipais, marca suas atribuições e o processo para a sua eleição, e dos Juízes de Paz.
No entanto, o instituto dos juízes de paz foi objeto de intensa disputa entre liberais
e conservadores. Aos juízes de paz foram atribuídas tantas funções, inclusive
jurisdicionais, o que favorecia as intenções descentralizadoras dos liberais. Porém, os
conservadores reagiram e em 03 de dezembro de 1841 8 foi promulgada a Lei que
reformou o Código de Processo Criminal e esvaziou as atribuições do juiz de paz.
O Regulamento n. 737, de 18509, que determinava a ordem do Juízo no processo
Comercial, em seu artigo 23, disciplinava a conciliação. Mas, o Decreto 359, de 26 de
abril de 189010, editado por Marechal Deodoro da Fonseca, aboliu a conciliação como
3
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Conflitos de Interesses. In Conciliação e Mediação: Estruturação da política judiciária nacional. Coord.
Ministro Antonio Cezar Peluso e Morgana de Almeida Richa. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 4-9.
4 BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos.
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Constituição
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1824.
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de
29
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7 BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Lei de 1 de outubro de 1828. Coleção de Leis do
Império
do
Brasil
–
1828.
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2
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Acesso em: 27 set. 2012.
8 BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841. Coleção
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<http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-261-3-dezembro-1841-561116-norma-pl.html>.
Acesso em: 27 set. 2012.
9 BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Decreto n. 737, de 25 de novembro de 1850.
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10 BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Decreto n. 359, de 26 de abril de 1890. Coleção
de Leis do Brasil – 1890. p.684. vol. 1 fasc. IV (Publicação Original). Disponível em:
102
formalidade preliminar ou essencial para serem intentadas ou prosseguirem as ações
cíveis.
Segundo Francisco Osani De Lavor11, o Decreto n. 1.073, de 1907, criava
mecanismos de solução de conflitos de trabalho, mediante a arbitragem praticada por
intermédio dos sindicatos. Ainda, o Decreto 22.132, de 1932, que instituiu as juntas de
conciliação e julgamento, possibilitava a arbitragem facultativa para dissídios individuais e,
arbitragem obrigatória, em alguns casos. Em 1983, o Decreto 88.984, criou uma
arbitragem pública facultativa, junto às Delegacias Regionais do Trabalho, por meio dos
Conselhos Federais e Regionais de Relações de Trabalho e do Serviço Nacional de
Mediação e Arbitragem.
Com o advento da Constituição Cidadã o acesso à justiça tornou-se fator
imprescindível para as relações sociais, disposto no artigo 5º, inciso XXXV da referida
Magna Carta de 198812, trouxe também no artigo 98, inciso II, a tutela da Justiça de Paz,
remunerada, eleita e temporária, o que demonstra a busca por uma maior participação
política dos cidadãos.
O artigo 114, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal de 198813, expressamente faz
alusão aos mecanismos extrajudiciais de composição de interesses controvertidos,
possibilitando a eleição de árbitros e a solução dos conflitos coletivos, via arbitragem,
antes do ajuizamento da ação coletiva.
A Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC 75/93)14, em seu art. 83, XI,
instituiu a possibilidade do Ministério Público do Trabalho atuar como árbitro nos dissídios
de competência da Justiça do Trabalho.
De se notar, ainda que a Lei 9.307/9615 objetiva incrementar a utilização da
arbitragem em questões civis e comerciais.
Vale ressaltar a existência da instituição e implementação de uma política pública
adequada de tratamento de conflitos de interesses, adotada pela Resolução n. 125 do
CNJ16, em que essa supõe cuidados com critério técnico-científico na organização do
serviço de solução conciliada dos conflitos com a formação de um quadro de
mediadores/conciliadores, adequadamente preparados, e instalação obrigatória, em todo
o país, de setores de conciliação/mediação. Objetiva criar uma nova cultura na sociedade
brasileira, ou seja, a negociada e amigável dos conflitos de interesses.
Com esse breve histórico, é possível observar que no Brasil existia a obrigatoriedade da
proposta conciliatória, mas que, por circunstâncias políticas e sociais foi extinta.
Atualmente, denota-se a retomada, não da sua obrigatoriedade, mas a necessidade de
utilização de meios alternativos para a resolução de conflitos, dentre os quais a
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15 BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos.
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16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atosda-presidencia/323-resolucoes/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de-2010%3Cbr%3E>. Acesso
em: 28 set. 2012.
103
conciliação, que visa uma cultura de pacificação, com a solução do litígio de maneira mais
célere, menos dispendiosa e amigável.
3
NORMAS DA OIT RELACIONADAS À CONCILIAÇÃO
As Organizações Internacionais consistem numa forma institucionalizada de
cooperação pacífica entre os Estados-Membros e visam alcançar objetivos comuns.17
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência multilateral vinculada à
Organização das Nações Unidas (ONU) e especializada nas questões do trabalho. Possui
representação paritária de governos dos Estados-Membros e de organizações de
empregadores e de trabalhadores.
De se notar que, segundo Luiz Eduardo Gunther, as Convenções da OIT constituem-se
em um tratado-lei de caráter multilateral, porquanto muitos Estados podem aderir a uma
Convenção. Assim, equivalem a um tratado firmado entre Estados.
É um tratado-lei porque desse documento emanam normas jurídicas de caráter
geral, aplicáveis indefinidamente em todos os Estados que a ela aderirem, vale
dizer, não se criam normas jurídicas particulares suscetíveis de esgotar-se por sua
só aplicação em um caso concreto.18
Já, as Recomendações da OIT possuem um caráter acessório, podendo servir de
complemento a uma Convenção, mas sem a obrigatoriedade constante dos termos dessa
última. É utilizada quando a matéria tratada não será imediatamente adotada como uma
Convenção, servindo para abrir caminho e posterior adoção de uma Convenção a
respeito. Desse modo, as Recomendações consistem em simples sugestões direcionadas
aos Países-Membros.
As Convenções distinguem-se das Recomendações porque aquelas, quando
ratificadas pelo Brasil, constituem-se em autênticas fontes formais de direito, sendo
instrumentos que criam obrigações jurídicas ao serem ratificadas, ao passo que as
Recomendações, aprovadas pela OIT, atuam somente como fontes materiais de direito,
na medida em que não estão abertas à ratificação e são utilizadas apenas como
orientação para a atividade legislativa.19
No que diz respeito ao instituto da conciliação, a Organização Internacional do
Trabalho, que sempre se preocupou com as técnicas de negociação coletiva nos conflitos
coletivos do trabalho, desenvolveu importantes documentos diretamente ligados à
conciliação, dentre eles, a Recomendação n. 92 20, convocada em 29 de junho de 1951, a
Recomendação n. 16321, convocada em 19 de junho de 1981 e a Convenção n. 154 22,
convocada em 3 de junho de 1981.
17
GUNTHER, Luiz Eduardo. A OIT e o direito do trabalho no Brasil. Curitiba: Juruá, 2011. p.21.
GUNTHER, op. cit., p.50.
19 GUNTHER, op. cit., p.51.
20 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Recomendação n. 92 da OIT, adotada em Genebra
no dia 29 de junho de 1951. R092 - Recomendación sobre la conciliación y el arbitraje voluntarios, 1951
(núm. 92). Recomendación sobre la conciliación y el arbitraje voluntarios Adopción: Ginebra, 34ª reunión
CIT (29 junio 1951) - Estatus: Solicitud de información (Convenios Técnicos). Disponível em:
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00_INSTRUMENT_ID:312430:NO>. Acesso em: 28 set. 2012.
21 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Recomendação n. 163 da OIT, adotada em
Genebra no dia 19 de junho de 1981. R163 - Recomendación sobre la negociación colectiva, 1981 (núm.
163). Recomendación sobre el fomento de la negociación colectiva Adopción: Ginebra, 67ª reunión CIT (19
junio 1981) - Estatus: Instrumento actualizado (Convenios Técnicos). Disponível em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:312
501:NO>. Acesso em: 28 set. 2012.
18
104
De se notar que tanto as Recomendações n. 92 e n. 163 quanto a Convenção n.
154 preconizam o uso do instituto da conciliação como forma de solução de conflitos
judiciais.
A Recomendação n. 92 diz respeito ao primeiro instrumento normativo
internacional diretamente voltado à conciliação e à arbitragem voluntárias, orientando o
estabelecimento de organismos específicos para essa finalidade, em âmbito nacional
“com objetivo de contribuir à prevenção e à solução dos conflitos de trabalho entre
empregadores e trabalhadores, estimulando às partes para que se abstenham de recorrer
a greves e lock outs”,23 enquanto perdurar o procedimento da conciliação bem como, para
que elas aceitem o laudo arbitral, em atenção ao disposto no item II.6.
Importante notar que referida Recomendação n. 92 serve de orientação para o
desenvolvimento das Comissões de Conciliação Prévia – CCPs -, para o auxílio do Poder
Judiciário na resolução dos conflitos, reduzindo demandas e dando celeridade processual.
O artigo 1º determina que deverão ser estabelecidos organismos de conciliação
voluntária, “apropriados às condições nacionais, com o objetivo de contribuir para a
prevenção e solução dos conflitos de trabalho entre empregadores e trabalhadores”.
Seguido pelo artigo 2º que dispõe acerca da representação paritária de empregadores e
trabalhadores bem como, que o procedimento deveria ser livre de encargos, e com prazo
para a duração determinado, fixado antecipadamente pelas leis nacionais, porém não
deixando de se ater a um prazo curto, e próximo do mínimo necessário.
De acordo com Ludmila Feilenberger de Oliveira Martins, em sua dissertação de
mestrado, tal Recomendação foi acatada pelo Brasil e por vários outros países-membros
da OIT. “Mas, o modelo adotado de organismos de conciliação voluntária não foi idêntico
em todos os países. O Brasil adotou as CCPs, mas outros países adotaram a mediação
ou a arbitragem”.24
Ressalta-se, no entanto, no Brasil, após o julgamento do Supremo Tribunal
Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº. 2139 e nº 2160, as CCPs
perderam sua eficácia e não são mais utilizadas. Porém, observa-se a crescente inserção
da mediação e arbitragem no sistema.
A Recomendação n. 163 trata da utilização de métodos para fomentar a
negociação coletiva e, especialmente no item 8, estabelece a necessidade de serem
adotadas, em caráter voluntario, medidas adequadas à composição dos interesses das
partes litigantes.
A Convenção n. 154 estabelece o regramento das negociações coletivas e
incentiva maiores esforços na aplicação de suas normas. Releva observar, que o artigo 4 º
da Convenção n. 154 explicita as formas e métodos de sua utilização, aplicadas por meio
da legislação nacional e o artigo 6o protege a negociação coletiva efetuada por meio de
22
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Recomendação n. 154 da OIT, adotada em
Genebra no dia 3 de junho de 1981 e com entrada em vigor no dia 11 de agosto de 1983. C154 - Convenio
sobre la negociación colectiva, 1981 (núm. 154). Convenio sobre el fomento de la negociación colectiva
(Entrada en vigor: 11 agosto 1983) Adopción: Ginebra, 67ª reunión CIT (03 junio 1981) - Estatus:
Instrumento
actualizado
(Convenios
Técnicos).
Disponível
em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:312
299:NO>. Acesso em: 28 set. 2012.
23 KOLLER, Carlos Eduardo. VILLATORE, Marco Antônio César. Conciliação no Direito Comparado e seus
Aspectos Sociais e Econômicos. Revista Eletrônica do TRT da 9. Região. Conciliação, 7. ed. maio, 2012.
p.60.
24 MARTINS, Ludmila Feilenberger de Oliveira. As Comissões de Conciliação Prévia no Brasil sob a
perspectiva da Recomendação nº 92 da Organização Internacional do Trabalho e uma análise
comparativa dos modelos Latinoamericanos e da União Européia. Defesa da tese em 17-08-2009.
Biblioteca digital. PUC Goiás. Sistema de Publicação Eletrônica de Teses e Dissertações – TEDE.
Disponível
em:
<http://tede.biblioteca.ucg.br/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes%5B%5D=702&processar=Pro
cessar>. Acesso em 10 out. 2012.
105
mecanismos ou instituições de conciliação ou de arbitragem, nos quais as partes venham
a participar de forma voluntária.25
Referida Convenção reafirma a passagem da Declaração da Filadélfia (norma que
complementa a Constituição da OIT), que se reconhece a obrigação solene da OIT em
fomentar, entre todos os Estados, programas que possam alcançar o reconhecimento
efetivo do direito de negociação coletiva, e levando em consideração que tal princípio é
plenamente aplicável a todas as nações do mundo.
Assim, os países-membros que celebrarem referida Convenção deverão
empreender esforços para adotar meios necessários às condições nacionais visando
fomentar a negociação coletiva.
Observa-se, que por intermédio da Convenção 154, de 1981, foram estabelecidos
os princípios do reconhecimento da representatividade e legitimação bem como, o
incentivo para as partes estabelecerem um processo de comunicação, orientado para o
fim de se conciliar.
No que tange à ratificação desta Convenção Internacional pelos países aqui
analisados, verifica-se que o Brasil26 a ratificou em 10 de julho de 1992, não tendo sido
ratificada pela Itália27.
5
MODALIDADES DA CONCILIAÇÃO NO DIREITO COMPARADO. BRASIL
E ITÁLIA
Os conflitos judiciais podem ser solucionados tanto na esfera individual, por meio
da arbitragem, como no âmbito coletivo, por intermédio da mediação.
Há formas autocompositivas de solução de litígios, dentre os quais a conciliação e
a mediação, quanto formas heterocompositivos de resolução de conflitos, dentre eles a
arbitragem e a decisão judicial.28
A arbitragem, de todas as formas alternativas para solução de conflitos, é a que
mais se aproxima do litígio judicial e pode ser definida, segundo Osvaldo Alfredo Gozaíni,
como um método ou técnica pelo qual se busca resolver extrajudicialmente diferenças
existentes entre os litigantes, por meio de um terceiro, que decide a questão conflituosa. 29
Denota-se, na delimitação da arbitragem, o caráter privado, a ausência de intervenção
25
BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Decretos. Decreto nº 1.256, de 29 de
setembro de 1994. Promulga a Convenção nº 154, da Organização Internacional do Trabalho, sobre o
Incentivo à Negociação Coletiva, concluída em Genebra, em 19 de junho de 1981. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1256.htm>. Acesso em 22 out. 2012.
26 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 154 da OIT, adotada em Genebra no
dia 3 de junho de 1981 e com entrada em vigor no dia 11 de agosto de 1983. C154 - Convenio sobre la
negociación colectiva, 1981 (núm. 154). Convenio sobre el fomento de la negociación colectiva (Entrada en
vigor: 11 agosto 1983) Adopción: Ginebra, 67ª reunión CIT (03 junio 1981) - Estatus: Instrumento
actualizado
(Convenios
Técnicos).
Disponível
em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=1000:11300:0::NO:::>. Acesso em: 28 set. 2012.
27 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 154 da OIT, adotada em Genebra no
dia 3 de junho de 1981 e com entrada em vigor no dia 11 de agosto de 1983. C154 - Convenio sobre la
negociación colectiva, 1981 (núm. 154). Convenio sobre el fomento de la negociación colectiva (Entrada en
vigor: 11 agosto 1983) Adopción: Ginebra, 67ª reunión CIT (03 junio 1981) - Estatus: Instrumento
actualizado
(Convenios
Técnicos).
Disponível
em:
<http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:11310:0::NO:11310:P11310_INSTRUMENT_ID:312
299:NO>. Acesso em: 28 set. 2012.
28 LORENTZ, Lutiana Nacur. Métodos extrajudiciais de solução de conflitos trabalhistas: comissões de
conciliação prévia, termos de ajuste de conduta, mediação e arbitragem. São Paulo: LTr, 2002. p.37.
29 GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Formas alternativas para la resolución de conflictos. Buenos Aires:
Ediciones Depalma, 1995. p.17.
106
estatal, porém resultando em uma decisão com eficácia de sentença judicial. Esta
resolução é imperativa para as partes e denomina-se laudo ou sentença arbitral.
As próprias partes litigantes podem decidir por se submeterem à arbitragem,
voluntariamente, chamada de arbitragem convencional, autônoma ou livre, ou por assim
estar disposto na legislação, obrigando-as, de forma compulsória, após o fracasso de
outras tentativas de composição do litígio, denominada de arbitragem obrigatória,
imperativa ou legal.30
O instituto da arbitragem representa uma função jurisdicional, no momento em que
o terceiro soluciona o conflito, as partes têm suas vontades substituídas, mesmo sendo o
árbitro uma pessoa eleita, pelas próprias partes, para resolver o litígio. No entanto,
apontam Adriana Caetana dos Santos e Gabriela Maia Rebouças31, que há quem entenda
que se trata de um sistema autocompositivo de resolução, na medida em que há, logo no
início, um acordo entre as partes para a escolha do sistema usado, incluindo o direito
aplicado e a espécie de juízo a ser proferido, de direito ou de equidade.
Em relação à conciliação e a mediação, as diferenças são mais sutis e até mesmo
em muitos países não há distinção entre um e outro.
Para Francisco Osani de Lavor32, a “conciliação é a mais praticada, de forma
‘voluntária’. Trata-se de forma pacífica de se dirimirem as controvérsias, tanto individuais
quanto coletivas”.
A mediação, conceituada por Juan Carlos Vezzulla33, é uma técnica de resolução
alternativa dos conflitos, de modo não adversarial, em que o profissional devidamente
formado, auxilia as partes a procurarem seus verdadeiros interesses e a preservá-los, em
um acordo no qual as duas partes venham a obter vantagens positivas.
Roberto Portugal Bacellar34 explica que:
A conciliação em um dos prismas do processo civil brasileiro é opção mais
adequada para resolver situações circunstanciais, como uma indenização por
acidente de veículo, em que as pessoas não se conhecem (o único vínculo é o
objeto do incidente), e, solucionada a controvérsia, lavra-se o acordo entre as
partes, que não mais vão manter qualquer outro relacionamento; já a mediação
afigura-se recomendável para situações de múltiplos vínculos, sejam eles
familiares, de amizade, de vizinhança, decorrentes de relações comerciais,
trabalhistas, entre outros. Como a mediação procura preservar as relações, o
processo mediacional bem conduzido permite a manutenção dos demais vínculos,
que continuam a se desenvolver com naturalidade durante e depois da discussão
da causa.
Impende notar que a solução encontrada na mediação, “na maior parte das vezes,
é mais benéfica, mais eficaz, mais duradoura e mais aceita pelos querelantes do que a
solução judicial” 35.
Na conciliação ressalta-se a voluntariedade e preferência do instituto, no qual o
conciliador é mais atuante, propondo a solução para a controvérsia, ao passo que a
mediação tem por característica principal a intervenção de um terceiro, qual seja, o
30
AMARAL, Lídia Miranda de Lima. Mediação e arbitragem: uma solução para os conflitos trabalhistas no
Brasil. São Paulo: LTr, 1994. p.25-26.
31 DOS SANTOS, Adriana Caetana. REBOUÇAS, Gabriela Maia. Cultura Jurídica da Conciliação no
Judiciário Brasileiro: algumas inferências sobre o movimento pela conciliação do CNJ a partir de
dados da Justiça Federal em Sergipe. In Anais do [Recurso eletrônico] / XX Congresso Nacional do
CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. p. 897-913.
32 DE LAVOR, op. cit., p.172.
33 VEZZULA, Juan Carlos, Teoria e prática da mediação. Curitiba: Instituto de Mediação, 1995. p.15.
34 BACELLAR, Roberto Portugal. O poder judiciário e o paradigma da guerra na solução dos conflitos in
Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional. Coord. Morgana de Almeida Richa e
Antonio Cezar Peluso – Rio de Janeiro: Forense, 2011. p.35-36.
35 DE LAVOR, op. cit., p.175.
107
mediador. Assim, na mediação a decisão é obtida pelas próprias partes, com a ajuda de
terceiro, estranho às partes em litígio. O terceiro auxilia as partes a elas mesmas acharem
a solução para o conflito. De se notar, que esse terceiro neutro não fornece, como na
arbitragem e conciliação, nenhuma decisão de mérito, sua verdadeira virtude consiste na
condução das partes ao diálogo.
No anteprojeto do Código de Processo Civil brasileiro, há a inserção da figura
conciliatória, inclusive, na exposição dos motivos 36 de sua elaboração, é demonstrada a
intenção:
Pretendeu-se converter o processo em instrumento incluído no contexto social em
que produzirá efeito o seu resultado. Deu-se ênfase à possibilidade de as partes
porem fim ao conflito pela via da mediação ou da conciliação. Entendeu-se que a
satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por
elas criada e não imposta pelo juiz. Como regra, deve realizar-se audiência em
que, ainda antes de ser apresentada contestação, se tentará fazer com que autor
e réu cheguem a acordo. Dessa audiência, poderão participar conciliador e
mediador e o réu deve comparecer, sob pena de se qualificar sua ausência
injustificada como ato atentatório à dignidade da justiça. Não se chegando a
acordo, terá início o prazo para a contestação.
É suprida a lacuna existente no nosso Código de Processo Civil em vigor,
conceituando e disciplinando a conciliação e mediação, do artigo 134 ao artigo 144, do
anteprojeto do Código de Processo Civil.
Observa-se a crescente importância que se dá à conciliação e mediação,
principalmente vinculada ao Poder Judiciário, na medida em que as disposições
normativas, por exemplo, possibilitam que cada tribunal crie um setor de conciliação e
mediação, com o controle dos conciliadores e mediadores habilitados, causas de
exclusão e impedimento.
Ainda, no artigo 33337 do anteprojeto do Código de Processo Civil, se a petição
inicial preencher os requisitos essenciais, o juiz designará a audiência de conciliação, com
antecedência mínima de quinze dias e o prazo da contestação, nos termos do artigo 334,
será de quinze dias, a partir da realização da referida audiência38.
Na Europa, destaca-se a arbitragem italiana, porquanto dividida em ritual, seguindo
as normas processuais civis (Código Processual Civil italiano de 1940) e em não ritual,
com forma livre, possuindo natureza e efeitos contratuais. Contudo, a Itália também
possui o Decreto Legislativo n.º 51/199839, destinado a regulamentar a conciliação.40
36
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de
Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto / Comissão de Juristas
Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal,
Presidência, 2010. p.381. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>.
Acesso em: 22 out. 2012.
37 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de
Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto / Comissão de Juristas
Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal,
Presidência,
2010.
Artigo
333.
p.122.
Disponível
em:
<http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012.
38 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de
Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto / Comissão de Juristas
Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal,
Presidência,
2010.
Artigo
334.
p.122.
Disponível
em:
<http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em: 22 out. 2012.
39 ITÁLIA. Parlamento Italiano. Camara dei deputati. Decreto Legislativo 19 febbraio 1998, n. 51. "Norme in
materia
di
istituzione
del
giudice
unico
di
primo
grado"
pubblicato nella Gazzetta Ufficiale n. 66 del 20 marzo 1998 - Supplemento Ordinario n.48 (Rettifica G.U. n.
229 del 1° ottobre 1998). Disponível em: <http://www.parlamento.it/parlam/leggi/deleghe/98051dl.htm>.
Acesso em: 29 set. 2012.
108
Assim, na Itália, a conciliação tinha previsão no Decreto Legislativo n.º 51/1998, o
qual previa a obrigatoriedade da tentativa conciliatória antes do ajuizamento das ações,
portanto, figurava como um requisito para a admissibilidade da inicial. Porém esse
instituto foi revogado pela Lei n.º 183 de 04 de novembro de 2010 41, quando, então, a
conciliação passou a ser tratada de modo facultativo.
São quatro, além da judicial, as principais formas de soluções de conflitos,
encontradas no Direito Italiano: mediação, a conciliação, a arbitragem e a comissão de
investigação.42
Ressalta-se que a previsão legal da Itália, acerca da solução de conflitos, está
basilarmente na sua Constituição de 1947, em seus artigos 3º, 4º, 35, 41, 44, 46 43, e a
mediação não aparece diretamente, através do artigo 23, letra ‘d, do Decreto do
Presidente da Republica nº 520, de 19 de março de 1955 e o artigo 12, parágrafo
primeiro, da Lei nº 628, de 22 de julho de 1961.
Convém diferenciar que a conciliação na seara trabalhista do Direito Italiano é
possível em três modalidades: Conciliação extrajudicial, regulado pelo Código de
Processo Civil, em seu artigo 410 e seguintes44; Conciliação “monocrática”, regulada pelo
artigo 11 do Decreto Legislativo n. 124/200445; e a Conciliação sindical, prevista no
contrato ou acordo sindical.
Descreve, Wagner D. Giglio46, que na Itália foi enfatizada a tentativa prévia de
conciliação, desde a lei sobre os Probiviri, de 15 de junho de 1893 (arts. 8º e 10). Faz
uma retrospectiva da evolução da conciliação na Itália e explica que, na época do
fascismo, vedava-se ingressar em juízo sem denúncia anterior do litígio à entidade
sindical, sendo este entendimento retomado no período pós-Guerra, em que se valorizava
a autonomia sindical, mas, o Código de Processo Civil prevalecia e nos contratos
coletivos, eram inseridas cláusulas que previam que:
La domanda giudiziale concernente controversie che dovessero sorgere
nell’applicazione del presente contratto e nello svolgimento del rapporto di lavoro è
improcedibile se precedentemente la controversia stessa non sia stata sottoposta
all’esame delle competenti Associazioni degli Industriali e dei lavoratori per
esperire il tentativo di conciliazione delle parti (...).47
40
KOLLER, Carlos Eduardo. VILLATORE, Marco Antônio César. Conciliação no Direito Comparado e seus
Aspectos Sociais e Econômicos. Revista Eletrônica do TRT da 9. Região. Conciliação, 7. ed. maio, 2012.
p.58.
41 ITÁLIA. Codice di procedura civile, agg. al 09.12.2011, G.U. 28.10.1940. Pubblichiamo il testo
coordinato del codice di procedura civile aggiornato con le successive modifiche ed integrazioni legislative.
Regio Decreto 28 ottobre 1940, n. 1443. Disponível em: <http://www.altalex.com/index.php?idnot=33723>.
Acesso em: 22 out. 2012.
42 VILLATORE, Marco Antônio César. Mediação na solução de conflitos de trabalho e o direito comparado.
CMMA/SP. Câmara Metropolitana de Mediação e Arbitragem do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.arbitragemsantos.com.br/conteudo/artigos021.htm>. Acesso em: 22 out. 2012.
43
ITÁLIA. Senato della Repubblica. Costituzione della Repubblica Italiana. Disponível em:
<http://www.senato.it/documenti/repository/costituzione.pdf>. Acesso em: 10 out. 2012.
44 ITÁLIA. Codice di procedura civile, Libro II, Titolo IV, agg. al 22.10.2012. Disponível em:
<http://www.altalex.com/index.php?idnot=33739>. Acesso em: 22 out. 2012.
45 ITÁLIA. Parlamento Italiano. Camara dei deputati. Decreto Legislativo 23 aprile 2004, n. 124.
"Razionalizzazione delle funzioni ispettive in materia di previdenza sociale e di lavoro, a norma dell'articolo 8
della legge 14 febbraio 2003, n. 30" pubblicato nella Gazzetta Ufficiale n. 110 del 12 maggio 2004.
Disponível em: <http://www.parlamento.it/parlam/leggi/deleghe/04124dl.htm>. Acesso em: 10 out. 2012.
46 GIGLIO, Wagner. A conciliação nos dissídios individuais do trabalho. Porto Alegre: Síntese, 1997. p.
20-22.
47 Tradução livre: “processos relativos a litígios que possam surgir no presente contrato e no curso de
emprego declinam a competência, se o litígio não for previamente apresentado às Associações Industriais e
trabalhadores competentes para a tentativa de conciliação entre as partes (...)” GIGLIO, op. cit., p. 20-22
109
A Conciliação Extrajudicial no Direito Italiano foi alterada quando entrou em vigor a
Lei n. 183 de 04 de novembro de 201048, anteriormente a essa lei era obrigatório e
condição constitutiva de admissibilidade da ação intentada perante a justiça do trabalho,
ou seja, deveria ser comprovado a tentativa conciliatória para a inicial ser admitida, caso
contrário o juiz apenas daria prosseguimento ao feito após a realização da tentativa
conciliatória.
Assim, o entendimento predominante até o ano de 2010 era de que propor
conciliação antes da interposição de medida judicial era requisito obrigatório para o
recebimento da petição inicial, no entanto, o novo Código de Processo Civil italiano,
passou a estabelecer que a tentativa conciliatória sindical passou a ser facultativa, mesmo
havendo expressa previsão da obrigatoriedade no contrato coletivo.
Também foram instituídas as “comissões provinciais”, em todas as províncias
italianas, compostas pelo diretor do escritório provincial do trabalho, ou de um seu
delegado, quatro membros efetivos e quatro suplentes dos empregadores, e em igual
número de representantes trabalhadores, funcionando com o presidente e um
representante de cada classe, no mínimo.
Convém ressaltar, que a possibilidade de conciliar perante esse órgão é uma
alternativa à intervenção sindical e à discussão perante o órgão judicial, havendo uma
conciliação frutífera, lavra-se o termo, pelo qual, o pretor, a requerimento de qualquer das
partes, empresta força executiva por decreto.
Assim, nos dias atuais, as disposições do art. 410 do novo Código de Processo
Civil italiano49, estabelece a possibilidade da tentativa conciliatória, antes obrigatória,
entendida como uma espécie de condição para a propositura da ação. Impende notar que
a entidade sindical ainda pode tentar conciliar as partes, com ou sem previsão em norma
coletiva, somente tal diligência não pode mais ser exigida como requisito para a
interposição da medida judicial.
5
CONCLUSÃO
No Brasil, bem como, na Itália, a conciliação vêm sendo discutida, porquanto em
ambos os países está havendo um sobrecarga de demandas judiciais e a cultura
conciliatória é pouco desenvolvida.
A análise efetuada neste artigo permitiu constatar que, atualmente, no Brasil, estão
sendo desenvolvidos meios com vínculos mais estreitos ao Poder Judiciário para a
conciliação e mediação, ainda que, na maioria das vezes, não seja realizada por um juiz
togado, basta notar a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça, a criação de
núcleos de conciliação nos Tribunais, e a proposta de reforma do Código de Processo
Civil, quanto a ser inserida, antes da apresentação da contestação, a audiência de
conciliação.
Já, na Itália, marcada pela obrigatoriedade da conciliação antes da propositura da
ação judicial, se assim estivesse previsto no Acordo Coletivo, passou por uma ruptura e
com a reforma legislativa de 2010, essa obrigatoriedade, não mais pode ser exigida.
Enquanto o Brasil pretende a inserção da cultura conciliatória, por meio de Núcleos
de Conciliação, a Itália direciona-se pela exclusão dessa obrigatoriedade.
48
ITÁLIA. Codice di procedura civile, Libro II, Titolo IV, agg. al 25.11.2011. Disponível em:
<http://www.camera.it>. Acesso em: 10 out. 2012.
49 ITÁLIA. Codice di procedura civile, agg. al 09.12.2011, G.U. 28.10.1940. Pubblichiamo il testo
coordinato del codice di procedura civile aggiornato con le successive modifiche ed integrazioni legislative.
Regio Decreto 28 ottobre 1940, n. 1443. Disponível em: <http://www.altalex.com/index.php?idnot=33723>.
Acesso em: 22 out. 2012.
110
Culturalmente, há uma desconfiança da resolução de litígios que não sigam a via
comum, por intermédio do Poder Judiciário. Não obstante, verifica-se que o direito
contemporâneo direciona-se ao estímulo da composição de litígios pela via conciliatória,
visando a melhor maneira de atendimento aos interesses de sua população.
Denota-se, assim, que a composição dos interesses em litígio precisa ser mais
utilizada, melhor compreendida e mais difundida entre os países, necessitando de maior
estímulo, com vistas à rápida solução das controvérsias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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trabalhistas no Brasil. São Paulo: LTr, 1994.
BACELLAR, Roberto Portugal. O poder judiciário e o paradigma da guerra na solução dos
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114
APLICAÇÃO DA RESERVA DO ARTIGO 96
DA CISG PELO ÁRBITRO INTERNACIONAL
THE RESERVATION UNDER ARTICLE 96 OF THE CISG
AND ITS APPLICATION BY THE INTERNATIONAL ARBITRATOR
Felipe Hasson
______________________________________
Advogado sócio de Hasson Advogados
Professor de Direito Internacional Privado e Mediação e Arbitragem do
UNICURITIBA e da UTP-PR
Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia
Doutorando em Contratos Internacionais pela Universidad de Buenos Aires
115
RESUMO
A ratificação recente pelo Brasil da Convenção de Viena sobre Compra e Venda
Internacional de Mercadorias de 1980 (CISG) traz à lume novas discussões para os
doutrinadores brasileiros. A questão da aplicação da reserva do artigo 96 é ainda hoje
controversa tanto na doutrina como na jurisprudência internacional. Ainda, a aplicabilidade
da reserva deve ser analisada não somente do ponto de vista do juiz nacional, mas
também, e principalmente do arbitro internacional, que muitas vezes se verá confrontado
com esta questão.
Palavras-chave: CISG, direito internacional privado, arbitragem internacional, contratos
internacionais, lex contractus, ordem pública internacional, normas imperativas,vinculação
do árbitro.
ABSTRACT
The recent ratification of the 1980 Vienna Convention on International Sale of Goods
(CISG) brings to light new discussions for brazilian scholars. The question regarding the
application of article 96’s reservation is still to this Day controversial between scholars and
also in international case Law. Moreover, the applicability of the reservation must be
analyzed not only from a national judge’s point of view, but also from the international
arbitrator perspective, who might be confronted with such issue many times.
Keywords: CISG, private international law, international arbitration, international
contracts, lex contractus, public policy, mandatory rules, arbitrator’s binding.
1
INTRODUÇÃO
A Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias de
1980 (CISG) foi recentemente aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro, e a partir do
dia 1o de abril de 2014, passará a fazer parte do ordenamento jurídico pátrio. Com ela,
algumas novidades irão vigorar com relação à contratação internacional, e cenários
desconhecidos dos brasileiros certamente surgirão.
Dado este pano de fundo, uma questão que se apresenta controversa com relação
à CISG diz respeito à reserva prevista no seu artigo 96, que permite aos países que
optarem por declará-la, exigirem que os contratos firmados por pessoas que tenham seus
locais de negocio (estabelecimento comercial ou residência) no país contratante, sejam
necessariamente realizados na forma escrita, não se permitindo portanto a contratação,
modificação ou término do contrato pela via oral.
A questão da reserva do artigo 96 traz à baila diversos aspectos que devem ser
considerados, com relação à sua aplicação, seja por cortes nacionais ou por tribunais
arbitrais internacionais, e a abordagem de cada um será baseada em diferentes
pressupostos, dada a diferença na natureza do poder jurisdicional estatal e o poder
conferido ao árbitro ou tribunal arbitral.
O presente artigo busca elucidar as opiniões doutrinárias a respeito do âmbito de
aplicação da reserva, bem como analisar casos onde a aplicação desta reserva se deu de
maneiras diferentes, buscando ao final determinar: a) a natureza da reserva como norma
de aplicação imediata ou de ordem pública; e b) a vinculação do arbitro internacional à
aplicação do disposto na reserva.
116
2
A RESERVA DO ARTIGO 96 E A SUA NATUREZA COMO NORMA DE
APLICAÇÃO IMEDIATA OU DE ORDEM PUBLICA
O problema do 20o. Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot, trouxe
aos competidores a questão da aplicação ou não da reserva do artigo 96 da CISG, em um
contrato governado por esta, onde as partes, pelo princípio da autonomia da vontade,
haviam eleito a Convenção para reger o contrato (Lex contractus ou proper Law),
excluindo expressamente a aplicação de qualquer reserva nacional oposta pelos Estados.
A controvérsia relativa à competição se foca em dois pontos: 1) por um lado, as
partes na arbitragem teriam autonomia para eleger uma lei parcialmente, como regras
(rules of Law), e portanto com a possibilidade de excluir desta lei, aqueles dispositivos
com os quais as partes não concordam; 2) de outro lado, existe a possibilidade de as
regras “excluídas” serem consideradas normas de aplicação imediata (mandatory rules) e
portanto estariam fora do campo de autonomia das partes, que por sua vez não teriam a
possibilidade de derrogar da aplicação destas.
Para que se possa analisar esta questão, faz-se necessária inicialmente a
caracterização da reserva do artigo 96, para se determinar se esta de fato constitui norma
de aplicação imediata. Num segundo momento, a análise deve se voltar para a
obrigatoriedade de aplicação desta norma, de acordo com as regras de Direito
Internacional Privado, quando apenas um dos Estados contratantes envolvidos no litígio
tiver feito a declaração da reserva. E finalmente, num terceiro momento, analisar-se-á a
vinculação de juízes nacionais em contraste com a posição de árbitros internacionais
(tendo como marco Teórico a teoria da “deslocalização”) à aplicação desta reserva.
2.1
NORMAS IMPERATIVAS OU DE APLICAÇÃO IMEDIATA
Segundo a definição de Pierre Mayer, uma norma imperativa seria
an imperative provision of law which must be applied to an international
relationship irrespective of the law that governs that relationship. To put it another
way: mandatory rules of law are a matter of public policy (ordre public), and
moreover reflect a public policy so commanding that they must be applied even if
the general body of law to which they belong is not competent by application of the
relevant rule of conflict of laws. It is the imperative nature per se of such rules that
make them applicable.1
Portanto, a norma imperativa carregaria consigo uma carga de valor que não
poderia ser desconsiderada, dada a sua importância e relevância dentro da ordem pública
de um determinado país.
Nesta esteira, veja-se o texto do artigo 96 da CISG, que traz a seguinte previsão:
Artigo 96
Um Estado contratante no qual a sua legislação requeira que contratos de venda
sejam concluídos ou evidenciados por escrito pode a qualquer momento fazer a
declaração de acordo com o artigo 12 de que qualquer provisão dos artigos 11,
artigo 29, ou a parte II desta Convenção, que permite que um contrato de venda
ou sua modificação ou terminação por acordo, ou qualquer oferta, aceitação, ou
outra indicação de intenção seja feita em qualquer outra forma que não por
1
MAYER, Pierre. Mandatory rules of law in international arbitration, Arbitration International, (Kluwer
Law International 1986 Volume 2 Issue 4 ) pp. 274
117
escrito, não se aplica onde qualquer parte tiver seu local de negocio naquele
Estado.2
Do artigo se extrai que as previsões da CISG relativas ao contrato de compra e
venda, e às ofertas e seus desdobramentos, que permitem tais ações serem concluídas
ou evidenciadas por outras formas que não por escrito, não terão validade se um dos
contratantes tiver seu domicilio no País que opôs tal reserva. Nestes países, os contratos,
ofertas, aceitação e intenções em geral, deverão ser emitidos sempre por escrito.
Analisando o texto da norma do artigo 96, em um primeiro momento, tem-se uma
ideia de prevalência da reserva oposta em relação ao contrato, bastando que uma das
partes tenha seu local de negócio em um Estado que tenha efetuado a reserva, para que
esta deva ser respeitada.
Não bastasse o texto do artigo 96, o artigo 12 da CISG complementa a questão da
reserva, e confere caráter aparentemente mandatório à aplicação desta, restringindo a
autonomia da vontade das partes.
Artigo 12
Qualquer provisão do artigo 11, artigo 29 ou Parte II desta Convenção que permite
que um contrato de venda ou sua modificação ou terminação por acordo ou
qualquer oferta, aceitação ou outra indicação de intenção, seja feita em qualquer
outra forma que não por escrito, não se aplica onde qualquer parte tiver seu local
de negócios em um Estado Contratante que tenha feito a declaração sob o artigo
96 desta Convenção. As partes não podem derrogar ou variar os efeitos deste
artigo.”3
Como se vê, a previsão do artigo 12 aparenta conferir caráter mandatório à reserva
do artigo 96, sem fazer qualquer menção a regras de Direito Internacional Privado, no
sentido de se ter a necessidade de que estas regras apontem para o direito aplicável do
país que fez a declaração da reserva. O texto da lei prevê uma situação ampla, bastando
que uma das partes tenha seu estabelecimento comercial em um país que tenha
declarado a reserva para que esta seja aplicável e deva ser respeitada, independente da
escolha do país do outro contratante em efetuar ou não a reserva.
Neste sentido foram algumas decisões como nos casos Forestal Guarani S.A vs.
Daros International Inc4., e também em um caso da Corte Suprema de Arbitragem da
Rússia5, em que um comprador russo e um vendedor alemão entraram em um contrato
para a venda de materiais para a reforma de um restaurante.
Em ambas as decisões, os árbitros e juízes aplicaram a CISG de acordo com a
reserva oposta, no primeiro caso pela Argentina e no segundo pela Rússia, tendo em
vista que uma das partes tinha seu estabelecimento comercial nestes países. A aplicação
“Article 96. A Contracting State whose legislation requires contracts of sale to be concluded in or evidenced
by writing may at any time make a declaration in accordance with article 12 that any provision of article 11,
article 29, or Part II of this Convention, that allows a contract of sale or its modification or termination by
agreement or any offer, acceptance, or other indication of intention to be made in any form other than in
writing, does not apply where any party hás his place of business in that State.”
3 “Article 12. Any provision of article 11, article 29 or Part II of this Convention that allows a contract of sale
or its modification or termination by agreement or any offer, acceptance or other indication of intention to be
made in any form other than in writing does not apply where any party hás his place of business in a
Contracting State which hás made a declaration under article 96 of this Convention. The parties may not
derrogate from ou vary the effect of this article.”
4 Forestal Guarani S.A. vs. Daros International Inc. US District Court, New Jersey. Disponível em:
http://cisgw3.law.pace.edu/cases/081007u1.html. Acesso em 12/11/2012.
5 The High Arbitration Court of the Russian Federation, 16 de fevereiro de 1998. Disponível em:
http://cisgw3.law.pace.edu/cases/980216r1.html. Acesso em 05/03/2013.
2
118
da reserva nesses casos se deu de plano, sem que se analisasse regras de Direito
Internacional Privado para determinar qual seria a sede do contrato.
No caso Forestal vs. Daros, a US District Court de Nova Jersey decidiu pela
aplicação da reserva Argentina à CISG, inobstante a própria parte argentina ter requerido
que esta fosse desconsiderada:
[…] Likewise, Argentina's assent to the CISG, and its further declaration under
Article 96 to opt out of Article 11, indicates that a written contract is required where
one of the contracting parties has its principal place of business in Argentina. The
argument that Forestal urges on this Court, that is, to disregard the plain language
of the CISG and Argentina's Article 96 declaration, is unpersuasive. As explained
above, the CISG drafters' goal was to remove impediments to international
commerce and contracting, by allowing for more liberal enforcement ] of oral
agreements. However, the same drafters allowed individual nations to decide
autonomously, whether they wished to enforce oral agreements, or require written
contracts. The CISG, as adopted by Argentina, and thus, as incorporated into
Argentinean law, provides that Article 11's freedom from form principles do not
apply to contracts between Argentinean citizens and citizens of other signatory
nations. Such contracts must be in writing.6
Na decisão arbitral russa, o tribunal também entendeu pela aplicação da reserva,
ainda que a Alemanha não a tenha feito, tendo em vista a efetivação desta pela Rússia.
No entanto, a decisão russa, apesar de mais objetiva, traz consigo uma diferença em
relação à decisão americana, pois leva a crer que por conta da reserva da Rússia, a lei
russa se aplicaria ao contrato, como se elemento de conexão fosse:
Since the commercial enterprises of the parties were located in the Russian
Federation and the Federal Republic of Germany, CISG must be applicable to the
business relationship between them. The form of the contract for the international
sale of goods was governed by Russian law, in view of the declaration made by the
Russian Federation under article 96 CISG that such contracts must be put in
writing.7
Note-se que a decisão indica aplicação da lei russa para reger a forma do contrato,
em vista da declaração feita pela Rússia do artigo 96, que exclui as previsões de maior
informalidade na contratação dos artigos 11 e 29.
Decisões como as ora apresentadas reforçam a ideia do caráter mandatório do
artigo 96 (combinado com o artigo 12), e aplicam as disposições da reserva
independentemente de uma análise a partir do conflito de leis.
Porém, com o desenvolvimento das relações e da incidência da CISG, e a
diversidade de jurisdições e culturas jurídicas que costumam decidir sobre a convenção,
alguns tribunais interpretaram esta questão a partir de um ponto de vista de conflito de
leis, para determinar a aplicação ou não da regra.
Segundo a teoria aplicada por estes tribunais, o fato de uma das partes estar
sediada em um país que opôs a reserva do artigo 96 não faz necessariamente com que o
requisito de forma deste país seja aplicado. Logo, dever-se-ia utilizar as regras de
conexão do Direito Internacional Privado da Lex fori para se determinar qual das formas
“nacionalizadas” da CISG seria aplicável.
No caso Hispafruit B.V. v. Amuyen S.A., a corte holandesa decidiu pela aplicação
da reserva do artigo 96 feita pela Argentina, país onde o vendedor tinha seu
estabelecimento comercial, mas somente pelo fato de que as regras de conexão
holandesas apontavam para a aplicação da lei argentina:
6
Forestal Guarani S.A. vs. Daros International (...)
The High Arbitration Court of the Russian Federation, 16 de fevereiro de 1998. Disponível em:
http://cisgw3.law.pace.edu/cases/980216r1.html
7
119
Article 12 CISG does not entail that the rules concerning form requirements laid
down in the applicable domestic law of the State which made a declaration as
meant in article 96 CISG (here: Argentina) automatically govern the contract of sale
when one of the parties has its place of business in that State. The question
whether the contract has been validly concluded, while considering the form
requirements, should be answered by the law which is applicable according to the
rules of private international law. This is also in accordance with article 7 CISG.
Following the Dutch rules of private international law, articles 9(1), 9(2) and 9(4) of
the Treaty of Rome are of importance.8
Em sentido idêntico foi a decisão da Corte Metropolitana de Budapest, no caso
Adamfi Video Production GmbH v. Alkotók Studiósa Kisszövetkezet9, que envolvia um
vendedor alemão e um comprador húngaro. As partes firmaram um contrato por via
telefônica para venda de bens, e após a entrega dos produtos, o comprador se recusou a
pagar o preço, alegando que não havia contrato concluído, eis que o mesmo teria sido
feito pelo telefone, contrariando a reserva do artigo 96 oposta pela Hungria.
Inicialmente, a Corte decidiu pela aplicação da CISG, já que ambas as partes
estavam estabelecidas em Estados contratantes. Porém, com relação aos requisitos de
forma, a Corte entendeu que, tendo em vista a declaração do artigo 96 pela Hungria,
havia a necessidade de se analisar a partir do Direito Internacional Privado da Hungria,
qual seria o direito nacional aplicável. Como as regras de conexão húngaras apontavam
para a aplicação da lei alemã, que não continha os requisitos formais do artigo 96, a corte
considerou o contrato válido, e condenou o comprador a pagar o valor devido, acrescido
de juros.
Contrariamente às decisões da corte arbitral russa e da US District Court que
apontavam uma “mandatoriedade” no respeito à reserva do artigo 96, decisões como
estas parecem afastar a ideia de norma imperativa do citado dispositivo, o que demonstra
que a situação ainda é controversa com relação a esta característica.
Especificamente em relação ao método aplicado por estes últimos tribunais,
alguns doutrinadores defendem que esta abordagem de Direito Internacional Privado para
resolver situações que envolvem normas imperativas, decorreria da teoria da
“deslocalização” ou “desnacionalização” que se prestaria por se amoldar às
peculiaridades do comércio internacional.
Neste sentido, Horacio Grigera-Naon10 explica que,
This choice-of-law trend is clearly a de-localizing and de-nationalizing one. It
favours the search for substantive solutions to international disputes specially
adapted to the needs and multinational or transnational nature of the issues at
stake. It privileges or permits to privilege such specialized solutions — showing
varying degrees of detachment from those commanded by specific national laws —
over solutions found in any particular national legal system. 11
Destarte, partindo-se da teoria da deslocalização, ainda que a norma contida no
artigo 96 seja de fato uma norma imperativa, ou que sua interpretação teleológica leve a
tal conclusão, a mesma não gera automaticamente uma obrigação de aplicação pelo juiz,
a menos que a lei aplicável segundo o Direito Internacional Privado da Lex fori aponte
8
Hispafruit B.V. v. Amuyen S.A., Rechtbank Rotterdam, Netherlands, 12 de julho de 2001. Publicado em
Nederlands
Internationaal
Privaatrecht,
2001,
n.
278.
Disponível
em:
http://cisgw3.law.pace.edu/cases/010712n1.html. Acesso em 12/11/2012
9 Adamfi Video Production GmbH v. Alkotók Studiósa Kisszövetkezet. CLOUT case n. 52. Disponível em:
http://cisgw3.law.pace.edu/cases/920324h1.html. Acesso em 12/11/2012
10 GRIGERA NAON, Horacio A.
Choice-of-law problems in international commercial arbitration. Hague
Academy of International Law. Reccueil de Cours, vol. 289, 2001. p. 184
11 id.
120
para o ordenamento jurídico do país que optou por formalizar a reserva, o que tornaria a
versão nacionalizada “com reserva” da CISG, a lei aplicável.
Para Naon, a abordagem deslocalizada seria favorável ao desenvolvimento do
comercio internacional, no sentido de que
It encourages the exclusion of parochial mandatory rules which, because aimed at
furthering domestic policies, are unfit to govern international disputes. It furthers
the formation or recognition of the existence of substantive rules governing
international business transactions enjoying international recognition and not
necessarily finding their source in a particular national legal system. 12
Não obstante, ainda que se aceite a teoria da deslocalização como sendo válida e
aplicável, a questão ainda apresenta situações delicadas, quando envolvem a resolução
da disputa através da arbitragem, graças ao disposto na Convenção de Nova Iorque
sobre reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, conforme se verá
adiante.
2.2
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Diante do que foi visto até o momento, percebe-se a existência de uma
controvérsia interpretativa acerca da natureza da reserva do artigo 96 da CISG, como
norma imperativa ou de aplicação imediata, pois apesar do caráter aparentemente
mandatório dado pelo artigo 12, a maioria dos tribunais adotou uma abordagem a partir do
conflito de leis, o que, segundo a concepção clássica de ordem pública positiva e
negativa, retira a “aplicação imediata”.
Não obstante, ainda há que se verificar se a reserva do artigo 96 não configura
questão de ordem pública no país que declarou a mesma, fato que impediria a exclusão
do requisito de forma escrita.
As normas de ordem pública são por definição aquelas que buscam proteger
determinados valores tidos por uma sociedade em um dado tempo, os quais se violados,
atentariam contra a segurança e a ordem daquela sociedade.
De acordo com Julian Lew, a ordem pública reflete
… the fundamental economic, legal, moral, political, religious and social standards
of every state or extra-national community. Naturally public policy differs according
to the character and structure of the state or community to which it appertains, and
covers those principles and standards which are so sacrosanct as to require their
maintenance at all costs and without exception.13
Logo, a reserva do artigo 96, apesar de não conter aparentemente a natureza de
norma de aplicação imediata – que levaria à sua aplicação anterior à aplicação da regra
de conexão –, pode ser considerada pelos países que a adotaram como sendo um valor a
ser protegido, relacionado à segurança das transações contratuais.
Se este for o caso, faz-se necessária a análise de como a ordem pública da lei
aplicável ao mérito (Lex contractus) irá afetar a transação, e quais os efeitos desta, com
relação ao juiz nacional e ao árbitro internacional.
De acordo com Yves Derains, esta questão vem sendo debatida por subjetivistas e
objetivistas do Direito Internacional Privado14. Em suas palavras,
12
Ibid. p. 184
Lew, Julian D. M. , Applicable Law in International Commercial Arbitration (Oceana Publications 1978)
14 Derains, Yves. Public Policy and the Law Applicable to the Dispute in International Arbitration in
Pieter Sanders (ed), Comparative Arbitration Practice and Public Policy in Arbitration, ICCA Congress
Series, 1986 New York Volume 3 (Kluwer Law International 1987) p. 234
13
121
The subjectivist theory is that no law is recognized as having the power to govern
an international contract unless the parties have decided that it is to do so. There
are two consequences of this: firstly, the application of a law to an international
contract is always based on the will of the parties, in the sense that if that will has
not been expressed or was actually non-existent the judge has to establish what
the parties would have decided if they had considered the question of the law
applicable to their contract. Secondly, the law applicable to the international
contract has no mandatory effect except insofar as the will of the parties has given
it that effect.15
Portanto, para Derains, se analisarmos a questão da ordem pública desde o ponto
de vista de um juiz nacional e dentro da teoria subjetivista, a lei aplicável ao contrato
internacional não tem efeitos de mandatoriedade, a menos que a vontade das partes seja
conferir esse efeito.
Logo, sob essa teoria, o juiz nacional não teria que aplicar qualquer norma de
ordem pública (seja ela positiva ou negativa) de uma lei estrangeira que não a Lex fori, a
menos que as partes expressamente tenham dado este efeito, ou que o juiz entenda que
a intenção delas era de fazê-lo. Nesta situação, a reserva do artigo 96 não teria que ser
levada em conta no momento da decisão, ainda que constituísse norma de ordem pública
em outro pais.
Por outro lado, um juiz partindo de uma análise objetivista, chegaria a uma
conclusão um pouco diferente. Como ensina Derains,
The objectivist theory is that an international contract is of necessity governed by a
law. This law is determined by the judge on the basis of various objective criteria:
place of conclusion of the contract, place of performance, etc. It may, for example,
be a matter of applying one single criterion (e.g., in the case of a sale, the location
of the seller's main establishment), or of looking at each case separately and
weighing up the different criteria in each case and their relative importance in
relation to the center of gravity of the contract. The will of the parties, whether
express or implied, then features as an objective criterion which is a particularly
important determining factor.16
No caso da abordagem objetivista, a escolha ou determinação da lei aplicável
envolve todas as situações presentes naquela lei ou ordenamento jurídico, de modo que
as partes teriam autonomia para a escolha da lei, mas não poderiam escolher qual parte
daquela lei ou ordenamento seria aplicável. Sob o ponto de vista desta teoria, a escolha
da lei engloba todas as disposições desta, e portanto normas imperativas e de ordem
pública desta lei serão aplicadas pelo juiz, ainda que esteja sito em outro foro.
Esta divisão entre subjetivistas e objetivistas se baseia na visão que cada teoria
tem sobre a lei dentro do contrato. Para os subjetivistas, a lei faz parte do contrato, e suas
disposições são tão importantes quanto as demais cláusulas contratuais, de modo que
uma não deve se sobrepor à outra. Já para os objetivistas, a lei aplicável governa o
contrato, e portanto está acima dele, tendo suas disposições imperativas e de ordem
pública ascensão sobre ele.17
De acordo com Yves Derains, a jurisprudência internacional tem transitado entre as
duas teorias, apesar de os puramente subjetivistas serem minoria. Nas últimas décadas, a
teoria objetivista tem se firmado, e portanto atualmente tem-se que a lei é considerada
como governadora do contrato, seja ela escolhida pelas partes ou determinada pelo juiz. 18
15
ibid. p. 234
Ibid. p. 235
17 Neste sentido ver H. Batiffol, “Subjectivisme et objectivisme dans le droit international privé des contrats”,
p. 53.
18 Derains, Yves. Op. Cit. P. 237
16
122
it can be concluded that as far as the judge is concerned, because of the failure of
the pure subjectivist doctrine to be admitted under the law in force, the contract is
subject to the proper law, whether this law was chosen by the parties or
determined by the judge in the absence of such choice. This is probably one of the
effects of the bilateralist concept of the conflict of laws rule whereby the world's
legislative jurisdictions are divided up. For the judge, there is always a law proper
to a contract, and once that law has been determined by the conflict of laws rules,
the contract is subject to that law, whatever the role played by the will of the parties
in bringing it into play. Therefore, the public policy rules of that law must be applied
by the judge even if that leads him to call into question the parties' contractual
agreement.19
Esta visão sobre a posição do juiz nacional é relevante para uma análise da
posição do árbitro internacional quando confrontado com a mesma situação, pois ao
contrário do juiz, o árbitro não tem foro, e mais do que isso, o árbitro extrai seus poderes
das partes, e estas tem diferentes níveis de liberdade dentro da arbitragem.
3
A VINCULAÇÃO DO ÁRBITRO INTERNACIONAL À NORMAS IMPERATIVAS E
DE ORDEM PUBLICA
Muito se discute na doutrina arbitral a respeito da lei aplicável ao mérito do
contrato, e dentro deste contexto, sobre a linha que divide a autonomia da vontade das
partes e as regras de caráter público que devem ser respeitadas por estas e que portanto
se mostrariam como limites a tal autonomia20.
No Direito Internacional Privado, a grande maioria dos países reconhece o principio
da autonomia da vontade das partes em suas leis nacionais. E, especialmente no que
toca à arbitragem, a doutrina e a jurisprudência dão grande valor ao que foi determinado
entre particulares, sendo inclusive considerada por alguns como sendo um direito em si
mesmo, com caráter transnacional. Como explicam Lew, Mistellis e Kroll,
Due to the universal acceptance of party autonomy in most developed legal
systems and its origin in the express or determinable intention of the parties, it is
now recognised that party autonomy operates as a right in itself. The rule has a
special transnational or universal character and has binding effect because it has
been agreed to and adopted by the parties. Unquestionably, party autonomy is the
most prominent and widely accepted international conflict of laws rule. These
national conflict of laws systems recognise that contracting parties do express their
view as to the law to govern their contractual relations, and the national laws have
no reason to ignore and very limited rights to interfere with the expressed will of the
parties.21
Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência também concordam que a autonomia
da vontade não é infinita e ilimitada, pois encontraria resistência à sua aplicação diante de
regras de caráter publico, que se sobreporiam ao interesse particular. Igualmente nas
palavras de Lew, Mistellis e Kroll,
19
Id. p. 237
Neste sentido, Lew, Mistellis e Kroll afirmam que: “The determination of the applicable substantive law is a
critical issue in international arbitration. It has a legal, practical and psychological influence on every
arbitration. Nothing is more important in any international arbitration than knowing the legal or other
standards to apply to measure the rights and obligations of the parties. This is an independent exercise in
the dispute resolution process for resolving the dispute itself.” Julian D. M. Lew , Loukas A. Mistelis , et al.,
Comparative International Commercial Arbitration, (Kluwer Law International 2003) pp. 411
21 id. p. 412
20
123
The extent to which parties are free to choose any law or rules has always been an
issue. Courts are constrained by their national conflict of laws rules. International
tribunals have no national conflict of laws rules. The question is whether a tribunal
must always apply the law chosen by the parties or is it constrained by limitations
either in the law of the place of arbitration or by some other controlling factor?22
A pergunta sobre os limites da aplicação da escolha de lei pelas partes encontra
guarida na Convenção de Nova York de 1958 sobre Reconhecimento e Execução de
Sentenças Arbitrais Estrangeiras, a qual abarcou a exceção de ordem pública, comum ao
Direito Internacional Privado, estipulando a possibilidade de uma corte nacional recusar o
reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral estrangeira, quando esta violar
princípios de ordem publica do foro. 23
Tal previsão, constante no artigo V (2)(b), também existe em outros diplomas
relacionados à arbitragem, como a Lei Modelo da Uncitral [artigo 34 (b) (ii)], e a lei
brasileira 9.307/96, em seu artigo 39, II.
O fato de tais disposições estarem presentes nas leis arbitrais e na Convenção de
NY traz para o árbitro um problema diferente daquele enfrentado pelas cortes nacionais,
pois agrega uma preocupação a mais na prolação da sentença. O árbitro deve se ocupar
em garantir que a mesma será reconhecida e executada, e que será de acordo com as
expectativas das partes no mesmo sentido. Nesta linha, Grigera Naon defende que
The application of such mandatory rules — even ex officio or on the initiative of the Arbitral
Tribunal when none of the parties has pleaded their application — has been advocated or
justified along lines purporting to reconcile it with the legitimate expectations of the parties. The
rationale is that not applying lois de police or not taking them into account might lead to the
nullity or non-enforcement of the arbitration award in national jurisdictions having enacted such
rules, thus defeating the parties’ expectation that the ensuing award shall be valid and
enforceable.24
Ora, o juiz nacional está vinculado às normas imperativas e de ordem pública do
seu foro, e irá aplicá-las a despeito da lei aplicável apontada pela regra de conexão.
Ainda, como visto anteriormente, o juiz nacional será levado a aplicar as normas de
ordem pública da Lex contractus quando entender que o contrato está governado por
esta.
Já o árbitro internacional, por outro lado, não tem “foro”, o que faz com que ab initio
ele não esteja atrelado a nenhuma norma mandatória que não faça parte da lei escolhida
pelas partes para reger o contrato. Nas palavras de Emmanuel Gaillard, “C’est dans cette
conception que l’on observe volontiers que «les arbitres n’ont pas de for» ou que leur for
est le monde, non un Etat déterminé, fût-il celui du siège.”25
O árbitro internacional portanto se aproximaria muito mais da teoria subjetivista,
pois dá à lei e ao contrato valores iguais, de modo que as partes teriam o poder de excluir
provisões que considerassem indesejáveis. Como coloca Derains,
It is important to underline that so far as the arbitrator is concerned, there is no
natural hierarchy between the contract and any particular national law. Quite the
contrary, a law is only applied if the parties have chosen it and within the bounds of
that will. If the parties have expressly excluded certain rules of that law, the
arbitrators may not enforce the application of those rules in the name of public
policy of which they are not the guardians. By introducing appropriate clauses into
22
Lew, Mistellis e Kroll. Comparative international... Op. Cit. p. 418
Artigo V. 2. Recognition and enforcement of an arbitral award may also be refused IF the competent
authority in the country where recognition and enforcement is sought finds that:
(b) The recognition or enforcement of the award would be contrary to the public policy of that country.
24 GRIGERA NAON. Op. Cit. p. 187
25 GAILLARD, Emmanuel. Aspects philosophiques Du Droit de L’Arbitrage International. Recueil dês Cours.
P. 82
23
124
their contract, it is possible that the parties intended to exclude the public
provisions of a law which they intended to apply to the rest of the contract.26
Por outra banda, deve-se lembrar que a sentença arbitral deve buscar a sua
exeqüibilidade em qualquer foro onde as partes tenham ativos executáveis, e portanto, a
questão das normas imperativas e de ordem pública representam para o árbitro uma
preocupação maior do que aquela tida pelo juiz nacional. Grigera Naon explica que
On the other hand, a growing number of Arbitral Tribunals have been or are being
confronted with the need to consider whether certain national mandatory rules
(“international mandatory rules” or “lois de police”) should necessarily be applied or
taken into account to resolve specific disputed issues of international character as
a matter of public policy, irrespective of the explicit or implicit choice-of-law
stipulations of the parties or the proper law of the contract.27
Nesta mesma esteira, Lew, Mistellis e Kroll defendem que
The effect of national mandatory rules is more complicated. Mandatory rules limit
the parties’ choice and must be applied to certain situations. These rules define
themselves. A national court will normally apply its mandatory laws whatever the
applicable substantive law it applies to the issues before it. There can be little
argument that arbitrators must apply the mandatory rules of the law chosen by the
parties, subject only to compliance with international public policy. However, as
international arbitrators have no national forum, all national mandatory rules are
“foreign” to them. Other than that of the chosen applicable law, there is no
mandatory law for international arbitration. 28
A situação também é vista de maneira diferente quando a Lex contractus não é
escolhida pelas partes, mas sim pelo árbitro. Nestas situações, a doutrina considera que o
árbitro deverá aplicar a lei como um todo, sem exclusão das suas provisões mandatórias.
Novamente segundo o pensamento de Yves Derains,
If the arbitrator determines the applicable law, where the parties have not specified
it, he must apply that law as it stands. It is difficult to see by what right the arbitrator
might decide to exclude one provision or another on the grounds that it is contrary
to one of the contractual clauses.29
Nota-se portanto, que a questão da ordem pública exerce um papel importante no
processo decisório de tribunais arbitrais, pois ao invés de o tribunal se preocupar
unicamente com as normas de ordem pública de determinado foro ou de determinada lei
aplicável, ele ainda deve considerar possíveis violações à ordem pública do local de
execução da sentença, alem de questões referentes à ordem pública transnacional (ou
truly international public policy30). Como explica Emmanuel Gaillard,
La deuxième siege representation de l’arbitrage international est celle qui trouve la source de la
juridicité de la sentence non dans le seul ordre juridique du siege, mais dans l’ensemble des
ordres juridiques prêts, à certaines conditions, à reconnaître l’efficacité de la sentence. 31
Destarte, a atuação do árbitro internacional deve ser muito mais ampla e
abrangente que a do juiz nacional, pois o árbitro convive com uma pluralidade de leis
26
Derains, Yves. Op cit. pp. 239-240
GRIGERA NAON. Op. Cit. P. 185
28 Lew, Mistellis e Kroll. Comparative international... Op. Cit. p.
29 Derains, Yves. Op. Cit. p. 240
30 Neste sentido veja-se LALIVE, Pierre.
31 GAILLARD, Emmanuel. Aspects philosophiques Du Droit de L’Arbitrage International. Recueil dês Cours.
P. 81
27
125
aplicáveis que surgem por conta do local da execução do laudo a ser proferido. Logo, o
árbitro internacional estará constantemente transitando entre as teorias do Direito
Internacional Privado, ao mesmo tempo que deverá levar em conta os lugares apontados
pelas partes como possíveis locais de execução da sentença, e somente então
determinar exatamente qual o conjunto de regras que deverá pautar sua atuação, e até
onde estas regras terão efeitos no julgamento.
4
CONCLUSÃO
Da pesquisa realizada a partir da problemática posta pelo 20th Willem C. Vis Moot,
pode-se concluir que a vinculação do árbitro internacional às normas imperativas e de
ordem pública vai depender diretamente da escolha da lei, seja pelas partes, seja pelo
árbitro, e também do local onde a sentença arbitral será possivelmente executada.
A vinculação do árbitro internacional não vai, por outro lado, ser influenciada por
regras de foro, eis que o árbitro internacional é tido como sediado no mundo, sem
nenhuma conexão real com qualquer estado nacional, nem mesmo o da sede da
arbitragem.
A lógica seguida pelo arbitro internacional difere daquela aplicada pelos juízes
nacionais, pela questão da existência de uma Lex fori que vincula este juiz às normas de
ordem pública e de aplicação imediata do seu foro, ao passo que o mesmo não vai se
preocupar com normas imperativas que não tem ligação direta com o foro ou com a Lex
contractus, pois ao contrário do árbitro o juiz não tem que se preocupar com o
reconhecimento e a execução de sua sentença em jurisdições diferentes.
Aplicando-se esta conclusão ao problema do Vis Moot, entende-se que, no caso
específico, a reserva do artigo 96 feita por um dos Estados onde uma das partes tinha seu
estabelecimento comercial não será automaticamente aplicada, e só será aplicável se as
regras de Direito Internacional Privado apontarem para a lei daquele Estado como sendo
a Lex contractus, ou eventualmente no caso de o Estado que fez a reserva ser um dos
locais possíveis de execução da sentença arbitral a ser proferida.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DERAINS, Yves. Public Policy and the Law Applicable to the Dispute in International
Arbitration. In: Pieter Sanders (ed), Comparative Arbitration Practice and Public Policy
in Arbitration, ICCA Congress Series, 1986 New York Volume 3 (Kluwer Law
International 1987).
GAILLARD, Emmanuel. Aspects
International. Recueil dês Cours.
philosophiques
Du
Droit
de
L’Arbitrage
GRIGERA NAON, Horacio A. Choice-of-law problems in international commercial
arbitration. Hague Academy of International Law. Reccueil de Cours, vol. 289, 2001.
LEW, Julian D. M., Applicable Law in International Commercial Arbitration (Oceana
Publications 1978).
______, Loukas A. Mistelis , et al. Comparative International Commercial Arbitration,
(Kluwer Law International 2003).
126
MAYER, Pierre. Mandatory rules of law in international arbitration, Arbitration
International, (Kluwer Law International 1986 Volume 2 Issue 4 ).
Tabela de Casos
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Adamfi Video Production GmbH v. Alkotók Studiósa Kisszövetkezet. CLOUT case n.
52. Disponível em: http://cisgw3.law.pace.edu/cases/920324h1.html. Acesso em
12/11/2012.
127
ANÁLISE DAS INELEGIBILIDADES NO TEXTO CONSTITUCIONAL
Brunna Helouise Marin
___________________________________
Graduanda em Direito pelo UNICURITIBA
Integrante do Grupo de Estudos Hermenêutica Constitucional e a Concretização dos
Direitos Fundamentais na Pós-Modernidade
Luiz Gustavo de Andrade
___________________________________
Advogado, Mestre em Direito
Professor da Graduação e da Pós-Graduação do curso de Direito do UNICURITIBA
128
RESUMO
A democracia pressupõe o exercício do poder pelo povo. Para tanto, o texto constitucional
dispõe sobre instrumentos voltados a permitir que o cidadão participe do processo de
tomada de decisões. Pelo voto, escolhe-se o representante popular; aquele que, em
nome de muitos, atuará no processo de elaboração das leis e na escolha de políticas
públicas. Para concorrer a mandatos eletivos, é necessário o preenchimento de requisitos
constitucionais de elegibilidade. Além disso, a Constituição apresenta hipóteses de
restrição que impedem determinados cidadãos de postularem mandato eletivo. O
presente trabalho trata das inelegibilidades relativas, em razão da função, do parentesco
e da condição militar.
Palavras-chave: eleitoral, inelegibilidades constitucionais.
ABSTRACT
Democracy presupposes the exercise of power by the people. Thus, the Constitution
provides for instruments designed to allow the citizen to participate in the decision making
process. By voting, you choose the popular representative, who, on behalf of many, will
serve in the drafting of laws and choice of public policies. To run for elective mandates, it
is necessary to fill the constitutional requirements for eligibility. Moreover, the Constitution
presents hypotheses restriction preventing certain citizens of positing an elective office.
This paper addresses the ineligibility for, by reason of function, kinship, and veteran status.
Keywords: electoral, constitutional ineligibility.
1
INTRODUÇÃO
Os Direitos Políticos, por serem tema de fundamental importância, foram
normatizados através da inserção de um capítulo especial na Constituição Federal de
1988, sendo definidos por Thales Cerqueira como o “conjunto de normas que disciplinam
os meios necessários ao exercício da soberania popular1”.
Neste contexto, a Carta Magna adotou a forma da democracia representativa conjugada a
mecanismos de participação popular, exercida por meio dos direitos políticos positivos,
por meio do voto, do exercício de cargo público, além de outros instrumentos, através dos
quais se assegurará que o cidadão participe na formação e decisões do governo, como
ponto basilar do Estado Democrático de Direito.
Na mesma linha e mais especificamente, no que tange aos direitos públicos
políticos subjetivos passivos, ao poder de postular o voto dos demais cidadãos, conforme
determina a Lei Maior, o candidato deve ter capacidade para submeter seu nome à
avaliação do eleitorado, cujo propósito é resguardar a probidade da administração pública
e, sobretudo, o interesse público, uma vez que os representantes do povo serão
escolhidos através do sufrágio universal.
Assim, antes mesmo de colocar o seu nome na disputa eleitoral, o pretenso
candidato deve preencher todas as condições de elegibilidade, para que possa
validamente postular um mandato, e, ainda, não pode para tanto, estar incurso nas
hipóteses de inelegibilidade.
1
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 85.
129
Neste viés, é necessário que o postulante reúna as condições de elegibilidade
elencadas no art.14, §3º da CF, quais sejam: nacionalidade brasileira, pleno exercício dos
direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição, filiação
partidária e idade mínima para postular o mandato relativo ao respectivo cargo que
pretenda disputar.
Na ausência de qualquer um desses requisitos, o cidadão não poderá concorrer a
qualquer cargo eletivo, não se confundido, porém, como uma hipótese de inelegibilidade,
conforme o Ministro Moreira Alves “para que alguém possa ser eleito, precisa preencher
pressupostos de elegibilidade (requisito positivo) e não incidir em impedimentos (requisito
negativo). Quem não reunir estas duas espécies de requisitos - o positivo (preenchimento
de pressupostos) e o negativo (não incidência em impedimentos) - não pode concorrer a
cargo eletivo”2.
Sobre as causas de inelegibilidade, a Carta Magna prevê no art.14, §§ 4º a 7º, as
hipóteses de restrição que impedem determinados cidadãos de postularem mandato
eletivo.
Conforme entendimento do Tribunal Superior Eleitoral “a inelegibilidade importa no
impedimento temporário da capacidade eleitoral passiva do cidadão, que consiste na
restrição de ser votado (...)3”.
Importante salientar que as inelegibilidades constituem-se em um direito político
negativo, uma vez que importam em uma forma de impedimento, restringindo a
participação de determinados cidadãos no processo político de forma passiva. De acordo
com Adriano Soares da Costa “a inelegibilidade é o estado jurídico de ausência ou perda
de elegibilidade. Sendo a elegibilidade o direito subjetivo público de ser votado (direito de
concorrer a mandato eletivo), a inelegibilidade é o estado jurídico negativo de quem não
possui tal direito subjetivo - seja porque nunca o teve, seja porque o perdeu”4.
Podem ser classificadas de acordo com diversos critérios, quanto à origem, são divididas
em constitucionais e infraconstitucionais, destacando-se no presente artigo, aquelas, que
decorrem diretamente do texto constitucional, diferenciando-se destas quanto à força
normativa e prazo de impugnação.
As inelegibilidades constitucionais têm aplicabilidade imediata e eficácia plena,
independem de lei infraconstitucional para que produza seus efeitos, além de poderem
ser arguidas a qualquer tempo, não estando sujeitas a preclusão.
2
INELEGIBILIDADES ABSOLUTAS
As inelegibilidades absolutas são aquelas que implicam na restrição a ocupação de
qualquer cargo eletivo, não havendo prazo para cessação do impedimento, ou seja,
incorrendo nessa hipótese, o cidadão não poderá pleitear eleição alguma, uma vez que
não é titular de elegibilidade.
Por terem caráter excepcional, apenas são legitimas as hipóteses previstas no
texto constitucional, que prevê como inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos, conforme
dispõe o §4º do art. 14.
Em relação aos inalistáveis, observa-se primeiramente que os direitos da cidadania
são adquiridos por meio do alistamento eleitoral, que, segundo Djalma Pinto, “é o
processo através do qual o individuo é introduzido no corpo eleitoral, ou seja, quando seu
nome é inscrito no rol dos eleitores. Trata-se, por assim dizer, do mecanismo de aquisição
de cidadania. Por ele se obtém a aptidão para participar da condução dos negócios
2
Ibid. p. 627.
Tribunal Superior Eleitoral. AAG 4598, Rel. Min. Fernando Neves da Silva; Julg. 03/06/2004; DJU
13.08.2004, p. 401
4 COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 3. ed. São Paulo: Del Rey, 2010. p. 63.
3
130
públicos”5. O alistamento é feito mediante qualificação e inscrição da pessoa junto à
Justiça Eleitoral, atendidos certos requisitos legais.
Ressalta-se que o alistamento eleitoral é condição de elegibilidade, está
intimamente ligado à aquisição de cidadania, outorgando ao cidadão capacidade eleitoral
ativa, e sua ausência, por conseguinte, ensejará na inelegibilidade do cidadão.
Em vista das outras espécies de inelegibilidades, essa hipótese é mais genérica,
uma vez que existem vários casos em que o cidadão não possuirá aptidão para se alistar,
porquanto é exigido que a pessoa tenha nacionalidade brasileira, idade mínima, e que
sejam apresentados alguns documentos para comprovação da qualificação. Adverte
Djalma Pinto que “o requerimento que não contenha os dados exigidos é tido por
imprestável, devendo ser devolvido ao interessado que fica, em conseqüência, sem
alistar-se”6.
Nessa linha, a própria Constituição descreve de forma expressa no §2º do art.14
quais indivíduos não podem se alistar: os estrangeiros e os conscritos. Neste caso, estão
os recrutas, alistados nas Forças Armadas, no período de prestação do serviço militar
obrigatório. Conforme o Ministro Nilson Naves “a proibição de o conscrito votar não é mais
e nem menos que a suspensão temporal de direitos políticos”7, afirma, ademais, que o
jovem que “vier a prestar o serviço militar, será, forçosamente, impedido de votar, por
estar com seus direitos políticos suspensos durante o período da conscrição, embora esta
causa de suspensão, não esteja elencada no artigo 15 da Carta Magna” 8.
Os estrangeiros, também são inalistáveis, por não possuírem nacionalidade
brasileira não preenchem os requisitos para o alistamento eleitoral, portanto, não
possuem capacidade eleitoral ativa, sendo inelegíveis. Entretanto, depois de adquirida a
nacionalidade brasileira, através do processo de naturalização, obtêm todos os direitos
políticos inerentes aos cidadãos brasileiros, inclusive a elegibilidade, salvo para postular
os cargos previstos no art.12, §3º, da CF, que somente podem ser ocupados por
brasileiros natos.
Da mesma forma, não podem se alistar aqueles cidadãos que incorram nas
hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos, com previsão no art.15 da CF,
porquanto se encontram privados destes direitos.
No caso de perda de direitos políticos, segundo Marcos Ramayana, “o cidadão ficará
afastado de suas capacidades ativas e passivas (direito de votar e ser votado) por
absoluta impossibilidade de reversibilidade (reaquisição)”9, não havendo previsão de
cessação do cerceamento das capacidades eleitorais. Poderá ocorrer com o
cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado ou como
conseqüência da recusa de cumprir obrigação a todos imposta. Neste caso, consoante o
art.5º, inciso VIII, da Constituição, é permitido que o indivíduo, uma vez que lhe é
assegurado à liberdade de crença religiosa, convicção filosófica e política, deixe de
cumprir uma obrigação legal a todos imposta, evocando escusa de consciência, com a
condição de que cumpra uma prestação alternativa, sob pena de perda dos direitos
políticos.
Na hipótese de cancelamento da naturalização, após o transito em julgado da
decisão, como consequência o individuo retornará a situação de estrangeiro, uma vez que
cometeu atividades nocivas ao interesse nacional, tornando-se novamente inalistável.
Não obstante, lembra Thales Cerqueira a propósito da aquisição voluntária de outra
5
PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2010. p. 150.
6 Ibid. p. 151.
7 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.165; Processo Administrativo n. 16.337; Rel. Nilson Naves; j.
07.04.1998; DJU 14.05.1998; p. 85.
8 Ibid.
9 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 64.
131
nacionalidade pelo cidadão brasileiro que, desse modo, “perderá a nacionalidade
brasileira e, consequentemente, seus direitos de cidadania. Neste caso, deve-se fazer a
interpretação sistemática da própria Constituição Federal de 1988, para incluir, no art.15,
o art.12, §4º, II, não se cogitando a hipótese de inconstitucionalidade, pois ambas as
normas retiram fundamento de validade da própria Constituição”10.
Por outro lado, no caso de suspensão dos direito políticos, o cidadão somente terá
restringido os seus direitos políticos pelo prazo estabelecido pela lei ou com a reaquisição
deles, podendo surgir como conseqüência da: condenação criminal transitada em julgado
enquanto perdurarem seus efeitos, improbidade administrativa e incapacidade civil
absoluta. Esta se refere aos menores de 16 anos, àqueles que, por moléstia ou
deficiência mental, foram declarados incapazes por sentença judicial, porquanto não
possuem discernimento para exercer os atos da vida civil, e também, aos que por
momento transitório não consigam exprimir sua vontade.
Em relação à condenação criminal transitada em julgado, de acordo com o
entendimento do TSE, ela “ocasiona a suspensão dos direitos políticos, enquanto
durarem seus efeitos, independentemente da natureza do crime”11, e ainda, essa
suspensão “prevista no art. 15, III, da Constituição Federal é efeito automático da
condenação criminal transitada em julgado e não exige qualquer outro procedimento à
sua aplicação”12. Portanto, nesta hipótese, tem-se que a suspensão é uma conseqüência
automática e imediata da sentença condenatória e persiste até o cumprimento da pena ou
extinção da punibilidade, consoante a Súmula nº 09 do TSE.
No mesmo sentido, prevê o art.37, §4º da CF, regulado pela Lei nº 8.429/92, que
os atos de improbidade administrativa importam na suspensão dos direitos políticos, além
de vislumbrar outras sanções aplicáveis ao agente público. Entretanto, a condenação por
ato de improbidade administrativa, por si só, não gera inelegibilidade, conforme
ponderação do TSE “a sanção de suspensão dos direitos políticos, por meio de ação de
improbidade administrativa, não possui natureza penal e depende de aplicação expressa
e motivada por parte do juízo competente, estando condicionada a sua efetividade ao
trânsito em julgado da sentença condenatória, consoante expressa previsão legal do art.
20 da Lei nº 8.429/92”13.
Contudo, note-se que o pretenso candidato condenado por ato doloso de
improbidade administrativa, tipificado como lesivo ao patrimônio público e gerador de
enriquecimento ilícito, ao contrário do que dispõe a Lei de Improbidade Administrativa,
poderá ser declarado inelegível perante a Justiça Eleitoral bastando somente condenação
por órgão colegiado, consoante preceitua o art. 1º, alínea “l” da Lei Complementar nº
64/1990, com redação dada pela LC 135/2010. Nesse sentido, afirma Marcos Ramayana
que essa hipótese “trata-se de uma causa de inelegibilidade que é efeito secundário da
sentença ou acórdão não eleitoral, mas que impedirá o registro de uma candidatura e até
mesmo servirá como matéria de impugnação ao mandato eletivo”14.
A respeito da inelegibilidade absoluta do analfabeto, depreende-se que há uma
exceção, visto que ele possui, facultativamente, capacidade eleitoral ativa, conforme
dispõe o art. 14, §1º, inciso II, alínea “a”, da Constituição, entretanto, é inelegível, por
força do §4º do aludido artigo. Essa hipótese tem como escopo a premissa de que o
cidadão necessita ter um mínimo de conhecimento da língua para que possa exercer seu
mandato de forma autônoma e digna.
10
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 126.
Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira, j.
15.10.2009, DJU 14.12.2009, p. 15.
12 Ibid.
13 Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 23347; Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos; j. 22.09.2004.
14 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 336.
11
132
Consoante o entendimento do TSE, o simples fato de o cidadão saber escrever seu
nome não afasta essa hipótese, podendo ser avaliado, ainda que singelamente, o domínio
da escrita e da compreensão de textos. Segundo o Ministro Néri da Silveira “não se pode
considerar analfabeto, para os efeitos da Constituição, candidato que ler e tiver condições
mínimas de escrever um texto, ainda que não seja um texto suscetível de aplausos por
parte de um critico de redação ou um critico literário” 15. Destarte, a interpretação
jurisprudencial acerca do respectivo dispositivo constitucional é feita de forma restritiva,
uma vez que o seu reconhecimento acarretará na restrição de um direito fundamental do
cidadão.
Não obstante, tal interpretação, exigi-se que no momento do pedido do registro da
candidatura seja apresentado comprovante de escolaridade para aferição da condição de
alfabetizado do candidato, gerando uma presunção relativa. Porém, “quando o
comprovante de escolaridade não se mostrar suficiente para formar a convicção do juiz,
deve-se exigir declaração de próprio punho do candidato. Se for intimado e não
comparecer em cartório para firmar essa declaração, perderá oportunidade de comprovar
sua condição de alfabetização”16, conforme ponderação da Corte Superior Eleitoral.
No mais, esta Corte entende que “na falta do comprovante de escolaridade, é
imprescindível que o candidato firme declaração de próprio punho em cartório, na
presença do juiz ou de serventuário da Justiça Eleitoral, a fim de que o magistrado possa
formar sua convicção acerca da condição de alfabetizado do candidato”17.
Contudo, havendo dúvida ou suspeita, o magistrado pode submeter o candidato a
um teste, sendo legal e legítima essa avaliação, com a condição de que seja respeitada a
dignidade do candidato, consoante juízo do TSE “a Constituição Federal não admite que o
candidato a cargo eletivo seja exposto a teste que lhe agrida a dignidade. Submeter o
suposto analfabeto a teste público e solene para apurar-lhe o trato com as letras é agredir
a dignidade humana (CF, art. 1º, III). Em tendo dúvida sobre a alfabetização do candidato,
o juiz poderá submetê-lo a teste reservado”18. Todavia, segundo o Ministro Gilmar
Mendes, ainda que o teste de alfabetização seja reservado, se “traz constrangimento ao
candidato, não pode ser considerado legítimo”19.
Ademais, a alegação de que o candidato já ocupou mandato eletivo e por isso é
alfabetizado, sendo elegível, não encontra respaldo nas decisões do TSE, uma vez que
esse entendimento já foi pacificado, sendo, inclusive sumulado, através da súmula nº 15
que expõe que “o exercício de cargo eletivo não é circunstância suficiente para, em
recurso especial, determinar-se a reforma de decisão mediante a qual o candidato foi
considerado analfabeto”20.
3
INELEGIBILIDADES RELATIVAS
Relativas são aquelas inelegibilidades que impedem o cidadão de postular
determinados mandatos em dada eleição, devido a situações específicas que recaem
sobre ele. Assevera Marcos Ramayana que “a expressão “relativa” tem o significado
específico de restrição ao direito de ser votado para uma determinada eleição em razão
de relações de parentesco, pela condição funcional do servidor público, seja o militar ou
civil, e por motivos vedatórios do sistema de reeleição e desincompatibilização”21.
15
Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 17132; Rel. Min. Walter Ramos da Costa Porto; j. 14.09.2000.
Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 22.128, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23.09.2004.
17 Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 31.937; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; j. 05.05.2009.
18 Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 21707, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; j. 17.08.2004.
19 Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 24.343, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2004.
20 RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 205.
21 Idem. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 271.
16
133
Consoante o referido autor, essa inelegibilidade pode caracterizar-se em razão da
incompatibilidade pelo exercício de função pública, pelo vínculo de parentesco ou
afinidade, ou ainda, na hipótese em que o candidato é militar, conforme dispõe os §§5º a
8º do art. 14 da Lei Maior, que, por sua vez, impedem o candidato em tal situação, de
pleitear determinado mandato.
Todavia, há possibilidade de reversão, uma vez que havendo o desvencilhamento
do candidato com a situação que limita sua capacidade eleitoral passiva, é readquirida a
elegibilidade em relação a determinados cargos eletivos.
Nesse contexto, a Constituição, além de prever as referidas hipóteses, delegou à
lei complementar a implementação de outros casos, consoante o §9º do aludido artigo.
3.1.
INELEGIBILIDADE RELATIVA EM RAZÃO DA FUNÇÃO
A inelegibilidade por motivo funcional decorre do exercício de função pública pelo
candidato, e mais especificamente, no que tange aos casos previstos diretamente na
Carta Magna, pela ocupação do cargo de chefe do Poder Executivo.
Consoante o § 5º do art.14 da CF, com redação dada pela Emenda Constitucional
nº16, de 04 de junho de 1997, é permitida a recondução para o mesmo cargo por um
único período subseqüente pelos chefes do executivo, surgindo a inelegibilidade apenas
em relação ao exercício de um terceiro mandato sucessivo.
Nesse sentido, a jurisprudência da Corte Superior Eleitoral é uníssona quanto à
claridade da referida regra constitucional, no sentido de que uma mesma pessoa não
pode ocupar mais do que duas vezes seguidas o mesmo cargo eletivo,
independentemente das circunstâncias, ou duração, em que o mandato foi exercido.
Há que ressaltar, que esse dispositivo constitucional também abrange o candidato
que substituiu ou sucedeu o titular, que somente poderá pleitear o cargo deste uma única
vez, porquanto o que se veda é a eleição para mandato sucessivo de quem, no período
anterior, o tenha exercido, não apenas o de quem tenha sido eleito para ele.
Cumpre ainda salientar que a atribuição do cargo de vice consiste em substituir o
titular em suas faltas e impedimentos, e suceder-lhe no caso de vaga, consoante o art.79,
caput, da CF. Desse modo, sua função principal é dar continuidade à administração na
ausência do titular, segundo o Ministro Fernando Neves o vice “somente dá continuidade
temporária aos atos, programas e diretrizes já determinados, até porque – e isto é
importante – ele não tem a chave do cofre, ou seja, não tem o poder de destinar verbas a
qualquer projeto. Não deixa sua marca pessoal na administração”22.
Noutro passo, é importante frisar a distinção entre substituição e sucessão.
Naquela situação, o exercício do cargo se dará em caráter temporário, em virtude de
impedimento provisório do chefe do poder executivo, permanecendo o substituto como
titular do cargo de vice. Já na sucessão, há investidura definitiva do cargo de titular pelo
vice, ora sucessor, de acordo com o STF “o exercício da titularidade do cargo dá-se
mediante eleição ou por sucessão. Somente quando sucedeu o titular é que passou a
exercer o seu primeiro mandato como titular do cargo”23.
Destarte, o TSE entende que no caso de substituição o vice é elegível para o cargo
de titular, inclusive para reeleição, desde que não ocorra nos 6 meses que antecedem o
pleito, conforme o Ministro Fernando Neves “nessa circunstância, o vice que substituiu
nos seis meses ficou equiparado ao que assumiu o cargo definitivamente, ou seja,
sucedeu o titular”24.
22
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689. Rel. Min. Fernando Neves, j. 09.10.2001.
Supremo Tribunal Federal. RE n. 366.488, Rel. Carlos Velloso, j. 03.10.2005.
24 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689, Rel. Min. Fernando Neves, j. 09.10.2001.
23
134
Por outro lado, havendo sucessão, leva-se em consideração, sobretudo, a assunção
definitiva do cargo, ainda que interina, porquanto o sucessor exercerá poderes inerentes
ao mandato popular outorgados ao titular. Assim, o vice apenas poderá pleitear o cargo
do titular uma única vez, partindo da premissa de que ele já esta pleiteando sua reeleição,
e, consoante Thales Cerqueira, “isto ocorre porque o Vice exerceu o cargo do titular em
sua plenitude, em caráter de definitividade; logo, pode apenas se reeleger, pois mais do
que isso caracterizaria terceiro mandato”25.
Nesse viés, conforme o Ministro Cesar Peluso “o vice-prefeito reeleito pode
candidatar-se, uma única vez, ao cargo de prefeito na eleição subseqüente”26. Entretanto,
na hipótese em que “o vice-prefeito que tenha sucedido o titular, tornando-se prefeito, e,
posteriormente, tenha concorrido e vencido as eleições para o cargo de prefeito, não
poderá disputar o mesmo cargo no pleito seguinte, sob pena de se configurar o exercício
de três mandatos consecutivos no âmbito do Poder Executivo” 27.
Todavia, o titular reeleito não pode candidatar-se à vice consecutivamente, já que
poderia tornar-se titular pela terceira vez nas hipóteses de substituição e sucessão. De
acordo com o Ministro Peçanha Martins “o chefe do Executivo que se reelegeu para um
segundo mandato consecutivo não pode se candidatar para o mesmo cargo nem para o
cargo de vice, no pleito seguinte naquela circunscrição”28, afirma ainda que “o fato de o
pleito ser renovado não gera a elegibilidade daquele que exerceu o mandato por dois
períodos consecutivos”29.
Ademais, o §6º do art.14 da Carta Magna, prevê que para que o Presidente da
República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos possam
concorrer a outro cargo eletivo, devem se desincompatibilizar até seis meses antes da
eleição que pretendam disputar.
Nesse contexto, a desincompatibilização consiste no afastamento do cargo para
que o candidato possa disputar outra vaga na representação popular. Em relação ao
referido parágrafo do texto constitucional, a desincompatibilização é definitiva, uma vez
que é exigida a renúncia ao mandato eletivo para que o chefe do executivo possa disputar
outro cargo.
Esse instituto tem como escopo afastar o postulante de sua função pública, para
que não faça uso desta em favor de sua candidatura. Nesse sentindo, afirma Marcos
Ramayana que “tutela-se com a desincompatibilização a isonomia entre os précandidatos ao pleito eleitoral específico, bem como a lisura das eleições contra influência
do poder político e/ou econômico e a captação ilícita de sufrágio, porque incide uma
presunção jure et de jure que o incompatível utilizará em seu benefício a máquina da
Administração Pública ”30.
Ressalta-se que, em relação a outros cargos, para que a elegibilidade seja
readquirida é necessário que o pré-candidato desincompatibilize-se dentro do prazo legal,
qual seja, seis meses antes do pleito, conforme determina a Lei Maior. Esse prazo é
contado a partir do dia do primeiro turno das eleições, que ocorrem no primeiro domingo
do mês de outubro do ano eleitoral, e, não sendo respeitado, o cidadão tornar-se-á
inelegível para postular outros mandatos em relação àquela eleição.
25
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 640.
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 22.679, Consulta 1.471, Rel. Min. Antonio Cezar Peluso, j.
13.12.2007.
27 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 22.679, Consulta 1.471, Rel. Min. Antonio Cezar Peluso, j.
13.12.2007.
28 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.993, Consulta 1.138, Rel. Francisco Peçanha Martins, j.
24.02.2005.
29 Ibid.
30 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 272.
26
135
Por outro lado, no caso em que o chefe do executivo deseja reeleger-se não é
necessário que renuncie a seu mandato, por inteligência do §5º do art.14 da CF,
porquanto não há previsão, estando em consonância com o parágrafo seguinte. Conforme
o Supremo Tribunal Federal “Somente a Constituição poderia, de expresso, estabelecer o
afastamento do cargo, no prazo por ela definido, como condição para concorrer
à reeleição prevista no § 5º do art. 14, da Lei Magna, na redação atual. Diversa é a
natureza da regra do § 6º do art. 14 da Constituição, que disciplina caso de
inelegibilidade, prevendo-se, aí, prazo de desincompatibilização”31.
No que diz respeito ao vice que sucedeu o titular, é necessário que haja
desincompatibilização, porquanto a Corte Superior Eleitoral entende que “caso o sucessor
postule concorrer a cargo diverso deverá obedecer ao disposto no art.14, §6º, da
Constituição da República”32, uma vez que o vice assumiu definitivamente o cargo do
titular, equiparando-se a este, submetendo-se, a partir de então, as mesmas regras.
Não obstante, caso o vice queira candidatar-se ao cargo do titular, ou para outro
cargo, não necessita desincompatibilizar-se, desde que não haja sucedido, ou substituído
o titular nos seis meses anteriores ao pleito. Pois, de acordo com Marcos Ramayana, “a
solução referente aos titulares dos mandatos do Executivo deve ser ampliado por
princípio isonômico aos vices, considerando que os direitos públicos políticos subjetivos
passivos não podem ser restringidos quando não há expressa menção constitucional,
além da vinculação das eleições realizadas em chapa uma e indivisível”33.
Entretanto, havendo sucessão, ou substituição nos seis meses que antecedem as
eleições, impõem-se a desincompatibilização, visto que “já definiu o STF que a Emenda
Constitucional no 16/97 não alterou a regra do § 6o do art. 14 da Constituição Federal. Se
o vice que se tornou titular desejar ser eleito para o cargo de vice, deverá renunciar ao
mandato de titular que ocupa até seis meses antes do pleito, para afastar a
inelegibilidade”34, consoante ponderação do TSE.
3.2
INELEGIBILIDADE RELATIVA EM RAZÃO DO PARENTESCO
Determinados cidadãos são inelegíveis para certas eleições em razão de
condições inerentes aos seus laços consanguíneos ou socioafetivos, ou ainda, em virtude
de seu vínculo matrimonial, com o chefe do poder executivo, conforme prevê o §7º do
art.14 da Constituição.
Consoante o referido dispositivo “São inelegíveis, no território de jurisdição do
titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por
adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito
Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao
pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”35.
Assevera-se que, de acordo com o entendimento do TSE, essa norma
constitucional busca evitar que tais candidatos sejam beneficiados pela influência do
ocupante do cargo de chefe do executivo, bem como visa impedir a consolidação do
poder político em mãos de uma única família, coibindo-se a perpetuação de grupos
familiares no poder.
Note-se que a inelegibilidade somente existirá quanto aos cargos em disputa
dentro da circunscrição em que o chefe do executivo exerce suas funções, caso ocorra
31
Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1805-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 26.03.1998.
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689, Rel. Min. Fernando Neves, j. 09.10.2001.
33 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 291.
34 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 22.129, Consulta nº 1.179, Rel. Min. Marco Aurélio; j.
15.12.2005.
35 RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 4.
32
136
pretensão de candidatura em local diverso não haverá incidência deste impedimento,
todavia, dispõe a súmula nº 12 da Corte Superior Eleitoral que “são inelegíveis, no
Município desmembrado e ainda não instalado, o cônjuge e os parentes consaguíneos ou
afins, até o segundo grau ou por adoção, do Prefeito do Município-mãe, ou de quem o
tenha substituído, dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de
mandato eletivo”36.
Nesse sentido, consoante o Ministro Fernando Neves, “é possível a candidatura de
cônjuge de prefeito reeleito para o mesmo cargo em outro município do mesmo estado,
sendo vedada apenas em localidade que resulte de desmembramento, incorporação ou
fusão do município em que o referido prefeito exerce seu cargo”37.
Ademais, ressalta-se que essa restrição também se insurge na hipótese em que o
chefe do poder executivo do município-mãe pretende candidatar-se para o mesmo cargo
no município desmembrado, segundo o TSE “Não há impedimento para que o prefeito
reeleito possa candidatar-se para o mesmo cargo em outro município, salvo em se
tratando de município desmembrado, incorporado ou resultante de fusão, não cuidando
tal hipótese de um terceiro mandato, vedado pelo art. 14, § 5º, da Constituição Federal”38.
Em relação à sucessão ou substituição do titular, somente subsistirá a
inelegibilidade dos parentes do substituto se ela ocorrer nos seis meses anteriores ao
pleito. Por outro lado, na hipótese de sucessão, independentemente do momento, aqueles
que têm vínculo parental com o sucessor ficarão impedidos de postular mandato dentro
daquela circunscrição.
Nesse viés, frise-se que, de acordo com a parte final do citado §7º, se o parente ou
cônjuge já é titular de um mandato eletivo e postula sua reeleição, não persistirá a
inelegibilidade, visto que, segundo Thales Cerqueira, “esse direito lhe fora assegurado
antes do nascimento da inelegibilidade decorrente do parentesco com o titular do Poder
Executivo”39.
Não obstante, em 1997, com o advento da Emenda Constitucional nº16, que
possibilitou a reeleição dos chefes do executivo, ainda que tenha alterado somente a
redação do §5º do art.14 da Lei Maior, influenciou o entendimento da Corte Superior
Eleitoral quanto à interpretação do §7º do referido artigo.
Anteriormente, a jurisprudência era uníssona no sentido de que se a renúncia pelo
titular do mandato, nos seis meses anteriores à eleição, viabilizava sua candidatura para
outro cargo, então, era viável a candidatura de seus parentes e cônjuge para outros
cargos, desde que não ao mandato do titular.
Todavia, para que chegasse a esta conclusão, o TSE conjugava os §§6º e 7º do
art.14 da Constituição, visto que, de acordo com Thales Cerqueira “a leitura isolada do
§7º do art.14 levava à inelegibilidade absoluta dos parentes e cônjuge do titular do
Executivo (...)”40. Porém, este era o entendimento da Corte Superior Eleitoral, consoante a
revogada Súmula nº6 deste tribunal, que considerava inelegível para o cargo de prefeito,
os parentes e cônjuge do titular do mandato, independentemente da renúncia, mesmo
que feita dentro do prazo legal.
Contudo, a partir da EC nº16/97, consoante o referido autor “o TSE deu nova
interpretação à Súmula nº6, assentando que o cônjuge e os parentes do chefe do
Executivo são elegíveis para o mesmo cargo do titular, quando este for reelegível e tiver
se afastado definitivamente até 6 meses do pleito”41.
36
Ibid. p. 205
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 21.696, Consulta 1.015, Rel. Min. Fernando Neves, j.
30.03.2004.
38 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.487, Consulta 936, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 04.09.2003.
39 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 631.
40 Ibid. p. 663.
41 Ibid.
37
137
Nesse sentido, afirma o Ministro Sepúlveda Pertence que “com essa tradição
uniforme do constitucionalismo republicano, rompeu, entretanto, a EC 16/97, que, com a
norma permissiva do § 5º do art. 14 CF, explicitou a viabilidade de uma reeleição imediata
para os Chefes do Executivo. Subsistiu, no entanto, a letra do § 7º, atinente a
inelegibilidade dos cônjuges e parentes, consangüíneos ou afins, dos titulares tornados
reelegíveis, que, interpretado no absolutismo da sua literalidade, conduz a disparidade
ilógica de tratamento e gera perplexidades invencíveis”42.
Com efeito, não era razoável que os parentes e o cônjuge fossem inelegíveis,
enquanto o titular do mandato podia reeleger-se, porquanto se admitiu com o implemento
da aludida emenda constitucional. Destarte, a jurisprudência optou por uma interpretação
conjunta e sistemática de alguns parágrafos do art.14 da CF, tendo em vista a nova
realidade constitucional, conforme a Ministra Ellen Gracie “a única solução razoável é a
que conjuga os ditames dos §§5º e 7º e lhes dá leitura condizente com os princípios que
informaram a redação das normas constitucionais”43.
A compatibilização da reeleição com a regra da inelegibilidade reflexa impõe que
daquela, que se refere somente aos chefes do executivo, surtam efeitos em relação aos
parentes e cônjuges. Logo, pode-se dizer que, se de um lado, o titular do mandato
determina a inelegibilidade de seu cônjuge ou parente, é pertinente que sua
desincompatibilização, no prazo legal, restitua-lhes a elegibilidade.
Desse modo, conforme Marcos Ramayana “se o chefe do executivo estiver no seu
primeiro mandato e se desincompatibilizar 6 (seis) antes da eleição libera seu parente
para fins de sucessão ao mandato eletivo, caso contrário, não é possível a sucessão”44.
Todavia, caso o chefe do executivo reeleito desincompatibilize-se, dentro do prazo legal,
seu parente e cônjuge apenas poderá pleitear mandatos diversos do cargo do titular.
No que concerne aos vices, adota-se a mesma regra aplicada ao titular, consoante
o Ministro Joaquim Gomes “o irmão do vice-prefeito poderá se candidatar ao mesmo
cargo de seu parente, ou ao cargo de prefeito, desde que o titular seja reelegível e se
desincompatibilize seis meses antes do pleito. Se o vice-prefeito assumir a prefeitura nos
seis meses anteriores ao pleito, seu irmão será inelegível” 45.
Em relação aos cônjuges, o TSE entende que a referida norma constitucional não
se refere somente àqueles que mantêm vínculo matrimonial com o chefe do executivo,
mas também recai sobre concubinos, uma vez que a Constituição reconhece a união
estável como entidade familiar. Além do mais, em relação às relações homoafetivas,
consoante o Ministro Gilmar Mendes “É um dado da vida real a existência de relações
homossexuais em que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato,
presume-se que haja fortes laços afetivos. Assim, entendo que os sujeitos de uma relação
estável homossexual (denominação adotada pelo Código Civil alemão), à semelhança do
que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de casamento, submetemse à regra de inelegibilidade prevista no art.14, §7º, da Constituição Federal”46.
No mais, consoante o entendimento da Corte Superior Eleitoral, o namoro não gera
inelegibilidade, uma vez que esta relação não se caracteriza como união estável. De
acordo com o Ministro Fernando Neves “a regra da inelegibilidade inserida no art. 14, §
7º, da Constituição Federal, não alcança aqueles que mantêm tão-somente um
relacionamento de namoro, uma vez que esse não se enquadra no conceito de união
estável”47.
42
Supremo Tribunal Federal, RE n. 344.882, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 06.04.2003.
Tribunal Superior Eleitoral, REspe 19.442, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 21.08.2001.
44 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 296.
45 Tribunal Superior Eleitoral. REsp 29.191; Decisão Monocrática ; Rel. Joaquim Benedito Barbosa Gomes;
Julg. 11/09/2008; PSESS
46 Tribunal Superior Eleitoral, RESPE 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004.
47 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.655, PA nº 16.337, Rel. Min. Fernando Neves, j. 11.03.2004.
43
138
No caso de dissolução do vínculo conjugal, é pacífico na jurisprudência do TSE que
caso ocorra durante o mandado do titular ainda subsistirá a inelegibilidade do cônjuge.
Consoante a Súmula nº 18 do STF “a dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no
curso do mandato, não afasta a inelegibilidade prevista no § 7º do artigo 14 da
Constituição Federal”48.
Todavia, caso a separação de fato tenha ocorrido antes do mandato, sendo
reconhecida através do Poder Judiciário durante o curso deste, o STF entende que não
se caracterizará a inelegibilidade. Conforme a Ministra Ellen Gracie “havendo a sentença
reconhecido a ocorrência da separação de fato em momento anterior ao início do
mandato do ex-sogro do recorrente, não há falar em perenização no poder da mesma
família (Consulta nº964/DF – Res./TSE nº 21.775, de minha relatoria)”49.
Ressalta-se que a dissolução de vínculo conjugal fraudulenta, com o intuito de
garantir a permanência de um mesmo grupo familiar no poder, assim reconhecida em
decisão judicial, gera inelegibilidade, conforme dispõe o art.1º, inciso I, alínea “n”, da Lei
64/1990, adicionado pela Lei 135/2010.
Não obstante, se o chefe do executivo vem a falecer durante seu primeiro mandato,
antes dos seis meses anteriores ao pleito, seus parentes e cônjuge tornar-se-ão elegíveis,
para disputar outros cargos na mesma circunscrição. Porém, apenas o ex-cônjuge será
elegível para sucessão do titular, e, sendo eleito, não poderá postular sua reeleição, pois,
consoante o TSE, “trata-se de hipótese vedada pelo art.14, §5º, da Constituição Federal,
por configurar o exercício de três mandatos seguidos por membro de uma mesma família
no comando do poder público”50.
Por outro lado, se o titular reeleito falece, ou tem seu diploma cassado, nos seis
meses anteriores ao pleito, persistirá a inelegibilidade do cônjuge e parentes. Todavia,
caso a morte, ou cassação, tenha ocorrido mais de seis meses antes das eleições, os
familiares do titular são elegíveis em relação a outros cargos naquela circunscrição. Frisese que nessa hipótese, a cassação e a morte produzem o mesmo efeito da
desincompatibilização.
3.3
INELEGIBILIDADE DOS MILITARES
Consoante a Carta Magna, os militares são servidores públicos que integram as
Forças Armadas, quais sejam, Exército, Marinha e Aeronáutica. No que concerne à
elegibilidade dos militares, dispõe o art.14, §8º, da CF, que o militar alistável é elegível, ou
seja, não estando conscrito, possui capacidade eleitoral ativa e passiva, porém, existem
certas peculiaridades que a própria Constituição conjecturou.
Dentro deste contexto, note-se que o sistema eleitoral brasileiro não admite
candidatos avulsos, desvinculados de um partido político, de modo que a filiação
partidária é uma das condições de elegibilidade, prevista no art.14, §3º, inciso V, da CF.
Pois, conforme Djalma Pinto, “o partido detém o monopólio da indicação dos postulantes
aos cargos eletivos, cabendo aos eleitores a escolha dos nomes, entre os apontados
pelas agremiações, para investidura na representação popular”51.
Contudo, a própria Constituição prevê que o militar ativo, em serviço, não pode
filiar-se a partido político, conforme dispõe o art.142, §3º, inciso V, que tem como intuito
manter os militares desvinculados da militância político-partidária.
48
RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 205.
Supremo Tribunal Federal. RE n. 446.999-5n. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 28.06.2005.
50 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 21.508, CTA nº 937, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j.
25.09.2003,
51 PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2010. p. 164
49
139
Dessa maneira, em que pese essa aparente antinomia entre normas
constitucionais, o TSE optou por uma interpretação construtiva da própria Constituição,
entende que “a filiação partidária contida no art. 14, § 3º, V, Constituição Federal não é
exigível ao militar da ativa que pretenda concorrer a cargo eletivo, bastando o pedido de
registro de candidatura após prévia escolha em convenção partidária”52.
Destarte, em razão dessa situação excepcional, ao militar abre-se uma exceção,
visto que para que ele seja candidato não necessita filiação partidária, apenas é
necessário que o partido, pelo qual ele pretende concorrer, indique-o através da
convenção partidária, com sua prévia aquiescência. Posteriormente, o militar deve pedir o
registro de sua candidatura ao órgão competente da Justiça Eleitoral, e informar sua
organização, sendo assim, atendidas estas exigências, supre-se a necessidade de
filiação.
Todavia, a partir de então, para que adquira totalmente a elegibilidade, o militar
deverá afastar-se do cargo, porém, somente após “(...) o deferimento do registro de
candidatura é que se dará, conforme o caso, a transferência para inatividade ou a
agregação”53.
Conforme dispõe a Lei Maior, o militar deverá afastar-se de suas atividades, se
contar menos de dez anos de serviço, sendo desligado da organização que pertence,
consoante o TSE “o afastamento do militar, de sua atividade, previsto no art. 14, § 8°, I,
da Constituição, deverá se processar mediante demissão ou licenciamento ex-officio, na
forma da legislação que trata do serviço militar e dos regulamentos específicos de cada
Força Armada”54.
Por outro lado, de acordo com o art.14, §8º, inciso II, da CF, se tiver mais de dez
anos de serviço, o militar será agregado pela autoridade superior, sendo afastado
temporariamente do serviço ativo.
Note-se, todavia, que este afastamento somente persistirá até ao ato de
diplomação do candidato militar. Caso seja eleito, ele passará para a reserva, caso
contrário, regressará às Forças Armadas.
Ademais, ressalta-se que o militar deverá afastar-se do cargo, dentro do prazo
legal, estabelecido pela Lei Complementar nº64/90, observando o período máximo para
que a Justiça Eleitoral defira seu registro de candidatura, e que tenha sido informado à
sua Força. Porém, não havendo desvencilhamento dentro deste período, o militar tornarse-á inelegível, por força de sua incompatibilidade, conforme entendimento da Corte
Superior Eleitoral. E, durante esse período o militar “ficará afastado da zona que exerceu
suas atividades funcionais, de modo que não poderá praticar qualquer atividade militar em
conjunto com seus comandados, influenciando ou intimidando o eleitorado, pondo em
desequilíbrio a isonomia do pleito”55, consoante Thales Cerqueira.
Contudo, frise-se que o militar inativo, que já estiver na reserva, deve filiar-se a
partido político dentro do prazo legal, sendo-lhe exigível a condição de elegibilidade
referente à filiação partidária, uma vez que os aludidos dispositivos constitucionais apenas
abrangem os militares na ativa.
Não obstante, caso o militar passe para inatividade a menos de um ano da escolha
em convenção, ele deverá filiar-se a partido político no prazo de 48 horas, contado da
entrada na inatividade, cumprindo, assim, a condição de elegibilidade relativa à filiação
partidária, conforme entendimento do TSE.
Noutro passo, filiado a partido político que, posteriormente, torna-se militar “perde
automaticamente a filiação, e, conseqüentemente, não pode ser eleito para cargo de
52
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.787, CTA n. 1.014, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j.
01.06.2004.
53 Tribunal Superior Eleitoral, REsp n. 20.169, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.09.2002.
54 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 20.598, CTA n. 571, Rel. Min. Costa Porto, j. 13.04.2000.
55 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 103.
140
direção partidária e praticar atos daí decorrentes”56, consoante precedente da Corte
Superior Eleitoral.
No mesmo sentido, ressalta-se que se aplica também aos magistrados e membros
do Ministério Público a vedação à atividade político-partidária, desse modo, no ato de
investidura, caso o servidor seja filiado a partido político, extingue-se a filiação, conforme
o TSE a “Filiação partidária não impede a investidura; esta é que impedirá, sob pena de
perda do cargo, a permanência daquela”57. Aos magistrados, essa limitação decorre do
art.95, parágrafo único, inciso III, da CF, devendo ser observado os prazos de
desincompatibilização previstos por lei complementar. Porém, em relação aos membros
do MP existe uma peculiaridade, visto que anteriormente a promulgação da EC
nº45/2004, que modificou a redação do art.128, §5º, da CF, era possível a candidatura.
Contudo, a partir da aludida emenda, restringiu-se o exercício de cargo eletivo sem o
devido afastamento definitivo daqueles de suas funções, consoante entendimento da
Corte Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise dos dispositivos constitucionais estudados e da legislação
infraconstitucional, trazida a lume, em obediência ao comando contido no § 9º, do artigo
14 da Constituição Federal, constata-se que houve um aprimoramento das regras que
versam sobre as inelegibilidades, sobretudo com a fixação de critérios legais, objetivando
igualar os postulantes, impedindo a pratica de posturas que atentem contra os princípios
da administração pública contidos na Lei Maior.
Nesse viés, conforme o exposto, depreende-se que as inelegibilidades, além de
limitadoras da capacidade eleitoral passiva, evidenciam a preocupação do legislador
constituinte em estatuir um verdadeiro filtro legal, a fim de proteger o regime democrático,
a probidade administrativa, e, acima de tudo, o interesse público, colocando a disposição
do eleitor, postulantes com conduta isenta de vícios que maculam a legitimidade de sua
candidatura.
Neste contexto sobressai com nitidez, a preocupação contida na Carta Magna de
resguardar o processo eleitoral e criar barreiras legais, objetivando preservar a
normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência e o abuso do poder político
e econômico, na obtenção do mandato popular e no exercício da função pública.
Note-se, no que concerne às inelegibilidades previstas diretamente na Lei Maior, coibi-se
com vigor, as condutas tendentes ao aproveitamento do exercício de cargo público,
especialmente, da chefia do poder executivo, em proveito próprio, ou de familiares,
interferindo no resultado de eleições.
A jurisprudência emanada do TSE tem interpretado de forma restritiva esses
dispositivos constitucionais, uma vez que podem acarretar na obstrução a um direito
fundamental do cidadão, porém, tem se posicionado firmemente, quanto à clareza destas
normas, coibindo as condutas repudiadas pela Constituição, interpretando-a sistemática e
construtivamente, sob a égide dos postulados constitucionais.
Os avanços trazidos pela legislação eleitoral, e pelo próprio legislador constituinte
reformador, no que tange a inelegibilidades, vem alçando o objetivo de afastar da vida
pública postulantes a cargos eletivos, descomprometidos com a ética, a moralidade e a
probidade administrativa, impedindo assim previsíveis danos ao erário público.
56
Tribunal Superior Eleitoral, RESPE 9.732; Rel. Min. Torquato Jardim, j.. 19.09.1992.
Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 10.137, Processo n. 4.964, Rel. Min. Néri da Silveira, j.
08.10.1976.
57
141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2011.
COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito eleitoral. 3. ed. São Paulo: Del Rey,
2010.
PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5.
ed. São Paulo: Atlas, 2010.
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.
______. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 205.
Supremo Tribunal Federal. RE nº 366.488; Rel. Carlos Velloso; Julg. 03/10/2005; DJU
28/10/2005.
______.
RE nº 344.882; Rel. Sepúlveda Pertence; Julg. 06/04/2003; DJ 06/08/2004; Pág.
22.
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ADI-MC 1805; DF; Tribunal Pleno; Rel. Min. Néri da Silveira; Julg. 26/03/1998;
DJU 14/11/2003; p. 00011.
______.
RE nº 344.882; Rel. Sepúlveda Pertence; Julg. 06/04/2003; DJ 06/08/2004.
Tribunal Superior Eleitoral. AAG 4598; 4598; Rel. Juiz Fernando Neves da Silva; Julg.
03/06/2004; DJU 13/08/2004.
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Resolução nº 20.165; PA nº 16.337; Rel. Nilson Naves; Julg. 07/04/1998; DJU
14/05/1998; Pág. 85.
______.
Resolução nº 20.165; PA nº 16.337; Rel. Nilson Naves; Julg. 07/04/1998; DJU
14/05/1998; Pág. 85.
______.
AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira; Julg.
15/10/2009; DJU 14/12/2009; Pág. 15.
______.
AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira; Julg.
15/10/2009; DJU 14/12/2009; Pág. 15.
______.
RESPE 23347; 23347; Rel. Juiz Carlos Eduardo Caputo Bastos; Julg. 22/09/2004;
PSESS 22/09/2004.
______.
RESPE 17132; 17132; Rel. Juiz Walter Ramos da Costa Porto; Julg. 14/09/2000;
PSESS 14/09/2000.
______.
AgRg-REsp 22.128; Rel. Min. Gilmar Mendes; Julg. 23/09/2004; PSESS
23/09/2004.
142
______.
AgRg-REsp 31.937; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Julg. 05/05/2009; DJU
02/06/2009; Pág. 36.
______.
RESPE 21707; 21707; Rel. Juiz Humberto Gomes de Barros; Julg. 17/08/2004;
PSESS 17/08/2004.
______.
AgRg-REsp 24.343; Rel. Min. Gilmar Mendes; Julg. 11/10/2004; PSESS
11/10/2004.
______.
Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando Neves; Julg. 09/10/2001; DJU
14/12/2001;
______.
Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando Neves; Julg. 09/10/2001; DJU
14/12/2001.
______.
Resolução nº 22.679; Consulta 1.471; Rel. Min. Antonio Cezar Peluso; Julg.
13/12/2007; DJU 11/02/2008.
______.
Resolução nº 22.679; Consulta 1.471; Rel. Min. Antonio Cezar Peluso; Julg.
13/12/2007; DJU 11/02/2008.
______.
Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando Neves; Julg. 09/10/2001; DJU
14/12/2001.
______.
Resolução nº 22.129; Consulta nº 1.179; Rel. Marco Aurélio; Julg. 15/12/2005;
DJU 13/03/2006.
______.
Resolução nº 21.696; Consulta 1.015; Rel. Fernando Neves; Julg. 30/03/2004;
DJU 26/04/2004.
______.
Resolução nº 21.487; Consulta 936; Rel. Barros Monteiro; Julg. 04/09/2003; DJ
16/09/2003.
______.
REspe 19.442; Rel. Min. Ellen Gracie; Julg. 21/08/2001; DJU 07/12/2001.
______.
RESPE 9.732; 12.589; Rel. Torquato Jardim; Julg. 19/09/1992; PSESS
19/09/1992.
______.
Resolução nº 10.137; Processo nº 4.964; Rel. Néri da Silveira; Julg. 08/10/1976.
143
A DISCURSIVIDADE NO TEXTO LEGAL: POSSIBILIDADES E LIMITES
DISCOURSIVITY IN LEGAL TEXT: POSSIBILITIES AND LIMITS
Aloísio Cansian Segundo
______________________________________
Acadêmico do 10º período do curso de Direito pelo UNICURITIBA e
do 6º período do curso de Filosofia pela UFPR
Integrante do Projeto de Iniciação Científica “Relações interdiscursivas entre Direito e
Literatura”, sob a orientação do Prof. Dr. Benedito Costa Neto e subvenção da Fundação
Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular - FUNADESP
144
RESUMO
O texto legal apresenta nítidas especificidades quando comparado a outros gêneros
dicursivos, tanto no que concerne à sua forma quanto à sua função. No entanto, por ser
um enunciado material, como qualquer outra espécie de texto está submetido ao
entrecruzamento de discursos em seus interstícios. Deste modo, o texto legal pode ser
perfeitamente lido a partir da análise do discurso, bastando para isso que se levem em
consideração as peculiaridades de gênero. O presente trabalho pretende, a partir das
contribuições de Michel Foucault, Mikhail Bakhtin, Michel Pêcheux e Teun A. van Dijk,
analisar como estas peculiaridades são relevantes para as possibilidades e para os limites
discursivos do texto legal, especificamente nos campos do poder, da interlocução e da
formação.
Palavras-chave: lei, análise do discurso, controles discursivos, gêneros textuais.
ABSTRACT
The legal text displays marked specificities when compared to other discoursive genders,
regarding both its form and its function. However, for being a material enunciation, like any
other kind of text it is submitted to the intersection of several discourses inside its
interstices. Thus, the legal text can be perfectly read through the perspective of discourse
analysis, simply by taking into account the peculiarities of gender. This work intends,
starting from the contributions of Michel Foucault, Mikhail Bakhtin, Michel Pêcheux and
Teun A. van Dijk, analyze how these peculiarities are relevant to the discoursive
possibilities and limits of the legal text, specifically in power, interlocution and formation
fields.
Keywords: law, discourse analysis, discursive controls, textual genders.
1
INTRODUÇÃO
A análise do discurso, compreendida não como uma disciplina, mas mais
propriamente como uma prática acadêmica, pode aclarar o substrato de formação e
conformação dos textos, levando a questão a um nível social e ideológico. Deter-se sobre
a estrutura dos textos pode revelar o entrecruzamento de discursos que produz a trama
sobre a qual determinado texto repousa, e a partir da qual age sobre o sujeito, impondo
suas condições, suas limitações e suas permissões do ponto de vista enunciativo. Deste
modo, o próprio ato de enunciação textual revela-se submisso à estrutura discursiva que
lhe precede e vincula – e, assim, abriga saberes ocultos, entremeados, não-ditos. Vários
autores se debruçaram sobre esta questão, dando enfoque não propriamente à estrutura
formal do texto, mas nas manifestações de subjetividade (em termos do poder e do saber)
que dão a possibilidade para sua ocorrência ou lhe inflam de sentido – colocando o sujeito
como o ponto central da análise discursiva.
Entretanto, quando a análise é levada ao campo jurídico, mais propriamente ao
campo do enunciado legal, a questão assume outras conformações, outras vias e
possibilidades. A lei, como texto e enunciado, também se submete às limitações e
travessias discursivas, e também permite manifestações subjetivas sub-reptícias. No
entanto, a maleabilidade discursiva da lei ocorre em medida diversa do que em outros
territórios do enunciado – um romance, um texto jornalístico, um livro didático, por
exemplo –, porquanto sua permeabilidade às manifestações subjetivas do indivíduo que
145
escreve é limitada. Isto ocorre porque o texto legal, em sua materialidade discursiva, é
rígido, uniforme, sujeito a protocolos específicos que estreitam a passagem das
manifestações subjetivas e das recorrências de construção discursiva.
Neste desiderato, a abordagem se pauta pela contribuição de quatro autores
tradicionais no campo da análise do discurso, ou de uma possível filosofia da linguagem.
Michel Foucault, em várias de suas obras, apresenta esta submissão, este
entrecruzamento, como um dos elementos de possibilidade das ciências humanas, no
sentido do desvelamento dos poderes e dos saberes que se manifestam nos textos. Em
sentido semelhante, Michel Pêcheux analisa o discurso do ponto de vista do
acontecimento, e como os eventos que circundam os enunciados podem determinar e
subverter sua materialidade e seu encadeamento lógico. Um tanto deslocado temporal e
espacialmente da linha francesa contemporânea, Mikhail Bakhtin lança uma ênfase
interessante sobre como as funções da linguagem e os gêneros do discurso podem tornar
os enunciados mais ou menos permeáveis à subjetividade. Uma outra abordagem
possível é trazida por Teun Adrianus van Dijk, que busca revelar como o discurso pode
tornar-se uma prática social carregada de poderes políticos e sociais, incentivando e
moldando condutas através da dominação do discurso público.
Assim, as funções discursivas que surgem a partir e através do texto legal
apresentam possibilidades peculiares em face de outros gêneros discursivos. Este
trabalho pretende investigar a questão a partir de três perspectivas: seus desníveis de
poder, de interlocução e de formação.
2
ENTRECHOQUE DE PODERES
Dentre as várias perspectivas possíveis na análise do discurso, o exame feito por
Michel Foucault caracteriza-se justamente por levar a questão ao campo dos saberes e
dos poderes ocultos nos interstícios dos discursos. A busca de regularidades discursivas
é o ponto de partida para o delineamento dos elos e das interconexões que se
manifestam na materialidade do enunciado, a partir e através do sujeito que enuncia. Nas
palavras do próprio Foucault (2009a, p. 30), trata-se de
encontrar, além dos próprios enunciados, a intenção do sujeito falante, sua
atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que
emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas
palavras manifestas, […] de reconstituir um outro discurso, de descobrir a palavra
muda, murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos, de
restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas escrita
e, às vezes, as desarruma.
Assim, qualquer texto possui, por detrás de si, uma grade de discursos que falam
(ou sussurram) nas suas entrelinhas, revelando saberes cujo percurso pode ser traçado
de modo mais ou menos preciso – é desta concepção que se cunha a expressão
“arqueologia do saber”. Foucault afirma, na mesma obra (2009a, p. 50), que as condições
para o aparecimento de um ou mais discursos envolvem um feixe complexo de relações
que “são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de
comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação, modos de
caracterização”, e que “determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para
poder falar de tais ou tais objetos, para poder abordá-los, nomeá-los, classificá-los”.
Partindo desse ponto de vista, Foucault vê ser possível traçar o percurso dos discursos a
partir do modo como se manifestam nos diferentes textos ou enunciados; como as
regularidades discursivas no discurso clínico, por exemplo, limitavam a abordagem de
146
certos temas e determinavam sua forma ‒ apresentando esta restrição como puramente
clínica, e não discursiva.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao texto legal: à lei só é dado tratar de
certos temas, relativos ao patrimônio, às relações civis, ao complexo de direitos e deveres
que constituem o indivíduo, aos danos que uma conduta divergente pode produzir na
sociedade, às consequências de tal conduta, etc. Não se confere à letra da lei qualquer
espécie de valoração subjetiva, porque a norma legal deve ser objetivamente apreensível
por todos. E, como qualquer outro enunciado, a lei revela saberes: seu conteúdo
normalmente pode ser compreendido observando-se a dinâmica das sociedades
anteriores, e o modo como determinados temas eram retirados do escopo da lei. O
conjunto de práticas legislativas reflete de modo mais ou menos preciso o conjunto de
práticas sociais.
Neste escopo, é importante destacar também uma função de seletividade presente
no discurso legal. De modo geral, o conteúdo da lei é restrito apenas a um grupo limitado
de indivíduos, tidos como os únicos aptos a trabalhar com os institutos jurídicos, a
interpretá-los, a descrevê-los. O modo como a lei é redigida, os termos que utiliza, a
localização dos termos na dinâmica das frases normativas torna a lei praticamente
ininteligível para os “não-iniciados”. Por mais que esta seja uma questão de formulação, é
certo que revela um tipo de poder social, uma segregação ou estratificação entre os
“doutores” e os “leigos”.
Foucault também aborda em outra obra (2009b, p. 9) a existência de controles
sobre a produção discursiva, e apresenta a hipótese da “interdição”: um poder, externo ao
discurso, que fixará o ponto limítrofe da enunciação. Há coisas sobre as quais não se
pode falar, ou ao menos não se pode falar abertamente em qualquer situação. A lei
também se submete às interdições sociais. É por conta delas, por exemplo, que o
regramento legal da morte no Código Civil Brasileiro (Livro V da Parte Especial) cria um
instituto intermediário (a figura da “sucessão”), para que não se trate diretamente da
morte, e transforma a morte em um evento que deflagra eventos meramente patrimoniais.
Em outras espécies de enunciados, como a literatura, como as valorações em torno da
morte são possíveis, seu aparecimento discursivo é mais complexo, rico.
Quanto a este ponto específico, a questão toca o limite entre o poder discursivo e o
poder político. A lei se pretende objetivamente cogente, mas é inconscientemente adstrita
ao conjunto de discursos que a precedem, e por isso é dotada de uma dupla coatividade:
além de perpetuar os discursos ocultos, vincula a conduta social dos indivíduos. Assim, a
sedimentação das forças discursivas na dinâmica da sociedade acaba se tornando mais
rápida e eficaz, porque a lei não pode ser questionada, mas apenas obedecida. A trama
discursiva e suas regularidades manifestadas no texto legal acabam se tornando não
apenas vinculativas, mas também indiretamente obrigatórias.
Neste contexto, Teun A. van Dijk, teórico holandês, estabelece uma relação entre o
domínio do discurso e o controle da conduta social. Por mais que leve a análise a um
território mais propriamente político, e que tome por pressuposto fático o poder exercido
pela mídia em face da sociedade, o raciocínio é perfeitamente aplicável ao monopólio da
produção legislativa. Se a lei está sujeita a grades discursivas como qualquer outro texto,
e se possui a característica complementar de perpetuar os discursos com maior eficácia,
consequentemente poderá ser utilizada como instrumento de dominação dos grupos
sociais que detém o poder de fato. Na análise das possíveis “dimensões do poder”, van
Dijk lista em primeiro lugar as instituições de poder (os governos, os parlamentos, etc.),
que podem “associar-se com seus gêneros de discurso específicos, eventos
comunicativos, tópicos, estilos e retóricas” (VAN DIJK, 2012, p. 55). Por meio dessas
relações estratégicas de dominação discursiva, é possível ao Estado incutir ideologias,
perpetuar práticas e vincular ações sociais. Psicologicamente,
147
Obtém-se um controle direto sobre a ação por meio de discursos que possuem
funções pragmáticas diretivas (força ilocutória), tais como comandos, ameaças,
leis, regulamentos, instruções e, mais indiretamente, por meio de recomendações
e conselhos […]. Nesse caso, consegue-se a aquiescência muitas vezes através
de sanções legais ou de outros tipos de sanção institucional. (VAN DIJK, 2012, p.
52)
A lei é o dispositivo mais eficaz à disposição do Estado para perpetuar práticas
sociais por meios enunciativos, pois funde as possibilidades do poder discursivo com a
objetividade do poder político. Se van Dijk parte da análise do discurso midiático para
relacioná-lo com o poder (consubstanciado na influência ideológica da sociedade em
favor das elites simbólicas), a lei adequa-se perfeitamente a uma rede semelhante de
poder discursivo-institucional – e com muito mais força, porque, ao contrário da
informação, a coatividade da lei atinge todos os cidadãos indistintamente.
Assim, a perspectiva do poder, tanto político quanto enunciativo, amplia o escopo
discursivo do texto legal.
3
A FUNÇÃO ENUNCIATIVA DA LEI
Outro aspecto importante é a função comunicativa da lei (tomada agora como
enunciado). Como materialidade discursiva, a lei é apenas uma das formas possíveis de
utilização da linguagem para a atividade humana, e, como tal, apresenta suas
peculiaridades na realização destas atividades. Em outras palavras, o texto legal possui
uma faceta essencialmente comunicativa, que envolve interlocução e responsividade.
Bakhtin coloca a questão nos seguintes termos:
Porque todo trabalho de investigação de um material linguístico concreto […]
opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) relacionados a
diferentes campos da atividade humana e da comunicação – anais, tratados,
textos de leis, documentos de escritório e outros […]. Ora, a língua passa a
integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente
através de enunciados concretos que a vida entra na língua. (BAKHTIN, 2011, p.
264)
Como fenômeno linguístico, o enunciado da lei representa uma unidade de
comunicação discursiva. Assim, pressupõe a existência de falantes e ouvintes, de
interação comunicacional, de uma certa postura por parte de quem fala e de quem
responde. Por mais que Bakhtin resuma a finalidade essencial da língua como sendo a
expressão do mundo individual do falante (BAKHTIN, 2011, p. 270), é certo que lhe
atribui, ainda que secundariamete, uma função comunicativa. E, neste sentido, a dinâmica
da interação comunicativa entre o prolator do discurso e seu “ouvinte” assume, para
Bakhtin, uma estrutura específica: em vez da passividade do ouvinte, espera-se por parte
deste uma “ativa posição responsiva”, ou seja,
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente
responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda
compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera
obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. (BAKHTIN, 2011, p. 271)
Tomando o texto da lei como um fenômeno comunicativo da língua (deixaremos a
questão da subjetividade para a próxima seção), a intersubjetividade assume contornos
muito peculiares. Afinal, quem são os sujeitos dessa relação comunicativa? Quem fala?
Quem ouve, e que tipo de resposta se espera do ouvinte? Em se tratando da lei, por
conta de sua função muito bem definida na dinâmica das relações sociais, é certo que
148
não se espera um “diálogo” propriamente dito, mas muito mais uma determinação
compreendida e cumprida pelos cidadãos.
Assim, quem prolata o discurso é, por pressuposto, o Estado, a figura abstrata e
descontínua do “legislador” – em última instância, ao menos no plano teórico-utópico, é a
própria sociedade. Na outra ponta, na figura do “ouvinte”, o cidadão, submetido às
determinações unilaterais e cogentes da norma; e tomado pela própria lei da perspectiva
da alteridade. O interlocutor da lei é “o outro”, submisso, vulnerável, compelido – por mais
que o Direito e as demais ciências sociais reafirmem, com razão, a coatividade da lei
como expressão e contraface do próprio poder do Estado. Por fim, como toda interlocução
exige uma “atitude responsiva” por parte do receptor, no caso específico da lei a situação
é muito mais clara: o Estado-prolator espera apenas a eficácia da norma no plano da
conduta do cidadão-interlocutor. A única ação responsiva perante o texto legal é o seu
cumprimento ou não-cumprimento (devidamente sancionado ou justificado), o que é
determinado pela posição do Estado em face dos cidadãos. O fundo político vincula a
função comunicativa da lei, e volta a remetê-la aos territórios do poder – no entanto, os
elementos da relação comunicacional estão claramente caracterizados, o que reafirma o
caráter discursivo do texto legal, ao menos no plano enunciativo.
Essa dinâmica da comunicação pelo texto legal – o Estado como único prolator, o
indivíduo como único ouvinte, a questão da eficácia como única resposta possível –
determina uma parcela considerável das possibilidades da discursividade na lei.
Paralelamente à questão do poder, a função comunicativa do texto legal traça os limites
precisos de suas condições discursivas.
4
O GÊNERO COMO FATOR LIMITADOR DA SUBJETIVIDADE
Devido às modalidades de criação e de surgimento do texto legal (sua aparência,
seu vocabulário tecnicista, sua estrutura intransponível para aqueles que não conhecem
os fundamentos da ciência jurídica, seu relativo distanciamento do mundo dos fatos), que
não deixa também de revelar estruturas de poder em um nível inferior à materialidade do
enunciado, fica claro que outra forma de controle se exerce sobre a lei: um ritual típico de
aparecimento, nos moldes do que afirma Foucault (2009b, p. 10) quando trata da
interdição como forma de controle ligada ao desejo e ao poder. No texto legal, as palavras
devem aparecer de uma forma bem específica, a voz passiva e a inversão de frases
dificultam a apreensão do objeto das normas, a repetição de termos é evitada, criam-se
termos exclusivamente jurídicos cujo significado é praticamente o mesmo de seus
correspondentes ordinários, termos estrangeiros (latinos, franceses, italianos) são
integrados ao léxico das leis e regulamentos.
Por conta dessa especificidade, a qual (inconscientemente, talvez) torna o texto da
lei relativamente uniforme e padronizado, os caminhos discursivos são novamente
afetados, por meio da contenção de um elemento fundamental na emergência dos
discursos: a subjetividade. Se o discurso precede o enunciado e o sujeito, ao mesmo
tempo é permeável a centelhas de subjetividade que o prolator imprime no próprio ato de
enunciação. Isso é visível no diálogo cotidiano, no texto jornalístico, no texto literário,
didático, etc., os quais permitem essa transposição (do sujeito através do discurso) com
maior facilidade; entretanto, há determinados gêneros textuais que filtram a subjetividade
devido à sua função, sua forma ou sua circunstância específica.
Bakhtin (2011, p. 270) entende ser a função primordial da linguagem expressar o
“mundo individual do falante”, de modo que
a essência da linguagem nessa ou naquela forma, por esse ou por aquele
caminho, se reduz à criação espiritual do indivíduo […]. O enunciado satisfaz ao
seu objeto (isto é, ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao próprio
149
enunciador. Em essência, a língua necessita apenas do falante – de um falante –
e do objeto de sua fala. (BAKHTIN, 2011, p. 270)
No entanto, mais adiante, Bakhtin (2011, p. 282) aborda a questão dos gêneros do
enunciado (definidas por ele como as “formas relativamente estáveis e típicas de
construção do todo”), e de como a escolha – no caso da lei, não se trata de uma
“escolha”, mas simplesmente da perpetuação involuntária de uma estrutura já definida –
do gênero enunciativo obedece às circunstâncias específicas do falante, relativas à
situação, à posição social, e às relações pessoais de reciprocidade entre os
interlocutores. Assim, há certos gêneros que, por elevados, oficiais ou respeitosos,
adquirem formas padronizadas estáveis e nos quais “só leves matizes de uma entonação
expressiva […] podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivoemocional)” (BAKHTIN, 2011, p. 284). Assim, a conformação do texto legal seleciona de
modo muito claro as parcelas de subjetividade que serão transpostas à materialidade do
enunciado, dominando seu aparecimento e suas manifestações. Trata-se de um controle
muito específico, peculiar, próprio da lei, que novamente determina suas condições
discursivas.
Ainda no campo da subjetividade, outro espectro de análises é possível: desta vez
a partir da perspectiva fornecida por Michel Pêcheux, o qual situa o enunciado no centro
de um cruzamento de discursos. O enunciado seria, para Pêcheux, equívoco – porque os
discursos que se obliquamente entrechocam ao seu redor possuem significações
distintas. Sobre um enunciado, é perfeitamente possível a tentativa de parafraseá-lo; no
entanto, tal tentativa redundaria sempre em confrontos discursivos, porque apesar de a
remissão coincidir ao mesmo fato, não se constroi a mesma significação (PÊCHEUX,
2008, p. 20). Neste ponto específico, Pêcheux se vale da distinção feita por Frege, teórico
da lógica formal, entre Sinn (significado) e Bedeutung (referência); e demonstra como
estas constelações discursivas rompem o nexo lógico dos enunciados.
Na obra em comento, Pêcheux descreve como o enunciado “on a gagné” (algo
como “ganhamos”, em tradução livre) é matizado pelo contexto dos acontecimentos que
cercam a vitória presidencial de François Mitterand na França, em 1981. A cada nova
enunciação, o fato ganha novos contornos, a depender dos feixes discursivos que lhe dão
substrato. Assim, um enunciado a princípio opaco é inflado pelo que se poderia chamar
de uma “subjetividade coletiva”, ou seja, uma variância de significados sobre o mesmo
enunciado estruturada sobre as possíveis concepções de um mesmo fato.
A partir do exemplo de um acontecimento, o do dia 10 de maio de 1981, a questão
teórica que coloco é, pois, a do estatuto das discursividades que trabalham um
acontecimento, entrecruzando proposições de aparência logicamente estável,
suscetíveis de resposta unívoca (é sim ou não, é x ou y, etc.) e formulações
irremediavelmente equívocas. (PÊCHEUX, 2008, p. 28)
Um raciocínio semelhante pode ser desenvolvido a partir do texto legal. A lei, como
enunciado, pode também ser caracterizada como um “evento coletivo”, um fato que
submete e vincula todos os indivíduos. Por isso, caracteriza-se por conjunturas fáticas
que a matizarão, inflarão seu significado de acordo com as circunstâncias políticas e
sociais que a circundam; é, portanto, possível afirmar que a lei, como enunciado-evento,
absorve os discursos sociais. Esse é um dos motivos pelos quais há conflitos normativos
hermenêuticos, tanto no plano jurisdicional quanto no acadêmico (sem esquecer as
eventualmente prosaicas valorações individuais): apesar de constituir um único
enunciado, o texto da lei é por essência equívoco; logo, admite tantas valorações quantos
serão os intérpretes. É por isso que se justifica o esforço hermenêutico diante da qualquer
norma, ainda que o resultado de tal esforço seja apenas mais uma manifestação
discursiva. Além disso, a lei é uma construção enunciativa cujo aparecimento se submete
150
à estrutura discursiva já preexistente – de modo que, no campo da subjetividade coletiva,
reproduz os mesmos discursos, continuando seu fluxo.
Assim, se por um lado o surgimento do texto legal como gênero do enunciado limita
a emergência subjetiva, por outro, admite valorações coletivas e desvios de significado
por meio de uma subjetividade descontínua, plural, no âmbito do acontecimento.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para cada vértice discursivo apontado pela análise do discurso (como prática
acadêmica), o Direito apresentará uma razão jurídica que a justifique. A teoria geral do
Direito afirmaria, por exemplo, que a lei deve ser objetiva tanto quanto possível, para que
os subjetivismos morais não interfiram na interpretação e na aplicação da norma; ou que
a terminologia da lei deve respeitar as especificidades dos institutos jurídicos e preservar
uma técnica específica. De todo modo, é nítido que as justificativas jurídicas para os
percursos discursivos do texto legal simplesmente deslocariam a questão para outro
plano: por qual caminho se chegou a tais ou quais conclusões; quais as conjunturas
histórico-sociais que desembocaram na objetividade e na técnica legislativa; quais fluxos
de poderes podem ser mapeados no âmbito da teoria geral do Direito? Trata-se,
fundamentalmente, da mesma problemática discursiva, desterritorializada, mas ainda
assim visível.
A lei atua como um universo possível de criação do real. Por meio dela, uma faceta
do indivíduo é manifestada, um plano jurídico, um âmbito no qual se desenvolvem
relações específicas por meio da delimitação precisa de sua atuação e de sua
enunciação. Assim, o texto legal, para além de vincular as condutas individuais,
efetivamente constroi uma parte do sujeito, forma e conforma o homem-jurídico a partir
não somente do conteúdo normativo, mas também (e principalmente) dos feixes
discursivos situados sob sua materialidade visível.
Seja no âmbito do poder, da interlocução ou da formação dos enunciados legais, é
certo que a lei reveste-se de um caráter discursivo. Submete-se, portanto, a saberes, a
poderes, a limites, a controles, a valorações – é um enunciado como qualquer outro,
conquanto apresente suas peculiaridades no que tange às possibilidades discursivas. Os
trajetos discursivos no texto legal, então, são delimitáveis à sua maneira, porque
formados pelo cruzamento de poderes discursivos e políticos, porque construídos
interlocutoriamente em uma dinâmica de interação entre o Estado e o cidadão, e, apesar
de limitar as manifestações subjetivas do falante, porque permitem valorações subjetivas
na conjuntura fática da coletividade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6 ed. Tradução de Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 2011.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
______. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
PÊCHEUX, Michel. O discurso – estrutura e acontecimento. Tradução de Eni Orlandi.
São Paulo: Pontes, 1999.
151
VAN DIJK, Teun Adrianus. Discurso e poder. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
152
A CISG E O INSTITUTO DO NACHFRIST
THE CISG AND THE NACHFRIST
Bruna Bauer King
______________________________________
Academica do curso de Direito do UNICURITIBA
Integrande do grupo de iniciação científica em arbitragem e contratos internacionais e
participante do Vis Moot em 2012 e 2013
153
RESUMO
O presente artigo visa abordar a Convenção de Viena de 1980 (CISG) bem como um de
seus institutos, ainda desconhecido ao ordenamento jurídico brasileiro: o Nachsfrist. Tal
ferramenta constitui verdadeira inovação ao sistema vigente e, assim como as demais
novidades trazidas com a aprovação da Convenção, deve ser estudada a fundo para sua
melhor compreensão e utilização. O Nachfrist consiste em uma extensão de tempo
garantida a uma das partes em um negócio jurídico, para que esta execute suas
obrigações contratuais. Basicamente, o instrumento configura uma opção em detrimento
da resolução imediata do contrato, inserindo a flexibilidade necessária da qual as relações
jurídicas internacionais necessitam.
Palavras-chave: CISG, Nachfrist, extenção de tempo.
ABSTRACT
The present article aims to address the Vienna Convention of 1980 (CISG) as well as one
of its institutes, still unknown to the national legal system: the Nachsfrist.
This tool represents a true innovation to the current system and, like other instruments
introduced with the adoption of the Convention, it should be deeply analyzed, in order to
understand it and use it. The Nachfrist consists of an extension of time granted to one
party in a transaction for it to perform its contractual obligations. Basically, the instrument
configures an option to be used instead of the immediate resolution of contract, giving the
flexibility which the international relations requires.
Keywords: CISG, Nachfrist, extention of time.
1
INTRODUÇÃO
O Brasil aprovou no dia 04 de março deste ano a Convenção de Viena das Nações
Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG),
tornando-se o 79 Estado-Membro da Convenção. A norma jurídica entrará em vigor em 01
de abril de 2014 e trará um padrão uniforme e equitativo para os contratos de sua esfera
de aplicação1.
A Convenção nasceu em 1980 e veio para estabelecer um padrão, com vistas à
unificação do direito comercial na era pós-guerra2.
Assim, a CISG representa uma resposta à necessidade de uma lei uniforme de compra e
venda internacional de ampla aceitação. A lei foi aderida por uma considerável quantidade
de nações, abrangendo os cinco continentes e diversas culturas e sistemas legais pelo
mundo.
A Convenção se aplica a contratos cujas partes possuem sede negocial em países
distintos, ou se as regras de conexão de direito internacional levarem à aplicação da lei de
um Estado-Membro da Convenção. A CISG ainda pode ser aplicada por meio da escolha
1
Site da ONU/BR - http://www.onu.org.br/brasil-adere-a-convencao-da-onu-sobre-contratos-internacionaisde-compra-e-venda-de-mercadorias/
2 Harold S. Burman, Building on the CISG: International Commercial Law Developments and Trends for the
2000’s, 17 J.L. & COM. 355 (1998). Efforts to unify international commercial law date back to the 1930s,
under the initiative of the International Institute for the Unification of Private Law, pg. 28
154
das partes, nos casos de países que permitem a escolha de lei pela autonomia da
vontade3.
Considerando a ratificação da lei pelo Brasil, bem como a contínua globalização
das relações comerciais no país, a familiaridade com as disposições contidas na CISG se
torna essencial.
Com vistas a tal fato, o presente artigo pretende analisar um de seus institutos, ainda
desconhecido para o ordenamento jurídico brasileiro.
Em seu art. 47, a Convenção traz a possibilidade de se fixar uma extensão de tempo para
que uma das partes execute suas obrigações, no caso de estas não terem sido
executadas, ou na ocasião de uma execução falha.
Como o Código Civil brasileiro não traz qualquer disposição homologa a esta, a inovação
trazida pela CISG será brevemente introduzida neste trabalho.
2
O ARTIGO 47 DA CISG E SUA ORIGEM
O artigo 47 da CISG concede às partes o direito de fixar um período de tempo
adicional para que uma delas cumpra suas obrigações:
Art. 47: (1) O comprador pode conceder ao vendedor um prazo suplementar de
duração razoável, para a execução das suas obrigações.
2) A menos que o comprador tenha recebido do vendedor uma notificação
informando de que não este não cumpriria suas obrigações no prazo assim
concedido, ele não pode, antes da expiração desse prazo, prevalecer- se de
qualquer dos meios de que dispõe em caso de contravenção ao contrato. O
comprador não perde, no entanto, por este fato, o direito de exigir indenização por
perdas e danos pelo atraso na execução 4.
O dispositivo tem sua procedência de sistemas legais de origem germânica, nos
quais recebe o nome de Nachfrist5.
Contudo, deve-se destacar que, conforme o art. 7(1) da Convenção, sua
interpretação deve se dar sem a influência de princípios encontrados em leis domésticas6,
logo, o conceito como é encontrado nos sistemas germânicos não deve servir de base
para a interpretação do art. 47 da CISG.
O art. 47 estabelece que, tanto o comprador como o vendedor, podem fixar um
tempo adicional para que a outra parte cumpra suas obrigações, independentemente se
tal obrigação é principal ou acessória7.
Para o comprador, o período de extensão pode ser aplicado para o vendedor
entregar os bens, substituí-los em caso de não conformidade, repará-los, entregar
documentos necessários ou praticar outros atos referentes ao contrato, como por
exemplo, a montagem das mercadorias8.
3
Ingeborg Schwenzer, Christiana Fountoulakis, Mariel Dimsey, International Sales Law: a guide to CISG,
pg. 1
4 Article 47 of CISG:
(1) The buyer may fix an additional period of time of reasonable length for performance by the seller of
his obligations.
(2) Unless the buyer has received notice from the seller that he will not perform within the period so
fixed, the buyer may not, during that period, resort to any remedy for breach of contract. However,
the buyer is not deprived thereby of any right he may have to claim damages for delay in
performance.Tradução: Prof.ª Dr.ª Iacyr de Aguilar Vieira. Data da publicação neste website: 09/03/2011.
5 Schwenzer, Fountoulakis, Dimsey, op. cit., pg. 369
6Bruno Zeller: GUIDE TO ARTICLES 47 & 49(1)(b): http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/text/peclcomp47.html
7 Peter Schlechtriem, Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG), 1998,
pg. 395.
8Id.
155
Para o vendedor, por sua vez, o período adicional pode ser aplicado para que o
comprador realize atos necessários para que a entrega possa ser feita, também para que
o comprador possa tomar a posse dos bens ou para que pague as mercadorias9.
3
OS REQUISITOS NO NACHFRIST
3.1 A
UM PERÍODO DE RAZOÁVEL DURAÇÃO
Para que o Nachfrist exista, é necessário que a parte fixe um período de tempo
adicional razoável.
O primeiro requisito é que tal período de tempo seja específico. Assim, o mero
pedido de desempenho da obrigação, por si só, não é suficiente para que o dispositivo do
art. 47 seja efetivado10, devendo as partes estipular uma data determinada para o fim do
Nachfrist.
Cabe salientar que a determinação deste prazo não requer forma específica. Neste
sentido, a jurisprudência internacional demonstra que a mera tolerância por uma das
partes, do atraso na execução da obrigação pela outra parte, é suficiente para restar
caracterizada a extensão de tempo positivada pelo art. 47 (Rolled steel case)11.
O segundo requisito quanto à fixação do Nachfrist, é que tal período de tempo deve
ser razoável. Tal adjetivo, contudo, dependerá em grande parte das circunstâncias que
permeiam cada caso, podendo abrir espaço para incertezas, posto que são muitos os
fatores que envolvem a estipulação de um tempo que possa ser considerado como
razoável12.
Assim, de acordo com Professor Peter Schlechtriem, algumas questões devem ser
analisadas para que se determine se a extensão de tempo, em um determinado caso, é
razoável ou não13.
Primeiramente, deve-se avaliar o período de tempo inicialmente estipulado pelo
contrato, posto que transações com datas de entrega mais curtas justificam um período
adicional também mais curto e vice-versa.
O interesse do comprador na rápida entrega das mercadorias e o conhecimento do
vendedor sobre tal preocupação, quando da conclusão do contrato, também devem ser
objetos de observação na hora de determinar o que será entendido como razoável para
um determinado caso.
Posteriormente, deve ser analisada a natureza da obrigação, posto que um período
mais longo pode ser considerado razoável quando o contrato tem por objeto maquinário
de fabricação complexa e exclusiva, por exemplo. Diferentemente do que ocorre com
bens fungíveis, fabricados por atacadistas, caso em que o tempo adicional razoável
poderia ser mais curto.
Por fim, para que se chegue a um período de tempo razoável, deve ser analisada a
natureza do impedimento que levou à impossibilidade da entrega dentro do tempo
estipulado14, sendo que um lapso de tempo mais longo será aceitável quando o óbice for
imprevisível ou fora do controle da parte.
9
Id.
Id.
11 Rolled steel case, disponível em http://cisgw3.law.pace.edu/cases/971103s4.html. Acesso em 30-042013.
1 12Joseph Lookofsky, The 1980 United Nations Convention on Contracts for the International Sale of
Goods, pg. 350
13 Schlechtriem,op. cit., pg. 396
14Schlechtriem,op.cit., pg. 396
10
156
Existe uma diferencia essencial entre um Nachfrist estipulado com razoabilidade e
aquele estipulado de forma muito curta.
Mas para que tal diferença seja esclarecida, faz-se preciso analisar o art. 49, 2
(ii) da Convenção:
Artigo 49:
(2) Todavia, se o vendedor tiver entregue as mercadorias, o comprador perderá o
direito de declarar o contrato rescindido, a não ser que o faça:
(ii) após o vencimento do prazo suplementar fixado pelo comprador conforme o
parágrafo (1) do artigo 47, ou após o vendedor declarar que não executará suas
obrigações no referido prazo suplementar, ou
Tal dispositivo traz a possibilidade de resolução do contrato na hipótese de a outra
parte não cumprir com sua obrigação dentro do tempo adicional concedido para tal fim.
Assim, ainda que a parte execute a obrigação, se esta se der após o lapso do
período fixado pelo Nachfrist, a outra parte ainda detém o direito de rescindir o contrato.
Entretanto, este direito fica excluído em caso de o Nachfrist não ser de razoável
duração. Ou seja, se o período fixado carecer de razoabilidade, sendo claramente muito
curto, a parte lesada não poderá exercer o direito de rescisão do contrato, a não ser que a
quebra contratual seja fundamental15.
Para o entendimento desta disposição, imperioso faz-se analisar outra inovação
inserida pela CISG: a graduação da quebra contratual.
Diferentemente do que ocorre no sistema brasileiro, a Convenção de Viena de 80
faz distinção entre os tipos de quebra contratual, sendo a quebra fundamental aquela apta
a frustrar completamente a expectativa da outra parte com relação ao objeto contratual16.
Assim, frente a um Nachfrist de curta duração, apenas esta espécie de quebra –
fundamental - poderia dar ensejo à rescisão do contrato devido ao inadimplemento de
uma das partes.
4
APÓS O NACHFRIST SER FIXADO
Após o período adicional de tempo ser fixado por uma das partes, esta não pode
recorrer a nenhum outro remédio até que tal período se esgote 17, mesmo que o
inadimplemento constitua uma quebra contratual fundamental.
A parte que optou pelo Nachfrist pode apenas recorrer a outros remédio em duas
situações: no caso de a parte inadimplente se recusar a executar sua obrigação, sendo
que, frente a tal situação, não é preciso esperar o período adicional se esgotar para que
outros remédios previstos pela CISG sejam utilizados; e se o período adicional expira e a
parte em quebra continua a não cumprir sua obrigação18.
Nas duas situações, a parte lesada tem o direito de rescindir o contrato, requerer
perdas e danos, além de outros direitos assegurados pela Convenção19.
De se destacar que, ainda que o Nachfrist seja devidamente fixado e a obrigação
executada durante a extensão de tempo concedida, a parte lesada resguarda o direito de
pedir perdas e danos devido à execução tardia, e tal fato está expresso no texto da lei:
15
Id, p. 397
Lauro Gama Jr., A hora e a vez da Convenção de Viena, publicado no jornal Valor Econômico em
22/09/2009.
17 CISG, arts. 47(2), 63(2); Schlechtriem, op.cit, pg. 399.
18 Id.
19 Id.
16
157
2) A menos que o comprador tenha recebido do vendedor uma notificação
informando de que não este não cumpriria suas obrigações no prazo assim
concedido, ele não pode, antes da expiração desse prazo, prevalecer- se de
qualquer dos meios de que dispõe em caso de contravenção ao contrato. O
comprador não perde, no entanto, por este fato, o direito de exigir
indenização por perdas e danos pelo atraso na execução 20.
Assim, o fato de a obrigação ter sido cumprida dentro do prazo estipulado pelo
Nachfrist, não exclui qualquer direito ao pleito de danos oriundos pelo atraso.
Neste sentido, John O. Honnold esclarece que tais danos incluem também
aqueles gerados durante o Nachfrist, e este entendimento é coerente com a regra geral
do artigo 45(2)21 da Convenção, o qual impõe que o comprador não é privado do direito à
indenização das perdas e danos por exercer seu direito a outras ações.
Assim, Segundo o doutrinador, o exercício do artigo 47 impossibilita a alegação
de que uma modificação foi acordada ou que houve uma renúncia ao direito de requerer
danos resultantes do cumprimento tardio22.
5
OS OBJETIVOS DO ART. 47 DA CISG
O propósito por trás da extensão de tempo garantida pelo art. 47 é explicado pelo
fato de a CISG ter como um de seus princípios a continuidade da relação contratual,
enquanto houver possibilidade de execução das obrigações23.
A ideia de preservação das relações jurídicas é, assim, objeto central da
Convenção, logo, o termino destas deve apenas ocorrer em situações extremas. Este
princípio da força obrigatória contratual não é apenas uma obrigação moral, mas também
figura item essencial do ponto de vista econômico, uma vez que reduz as frustrações dos
contratantes quanto às obrigações por eles assumidas24. Neste sentido, Joseph
Lookofsky explica que o Nachfrist seria uma segunda chance dada às partes para que
cumpra com sua obrigação25.
Além disto, o art. 47 tem a função de eliminar incertezas frente a não entrega de
mercadorias no tempo estipulado pelo contrato.
Em um primeiro momento, a notificação do Nachfrist dá uma resposta objetiva
sobre se a mercadoria vai ser entregue ou não, e em caso positivo, o dispositivo clarifica
quando tal entrega se dará26.
Ademais, a extensão de tempo viabilizada pelo artigo 47 ainda acaba com a
incerteza do comprador quanto à necessidade ou não rescisão contratual.
20
Article 47 CISG:
(1) The buyer may fix an additional period of time of reasonable length for performance by the seller of
his obligations.
(2) Unless the buyer has received notice from the seller that he will not perform within the period so
fixed, the buyer may not, during that period, resort to any remedy for breach of contract. However,
the buyer is not deprived thereby of any right he may have to claim damages for delay in
performance.Tradução: Prof.ª Dr.ª Iacyr de Aguilar Vieira. Data da publicação neste website: 09/03/2011.
21 (2) O comprador não perde o direito à indenização das perdas e danos por exercer seu direito a outras
ações.
22 John O. Honnold, Uniform Law for International Sales under the 1980 United Nations Convention, 1999,
pg, 313-317
23Zeller: op. Cit
24 Lauro Gama Jr., op. cit.
25Lookofsky, op. cit.
26 Chengwei Liu, Additional Period (Nachfrist) for Late Performance: Perspectives from the CISG, UNIDROIT
Principles, PECL and Case Law, pg. 5.
158
Isto porque, de acordo com Chengwei Liu, no momento da inadimplência da parte,
nem sempre é possível averiguar se tal fato irá geral uma quebra essencial do contrato ou
não, consequentemente, não há base sólida para que se opte com convicção pela
rescisão do negócio ou por sua continuidade27. Com o art. 47, contudo, é possível que se
conceda uma extensão de tempo, cujos acontecimentos durante ele, permitem definir se
houve ou não a quebra fundamental do contrato.
Desta forma, o Nachfrist constitui uma arma em favor da continuidade das relações
contratuais, bem como um instrumento que dá direção à parte lesada frente às incertezas
geradas pelo descumprimento de obrigações.
6
CONCLUSÃO
A assinatura da Convenção de Viena de 1980 pelo Brasil deixará os juristas em
contato com as inovações introduzidas pela nova lei. O art. 47 é uma destas importantes
novidades da CISG. O chamado Nachfrist constitui flexível instrumento, através do qual
se permite que a concessão de um prazo adicional para execução de obrigações
contratuais pendentes.
Através deste procedimento, a parte prejudicada tem a oportunidade de expressar
seu interesse na continuidade da relação negocial, oferendo a outra parte uma nova
chance para o cumprimento do contrato. Ademais, a ferramente permite que a parte
lesada não seja obrigada a decidir de imediato acerca da essencialidade da quebra
contratual e, consequentemente, acerca da necessidade de rescindir o negócio.
Assim, este instituto desmontra-se compatível com os anceios das relações
negociais, principalmente as internacionais, as quais requerem flexibilidade, dinamismo e
segurança jurídica, para que, ao mesmo tempo que se adequem às peculiariedades de
contratos travados entre agentes provenientes de culturas diversas, estes instrumentos
concedam a devida previsibilidade e homogeinidade esperada pelo contratantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ZELLER, Bruno. Guide To Articles 47 & 49(1)(B). Disponível
<http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/text/peclcomp47.html> Acesso em 29 abr. 2013.
em:
LIU, Chengwei. Additional Period (Nachfrist) for Late Performance: Perspectives from
the CISG, UNIDROIT Principles, PECL and Case Law Commentary on Art. 43 of the 1978
Draft [draft counterpart of CISG Art. 47]: Comment 2. Disponível em:
<http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/text/secomm/secomm-47.html>. Acesso em 25 mar.
2013.
BURMAN, Harold S. Building on the CISG: International Commercial Law
Developments and Trends for the 2000’s. 1998.
SCHWENZER, Ingeborg; FOUNTOULAKIS, Christiana; DIMSEY, Mariel. International
Sales Law: a guide to CISG. 2012.
27
Secretariat Commentary on Art. 43 of the 1978 Draft [draft counterpart of CISG Art. 47]: Comment 2;
disponível em: <http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/text/secomm/secomm-47.html>
159
LOOKOFSKY, Joseph. The 1980 United Nations Convention on Contracts for the
International
Sale
of
Goods.
Disponível
em:
<http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/loo47.html> Acesso em 25 abr. 2013.
HONNOLD, John O. Uniform Law for International Sales under the 1980 United
Nations Convention. 1999.
Gama Jr, Lauro. A hora e a vez da Convenção de Viena, publicado no jornal Valor
Econômico em 22 set. 2009.
Schlechtriem, Peter. Commentary on the UN Convention on the International Sale of
Goods (CISG). 1998.
160
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE DE ACORDO
COM O ARTIGO 79 DA CISG
Luana Costa Veronesi
______________________________________
Artigo produzido com base nos estudos do grupo de iniciação científica “Arbitragem como
instrumento para solução de conflitos decorrentes de contratos internacionais”
Orientação dos professores Felipe Hasson e Rodrigo Vidal
161
RESUMO
Nas relações contratuais privadas internacionais, é muito freqüente que as partes adotem
uma lei como a CISG para governar o contrato, afinal, diferentes interpretações do
contrato pelas partes são muito comuns. Desta forma, a CISG uniformiza tais
discrepâncias e facilita a interpretação e solução para o conflito de leis. Neste estudo,
daremos destaque ao Artigo 79 da CISG, relacionado à exclusão de responsabilidade de
umas das partes em caso de inadimplemento com uma das cláusulas do contrato. Tal
tema é de extrema fragilidade, visto que ao assinar um contrato de partes de diferentes
países, cada parte passa por situações econômicas e sociais distintas, ficando suscetível
a eventos que, muitas vezes, a impedem de cumprir com o contrato com êxito.
Palavras-chave: contrato, CISG, exclusão de responsabilidade, Artigo 79.
ABSTRACT
In the international private contractual relations, it is very usual the parties to adopt
legislation such as the CISG in order to govern the contract signed between them, due to
the fact that different interpretations of the contract by the parties are very common. Thus,
the CISG standardizes such discrepancies and facilitates the interpretation and the
solution for the conflict of laws. In this study, the article 79 of the CISG, which relates to
the exemption of liability by one of the parties in case of non performance, will be
highlighted. Such subject is of extreme fragility as, when parties from different countries
sign a contract, each party goes through distinct economic and social situations, being
susceptible to events that sometimes deprive it from complying to the contract
successfully.
Keywords: contract, CISG, exemption from liability, Article 79.
1
FUNÇÃO DA CISG
Tendo em vista o atual cenário do comércio mundial, fica claro que o intercambio
de produtos e mercadorias entre empresas privadas de diferentes países tornou-se uma
prática bastante comum. Apesar de, muitas vezes, haver uma distância física significativa
entre vendedor e comprador, acarretando em altos custos de frete, ainda assim o
comércio internacional faz-se vantajoso. Todavia, ao celebrar um contrato internacional,
não é raro ocorrer um conflito entre as leis dos países das empresas contratantes,
especialmente se forem de sistemas jurídicos diferentes.
A fim de solucionar tal conflito de leis, existem certas regras de direito internacional
privado, às quais os países podem adotar, visando uniformizar tais discrepâncias. Neste
caso, teremos como base a CISG (United Nations Convention on Contracts for the
International Sale of Goods) ou, em português, CVIM (Convenção de Viena Sobre
Contratos de Compre e Venda Internacional). O texto da CISG foi adotado em 10 de abril
de 1980, sendo que a Convenção foi aberta para assinatura e adesão no dia 11 de abril
de 1980. O Brasil foi o 79 país a ratificar a convenção, em 4 de março de 2013, entrando
efetivamente em vigor no dia 1 de abril de 2014.
A função de tal Convenção é governar um contrato celebrado entre partes de
diferentes países – que devem ser signatários da Convenção - e, constando no contrato
uma cláusula arbitral, seria a lei escolhida pelas partes para aplicar ao mérito do caso.
162
A CISG possui um artigo relacionado ao inadimplemento de obrigações contratuais,
o artigo 79 – o qual será abordado neste estudo, que visa compreender quais os
requisitos necessários para que uma das partes do contrato se torne isenta de
responsabilidade por não cumprir com alguma cláusula do contrato.
2
ARTIGO 79
O artigo 79 da CISG compreende as situações em que uma das partes pode se
tornar isenta de responsabilidade em caso de inadimplemento com alguma de suas
obrigações. Muitas vezes, o não cumprimento com o contrato é uma conseqüência de um
subcontrato de uma das partes, ou alguma catástrofe natural, acarretando em prejuízo
tanto para vendedor, comprador, e terceiros envolvidos. Não raro é isso ocorrer, afinal,
existe uma forte dependência entre diversos setores de produção, envolvendo desde o
recolhimento da matéria prima, até o serviço de transporte utilizado para que a
mercadoria chegue ao seu destino final.
Artigo 79 (1)
Nenhuma das partes será responsável pelo inadimplemento de qualquer de suas
obrigações se provar que tal inadimplemento foi devido a motivo alheio à sua
vontade, que não era razoável esperar fosse levado em consideração no momento
da conclusão do contrato, ou que fosse evitado ou superado, ou ainda, que
fossem evitadas ou superadas suas consequências.
(2) Se o inadimplemento de uma das partes for devido à falta de cumprimento de
terceiro por ela incumbido da execução total ou parcial do contrato, esta parte
somente ficará exonerada de sua responsabilidade se:
(a) estiver exonerada do disposto no parágrafo anterior; e
(b) o terceiro incumbido da execução também estivesse exonerado, caso lhe
fossem aplicadas as disposições daquele parágrafo.
(3) A exclusão prevista neste artigo produzirá efeito enquanto durar o
impedimento.
(4) A parte que não tiver cumprido suas obrigações deve comunicar à outra parte o
impedimento, bem como seus efeitos sobre sua capacidade de cumpri-las. Se a
outra parte não receber a comunicação dentro de prazo razoável após o momento
em que a parte que deixou de cumprir suas obrigações tiver ou devesse ter
tomado conhecimento do impedimento, esta será responsável pelas perdas e
danos decorrentes da falta de comunicação.
(5) As disposições deste artigo não impedem as partes de exercer qualquer outro
direito além da indenização por perdas e danos nos termos desta Convenção.
Primeiramente, deve-se estabelecer que o “não cumprimento com o contrato” deve
ser interpretado da maneira mais ampla possível.
Os critérios para exclusão de responsabilidade por inadimplemento de qualquer
obrigação são: motivo alheio à vontade da parte, que não seria razoável levar em
consideração no momento da conclusão do contrato; tal evento e suas consequências
também não poderiam ser evitados e superados no momento de conclusão do contrato.
De acordo com a Professora Ingeborg Schwenzer, o artigo 79 pode ser aplicado
em qualquer caso em que uma das partes não cumpriu devidamente com o que estava
estipulado no contrato1. Tais eventos, por exemplo, podem estar relacionados a não
1
SCHELECHTRIEM, PETER & SCHWENZER, INGEBORG. Commentary on the UN Convention on the
International Sale of Goods (CISG). New York: Oxford University Press Inc., 2005.
163
conformidade do produto, o atraso em sua entrega e também questões relacionadas à
fabricação deste (o que acarreta não em um defeito físico em si, mas um defeito “moral”.
Por exemplo: produtos que deveriam ser produzidos de maneira ética e tal recomendação
ou obrigação não é cumprida). Todavia, não há nenhuma distinção entre tais eventos,
cabendo a todos a aplicação do artigo 79 (o evento apenas necessita encaixar-se em um
rol de características que serão citadas abaixo).
A opinião na doutrina em geral diverge, pois cada caso deve ser analisado em
particular. Deve-se levar em consideração elementos como previsibilidade,
controlabilidade, cadeia de fornecedores, as práticas usuais das partes e os
subcontratados das partes.
Em suma, os principais aspectos para que a parte seja exclusa de
responsabilidade são: imprevisibilidade, incontrolabilidade e, caso o contrato não seja
cumprido devido a uma falha de um terceiro, esse terceiro também deveria estar isento de
responsabilidade.
3
O QUE SERIA UM “IMPEDIMENTO” VÁLIDO
Como será explicado adiante, o evento que impede a parte de cumprir com o
contrato, para ser válido, deve ser: imprevisível, incontrolável e fora da esfera de controle
da parte (e de seus subcontratados também). Estão abrangidas situações de force
majeure (impedimento de força maior), impraticabilidade e hardship2. O ocorrido também
deve estar fora da esfera de controle da parte – não era possível prever e, caso pudesse
prever, não poderia evitar.
Isso significa que, se o evento estiver dentro da esfera de controle da parte, ela
torna-se responsável automaticamente pelo não cumprimento. Sabendo da possibilidade
da ocorrência desse evento, ainda assim assinou o contrato e assumiu o risco – deve ser
responsabilizada pelo “ônus” e prejuízo causados à outra parte.
O termo “impediment”, utilizado na versão em inglês da CISG (em português,
traduzido para “inadimplemento”), não pode ser interpretado baseando-se em leis
domésticas de um país apenas, pois já que o papel da lei é justamente uniformizar e
estabelecer uma “língua comum” para os contratos internacionais privados 3.
Destarte, ao assinar um contrato internacional e escolher como lei governante a
CISG, as partes estão deliberadamente derrogando das definições e conceitos dos
códigos civis/comerciais de seus países, para que a interpretação do contrato ocorra de
uma forma mais simples e universal.
No caso de um impedimento válido, os Professores Peter Schlechtriem e Ingeborg
Schwenzer deixam muito claro, em seu livro Commentary on the UN Convention on the
International Sale of Goods (CISG), que no caso de um impedimento temporário, quando
este deixa de existir, a parte deixa de ter o direito de exclusão de responsabilidade e deve
cobrir todos os danos causados à outra parte4.
De qualquer forma, preenchendo os critérios mencionados acima –
imprevisibilidade, incontrolabilidade e impossibilidade de evitar o evento e suas
conseqüências - a parte estará escusa de responsabilidade por haver cometido uma
quebra contratual.
2
SCHWENZER, Ingeborg; FOUNTOULAKIS, Christiana; DIMSEY, Mariel. International Sales Law.New
York: Routledge-Cavendish, 2007.
3
LIU, Chengwei. Force Majeure: Perspectives from the CISG, UNIDROIT Principles, PECL and Case Law.
Electronic Library on the International Commercial Law and the CISG. Abril de 2005.
4 SCHLECHTRIEM, PETER; SCHWENZER, INGEBORG. Commentary on the UN Convention on the
International Sale of Goods (CISG). New York: Oxford University Press Inc, 2005.
164
4
IMPREVISIBILIDADE E INCONTROLABILIDADE
Julgar certa ocorrência ou evento como imprevisível e incontrolável é algo
extremamente complexo. Levando em consideração o lugar em que o contrato foi
assinado, o lugar onde as partes estão situadas, a economia e o governo dos países, é
possível verificar que muitas vezes, a eficácia e o cumprimento de contratos estão
submetidos a fatores externos e de maior peso.
O evento que impediu a parte de cumprir com o contrato deve ser imprevisível no
momento de celebração do contrato. De acordo com Professor Dionysios P. Flambouras,
esta é uma questão relacionada à possibilidade da parte razoavelmente prever a real
possibilidade de um evento que a impedisse de cumprir com o contrato5.
O escopo do artigo 79 assume que as partes possuem uma esfera de controle
“típica”, pela qual as partes devem ser responsáveis. Em relação aos eventos que
ocorrem fora desta esfera, impossíveis de prever e controlar, é que a parte estará isenta
de responsabilidade.
De acordo com Professor Chengwei Liu, se a parte previu que o evento que a
impediu de cumprir com o contrato poderia acontecer, a parte deve ser considerada
responsável, por ter assumido o risco6. Desta forma, fica claro que a parte não pode ser
escusa de um fato que, apesar de não provável, era previsto de acontecer. Vale ressaltar
também, de acordo com a Professora Schwenzer, que o evento, além de ser imprevisível,
deve ser externo à esfera de responsabilidade da parte que deixou de cumprir com o
contrato.
Para estabelecer se o impedimento era de fato previsível, deve-se ter como base
os termos do contrato, as práticas usuais das partes e todas as circunstâncias relevantes
que indicam se a parte poderia ou não ter conhecimento da existência ou da ocorrência
do impedimento.
Além de o evento que impede a parte de cumprir com suas obrigações contratuais
ser imprevisível, para que a parte seja isenta de responsabilidade, o evento necessita ser
também incontrolável.
O impedimento deve ser de um risco impossível de administrar e totalmente
excepcional. Se, de alguma forma, a parte poderia ter controle e o evento estava dentro
de sua esfera de contemplação, a parte se torna totalmente responsável. Todavia,
flutuações no valor de mercado ou no custo de produção geralmente não são aceitos
como argumentos válidos, visto que tais fatos são considerados como um risco comum de
se correr em qualquer atividade comercial7.
Professor Dionysio Flambouras faz uma lista de eventos que estão dentro do rol
abrangido pelo artigo 79, que excluem a responsabilidade da parte por não cumprimento
com o contrato:
a)
“Atos de Deus”: terremotos, trovões, enchentes, incêndio, tempestade,
quebra de safra.
b)
Eventos relacionados a circunstancias sociais e políticas: guerra, revolução,
motim, golpe de estado, greve.
5
FLAMBOURAS, Dionysios P.. The Doctrines of Impossibility of Performance and clausula rebus sic
stantibus in the 1980 Vienna Convention on Contracts for the International Sale of Goods and the Principles
of European Contract Law: A Comparative Analysis. Pace International Law Review .Fall 2001. P. 261293.
6
LIU, Chengwei. Force Majeure: Perspectives from the CISG, UNIDROIT Principles, PECL and Case Law.
Electronic Library on the International Commercial Law and the CISG. Abril de 2005.
7 SCHWENZER, Ingeborg; FOUNTOULAKIS, Christiana; DIMSEY, Mariel. International Sales Law.New
York: Routledge-Cavendish, 2007.
165
c)
Impedimentos legais: apreensão dos bens, embargo, proibição de
transferência de fundos estrangeiros, proibição ou restrição de importações/exportações
estrangeiras.
d)
Outros tipos de impedimento: perda da embarcação durante o transporte,
furto, roubo ou sabotagem durante o armazenamento ou transporte, greve geral, corte na
fonte de alimentação geral8.
Todos os eventos citados acima poderiam, de certa forma, arruinar o negócio da
parte e/ou prejudicar o contrato. Entretanto, como já mencionado previamente, cada
situação deve ser analisada em particular, visto que o Professor Dionysios Flambouras
também cita um incêndio como um evento que poderia ser evitado, caso a culpa do
incêndio tenha sido da própria parte – caso ela não tenha tomado todas as medidas
necessárias para evitar que ele ocorresse.
Na jurisprudência, já é estabelecido que, preenchidos tais critérios, a parte estará
isenta de responsabilidade, como é demonstrado no Stolen Car Case: O [Vendedor] tinha
provado com sucesso, que a quebra de contrato ocorreu devido a um impedimento além
de seu controle e que não se poderia razoavelmente esperar que tivesse tomado o
impedimento em conta no momento da celebração do contrato ou ter evitado ou superado
suas conseqüências. O [Vendedor] fez-se tanto no momento da compra e no momento da
venda do carro, que o carro estava em condições. Tinha, portanto, feito tudo que fosse
necessário para cumprir com as suas obrigações contratuais9.
Eventos que não excluem a responsabilidade da parte por não cumprimento com o
contrato: falhas de negócios, incapacidade pessoal, liquidação ou falência, falência dos
sistemas de produção ou contabilidade, insuficiência de equipamentos de processamento
de dados, falha em manter o pessoal necessário, doença, morte ou prisão do promitente,
incapacidade do promitente da fornecedor para lhe fornecer matéria-prima, constituindo
greve confronto interno em uma fábrica (uma greve geral, no entanto, constituirá
impedimento), ou o aumento excessivo do preço da matéria-prima10.
5
POSSIBILIDADE DE EVITAR/CONTORNAR O IMPEDIMENTO
A parte apenas estará escusa de responsabilidade se provar que tomou todas as
atitudes necessárias para evitar ou contornar as conseqüências do não cumprimento com
o contrato11.
O fato de cobrir com os custos adicionais ou aceitar perda de “bônus” do contrato
são medidas razoáveis a ser tomadas12. Entretanto, é evidente que se, apesar de ter
agido com toda a cautela para que o contrato fosse cumprido com êxito, porém o
impedimento estava dentro de sua esfera de controle, a parte deverá ser
responsabilizada.
8
FLAMBOURAS, Dionysios P.. The Doctrines of Impossibility of Performance and clausula rebus sic
stantibus in the 1980 Vienna Convention on Contracts for the International Sale of Goods and the Principles
of European Contract Law: A Comparative Analysis. Pace International Law Review .Fall 2001. P. 261293.
9 STOLEN CAR CASE. Germany 5 March 2008 Appellate Court München
10 FLAMBOURAS, Dionysios P.. The Doctrines of Impossibility of Performance and clausula rebus sic
stantibus in the 1980 Vienna Convention on Contracts for the International Sale of Goods and the Principles
of European Contract Law: A Comparative Analysis. Pace International Law Review .Fall 2001. P. 261293.
11
LIU, Chengwei. Force Majeure: Perspectives from the CISG, UNIDROIT Principles, PECL and Case Law.
Electronic Library on the International Commercial Law and the CISG. Abril de 2005.
12 SCHWENZER, Ingeborg; FOUNTOULAKIS, Christiana; DIMSEY, Mariel. International Sales Law.New
York: Routledge-Cavendish, 2007.
166
6
SUBCONTRATADOS
Nas palavras do Professor Dionysios Flambouras: “No que diz respeito ao
significado de "terceira pessoa", a história da CISG artigo 79 sugere que ele só cobre
pessoas que estão agindo de forma independente e não estão dentro da esfera
organizacional do promitente, nem sob a sua responsabilidade. Embora tal definição
parece bastante simples, é incerto que inclui os fornecedores do vendedor. Sugere-se que
os fornecedores do vendedor não devem ser considerados terceiros para efeitos de CISG
artigo 79 (2), uma vez que essas pessoas simplesmente criam as pré-condições ou
ajudam na preparação para o desempenho da obrigação do promitente, sem, no entanto,
a execução de todas ou parte do contrato real (como CISG artigo 79 (2) exige).”
Novamente de acordo com os Professores Peter Schlechtriem e Ingeborg
Schwenzer, o Artigo 79(1) é suplementado pelo Artigo 79(2), o qual deixa claro que a
parte não pode se esquivar de responsabilidade empenhando terceiros para cumprir com
seus obrigações. A parte é basicamente responsável por si mesmo, da mesma forma que
é responsável por seus subcontratados13.
Destarte, para efeitos do Artigo 79 da CISG, não deve haver uma distinção entre a
parte que assinou o contrato e seus subcontratados. Quando o impedimento para cumprir
com o contrato é uma decorrência de um contrato com terceiros, a parte não está isenta
de responsabilidade, visto que a parte que sofreu os prejuízos nada tem a ver com a falta
do terceiro. A exceção para a regra é que a parte apenas será isenta de responsabilidade,
se o terceiro também estiver14.
Ainda assim, o evento deve ser imprevisível e incontrolável, cabendo ao
subcontratado todas as características previamente mencionadas para a exclusão de
responsabilidade.
7
INFORMAR A OUTRA PARTE SOBRE O IMPEDIMENTO
A parte que está deixando de cumprir com o contrato, mesmo que em situações de
force majeure e além de sua esfera de responsabilidade, deve notificar a outra parte o
quanto antes15.
Como já estabelecido em jurisprudência, se há qualquer impedimento para cumprir
o contrato, de acordo com o Artigo 79(4) da CISG, a parte que não cumprir com sua
obrigação contratual deve notificar a outra parte sobre o impedimento e tais
conseqüências na performance do contrato. Se a notificação não é recebida pela outra
parte num período de tempo razoável após a parte ter conhecimento do impedimento, ela
se torna responsável pelos danos causados devido ao não recebimento.
13
SCHLECHTRIEM, PETER; SCHWENZER, INGEBORG. Commentary on the UN Convention on the
International Sale of Goods (CISG). New York: Oxford University Press Inc, 2005.
14 FLAMBOURAS, Dionysios P.. The Doctrines of Impossibility of Performance and clausula rebus sic
stantibus in the 1980 Vienna Convention on Contracts for the International Sale of Goods and the Principles
of European Contract Law: A Comparative Analysis. Pace International Law Review .Fall 2001. P. 261293.
15 SCHWENZER, Ingeborg; FOUNTOULAKIS, Christiana; DIMSEY, Mariel. International Sales Law.New
York: Routledge-Cavendish, 2007.
167
8
CONSEQUÊNCIAS LEGAIS DA EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
O escopo do Artigo 79, neste caso, aplica-se apenas à cobertura dos danos
causados pelo não desempenho. Contudo, a parte que sofreu os danos possui o direito
de recorrer e todos os outros remédios contratuais presentes na CISG.
9
CONCLUSÃO
Analisando tais argumentos e eventos, fica claro que a exclusão de
responsabilidade é algo extremamente relativo: cada contrato é único e particular,
possuindo características relacionadas às partes, ao local onde estão situadas, às suas
praticas usuais e à lei escolhida para governar o contrato. Contudo, em todas as
hipóteses, a parte tem a obrigação de tomar todas as medidas possíveis necessárias a
fim de evitar o evento e amenizar suas conseqüências.
A contratação de terceiros para realização de parte do contrato também é algo para
se pensar com cautela, pois em caso de falha do subcontratado – quando esta falha não
está dentro da esfera abrangida pelo Artigo 79 da CISG, a parte ainda assim será
responsabilizada, respondendo como se fosse sua própria falha.
Finalmente, também faz-se mister que a parte comunique a outra sobre a
impossibilidade de cumprir com o contrato. Caso contrário, torna-se responsável a cobrir
todos os danos causados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SCHLECHTRIEM, PETER; SCHWENZER, INGEBORG. Commentary on the UN
Convention on the International Sale of Goods (CISG). New York: Oxford University
Press Inc, 2005.
SCHWENZER, Ingeborg; FOUNTOULAKIS, Christiana; DIMSEY, Mariel. International
Sales Law.New York: Routledge-Cavendish, 2007.
FLAMBOURAS, Dionysios P.. The Doctrines of Impossibility of Performance and clausula
rebus sic stantibus in the 1980 Vienna Convention on Contracts for the International Sale
of Goods and the Principles of European Contract Law: A Comparative Analysis. Pace
International Law Review .Fall 2001. P. 261-293.
FROZEN PEAS CASE. Slovak Republic 12 March 2009 District Court in Komarno
<http://cisgw3.law.pace.edu/cases/090312k1.html>.
LIU, Chengwei. Force Majeure: Perspectives from the CISG, UNIDROIT Principles, PECL
and Case Law. Electronic Library on the International Commercial Law and the CISG.
Abril de 2005.
STOLEN CAR CASE. Germany 5 March 2008
<http://cisgw3.law.pace.edu/cases/080305g1.html>.
Appellate
Court
München
168
A LIBERDADE DE CRENÇA:
LIMITES AO SEU EXERCÍCIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 19881
Fabiana Soares Prestes
_______________________________________
Graduanda do Curso de Direito do UNICURITIBA
Pesquisadora do JUS VITAE – Pesquisa em Biodireito e Bioética pelo UNICURITIBA
Participante do IV SPIC – IV Simpósio de Pesquisa e Iniciação Científica promovido pelo
Cetro Universitário de Curitiba – Unicuritiba, sobre tema “Liberdade Religiosa e o uso de
animais em rituais religiosos” em setembro/2012
Maria da Glória Colucci
______________________________________
Mestre em Direito Público pela UFPR
Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR
Profa. Titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA
Profa. Emérita do UNICURITIBA
Profa. Adjunta IV, aposentada, da UFPR
Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília (SBB)
Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Membro do CONPEDI – Conselho
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC)
Síntese de Texto de Conclusão de Curso a ser apresentado em banca de avaliação do Unicuritiba –
Centro Universitário de Curitiba, em junho/2013.
1
169
RESUMO
A presente pesquisa, inicialmente, traz noções de religião e liberdade religiosa. No
capítulo seguinte apresenta-se a conceituação e análises psicológicas e sociológicas da
religião e das liberdades derivadas da liberdade religiosa, as limitações e garantias dos
direitos fundamentais, bem como a noção de liberdade religiosa e sua derivação no
ordenamento pátrio, em face aos princípios das diversas religiões nos dias de hoje. No
terceiro capítulo analisou-se a crítica da liberdade de crença e culto no que tange às
religiões de matriz africana, originada pela exceção da Lei 12.131/2004, e opiniões
contrárias e favoráveis.
Palavras-chave: religião, liberdade religiosa, consciência, culto e crença.
1
INTRODUÇÃO
Mesmo sendo a liberdade religiosa um dos direitos fundamentais, como afirma a
Declaração dos Direitos Humanos (1948), por puro preconceito ou falta de conhecimento,
vê-se este direito violado constantemente, quase sempre se referindo aos cultos afrobrasileiros. Mas a pluralidade formada por várias raças, culturas e religiões permite que
todos sejamos iguais, sendo cada um com sua diferença; isso faz do Brasil o Brasil que
é1.
Entre uma religião e outra, seja católica, evangélica, judaica, muçulmana, ou de
matriz afro, enfim, seja qual for, há fé e fanatismo. A importância do estudo está em
explorar o assunto considerando as opiniões divergentes no que tange às garantias
constitucionais da liberdade religiosa e suas derivações.
Estudos de psicanálise associados à antropologia buscam explicar o real
significado do mito, rituais religiosos estranhos, além da grande influência na sociedade
quando de uma organização religiosa, mas tudo muito primitivo, uma vez que são relatos
das pesquisas realizadas pelo Pai da Psicanálise no século XIX. Enfim, analisa-se a
religião sobre este foco, pois os “fatos psíquicos – consciência, e a organização social,
familiar, jurídica, econômica, política e religiosa constituem os significados”2.
Abordar-se-á no trabalho os conceitos de religião e de liberdade religiosa e suas
derivações, assim como pela evolução como direito fundamental no ordenamento jurídico
brasileiro, e de forma pouco mais abrangente, a liberdade de crença e suas limitações,
através de legislação vigente e pesquisas jurisprudenciais.
2
RELIGIÃO E LIBERDADE RELIGIOSA
Religião deriva do latim “re ligare”, que significa religação com o divino, englobando
qualquer forma de aspecto místico e religioso que abranja seitas, mitologias, doutrinas ou
formas de pensamento que tenham como característica fundamental um conteúdo além
do mundo físico.
Entende-se que a religião é o sistema de crença em seres espirituais, ou seja,
crença no sobrenatural, cerne da religião, cujas ações podem ser por eles dirigidas.
1
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Cartilha da Diversidade Religiosa e Direitos
Humanos. Brasília, 2004.
2 VIDILLE, Wagner. Revista Ciência e Cultura: psicanálise e linguagem mística. Ano 64. Nº 1. São Paulo,
2011, p. 25-28.
170
Basicamente, estuda-se a religião sobre os aspectos sociais e culturais3. Marina Marconi
e Zélia Presotto, quanto ao aspecto cultural da religião dizem que:
[...] reforça e mantém os valores culturais estando muitos deles ligados à ética e à
moral. Sustenta e incute normas particulares de comportamento culturalmente
aprovadas, exercendo poder coercitivo. Ajuda na conservação de conhecimentos
ou normas de conduta importantes em determinada cultura 4.
Conforme Èmile Durkein, a religião, em sendo vista nos seus elementos de
composição e organização da vida social, só pode ser analisada de fato pela história. E
em sua análise, destaque-se o entendimento quanto ao aspecto social da religião:
[...] todas as grandes instituições sociais nasceram da religião. Ora, para que os
principais aspectos da vida coletiva tenham começado por ser meras variedades
da vida religiosa, é preciso evidentemente que a vida religiosa seja a forma mais
elevada e como que uma expressão abreviada de toda a vida coletiva. [...] a
sociedade é a alma da religião.5
Observa-se, ao longo da história que a religião tende a ligar-se a setores da vida
econômica, política, familiar, estética, de lazer, de segurança; estes são elementos que
identificam a função interpenetrativa6 da religião.
Neste sentido, John Bowker de acordo com o entendimento de Èmile Durkhein diz
que:
[...] em muitos aspectos a sociedade independe dos indivíduos que por acaso a
integram em determinada época; as pessoas criam a religião e os símbolos
religiosos, para declarar e reafirmar os valores que mantêm a ordem social; e
assim, em qualquer sociedade as estruturas e sanções sociais serão uma
contrapartida direta das suas crenças diretas.7
O estudo acerca da religião tem-se realizado, ao longo dos anos, mediante
observações das religiões de hoje e análise dos descritos antropológicos das religiões
mais antigas, assim como estuda-se a sua origem por teorias classificadas como:
psicológicas pela influência sobre o pensamento e as emoções das pessoas, e
sociológicas pelo fundamento que diverge das doutrinas psicológicas8.
De acordo com Marina Marconi e Zélia Presotto, pelas teorias psicológicas tem-se
como principais fases as seguintes:
a) Mito: pela crença no sobrenatural; entende-se que pela crença em divindades com
poderes para controlar a natureza, o homem primitivo venerava os fenômenos da
natureza como o sol, a lua, as estrelas, trovões e raios, pela magnitude com que
estes fenômenos aconteciam;
b) Manismo: pela crença nos espíritos; acreditava-se que o culto aos mortos e aos
seus espíritos deu origem à religião; no âmbito da religião, tal como da Filosofia, o
espírito é absoluto;
3
MARCONI, Marina de Andrade, PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia: uma introdução. Cap.
Religião e Magia. 6 ed. São Paulo, 2005, p. 151-153.
4 Ibid., p. 160.
5 DURKEIM, Èmile. Sociologia. Cap. III - Religião e Conhecimento. 9 ed. São Paulo, 2005. p. 169.
6 MARCONI, PRESOTTO, op. cit., p. 161-162.
7 BOWKER, John. O Livro de Ouro das Religiões: a fé no Ocidente e no Oriente, da pré-história aos
nossos dias. Tradução: Laura Alves e Aurélio Rabello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 12.
8 MARCONI, PRESOTTO, op. cit., p. 160.
171
c) Animismo: pela crença na alma; busca-se a compreensão das alucinações,
premonições, sonhos e vida; busca-se a compreensão ao que transcende a
matéria, a força vital. No animismo, onde a crença baseia-se nos poderes
pessoais9, todos os seres são dotados de alma e esta anima a natureza;
d) Animatismo: pela crença no poder sobrenatural; tinham-se como essenciais as
forças emanadas de vegetais, animais e de pessoas, a força espiritual; o poder de
fazer coisas incomuns aos homens.
Marina Marconi e Zélia Presotto, com base na análise de Durkeim entre outros,
dizem que “[...] pelas teorias sociológicas da religião, observa-se que a principal teoria
refere-se ao sagrado e ao profano”.
No Brasil do Império, ou no Brasil Colônia, houve uma miscigenação de culturas,
tal e qual no tocante à religião. Nesta época, conforme explica Charley Antonio dos
Santos10, surgiu o sincretismo religioso como uma ”autodefesa” dos escravos que
associaram os seus mandamentos de fé, baseados na natureza, às imposições jesuítas
da religião católica. Simbolicamente, os santos católicos passaram a ser cultuados pelos
escravos sem que estes deixassem sua cultura, religião e mandamentos de lado.
Sendo assim, a religiosidade é conceituada como um conjunto de valores éticos e
com tendência a incorporar ensinamentos religiosos à forma de pensar.
A liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais do homem, como afirma a
Declaração dos Direitos Humanos (1948), é também consagrada como tal em tratados
internacionais e nas constituições de países democráticos, bem como pode ser definida
como uma liberdade pública, em face do poder estatal11 de impedir violações a este
direito.
Pontes de Miranda entende que a liberdade religiosa é uma emanação da
liberdade de pensamento de forma específica12. Esta liberdade foi entendida, por Rui
Barbosa, como uma liberdade de consciência, “[...] um direito de natureza tão elevada e
tão difícil de analisar em teorias, as suas relações com os interesses individuais do
homem”13.
O artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) dispõe que:
Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e
transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de
fronteiras14.
Portanto, a liberdade religiosa, direito fundamental constitucionalizado, passando
ao homem, ao indivíduo o direito de ser ateu ou não, o direito de ser agnóstico ou não, o
direito de escolher ou não uma religião e, em assim o fazendo, direito de manifestá-la e
praticá-la, pela exteriorização da sua fé, buscando adorar a sua divindade de acordo com
a sua consciência, e com a sua crença. Foi proposta no século passado, a teoria que a
9
HINNELLS, John R. Dicionário das Religiões. São Paulo: Círculo do Livro, 1984, p. 25.
SANTOS, Charley Antonio dos. Sincretismo Religioso. Belo Horizonte, 2007. Disponível em:
<http://www.recantodaltras.com.br/resenhas/72983>. Acesso em: 01/09/2012
11 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional. São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 5.
12 Cf. MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1946. t. IV, p. 444.
13 SORIANO, op. cit., p. 8.
14 CORRÊA, Anelize Maximila, MOLIN, Lucia Dal, PAULSEN, Carolina Moreira (orgs.). Direitos Humanos –
Documentos Básicos. Pelotas: Educat – UCPEL, 2005, p. 29.
10
172
religião nada mais era que uma reminiscência que o homem guardava de um período
primitivo do seu desenvolvimento15.
As normas religiosas de comportamento baseiam-se nas incertezas da vida e
variam de uma sociedade para outra16. Por conta disto, prima-se pelo amadurecimento,
por parte do povo, da garantia constitucional da liberdade religiosa, ou da liberdade de
crença.
O preceito constitucional é amplo, sendo a religião dotada de complexos princípios
que orientam ações, pensamentos e adorações de um homem fiel (fé) com o seu deus,
sua divindade17, seja ela quem ou qual for.
Alexandre de Moraes ainda explica que:
O constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o
desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofia e a própria diversidade
espiritual. Assim, a Constituição de 1988 ao consagrar a inviolabilidade de crença
religiosa, está assegurando a proteção à liberdade de culto e a suas liturgias 18.
Assim, em relação ao radicalismo suplantar a liberdade religiosa
constitucionalizada, Pedro Lenza destaca que: [...] não podemos discriminar ou reprimir
[...] o preconceito deve ser afastado, a sociedade tem que conviver e harmonizar com as
escolhas antagônicas [...]19.
Neste sentido, Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do STF diz que a Constituição ao
reconhecer o princípio de liberdade religiosa faz com que o sistema jurídico tome a
religiosidade para si, como “valor a ser preservado e fomentado”20.
A respeito do reconhecimento deste princípio, Mendes, entre outros destaca:
O reconhecimento da liberdade religiosa decerto que contribui para prevenir
tensões sociais, na medida em que o pluralismo se instala e se neutralizam
rancores e desavenças decorrentes do veto oficial a crenças quaisquer. [...]
também tem por si o argumento de que tantas vezes a formação moral contribui
para moldar um bom cidadão21.
Observa-se que, para alguns doutrinadores, há de se afastar o desrespeito à
liberdade religiosa, sendo esta um direito fundamental com base de tutela na Lei Maior
desde a primeira Constituição da República de 1891.
Em relação ao Direito Constitucional internacional, faz-se necessário destacar a
importância da adoção de tratados internacionais no ordenamento jurídico nacional. Para
adoção de tratados, acordos e pactos internacionais acerca da liberdade religiosa, além
da manifestação de vontade entre os poderes, deve-se observar a existência de lei que
regulamente o ato junto ao ordenamento interno22, uma vez que não haverá fusão frente a
este. A respeito desta incorporação, Flávia Piovesan diz que “[...] os tratados
internacionais versam sobre os direitos humanos recebem tratamento privilegiado” 23; e
15
SILVA, Claudete Araújo Guerreiro. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. São Paulo:
Paulinas, 2006. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/filosofia da religião>. Acesso em:
03/03/2012.
16 MARCONI, PRESOTTO, 2005, p. 151.
17 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.50.
18 Ibid., p. 51.
19 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14 ed. Revisão atual e ampliada. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 761.
20 BRANCO, Paulo G., COELHO, Inocêncio, MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4
ed. Revisão atua. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 463.
21 BRANCO, COELHO, MENDES, loc. cit.
22 SORIANO, 2002, p. 105.
23 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3 ed. São Paulo: Max
Limonad, 1997, apud SORIANO, loc.cit.
173
assim, entende-se que estes tratados, especificamente, são recebidos como norma
constitucional.
Na Constituição Federal de 1988, a tutela aos direitos constantes nos tratados
internacionais que o Brasil assina está em dois dispositivos: artigo 4º e incisos, e artigo 5º,
§ 2º24, dispondo sobre a constitucionalidade dos direitos versados nos tratados junto ao
ordenamento pátrio e seus efeitos.
Entende-se que os dispositivos constitucionais, ao trazerem efetiva garantia aos
direitos dos tratados internacionais, visam a prevalência destes direitos, caso haja conflito
entre os próprios tratados e a Constituição.
Em consonância com o ordenamento jurídico nacional, no que se refere à liberdade
religiosa está a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de São José
da Costa Rica25. Encontra-se em alguns dos seus artigos a disposição sobre a liberdade
de religião e suas derivações. No artigo 12 do Pacto26 percebe-se que a tutela à liberdade
religiosa foi declarada de forma diferente à constante na Constituição Federal.
De acordo com a análise do artigo 12 da Convenção, e conforme Aldir Guedes
Soriano, percebe-se que além de notada ampliação do direito, há referenciais quanto aos
limites da liberdade de manifestar a religião, por não ser esta absoluta:
[...] é fundamental determinar até que ponto a liberdade religiosa, de forma
pública pode ser restringida; [...] as limitações devem ser prescritas em lei e
necessárias, para proteger a ordem, a saúde, a moral pública ou os direitos das
demais pessoas. Por outro lado, se uma lei ordinária passa a restringir a liberdade
religiosa, mesmo de uma minoria, essa lei há de ser declarada inconstitucional 27.
Faz-se necessário dizer que, além do artigo 12, o Pacto de São José da Costa Rica
contém dispositivos28 que se poderão invocar, acerca do direito de liberdade religiosa,
dentre outros direitos:
24
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Lex: Legislação
administrativa. Vade Mecum. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011:
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos
povos; IV - não intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos
conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da
humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único: [...] buscará a integração econômica, política,
social e cultural dos povos [...].
Art. 5º. [...] - § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.
25 Convenção aberta à assinatura em 22 de novembro de 1969; aprovada e ratificada pelo Brasil em 25 de
setembro de 1992, através do Decreto Lei nº 27; promulgada no Brasil em 6 de novembro de 1992 pelo
Decreto Lei nº 678:
Art. 12. Liberdade de consciência e de religião.
1. [...]; esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças; ou de mudar de religião
ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar [...], individual ou coletivamente, tanto em
público como em privado;
2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua
religião e suas crenças, ou de mudar de religião ou de crença;
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está unicamente às limitações
prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral
pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas;
4. [...]. (grifo nosso).
26 CORRÊA, MOLIN, PAULSEN, 2005, p. 174.
27 SORIANO, 2002, p. 109. Neste ponto, Soriano cita e comenta o inciso 2 do Art. 16 do Pacto de São
José da Costa Rica no tocante às restrições do direito à liberdade de associação.
28 CORRÊA, MOLIN, PAULSEN, 2005, p. 176, 178-179, 181-183.
174





Art. 16. Incisos 1 e 2 – dispõem sobre a liberdade de associação;
Art. 22. Inciso 8 – dispõe sobre o direito de circulação e residência em
condição de estrangeiro;
Art. 27. Incisos 1 e 2 – dispõem sobre a suspensão de garantias;
Art. 29 – dispõe sobre normas interpretativas dos dispositivos da
Convenção;
Art. 30 – dispõe sobre o alcance das restrições, de acordo com a convenção.
Nada obsta em salientar-se que outros dispositivos da Convenção Americana de
Direito Humanos de 1969 poderão ser invocados mediante necessidade e análise de um
caso concreto, sob a ótica lógico-sistemática.
2.1
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CULTO
A liberdade religiosa está munida de diversas modalidades. Seus desdobramentos
estão basicamente compreendidos em três expressões: liberdade de consciência,
liberdade de culto e liberdade de organização religiosa.
Nesta linha de subdivisão do direito à liberdade religiosa, pode-se apresentar a
seguinte decomposição em comparação à liberdade de crença que se verá a seguir:
a) Liberdade de Consciência: de foro individual, é a liberdade mais ampla que a
liberdade de crença; compreende o direito de crer e o de não crer.
b) Liberdade de Culto: pode manifestar-se através de ritos, cerimônias, ou reuniões,
em público ou em particular; resultando na exteriorização da crença.
c) Liberdade de Organização Religiosa: decorre do Estado laico e está sobre proteção
da legislação civil e penal29.
Para a liberdade de consciência, tem-se a associação deste direito à liberdade de
pensamento ou fundamentação básica das liberdades de pensamento filosófico e político,
sem deixar de se observar o disposto no artigo 15 da Constituição Federal, que prevê a
limitação do direito quando invocado para a escusa de consciência para dispensa de
obrigação legal imposta a todos30. A limitação mais comum é em função do serviço militar
obrigatório, conforme disposição no artigo 143, § 1º da Constituição Federal31.
Além da discussão acerca do direito de escusa de consciência e o serviço militar
obrigatório, se tem notícias, até mesmo em âmbito jurídico, em que este direito é invocado
por adeptos da Religião Adventista do Sétimo Dia e da Religião Cristã Não-Trinária, mais
conhecida como Comunidade Religiosa Testemunhas de Jeová.
A primeira religião invoca o seu direito em função do respeito ao sábado no mesmo
período das horas do sábado bíblico, através de mandados de segurança. A segunda
29
SORIANO, 2002, p. 11.
MORAES, 2011, p. 50.
31 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Lex: Legislação
administrativa. Vade Mecum. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011:
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. - § 1º Às Forças Armadas compete, na forma da
lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de
consciência religiosa, entendendo-se com tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou
política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.
Os parágrafos do art. 143 da Constituição Federal foram regulamentados pela Lei 8.239, de 4 de outubro de
1991.
30
175
religião recorre ao Judiciário em decorrência de sua oposição ao tratamento médico com
transfusão de sangue.
Registra-se que para os adventistas, o dia de sábado é reservado pelos adeptos
para o descanso e meditações, conforme está escrito no livro de Êxodo32.
Dois critérios são analisados nos casos deste pedido de escusa em especial:
discricionariedade e igualdade.
Sobre o critério de igualdade, dizia Rui Barbosa que “[...] nesta desigualdade social
proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira igualdade” 33, assim
como Miguel Reale, que diz:
Nas relações dos homens surge, no entanto, uma outra lei da igualdade, que é
aquela que manda tratar desiguais como desiguais, na medida em que se
desigualem, dando-se a cada um o que é seu, pelo ditame da justiça distributiva 34.
Sobre o critério de discricionariedade, mesmo que a Lei Maior limite a sua
administração, Maria Sylvia Zanella Di Pietro em análise apropriada afirma que:
[...] o poder de administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra
solução é feita segundo critério de oportunidade, conveniência, justiça, equidade,
próprios da autoridade; o poder de ação administrativa, embora discricionário, não
é livre, pois a lei impõe limitações sob os seguintes aspectos: competência, forma
e finalidade35. Este conceito se aplica à atuação do administrador em qualquer
situação, ao interpretar e aplicar a lei.
Portanto, observa-se que a discricionariedade possui limites que estão previstos
em lei, e em ocorrência de serem confrontados ao se invocar o direito de escusa de
consciência, poderão ser classificados como arbitrários e ilegais, completa Aldir Guedes
Soriano.
Enfim, os casos em que houver invocação do direito de recusa com motivos
religiosos apresentados, analisar-se-ão com base nos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade pelo Judiciário.
Ao que pese a invocação do direito de escusa de consciência por parte dos
adeptos da seita Testemunhas de Jeová, percebe-se nesta situação a ocorrência de um
conflito entre valores e direitos tutelados constitucionalmente: a liberdade religiosa e o
direito à vida36, um embate entre os preceitos religiosos e os preceitos da Medicina.
Alegam os adeptos desta religião que aquele que se encontra enfermo é vulnerável à
transfusão de sangue impuro, além de estar, no caso, desobedecendo aos mandamentos
de Deus.
De acordo com Thiago Massao Cortizo Tereoka, os adeptos da seita seguem e
citam os fundamentos escritos nos livros de Gênesis, Levítico, Deuteronômio, Salmo e
Atos para justificar suas oposições à transfusão sanguínea.
De fato e dependendo do caso, tem-se a possibilidade de o paciente ser tratado de
modo alternativo, mas se refuta que em situação de maior periculosidade à vida, o
tratamento com transfusão de sangue seja ministrado conforme estabelece o Conselho
Federal de Medicina, independentemente do consentimento do enfermo ou de seus
Livro de Êxodo: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, mas o sétimo dia é
o sábado do Senhor. Neste dia não farás trabalho algum, nem tu, nem tua família, nem teus servos, nem
teus animais, nem o estrangeiro que está dentro de tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor o céu, a
terra, o mar e tudo o que neles está, e ao sétimo dia descansou; [...]”. (grifo nosso)
33 SORIANO, 2002, p. 144.
34 Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 641.
35 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 81, 196-197.
36 SORIANO, 2002, p. 118.
32
176
representantes37, bem como discutido pelo sistema do ordenamento jurídico pelos ramos
do Direito Constitucional, Civil e Penal.
Sobre este assunto, Aldir Guedes Soriano diz que:
Nos casos em que é possível o tratamento alternativo e é desnecessária a
transfusão sanguínea, é evidente que a liberdade religiosa do paciente deverá ser
respeitada; [...] a infusão de fluidos e demais terapias alternativas são
insuficientes; eis que surge não apenas um problema médico, mas jurídico de
difícil solução. No entanto, observa-se a determinação na CF/88 [...], art. 5º, inciso
II. Por outro lado, existe o dever legal do médico de prestar socorro. [...] Não há
como harmonizar ou conciliar os dois direitos conflitantes, sem o sacrifício integral
de um dos direitos38.
Miguel Reale entende que em se tratando de hierarquia de direitos humanos, “[...] é
razoável admitir que esta, dependerá de um juízo de valor” e da análise do caso concreto,
pois se faz necessário um ato de renúncia dos direitos humanos39. Percebe-se o quanto
se faz controverso e complexo um apontamento de solução a este conflito.
Aldir Guedes Soriano, seguindo este mesmo entendimento, sugere que deve se
considerar duas linhas de raciocínio, que por sua vez trazem uma contradição: a primeira
é de que a Constituição Federal tem como um de seus princípios a inalterabilidade do
direito à vida e não a sua irrenunciabilidade, pois, por exemplo, não se pune o ato de
tentativa de suicídio; e a segunda é de que o ordenamento jurídico brasileiro não autoriza
a renúncia à vida, no que se refere à aplicação da eutanásia40.
A situação de um médico, nestes casos, apresenta-se de forma bem complexa,
pois sua intervenção, sem o consentimento do paciente é justificada quando da eminência
de perigo da vida. Esta intervenção tem tutela no Código de Ética Médica: “Art. 46.
Efetuar qualquer procedimento médico sem esclarecimento e o consentimento prévios do
paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida”41.
2.2
2.2.1
A LIBERDADE DE CRENÇA NO DIREITO BRASILEIRO
Conceito De Liberdade De Crença
Liberdade de Crença é a liberdade de escolher, aderir ou mudar de religião, assim
como também é a liberdade de não escolher e nem aderir a religião alguma 42, sem
privação de direitos, por motivos, além de crença religiosa, de convicção filosófica ou
política.
De acordo com José Afonso da Silva, este conceito não compreende a liberdade
de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, pois a liberdade de alguém vai até
onde não prejudique a liberdade de outrem43.
37
OLIVEIRA, Fábio Dantas de. Aspectos da liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro. Jus
Navigandi. Ano 16, nº 2966. Teresina, 15/08/2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19770>.
Acesso em: 05/06/2012.
38 SORIANO, op. cit., p. 119-120.
39 Cf. REALE, 1996, p. 175-277.
40 SORIANO, 2002, p. 121.
41 Ibid., p. 124.
42 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 1997,
p. 241
43 SILVA, 1997, p. 244.
177
Crença é o fato de acreditar-se em uma coisa ou pessoa. Está muito associada à fé
do indivíduo. Consiste em um sentimento de respeito, reverência, confiança e até mesmo
medo em relação ao desconhecido44. Aceita-se, enfim, qualquer coisa que instiga o
mistério, o oculto.
Na opinião de Gilmar Ferreira Mendes, os argumentos de formação moral do
indivíduo não “[...] são razões suficientes para explicar a razão de ser da liberdade de
crença”.
2.3
EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O Brasil é um Estado laico, um Estado tanto independente de qualquer confissão
religiosa quanto o relativo no mundo da vida civil 45. O modo laico de pensar está na raiz
do princípio da tolerância, de acordo com o que escreveu John Locke, em sua Carta
acerca da Tolerância46, os grupos religiosos são formações voluntárias que reúnem os
que concordam com as mesmas proposições de fé.
Pode-se dizer que, atualmente, o Estado laico do Brasil esteja sendo interpretado
de forma errônea, mas há que se dizer que todos foram aderindo, mesmo que
desconhecendo esta interpretação. Ao longo da história brasileira, a religião católica e
mesmo com toda a liberdade que se tem garantida, tange-se às mais distintas e
diferenciadas espécies de religião a uma divindade universal; divindade esta apresentada
pela religião católica, religião “oficial” do Brasil do Império.
Não há, enfim, estudo que conteste esta afirmação; independentemente da religião,
ouvir-se-á a expressão: “Que Deus te abençoe!”.
2.3.1
Liberdade Religiosa Nas Constituições Brasileiras
Em nome da Santíssima Trindade foi outorgada a primeira Constituição brasileira
encomendada pelo Imperador Dom Pedro Primeiro. A Constituição Imperial de 1824 trazia
a religião católica romana como religião oficial do Brasil; pois na época não havia
liberdade de crença como é entendida hoje, sendo livre apenas, o culto católico.
A Constituição previa a liberdade de culto, mas de forma doméstica, os cultos eram
realizados nas residências de adeptos às demais religiões da época; nas senzalas,
também havia cultos religiosos e o canto aproximava os fiéis de sua terra natal, algo que
estava distante:
Após dia de labuta e batalha, preto vai se recolhê... viu o quanto sofria e o tempo
que nunca passô... não chores no cativeiro, pois no cativeiro não deves chorar...
quando chega a tardinha preto pegava o tambô... fazia festa na senzala... saravá
Pai Ogum e saravá Pai Xangô47. (autor desconhecido)
44
MARCONI, PRESOTTO, 2005, p. 152.
LAFER, Celso. Estado Laico. In: Direitos Humanos, Democracia e República – Homenagem a Fábio
Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2009, apud RACHEL, Andrea Russar. Brasil: a
laicidade e a liberdade religiosa desde a Constituição da República Federativa de 1988. In: Âmbito Jurídico,
Rio Grande, 01/03/12. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11292. Acesso em: 18/03/12.
46 LOCKE, John. Carta acerca da Tolerância. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, apud
GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. In: Religião e
Sociedade. n. 28. v. 2. Rio de Janeiro, 2008, p. 80-101.
47 No sincretismo religioso, Ogum é São Jorge, no Candomblé, é o orixá guerreiro, divindade do ferro, da
tecnologia e da metalúrgica; é tido como um protetor dedicado a quem lhe é fiel; Xangô é São Jerônimo, no
Candomblé, é o orixá da sabedoria, a divindade do fogo e da justiça. Os adeptos da Umbanda denominam
45
178
Para Aldir Guedes Soriano e José Afonso da Silva, a liberdade religiosa no Brasil
Império, praticamente era inexistente, já que as demais religiões não podiam se
estabelecer oficialmente48.
Em 1890, Rui Barbosa, na época, Ministro da Fazenda do Governo Provisório da
República sobre comando do Marechal Deodoro da Fonseca, e seguindo o modelo
constitucionalista norte americano, separou o Estado da Igreja Católica no Brasil com o
Decreto 119-A, no artigo 1º, marcando o nascimento do Estado laico brasileiro. Neste
artigo havia a determinação da não interferência e a proibição dos entes federados
legislarem sobre este tema, ao mais próximo de não ferir princípios, como o da isonomia e
igualdade. Nos artigos 2º e 3º estavam previstos a ampla liberdade de culto e a liberdade
de organização religiosa.
No ano seguinte, em 1891, o Estado laico brasileiro foi consolidado pela
Constituição do novo regime republicano. O feito foi considerado um marco no que tange
à laicidade do Estado, pois as constituições que a sucederam, teoricamente mantiveram
esta neutralidade49.
De acordo com Aldir Guedes Soriano, sob uma forte tendência antidemocrática da
época, e influências autoritárias dos modelos representados pelo fascismo, nazismo e
comunismo, o então Presidente Getúlio Vargas, aniquilava qualquer vestígio de
federalismo no Brasil50. Na Constituição de 1934, sem que houvesse perturbações ou
contrariedades à ordem pública, previa-se a liberdade de culto. Foi a primeira Constituição
a fazer menção a Deus no Preâmbulo.
Mesmo com o golpe militar de 1937, uma nova Constituição da República foi
outorgada. Tinha-se por interpretação ao seu texto a abolição do federalismo com a
representação unitária de poder do País. Com o advento, retirou-se a menção da
divindade católica do Preâmbulo, mas se reconheceu a liberdade de culto de forma
ampla.
A Constituição de 1946 recebeu a alcunha de Constituição Democrática por ter
resgatado o federalismo no Brasil, ora extinto na década de 30, além de “coincidir a forma
com a realidade”51.
Os entes federados recuperavam a autonomia política com a democracia, fluindo
de forma mais ampla, o que proporcionou a consagração do direito às liberdades,
religiosa e de culto, mas com novidades na implementação deste direito. Thiago Massao
Cortizo Tereoka em seu artigo cita:
No capítulo pertinente aos direitos e garantias individuais, a Constituição de 1946
assegura o livre exercício dos cultos religiosos, “salvo os dos que contrariam a
ordem pública ou os bons costumes”. As organizações religiosas adquirem a
personalidade jurídica dos termos da lei civil. A constituição de 1946 inovou ao
prever a escusa de consciência, a assistência religiosa aos militares, a imunidade
tributária aos templos de qualquer culto, a possibilidade de efeitos civis ao
casamento religioso, ensino religioso nas escolas de forma facultativa, [...] 52.
os orixás, suas divindades como pai e mãe, em sinal de respeito ao que representam pela associação aos
elementos da natureza.
48 SORIANO, 2002, p. 72.
49 OLIVEIRA, Fabio Dantas de. Aspectos da liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16. n. 2966. 15.ago.2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19770>.
Acesso em: 20/03/2012.
50 SORIANO, 2002, p. 74.
51 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 16 ed. São Paulo: Malheiros, p. 72.
52 TERAOKA, Thiago Massao Cortiza. A liberdade Religiosa no direito Constitucional Brasileiro. Tese
de Doutorado em Direito. Faculdade de Direito Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p. 118-119.
179
Nela, havia a menção a Deus no Preâmbulo, além de chamar a atenção pela
permissão dada às organizações religiosas de praticarem seus ritos nos cemitérios
seculares.
A Constituição de 1967 tinha no Preâmbulo a menção à divindade católica e as
mesmas prevenções no que tange à liberdade religiosa e de culto da Constituição anterior
com algumas alterações. Sobre a matéria, o que se destacava no texto constitucional era
a prevenção expressa de colaboração do Estado com as organizações religiosas com
base, também nos direitos sociais.
2.3.1.1
Constituição de 1988
A Constituição de 1988 foi promulgada, seguindo a consagração das constituições
anteriores. A referência ao direito de liberdade religiosa está disposta em seu artigo 5º, VI
– “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas
liturgias”.
De acordo com Thiago Teraoka, não há consagração da expressão liberdade
religiosa, mas em passagens do seu texto a referência está nas expressões “culto”,
“religião” e “crença”53.
Muito se discute acerca da menção a Deus no Preâmbulo, mas em todas as
Constituições havia menção à divindade. Entende-se que esta invocação tem o mesmo
peso das expressões de benção:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir em Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada em harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com solução pacífica
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.54 (grifo nosso)
O Preâmbulo por sua vez, não figura nas Constituições Federais como parte
normativa, pois tem, este documento, a característica de anunciar, de forma introdutória
as diretrizes políticas, filosóficas, ideológicas, assim como as econômicas e culturais da
Carta Magna. Não há, por fim característica de norma jurídica no Preâmbulo da
Constituição, mas se observa a existência de discussões na doutrina e na jurisprudência
sobre este fato, ou seja, sobre sua natureza jurídica.
Alexandre de Morais diz que o Preâmbulo:
[...] deve sintetizar sumariamente os grandes fins da Constituição, servindo de
fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo
para a atividade do governo. [...] por não ser constitucional, o texto do Preâmbulo
não poderá prevalecer contra o texto da Constituição Federal, assim como
também não poderá ser paradigma comparativo para a declaração de
inconstitucionalidade, porém será uma de suas linhas mestras interpretativas 55.
Mas o que se cumpre deste enunciado? Mesmo que não tenha obrigatoriedade
pode-se dizer que a sociedade deve praticar o respeito à diversidade. O Supremo
53
Ibid., p. 122-123.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Lex: Legislação
administrativa. Vade Mecum. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
55 MORAES, 2011, p. 14-15.
54
180
Tribunal Federal pronunciou-se defendendo que não há motivo para invocar o Preâmbulo
como parâmetro de controle de constitucionalidade, não é norma de produção obrigatória
na Constituição. Quando questionado sobre este fato, o STF declarou, na ADI 2.076-AC56,
a irrelevância jurídica do mesmo, por não se situar no domínio do Direito, em outras
Ações Diretas de Inconstitucionalidade57.
Aldir Guedes Soriano diz que, em se tratando do Preâmbulo, a tolerância é
fundamental para sociedade brasileira que quer ter fraternidade, pluralidade e justiça em
relação à religião; sem esta não há liberdade como valor supremo58.
Outra menção a Deus foi feita no discurso de promulgação. O então Presidente da
Câmara, saudoso Deputado Ulisses Guimarães dotado de muita emoção e ovacionado
pela Assembleia, tinha em mãos o documento original da Constituição que acabara de
assinar: “Declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da
justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude e que isto se cumpra”59.
A expressão “Deus” deve ser entendida em sentido amplo, como sinônimo de
“divindade”, ser dotado de poderes sobrenaturais, digno de respeito e devoção.
2.3.2
A Liberdade De Crença Na Constituição Federal De 1988
A liberdade de crença, conforme José Afonso da Silva e pelo seu livre exercício,
compreende-se a liberdade de escolher, aderir e mudar de religião; é a liberdade de
também não se praticar nenhuma religião. José Afonso da Silva afirma a máxima de que:
“[...] a liberdade de um vai até onde não prejudique a liberdade de outro”. 60 A liberdade de
crença, como já observado, está tutelada na Constituição Federal em seu artigo 5º, sem
reservas de religiões e seitas religiosas.
Esta liberdade, bem como as demais liberdades desdobradas da liberdade
religiosa, em parte não sofrerá intervenção do Estado. Pelos questionamentos feitos em
relação a esta intervenção, não se deve basear em nome da religião o critério de análise
se o Estado deve ou não proteger os ritos e tradições de determinadas religiões, mas
deve-se, sim, observar quais os objetivos religiosos, por assim dizer, firmando-se a
possibilidade de proteção efetiva do Estado.
O legislador constituinte de 1988 deu ao direito à liberdade religiosa, e por
consequência à liberdade de crença, o caráter de cláusula pétrea; o que não quer dizer
que por advento de uma nova Constituição não seja alterada esta condição 61. Percebe-se
que o direito fundamental de credo deve ser interpretado em relação a outros direitos
diversos sobre a ótica da proporcionalidade, para que na situação de conflito um direito
não se sobreponha ao outro.
Em suma, a crença nada mais é do que a fé exteriorizada e pode ser confundida
pela sociedade no que tange a algumas distintas religiões. Há uma distinção entre crença
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2076-AC – “Preâmbulo da Constituição não constitui norma
central. Invocação da proteção de Deus não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição
estadual, não tendo força normativa”. Relator Ministro Carlos Velloso, julgamento em 15 de agosto de 2002,
Plenário, DJ de 8 de agosto de 2003.
57 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14 ed. Revisão atual e ampliada. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 758.
58 SORIANO, 2002, p. 86.
59 DISTRITO FEDERAL. Promulgação da Constituição de 1988 – Deputado Federal Ulisses Guimarães –
Presidente da Assembleia Constituinte. Brasília,1988. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=mlSDpvriBeM>. Acesso em: 19/03/2012.
60 SILVA, 1999, p. 252.
61 OLIVEIRA, Fabio Dantas de. Aspectos da liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16. n. 2966. 15.ago.2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19770>.
Acesso em: 20/03/2012.
56
181
e rituais, assim como há uma distinção entre fé e fanatismo, mas estas diferenciações
serão tratadas a seguir.
2.4
O DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA E SUA LIMITAÇÃO
Não há no ordenamento jurídico brasileiro a tutela de um direito absoluto, e assim
sendo, nada obsta que a liberdade religiosa, assim com as demais liberdades, encontrem
limites, se na sua exteriorização ferir preceitos como a ordem, tranquilidade e sossego
públicos62.
Silva Junior diz que “[...] para cada caso concreto deve haver uma solução justa e
não uma aplicação literal do texto da lei”63, salvo os casos em que forem comprovadas
práticas ilícitas.
Apresentam-se no ordenamento jurídico brasileiro disposições sancionatórias aos
crimes de intolerância à liberdade religiosa. Os dispositivos do Código Penal, analisados
em relação aos casos são os artigos 140, § 3º que tratam da injúria em resposta aos
tratados internacionais com intenção de aplacar qualquer preconceito, e artigo 208 e §
único que regulam dos crimes de intolerância, bem como o emprego de violência 64.
Nelson Hungria destaca que:
O sentimento religioso é protegido independentemente da religião professada. O
Estado moderno não impõe esta ou aquela religião, mas faltaria à sua própria
missão se se abstivesse de assegurar pleno ensejo à difusão ou cultivo do
sentimento religioso.65
Entende-se por bem que no Estado brasileiro não há de se falar na existência de
uma única religião com fundamentos de verdade, justiça e fé; mas não há como não
observar que muitas situações de intolerância e violência provêm do entendimento
errôneo sobre a religião em sua multiplicidade e sua verdade.
2.5
A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
Destaca-se em breve pesquisa que a legislação infraconstitucional federal,
resguarda, dispositivos de direitos e garantias, além dos já citados, acerca da liberdade
religiosa e suas derivações, entre outros, nos seguintes diplomas legais do ordenamento
jurídico brasileiro:
 Código Civil: Art. 44, IV. Atribuições de personalidade jurídica às organizações
religiosas.
 Constituição Federal e Código Tributário Nacional: Art. 150, VI, b e §§ CF. isenção
de pagamento de tributos aos templos de qualquer culto.
 Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA: Art. 15 e 16, III. A criança e o
adolescente têm direito à liberdade [...] de crença e culto religioso.
62
MORAES, 2011, p. 52.
SILVA JUNIOR, Edison Miguel da. No Estado democrático, não existe direito absoluto. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2007-mar27/estado_democratico_nao_existe_direito_
absoluto>. Acesso em: 25.out.2011.
64 SORIANO, 2002, p. 128-129.
65 Cf. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, p. 53.
63
182
 Estatuto do Idoso: Art. 10º, §1º, III. É obrigação do estado e da sociedade,
assegurar à pessoa idosa liberdade [...] de crença e culto religioso.
Pela pesquisa realizada, observa-se que, além do âmbito federal, há ampla tutela
feita à liberdade, como a Lei 5.896/90 da cidade de Ribeirão Preto 66, no Estado de São
Paulo.
Percebe-se, também que há pouca manifestação dos Tribunais de Justiça acerca
da liberdade religiosa. Contudo, pesquisou-se a presença de decisões de julgados acerca
de liberdade religiosa no sentido amplo.
Sobre o assunto, Luis Roberto Barroso diz que “o direito à liberdade religiosa, e
suas vertentes, independem de lei infraconstitucional em razão de sua eficácia contida;
[...] a atividade infraconstitucional eventualmente surgirá para regular, especificamente a
possibilidade de delimitação do direito protegido”67
3
O ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS NO BRASIL
Nada obsta em apontar que as pesquisas das jurisprudências foram realizadas
através de consultas em sites de todos os Tribunais de Justiça Brasileira, cujas ementas
de Ações Diretas de Inconstitucionalidade mencionam:
Com incidência ao artigo 208 do Código Penal:
EMENTA: CRIMES DE LESÃO CORPORAL GRAVE, PERTURBAÇÃO DE
CULTO RELIGIOSO (PROCISSÃO) E RESISTÊNCIA- MATERIALIDADE
COMPROVADA - AUTORIA CONFESSA - DELITOS CONFIGURADOS EM SUA
MODALIDADE DOLOSA- Desclassificação do delito de lesão corporal para a
modalidade culposa - Inadmissibilidade - Dolo eventual demonstrado - Estado de
embriaguez - Fato que não exime o agente de culpa - Teoria da "actio libera in
causa"- Sentença Mantida- Recurso Desprovido.
APELAÇÃO CRIMINAL (APELANTE) Nº 1.0000.00.339813-8/000 - COMARCA DE
BELO HORIZONTE – Apelante(s): Joel Alves de Oliveira - Apelado(s): Ministério
Público Estado Minas Gerais, PJ 3 V CR Comarca Belo Horizonte- Relator: Exmo.
Sr.
Des.
Luiz
Carlos
Biasutti
–
02/10/2003
[...] acusado denunciado, pelo Ministério Público Estadual, como incurso nas
sanções do art. 129, § 2º, inciso IV (lesão corporal grave, resultando deformidade
permanente na vítima), art. 163, § único, inciso I (dano qualificado- cometido com
violência à pessoa ou grave ameaça), art. 329 (resistência) e art. 331 (desacato),
art. 208, § único (perturbação de cerimônia ou prática de culto religioso, no caso,
procissão, com emprego de violência), todos do Código Penal.
[...]Após regular instrução criminal, Inconformado com a decisão, dela recorre o
acusado, por sua defensora, pleiteando a sua total absolvição, ou, senão, seja
absolvido das iras do art. 208, parágrafo único, e 329, desclassificando-se o delito
do art. 129, § 2º, IV, para o do art. 129, § 6º, do Código Penal, concedendo-lhe a
substituição da pena corporal por restritiva de direitos. [...].
ACÓRDÃO: Vistos etc., acorda, em Turma, a SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL do
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de
fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à
unanimidade de votos, EM NEGAR PROVIMENTO. (TJMG – AC
66
Lei 5.896/90: trata da vedação ao impedimento de construções de templos em bairros de baixa renda,
que venham a implicar em violação da liberdade de consciência e de crença, além da violação do livre
exercício dos cultos religiosos.
67 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 1 ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 222.
183
1.0000.00.339813-8/000 – 2ª Câmara Criminal – Rel. Des. Luiz Carlos Biasutti em
02/10/2003) 68.
No tocante à liberdade religiosa e tratamento transfusional, apresentam-se Agravos
de Instrumento69:
1) AGRAVO DE INSTRUMENTO - 1ª Ementa
DECIMA CAMARA CIVEL - DECISÃO DO RELATOR 1. Recurso contra decisão
que determinou a realização de transfusão de sangue em paciente, diante da
recusa de aceitar a intervenção por razão de credo. 2. O agravado, às fls. 309,
noticia o falecimento da agravante. 3. Assim sendo, DECLARO PREJUDICADO o
agravo, por ausência do pressuposto de constituição regular do recurso. (TJRJ 0018847-70.2008.8.19.0000 (2008.002.18677) – Rel. Des. Celso Peres em
04/12/2008)
2) AGRAVO DE INSTRUMENTO – 11ª CÂMARA CÍVEL
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE
NÃO FAZER. ESTABELECIMENTO HOSPITALAR. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO
DE TUTELA PARA PERMITIR O PROCEDIMENTO DE TRANSFUSÃO
SANGÜINEA EM PACIENTE PRATICANTE DA SEITA DENOMINADA
TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PRODUÇÃO DE PROVAS. Trata-se de ação de
cumprimento de obrigação de não fazer, com pedido de liminar inaudita altera
para, pleiteando o estabelecimento hospitalar autor, a antecipação dos efeitos da
tutela, no intuito de obstar que os réus oponham qualquer obstáculo à realização
da transfusão sangüínea, imprescindível para salvar a vida da paciente / 1ª
agravante, visto que, como os demais agravantes, professa a seita denominada
como Testemunhas de Jeová e, por este motivo, não permitem a prática de
transfusão sangüínea. Os réus/agravantes requerem que o hospital/agravado
comprove nos autos a origem do sangue e hemoderivados transfundidos à
paciente e a realização dos testes mínimos obrigatórios quanto aos males
decorrentes da hemotransfusão. Entretanto, conforme corretamente decidiu o
magistrado a quo, ao indeferir a pretensão dos agravantes, tal prova é
desnecessária à solução da lide posto que, não restou demonstrado nos autos ter
a 1ª agravante contraído doenças decorrentes da transfusão sangüínea. Registrese, que o artigo 130 do Código de Processo Civil confere poderes ao Magistrado
para, de ofício ou a requerimento da parte, determinar os meios probantes
necessários à instrução do processo, indeferindo diligências inúteis ou
protelatórias, e sendo ele o destinatário da prova, encontra-se dentro do seu juízo
aferir a necessidade, ou não, de sua realização. Recurso conhecido e improvido.
(TJRJ - 2007.002.09293 – Rel. Des. Cláudio de Melo Tavares em 27/06/2007).
3) AGRAVO DE INSTRUMENTO – 18ª CÂMARA CÍVEL
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de Jeová.
Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta
sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante,
senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração
dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e
haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido. (TJRJ 2004.002.13229 – Rel. Des. Carlos Eduardo Passos em 05/10/2004).
Confirmam-se, pelos agravos citados acima, situações favoráveis ao direito de
recusa à transfusão de sangue do paciente que é Testemunha de Jeová. Porém, observase que no agravo 1 (um) em função do perigo, o agravante veio a óbito; já o agravo 3
(três) tem negado o seu provimento, em análise, justamente, o perigo de vida do paciente.
68
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Processo nº 1.0000.00.339813-8/000. Disponível em:
<http:www.tjmg.jus.br>. Acesso em 10/06/2012. Conteúdo inteiro disponível no site do TJMG.
69 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Agravos de Instrumento. Disponível em: <http:www.tjrj.jus.br>.
Acesso em 10/06/2012. Conteúdo inteiro disponível no site do TJRJ.
184
A seguir apresentam-se pedidos de indenização com alegações de violação e
desrespeito ao direito destes religiosos em específico, além de um pedido de Habeas
Corpus em benefício do representante de um paciente falecido pela falta de tratamento
adequado70:
1) AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil - Danos moral e material Desrespeito a crença religiosa - Transfusão de sangue - Autora Testemunha de
Jeová - Não cabimento - Intervenção médica procedida tão somente após
esgotados outros tratamentos alternativos - Prevalência da tutela à vida sobre
suas convicções religiosas - Recurso não provido. (JTJSP- 256/125)
2) AÇÃO INDENIZATÓRIA- Reparação de danos - Testemunha de Jeová Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação - Convicções
religiosas que não podem prevalecer perante o bem maior tutelado pela
Constituição Federal que é a vida - Conduta dos médicos, por outro lado, que se
pautou dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as
transfusões sangüíneas após esgotados todos os tratamentos alternativosInexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue
quando da internação da autora-Ressarcimento, por outro lado, de despesas
efetuadas com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto
não terem sido os valores despendidos pela apelante - Recurso não provido.
(Apelação Cível Nº 123.430-4 - Sorocaba - 3ª Câmara de Direito Privado- Rel.
Flávio Pinheiro em 07.05.02 - V.U.).
3) HABEAS CORPUS - Pretendido trancamento de ação penal - Homicídio Paciente que influenciou para que a vítima fatal testemunha de Jeová, não
recebesse transfusão de sangue - Alegando os motivos espirituais e de religião Fato típico - Ausente a falta de justa causa - Ordem denegada. (Habeas Corpus n.
253.458-3 - 3ª Câmara Criminal – Rel. Pereira Silva em 05.05.98 - V.U.).
Observa-se que no pedido de Habeas Corpus, citado acima, houve indeferimento.
No tocante aos dias de guarda religiosa, ou seja, aos sábados, o entendimento dos
Tribunais, bem como do Supremo Tribunal Federal, quase sempre, é de não ser favorável
se comprovado que o objeto do Recurso ou da Ação Direta de Inconstitucionalidade não
seja “erga omnes”. Outrossim, estes entendimentos não se apresentam como regras.
Verifica-se que além da diversidade de crenças, a religiosidade humana se
expressou ao longo dos séculos de acordo com a cultura, tradições, valores de cada
época e lugar.
Neste sentido, os rituais religiosos são diversificados, exaltando a fé, esperança,
anseios e gratidão dos fiéis, procurando, assim traduzir o respeito e expectativas
daqueles que buscam se comunicar com sua divindade.
3.1 CRÍTICA ACERCA DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA
Não há como estudar a garantia à liberdade religiosa sem se observar as críticas
feitas sobre as religiões de matriz africana.
Todas as religiões possuem como característica, um rito que é uma ação ou prática
específica, que incluindo movimentos físicos e palavras de acompanhamento71, ou seja,
70
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Ações de Indenização e Habeas Corpus. Departamento de
Gestão de Acervos Bibliográficos – DGTEC. Disponível em: <http:www.tjrj.jus.br>. Acesso em 10/06/2012.
Conteúdo inteiro disponível no site do TJERJ.
71 HINNELLS, 1984, p. 234.
185
nada mais é do que um conjunto de regras que norteia as ações e cerimônias práticas
religiosas.
Em simbologia e linguagem, de acordo com Claudete Araújo Guerreiro Silva, “[...]
todos os rituais são classificados pela sua finalidade”72 como, por exemplo, ritos de
oferendas e oração, expiação, reforço vital, sacrifício, entre outros.73
Ao se pesquisar a crença de exteriorização da fé no Brasil, assim como em outras
partes do mundo, percebe-se que há manifestações quanto à diversidade religiosa, do
ponto de vista jurídico.
O desrespeito às religiões de raízes africanas se apresenta, muitas vezes, pela
falta de representação política, bem como pela deficiência de organização ou estrutura
centralizada e hierárquica, diferente das religiões católica e evangélica74.
Por ser de uma religião diferente, culto e crença que não se entende, há que se
criticar a fé? Fé em iorubá (um dos muitos dialetos africanos) significa Amor. Um ponto
cantado75 na Umbanda diz: “quem tem fé tem tudo, quem não tem fé não tem nada”.
Quem tem fé tem o saber, conhece o porquê de dedicar algum tempo de adoração ao
próximo e ao seu antepassado, como é feito em muitos cultos religiosos.
Ao se falar em fanatismo e ódio, tenta-se enfatizar um pouco o exagero e o não
entendimento de o que é ser um religioso. O fanatismo religioso, muito se aproxima de um
ideal sem propósito. Esta coisa de “matar-se” ou guerrear por que assim determinou “meu
Deus”, ao que se parece, é totalmente descabida; assim como é a guerra de décadas
entre Israel e Palestina.
E o ódio, em torno da religião que envolve mulçumanos e judeus? Por quê? Será
que o Deus de um é mais que o Deus de outro? Se é, por que o é? Talvez a questão seja
complexa e de respostas mais complexas ainda, mas mesmo assim, por quê?
A carga deste ódio todo reflete no mundo inteiro; intolerância passada de geração
para geração. Desde as sociedades mais primitivas transfere-se ao imaginário religioso
todas as adversidades, dores e sofrimentos humanos. O temor do desconhecido ainda é
um forte instrumento de opressão religiosa, assim como é elemento base para ignorância
a culminar em intolerância.
Pode-se aqui, concordar com o que disse Mandela: “Ninguém nasce odiando outra
pessoa pela cor da pele, origem ou religião [...] para odiar precisam aprender e se
aprendem a odiar, podem também aprender a amar”. É neste ponto que se percebe a
desorganização religiosa, a falta de senso, mas esse comportamento existe em muitas
outras religiões.
Faz-se necessário abordar, de forma breve a discussão surgida no Rio Grande do
Sul, após a aprovação do Código Estadual de Proteção aos Animais – Lei 11.915, em
2003.
Objeto de discussão no Estado do Rio Grande do Sul, o sacrifício de animais em
rituais religiosos foi matéria debatida em todos os meios sociais. Observou-se que o
assunto despertara maior interesse pelo fato e forma com que foi abordado em análise e
votação da Lei 12.131/2004. Deste feito culminou a decisão do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, pelo relato de Arakem de Assis:
72
SILVA, Claudete Araújo Guerreiro. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. São Paulo:
Paulinas, 2006. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/filosofia da religião>. Acesso em:
03/03/2012.
73 Ibid.
74 AZEVEDO, Eduarda Peixoto de. A tutela da liberdade religiosa na legislação infraconstitucional.
Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2010.Disponível em: <http:www.pucrio.br/pibic/relatorio_resumo2008/relatorios/ccs/dir/eduarda_peixoto_de_azevedo.pdf> Acesso em:
30/03/2012.
75 Ponto cantado: é muito comum nas sessões de Umbanda e de Candomblé; é semelhante ao uma reza
feita em coro acompanhada de toques de atabaques.
186
Ementa: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. SACRIFÍCIO RITUAL DE ANIMAIS.
CONSTITUCIONALIDADE.
1. Não é inconstitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao
art. 2.º da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao "Código Estadual de
Proteção aos Animais" o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de
matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Na verdade, não há
norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de
culto permitiria a prática.
2. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. VOTOS VENCIDOS. (Ação Direta de
Inconstitucionalidade Nº 70010129690, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Araken de Assis, Julgado em 18/04/2005)
Diante do exposto, na ausência de proibição legal quanto ao uso de animais em
rituais religiosos, a Lei 11.915/2003, do Rio Grande do Sul – Código Estadual de Proteção
aos Animais dispõe em parágrafo único do artigo 2º, que a “[...] não aplicação do artigo
em razão da liberdade de culto e liturgias que praticam o ritual”.
Em São Paulo, a lei de proteção deste Estado também traz muitas divergências de
opiniões, mas não há um posicionamento tão claro e definido a respeito do assunto como
a lei gaúcha. Percebe-se que a política serve-se dos preceitos religiosos para atrair
eleitores, manifestar ideias e elaborar propostas voltadas à formalização de interesses de
grupos religiosos.
Faz-se importante informar que tramita Câmara dos Deputados dois projetos
considerados polêmicos, apresentados pelo Deputado Pastor Marcos Feliciano (PSC-SP).
Acerca da matéria, o Projeto Lei 4331/12, mostra-se o mais complexo considerando a
tutela do direito a liberdade religiosa e suas derivações, uma vez que o projeto
apresentado tem por objetivo tornar crime o sacrifício de animais em rituais religiosos,
incidindo sobre o ato, pena de detenção e multa.76
Salienta-se que este ponto será abordado, de forma mais aprofundada em um
próximo trabalho de pesquisa.
4
CONCLUSÃO
A liberdade religiosa deve ser interpretada como direito fundamental representativo,
mas não se deve deixar de observar suas limitações, as sanções a serem aplicadas
àqueles que ilicitamente usam a religião como subterfúgios.
A tutela do Estado para a liberdade religiosa, que além de direito também é um
princípio, estende-se aos que preferem não aderir à religião alguma. Mas embora seja
livre a organização religiosa, espera-se do Estado o dever, conforme Aldir Guedes
Soriano, de disciplinar em regras gerais a manutenção da convivência pacífica entre
credos diferentes.
Percebe-se que o caráter laico do Brasil não se faz muito bem entendido. Costumase, ao invocar os direitos fundamentais de liberdade religiosa associar o texto do
preâmbulo da Constituição da República. Reforça-se aqui, que o texto do preâmbulo é
introdutório e não possui força normativa; e de acordo com Letícia de Campos Velho
Martel, o preâmbulo só teria força normativa se forem reproduzidas as suas palavras em
artigos constitucionais.
76
SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado. Noticia. 11 de novembro de 2011. Disponível em:
<http://al-sp.jusbrasil.com.br/noticias/2924048/audiencia-aborda-sofrimento-dos-animais-em-rodeios>.
Acesso em: 04/03/2013.
187
É fato que a discussão em torno da religião gera intolerância e incoerência em
alguns casos, tanto quanto é fato que sempre haverá conflito entre os demais direitos e
princípios fundamentais no que tange à liberdade religiosa e suas vertentes.
Este não é um direito absoluto, e será confrontado constantemente em debates e
discussões, e inevitáveis serão as acusações, assim como as defesas. O objetivo, enfim
estará em conhecer, entender e proteger para que não haja abuso em sentido amplo.
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189
EXPERIMENTAÇÃO DE MEDICAMENTOS
EM SERES HUMANOS NO DIREITO BRASILEIRO
Silvia Helena da Mata Caetano Demeterco
______________________________________
Graduanda do Curso de Direito do Unicuritiba
Graduada em Administração Hospitalar na Faculdade de
Estados Sociais do Paraná
Membro do grupo de estudos JUS VITAE – Pesquisa em
Biodireito e Bioética pelo UNICURITIBA.
Maria da Glória Lins da Silva Colucci
______________________________________
Mestre em Direito Público pelo UFPR
Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR
Prof.° titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA
Prof.° Emérita do Centro Universitário Curitiba
Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e
Bioética – JUS VITAE, do UNICURITIBA desde 2001
Prof.° adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética –
Brasília (SBB). Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná
Membro do CONPED – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
190
RESUMO
O Trabalho em questão contém informações acerca das Resolução 196/96 e 251/97 do
Conselho Nacional de Saúde. A primeira regulamenta as pesquisas em seres humanos
de forma mais geral e com dados essenciais para cumprimento de qualquer
experimentação. Já a segunda Resolução é voltada exclusivamente a experimentos com
fármacos. Para tratar de tal assunto é fundamental a abordagem dos princípios da
Bioética, quais sejam: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça distributiva. O
princípio da Dignidade Humana também é estudado, visto que é base para qualquer
trabalho na área. A intenção é finalizar com uma explanação do se trata o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e como que ele contribui para as pesquisas e como
protege as pessoas que delas participam.
Palavras chave: experimentos, fármacos, pesquisa clínica e Bioética.
ABSTRACT
The work in question contains information about Resolutions 196/96 and 251/97from the
National Health Council. The first one regulates researches on human beings on a more
general mode and with essential data for the compliance of any experimentation. Yet, the
second resolution is exclusively dedicated to experiments with drugs. To address this
issue is critical the approach of the principles of bioethics, namely: autonomy, beneficence,
non-maleficence and distributive justice. The principle of Human Dignity is also studied,
since it is the basis for any work in the area. The purpose is to conclude with an
explanation of what it stands for Free Consent Form and how it contributes to the
researches and how it protects people who take part in them.
Keywords: experiments, drugs, clinical research and bioethics.
1
INTRODUÇÃO
Desde o final da Segunda Grande Guerra Mundial havia documentos instituindo
regras, princípios e diretrizes para as pesquisas em seres humanos. O Brasil, em 1996,
estabeleceu seu próprio regulamento acerca do assunto e isso aconteceu com a
Resolução 196, que foi elaborada pelo Conselho Nacional da Saúde. Documento
fundamentado naquelas diretrizes, regras e princípios internacionais, além de estar em
consonância com legislações nacionais, como a Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, Código Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente. A Resolução
estabelece questões como: aspectos éticos, consentimento livre e esclarecido, riscos e
benefícios e outras questões técnicas relevantes aos experimentos.
Além daquela Resolução existe a 251/97 que é o foco neste Trabalho. Nesta seara,
o que este trabalho pretende abordar são questões como: será que a comunicação do
pesquisador com o sujeito da pesquisa é exaustiva e clara, evitando constrangimentos e
desentendimentos? Esse mesmo consentimento continua sendo o núcleo da questão,
como aconteceu na proposta dos Documentos internacionais?
Ainda, as pesquisas com seres humanos, sejam elas de natureza preventiva,
diagnóstica ou terapêutica têm que levar em consideração princípios éticos básicos
relacionados ao assunto, como: princípio da Dignidade Humana, princípio da
Beneficência, Não Maleficência, Justiça Distributiva e o princípio da Autonomia. Neste
trabalho mostrar-se-á quão importantes são estes princípios e ainda serão discutidas
191
questões como: Quem deve responder quando estes Princípios não são aplicados? O
Estado tem alguma responsabilidade nesse sentido?
Pode-se dizer que o principal objetivo aqui é analisar se o ser humano está sendo
respeitado e também se as Resoluções acima têm sido aplicadas de forma efetiva e
eficaz.
2
2.1
2.1.1
EXPERIMENTAÇÃO DE FÁRMACOS EM SERES HUMANOS
REGULAÇÃO
Resolução 196/96
A Resolução 196/96 resultou da atuação do Conselho Nacional de Saúde, sendo
composta por diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres
humanos.
Fazendo uma análise detalhada, verifica-se que a Resolução é dividida em dez
capítulos, a saber1:
I. Preâmbulo: neste capítulo faz-se menção a diversos documentos,
nacionais e internacionais. Inicia-se dando ênfase aos documentos basilares da
experimentação em seres humanos, como o Código de Nuremberg (1947) e a
Declaração de Helsinque (1964). Cita a Lei Maior e legislações infraconstitucionais
que têm relação com o assunto, como o Código Civil e o Estatuto da Criança e do
Adolescente. As legislações esparsas também aparecem referidas no texto, como
por exemplo, o Decreto que dispõe sobre a retirada de tecidos, órgãos e outra
partes do corpo humano com fins humanitários e científicos (Decreto n.° 879, de
22/07/93).
Interessante observar que no Preâmbulo já são identificados os quatro princípios
da Bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Além de constar o
objetivo da Resolução: “...visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à
comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado”2.
II. Termos e definições: termos como: pesquisa, pesquisador responsável
patrocinador, indenização, ressarcimento, entre outros, são explicados nesta parte
da Resolução. São 16 vocábulos no total e por ser uma quantidade considerável
serão explicados neste trabalho, de acordo com a necessidade.
III. Aspectos Éticos da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos: os princípios
citados no Preâmbulo, aqui tomam forma e se desenvolvem. Há a relação do
princípio com o que se espera da pesquisa. Como, por exemplo, ao tratar da
autonomia fala-se sobre o consentimento livre e esclarecido dos indivíduos e sua
proteção, fazendo uma relação com a dignidade, autonomia e vulnerabilidade 3.
1
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996. Disponível em: <
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.
2 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996. Disponível em: <
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.
3 Vulnerabilidade é um dos termos tratados no capítulo II da Resolução e assim é conceituada: “refere-se ao
estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de
autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido.”.
192
No item dois deste capítulo explica-se o que será considerado como pesquisa e
quais as problemáticas tratadas na Resolução quanto aos procedimentos, não apenas
médicos, mas também:
[...] os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, sociológica,
econômica, física, psíquica ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicos ou
cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica. 4
São descritas, na terceira parte do capítulo, 23 exigências a serem observadas
para a realização das pesquisas. Dentre elas serão analisadas algumas com maior
detalhamento:
Exigência b: identifica que a pesquisa não pode começar diretamente com seres
humanos, ou seja, deve haver um prévio estudo realizado em laboratórios, em animais ou
inseridos em outros fatos científicos. Demonstra-se dessa forma o respeito ao ser humano
e que sua dignidade deve ser a análise primordial, acima de qualquer questão.
Exigência n: os benefícios alcançados devem ser disponibilizados às pessoas que
participaram das pesquisas, sendo que tal possibilidade deve estar prevista no protocolo
de pesquisa. Essa questão é interessante porque pode ser colocada como mais um
benefício aos possíveis sujeitos da pesquisa5, mas deve-se tratar de forma cautelosa e
não ser vista como uma chantagem ou meio de coerção, mas sim como algo natural do
processo.
Exigência o: determina a obrigatoriedade de que as descobertas que sejam
benéficas à população sejam divulgadas às autoridades sanitárias, observando-se o
intuito coletivo das experimentações.
IV. Consentimento Livre e Esclarecido: esse item faz relação indubitável
com a dignidade humana, a necessidade de consentimento do sujeito ou de seus
representantes legais é fundamental e deve seguir aspectos pré determinados na
Resolução. Vale ressaltar que se dá atenção à questão da linguagem acessível,
visto a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa.
Os aspectos abrangidos neste capítulo são nove, além de requisitos e situações
em que possa ocorrer restrição à liberdade.
V. Riscos e Benefícios: a Resolução deixa claro que toda pesquisa é
passível de riscos, mas determina em um primeiro momento o que será
reconsiderado a ponto de se dar continuidade à pesquisa: conhecimento,
prevenção e alívio de sujeitos de pesquisas e pessoas que sofrem com os
mesmos problemas, além de que o risco em questão justifique o trabalho a ser
realizado.
Talvez, em razão do ocorrido na Segunda Guerra Mundial e em outros momentos
da história, o item dois deste capítulo da Resolução remete à real situação do sujeito da
pesquisa e pela necessidade de se considerar com suas condições: “As pesquisas sem
benefício direto ao indivíduo devem prever condições de serem suportadas pelos sujeitos
da pesquisa, considerando sua situação física, psicológica, social e educacional.”6
4
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996. Disponível em: <
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.
5 Para a Resolução 196/96 o Sujeito da pesquisa: “é o(a) participante pesquisado(a), individual ou
coletivamente, de caráter voluntário, vedada qualquer forma de remuneração.”.
6 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996. Disponível em: <
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.
193
Interessante observar que no capítulo em questão remete-se à responsabilidade
dos danos decorrentes de riscos aos pesquisadores responsáveis 7, patrocinadores8 e
instituição9. Assim como determina que se houver dano, estando ou não no termo de
consentimento, o sujeito da pesquisa tem direito à assistência integral e, além disso, à
indenização, que é um direito irrenunciável.
VI. Protocolo de Pesquisa: o protocolo de pesquisa deve obedecer a toda
uma metodologia que está descrita neste capítulo. Os itens exigidos vão desde a
apresentação do documento em português, passando por 13 descrições
detalhadas sobre a pesquisa em si, 8 informações relativas ao sujeito da pesquisa
e qualificação dos pesquisadores, que se resume ao Curriculum Vitae dos
mesmos.
O protocolo será submetido à revisão ética e sem os documentos especificados
não será aceito.
No que se refere à pesquisa nota-se, mais uma vez, a preocupação com a
justificativa da pesquisa, análise de riscos e benefícios, duração total da pesquisa e o que
havia sido dito anteriormente: “declaração de que os resultados da pesquisa serão
tornados públicos, sejam eles favoráveis ou não.”10
Com relação ao sujeito da pesquisa há a necessidade de informação das
características da população, os métodos, descrição das possibilidades de riscos, assim
como a gravidade dos mesmos, previsão de ressarcimentos11 e o mais importante,
descrito no item ‘e’:
Apresentar o formulário ou termo de consentimento, específico para a pesquisa,
para apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa, incluindo informações sobre as
circunstâncias sob as quais o consentimento será obtido, quem irá tratar de obtê-lo
e a natureza da informação a ser fornecida aos sujeitos da pesquisa.12
Nesse item demonstra-se a importância que o Comitê de Ética dedica ao
consentimento, sendo um dever repassar todos os dados acerca do mesmo, para se ter
todo respaldo de que o sujeito da pesquisa não terá problemas de qualquer natureza
relativos à sua real intenção de participar da pesquisa.
VII. Comitê de Ética Em Pesquisa: conhecido também pela abreviatura
CEP, o Comitê deve existir, em um número ou mais, nas instituições que realizam
pesquisas envolvendo seres humanos, com sua função de apreciar tais pesquisas.
O que mais chama a atenção no item acima e no subsequente é a obrigatoriedade
de uma equipe multi e transdisciplinar, a fim de tratar a situação com visões diferentes,
tudo em prol da pesquisa e seus benefícios. Há também a necessidade de serem
pessoas dos dois sexos e a possibilidade de consultores ad hoc. A presença de um
membro da sociedade também é uma condição interessante, para não aparentar que as
O pesquisador responsável, segundo a Resolução em questão é a: “pessoa responsável pela
coordenação e realização da pesquisa e pela integridade e bem estar dos sujeitos da pesquisa.”.
8 Pela Resolução 196/96, o patrocinador é a “pessoa física ou jurídica que apoia financeiramente a
pesquisa”.
9 A Instituição de pesquisa é uma “organização, pública ou privada, legitimamente constituída e habilitada
na qual são realizadas investigações científicas.”.
10 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.
11 Ressarcimento, conforme a Resolução 196/96, é: “cobertura, em compensação, exclusiva de despesas
decorrentes da participação do sujeito na pesquisa”.
12 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.
7
194
decisões tomadas no CEP são tendenciosas, sem considerar a situação em seu âmago,
assim como os interesses dos sujeitos e da coletividade. Indo nesse mesmo caminho,
em seu oitavo parágrafo cita-se que se o membro do CEP fizer parte da pesquisa não
poderá tomar decisão em nome do Comitê.13
VIII. Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS): antes mesmo de
se falar do capítulo em si, vale ressaltar o que é o Comitê Nacional, com as
palavras da própria Resolução:
A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS) é uma instância
colegiada, de natureza consultiva, deliberativa, normativa, educativa,
independente, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde.
O Ministério da Saúde adotará as medidas necessárias para o funcionamento
pleno da Comissão e de sua Secretaria Executiva. 14
Como se percebe acima, o Comitê Nacional tem várias competências, além de ser
independente. Exatamente por este motivo sua composição demanda uma cobrança
muito mais em sua composição e lista de atribuições.
O CONEP será composta por:
[...] 13 (treze) membros titulares e seus respectivos suplentes, sendo 5 (cinco)
deles personalidades destacadas no campo da ética na pesquisa e na saúde e 8
(oito) personalidades com destacada atuação nos compôs teológico, jurídico e
outros, assegurando-se que pelo menos um seja da área de gestão da saúde. 15
Um ponto muito relevante é que o CONEP/MS “[...] consultará a sociedade sempre
que julgar necessário”16. Ou seja, os assuntos não ficam fechados e sem participação dos
maiores interessados, há uma abertura para uma comunicação entre os dois extremos.
IX. Operacionalização: o capítulo é iniciado com a responsabilidade do
pesquisador: “A responsabilidade do pesquisador é indelegável, indeclinável e
compreende os aspectos éticos e legais.”17 . Isto é, mesmo que o sujeito da
pesquisa dê o seu consentimento, o risco e responsabilidade da pesquisa
continuam sendo do pesquisador. Esta é uma forma de frisar a necessidade de
estabelecer de forma clara e evidente os riscos e benefícios da pesquisa, que
podem ser motivos para que a pesquisa seja considerável não razoável, sendo
reprovada pelo CEP.
Estipula-se neste capítulo as sete obrigações do pesquisador, são itens mais
administrativos, relativos principalmente aos relatórios a serem confeccionados e sua
apresentação ao CEP.
O parágrafo quatro contém uma determinação muito importante relativa à
responsabilização do projeto aprovado pelo Comitê de Ética: “Uma vez aprovado o
projeto, o CEP passa a ser co-responsável no que se refere aos aspectos éticos da
pesquisa.”18. Aqui se pode, novamente, identificar a importância de que o projeto seja
13
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996.
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 24 fev. 2013.
14 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996.
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 24 fev. 2013.
15 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996.
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 24 fev. 2013.
16 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996.
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 24 fev. 2013.
17 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996.
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 24 fev. 2013.
18 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 196/96 de 10 de outubro de 1996.
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_96.htm>. Acesso em: 24 fev. 2013.
Disponível em:
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Disponível em:
195
minuciosamente trabalhado e que os riscos e benefícios sejam ponderados, de forma a
não trazer complicações ao sujeito da pesquisa e, por consequência, ao Comitê de Ética.
Uma responsabilidade dessa magnitude pode trazer complicações ao órgão, de forma até
de ser reconhecido de forma negativa perante à sociedade e comunidade científica.
A Resolução é finalizada com o capítulo X, onde constam as Disposições
Transitórias que não têm relevância para o Trabalho aqui apresentado.
2.1.2
RESOLUÇÃO 251/1997 DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE
Denise Oliveira entende que as Resoluções tratadas neste Trabalho têm natureza
própria, ou seja, definem seus termos, criam regras no que diz respeito a fiscalização e
estipulam regras de conteúdo próprio.19 Além disso, é importante observar que, conforme
analisa a autora: “As definições e regras gerais contidas na Resolução MS n.º 196/96
aplicam-se a todas as modalidades de pesquisa, ainda que sobre elas haja disposições
especiais, como expressamente previsto.”20.
Nesse mesmo sentido, o objetivo deste capítulo é analisar as especificações da
Resolução 251/97 no que complementa e regulamenta a Resolução 196/1996. Isto é, no
que se refere a pesquisa com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes
diagnósticos.
Já no seu Preâmbulo a Resolução em questão estabelece tais condições, fixando
que as disposições do Documento anterior são incorporadas ao novo. 21 Há informações
destinadas ao sujeito da pesquisa, colocando-o como quem deve ser o mais beneficiado,
em detrimento de todos os outros interesses: “[...] na pesquisa com novos produtos, a
dignidade e o bem estar do sujeito incluído na pesquisa devem prevalecer sobre outros
interesses, sejam econômicos, da ciência ou da comunidade.” 22 Além de determinar que
novos produtos sejam investigados apenas quando houver, de fato, “avanços
significativos em relação aos já existentes.”23
A segunda parte da Resolução que traz os termos e definições, regula as quatro
fases que obrigatoriamente devem ocorrer nos experimentos com fármacos. Que são as
seguintes24:
Fase 1: quando são feitos os primeiros experimentos em pessoas
voluntárias e sadias - observa-se nessa fase a importância dada à questão do
voluntariado. Utilizam-se novos princípios ativos ou novas formulações. Desta
forma consegue-se verificar preliminarmente a segurança na administração dos
componentes, assim como o perfil farmacocinético 25 e farmacodinâmico26.
Fase 2: é conhecido como Estudo Terapêutico Piloto. Nessa fase os
estudos são realizados com sujeitos que possuem uma determinada enfermidade
19
CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos: aspectos bioéticos. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 100.
20 CEZAR, 2012, p.100.
21 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
22 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
23 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
24 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
25 Segundo a Resolução em questão, são todas as modificações que um sistema biológico produz em um
princípio ativo.
26 A Resolução explica que se trata de todas as modificações que um princípio ativo produz em um sistema
biológico. É o estudo dos efeitos bioquímicos e fisiológicos dos medicamentos e seus mecanismos de ação.
196
ou condição patológica. A administração do princípio ativo é realizado em curto
espaço de tempo para determinar sua segurança e em um número pequeno de
pessoas.
Fase 3: é o chamado Estudo Terapêutico Ampliado. Nesta fase, como
sugere o próprio nome, a quantidade de pacientes aumenta e dois objetivos são
almejados: determinar o resultado risco/benefício curto e longo prazos das
formulações do princípio ativo e também determinar de maneira geral o valor
terapêutico relativo. É nessa fase se observam as reações adversas e
características do medicamento.
Fase 4: são pesquisas realizadas depois da comercialização, com o intuito
de vigilância, para estabelecer o valor terapêutico, surgimento de reações
adversas, assim como a confirmação das já descobertas na fase 3 e também para
determinar as estratégias de tratamento de tais reações. Nesta fase, como nas
anteriores, deve prevalecer a aplicação de normas éticas e científicas.
A responsabilidade do pesquisador também é item da Resolução, determinando-a
como indelegável e intransferível. E itens específicos, inerentes ao objeto da Resolução,
como por exemplo: “Comunicar ao CEP a ocorrência de efeitos colaterais e ou de reações
adversas não esperadas;”27 e “Recomendar que a mesma pessoa não seja sujeito da
pesquisa em novo projeto antes de decorrido um ano de sua participação em pesquisa
anterior, a menos que possa haver benefício direto ao sujeito da pesquisa.”28
No capítulo Protocolo de Pesquisa são 18 itens que tratam, além de outras, das
seguintes questões: descrição da substância e suas propriedades físicas, químicas e
farmacêuticas; detalhamento sobre os estudos experimentais com animais, materiais e
métodos. Determina também que, de acordo com a importância da pesquisa, e na
ausência de outros métodos, o CEP pode aprovar projetos sem cumprimento de todas as
fases da farmacologia, sendo que nesse deve haver também a aprovação da CONEP e
da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/MS); justificativa para uso do placebo;
garantir com o patrocinador o acesso ao fármaco caso haja comprovação de sua
superioridade em relação ao tratamento já realizado; descreve, ainda, que no caso de
fármacos com ação psicofarmacológica deve-se analisar os riscos de dependência.29
2.2
2.2.1
PRINCÍPIOS
Autonomia
A Autonomia tem relação direta com o Consentimento Informado, isso porque o
sujeito da pesquisa tem que ser livre para tomar decisões e atitudes que entender
melhores para ele ou para uma pessoa da qual ele é responsável, devendo ser
respeitado. Nesse sentido que os CEP devem trabalhar, fiscalizando se a vontade das
pessoas está sendo considerada e que o estudo não está cursando caminho diferente do
planejado.
Um exemplo factível de quando este princípio é violado é quando as pessoas são
chamadas para servirem no experimento mediante favores remuneratórios. Isso pode ser
27
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
28 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
29 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução 251/97 de 07 de agosto de 1997. Disponível em:
< http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/reso_97.htm>. Acesso em: 15 mar. 2013.
197
um chamariz para pessoas que não têm conhecimento ou que, simplesmente não vêem
problema de serem tratadas de tal forma, devido suas necessidades econômicas.
A origem etimológica da palavra é do grego autos (eu) + nomos (lei)30, ou seja, a
própria pessoa tem a capacidade de se auto governar, tomar a decisão que achar melhor
em cada circunstância. Pode-se dizer que essa autonomia pode existir ao tomar uma
decisão, agir e, também, no sentido de ter liberdade, “independência do controle da
influência”31, que é a forma que deve prevalecer quando é dado o consentimento para
participação em algum experimento.
Para que exista a autonomia deve haver a possibilidade de mais de um caminho a
ser seguido, ou que o próprio homem possa criá-lo. É uma liberdade necessária para a
tomada de qualquer decisão.
Pode-se dizer que tal princípio está ligado ao avanço que houve com relação à
relação médico paciente, ou seja, não apenas à questão da experimentação, mas ao
envolvimento das duas partes, a que precisa de ajuda e que está disposta a ajudar. O que
o médico disser ao paciente será fundamental para sua decisão sobre qualquer assunto,
que pode ser, até mesmo, não receber amparo da Medicina. Isso demonstra que a
autonomia não está apenas presente em pesquisas, mas no dia a dia de qualquer um. O
que varia é o grau dessa autonomia: ela pode ir desde a decisão, por exemplo, de uma
pessoa não querer ser atendida por um determinado profissional, o que é algo simples,
como até participar de um teste com uma substância que pode virar um medicamento,
bem mais complexo!
Para finalizar tal assunto é de essencial importância observar que a autonomia é
uma reserva constitucional, assegurada no Art. 5.°, II da Lei Magna, que determina: “II ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei;”32. Ou seja, é um direito inerente ao ser humano, que deve ser respeitado e observado
em qualquer circunstância.
2.2.2
Beneficência
Esse princípio tem como objetivo fazer o bem, e conforme Clotet e Kipper é uma
forma de se manifestar a benevolência33. A beneficência tem natureza intrínseca,
devendo ser motivada pelo próprio ser humano. É uma condição de caráter, sendo
manifestada de fora para dentro. Há a necessidade de estimulação para ser demonstrada,
já fazendo parte da índole da pessoa.
No papel do patrocinador de uma pesquisa esse princípio se manifesta quando o
bem estar do sujeito da pesquisa fica em primeiro lugar, podendo ser conceituada por
Clotet e Kipper como:
O princípio da beneficência tem como regra norteadora da prática médica,
odontológica, psicológica e da enfermagem, entre outras, o bem do paciente, o
seu bem-estar e seus interesses, de acordo com os critérios do bem fornecidos
pela medicina, odontologia, psicologia e enfermagem 34
30
DIAFÉRIA, Adriana; FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Biodiversidade, patrimônio genético e
biotecnologia no Direito Ambiental. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.105.
31 DIAFÉRIA; FIORILLO, 2012, p.105.
32 PORTAL DO PLANALTO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 mar. 2013.
33 CLOTET, Joaquim; KIPPER, Délio José. Princípios da Beneficência e Não-maleficência. Brasília:
Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 42.
34 CLOTET; KIPPER; 1998, p. 44.
198
Não há como se escrever sobre o assunto sem remeter ao Juramento de
Hipócrates, que é proferido em formaturas de Bacharéis em Medicina: “Aplicarei os
regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento.”35 Interessante
observar que desde Hipócrates o médico tem o papel de fazer o bem, percebe-se isso
quando se pergunta aos jovens que pretendem cursar Medicina; grande maioria responde
que quer fazer o bem aos doentes e salvar vidas. Isso já está enraizado na população,
que vê o médico como uma pessoa que presta o bem e que pratica a Medicina para a
cura de doenças.
Mas, como defendem Clotet e Kipper, esse princípio deve ter limites e deve variar
de acordo com as situações apresentadas, sendo que essencial se considerar a
dignidade individual, ou seja, não se pode desrespeitar uma vida humana quando se
percebe que a mesma não tem condições de se manter diante de uma doença terminal. 36
Como afirmam os autores: “É difícil poder mostrar onde fica o limite entre a beneficência
como obrigação ou dever e a beneficência como ideal ético que deve animar a
consciência moral de qualquer profissional.”37
Uma questão muito interessante a ser considerada: até que ponto há um real
benefício quanto às informações dadas a pacientes e seus mais próximos? Será que dizer
a verdade de pronto é preferível a omiti-la com o intuito de conseguir identificar uma forma
de fazer o bem ao ser humano?
Desta forma, entende-se que o princípio da beneficência tem que ser utilizado de
maneira cautelosa. Sua aplicação deve ser ponderada, considerando-se até que ponto o
mesmo pode trazer conforto (emocional e físico) ao paciente. Além disso, não se pode
esquecer do meio em que o ser humano vive e as consequências que uma má
administração de informações pode trazer.
2.2.3 Não Maleficência
O princípio da não maleficência é estudado por alguns autores como um
desdobramento do princípio da Beneficência. Porém, para que se tenha uma visão mais
ampliada e detalhista, neste Trabalho serão abordados separadamente, como
propuseram de forma inédita, Beauchamp e Childress, em sua obra Principles of
Biomedical Ethics.38 Os autores tratam os dois princípios da seguinte forma: “[...] não
maleficência ou a obrigação de não causar danos, e beneficência ou a obrigação de
prevenir danos e promover o bem.”39 Ou, também, como defendem Iannotti e Junior: “[...]
uni-los numa mesma ideia obscurece distinções relevantes, nivelando-os, ainda,
aprioristicamente, no mesmo plano hierárquico.”40 E, da mesma forma, aduzem Clotet e
Kipper:
[...] o princípio de não maleficência envolve abstenção, enquanto o princípio da
beneficência requer ação. O princípio da não maleficência é devido a todas as
pessoas, enquanto que o princípio da beneficência, na prática, é menos
abrangente.41
35
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Juramento de Hipócrates.
Disponível em: < http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em: 24 mar. 2013.
36 CLOTET; KIPPER; 1998, p. 46.
37 CLOTET; KIPPER; 1998, p. 46.
38 CLOTET; KIPPER, 1998, p. 41.
39 CLOTET; KIPPER, 1998, p. 41.
40 IANNOTTI, Giovano de Castro; JUNIOR, Ítalo Marcio Batista Astoni . Pesquisa médica em seres
humanos, não maleficência e autoexperimentação homeopática. Revista Bioética, Brasília, v.20, n.1,
2012. p. 50.
41 CLOTET; KIPPER, 1998, p. 47.
199
Devidamente conceituados e diferenciados pode-se prosseguir com o estudo do
princípio em questão.
A manifestação primária do princípio sucede do latim, com a expressão primum
non nocere, que significa: antes de tudo, não causar dano.42 Sua origem, assim como o
do princípio anteriormente tratado, foi com Hipócrates e está presente no Juramento que
leva o nome do Pai da Medicina:
Aplicarei os regimes [...]nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém
darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda.
Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. 43
Importante observar que o risco é inerente às pesquisas envolvendo seres
humanos, mas de forma alguma deve prevalecer sobre os benefícios que as mesmas
podem causar. Desta forma pode-se dizer que tal princípio, a priori, deve ser o primeiro a
ser analisado ao se montar uma proposta de experimentação.
Justifica-se o termo a priori, porque o princípio não deve ser sempre analisado de
forma fechada, mas em conjunto com o da beneficência, sobretudo quando se têm
dúvidas da atitude ou decisão a ser tomada. Neste cerne é que se identifica o porquê de
alguns autores acabarem por tratá-lo juntamente, pois não é fácil mencioná-lo sem fazer
alusão ao outro.
Enfim, o que se deve considerar em todos os casos é o benefício ao ser humano, o
respeito à sua dignidade e a justiça acima de qualquer circunstância, independentemente
de qual princípio prevalecerá.
2.2.4 Justiça Distributiva
O princípio da justiça distributiva conhecido também apenas como princípio da
justiça, leva este nome pois tem como objetivo distribuir de forma equânime os riscos e
benefícios de uma pesquisa.
Importante a diferenciação feita nas Diretrizes Internacionais com relação a essas
duas denominações e o porquê que o da justiça distributiva é melhor aplicado no âmbito
da pesquisa biomédica:
A justiça se refere à obrigação ética de tratar cada pessoa de acordo com o que se
considera moralmente correto e apropriado, dar a cada um o lhe é devido. Na ética
da pesquisa em seres humanos o princípio se refere, especialmente, à justiça
distributiva, que estabelece a distribuição equitativa de encargos e benefícios ao
participar da pesquisa.44
Entende-se que tal princípio vem com outro objetivo, além dos acima citados, que é
o de equilibrar a aplicação dos princípios da beneficência e maleficência. Isso porque a
intenção do mesmo é a proteção do bem-estar do sujeito da pesquisa, principalmente
quando se trata de situações que envolvem a vulnerabilidade do ser como ensina Maria
Helena Diniz:
[...] deve haver uma distribuição equânime tanto dos ônus como das vantagens
decorrentes da pesquisa, permitindo-se distinções entre pessoas vulneráveis, para
a proteção de seu bem-estar ou de seus interesses, por serem incapazes de dar o
42
IANNOTTI; JUNIOR, 2012. p. 50.
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Juramento de Hipócrates.
Disponível em: <http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em: 24 mar. 2013.
44 BRASIL, Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos. São Paulo:
Loyola, 2004. p. 28.
43
200
consentimento pós-informação, pela sua situação subordinada, e pela falta de
meios alternativos de obter assistência médica”45
O fato da pessoa/comunidade/país ser vulnerável não pode ser um motivo para
que a pesquisa seja feita desconsiderando as peculiaridades existentes. Não se pode
esquecer que a possibilidade de favorecer o sujeito deve existir e ser a prioridade. Se isso
não ocorrer, só poderá haver a pesquisa se houver algum bem para a comunidade do
qual ele faça parte.
Fiorillo e Diaféria, porém, levantam uma questão polêmica com relação a esse
princípio. Entendem que a justiça não tem um conceito absoluto e assim se torna vago,
sendo difícil aplicá-la em países de terceiro-mundo, discutindo a possibilidade da
alteridade ser considerada para se conseguir ser mais assertivo ao lidar com o princípio. 46
Autores já colocam a alteridade como um princípio da Bioética, como Claudia Magalhães:
“Os princípios da bioética são: a beneficência, não maleficência, autonomia, justiça e
alteridade.”47 A autora assim explica o novo princípio adotado:
O princípio da alteridade significa respeito pela outra pessoa, de modo que o
homem deve agir em relação aos outros como quer que os outros se comportem
em relação a ele mesmo.48
Mesmo que seja mais uma forma de se preservar o sujeito da pesquisa, como
Fiorillo e Diaféria explicam, um novo conceito é convite para muitas discussões, então até
haver um consenso se passará algum tempo.49
2.2.5 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Pode-se afirmar, sem dúvida alguma, que a base para a estruturação de uma
Resolução e a criação de princípios próprios para a Bioética é o princípio da Dignidade da
Pessoa Humana. Tudo em favor do ser humano, para que não seja desrespeitado como
pessoa e ser vivo.
A primeira coisa que deve estar em mente é o fato de que o princípio aqui exposto
é fundamento determinado pela Carta Magna (Art. 1.°, inciso III) 50, devendo sobrepor-se a
qualquer situação, não podendo ser deixado de lado em detrimento de qualquer bem, por
mais valioso que se apresente.
Considerando desta forma, deve-se, antes da aplicação de qualquer experimento,
ter a certeza que a dignidade, princípio maior, está sendo respeitado. Nesse sentido,
Claudia Loureiro faz sua explanação: “Se houver conflito entre a livre expressão da
atividade científica e o direito fundamental da dignidade humana, este deverá prevalecer,
pois é o fundamento do Estado Democrático de Direito.”51
Se for tomado como parâmetro o imperativo categórico de Kant, conseguir-se-á
adequar este princípio ao que o filósofo ensinava, no sentido de que o ser humano não
pode ser considerado como um meio para a consecução de fins, mas sim que ele é o fim
em si mesmo, assim, em um experimento não pode a pessoa ser utilizada sem qualquer
45
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 422-423.
DIAFÉRIA; FIORILLO, 2012, p.108-110.
47 LOUREIRO, Claudia Regina Magalhães da Silva. Introdução ao Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2009. p.
12.
48 LOUREIRO, 2009. p. 15.
49 DIAFÉRIA; FIORILLO, 2012, p.110.
50 PORTAL DO PLANALTO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 26 mar. 2013.
51 LOUREIRO, 2009. p. 15.
46
201
escrúpulo, a fim de, única e exclusivamente, favorecer um grupo específico de indivíduos,
mas, sim, também com o objetivo de ajudar o sujeito da pesquisa na solução de um
problema preexistente.52
Nesta altura cabem comentários com relação ao termo Coisificação, que algumas
vezes se escuta ou lê. Utiliza-se esta expressão para diversos objetivos, mas aqui se
pode demonstrar como se aplica em um experimento. Isso ocorre quando o sujeito da
pesquisa não sabe exatamente qual é o seu papel, quais os benefícios que pode ter ou
riscos que corre ao participar de determinada pesquisa. A falta de conhecimento e sua
ignorância no assunto podem dar margem a experimentos que não respeitam as
Resoluções vigentes no que se refere ao consentimento informado e aos princípios
estudados, tendo como foco o da dignidade da pessoa humana. Com relação a esse
assunto, Barros Júnior esclarece: “[...] não haverá dignidade onde não existir o efetivo
respeito pela vida, pela integridade ou onde não houver limitação do poder estatal. Esta
concepção do homem-objeto é exatamente o oposto da noção de dignidade da pessoa
humana.”53
Neste panorama pode-se acrescentar também o pagamento dos patrocinadores
aos sujeitos da pesquisa, que é totalmente proibido e vai em sentido completamente
oposto ao princípio que está sendo estudado neste capítulo. O jornalista Marcos Coronato
explana:
Mas por que alguém aceitaria tomar um remédio que ninguém sabe exatamente
como funciona? Na maior parte dos casos, o convite é feito pelo médico a pessoas
que não obtiveram resultados com a terapia tradicional, ou cuja doença não tem
tratamento eficaz. O convite não pode envolver dinheiro, porque o pagamento ao
sujeito de pesquisa é proibido no Brasil (na Europa também. Já nos Estados
Unidos e no Canadá é permitido e os testes são até anunciados no rádio). A idéia
é que as pessoas decidam participar só pelos possíveis benefícios a sua saúde. 54
Com segurança pode-se considerar neste cenário, pessoas não instruídas como
também pessoas esclarecidas. Independentemente de sua classe social ou do seu grau
de estudo, há participação nas pesquisas – sem saber os riscos que está correndo - em
troca de uma remuneração indevida.
É uma atitude antiética por parte do patrocinador, mas é uma realidade existente
no País. Segundo Stella Galvão, o Conselho Nacional de Saúde e Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa alegam que tal prática fere a ética e “[...] introduz vícios na relação
entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa.”55
Nesse sentido há um desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana,
pelo fato de que o ser humano não está sendo considerado em sua essência, não houve
um consentimento com base em informações prévias que relacionassem os riscos da
pesquisa. O foco dado foi a remuneração.
Interessante, por outro lado, salientar a importância da análise da dignidade da
pessoa humana por um viés social, que complementa a ideia acima descrita, no âmbito
de que independente do ser humano, a dignidade é uma garantia intangível56.
O enfoque deste capítulo foi para alguns dos vários aspectos que a dignidade
52
KANT, Emmanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin
Claret, 20111, p.61.
53 JUNIOR, Edmilson de Almeida Barros Junior. Direito Médico abordagem constitucional da
responsabilidade médica. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.24.
54 CORONATO, Marcos. Cobaias humanas. Super Interessante. São Paulo, 01/03/2004: Disponível em:
<http://super.abril.com.br/ciencia/cobaias-humanas-444410.shtml >. Acesso em: 26 mar. 2013.
55 GALVÃO, Stella. Os testes clínicos com sadios e a polêmica da remuneração. Conselho Regional de
Medicina do Estado de São Paulo. São Paulo, Março de 2008: Disponível em:
< http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=349>. Acesso em: 26 mar. 2013.
56 JUNIOR, 2011. p. 24.
202
humana pode seguir. Este princípio é muito rico e por ser inerente à pessoa humana, há
um leque muito grande de informações.
2.3
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Para que qualquer pesquisa seja realizada deve haver o consentimento do sujeito
mediante esclarecimentos de todos os procedimentos, objetivos e fases que o
experimento terá. O sujeito não pode sofrer qualquer tipo de coação ou coerção para que
aceite participar do experimento, assim como não pode receber remuneração ou qualquer
outro privilégio que o incentive.
Neste capítulo, o objetivo é conceituar o consentimento, demonstrar quais são os
itens necessários a serem colocados ao sujeito, de que forma deve ser proposto a
qualquer pessoa, dentre outros aspectos.
Para Gozzo e Ligiera, o consentimento é um negócio jurídico que integra o contrato
de prestação de serviço médico-paciente, podendo ser regido pelo Código de Defesa do
Consumidor.57 A relação existente entre esses dois lados é fundamental, pois o médico é
quem tem o conhecimento e tem o dever de prestar informações para que a pessoa
possa tomar a decisão que lhe vier a ser mais benéfica. No caso das pesquisas em seres
humanos, a responsabilidade de obtenção do consentimento é do pesquisador
responsável.58
Vê-se que o consentimento informado não é uma exclusividade de experimentos,
mas sim do dia a dia do profissional médico. Qualquer tipo de procedimento deve ser
assentido pelo paciente. Desse modo percebe-se que é algo corriqueiro e que se deve
resguardar de todas as formas para que a autonomia e a dignidade da pessoa humana
sejam respeitadas.
No tocante a experimentos entende-se que a atenção deve ser redobrada, isso
porque haverá um procedimento ou administração de substâncias que não estão no
cotidiano, é uma pesquisa, de forma que há a possibilidade de não dar certo, e o sujeito
tem que estar ciente disso. Não é ético dar falsas esperanças, deve-se apresentar os
riscos, em contraponto com os benefícios e o sujeito que decidirá o que é melhor para ele.
O nome do documento apresentado para o sujeito é Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido – TCLE e é assim conceituado na Cartilha de Pesquisa Clínica do Conselho
Regional de Enfermagem de São Paulo:
Processo pelo qual um paciente confirma voluntariamente a sua disposição em
participar de um estudo clínico, após ter sido informado sobre todos os aspectos
que sejam relevantes para sua tomada de decisão. Esse consentimento deve ser
documentado por meio de um formulário de consentimento informado (TCLE) a
ser preenchido , assinado e datado. 59
O termo deve ter linguagem clara para que o sujeito entenda perfeitamente o que
se quer no projeto. Deve-se pensar que são pessoas que não tem conhecimento de
57
GOZZO, Débora; LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva,
2012, p.93.
58 CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cartilha de Pesquisa Clínica.
Disponível em: < http://portal.crfsp.org.br/publicacoes-/doc_download/121-cartilha-da-comissao-depesquisa-clinica.html >. Acesso em: 28 mar. 2013.
59 CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cartilha de Pesquisa Clínica.
Disponível
em:
<
http://portal.crfsp.org.br/publicacoes-/doc_download/121-cartilha-da-comissao-depesquisa-clinica.html >. Acesso em: 28 mar. 2013.
203
termos técnicos e nem tem a obrigação de ter! O termo tem que ter 9 (nove) itens60: 1.
Justificativas para que o estudo seja realizado; 2. como que será realizado; 3. lista dos
efeitos colaterais e riscos possíveis; 4. lista dos benefícios esperados caso o estudo dê
certo; 5. informação sobre outras possibilidades de tratamento; 6. descrição da forma de
acompanhamento; 7. apresentação de como e quando o medicamento será administrado;
8. nome e contato dos investigadores e 9.possibilidade de recusa em participar o estudo
ou de retirada do consentimento a qualquer momento, sem que isso signifique prejuízo.
Entende-se, ao verificar todas as exigências formais, que se houver todos os
tópicos acima exigidos, de forma clara e detalhada, o sujeito terá condições para tomar
uma decisão. Um formulário completo como esses dá segurança para o sujeito,
principalmente pelo fato de se ter o contato direto com os investigadores. Vale a pena
ressaltar uma situação observada nas questões acima: os riscos aparecem antes dos
benefícios. Pode ser algo psicológico, mas se houvesse a inversão poderia até ser
considerada uma forma de tentar induzir a pessoa a aceitar participar do estudo.
3
CONCLUSÃO
O Brasil é um país que tem proporções continentais e que, conforme verificado no
decorre desta Monografia, tem sido um dos países que mais tem pesquisas em
desenvolvimento. Está certo que o tamanho dele não é parâmetro para tal estatística, mas
é um alerta para que algumas questões sejam revistas.
Há, de fato, uma estrutura: estamos amparados por duas Resoluções que são
extremamente detalhadas e que têm por base nossa Lei Magna e outros importantíssimos
Códigos e Estatutos. Há também uma preocupação grande com relação aos princípios
tão discutidos, mas muitas vezes abstratos demais para aplicação e entendimento da
população.
Uma crítica a ser colocada é porque não haver uma lei, assim como temos para
outros casos da Bioética. Um assunto como o experimento é muito invasivo para ser
tratado apenas por uma Resolução, é uma situação tão delicada que está sem uma
regulação legal efetiva e coercitiva. Deve-se pensar que a cada tempo temos novos
medicamentos no mercado e não se sabe se passaram por um rígido controle dos
Comitês. Os Comitês têm um papel fundamental, mas dotam de muita discricionariedade,
não havendo uma padronização: o que se fazer para um caso e o que fazer para outro
caso.
Interessante observar também a questão da sociedade brasileira utilizar
medicamentos que na sua grande maioria não foram analisados e aprovados em nosso
País. Até que ponto isso é saudável? Não seria mais correto uma pesquisa com a
população em que o mesmo será aplicado? Mesmo que seja um tanto quanto filosófico e
romântico, o ideal é que houvesse acompanhamentos paralelos, com comunidades,
países, pessoas diferentes!
Além disso, tem-se a preservação da dignidade do ser humano, tão amplamente
abordada. Até que ponto o Termo de Consentimento Livre e Informado tem eficácia em
uma pesquisa? Talvez até haja uma falha na exposição deste Termo e, por consequência,
um consentimento que não é válido, isto porque as informações não foram claras o
suficiente.
Deve-se entender que, conforme explanação detalhadíssima das Resoluções, o ser
humano, em hipótese alguma pode ser prejudicado, ou seja, os riscos devem sim ser
60
CONSELHO REGIONAL DE FARMÁCIA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cartilha de Pesquisa Clínica.
Disponível
em:
<
http://portal.crfsp.org.br/publicacoes-/doc_download/121-cartilha-da-comissao-depesquisa-clinica.html >. Acesso em: 28 mar. 2013.
204
ponderados, não podem ser omitidos com a esperança que talvez haja benefícios. Não!
Os riscos e benefícios devem ser tratados de forma conjunta e equilibrada. Já se tem uma
carga muito negativa a respeito do assunto e não é justo fazer a população passar por
algo parecido, é cruel!
Acredita-se, desta forma, que o ser humano como pessoa, paciente e participante
de uma pesquisa só terá mais amparo quando a situação for tratada pelo Legislativo, de
forma a solidificar um entendimento e assim beneficiar a população como um todo.
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2013.
206
A MECANIZAÇÃO DA LAVOURA E A REINSERÇÃO
DO CORTADOR DE CANA-DE-AÇÚCAR NO SETOR
SUCROALCOOLEIRO BRASILEIRO
THE MECHANIZATION OF FARMING AND THE
REINSERTION OF SUGARCANE CUTTER IN THE
BRAZILIAN ALCOHOL AND SUGAR INDUSTRY
Bruno César Gurski
______________________________________
Engenheiro Agrônomo (UFPR)
Mestrando em Ciência do Solo (UFPR/CAPES)
Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
Membro do grupo de pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae (CNPq)
Maria da Glória Colucci
______________________________________
Advogada pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil
Especialista em Filosofia do Direito pela PUC-PR
Mestra em Direito pela UFPR
Profa. Titular do UNICURITIBA
Presidente do grupo de pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae (CNPq)
207
RESUMO
Procurou-se analisar no texto aspectos referentes à subordinação dos trabalhadores
rurais aos capitais agroindustriais e financeiros, à causa da dependência dos cortadores
de cana-de-açúcar por políticas sociais e à indagação sobre a contribuição para o êxodo
rural e o crescimento não planejado da população urbana. A previsão de recapacitação
dos cortadores de cana-de-açúcar está estimada em cerca de 165 mil trabalhadores, só
no Estado de São Paulo. O número de trabalhadores da mecanização agrícola cresceu
25%, entre 2006 e 2008, já o número de trabalhadores canavieiros não especializados
registrou queda de 3,8 %. O problema atual da alta taxa de desemprego da classe dos
cortadores de cana-de-açúcar só tende a piorar se soluções mais eficientes não forem
tomadas.
Palavras-chave: Colheita mecanizada, queima da palha, recapacitação profissional.
ABSTRACT
The text is aimed at analyzing aspects relating the subordination of rural workers to agroindustrial and financial capitals, because of dependence of sugarcane cutters by social
policies and the question into the contribution to the rural exodus and unplanned growth of
urban population. The prediction of retraining sugarcane cutters is estimated at around
165,000 employees, only in state of São Paulo. The number of workers in the agricultural
mechanization grew 25% between 2006 and 2008, now the number of unskilled sugarcane
workers declined by 3.8%. The current problem of high unemployment in class of
sugarcane cutters only get worse if more efficient solutions are not taken.
Keywords: Mechanized harvesting, straw burning, job retraining.
1
INTRODUÇÃO
A pesquisa começa abordando a origem da agricultura no mundo, enfatizando o
fato de ser uma agricultura de subsistência baseada somente no trabalho humano.
Posteriormente, comenta-se sobre a sustentabilidade como uma nova forma de se pensar
a agricultura, com ênfase nos três setores principais do desenvolvimento sustentável: o
social, ambiental e econômico.
A mecanização agrícola no Brasil é apresentada como decorrência de um processo
histórico-político, refletindo com grande influência no setor sucroalcooleiro. É então
apresentado um panorama geral do setor sucroalcooleiro com base em estatísticas e
diagnósticos de diversos autores e entidades públicas. Passa-se então, ao principal tema
ambiental atualmente discutido no Brasil que é a proibição da queima da palha da canade-açúcar como uma das principais formas de incentivo à mecanização da cultura da
cana-de-açúcar. Por meio de um enfoque social, faz-se um diagnóstico da situação
histórica e atual do cortador de cana-de-açúcar nesse contexto e as mudanças
ocasionadas pela mecanização da lavoura. Como uma forma de remediação do problema
social da alta taxa de desemprego no setor, é abordada a recapacitação desse cortador
de cana-de-açúcar, realizando sua reinserção na própria cadeia produtiva sucroalcooleira.
Procurou-se analisar no texto aspectos referentes à subordinação dos
trabalhadores rurais aos capitais agroindustriais e financeiros, à causa da dependência
dos cortadores de cana-de-açúcar por políticas sociais e à indagação sobre a contribuição
para o êxodo rural e o crescimento não planejado da população urbana.
208
2
2.1
SUSTENTABILIDADE: UMA NOVA FORMA DE PENSAR A AGRICULTURA
OS PARADIGMAS DA AGRICULTURA ATUAL
A agricultura é um sistema econômico que teve início em aldeias fixas juntamente
com o pastoreio em propriedades familiares ou clãs. As técnicas de sobrevivência para
obtenção do alimento se iniciaram com a coleta de produtos vegetais, passando para
caça e pesca que exigiam técnicas e instrumentos apropriados à atividade, mas essas
técnicas eram diretamente dependentes da disponibilidade dos produtos na natureza. A
agricultura rudimentar iniciou no período Neolítico, cerca de 7.500 a 6.000 anos a.C. nas
regiões dos Balcãs, Criméia, Ásia Menor, Cáucaso, Palestina e Iraque. Era denominada
“cultura da enxada” porque era predominantemente manual1.
A agricultura depende do grau de conhecimento tecnológico, que pode limitar a
capacidade de produção, mas todas as sociedades desenvolvem pelo menos, as técnicas
mínimas necessárias a sua sobrevivência.
Segundo Ignacy Sachs, os sistemas produtivos deveriam ser baseados em projetos
sustentáveis com o uso da biomassa. A otimização do uso da biomassa deve cumprir os
seus cinco principais usos: combustíveis, suprimentos, alimento, fertilizante e ração
industrial. O mais importante requisito é o desenvolvimento de uma química verde para
substituir plenamente a energia fóssil pelos biocombustíveis2.
Essa questão energética juntamente com o desenvolvimento são temas inerentes a
todos os países do mundo, porque são fundamentos do bem estar social. A energia é,
consequentemente, uma atividade socioeconômica que responde a uma política
energética praticada pelo Estado que tem o dever de respeitar a sustentabilidade
ambiental e corporativa. Galvão e outros autores defendem uma análise em que a
sustentabilidade nos sistemas energéticos deve ser vista em razão do ser humano.
Posteriormente, sintetizam que o homem é afetado por elementos socioeconômicos,
recursos e suprimentos e pelo meio ambiente, portanto, a possibilidade do
desenvolvimento sustentável é diferente a cada momento e em cada local3.
Segundo Leonardo Boff, a crise ambiental é conceitual e não econômica. O termo
“Economia Verde” ganha ênfase para evitar a questão da sustentabilidade que se
encontra em oposição ao atual modo de produção e consumo. A questão central do
desenvolvimento sustentável não é salvar a Terra, é como fazer para salvar a civilização,
essa é a grande questão que muitos acabam não dando importância. O etanol, por
exemplo, é dado como energia limpa e alternativa, mas todo o seu processo de produção
é altamente poluidor4.
Os três pilares do desenvolvimento sustentável, segundo Sachs, seriam: “[...]
atender simultaneamente os critérios de relevância social, prudência ecológica e
viabilidade econômica, ou seja, harmonizar os objetivos sociais, ambientais e
econômicos”5.
1
MARCONI, M. A. Antropologia: uma introdução. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.119-127.
SACHS, I. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p.33-34.
3 GALVÃO, L. C. R.; GRIMONI, A. B.; UDAETA, M. E. M. Iniciação a conceitos de sistemas energéticos
para o desenvolvimento limpo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p.34-37.
4 BOFF, L. A ilusão de uma economia verde. In: Radis comunicação e saúde: nova chance ao
desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro - RJ. nº 112. Dez. 2011, p.43-44.
5 SACHS, 2002, p.35.
2
209
2.2
A
MECANIZAÇÃO
SUCROALCOOLEIRO
AGRÍCOLA
E
SEU
REFLEXO
NO
SETOR
Para Mialhe a mecanização agrícola foi criada para o uso racional, sendo
considerada a chave para o desenvolvimento e crescimento econômico da agricultura
moderna. Ela é descrita como:
[...] um conjunto ou sistema de máquinas empregadas de forma técnica e
economicamente organizadas na execução de tarefas exigidas pela produção
agrícola, visando obter o máximo de rendimento com o mínimo de dispêndio de
energia, tempo e capital6.
Segundo Martine e Beskow, as origens da modernização agrícola brasileira
encontram-se na década de 50, com a pretensão de substituição das importações. A
partir de 1964 houve a implantação de parques industriais extensivos sob a ótica
conservadora do governo militar. Em paralelo ocorria uma fase de rápido crescimento
econômico denominada “Milagre Brasileiro”, que permitiu privilegiar uma forma mais
moderna de produção agrícola7.
Houve fortes estímulos e subsídios a culturas consideradas dinâmicas, dentre elas
o café e a cana-de-açúcar, por serem destinadas à exportação para regular a balança
comercial brasileira e por demandarem máquinas e insumos agrícolas. Na década de 60
desenvolveu-se um movimento para a implantação de um pacote tecnológico estrangeiro
baseado no modelo norte-americano de produção agrícola chamado “Revolução Verde”,
que utilizava insumos agrícolas, principalmente os químicos, conjugado com o uso
intensivo da mecanização agrícola. O elevado preço de determinados produtos agrícolas
no mercado internacional contribuiu para consolidar esse novo sistema. Assim, o Brasil
desistiu da agricultura de subsistência e adotou uma agricultura nova denominada de
“Agronégocio”, aumentando sua dependência do mercado externo8.
Com a criação do programa federal do Pró-Alcool em 1975, o plantio da cana-deaçúcar aumentou de forma exponencial, criando necessidade crescente de mão-de-obra
para trabalhar principalmente na colheita, levando as usinas sucroalcooleiras a buscarem
trabalhadores em regiões distantes de onde estavam instaladas. Prova disso foi a
contratação de “bóias-frias” advindos do Nordeste, culminando no resultado do Censo
Agropecuário de 1980 que acusou um aumento significativo de trabalhadores ocupados
em atividades agropecuárias passando de 17,6 milhões em 1970 para 21,2 milhões em
19809.
Baccarin et al. descrevem a rotina que tinha um típico cortador de cana-de-açúcar:
O processo iniciava- se com o trabalhador, com auxílio de um podão (espécie de
facão de lâmina mais larga), cortando rente ao solo os colmos de cana e os
depositando, em montes ou em leira contínua, na rua central do eito de trabalho,
composto normalmente por cinco ruas de cana. Após era feito, também
manualmente, o carregamento da cana cortada, por outro grupo de trabalhadores,
em carroças, carretas de tratores ou em pequenos caminhões para que produto
fosse transportado para as usinas e destilarias, aonde viria a ser transformado em
rapadura, açúcar e/ou álcool10.
6
MIALHE, L. G. Manual de mecanização agrícola. São Paulo: Agronômica Ceres, 1974, p.9-14.
MARTINE, G.; BESKOW, P. R. O modelo, os instrumentos e as transformações na estrutura de
produção agrícola. In: MARTINE, G.; GARCIA, R. C. Os impactos sociais da modernização agrícola. São
Paulo: Caetés, 1987, p. 19-20.
8 Ibid, p.19-22.
9 Ibid, p.41-56.
10 BACCARIN, J. G.; GEBARA, J. J.; BARA, J. G. Trabalhadores rurais nas empresas sucroalcooleiras do
estado de São Paulo – evolução recente. Cadernos Ceru, série 2, v. 22, n. 1, junho de 2011, p.77.
7
210
Segundo Martine, a modernização agrícola criou um problema social muito grave:
ao intensificar a utilização de mão-de-obra em determinadas épocas específicas do ano,
como na colheita da cana-de-açúcar, reduziu-se a oferta de empregos estáveis ao longo
do ano. Esse emprego temporário atraiu muitos trabalhadores pelo rápido retorno
financeiro, mas geralmente esse emprego era associado a uma residência no local,
levando as famílias a uma desestruturação das ocupações que antes eram garantidas
pela pequena produção de subsistência11. No setor sucroalcooleiro se reduziu o número
de trabalhadores empregados e diminuiu o poder de negociação dos sindicatos que
mobilizavam os trabalhadores por meio de greves12.
A subordinação dos trabalhadores rurais aos capitais agroindustriais e financeiros
causa uma grande dependência destes por políticas sociais que geralmente não são
prioridade do governo e nem das grandes empresas, contribuindo para o êxodo rural e o
crescimento não planejado da população urbana13.
Segundo Ortega e outros autores, a mecanização da colheita da cana-de-açúcar
vem se intensificando desde a década de 80, levando à diminuição do emprego rural
temporário em todas as regiões do Brasil. Aliado a isto existe outro problema que é o
fenômeno da terceirização da execução das atividades agrícolas realizadas por meio de
empresas de serviços situados no meio urbano diminuindo ainda mais os postos de
trabalho no setor rural14.
Estimativas apontam que a área colhida mecanicamente no Estado de São Paulo
passou de apenas 18% da área total com cana, em 1997, para 40%, em 2006, e a área
colhida mecanicamente, sem queima da palha passou de 21% para 73% do total da área
colhida com colheitadoras15.
As inovações mecânicas na cultura da cana-de-açúcar estão presentes em todas
as fases da cultura: preparo do solo, plantio, tratos culturais e principalmente na colheita
diminuindo ainda mais o número de empregos no setor, porque a mecanização diminui os
gastos com mão-de-obra, o rendimento é muito superior, além de diminuir os impactos no
meio ambiente por não haver a necessidade da queima da palha. Dados indicam que em
um dia de colheita uma colheitadeira mecânica, utilizada em condições ideias, pode cortar
até 960 toneladas de cana, enquanto um cortador manual corta cerca de sete toneladas
por dia. Consequentemente, a colheitadeira mecânica realiza o trabalho de
aproximadamente 137 homens em um dia. A colheita mecanizada da cana-de-açúcar só
não ocorre em todas as regiões porque não é possível utilizar as colheitadeiras em áreas
com declive superior a 12%, pelo custo elevado do equipamento, pelas modificações
necessárias a serem realizadas na parte logística e nas usinas e também pela cultura da
cana ser de ciclo semi-precoce, porque gera uma necessidade de um novo sistema de
plantio obedecendo a um espaçamento próprio para o trânsito das máquinas16.
11
MARTINE, G.; Êxodo rural, concentração urbana e fronteira agrícola. In: MARTINE, G.; GARCIA, R.
C. Os impactos sociais da modernização agrícola. São Paulo: Caetés, 1987. p. 59-79
12 DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Desempenho do setor
sucroalcooleiro brasileiros e os trabalhadores. Estudos e Pesquisas. Ano 3, nº 30 ,2007, p.12.
13 ANGELA A. K. Alguns efeitos sociais da modernização agrícola em São Paulo. In: MARTINE, G.;
GARCIA, R. C. Os impactos sociais da modernização agrícola. São Paulo: Caetés, 1987. p. 99-123.
14 ORTEGA, A. C.; GRALIPP, A. A. D.; JESUS, C. M. Terceirização e emprego rural na agricultura do
Cerrado Mineiro: os casos da mecanização no café e na cana-de-açúcar. In: CAMPANHOLA, C.; SILVA, J.
G. O novo rural brasileiro: novas atividades rurais. V.6 - Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica,
2004. p. 96-97.
15 PAES, L. A. D. Áreas de expansão do cultivo da cana. In: MACEDO, I. C. (Org.). A energia da cana-deaçúcar: doze estudos sobre a agroindústria da cana-de-açúcar no Brasil e sua sustentabilidade. 2 ed. São
Paulo: UNICA, 2007. p. 125-133.
16 ORTEGA et al., op. cit., p.114-120.
211
2.3
PANORAMA DO SETOR SUCROALCOOLEIRO
Em 2000/01, a produção de cana-de-açúcar no Brasil alcançou 254,9 milhões de
toneladas, em uma área de 4,8 milhões de hectares. Em 2008/09, a produção atingiu
536,6 milhões de toneladas, aumento de 110,5%, em uma área de 8,9 milhões de
hectares, um crescimento de 85,4%. A produção de etanol passou de 10,5 bilhões de
litros, em 2000/01, para 27,6 bilhões de litros, em 2008/09, aumento de 162,9%, e a de
açúcar passou de 16,0 milhões de toneladas, em 2000/ 01, para 31,3 milhões de
toneladas, em 2008/09, crescimento de 95,6%17.
Com o preço do petróleo em alta, a adição do álcool em aditivo a gasolina é uma
opção natural. A porcentagem de álcool anidrido na gasolina passou de 13% em 1990
para 20% em 2011. A produção de cana-de-açúcar no Brasil passou de 496.353.211
milhões de toneladas em 2007 para 623.719.902 milhões de toneladas em 2011. As
exportações brasileiras de álcool etílico foram de 1.905.419.419 litros, gerando uma
receita de US$ 1.014.260.873,00 dólares18.
Com a cotação do açúcar alcançando grandes níveis no mercado internacional,
crescem as incertezas sobre o destino da safra brasileira de cana-de-açúcar ao mesmo
tempo em que a produção de açúcar para exportação pode garantir alta lucratividade.
Com isso, embora se preveja ampliação de 69,5% na área colhida e de 77,6% na
produção de cana-de-açúcar, o emprego de canavieiros cairia em 63,9%, entre 2006 e
2015, no Centro-Sul19.
Seria uma diminuição significativa no emprego setorial e que poderia trazer
impactos sociais consideráveis, se não houver perspectivas de emprego em outros
setores e não se implantarem programas específicos de requalificação profissional20.
2.4
A LEGISLAÇÃO SOBRE A QUEIMA DA PALHA DA CANA-DE-AÇÚCAR
O art. 27 da lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 explicita que “é proibido o uso
de fogo nas florestas e demais formas de vegetação”21. Mas a queima da palha de canade-açúcar para fins de colheita manual é prevista como uma peculiaridade justificável,
devido ao fato de ser uma atividade socialmente e tecnicamente aceita, porque
antigamente não existia maquinário agrícola para a colheita.
O Poder Público estabeleceu o decreto nº 2.661, de 8 de julho de 1998 que
regulamenta o art. 27, § único da lei nº 4.771/65, estabelecendo no capítulo IV (da
redução gradativa do emprego do fogo), o art. 16 estabelece o seguinte:
O emprego do fogo, como método despalhador e facilitador do corte de cana-deaçúcar em áreas passíveis de mecanização da colheita, será eliminado de forma
gradativa, não podendo a redução ser inferior a um quarto da área mecanizável de
cada unidade agroindustrial ou propriedade não vinculada à unidade
agroindustrial, a cada período de cinco anos, contados da data de publicação
deste decreto22.
17
MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil. Anuário estatístico da
agroenergia. Brasília: MAPA/ACS, 2009. 160 p.
18 ALCOPAR – Associação de Produtores de Bioenergia do Estado do Paraná. Estatísticas. Disponível em:
<http://www.alcopar.org.br/estatisticas/hist_prod_br.php> Acesso em: 19 jun. 2012.
19 DIEESE, 2007, p. 15-19.
20 BACARRIN et al., 2011, p. 81-82.
21
BRASIL. Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965. Código Florestal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4771.htm>. Acesso em: 18 mai. 2012.
22
BRASIL.
Decreto
nº
2.661
de
8
de
julho
de
1998.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d2661.htm>. Acesso em: 18 mai. 2012.
212
Essa prerrogativa do Poder Público é ambientalmente correta, no entanto, não é
suficiente para promover a sustentabilidade da cadeia sucroalcooleira em curto prazo,
porque é crescente o apelo social ao desenvolvimento sustentável e corporativo,
sintetizado no art. 225 da Constituição Federal:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações23.
Em São Paulo, a lei n. 11.241, de 19/9/2002 estabelece que as queimadas devam
ser eliminadas até 2031, em áreas não mecanizáveis (declividade acima de 12%), e até
2021, em áreas mecanizáveis (declividade abaixo de 12%). Por sua vez, o decreto federal
nº 2.661/98 trata apenas das áreas mecanizáveis e estabelece o ano de 2018, como
prazo para extinção completa da queima dos canaviais (PAES, 2007).
O Estado de São Paulo é o maior produtor de cana-de-açúcar do Brasil e, por
conseguinte, possui a maior responsabilidade de tentar reduzir o emprego do fogo na
colheita. Esse dever foi satisfeito pelo firmamento do “Protocolo Agroambiental” 24 em
junho de 2007, criado pelo Estado de São Paulo juntamente com a Secretaria Estadual do
Meio Ambiente e a ÚNICA (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo), que prevê a
antecipação do final das queimadas da cana-de-açúcar em São Paulo para 2014, em
áreas mecanizáveis, e 2017, em áreas não mecanizáveis.
O protocolo prevê, dentre outras diretrizes, a demarcação das áreas produtoras, a
proteção das nascentes, a redução do consumo de água, além de boas práticas
trabalhistas e sociais. As indústrias sucroalcooleiras que aderirem à determinação
governamental receberão um selo ambiental, que servirá de credencial para a futura
comercialização do álcool fabricado. O documento antecipa em sete anos, de 2021 para
2014, a extinção da prática da queima da palha em áreas planas, onde é possível
introduzir a colheita mecanizada. Mesmo em regiões onde a inclinação é superior a doze
graus, consideradas não mecanizáveis com tecnologias existentes, o prazo foi antecipado
em catorze anos em relação ao que determina a lei, de 2031 para 2017. Embora a
adesão ao Protocolo seja voluntária, sua edição deixa clara a opção, pelo menos, das
lideranças dos empresários paulistas, em extinguir, o quanto antes, as queimadas 25.
Por outro lado, entre 2006 e 2007 verificou-se uma mudança no discurso dos
empresários sucroalcooleiros que, ao invés de continuar destacando os empregos
gerados na cana-de-açúcar, passaram a enfatizar a necessidade de agirem com maior
celeridade para que se extinguisse a queimada dos canaviais26.
2.5
A SITUAÇÃO DO CORTADOR DE CANA-DE-AÇÚCAR
Nos tratos culturais e na colheita da cana-de-açúcar são empregados em torno de
um milhão de assalariados no Brasil. É difícil precisar esse número, porque parte dos
trabalhadores é empregada de forma ilegal e temporária. Também há variações conforme
23
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em: 02 jun. 2012.
24
SÃO PAULO. Protocolo Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro. Disponível em:
<http://www.unica.com.br/userFiles/Protocolo_Assinado_Agroambiental.pdf> Acesso em: 09 jun. 2012.
25 FREDO, C. E.; VICENTE, M. C. M.; BAPTISTELLA, C. S. L.; VEIGA, J. E. R. Índice de mecanização na
colheita da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo e nas regiões produtoras paulistas, junho de
2007. Análises e Indicadores do Agronegócio, São Paulo, v. 3. Disponível em: http://www.iea.sp.gov.br.
Acesso em: mar. 2008, p.4.
26 BACARRIN et al., 2011, p. 83-85.
213
o clima, mudanças de remuneração e outros fatores. Outro fator que contribui para o
achatamento salarial é a terceirização. As usinas vêm transferindo os custos de corte,
carregamento e transporte da cana das áreas mais distantes para terceirizadas ou
fornecedores, que, por sua vez transferem para terceiros. Essas empresas terceirizadas
tendem a assegurar piores condições de salário e trabalho para os trabalhadores do que
as usinas27.
O pagamento do corte manual é feito proporcionalmente à quantidade, em
toneladas, que o trabalhador corta no período de pagamento. Esse método faz com que o
trabalhador se esforce até o limite de sua força física28. Sabe-se que o padrão de
adoecimento do cortador de cana-de-açúcar está estreitamente relacionado com o modo
de organização e de realização do seu trabalho. Para piorar a situação, as empresas
medem o potencial do trabalhador rural pela sua capacidade de permanecer ausente dos
serviços de saúde29.
O descumprimento das leis trabalhistas e de acordos e convenções coletivas de
trabalho marcam as relações de trabalho do setor. Entre outras práticas, o rebaixamento
da diária, a redução da base salarial convencionada; a elevação da tarefa convencionada
por meio da classificação irregular da cana; erros ou fraudes na medição e na conversão
e o não pagamento de verbas salariais, como repouso semanal remunerado, férias e 13º
salário30.
Além disso, a profissionalização do setor, o aumento da fiscalização e a busca de
selos sociais e ambientais por parte das usinas fizeram com que a formalização
crescesse significativamente nos últimos anos. Porém, isso não significa que a
remuneração dos canavieiros seja adequada e nem que as condições de trabalho sejam
boas31.
Percebe-se uma diminuição de 10.708 pessoas, entre 2007 e 2008, e de 11.184
pessoas, entre 2008 e 2009. O número de pessoas ocupadas em junho de 2007 foi 80,2%
maior que o número de pessoas ocupadas em dezembro do mesmo ano, podendo-se
notar a grande sazonalidade no número de empregos do setor sucroalcooleiro. Devido a
essa sazonalidade, as regiões produtoras de cana-de-açúcar recebem grande número de
migrantes no período de corte da cana-de-açúcar. A situação desses trabalhadores é de
agricultores familiares empobrecidos, que tentam obter, através do serviço de corte de
cana, uma fonte de renda complementar32.
No auge da safra, entre maio e julho, o número de trabalhadores canavieiros não
especializados contratados chega a ser de mais de 90% do número constatado no mês
de janeiro33. Nos momentos de pico da atividade agrícola, as usinas recrutam
trabalhadores temporários por meio das empreiteiras que, na maioria das vezes, são
pequenas empresas ilegais em que predominam as relações informais de trabalho 34.
Em parte considerável das usinas, os trabalhadores que no primeiro mês de
contrato não conseguem cortar dez toneladas diárias são demitidos e substituídos por
outros que conseguem atingir tal média. Os trabalhadores são contratados, em geral,
através do contrato de safra. De uma safra para outra só são recontratados os que
demonstraram ter alcançado tal média na safra anterior. Trabalhadores com baixo índice
de faltas também são preteridos35.
27
DIEESE, 2007, p. 19-22.
BACARRIN et al., op. cit., p. 86-89.
29 SCOPINHO, R. A. Qualidade total, saúde e trabalho: uma análise em empresas sucroalcooleiras
paulistas. RAC, v. 4, n. 1, Jan./Abr., 2000. p. 94-95.
30 DIEESE, 2007, p.81.
31 Ibid, p. 85-86.
32 BACARRIN et al., 2011, p. 88-91.
33 Ibid, p. 91.
34 SCOPINHO, 2000, p. 99.
35 DIEESE, 2007, p.30.
28
214
Assim, segundo Scopinho,
[...] a política de gestão de recursos humanos do setor sucroalcooleiro em muito
contribui para que os trabalhadores não reconheçam a saúde como processo
social, mediado também por questões de ordem econômica e política, e um direito
básico de cidadania. Eles tratam a saúde como questão estritamente biológica,
individual e curativa, isenta de relações com seus modos específicos de trabalhar
e viver, apesar de ser o próprio corpo o único bem que possuem 36.
As questões sociais e de saúde dos trabalhadores são como que colocadas em
“planilhas” de cálculo de custo-benefício das empresas.
3
3.1
DA NECESSIDADE DE MUDANÇAS
AS
MUDANÇAS
NOS
SUCROALCOOLEIRAS
RECURSOS
HUMANOS
DAS
USINAS
A preocupação formal com a gestão do cortador de cana-de-açúcar surgiu na
década de 40, com a edição do decreto-lei nº 3.855 de 1941 que promulgou o Estatuto da
Lavoura Canavieira, que continha alguns dispositivos que tratavam da assistência
trabalhista e social dos trabalhadores. Posteriormente foi editada a lei nº 4.870 de 1965,
que previa a aplicação de 1% do valor da produção de cana e de açúcar e 2% da
produção de álcool em Programas de Assistência Social. Nota-se historicamente que a
assistência social é prática instituída, permanente e importante elemento da política de
recursos humanos do setor sucroalcooleiro porque sempre se criou uma legislação social
fortemente revestida de um caráter assistencial-paternalista37.
A atual política de recursos humanos do setor sucroalcooleiro visa a formar opinião
pública favorável à reestruturação produtiva, ao mesmo tempo que envolve os
trabalhadores na direção do alcance das metas organizacionais, no sentido de elevar os
índices de produtividade com máxima qualidade e baixo custo, independentemente da
qualidade de vida dos trabalhadores38.
O número de trabalhadores da mecanização agrícola cresceu 25%, entre 2006 e
2008, revelando a maior necessidade de contratação de trabalhadores especializados. Já
o número de trabalhadores canavieiros não especializados registrou queda de 12.655
pessoas, ou 3,8%. Percebe-se uma queda de 4% no total da ocupação das empresas
sucroalcooleiras entre 2007 e 2009, queda esta puxada pelos trabalhadores da
agricultura, cujo número caiu 11% nos dois anos considerados39.
Observa-se que alguns serviços, como transporte, assistência médica, são
oferecidos como benefícios, mas isto é somente o cumprimento de direitos já
conquistados na legislação trabalhista. Também é grande a demanda por gêneros
alimentícios básicos, não havendo procura por bolsas de estudo e assistência psicológica.
Em suma, a política de benefícios sociais do setor sucroalcooleiro continua sendo,
essencialmente, um instrumento gerencial de combate à rotatividade, de fixação do
trabalhador na empresa40.
Houve um aumentou no número de trabalhadores da mecanização agrícola e, em
contrapartida, uma diminuição no número de trabalhadores canavieiros não
36
SCOPINHO, op.cit., p. 97.
SCOPINHO, 2000, p. 101.
38 Ibid, p. 96.
39 BACARRIN et al., 2011, 89-91.
40 SCOPINHO, op.cit., p. 106-107.
37
215
especializados, motivada pela necessidade empresarial de se reforçar a imagem do
etanol como um combustível renovável e com poucos efeitos negativos ao meio ambiente.
A expansão significativa da área e da produção canavieira não tem sido suficiente para
compensar as mudanças tecnológicas, de forma que o resultado é uma diminuição no
número de trabalhadores não especializados ocupados na lavoura41.
3.2
A RECAPACITAÇÃO DO CORTADOR DE CANA-DE-AÇÚCAR
Castigados pelas condições do ambiente de trabalho e ameaçados pelo
desemprego, na maioria das vezes, os cortadores enfrentam as consequências negativas
da modernização por meio de práticas de natureza individual, haja vista que a greve não
tem sido uma estratégia sindical adequada para enfrentar as problemáticas trabalhistas e
sociais. Com relação à saúde e segurança no trabalho, essas práticas individuais
consistem, por exemplo, na procura de assistência médica e no exercício da
automedicação como as únicas formas de tratar da saúde42. Por outro lado, a
Constituição Federal estabelece a melhoria da condição social do trabalhador rural em
face da mecanização:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social:
XXVII - proteção em face da automação, na forma da lei43.
A maior parte dos cortadores de cana-de-açúcar brasileiros não tem capacitação
profissional, baixa escolaridade, nem ao menos o ensino fundamental, muitos chegando
ao analfabetismo completo. Com a mecanização da colheita da cana-de-açúcar haverá
uma inexorável e grave questão social a ser resolvida, exigindo da instituição ou usina um
programa de recolocação profissional, treinamento e capacitação dessa mão de obra. A
previsão de recapacitação dos cortadores de cana-de-açúcar está estimada em cerca de
165 mil trabalhadores, só no Estado de São Paulo44.
Esse compromisso das usinas advém da escassez de mão-de-obra no mercado,
apesar de ser uma necessidade fundamental do setor, essa alternativa mostra um
problema muito maior que é a falta de assistência e capacitação da população
proveniente do poder público, que podem ser confirmadas com as palavras de Bertelli,
“[...] atualmente há a imprescindibilidade de políticas governamentais, voltadas ao setor
da agroindústria, a fim de que não tenhamos graves problemas sociais, decorrentes da
substituição humana pela mecanização”45. O poder público deveria ter esse compromisso
na base da educação dos trabalhadores e não somente quando ocorre a necessidade
explícita, que acaba gerando falta de organização e capacitações incompletas devido ao
curto espaço de tempo.
Em contrapartida o governo do Estado de São Paulo criou o programa “Via Rápida
Emprego”. O programa é coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico,
Ciência e Tecnologia, e oferece cursos básicos de qualificação profissional de acordo com
41
BACARRIN et al., loc.cit.
SCOPINHO, op.cit., p. 100.
43 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em: 12 jun. 2012.
44 BERTELLI, L. G. O problema social da mecanização da cana-de-açúcar. Artigo publicado no jornal
Diário Comércio Indústria & Serviços (DCI), edição de 15 de setembro de 2010, p. 34-35.
45 BERTELLI, L. G. Queimadas da cana incomodam. Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo/
Caderno "Dinheiro", edição de 15 de junho de 2010, p.20.
42
216
as demandas regionais. O objetivo é capacitar gratuitamente a população que está em
busca de uma oportunidade de trabalho ou que deseja ter seu próprio negócio46.
Está havendo uma mudança no perfil dos trabalhadores sucroalcooleiros
contratados, com redução da importância daqueles que se dedicam às atividades que não
exigem maior nível de qualificação. O mercado de trabalho passou a exigir um tipo de
trabalhador, cuja característica principal do perfil é ser tecnicamente experiente,
qualificado e polivalente47. Essa afirmativa pode ser visualizada na diminuição do número
de trabalhadores canavieiros não especializados em 30.231 pessoas ou 14%, entre junho
de 2007 e junho de 200948.
Um dos principais programas de recapacitação do cortador de cana-de-açúcar para
novas funções no setor sucroalcooleiro e outros setores da sociedade chama-se “Projeto
RenovAção”, é proveniente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar de São Paulo
(ÚNICA) em parceria com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SMA), Federação dos
Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), patrocínio das
empresas John Deere, CASE-IH, Syngenta e da Fundação Solidaridad com apoio do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os cursos são selecionados com base
nas demandas locais por mão-de-obra e incluem também conceitos de cidadania e
estímulos ao empreendedorismo. Podem ser encontrados mais de trinta cursos
diferentes, dentre estes o de mecânico, soldador, eletricista, tratorista e operador de
colheitadeira. Em dois anos de atuação o projeto requalificou mais de 4.550 cortadores,
dentre estes, cerca de 78% dos trabalhadores foram inseridos no setor sucroalcooleiro49.
Nesta mesma linha de programa existe o “Projeto Qualifica” da União dos
Produtores de Bioenergia - SP (UDOP) que tem previsão de recapacitar em 2011 cerca
de 30% de seus cortadores o que corresponde a mais de dez mil trabalhadores. São vinte
e dois cursos, dentre os principais estão operador de moenda, mecânico, motorista e
borracheiro50.
A recapacitação procura educar o trabalhador para adaptar-se a um determinado
modo de divisão e organização do trabalho; mas, por outro, pode também contribuir para
desenvolver a consciência da necessidade de transformar as condições em que se realiza
o trabalho como item fundamental da melhoria das condições de vida e saúde dos
trabalhadores51.
4
CONCLUSÃO
Analisou-se no texto a importância da sustentabilidade no discurso de uma nova
agricultura, demonstrando os paradigmas e desafios atuais em detrimento de problemas
históricos, como a mecanização. Em seguida, mostrou-se o panorama do setor
sucroalcooleiro, que atualmente é essencial para a economia brasileira, bem como, a
legislação sobre a proibição da queima da palha de cana-de-açúcar para fins de colheita
manual e a situação do cortador frente a essa proibição. Posteriormente, abordou-se a
necessidade de mudanças em decorrência dos problemas expostos, com ênfase na
sustentabilidade corporativa da cadeia sucroalcooleira brasileira e finalizando com uma
abordagem de como a recapacitação do cortador de cana-de-açúcar está ocorrendo no
contexto brasileiro.
46
SÃO PAULO. Prefeitura do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.viarapida.sp.gov.br.>.
Acesso em: 01 ago. 2012.
47 SCOPINHO, 2000, p. 105.
48 BACARRIN et al., 2011, p.90.
49 UNICA. Disponível em <http://www.unica.com.br/>. Acesso em: 16 jul. 2012.
50 UDOP. Disponível em: <http://www.udop.com.br/>. Acesso em: 18 jul. 2012.
51 SCOPINHO, 2000, p. 109-110.
217
A iniciativa pública e privada da proibição da queima da palha para a colheita da
cana-de-açúcar é uma solução ambiental considerável, mas o problema atual da alta taxa
de desemprego da classe dos cortadores de cana-de-açúcar só tende a piorar se
soluções mais eficientes não forem tomadas imediatamente. É recomendável também, o
fortalecimento das ações sociais e de apoio à agricultura familiar nas regiões de origem
dos migrantes sazonais para evitar que estes se dirijam ao corte da cana-de-açúcar em
decorrência da insuficiência de renda obtida nessas regiões.
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sucroalcooleiras paulistas. RAC, v. 4, n. 1, Jan./Abr. p. 93-112, 2000.
219
AUTONOMIA DA VONTADE E O TESTAMENTO
VITAL NO DIREITO BRASILEIRO
AUTONOMY OF WILL AND THE LIVING
WILL ON BRAZILIAN’S LAW
AUTONOMÍA DE LA VOLUNTAD Y EL TESTAMENTO
VITAL EN EL DERECHO BRASILEÑO
Jacqueline Bernardi Benatto
______________________________________
Graduanda em Direito pelo UNICURITIBA
Membro do grupo Jus VITAE – Pesquisa em Biodireito e Bioética desde 2012
Estagiária da Justiça Federal
Bolsista da FUNADESP do ano de 2013
Maria da Glória Lins da Silva Colucci
_____________________________________
Mestre em Direito Público pela UFPR
Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR
Professora titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA
Professora Emérita do UNICURITIBA
Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do
UNICURITIBA, desde 2001
Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR
Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Sociedade
Brasileira de Bioética – Brasília
Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Direito
Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
220
RESUMO
O presente trabalho tem como tema principal a manifestação de vontade contemplada no
testamento vital. Neste sentido, o estudo demonstrará a conexão entre o testamento vital
e a dignidade da pessoa humana, enfatizando o direito subjetivo do ser humano de morrer
com dignidade. Marcada por conflitos atuais na esfera da Medicina, a autonomia de
vontade do paciente, principalmente daqueles que se encontram em estágio terminal de
vida, vem sendo objeto de grande discussão, uma vez que há um embate entre os
princípios da sacralidade e a qualidade de vida, noções ambas ligadas ao direito à vida. A
partir desse referencial, torna-se importante estudar os limites legais impostos à
manifestação de vontade do paciente, de modo a não lhe ferir, mesmo que nos instantes
finais de sua vida, sua condição humana.
Palavras-chave: testamento vital, dignidade da pessoa humana, autonomia da
vontade.
ABSTRACT
The present work has as main theme the manifestation of will contemplated in the living
will. In this sense, the study will demonstrate the connection between the living will and the
dignity of the human person, emphasizing the human beings' individual desire to die with
dignity. Marked by current conflicts in the sphere of Medicine, the autonomy of the
patient's will has been the object of great discussion, especially of those who are in
terminal stage of life, since there is a discussion between the principles of sacredness and
the quality of life, both linked to the right to life. From that reference, it is important to study
the legal limits imposed to the manifestation of patient's will, so as not to hurt him/her,
even if in the final stages of his life, his/her human condition.
Keywords: living will, dignity of human person, autonomy of will.
1
INTRODUÇÃO
A busca incessante pela imortalidade e eterna juventude humana, somada aos
avanços médicos e tecnológicos trouxeram consequências significativas no campo da
Medicina e do Direito, no sentido de se questionar até que ponto é lícita a utilização de
inúmeros tratamentos médicos-hospitalares com o fim de manter vivo um paciente.
Os avanços tecnológicos possibilitaram a cura e o tratamento de inúmeras
doenças, entretanto, é certo o uso indiscriminado de medicamentos e tratamentos em
paciente que estão em estágio final de vida e que não apresentam melhoras efetivas?
Recentemente, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução n.º 1995/2012,
de 05 de setembro de 2012, que previu a possibilidade de o paciente elaborar uma
declaração prévia de vontade, que deverá ser respeitada pela equipe médica, indicando
os possíveis tratamentos e procedimentos médicos-hospitalares que quer ou que se
refuta submeter, em eventual e futura perda de capacidade.
O testamento vital, embora não tratado no ordenamento jurídico, é um documento
que visa, acima de tudo, garantir que os desejos de uma pessoa sejam respeitados, ainda
mais quando está incapacitada de proferir juízos acerca da iniciação, ou não, de
determinado tratamento ou procedimento médico-hospitalar. Tal instrumento não
beneficia só o declarante no que concerne ao atendimento de suas vontades, mas
221
também serve como baliza ao médico para que melhor possa tomar as decisões em prol
do paciente.
Atualmente, outros países, principalmente os europeus, já dispõem de legislações
pertinentes à declaração de vontade prévia do paciente, tais como a Itália, Espanha e
Inglaterra, ao passo que na legislação brasileira as diretivas antecipadas de vontade
carecem de regulamentação, o que, entre outros fatores, dificulta a difusão de sua idéia
aos cidadãos.
Esse instrumento é de suma importância, uma vez que respeitar e seguir as
decisões do paciente é respeitar seus valores, crenças e convicções e, acima de tudo,
reconhecê-lo como sujeito digno de direitos, valor intrínseco à noção de direito à vida para
a Constituição Federal, que não engloba só o direito de existir, mas também e,
principalmente, o direito a viver uma vida com qualidade e dignas condições.
2
DESENVOLVIMENTO
A relação médico-paciente vem sofrendo profundas transformações, no sentido de
que as convicções e vontades do paciente devem ser levados em conta no momento da
tomada de decisões do médico.
Antigamente, tinha-se na figura do médico um sujeito paternalista, ou seja, cabia ao
médico, e só a ele, averiguar qual o melhor tratamento e procedimento a ser aplicado no
paciente.
Entretanto, esta visão está sendo justaposta pela noção de que a Medicina deve
respeitar as crenças, valores e convicções dos pacientes, pois nasce a noção da
autonomia da vontade do paciente.
Essa autonomia refere-se à faculdade do paciente em escolher a que tratamentos
médico-hospitalares deseja ser submetido, uma vez que ninguém melhor do que ele para
saber o que lhe confere bem-estar.
Para tanto, a relação entre médico e paciente deve estar embasada em um diálogo
aberto e honesto, no qual incumbe ao profissional expor de maneira clara ao paciente
sobre sua eventual doença, os tratamentos possíveis e mais adequados para o caso, as
consequências de cada um, bem como os possíveis resultados no caso da não iniciação
do tratamento.
De outro lado, o paciente deve se manifestar sobre a recusa ou aceitação do
tratamento, de modo que ambos (paciente e médico) devem juntos elaborá-lo.
Correta a opinião do Médico Drauzio Varella, para quem:
[...] A função do médico moderno, a quem, ao contrário do que ocorria com os
antigos, cabe não o papel de dar ordens ou impor condutas prescritas em letra
ilegível, mas apresentar à pessoa doente o leque de alternativas disponíveis e as
prováveis consequências de cada escolha, para ajudá-la a selecionar a que
melhor atenda a seus interesses.
Não é outro o entendimento do Código de Ética Médica1. Nas considerações
iniciais, o referido Código almeja um melhor relacionamento com o paciente e a garantia
de maior autonomia à sua vontade. Além disso, tem-se como um dos princípios
fundamentais a aceitação das escolhas do paciente, relativos aos procedimentos
diagnósticos e terapêuticos.
Insta transcrever, também, os artigos 22, 24 e 31 do mesmo Código, que abordam
as vedações aos médicos. Tais artigos, respectivamente, proíbem-nos de: “Deixar de
obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o
procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte”, “Deixar de
garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu
222
bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” e “Desrespeitar o direito do
paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.
Interessante abordar sobre o entendimento da 21ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, para a qual o médico deve respeitar a vontade do paciente,
sob pena de ferir a sua dignidade1. Entendimento é o de que descartar seu
posicionamento com relação ao tratamento, é desrespeitar também suas crenças, valores
e convicções e, por consequência, negar seu direito a uma vida digna.
Enquanto o paciente possui discernimento, é fácil para os médicos descobrirem
qual a real vontade daquele. Entretanto, em caso de incapacidade, por exemplo, em
coma, como os médicos poderiam saber a real vontade do paciente? Surge, então, a
importância do testamento vital, que deve, acima de tudo, garantir uma morte digna ao
paciente.
Conceito de Luciana Dadalto Penalva é o de que o testamento vital “[...] é um
documento escrito por pessoa capaz, que objetiva dispor sobre tratamentos em geral aos
quais porventura venha a submeter-se1”.
O testamento vital, em outras palavras, consiste num instrumento através do
qual o testador clarifica quais os tratamentos e procedimentos a que se deseja, ou
não, submeter, em caso de eventual e futura incapacidade de discernimento.
A idéia do testamento vital surgiu nos Estados Unidos por volta de 1960, recebendo
a denominação de “living will”, que na sua mais adequada tradução consiste em
“disposições de vontade de vida”. Embora seu esboço tenha aparecido em 1960, o
testamento vital apenas foi legislativamente regulamentado pela primeira vez em 1991,
também nos Estados Unidos, recebendo a denominação de “Patient Self Determination
Act – (PSDA)”.
Atualmente, outros países, principalmente os europeus, já dispõem de legislações
pertinentes à declaração de vontade prévia do paciente, tais como a Itália, Espanha e
Inglaterra.
Anote-se que o testamento vital não beneficia só o declarante no que concerne ao
atendimento de suas vontades, mas também serve como baliza ao médico para que
melhor possa tomar as decisões em prol do paciente.
A Resolução n.º 1931/2009 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que instituiu
o Código de Ética Médica, estabeleceu em seu artigo 41, parágrafo único que:
Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os
cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou
terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade
expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal
(grifo nosso).
Por sua vez, a Resolução n.º 1995/2012, do CFM, previu a possibilidade de o
paciente elaborar uma declaração antecipada de vontade, na qual constarão os
tratamentos e procedimentos que gostaria, ou não, se submeter, se porventura sobrevier
incapacidade de discernimento.
De acordo com a referida Resolução, a importância da edição do documento
sustenta-se na carência de regulamentação sobre o testamento vital no âmbito da ética
médica brasileira, bem como na ausência de disciplina da conduta médica frente a tal
instrumento. Ainda, a Resolução do CFM considerou a relevância da autonomia de
vontade do paciente na relação médico-paciente e o uso de recursos tecnológicos que
“[...] permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do
paciente em estado terminal, sem trazer benefícios”, ao passo “[...] que essas medidas
podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo1”.
223
De acordo, ainda, com Luciana Dadalto Penalva 1, o testamento vital apresenta
características próprias:
a)
O documento deve ser elaborado por pessoa que possui discernimento. Não
se deve, aqui, confundir o instituto do discernimento com a capacidade civil de direito.
Deste modo, caberá analisar caso a caso se a pessoa está apta, ou não, a elaborar uma
declaração de vontade. Por exemplo, uma pessoa de 15 anos, embora não esteja no
gozo da sua capacidade de fato, já pode possuir o discernimento necessário que
possibilite a elaboração do documento;
b)
A declaração de vontade somente terá eficácia quando o declarante se
encontrar em fase terminal e sem discernimento. Portanto, enquanto o sujeito ainda não
se encontrar em tais condições, pode modificar a qualquer tempo o conteúdo da
declaração;
c)
O conteúdo da declaração não pode ser contrário ao ordenamento jurídico.
Deste modo, é nulo o testamento vital no qual o paciente faz constar em sua declaração
que deseja ser vítima de eutanásia.
A declaração de vontade do paciente vincula a tomada de decisões do médico?
Dito de outra forma, ao ter conhecimento da existência da declaração de vontade do
paciente, deve o médico obedecê-la? O artigo 28 do antigo Código de Ética Médica1
dispunha que é direito do médico se recusar a realizar atos médicos lícitos que vão de
encontro com a sua consciência. Diante desse caso, deve o médico apresentar uma
justificativa plausível à recusa de realizar o ato médico, encaminhando o paciente a outro
médico que queira seguir a declaração de vontade. O atual Código de Ética Médica, no
seu artigo 9º1, do capítulo que trata sobre os direitos dos médicos, também cuidou de
trazer à baila a recusa de tratamento pelo médico, quando for contrário a seus ditames,
crenças e costumes.
Ainda, juntamente ao testamento vital, ou em documento próprio, é possível a
elaboração de um mandato duradouro, que é o instrumento através do qual “[...] o
paciente nomeia um ou mais procuradores que deverão ser consultados pelos médicos na
circunstância de sua incapacidade – terminal ou não-, para decidirem sobre o tratamento
ou não1”.
Hodiernamente, na falta de capacidade de discernimento de um paciente, as
tomadas de decisões ficam a cargo de sua família, conjuntamente com a equipe médica
que o assiste. Entretanto, mister perguntar se as decisões tomadas efetivamente seriam
as mesmas corroboradas pelo paciente, caso estivesse plenamente capacitado para
decidir.
Em algumas circunstâncias faz-se difícil descobrir qual a real vontade do paciente.
Além disso, há possibilidades de a família, mesmo conhecendo a vontade daquele, decidir
de forma contrária, ou por que os laços afetivos a impedem emocionalmente de acatá-la,
ou porque há interesses mal intencionados. Exemplo do que foi exposto é a situação em
que a família de um paciente em coma conhece de sua vontade de ter seus aparelhos
mantidos, mas interessada na herança daquele, solicita ao médico que se retirem os
suportes vitais, acarretando na sua morte.
Com o conhecimento da existência de um testamento vital deixado pelo paciente, o
médico poderia ter mais uma ferramenta para auxiliá-lo nas tomadas de decisões, haja
vista que “Decifrar intenções contidas no que diz a pessoa doente e seus familiares talvez
seja o mais difícil na medicina1”.
Entretanto, como ocorre na maioria dos casos, não tendo ciência de haver uma
declaração prévia de vontade, deve o médico analisar cada caso, de modo a tentar
resgatar a real vontade do paciente.
Insta ponderar também até que ponto a vida humana deve ser sempre preservada.
Atualmente, tem-se uma busca incessante pela imortalidade humana e pela eterna
224
juventude, uma vez que a sociedade de uma maneira geral vê com bons olhos a
protelação da morte.
Tanto isso, que aos médicos é imposta a missão de prolongar a vida humana ao
seu extremo limite, utilizando-se de qualquer meio para atingir esse fim.
Percebe-se, portanto, que há um dualismo entre a duração da vida e a qualidade
de vida, embora a primeira ainda prevaleça atualmente.
Decorrente da idolatria/obstinação da sociedade contemporânea pela tecnologia e
melhorias na qualidade de suas vidas, surge o instituto da distanásia, também
denominada de obstinação terapêutica. Tal palavra tem origem grega: “dis”, que significa
afastamento, e “thanatus”, morte, ou seja, é o distanciamento da morte, prolongamento da
vida a qualquer custo. “Subjaz um compromisso médico em empenhar todos os esforços
e meios técnicos viáveis para manter vivo o paciente1”.
É inegável a positiva contribuição que os avanços médicos e tecnológicos
proporcionaram à sociedade contemporânea. Graças a essas tecnologias, é possível
curar ou controlar a grande maioria das enfermidades. Não obstante, avançam muito mais
rapidamente do que os éticos, de modo que acabam por submeter os pacientes a
tratamentos desumanos.
Isto acaba por inverter a principal finalidade dos avanços tecnológicos: busca-se
proporcionar uma existência mais digna ao ser humano, mas resulta por lhe dar mais dor
e sofrimento. A Medicina e a tecnologia criam situações desumanas e degradantes, e
recusam-se a tomar para si as responsabilidades de seus efeitos.
A dignidade da pessoa humana, portanto, tem de ser utilizada como limite para as
intervenções tecnológicas.
Entretanto, é mister salientar que a prática da distanásia não é totalmente
abominada. Ela só deve ser praticada se assim for a vontade do paciente, uma vez que
respeitar seus desejos é também, de algum modo, conferir-lhe uma vida digna.
A obstinação terapêutica é justificada com base em dois principais argumentos: a
sacralidade da vida e a equiparação da omissão em prestar auxílio ao paciente, ao de
matá-lo.
Quanto ao primeiro, o médico tem o dever absoluto de proteger a vida do paciente,
sendo-lhe vedado suprimir sua vida, ou seja, deve fazer o possível para que o paciente se
mantenha vivo.
Já com relação ao segundo argumento, a morte do paciente é sinônimo de
fracasso profissional e, por receio de ser culpado pela morte, bem como por recair sobre
si sanções administrativas ou judiciais, o médico pratica o prolongamento da vida como
forma defensiva. Desta forma, deixá-lo morrer equipara-se a matá-lo, por isso, deve-se
praticar a distanásia1.
Entendimento de Maria da Gloria Colucci é no sentido de que:
[...] refletindo-se sobre a postura diante da morte, à luz da percepção pósmoderna, verifica-se que se dá contra as doenças uma conotação de “duelo”, em
que não se pode aceitar a possibilidade de fracasso, mesmo que os avanços da
medicina tenham se esgotado... Nesta vereda, a morte é tratada como arquiinimigo, cruel opositora do homem, mesmo que em avançada idade, não lhe
sendo respeitado o “direito de morrer”, ainda que a morte seja o inevitável sim de
todo os seres vivos [...]
Deve-se levar em consideração que a distanásia não consiste no prolongamento
da vida, mas sim do processo de morrer. Prolongamento que é exagerado, causando
considerável dor e sofrimento ao paciente. Deste modo, deve-se ponderar se o tratamento
é proporcional ao resultado visado como benéfico ao paciente.
Embora os avanços tecnológicos possibilitem maior exatidão e “controle” do
momento na morte de um paciente, não se deve olvidar que o fim da vida é algo natural,
225
que faz parte do ciclo biológico da vida humana, e não deve ser visto como uma situação
excepcional.
Correto o entendimento de Maria Elisa Villas-Bôas, para a qual:
[..] o fato de os recursos existirem não os torna, automaticamente, de aplicação
obrigatória. Os recursos terapêuticos são indicados ou não conforme o benefício
que representem para o interessado. O direito à vida não implica uma obrigação
de sobrevida, além do período natural, mediante medidas, por vezes desgastantes
e dolorosas, colocando em séria ameaça a dignidade humana do doente. Muitas
vezes, a adoção de tais medidas extrapola o que deveria ser para seu benefício e
entra na esfera da mera obstinação terapêutica.
O Código Brasileiro de Ética Médica veda a prática da distanásia. O princípio
fundamental nº XXII dispõe que “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico
evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e
propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados1”.
A função primordial da atual Medicina é a de cuidar do paciente e lhe proporcionar
uma qualidade de vida, e não mais simplesmente curá-lo, que é um dever secundário que
deve ser visado pela equipe médica. Deste modo, se a vida do paciente não pode ser
sadia, que seja, ao menos, digna.
Entendimento de Drauzio Varella é no sentido de que:
[...] o que existe de mais difícil em nossa profissão: reconhecer o momento em
que a morte é iminente e ajudar o paciente a atravessá-lo sem sofrer, conduzi-lo
com sabedoria e arte para permitir que a vida se apague em silêncio, como uma
vela.
Ao contrário da distanásia, que visa prolongar faticamente a existência do
indivíduo, tem-se o instituto da eutanásia. Malgrado ambas interfiram no marco temporal
da morte de um indivíduo, a eutanásia visa antecipar o momento da morte, ao contrário
da distanásia, que objetiva prolongar esse momento.
A eutanásia deve ser compreendida como uma conduta, tanto comissiva quanto
omissiva, movida por compaixão e piedade, através da qual se objetiva antecipar a morte
de um indivíduo que padece de grandes sofrimentos e está no estágio terminal de vida.
O ordenamento jurídico brasileiro veda a prática da eutanásia, entretanto, o Direito
Penal a trata como homicídio privilegiado (artigo 121, §1º). Desta forma, o legislador
brasileiro não entendeu à época que haveria um direito de morrer, de antecipar
voluntariamente o momento da morte, mesmo que esta seja certa e ocorra em momento
breve.
Por sim, cumpre ressaltar que a retirada de aparelhos do indivíduo diagnosticado
com morte encefálica não caracteriza a prática da eutanásia, uma vez que seconsidera
como falecida a pessoa que apresenta parada irreversível do funcionamento do sistema
nervoso e, deste modo, não constitui crime a retirada dos suportes vitais de quem não
mais possui vida.
Conceito oposto ao de distánasia e eutanásia, tem-se a figura da ortotanásia. O
vocábulo tem origem grega, na qual “orthos” significa certo/bom, e “thanatus”, morte.
Desta forma, a ortotanásia consiste na boa morte, morte ao seu tempo natural.
Ao contrário da obstinação terapêutica e da eutanásia, a ortotanásia não almeja
prolongar a vida, nem tampouco encurtá-la, mas sim que ela ocorra de forma natural, ou
seja, não interfere no lapso temporal de vida do paciente. Desta forma, evita-se a
utilização de mecanismos desproporcionais e extraordinários, uma vez que somente
acarretam mais dor e sofrimento aos pacientes.
226
Visa-se utilizar somente cuidados paliativos (hidratação, alimentação, analgésicos,
higiene), de forma que o paciente, no seu estágio final de vida, possa morrer com a maior
dignidade possível e com o mínimo de dor e sofrimento.
Oportuno colacionar entendimento de Maria Elisa Villas-Bôas, para quem a
ortotanásia:
[...] é o objetivo médico quando já não se pode buscar a cura: visa prover o
conforto ao paciente, sem interferir no momento da morte, sem encurtar o tempo
natural de vida nem adiá-lo indevida e artificialmente, possibilitando que a morte
chegue na hora certa, quando o organismo efetivamente alcançou um grau de
deteriorização incontornável.
Interessante a decisão proferida pela 14ª Vara Federal, da Seção Judiciária do
Distrito Federal, nos autos de Apelação Cível n.º 200734000148093, na qual o MM. Juiz
Federal julgou pela constitucionalidade da Resolução n.º 1805/2006, do Conselho Federal
de Medicina, que autorizou ao médico a suspensão de aparelhos que auxiliam no
prolongamento da vida do paciente que tem sua morte como breve e certa.
Está tramitando também o Projeto de Lei n.º 6715/09, que visa alterar o Código
Penal, de modo a retirar expressamente a ilicitude da ortotanásia. O referido Projeto de lei
encontra-se atualmente aguardando a aprovação da Câmara dos Deputados.
Não é correto confundir a eutanásia com a ortotanásia, visto que esta última não
almeja encurtar a vida de uma pessoa, mas tão somente propiciar-lhe cuidados paliativos
para que a morte ocorra de maneira menos sofrida e no seu devido tempo.
A utilização de práticas ortotanásicas é mais tangível nos cuidados com o paciente
terminal.
Considera-se terminal aquele paciente que possui uma enfermidade incurável,
irreversível, ou em razão de graves traumatismos, não apresentando também nenhum
sinal de melhora frente aos tratamentos. Além disso, sua morte é prevista como breve e
certa.
Não é correto o entendimento de que o estágio terminal é o fim da relação médicopaciente. É principalmente nesse momento que se faz mister uma maior atenção do
médico, no sentido de ampará-lo e confortá-lo.
Os profissionais de saúde são treinados para proferir decisões puramente técnicas
nas situações que envolvem pacientes terminais. Infelizmente, em virtude principalmente
dos avanços tecnológicos, a relação entre médicos e pacientes terminais tem sido muito
distante. Vê-se, portanto, uma falta de preparo técnico com relação ao apoio humanitário
que deve ser dado ao paciente. Este apoio deve constituir o núcleo da relação médicopaciente.
Assim, melhor dignidade terá o paciente que, além de ser assistido materialmente e
moralmente pelo médico, tenha suas crenças e convicções respeitadas pelo mesmo, de
modo que possa viver seus últimos dias com o maior conforto e dignidade possível,
conforme estabelece o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, ao assegurar a todos
os seres humanos, o direito a viver dignamente.
3
CONCLUSÃO
O testamento vital, embora não tratado no ordenamento jurídico, é um documento
que visa, acima de tudo, garantir que os desejos de uma pessoa sejam respeitados, ainda
mais quando está incapacitado de proferir juízos acerca da iniciação, ou não, de
determinado tratamento ou procedimento médico-hospitalar.
Esse documento é de suma importância, uma vez que respeitar e seguir as
decisões do paciente é respeitar seus valores, crenças e convicções e, acima de tudo,
reconhecê-lo como sujeito digno de direitos, valor intrínseco à noção de direito à vida para
227
a Constituição Federal, que não engloba só o direito de existir, mas também e,
principalmente, o direito a viver uma vida com qualidade e dignas condições.
Malgrado o testamento vital não tenha regulamentação no Direito Brasileiro, faz-se
imperioso legislar sobre este tema, uma vez que o embasamento principiológico do
documento é a garantia da dignidade da pessoa humana e respeito à sua autonomia de
vontade.
Como explanado, o objeto da declaração de vontade constante no testamento vital
pode ser em relação a qualquer conteúdo que o ordenamento jurídico brasileiro não vede,
por exemplo a solicitação de eutanásia.
A Carta Magna preceitua o direito à vida. Entretanto, não é correta a inversão
desse direito, qual seja, o direito a morrer, a ceifar a própria vida, mesmo diante de
estágio terminal.
Aqui, não se deve confundir o direito de morrer com o direito de morrer
dignamente. No ordenamento jurídico brasileiro, principalmente o Direito Penal, veda-se
qualquer conduta que ponha em risco ou extermine a vida de uma pessoa, com exceção
de alguns casos, por exemplo, legítima defesa.
O que o presente trabalho pretende não é que haja um direito subjetivo de por fim à
própria vida, mas sim que a morte de uma pessoa não ocorra em situações degradantes e
desumanas. Daí o direito a morrer com dignidade.
Não se deve olvidar que a dignidade da pessoa humana deve ser preservada
mesmo durante os instantes finais de vida, e não tão somente antes desse estágio.
Assim, vislumbra-se na figura do testamento vital um instrumento capaz de
assegurar uma morte digna ao paciente, especialmente aos que se encontram em estágio
terminal de vida.
Nesta fase, deve a Medicina não procurar curar o paciente, submetendo-lhe a
tratamentos fúteis, desproporcionais, que apenas o desgastam fisicamente e
emocionalmente mais (distanásia), mas sim lhe proporcionar bem-estar, uma situação
confortável (ortotanásia), visto que sua morte é iminente e inevitável.
Deve-se lembrar que a morte é um fato certo a todos que estão na condição de ser
humano. A utilização de cuidados paliativos deve, então, proporcionar maior conforto ao
paciente, de modo que passe seus últimos dias vivendo como sua condição humana
demanda: com dignidade.
Desta forma, deve-se reconhecer a manifestação de vontade do paciente, que
pode estar clarificada pelo testamento vital, de modo a possibilitar que uma pessoa esteja
submetida a um tratamento digno, que atenda a seus interesses e valores. Desta forma,
não se trata propriamente do direito subjetivo do paciente de ceifar sua própria vida,
adiantando esse momento, bem como retardando-o, mas sim de receber tratamento digno
durante seu estágio final de vida, de modo que possa morrer com o máximo de dignidade
possível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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defesa da vida”. Revista Brasileira de Direito da Saúde, Brasília, vol. 1, julho/dezembro
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<http://www.cremesp.com.br/?siteAcao=PesquisaLegislacao&dif=s&ficha=1&id=2940&tipo
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situacao=VIGENTE&data=08-01-1988>. Acesso em: 24 fev. 2013.
228
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Aprova o Código de Ética Médica. Resolução nº
1931, de 24 de setembro de 2009. Disponível em:
<http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20660:codigode-etica-medica-res-19312009-capitulo-v-relacao-com-pacientes-e
familiares&catid=9:codigo-de-etica-medica-atual&Itemid=122 >. Acesso em: 22 fev. 2013.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade
dos pacientes. Resolução nº 1995, de 09 de agosto de 2012. Disponível em:
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FEIO, Ana Goreti Oliveira e OLIVEIRA, Clara Costa. Responsabilidade e tecnologia: a
questão da distanásia. Revista Bioética, Brasília, vol. 19, nº 3, 2011
PENALVA, Luciana Dadalto. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. Revista
Bioética, Brasília, vol. 17, n° 3, 2009.
VARELLA, Drauzio. Por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro. Revista Bioética,
Brasília, vol. 16, nº 1, 2008.
229
O DIREITO À MORTE DIGNA E O TESTAMENTO VITAL NO BRASIL
THE RIGHT TO DIE WITH DIGNITY AND THE LIVING WILL IN BRAZIL
Flávia Ludimila Kavalec Baitello
______________________________________
Mestre em Ciências Farmacêuticas pela UFPR
Especialista em Farmácia Hospitalar
Acadêmica de Direito do UNICURITIBA
Integrante do Grupo de Pesquisa em Biodireito e Bioética - Jus Vitae
Maria da Glória Colucci
_____________________________________
Mestre em Direito Público pela UFPR
Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR
Titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA
Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética - Jus Vitae do Unicuritiba
230
RESUMO
Nos dias atuais, diante dos avanços técnico-científicos aplicados na área da Saúde,
surgem novas formas de prolongar a vida, ainda que com questionável qualidade. O tema
deste estudo refere-se aos aspectos médicos e jurídicos envolvidos no final da vida, com
enfoque no reconhecimento da vontade do paciente que se encontra sem capacidade de
comunicação ou de expressão livre e independente. São analisados os conceitos de
morte digna, autonomia e dignidade da pessoa humana, além de abordar os fundamentos
ético-jurídicos do testamento vital.
Palavras-chave: testamento vital, terminalidade da vida, dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT
Nowadays, given the technological advances implemented in healthcare, there are new
ways to prolong life, though with questionable quality. The theme of this study refers to the
medical and legal aspects involved in end of life, focusing on the recognition of the will of
the patient without free and independent ability of communication or expression. It
analyzes the concepts of death with dignity, autonomy and dignity of the human person, in
addition to addressing the ethical and legal foundations of the living will.
Keywords: living will, end of life, dignity of person human.
1
INTRODUÇÃO
Com os avanços científicos e tecnológicos surgem novas formas de prolongamento
e encurtamento da vida humana. O direito à vida, previsto na Constituição Federal, não
impõe às pessoas que resistam obstinadamente à morte quando a vida não se mostra
mais possível. Ao contrário, aceitar a terminalidade da vida é reconhecer a morte como
parte integral da vida e da existência humana, tão natural e previsível como nascer. No
entanto, observa-se que nas sociedades ocidentais atuais a morte é vista como um tabu e
erroneamente associada ao fracasso pelos profissionais da saúde. Essa recusa em não
aceitar esta condição colabora com o prolongamento da vida a qualquer custo, sem
qualquer qualidade e sem respeitar a dignidade da pessoa humana.
Assim, as diretivas antecipativas de vontade que disponham sobre tratamentos
médicos se tornam instrumentos úteis para a concretização da autonomia do paciente,
além de respaldarem os atos da equipe médica. Conhecida como testamento vital, a
declaração prévia da vontade do paciente é um documento que deve estar ao alcance de
todos, no qual qualquer pessoa possa indicar seu desejo de que se deixe de lhe aplicar
um tratamento em caso de enfermidade terminal, sendo, portanto, somente eficaz quando
o paciente não mais puder exprimir sua vontade.
Em agosto de 2012 o Conselho Federal de Medicina aprovou a Resolução n o.
1995/2012 que trata das Diretivas Antecipadas de Vontade. Esta Resolução marca um
importante momento na evolução do reconhecimento da autonomia e autodeterminação
dos pacientes envolvidos na tomada de decisão sobre questões envolvidas em seus
tratamentos de saúde.
Diante de importante tema, o presente estudo pretende pesquisar a evolução do
conceito de testamento vital no Brasil; analisar os conceitos de morte digna, autonomia e
dignidade da pessoa humana e abordar os fundamentos ético-jurídicos do testamento
231
vital. Para isso serão utilizados pensamentos postulados de renomados doutrinadores,
pesquisadores, bem como jurisprudência, dados e matérias fornecidas por artigos.
2
2.1
O DIREITO À MORTE DIGNA
CONCEITO DE MORTE
Questionamento atribuído ao pensador e filósofo chinês Confúcio, nascido em
meados do século IV a.C. serve de ponto de partida neste tópico: "Quem não sabe o que
é a vida, como poderá saber o que é a morte?". De fato, conceituar a vida é tentar
responder a um dos enigmas mais instigantes, visto que merece ser considerada além do
sentido biológico, de riqueza significativa por sua dinâmica. Trata-se de bem supremo do
qual decorrem todos os demais direitos. Também a morte deve ser entendida além da
cessação da vida física ou mental, ou seja, a cessação total e permanente de todas as
funções ou ações vitais de um organismo.
Os grande valores da vida podem originar-se da reflexão sobre a morte. Através
dos tempos, inúmeros pensadores buscaram encontrar seu significado nas vidas
humanas e, à medida que o esclareciam, contribuíam também para a compreensão do
significado da vida (HORTA, 1999).
A morte sempre existiu e sempre existirá porque morrer é parte integral da vida e
da existência humana, tão natural e previsível como nascer. Mesmo aceitando-a desse
modo, é difícil morrer porque isto significa renunciar à vida nesse mundo (HORTA, 1999).
A terminalidade da vida talvez seja uma das únicas verdades incontestáveis: tratase de evento inevitável e imutável (SANTORO, 2011).
Cercada por um misto de fascinação e pavor, o fenômeno morte sempre despertou
preocupação ao longo da história da humanidade. Desde os primeiros hominídeos,
dispendeu atenção especial no sepultamento de seus semelhantes, comportamento
diferente do executado com outros animais (D'ASSUMPÇÃO,2010).
A maioria das pessoas se prepara para a vida, mas apesar da inevitabiliade da
morte, são poucos os que se planejam para o fim de suas vidas, admitindo-o como
necessário, embora esperado e distante (COLUCCI, 2011).
Nas palavras de Dworkin (2011, p. 78):
A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o
modo como pensamos e falamos sobre a morte - a ênfase que colocamos no
'morrer com dignidade' - mostra como é importante que a vida termine
apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter
vivido.
Para a constatação da morte de uma pessoa, utilizava-se o método de verificação
do cessamento dos batimentos cardíacos e da respiração. No entanto, os avanços
científicos obrigaram à revisão do conceito de morte, definindo-a como morte encefálica.
De acordo com Luciano de Freitas Santoro:
Morte encefálica é a parada definitiva e irreversível do encéfalo (cérebro e tronco
cerebral), provocando em poucos minutos a falência de todo o organismo. É a
morte propriamente dita. Utilizam-se como parâmetros clínicos para constatação
da morte encefálica o coma aperceptivo com ausência de atividade motora
supraespinal e a apneia. Há a necessidade de realização de duas avaliações
clínicas para a caracterização da morte encefálica, cujo intervalo mínimo
dependerá da faixa etária. Os exames complementares a serem observados para
a sua constatação deverão demonstrar de forma inequívoca a ausência e ao
232
menos, um destes eventos: atividade elétrica cerebral, atividade metabólica ou
perfusão sanguínea cerebral (SANTORO, 2011, p. 92).
O aprimoramento da técnica para a detecção do cessamento da vida foi
extremamente importante para possibilitar a utilização de órgãos e tecidos para
transplante1 por meio da Resolução do Conselho Federal de Medicina n o. 1480/972 que
trata dos critérios para a caracterização da morte encefálica.
O cenário da morte e do morrer se transforma não só para os pacientes incuráveis
e terminais, mas também para os próprios médicos, quando chegam até mesmo a discutir
princípios deontológicos como do juramento de Hipócrates referente à proibição de
administrar medicamentos letais ainda que a pedido do paciente (HORTA, 1999).
"A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza
a perda”3. Essa cláusula do juramento entra em discussão por conta que na época vivida
por Hipócrates, o pai da Medicina (460-377 a.C.), a prática da eutanásia era frequente na
Grécia antiga, sendo comum que os médicos fossem procurados pelos enfermos para
que lhes conseguisse alguma substância aliviadora através da morte. De acordo com
Miguel Núnez Paz (apud CARVALHO, 2001, p. 35):
Essa cláusula do juramento tem sido tradicionalmente interpretada como uma
condenação à eutanásia, ainda que em diversas ocasiões se discuta seu
verdadeiro significado, já que não se pode assegurar que uma tradução exata dos
textos onde aparece possa conduzir a uma afirmação incostestável nesse ou
noutro sentido.
Até poucas décadas, as decisões médicas eram tomadas exclusivamente pelos
médicos por conta de sua autoridade moral e científica. Recentemente essas decisões
passaram a considerar a preferência do paciente, incluindo as discussões e repercussões
a respeito do reconhecimento de sua liberdade e autodeterminação nos momentos finais
da vida.
2.2
A MORTE COMO UM DIREITO
Com os avanços científicos e tecnológicos, surgem novas formas de
prolongamento e encurtamento da vida humana, que acabam por despertar o interesse
em seu estudo, permitindo assim a compreensão dos limites da intervenção do homem e
também da própria legislação (SANTORO, 2011).
A expressão "direito de morrer" é usada numa variada gama de condições,
incluindo o direito do paciente de não ser submetido a terapias inapropriadas ou
inoportunas e o de receber medicamentos para aliviar a dor mesmo sob o risco de
abreviação da vida. Esta ambiguidade limita o valor da expressão em uma discussão
séria. Isto porque qualquer questionamento em relação à eutanásia dependeria,
primeiramente, de remeter ao direito da própria pessoa decidir sobre a quantidade de
sofrimento que ela está preparada a aceitar e, a partir desse limiar atingido, se teria o
"direito de morrer" como forma de pôr fim ao sofrimento (HORTA, 1999).
1
BRASIL, Lei no 9434 de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do
corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 5 fev. 1997. Seção 1, p. 2191.
2 BRASIL, Resolução no 1480/97 do Conselho Federal de Medicina de 8 de agosto de 1997. Diário Oficial
da União, Brasília, 21 ago. 1997. p. 18227.
3 Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Juramento de Hipócrates. Disponível em:
<http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em: 21 jan. 2013.
233
O direito de morrer dignamente não deve ser confundido com direito à morte. O
direito de morrer dignamente é o desejo, a reivindicação por vários direitos e situações
jurídicas, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, os
direitos de personalidade. Refere-se ao desejo de se ter uma morte natural, humanizada,
sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil. Isso não se confunde
com o direito de morrer.
2.2.1
A Evolução dos Direitos de Personalidade
A prestação dos cuidados da saúde atinge bens como a vida humana, a
integridade física, a intimidade e, eventualmente, a imagem, a beleza, entre outros. Estes
bens comportam aos seus titulares direitos ditos personalíssimos e absolutos (SILVA,
2011).
Para Roxana Borges, (apud SILVA, 2011, p. 2) os direitos de personalidade:
[...] foram reconhecidos a partir da oposição entre indivíduos e Estado, visando
proteger a pessoa contra as intervenções arbitrárias deste. Com o aumento
populacional das cidades, com o crescimento dos veículos de comunicação em
massa, com o aumento do desequilíbrio nas relações econômicas e com o avanço
tecnológico, outros direitos de personalidade emergiram, desta vez não apenas
para proteger o indivíduo contra o Estado, mas para protegê-lo também contra a
intervenção lesiva de outros particulares
Os direitos de personalidade são aqueles direitos que exigem o absoluto
reconhecimento da lei e da sociedade, porque exprimem aspectos que não podem ser
desconhecidos sem afetar a própria personalidade humana (SILVA, 2011).
O indivíduo tem, assim, direito à vida, ao próprio corpo, à imagem, entre outros.
Embora a lei e a doutrina tracem diversas características dos direitos de personalidade,
tais como intransmissibilidade, irrecunciabilidade, indisponibilidade e ilimitabilidade, os
fatos cotidianos e a práxis levam à conclusão de que existe a possibilidade de uma certa
disponibilidade de tais direitos, levando-se em conta a autonomia jurídica individual e a
autonomia privada (SILVA, 2011). Questiona-se se o titular destes direitos tem plena
disponibilidade sobre eles, se pode dispor de seu próprio corpo, vivo ou morto, ou de
partes dele (FABRO, 1999).
No Brasil, pode-se então dizer que há uma disponibilidade controlada ou parcial. É
lícito, assim, concluir-se que a primeira grande limitação à autonomia do paciente é a
impossibilidade de livre disposição do próprio corpo ou de partes dele (FABRO, 1999),
decorrendo desta vedação legal os conflitos éticos e os impasses doutrinários causados
em torno da eutanásia.
2.2.2
Eutanásia: Conceito. Características. Modalidades
Indispensável fazer-se uma correta distinção entre as diversas terminologias
presentes na literatura, de forma a compreender os seus elementos, possibilitando-se a
identificação da consequência jurídica de determinada conduta (SANTORO, 2011).
A primeira nomenclatura a ser abordada é a eutanásia (do grego eu, bom,
thanatos, morte). O vocábulo teve origem no século XVII, por obra do filósofo inglês
Francis Bacon, que denominou eutanásia o estudo das enfermidades incuráveis. De
acordo com Diego Gracia (apud SANTORO, 2011), a eutanásia está presente na história do
homem desde os povos primitivos, podendo ser distinguida em três períodos distintos:
eutanásia ritualizada, eutanásia medicalizada e eutanásia autonomizada.
234
A eutanásia ritualizada é característica das sociedades primitivas, nas quais
anciãos se despediam dos membros de sua tribo e se retiravam para local afastado e
deixavam-se morrer, por ter chegado a sua hora. Muitos povos utilizavam produtos
químicos (como drogas, vinhos e derivados do ópio) para que o moribundo perdesse a
consciência e morresse em paz. Outros povos, como os brâmames e os celtas, matavam
crianças com malformações e idosos enfermos.
O desenvolvimento da Medicina na Grécia marca o período da denominada
eutanásia medicalizada, na qual os médicos tornam-se responsáveis por humanizar a
morte. Houve até mesmo divergência entre Platão e Hipócrates, já que Platão acreditava
que a morte deveria ser dada a todos os indivíduos por ele considerados indesejáveis
enquanto que, para Hipócrates, apenas aos incuráveis. Verifica-se que a Medicina nem
sempre se opôs às práticas eutanásicas.
Para Ana María Marcos del Cano (apud SANTORO, 2011), mesmo com o
Cristianismo defendendo o princípio da sacralidade da vida, que o homem é imagem e
semelhança de Deus, na Idade Média, não houve mudanças significativas na história da
eutanásia.
Somente após a Segunda Guerra Mundial observa-se a autonomia dos pacientes
presentes nas práticas de eutanásia: é o período denominado eutanásia autonomizada.
Desde a Antiguidade até a época nazista, sempre foram motivos sociais, políticos ou
médicos que justificavam a eliminação da vida através da eutanásia.
Hoje a pergunta não é apenas se o Estado tem o direito de eliminar a vida de um
membro da sociedade, mas se tem o direito de obrigar aquele que já iniciou o processo
mortal a continuar agonizando, sofrendo, para que tenha mais alguns "períodos" de vida
em termos quantitativos (SANTORO, 2011).
Na "Declaração sobre a Eutanásia" de 1980 da Igreja Católica há o conceito que a
eutanásia é uma ação ou omissão que por sua natureza ou nas intenções provoca a
morte a fim de eliminar a dor (HORTA, 1999).
Já Luciano de Freitas Santoro conceitua de forma mais detalhada: "Eutanásia pode
ser entendida como o ato de privar a vida de outra pessoa acometida por uma afecção
incurável, por piedade e em seu interesse, para acabar com os seus sofrimentos e dor”
(SANTORO, 2011, p. 117).
De acordo com o modo de execução, a eutanásia pode ser classificada em ativa e
passiva. Na eutanásia ativa o evento morte é resultado de uma ação direta do médico ou
de interposta pessoa, como, por exemplo, o ato de ministrar doses letais de drogas ao
paciente. Trata-se da eutanásia propriamente dita que se efetiva através da realização de
atos para ajudar a morrer (CARVALHO, 2001). Já a eutanásia passiva é uma conduta
omissiva, em que há a supressão ou interrupção dos cuidados médicos que oferecem um
suporte indispensável à manutenção vital.
Para Sandro Spinsanti (apud SANTORO, 2011, p. 117):
A omissão é legítima quando se deixa que o paciente entre naturalmente no
processo de morrer, renunciando-se ao enrijecimento que qualificamos de
obstinação terapêutica. O preço dessa obstinação é uma soma indivizível de
sofrimentos gratuitos, tanto para o morimbundo quanto para seus familiares.
A eutanásia ativa pode ser subdividida em direta (por interrupção da vida do
paciente mediante atos positivos) e indireta (utilização de medicamentos para alívio da
dor e do sofrimento do paciente, o que consequentemente levará à causa de seu óbito).
Na eutanásia ativa indireta há uma dupla finalidade: aliviar o sofrimento do doente
e ao mesmo tempo abreviar seu tempo de vida. Utilizam-se doses cada vez maiores de
analgésicos que podem precipitar o encurtamento da fase terminal da vida do paciente
(ANDRADE, 2003 apud SANTORO, 2011, p. 119).
235
A distinção entre as modalidades de eutanásia ativa é principalmente a finalidade
pretendida com a injeção dos fármacos. Na eutanásia ativa direta objetiva-se a morte para
se alcançar o alívio do sofrimento. Em contrapartida, a eutanásia ativa indireta consiste
em aliviar a dor insuportável, ainda que leve o paciente à morte (CARVALHO, 2001).
Cabe lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro não pune a eutanásia indireta,
já que o médico não pode permanecer inerte diante de intenso sofrimento quando existem
meios que possibilitem ao moribundo ter o mínimo de dignidade (SANTORO, 2011).
De outro lado, a eutanásia passiva consiste na abstenção deliberada da prestação
de tratamentos médicos ordinários e úteis que poderiam prolongar a vida do paciente e
cuja ausência antecipa sua morte (CARVALHO, 2001). Trata-se da modalidade mais
frequente de eutanásia, pois pressupõe um desgaste emocional de menor intensidade na
tomada de decisões do que a eutanásia ativa direta. Exemplos de atitudes omissivas
seriam: a não-iniciação de um tratamento, o não-tratamento de uma enfermidade ou
complicação intercorrente surgida ao longo do acompanhamento de uma doença
originária ou a suspensão do tratamento já iniciado. Em relação ao desligamento dos
aparelhos médicos que mantêm artificialmente as funções vitais do paciente, há
discussões quanto à na classificação de tal conduta. Parte majoritária entende se tratar de
omissão, visto que referida ação apenas suspende o tratamento (constituindo os aparatos
um prolongamento das atividades médicas), contra corrente que sustenta uma conduta
ativa quanto ao ato de desconectar os aparelhos.
De acordo com o motivo que impulsiona o agente, a eutanásia pode ser dividida
em libertadora ou terapêutica, eugênica ou selecionadora e econômica (CARVALHO,
2001).
Na eutanásia libertadora ou terapêutica, a sua prática se dá por razões solidárias
ou de compaixão para com o enfermo que padece. Busca-se eliminar o sofrimento do
doente, estando a ação frequentemente envolta por uma carga ou tensão emocional de
maior ou menor intensidade sobre o autor, que desse modo se libera da mesma. O
objetivo é justamente libertar o paciente de sua agonia, acelerando o momento da morte.
Nesse caso, a vítima é normalmente um paciente terminal, termo que genericamente se
refere àquele paciente em que a doença não responde a nenhuma terapêutica conhecida
e, consequentemente, entrou num processo que conduz irreversivelmente à morte
(NUNES, 2009).
A eutanásia eugênica ou selecionadora emprega a supressão indolor de pessoas
portadoras de deformidades, doenças contagiosas e incuráveis e de recém-nascidos
degenerescentes com o objetivo de promover o melhoramento da espécie humana. O
sujeito passivo não vive uma agonia lenta e cruel, nem está próximo da morte
(CARVALHO, 2001).
De outro turno, a eutanásia econômica consiste na morte de doentes mentais,
loucos irrecuperáveis, inválidos e anciãos movida pelo escopo de aliviar a sociedade do
peso de pessoas economicamente inúteis de forma a dispor de meios adicionais e
extraordinários para outros pacientes que possuam melhores chances de recuperação, ou
ainda, de modo a atender o desejo de parentes e familiares de aliviarem a carga
econômica e emocional atrelada à manutenção desses pacientes (CARVALHO, 2001).
Importante notar que a única que atende aos objetivos de causar a boa morte ao
enfermo terminal, com o objetivo de aliviar sua dor é a eutanásia libertadora. As demais
identificam-se com as condutas homicidas qualificadas por motivo torpe (art 121, § 2o. I,
do Código Penal) (CARVALHO, 2001).
Já o suicídio assistido, também conhecido como auto-eutanásia, eutanásia
voluntária ou, para Ana María Marcos del Cano, suicídio eutanásico, é a eutanásia
realizada pelo próprio indivíduo, que dá fim à sua vida sem a intervenção direta de
terceiros, quando, diante da aproximação do momento da morte, a utiliza para abreviar o
sofrimento físico ou moral derivado de uma doença terminal ou de um estado irreversível
236
(CARVALHO, 2001). Cabe destacar a diferença crucial entre eutanásia, em qualquer de
suas formas, e o auxílio ao suicídio: na eutanásia o doente encontra-se mergulhado num
estado tal de debilidade física que é incapaz de dar a morte a si mesmo (CARVALHO,
2001).
Outra classificação proposta é em relação ao consentimento do sujeito passivo. A
eutanásia voluntária ou consentida é aquela que pressupõe o consentimento ou a petição
da vítima ou de seus representantes legais, que autorizam ou solicitam ao agente que
execute o ato de matar (CARVALHO, 2001). Já a eutanásia involuntária implica numa
decisão da sociedade ou de um indivíduo em pôr fim à vida daquele que sofre, sem que
este exprima sua vontade, como, por exemplo, nos casos de crianças com grave
deficiência mental ou das pessoas dementes e inconscientes (HORTA, 1999).
Por sua vez, em franca oposição ao conceito de eutanásia, a distanásia (do grego
"dis", afastamento, e "thanatos", morte) é o comportamento excessivo do médico em lutar
pela vida do paciente, também conhecida como obstinação terapêutica, retardando
inutilmente a morte natural por meio da utilização de métodos terapêuticos injustificáveis
em pacientes que se encontram em estado de morte iminente e irreversível (SANTORO,
2011). Não se prolonga, contudo, a vida propriamente dita, mas o processo de morrer
(CARVALHO, 2001).
Assim, procedimentos heróicos alcançados por avanços tecnológicos possibilitam a
manutenção quantitavida da vida, ainda que sem qualquer qualidade 44. Para Maria
Helena Diniz (2003 apud SANTORO, 2011, p. 132): "[...] trata-se, pois, de um tratamento fútil,
caracterizado por não conseguir reverter o distúrbio fisiológico que levará o paciente à
morte".
Importante distinguir os meios empregados para o prolongamento artificial das
funções vitais: os meios ordinários e os extraordinários. Os meios ordinários são
caracterizados pela disponibilidade em um grande número de casos, aceitos clinicamente,
econômicos, habitualmente utilizados e de aplicação temporária. Já os meios
extraordinários são de utilização facultativa e estão comumente restritos a apenas alguns
casos, são custosos e possuem caráter agressivo. Assim, diante da dificuldade em
precisar com exatidão tais conceitos, costuma-se utilizar os termos meios proporcionais
(intervenções que são adequadas aos resultados esperados levando em consideração o
estado do paciente, os custos e os desgastes produzidos) e desproporcionais (os meios
parecem exagerados se comparados aos resultados previsíveis). Desta maneira, a
distanásia emprega sem moderação os meios extraordinários e desproporcionais para o
prolongamento, a todo custo, das funções vitais do paciente terminal (CARVALHO, 2001).
Enquanto a eutanásia provoca a morte antes da hora, a distanásia leva a uma
morte tardia, repugnante. Certamente são hoje milhares de pacientes que se acham
submetidos a uma parafernália tecnológica que não só consegue minorar-lhes a dor e o
sofrimento, como ainda os prolonga e os acrescenta, inutilmente (HORTA, 1999).
Cabe então buscar o meio termo: a ortotanásia, entendida como a morte correta,
justa (junção dos termos gregos "orthos" correto e "thanatos" morte) (SANTORO, 2011).
Assim, a ortotanásia é o comportamento do médico que, frente a uma morte
iminente e inevitável, suspende a realização de atos para prolongar a vida do paciente,
que o levariam a um tratamento inútil e a um sofrimento desnecessário, e passa a
emprestar-lhe o cuidados paliativos adequados para que venha a falecer com dignidade
(SANTORO, 2011).
A ortotanásia deve ser entendida como o direito a morrer dignamente, ou a
exigência ética de auxiliar a quem procura exercitar esse direito. É a "morte correta"
mediante a abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil, extraordinário ou
desproporcional, ante a iminência da morte do paciente. Pretende-se humanizar o
processo de morrer, sem prolongá-lo abusivamente, e resultará da própria enfermidade
(CARVALHO, 2001).
237
A ortotanásia seria a verdadeira boa morte, já que o paciente poderá morrer com
dignidade, no momento correto, sem encurtar ou prolongar a sua vida (CARVALHO,
2001).
O direito à vida, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, não
impõe às pessoas que resistam obstinadamente à morte quando a vida não se mostrar
mais possível, porque não é lícito exigir de qualquer pessoa que se submeta a um
tratamento cruel e desumano, vedado que é pelo art. 5 o, inciso III, da Constituição Federal
(CARVALHO, 2001).
2.2.2.1
Direito comparado
Dois países foram os primeiros no mundo a legalizar a eutanásia em 2002. A
Holanda legalizou o procedimento através da Lei sobre a Cessação da Vida a Pedido e o
Suicídio Assistido em 01/04/2002. Na Bélgica, em 28/05/2002, o Parlamento promulgou a
lei que autoriza a eutanásia (SANTORO, 2011).
Os critérios legais estabelecem que a eutanásia só pode ser realizada: a) quando o
paciente tiver uma doença incurável e estiver com dores insuportáveis, b) o paciente deve
ter pedido, voluntariamente, para morre e c) após a opinião de um segundo médico
(NUNES, 2009). Atualmente nesses países o recurso da eutanásia vem sendo praticado
em mais de 4 mil pacientes por ano4.
Soren Holm (2009), médico e membro da Associação Internacional de
Bioética, apresentou em seu artigo "Legalizar a eutanásia? Uma perspectiva
dinamarquesa” a situação da discussão da eutanásia na Dinamarca. Embora o debate
tenha surgido várias vezes ao longo do século, a publicação do Comitê Dinamarquês de
Ética em 1996 disse não à legalização ativa e recomendou o incremento dos cuidados
paliativos na área de pesquisa e educação dos profissionais de saúde. Também muito
oportuna a observação do autor que a Dinamarca é um país rico, com uma população
pequena, um bom nível de educação, constituição homogênea, longa história de
ininterrupta democracia e um sistema público de saúde e de seguridade social baseado
em impostos. Sem dúvida a discussão sobre a preocupação da eutanásia não gira em
torno das pessoas serem forçadas a escolher esse procedimento por razões econômicas.
Noutros países europeus, a prática é ilegal, mas estão previstas algumas
alternativas, como na Grã-Bretanha a interrupção das medidas é autorizada em alguns
casos desde 2002. Já a Suíça apresenta uma atitude tolerante, em que o médico pode
dar a um paciente terminal que deseje morrer uma dose letal de medicamentos para que
ele próprio ingira. Em Luxemburgo está em curso o processo de legalização da eutanásia
em situações médicas "sem saída".
A Espanha reconhece o direito dos doentes de recusarem serem tratados,
assim como ocorre na Hungria e na República Checa. Na França existe desde 22 de abril
de 2005 a lei "deixar morrer". Na Alemanha e Áustria, o desligar de uma máquina não é
ilegal, desde que com autorização do paciente.
Na América do Sul, o Uruguai foi o primeiro país a ter legislação com a
possibilidade da realização da eutanásia. O artigo 37 do capítulo III do Código Penal
Uruguaio de 1934 caracteriza o "homicídio piedoso", no qual aborda a questão da
impunidade ao facultar ao juiz a exoneração do castigo a quem realizou este tipo, desde
que preencha três condições básicas: ter antecedentes honráveis, ser realizado por
motivo piedoso e a vítima ter feito reiteradas súplicas (LIMA NETO, 2003).
4
Legalização da eutanásia faz 10 anos na Holanda e na Bélgica. Disponível em:
<http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5694794-EI8142,00Legalizacao+da+eutanasia+faz+dez+anos+na+Holanda+e+na+Belgica.html>. Acesso em: 11 fev 2013.
238
A Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser
Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina (1996) e a Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos, proposta pela Unesco em 2005, reforçam a ideia que
sempre deve prevalecer o padrão de "melhor interesse" do doente, de acordo com
critérios universais de razoabilidade.
A noção de que a vontade previamente manifestada do doente deve ser
respeitada vem progredindo. A Califórnia foi a primeira unidade federativa dos Estados
Unidos a legalizar o testamento vital (living will) em 1976 com a aprovação do documento
intitulado California Natural Death Act. Na sequência vários legislações foram aprovadas
em outros Estados e em muitos países europeus. Essa legalização é uma prova concreta
de afirmação dos direitos individuais, especialmente dos pacientes terminais, reforçando o
sentimento de autodeterminação e de independência face a intervenções médicas não
desejadas (NUNES, 2009).
2.2.3
Direito de Morrer
Visto que a morte é realidade contra a qual não se pode lutar, adota-se a
expressão direito de morrer ao invés do direito à morte (VIEIRA,1999).
A morte compreendida em seus diversos aspectos temporais, culturais e históricos
trazem um elemento comum como referencial social: o conceito de boa morte (FLORIANI,
2009).
Há de se ter dignidade na hora da morte, então o que seria uma morte indigna? O
simples morrer não pode ser considerado algo indigno. Quando, então, a morte será
digna? Ela será digna sempre que for natural, tendo o ser humano feito passagem desta
vida com o mínimo de sofrimento e com a máxima atenção - tanto médica quanto familiar
- possível naquele momento (SANTORO, 2011).
A concepção da morte digna deve ser entendida no sentido de ser a morte o final
da existência humana, ou melhor, o caminho natural de todos os homens. Portanto, se a
dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental a ser respeitado em todos os
momentos, existe o direito à morte digna tanto quanto o direito a uma vida digna
(SANTORO, 2011).
Para a psicóloga Mirta Videla (2003 apud SANTORO, 2011, p. 180): "[...] morrer
bem seria acompanhado da família, em um lugar agradável, com pessos capacitadas no
alívio físico e espiritual do paciente terminal, com consciência e com menor sofrimento e
degradação possíveis". Não seria um enfrentamento da morte, mas a sua aceitação.
No entanto, observa-se que nas sociedades ocidentais atuais a morte é vista como
um tabu e erroneamente associada ao fracasso pelos profissionais da saúde (MOTA,
1999). Essa recusa em não aceitar esta condição colabora com o prolongamento da vida
a qualquer custo, sem qualquer qualidade e sem respeitar a dignidade da pessoa humana
(SANTORO, 2011).
A reflexão desta postura diante da morte demonstra o modo como se dá a luta
contra as doenças, em que não se pode aceitar a possibilidade de fracasso, mesmo que
os avanços da Medicina tenham se esgotado (COLUCCI, 2011). Torna-se ainda mais
contraditória a postulação por um direito à morte digna quando não há sequer o direito da
pessoa suprimir a sua própria vida (SANTORO, 2011).
239
2.3
TERMINALIDADE DA VIDA: CASOS POLÊMICOS
Recentemente alguns casos de repercussão mundial fomentaram o debate em
torno da eutanásia, do suicídio assistido e sobre o limite ao respeito à autonomia do
paciente em decidir seu tratamento.
Nos Estados Unidos se destacou o caso de Karen Quinlan, em relação à qual foi
obtida a autorização concedida pelo Tribunal do Estado de New Jersey para o
desligamento das máquinas que sustentavam sua vida vegetativa causada após a
ingestão de uma mistura de drogas e álcool em 1975. Mesmo assim, ela continuou a
respirar por mais dez anos, falecendo por conta de múltiplas infecções (CARVALHO,
2011).
A vida e luta de Ramón Sanpedro foi retratada no filme espanhol Mar Adentro,
produzido por Alejandro Almenábar. O jovem, porém experiente marinheiro Ramón,
sofreu um acidente à beira-mar que o deixou tetraplégico. Apesar do incansável cuidado
de sua família, solicitou à Corte Espanhola o direito de morrer. O pedido foi negado, mas
suscitou ampla discussão na sociedade sobre até quanto lutar (PESSINI, 2008).
Na França outro caso emblemático é o de Vincent Humbert. Aos vinte anos de
idade sofreu um acidente automobilístico que o deixou tetraplégico, surdo e mudo. Com a
ajuda de sua mãe, escreveu uma carta ao então presidente Jacques Chirac na qual
argumentava que a lei lhe dava o direito de indultar os prisioneiros, pois então a ele
suplicava, como última escolha, o direito de morrer. Posteriormente escreveu um livro (Je
vous demande le droit de mourir). Três anos após o acidente, sua mãe praticou a
eutanásia com a administração de altas doses de barbitúricos (SANTORO, 2011).
O médico norte-americano Jack Kevorkian, também conhecido como Dr. Morte,
tornou-se mundialmente famoso por sua luta para fazer do suicídio assistido um direito de
todos os pacientes terminais. Chegou a criar uma máquina que era acionada pelo próprio
paciente disposto a morrer sem dor, demora ou sofrimento. Foram 130 casos registrados5
Já a americana Terri Shiavo vivia há quinze anos em estado vegetativo causado
por uma isquemia cerebral. Embora os pais de Terri fossem contra, seu marido conseguiu
uma autorização judicial em 2005 para a retirada da sonda de alimentação, pois alegou
que várias vezes ela declarava não querer viver de forma artificial. Também participaram
desse caso polêmico o Congresso dos Estados Unidos e o presidente George W. Bush
(SANTORO, 2011).
Outro caso foi a agonia pública do Papa João Paulo II que lutou contra uma doença
crônico-degenerativa (Mal de Parkinson) e sua decisão em permanecer em seus
aposentos, recusando-se a retornar ao hospital, pois estava consciente da proximidade do
final da vida. Assim, foi atendido em seu pedido de ortotanásia e faleceu em maio de 2005
(SANTORO, 2011).
Recentemente a declaração do ministro das Finanças no Japão, Taro Aso de 72
anos, causou polêmica no país e em toda comunidade internacional. Ele sugeriu que os
idosos são um dreno desnecessário nas finanças do país e que "deveriam" morrer para
poupar gastos do governo com a saúde pública. Mais tarde, relatou que seria apenas sua
opinião pessoal e que jamais pretendeu sugerir a morte como tratamento de doentes
terminais6.
5
"Doutor
Morte"
Jack
Kerkovian
morre
aos
83
anos
nos
EUA.
Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/mundo/924893-doutor-morte-jack-kevorkian-morre-aos-83-anos-noseua.shtml >. Acesso em: 21 jan. 2013.
6
Ministro japonês causa polêmica ao dizer que idosos devem se 'apressar e morrer'. Disponível em: <
http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,ministro-japones-causa-polemica-ao-dizer-que-idososdevem-se-apressar-e-morrer,987487,0.htm>. Acesso em: 24 jan. 2013.
240
Como se verifica das diversas situações esboçadas quanto à terminalidade da vida,
o enfrentamento dos últimos momentos de uma pessoa suscita inúmeros desafios à
família, à equipe médica, à sociedade, etc. Tentando contornar o quadro já descrito, o
Direito Comparado e o Conselho Federal de Medicina (CFM) manifestaram uma solução
intermediária, a saber, a possibilidade do paciente ter assegurado o direito de expressar a
sua vontade nos momentos finais de vida quando estiver impedido de fazê-lo, garantindose, assim, o seu direito à autonomia. Tal iniciativa é denominada de Testamento Vital,
como se examinará a seguir.
3
O TESTAMENTO VITAL NO BRASIL
3.1
CONCEITO: ORIGEM
Existem diversas maneiras de denominar o testamento vital. A Resolução
1995/2012 do Conselho Federal de Medicina adotou o termo Diretivas Antecipadas de
Vontade, mas existem outras formas de designar esta mesma questão: manifestação
explícita da própria vontade, biotestamento, testamento biológico, diretivas avançadas,
vontades antecipadas, entre outras (ALVES, 2012).
Embora a declaração prévia de vontade do paciente terminal assemelha-se ao
testamento, já que ambos são negócios jurídicos caracterizados como unilaterais,
personalíssimos, gratuitos e revogáveis, a utilização do termo "testamento" pode gerar
confusão, pois embora seja uma manifestação antecipada, o testamento só tem sua
eficácia apenas com a morte da pessoa (PENALVA, 2009). Assim, para Cristiane Avancini
Alves, a denominação Diretivas Antecipadas de Vontade, conforme expressa na
Resolução 1995/2012 caracteriza adequadamente o seu propósito:
a) Diretiva, por ser um indicador, uma instrução, uma orientação, não uma
obrigação;
b) Antecipada, pois é dita de antemão, fora do conjunto das circustâncias do
momento atual da decisão
c) Vontade, ao caracteriza uma manifestação de desejos, com base na
capacidade de tomar decisão no seu melhor interesse (ALVES, 2012, p. 358).
Os dois principais objetivos da declaração prévia da vontade do paciente seriam:
garantir que os desejos do paciente serão atendidos no momento da terminalidade da
vida e proporcionar ao médico respaldo legal para a tomada de decisões em situações
conflitivas (SANCHES, 2003 apud PENALVA, 2009). Já o conteúdo abordaria os aspectos
relacionados ao tratamento médico, como a suspensão dos esforços terapêuticos que não
alterarão a terminalidade da vida, a nomeação de um procurador e a manifestação sobre
eventual doação de órgãos (PENALVA, 2009). Seus efeitos vinculam médicos, familiares
e eventual procurador de saúde às suas disposições.
3.2
DIREITO POSITIVO INTERNO
A Constituição da República Federativa do Brasil proclamada em 1988, conhecida
como a Constituição Cidadã, concedeu à dignidade da pessoa humana o status de
princípio fundamental. Desta forma, a Constituição se volta à proteção do indivíduo, suas
liberdades e diversas concepções individuais de vida digna (PENALVA, 2009).
Além do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana prevista no art 1 o,
III, há o princípio da autonomia (implícito no art. 5o.) bem como a proibição de tratamento
241
desumano (art 5o., III) (PENALVA, 2009). Desta forma, garante-se constitucionalmente o
direito à morte digna pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia
privada e da liberdade individual, sendo a diretiva de vontade o seu instrumento
garantidor (PENALVA, 2009).
No Direito Penal são evidentes as influências dos ensinamentos do filósofo Tomás
de Aquino, na Summa Theologica, que servem de suporte para a concepção contrária à
eutanásia com a condenação do suicídio e a proibição da solicitude da própria morte
mesmo por parte de enfermos terminais. Para este filósofo e doutor da Igreja, a eutanásia
representa um triplo atentado: falta de caridade para consigo, contra a sociedade e contra
o direito exclusivo de Deus sobre a vida humana, consistindo uma usurpação do poder
divino (CARVALHO, 2001).
O suicídio enquanto privação da vida pelo próprio indivíduo, mantém estreita
ligação com a eutanásia, porquanto denota o mesmo desígnio de disposição daquele bem
jurídico.
Enquanto historicamente o suicídio era defendido pelos estoicos, Marco Aurélio e
Schopenhauer entendiam tratar-se de uma manifestação do único direito incostestável do
homem: o direito de dispor da própria vida. Já Beccaria, ao realizar a sua análise do
suicídio em "Dos delitos e das penas", compara o suicida com a pessoa que abandona o
Estado e, desta forma, gera um duplo prejuízo para sua nação: haverá uma pessoa a
menos na origem e uma a mais no destino (BECCARIA, 2005).
No entanto, prevaleceu a influência de Santo Agostinho em que o Direito Canônico
equiparou o suicídio ao homicídio, visto que para os teólogos cristãos, a vida pertence a
Deus e não ao homem, por isso esse não tem o direito de dispor de algo que não possui
(CARVALHO, 2001).
Do mesmo modo, a legislação civil inspirou-se nos dispositivos religiosos,
acrescendo penas seculares às sanções canônicas. Para Miguel Ángel Nunez Paz, a
equiparação do suicídio ao homicídio é um ponto comum entre a legislação secular e o
direito da Igreja, embora para a Igreja a justificativa é que o homem é criatura de Deus,
por isso não pode dispor do bem que não lhe pertence. Para a legislação secular a
finalidade é endurecer as penas como forma de intimidação (CARVALHO, 2001).
A despenalização do suicídio surge a partir do final do século XVIII em vários
países como Prússia, França e Itália. Contemporaneamente, alguns doutrinadores
defenderam a descriminalização do homicídio eutanásico, como Enrico Ferri e Grispigni,
de forma a acolher a atenuação da pena nos casos de indução e auxílio ao suicídio e de
homicício com consentimento da vítima, desde que concorrente o móvel piedoso. A
polêmica obra "Da autorização para eliminar vidas carentes de valor vital" lançada em
1920 pelo penalista alemão Carl Binding e pelo médico psiquiatra Alfred Hoche também
contribuiu para a aceitação da atenuação da pena ou mesmo do perdão judicial para
aqueles que matassem um enfermo incurável ou demente mediante seu requerimento,
movido por sentimentos de piedade (CARVALHO, 2001).
3.3
O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E A RESOLUÇÃO 1995/2012 CFM
O Conselho Federal de Medicina possui competência legal para estabelecer
normas para os profissionais médicos, sendo que a proposta da Resolução 1995/2012 se
justifica com base nos princípios contidos no próprio Código de Ética Médica de 2009,
observando um de seus pontos fundamentais que é o reconhecimento da autonomia do
paciente (ALVES, 2012).
Na própria exposição de motivos da Resolução 1995/2012 são referenciados os
códigos de ética médica da Espanha, Itália e Portugal que inseriram o dever de o médico
respeitar as diretivas antecipadas do paciente, inclusive as verbais. Assim fica evidente
242
que a elaboração da regulamentação do assunto pelo Conselho Federal de Medicina
acompanha tendência mundial.
A referida Resolução foi publicada no Diário Oficial da União em 31 de agosto de
2012 e possui três artigos. Logo no primeiro artigo traz a definição das diretivas
antecipadas de vontade como:
[...] o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente,
sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que
estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Conforme observa Maria da Glória Colucci, a possibilidade de manifestar a vontade
do paciente é, de fato, o reconhecimento da liberdade da pessoa em dispor do próprio
corpo de forma antecipada às situações de terminalidade ou em circunstâncias em que
estiver temporariamente privado de consciência7 Nota-se que os desejos são
antecipações que devem orientar a tomada de decisão no caso de incapacidade do
paciente. No entanto, conforme expresso no artigo seguinte, essas orientações somente
serão executadas pelo médico se estiverem em acordo com os preceitos contidos no
Código de Ética Médica. Não há a necessidade de um documento específico, bastando
apenas um registro feito no prontuário pelo médico. Essas diretivas prevalecerão sobre
qualquer outro parecer não-médico, inclusive sobre a vontade de familiares. Também
existe a possibilidade que o paciente autorize outra pessoa a representá-lo no caso de
incapacidade, fazendo com que a vontade desta pessoa designada seja levada em
consideração pelo médico (ALVES, 2012).
Para Roberto Luiz D'Avila e Diaulas Costa Ribeiro (2012):
A Resolução do Conselho Federal de Medicina reafirma o respeito dos médicos à
autonomia e reconhece, inclusive, a autonomia ampliada ou em prospectiva, que
se materializa nas diretivas antecipadas de vontade, como um valor inerente à
dignidade da pessoa humana a ser preservado e respeitado na relação do médico
com o paciente em fase terminal.8
Assim, a Resolução no. 1995/2012 representa um instrumento útil no processo de
tomada de decisão em situações que o paciente esteja incapacitado de expressar sua
vontade, facilitando e garantindo o respeito aos seus desejos.
4
CONCLUSÃO
Partiu-se, no texto, da análise da morte digna à luz dos principíos constitucionais
de dignidade da pessoa humana, autonomia, autodeterminação e liberdade individual.
Foram abordados os conceitos de morte, entendida como um direito de morrer de forma
digna, casos polêmicos de terminalidade da vida, bem como a evolução do conceito de
testamento vital. A recente publicação da Resolução do Conselho Federal de Medicina
(1.995/2012) é reconhecida como um importante progresso na busca pela morte digna no
Brasil, podendo ser vista como o equilíbrio entre a antecipação da morte e o
7
COLUCCI, Maria da Glória. Diretivas antecipadas de vontade do paciente (Resolução n o. 1995/2012 do
Conselho Federal de Medicina). Disponível em: <http://rubicandarascolucci.blogspot.com.br/>. Acesso em:
28 mar 2013.
8 D'AVILA, Roberto Luiz e RIBEIRO, Diaulas Costa. A última lição teológica de Carlo Maria Martini e o
Conselho
Federal
de
Medicina.
Set,
2012.
Disponível
em:
<http://www.portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23215:a-ultima-licaoteologica-de-carlo-maria-martini-e-o-conselho-federal-de-medicina&catid=46>. Acesso em: 11 de fev de
2013.
243
prolongamento do processo de morrer. A disseminação desse entendimento permitirá a
muitos pacientes com doenças potencialmente limitantes à vida a concretização da
expressão da sua própria vontade.
A temática é geradora de inúmeros conflitos de ordem moral, além dos embates
religiosos, políticos e, até econômicos, que a terminalidade da vida pode ensejar.
Apesar das inúmeras e intermináveis discussões, não se pode esperar que haja,
ainda que em futuro distante, uma aceitação ou mesmo pacificação em relação à prática
da eutanásia no Brasil. Há um temor generalizado de que a liberação da prática da
eutanásia, ainda que dentro de estritos limites, venha a causar uma eliminação em escala
alarmante de muitos seres humanos indefesos devido à falta de controle e fiscalização do
Estado.
Por estas e outras razões, a manifestação de vontade do paciente
representa um significativo passo na regulamentação das condições de terminalidade da
vida no País, a exemplo do que já ocorre em outros lugares.
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246
O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIZAÇÃO NO DIREITO
AMBIENTAL E A SADIA QUALIDADE DE VIDA DE PESSOAS
IMPACTADAS PELA POLUIÇÃO MARINHA
THE RESPONSIBILITY PRINCIPLE IN THE
ENVIRONMENTAL LAW CONTEXT AND THE HEALTHY QUALITY OF
PEOPLE IMPACTED BY MARINE POLLUTION
Aimée Isabella S. Mendes
_______________________________________
Graduanda do Curso de Direito do UNICURITIBA
Pesquisadora do JUS VITAE – Pesquisa em Biodireito e Bioética pelo UNICURITIBA
Pesquisadora do grupo de iniciação científica do mestrado do UNICURITIBA sobre “Direito
Ambiental e Empresarial no Contexto da Crise Socioambiental”
Especialista em Poluição Marinha pela Universidade Miguel Cervantes (Espanha) através
do curso Contaminación Marinha promovido pela FUNIBER
Diretora Geral da Statera Inteligência Socioambiental
Maria da Glória Colucci
______________________________________
Mestre em Direito Público pela UFPR
Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR
Professora titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA
Professora Emérita do UNICURITIBA
Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – JUS VITAE do
UNICURITIBA
Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR
Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília (SBB)
Membro do IAP – Instituto de Advogados do Paraná
Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
247
RESUMO
A presente pesquisa busca inserir o conceito de sadia qualidade de vida, já conhecido no
Biodireito e na Bioética, no contexto do Direito Ambiental brasileiro. Busca-se nos
princípios em que se baseia a legislação ambiental, especialmente o da responsabilização,
instrumento para dar efetividade à defesa da sadia qualidade de vida de pessoas
impactadas pela poluição marinha. O bioma marinho é cada vez mais cenário de poluições
de níveis letais e intoxicações pelas mais diversas razões e é, também, fonte natural de
alimento, trabalho e cultura para uma série de indivíduos. Este artigo foca apenas a
hermenêutica dos princípios, buscando na essência destes o dever de responsabilização
de agentes poluidores face às vítimas humanas, ainda que indiretas.
Palavras-chave: poluição marinha, responsabilidade civil, sadia qualidade de vida,
princípio da responsabilização, princípio do poluidor pagador, meio
ambiente.
ABSTRACT
This research seeks to insert the context of Brazilian Environmental Law the concept of
healthy quality of life, already known in Bio law and Bioethics, through the research
regarding the principles that regulate the environmental legislation, especially the
Responsibility Principle. It will be analyzed how these principles are related to the defense
of a healthy quality of life of people affected by marine pollution. The marine biome is
increasingly a place that happens lethal levels of pollution and poisoning for several
reasons and is also a natural source of food, employment and culture for a number of
individuals. This article focuses only on the principles of hermeneutics, seeking the essence
of the responsibility duty of polluters considering its victims, even if they are indirectly
affected.
Keywords: marine pollution, liability, healthy quality of life, the responsibility principle, the
polluter principle, environment.
1
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento econômico no Brasil evoluiu em desarmonia com a questão da
sustentabilidade e da preservação dos recursos socioambientais, ocorrendo, durante muito
tempo, de forma a degradar o potencial produtivo futuro.
A tutela do meio ambiente marinho face ao Direito Ambiental apresenta dupla
finalidade: a proteção e capacidade do ecossistema e a sua possibilidade de
aproveitamento humano. Entretanto, é também responsável pela sadia qualidade de vida
de muitos dos diferentes grupos habitantes do território brasileiro, entre eles os
pescadores.
A questão da sadia qualidade de vida no ordenamento jurídico denota bem estar,
sendo ele físico, mental e espiritual, significando a possibilidade efetiva do sujeito
desenvolver suas potencialidades em todas as acepções de meio ambiente conhecidas
pelo Direito.
É partindo desta norma matriz que se analisa o tema da poluição marinha em
território nacional, estando a mesma diretamente relacionada à dignidade da pessoa
humana. Os bens necessários à sadia qualidade de vida seriam bens fundamentais
à garantia da dignidade da pessoa humana, logo, ter uma vida sadia é necessariamente
248
ter uma vida digna.
O dano ambiental ocasionado sob o foco da perspectiva marinha é considerado
nesta pesquisa na dimensão individual, sendo avaliada a necessidade da reparação
efetiva e célere daqueles sujeitos que têm suas vidas impactadas direta ou indiretamente
através da pesca.
O tema proposto considera o fato de que a questão ambiental no Brasil é
relativamente nova (regras e princípios, formais e materiais), especialmente com relação à
normatização da mesma, portanto, as contribuições científicas têm sido de grande valia
aos tribunais e legisladores pátrios. A preocupação com a preservação ambiental, no
entanto, já tem sido objeto de inúmeros tratados, convenções e protocolos mundialmente,
o que denota um avanço do Direito Internacional Público em relação à proteção dos bens
ambientais, especialmente os marinhos. Os danos ambientais atingem níveis
transfronteiriços impactando coletividades e comprometendo a biodiversidade.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, traz em seu art. 225 1,
caput, a previsão para um dos princípios norteadores mais importantes do Direito
Ambiental no Brasil, o direito à sadia qualidade de vida, que se pretende analisar no texto.
2
CONTEXTUALIZAÇÃO DO AMBIENTE MARINHO
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) ratificada em 22
de dezembro de 1988 pelo Brasil, estabelece o conceito de mar territorial, de acordo com a
referida convenção, (arts. 2 e 3), a soberania do Estado costeiro sobre o seu território e
suas águas interiores estende-se a uma faixa de mar adjacente – mar territorial – com
dimensão de até 12 milhas marítimas (1 m.m.= 1.852 metros) a partir das linhas de base1.
Ademais, no mar territorial, o Estado costeiro exerce soberania ou controle pleno sobre a
massa líquida e o espaço aéreo sobrejacente, bem como sobre leito e o subsolo deste
mar.
De acordo com Rodrigo Fernandes More,
O mar é um todo integrado de recursos vivos e não-vivos que compõe, em seu
conjunto, o chamado meio ambiente marinho. Como um bem protegido pelo
direito, a natureza jurídica do mar se revela na máxima ‘o mar é um conjunto de
bens (direitos e obrigações) inapropriáveis em sua unidade, mas exploráveis, de
acordo com regras de direito internacional.’2
A respeito de uma melhor definição do meio ambiente marinho, estabelece o
capítulo 17.1 da Agenda 21 da ECO/92:
O meio ambiente marinho -- inclusive os oceanos e todos os mares, bem como as
zonas costeiras adjacentes -- forma um todo integrado que é um componente
essencial do sistema que possibilita a existência de vida sobre a Terra, além de
ser uma riqueza que oferece possibilidades para um desenvolvimento sustentável.
3
1
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.)
2 MORE, Rodrigo Fernandes. A poluição do meio ambiente marinho e o princípio da precaução. Jus
Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3194>.
Acesso em: 30 mar. 2013.
3 ONU. Agenda 21. 1992. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Table/Agenda-21-ECO-92-ou-RIO-92/>. Acesso em: 30 mar.
2013.
249
Do ponto de vista econômico, o meio ambiente marinho deve ser conceituado
considerando seus recursos vivos e os não-vivos. Já quanto ao direito internacional
ambiental a melhor definição está contida no artigo 1º da Convenção para Proteção do
Meio Ambiente Marinho do Atlântico Nordeste, assinada em Paris em 1992:
Segundo esta Convenção (que no Preâmbulo reconhece a vital importância tanto
do meio ambiente marinho quanto da fauna e da flora para todas as nações), sua
área de aplicação estende-se às águas internas e ao mar territorial dos Estadospartes, ao mar além e adjacente ao mar territorial sob jurisdição do Estado
costeiro, conforme reconhecido pelo direito internacional, bem como ao alto-mar,
inclusive o solo de todas as águas internas e seu subsolo. As águas internas são
definidas como as águas que se estendem da linha base para o mar territorial até
o limite de água fresca. Finalmente, o limite de água fresca é aferido no período da
maré baixa, estabelecendo-se no local onde o curso d’água interno adquire
salinidade devido à presença da água do mar.
Assim, de acordo com o art. 1o. da referida convenção, o meio ambiente marinho
compreenderia todos os seres vivos e não-vivos que se estabelecem sob as águas do
mar, com inclusão daqueles cuja cadeia alimentar está obrigatoriamente vinculada à vida
marinha (i.e. aves marinhas).
A normatização da questão marinha não se diferenciou muito da evolução no tema
ambiental como um todo, como assinala Valdir Andrade Santos, relatando que:
Em 1954 chegou-se à primeira convenção internacional sobre a matéria, concluída
em Londres, destinada a prevenção da poluição marítima causada por óleo. [...] Em
1969 surge a Convenção Internacional Sobre Responsabilidade Civil em Danos
Causados por Poluição por Óleo, aplicados aos danos causados por poluição
causados no território, incluindo o mar territorial de um Estado, causado por óleo
que tenha sido descarregado ou derramado de um navio (SANTOS, 2010, p. 9).
No Brasil a legislação não tem acompanhado de maneira dinâmica as
problemáticas ambientais envolvendo o meio ambiente marinho, de forma que ainda se
tem inovado na tentativa de relacionar a questão tradicional de dano civil e o dano
ambiental, que ao mesmo tempo é individual, coletivo e difuso. Acerca do assunto,
entende José Rubens Morato Leite:
O dano causado ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não preenche as
condições tradicionais, pois, conforme já foi citado, trata-se de um bem incorpóreo,
imaterial, autônomo de interesse da coletividade. Neste sentido, a opinião de
Veronese: ‘A questão do ressarcimento do dano também está sujeita à uma série
de transformações, pois, segundo a sua concepção tradicional, somente a parte
que postulou em juízo é que deverá ser ressarcida, o que não se aplica em se
tratando de interesses difusos’ (apud SANTOS, 2010, p. 10).
Dessa forma, deve-se entender que por mais que se tenha uma problemática atual
e consistente, houve uma evolução significativa da maneira que se enxerga o meio
ambiente, principalmente da segunda metade do século XX para cá, inclusive na própria
concepção do objeto de estudo da ciência do direito ambiental: o meio ambiente.
3
A CONCEITUAÇÃO DE MEIO AMBIENTE
A fim de se conceituar o que se entende por meio ambiente para o universo jurídico
é preciso compreender a transdisciplinariedade do Direito Ambiental. É recente a
preocupação com a proteção ambiental e a qualidade de vida, sendo possível afirmar que
a questão só chegou a ser considerada tema fundamental na gestão dos Estados a partir
250
da evidente constatação da degradação ambiental e a consequente piora da qualidade de
vida humana.
Paulo Freire Vieira salienta que, o tema meio ambiente não serve para designar um
objeto específico, mas, de fato, uma relação de interdependência:
Tal interdependência é verificada de maneira incontestável pela relação homemnatureza, posto que não há possibilidade de se separar o homem da natureza, pelo
simples fato da impossibilidade de existência material, isto é, o homem depende da
natureza para sobreviver. O meio ambiente é conceito que deriva do homem, e a
ele está relacionado; entretanto, interdepende da natureza como duas partes de
uma mesma fruta ou dois elos do mesmo feixe (VIEIRA, 1995, p. 49).
O meio ambiente compreende “[...] o humano como parte de um conjunto de
relações econômicas, sociais e políticas que se constroem a partir da apropriação dos
bens naturais que, por serem submetidos à influência humana, transformam-se em
recursos essenciais para a vida humana” (ANTUNES, 2008, p.9). Segundo José Afonso da
Silva, é “[...] a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que
propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas” (SILVA, 2007,
p. 20).
Destarte, independente do conceito adotado é inegável que o meio ambiente é a
junção de diversos elementos do Homem e da Natureza que se comunicam e se
interdependem, o que significa por sua vez, que realizar um dano a um elemento
integrante do meio ele se estende aos demais, inclusive a coletividade humana. Daí se
conclui que parte do conceito do meio ambiente está o caráter de holístico de interação e
interdependência, como bem doutrina Paulo Roney Fagundes (2000):
O holismo oferece outra visão de mundo, diferente daquele que a ciência tradicional
apresenta, baseada na falsa crença de que a natureza deve ser fragmentada para
ser mais bem compreendida. Para resolução dos problemas, a visão de integridade
não se satisfaz com as respostas prontas, e nem com os caminhos previamente
traçados pela ciência tradicional.
Hoje, a visão antropocêntrica, vale dizer, de um meio ambiente que existe em torno
do Homem e de seus interesses foi substituída pela ideia de que o meio ambiente é que é
o centro de todas as providências, precauções, defesas. Dessa forma, o homem configurase mais como um gestor e não dono do meio ambiente.
O princípio I da Eco/92 esclarece que o desenvolvimento sustentável tem seu
principal compromisso com os seres humanos, porém, essa visão, ainda que
antropocêntrica, está aliada a outros elementos de valor que admitem uma preocupação
com a proteção ambiental, tais como uma vida saudável e a harmonia com a natureza.
Ensina Marcelo A. Rodrigues que as primeiras “normas ambientais” surgem em um
contexto em que o meio ambiente é relegado ao papel secundário, em um momento em
que não era tutelado de forma autônoma, pois o objetivo dessa tutela era de “proteger o
interesse privado e financeiro do bem pertencente ao indivíduo. Essa modalidade de
proteção do meio ambiente, pode ser vislumbrada no antigo Código Civil brasileiro
revogado em 2002, nas normas que regulavam o direito de vizinhança (RODRIGUES,
2011). Essa fase perdurou até a segunda metade do século XX.
É como se houvesse de um tempo para cá uma mudança no grau dos óculos em
que o ser humano enxerga o meio ambiente. Essa visão era antes, de certa maneira,
preocupantemente antropocêntrica, de tal forma que alguns elementos da natureza, como
a água, eram tidos como res nullius. O que implica, de acordo com Marcelo Abelha
Rodrigues (2011), em uma tutela mediata ambiental, assim, esses bens eram vistos
apenas em acepção econômica.
Em uma segunda fase, a ideologia antropocêntrica pura já havia sido superada, no
251
entanto a tutela relacionada ao meio ambiente ainda só existia quando podia ser
relacionada a algum tipo de ganho ao ser humano. Entretanto, foi um momento importante,
pois evidenciou a vital associação entre meio ambiente e saúde. Foi neste momento que “a
legislação ambiental podia ser tipificada pela sua preponderância na tutela da saúde e
qualidade de vida humana” (RODRIGUES, 2011, p. 21). Aqui, a preocupação deixava de
ser meramente econômica em termos de propriedade, a valoração econômica está ligada
à questão da qualidade de vida e saúde. Note-se, ainda não há uma preocupação genuína
com relação ao meio e à saúde por si só, mas, há um cenário de valorar benefícios
econômicos indiretos e se preservar um meio ambiente sadio.
Hoje, a sociedade encontra-se em plena superação deste último posicionamento, já
se entende que bens como a água e o ar são res omnium, é uma forma de superar o
radicalismo antropocêntrico do passado e incluir valores maiores que passam a integrar os
fundamentos básicos na proteção ambiental na legislação brasileira, valores estes como,
por exemplo, a proteção da saúde do ser humano, o surgimento de áreas novas do saber
humano, como a Bioética, que contribui para uma crescente valoração da qualidade de
vida, que segundo Hubert Lepargneur é o “estudo sistemático da conduta humana na área
das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é
examinada à luz dos valores e princípios morais” (LEPARGNEUR, 1996, p. 16). O início
dessa fase ocorreu com o advento da Lei 6.938/1981, a Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente, que:
[...] introduziu um novo tratamento normativo para o meio ambiente. Primeiro
porque deixou de lado o tratamento atomizado em prol de uma visão molecular,
considerando o entorno como um bem único, imaterial e indivisível, de tutela
autônoma (art. 3, I) (...) Adota, pois, inegável concepção biocêntrica, a partir da
proteção do entorno globalmente considerado (ecocentrismo). Há, ratificando, nítida
intenção do legislador em colocar a proteção da vida no plano primário das normas
ambientais. Repita-se: todas as formas de vida (RODRIGUES, 2011, p. 23).
O Homem, então, sai de cena como protagonista para dar espaço a um sistema
mais justo, inclusivo, no qual não há principais e coadjuvantes, todas as formas de vidas
são consideradas igualmente importantes.
4
PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL NA PROTEÇÃO DA POLUIÇÃO
MARINHA
No Direito Ambiental, de acordo com José Joaquim Gomes Canotilho, os princípios
têm inúmeras finalidades, merecendo destaque as seguintes: permitem verificar a validade
dos atos regulamentares, sendo possíveis torná-los inconstitucionais ou ilegais; amparam
a interpretação das normas jurídicas; e, ainda, auxiliam no preenchimento de lacunas e
clarificação de obscuridades legais (CANOTILHO, 1998).
Dessa forma, para a finalidade deste trabalho será feito um recorte com os
princípios tidos como fundamentais para a compreensão do tema. Rubens Morato Leite
doutrina que “a utilização da expressão princípios estruturantes deve-se ao fato de se
referirem a princípios constitutivos do núcleo essencial do direito do ambiente, garantindo
certa base e caracterização” (CANOTILHO, 2012, p. 182).
O Direito Ambiental, por conter em seu bojo uma série de valores e direitos tidos
como fundamentais, é inevitável que tenha um caráter principiológico de altíssima
importância, especialmente, pois, como já foi tratado, é uma novel ciência que muito vem
desenvolvendo ancorada nos valores e princípios constitucionais. Com relação aos valores
sociais contidos nos princípios, Mirra afirma que “[...] é importante destacar que os
princípios cumpram igualmente essa outra função: definir e cristalizar determinados valores
252
sociais, que passam, então, a ser vinculantes para toda atividade de interpretação e
aplicação do direito” (MIRRA, 1996, p. 103-104).
Fundamental frisar ainda que ainda que não existe uma hierarquia entre princípios,
há uma série de conflitos hermenêuticos entre os princípios fundamentais constitucionais
quando se trata de temas ambientais, vez que é uma vertente do Direito que busca inibir
outros direitos, os princípios ambientais colidem com outros tradicionais como, por
exemplo, o direito de propriedade, direito adquirido, direito à livre atividade econômica
(CANOTILHO, 2012).
4.1
PRINCÍPIO DO MÍNIMO EXISTENCIAL ECOLÓGICO
O princípio do mínimo existencial ecológico segue a esteira do pensamento de que
não basta apenas viver, é preciso viver com qualidade, dessa forma, é conteúdo
“inderrogável dos direitos fundamentais” (GARCIA, 2004, p. 194), pois está relacionado ao
mínimo de condições dignas para se viver.
Apesar de ser considerado como direito fundamental, não existe previsão expressa
na Constituição pátria, o que lhe confere o status de fundamental pois, “sua previsão é
captada indutivamente da dignidade da pessoa humana, conforme o art. 1 o., III, da Carta
Magna, coração de todos os direitos fundamentais” (BELCHIOR, 2011, p. 226).
O que figura como indispensável para a dignidade humana neste princípio é o
mínimo equilíbrio ambiental, assim, deve-se incluir a qualidade ambiental como parte
integrante dos direitos identificados pela doutrina como básicos existenciais.
Há de se ressaltar aqui que o termo mínimo existencial ecológico abrange
naturalmente um mínimo existencial social, de forma que:
Busca-se a identificação de um conjunto normativo que atenda um compromisso
antrópico viabilizador da existência do ser humano, defendendo, antes de tudo, sua
dignidade, dirigindo-nos à manutenção de um estágio mínimo ao ambiente,
vedando-se a degradação ambiental (MOLINARO, 2007, p. 31).
Portanto, o referido princípio é de suma importância para o contexto da afronta à
sadia qualidade de vida na ocorrência de uma dano ambiental, considerando que é uma
forma de garantir a manutenção de um conjunto de condições essenciais para
proporcionar uma vida digna e saudável, incluindo, fundamentalmente, a qualidade
ambiental e consequentemente a social.
4.2
PRINCÍPIO DA EQUIDADE INTERGERACIONAL
Está diretamente relacionado com o desenvolvimento sustentável, na medida que
busca a conservação dos recursos ambientais presentes para o possível gozo dos
mesmos pelas gerações futuras, na lição de Alexandre Kiss:
A preservação do meio ambiente está obrigatoriamente focalizada no futuro. Uma
decisão consciente para evitar o esgotamento dos recursos naturais globais, em
vez de nos beneficiarmos ao máximo das possibilidades que nos são dadas hoje,
envolve necessariamente pensar sobre o futuro. Entretanto o futuro pode ter uma
dimensão de médio ou longo prazo, enquanto a preocupação relacionada ao
interesse das gerações futuras é, necessariamente, de longo prazo e, sem dúvida,
um compromisso vago (KISS, 2004, p. 6).
Acrescenta, ainda, Alexandre Kiss, antevendo futuros reflexos da degradação
ambiental:
253
A mudança global que está ocorrendo no momento afeta não só os recursos
naturais, mas também os recursos culturais humanos que foram acumulados
durante milhares de anos. Esses recursos consistem, por exemplo, de
conhecimentos de povos indígenas, de registros científicos ou até mesmo de
películas que se deterioraram com o passar do tempo. Fatores psicológicos e éticos
explicam nossas reações a tais questões. Nossa primeira reação pode ser
genética, instintiva. Todas as espécies vivas procuram instintivamente assegurar
sua reprodução, e os mais desenvolvidos entre elas também fazem a provisão para
o futuro bem-estar de seus descendentes. A história humana é testemunha dos
constantes esforços dos seres humanos para proteger não somente suas próprias
vidas, mas também para garantir o bem-estar e melhorar as oportunidades para
sua prole. Os cuidados instintivos com as crianças e netos fazem parte da natureza
humana (KISS, 2004, p. 6).
O princípio da equidade intergeracional procura implementar a justiça entre as
gerações. Tal justiça satisfaria a equidade de oportunidade quanto ao desenvolvimento
socioeconômico futuro, devido à responsabilidade quanto à utilização do meio ambiente no
presente. Há, portanto, o respeito ao direito que cada indivíduo tem de usufruir de um
ambiente com a sadia qualidade de vida.
No art. 225 da Constituição Federal está contido o dever de sua conservação
ambiental, o mesmo estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Dessa
forma, cabe ao Poder Público e a toda a sociedade o dever de defender o meio ambiente e
preservá-lo para as gerações presentes e futuras.
Tais especificações contidas na Constituição tratam da ética intergeracional, que
reflete um objetivo comum de todos e da justiça entre todas as gerações.
5
PRINCÍPIO DO POLUIDOR–USUÁRIO–PAGADOR E DA RESPONSABILIZAÇÃO
O princípio do poluidor-usuário-pagador (Verursacherprinzip) (DERANI, 2008, p.
142), ou, apenas poluidor pagador, é um dos mais importantes e eficientes do Direito
Ambiental. Rodrigues contextualiza sua existência, explicando que “[...] é um postulado
com raízes inspiradas no direito econômico, que passou por substancial mudança quando
veio a constituir-se num dos postulados mais nobres e sérios do direito ambiental
(RODRIGUES, 2011, p. 29).
Sob a ótica econômica, o princípio do poluidor pagador é um auxiliar do instituto da
responsabilidade, vez que é multifuncional, na medida em que busca à precaução e
prevenção da degradação ambiental, ou, em último caso, como forma de redistribuir os
custos da poluição (DIAS. 1997).
De forma sintética, não se trata de uma fórmula matemática, na qual poluir=pagar,
isso seria legalizar, ou ainda, precificar a poluição. O alcance deste princípio inclui os
custos das esferas básicas do Direito Ambiental: a preventiva, a reparatória e a repressiva
(MILARÉ, 2001).
Dessa forma, ocorre a internalização dos custos relativos externos de deterioração
ambiental. Ao aplicar esse princípio o “sujeito econômico” (produtor, consumidor,
transportador) arca com os custos sociais e ambientais do dano (DERANI, 2008), logo,
quem se beneficia direta, ou indiretamente da degradação ambiental levará consigo não
apenas o bônus, mas também o ônus econômico.
Em um processo de produção regular são produzidas externalidades negativas que,
ainda que advindas da produção são recebidas pela sociedade, enquanto o lucro é
percebido pelo produtor. Pela aplicação do princípio do poluidor-pagador, busca-se inverter
essa lógica, de forma que, quem percebe o lucro recebe também as externalidades
254
negativas necessárias à mitigação, eliminação ou neutralização do dano.
Nesse sentido, a Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento adota
o referido princípio no enunciado 16:
As autoridades nacionais devem, procurar assegurar a internalização dos custos
ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando em conta o critério de que
quem contamina deve, em princípio, arcar com os custos da contaminação,
levando-se em conta o interesse público e sem distorcer o comércio e os
investimentos internacionais. 4
Os tribunais pátrios vêm aplicando tanto o princípio do poluidor pagador, quanto o
da responsabilização em casos de poluição marinha:
Ação civil pública. Baía de Paranaguá. Limpeza e recuperação. Polo passivo.
Legitimidade passiva. (...) 3. Em matéria ambiental, o principio do poluidor-pagador
assume papel fundamental no que tange a prevenção do dano ambiental e,
sucessivamente, sua reparação da forma mais integral possível. Assim sendo,
surgem como responsáveis solidários pela reparação do dano ambiental todos
aqueles que, direta ou indiretamente, se aproveitam da atividade poluidora.
Portanto, não há como afastar da cadeia causal, geradora do prejuízo ao meio
ambiente, a participação dos compradores e vendedora da mercadoria, já que a
presença da substancia tóxica no território, pressupõe o negócio jurídico firmado
entre as partes.5
Na entendimento do Superior Tribunal de Justiça, na ação de indenização por
danos materiais e morais decorrentes do acidente ambiental do rompimento do poliduto
Olapa, “[...} o dano ambiental, cujas consequências se propagam ao lesado, é, por
expressa previsão legal, de responsabilidade objetiva, impondo-se ao poluidor o dever de
indenizar”6.
Ainda, na mesma linha de raciocínio:
Na ação de indenização por danos materiais e morais a pescadores, causados por
poluição ambiental por vazamento de Nafta em Paranaguá, decidiu o tribunal julgador que:
[...] Há legitimidade da parte proprietária do navio transportador de carga perigosa,
devido a responsabilidade objetiva, princípio do poluidor-pagador. Inadmissível a
exclusão de responsabilidade por fato de terceiro. Inviabilidade de alegação de
culpa exclusiva de terceiro, ante a responsabilidade objetiva. A alegação de culpa
exclusiva de terceiro pelo acidente em causa, como excludente de
responsabilidade, deve ser afastada, ante a incidência da teoria do risco integral e
da responsabilidade objetiva ínsita ao dano ambiental (art. 225, § 3º, da CF e do
art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81), responsabilizando o degradador em decorrência
do princípio do poluidor-pagador 7.
Como bem se percebe, a jurisprudência dos pátrios tribunais já consagrou na
prática o que se denomina de princípio da reparação, ou segundo alguns doutrinadores, da
responsabilização. Como diz Rubens Morato Leite:
4
CONFERÊNCIA das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Declaração do Rio de
Janeiro sobre meio ambiente. 1992. Disponível em < http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>.
5 (TRF 4ª Região – AG 2006.04.00.003071-7 – 3ª Turma – Relª. Desª. Vânia Hack de Almeida – DOU
09.05.2007).
6 AgRg no AREsp 89444/PR.Processo número 8011/0229870-0. Min Paulo de Tarso Sanseverino (1144) – 3
Turma. Julgado dia 21/08/2012. Publicado dia 24/08/2012.)
7
REsp 1114398/PR. RECURSO ESPECIAL 2009/0067989-1. Min. Sidnei Beneti. 2 turma. 08/02/2012.
publicado em 16/02/2012.
255
O principio poluidor-pagador tem reflexos na economia ambiental, na ética
ambiental, na administração publica e no Direito Ambiental, pois tenta imputar, na
economia de mercado e no poluidor, custos ambientais, e com isso visa a combater
a crise em suas origens ou na fonte (CANOTILHO, 2012, p. 189).
Derani (2008), por sua vez, apresenta uma antítese ao princípio do poluidor
pagador e da responsabilização, que seria o princípio do ônus social (Gemeinlastprinzip),
segundo o qual as medidas de implementação da qualidade ambiental deve ser arcada
pela coletividade. No entanto, ao analisar este princípio em conjunto com o princípio da
subsidiariedade, a autora remonta a teoria descrita por Rehbinder, que acaba por fazer
total sentido na realidade nacional. Rehbinder (apud DERANI, 2008, p. 145) explica que
“uma utilização oculta do principio do ônus social resulta do fato de que o Estado
frequentemente não consegue transferir à empresa ou ao cidadão poluidor o custo total do
aparelhamento da despoluição”
Partindo desses dispositivos (poluidor-pagador e responsabilização) que se adotou
na seara na responsabilidade civil ambiental a chamada responsabilidade objetiva, na qual
o agente poluidor independentemente de culpa ou dolo deve ser responsabilizado
civilmente por danos e prejuízos causados, sendo necessário apenas comprovar o nexo
causal entre a conduta (dragar uma área por exemplo) e o fato (extermínio de espécie de
peixes). Esse raciocínio pode ser aplicado através da interpretação do art. 225, §3º 8. da
Constituição em conjunto com o art. 14, §1º. da Lei 6.938/1981 9. Sobre a questão, trata o
ilustre Rubens Morato Leite:
[...] um passo importante para direcionar a responsabilidade civil à tarefa da efetiva
responsabilização será adequá-la e adaptá-la às necessidades exigidas pela
complexidade do bem ambiental e de sua proteção. Cabe, dessa forma, fazer uma
releitura do Direito Civil e incluir no instituto da responsabilidade a proteção ao
direito ou interesse coletivo e difuso do ambiente, ecologicamente equilibrado, e a
qualidade de vida” (CANOTILHO, 2012, p. 215).
Importante frisar que apesar da vocação preventiva do sistema de responsabilidade
civil no intuito de desestimular o potencial poluidor a prática do ato, pode ser adaptado ao
dano na esfera privada. Ao se vislumbrar a possibilidade de indivíduos, assim como
entidades representativas, pleitearem a reintegração dos bens ambientais lesados, bem
como a compensação dos prejuízos experimentados, se confirma o exercício da cidadania.
Além disso, a possibilidade de postular indenizações que deverão ser submetidas ao
apreço judicial, é uma opção que deve ser a última instância, mas aquela opção dos que
não têm resultados satisfatórios com a aplicação de outras medidas no combate à
degradação.
8
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao
meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados. (BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998)
9 Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não
cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados
pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: § 1º - Sem obstar a aplicação das
penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a
indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O
Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e
criminal, por danos causados ao meio ambiente. (Brasil. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe
sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras
providências. Diário Oficial da União. 02 set 1981; Seção 1:1.)
256
De fato, o instituto da responsabilidade civil, aliado ao princípio do poluidor pagador
e da responsabilização, ainda está desenvolvendo e se adaptando a realidade local, daí a
importância da constante pesquisa para o desenvolvimento da área, que, nas palavras de
Martin:
[...] será, pois, através de um esforço conjunto de investigação e de criatividade,
profundamente inspirado nas iniciativas internacionais e nas soluções dos
diferentes direitos positivos, que poderão estabelecer-se novas normas, para evitar
que os danos causados à vida e às gerações futuras fiquem por reparar (MARTIN,
1990, p. 140).
Como já abordado anteriormente, a Constituição Federal brasileira dispõe em seu
artigo 225 o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, necessário à
sadia qualidade de vida, sendo assim a titularidade do bem “meio ambiente sadio e
equilibrado” é da coletividade, entretanto isso não afasta o direito individual de cada sujeito
integrante do meio ambiente em lato sensu10.
De acordo com a jurisprudência da Corte do Supremo Tribunal Federal:
Direito ao meio ambiente é um típico direito de terceira geração que assiste, de
modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa
que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade
- de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e das futuras
gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os
graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de
solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de
todos quantos compõem o grupo social .11
Ainda de acordo com o autor Edis Milaré:
A vítima do dano ambiental reflexo pode buscar a reparação do dano sofrido, no
âmbito de uma ação indenizatória de cunho individual, fundada nas regras gerais
que regem o direito de vizinhança. Esse ramo do Direito vem sofrendo diversas
reformulações, incorporando conceitos relativamente novos, como a função
socioambiental da propriedade, e ampliando conceitos mais antigos, como o da
vizinhança, que hoje, por exemplo, já não abrangeria apenas as áreas contíguas a
uma indústria poluidora, mas se aplicaria por igual às propriedades mais distantes e
que houvessem de alguma forma sido atingidas por emissões atmosféricas lesivas
à saúde dos moradores locai (MILARÉ, 1970, p. 178).
Destarte, eventual dano que alcance a esfera pessoal de um indivíduo de forma a
prejudicar ou alterar o seu meio ambiente, em qualquer dos sentidos tutelados pelo
sistema jurídico, pode ser considerado um dano ambiental individual homogêneo.
Por ser capaz de apresentar significativo risco ao particular e ao todo, o dano
ambiental tem sua reparação civil fundada na responsabilidade objetiva do poluidor, em
outras palavras, a responsabilização do poluidor pelo dano ambiental independe de culpa
ou dolo pois é imputado ao mesmo com base no mero risco ou fato dano, é o chamado
10
Tanto a palavra meio quanto o vocábulo ambiente passam por conotações, quer na linguagem científica quer na
vulgar. Nenhum destes termos é unívoco (detentor de um significado único), mas ambos são equívocos (mesma
palavra com significados diferentes). Meio pode significar: aritmeticamente, a metade de um inteiro; um dado
contexto físico ou social; um recurso ou insumo para se alcançar ou produzir algo. Já ambiente pode representar
um espaço geográfico ou social, físico ou psicológico, natural ou artificial. Não chega, pois, a ser redundante a
expressão meio ambiente, embora no sentido vulgar a palavra identifique o lugar, o sítio, o recinto, o espaço que
envolve os seres vivos e as coisas. De qualquer forma, trata-se de expressão consagrada na língua portuguesa,
pacificamente usada pela doutrina, lei e jurisprudência de nosso país, que, amiúde, falam em meio ambiente, em
vez de ambiente apenas. (MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 63.)
11 MS 22.164 – Rel. Min. Celso de Mello – Tribunal Pleno – j. em 30.10.1995 – DJ 17.11.1995.
257
principio da externalização do ônus social, no qual a responsabilidade é fruto do risco da
atividade potencialmente poluidora.
Sobre a questão apresenta a Lei 6.938, de 31.08.81 previsão expressa em seu art.
14, §1º:
Art. 14. (...) § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é
o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou
reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua
atividade.
É possível extrair-se do dispositivo legal acima transcrito a responsabilidade
objetiva, compreendida pela expressão “independentemente da existência de culpa”. Neste
sentido, doutrina Nelson Nery Junior (2010, p. 279), que os pressupostos da
responsabilidade civil por dano ecológico, são, apenas, o evento danoso e nexo de
causalidade, ou seja, o causador de dano ambiental, tem o dever de indenizar, mesmo não
tendo culpa no evento causado.
Não resta dúvida que a responsabilidade imputada ao poluidor, na hipótese de
danos ocasionados por poluição marinha, é objetiva. A doutrina e a jurisprudência pátria se
orientam para tanto pela teoria do risco integral, a qual determina que aquele que exerce
atividade potencialmente poluidora, da qual se possa fruir benefícios, tem que suportar os
riscos da própria atividade, ainda que tenha tomado todas as precauções para evitar o
possível dano. A teoria do risco integral não aceita excludente de responsabilidade, sendo
necessários:
[...] a ação do agente , o dano e o nexo de causalidade entre eles. O Nexo de
causalidade aqui não é encarado como liame entre o dano e a conduta individual
do responsável, mas entre dano e a atividade desenrolada por ele (conjunto de atos
e condutas potencialmente causadores de dano).
... (omissis)
Assim, não interessa que o agente tenha intenção danosa, basta a existência do
dano.
A teoria do risco tem corolários importantes: prescinde de culpa e de dolo do
responsável, é irrelevante a licitude da conduta do responsável, não há excludentes
de responsabilidade (caso fortuito, força maior, cláusula de não indenizar) (ROCHA,
2000, p. 139-140).
Logo, os pressupostos para a responsabilização por dano causado pela poluição
marinha seriam apenas: o evento danoso e o nexo de causalidade, sendo irrelevante para
a determinação da responsabilidade a atitude do causador, como bem ilustra Nelson Nery
Junior no seguinte exemplo:
Ainda que haja autorização da autoridade competente, ainda que a emissão esteja
dentro dos padrões estabelecidos pelas normas de segurança, ainda que a
indústria tenha tomado todos os cuidados para evitar o dano, se ele ocorreu em
virtude da atividade do poluidor, há o nexo de causalidade que faz nascer o dever
de indenizar (NERY JUNIOR, 2010, p. 280).
O fundamento jurídico do dever de indenizar reside no fato de que o agente poluidor
desenvolve atividade que por sua natureza lhe traz benefícios (lucros) e, ao mesmo tempo,
coloca em risco o ambiente saudável.
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O princípio da responsabilização, talvez o mais importante dos princípios de Direito
Ambiental, pode ser entendido como uma última forma de repressão ao poluidor, é um
258
princípio que se aplica em situações nas quais cabem medidas compensatórias, ou seja,
quando já houve o dano, porém também educacional, de forma que o pagamento do
poluidor pela dano possa ser tão prejudicial aos negócios a fim de evitar o dano ambiental.
Ao mesmo tempo em que a sadia qualidade de vida já está comprometida no
momento em que se aplica o referido princípio, pois houve um dano, é na aplicação
reiterado mesmo, através de uma medida sancionatória, que se busca reduzir ou eliminar
as causas da poluição.
Há situações nas quais não se pode falar em devida reparação, como são os casos
que afetaram diretamente a saúde do bioma marinho, impedindo a pesca local, porém, há
como minimizar os impactos gerados através de uma indenização pecuniária, que será
reivindicada principalmente com base no princípio da responsabilização pela afronta à
sadia qualidade de vida do pescador.
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