Paul Ricoeur e a norma moral: uma releitura dos princípios deontológicos Paulo Gilberto Gubert* Resumo: O artigo apresenta a interpretação de Ricoeur acerca da norma moral kantiana que, através do imperativo categórico, afirma a autonomia do si e o respeito à diversidade de pessoas. A aplicação da justiça fica a cargo do contrato social, estabelecido sob o véu da ignorância e determinado pelo princípio da equidade proposto por Rawls. Como pano de fundo, verifica-se a tentativa de complemento entre deontologia e teleologia. Palavras-chave: Kant. Norma moral. Imperativo categórico. Rawls. Justiça. Este artigo enfatiza o oitavo estudo do texto O si-mesmo como um outro, de Paul Ricoeur, e trata da questão da norma moral kantiana. Com relação à perspectiva ética aristotélica, a norma moral terá a função de testá-la e, respectivamente, legitimá-la, reconhecendo-a, inclusive, como * Mestrando em filosofia na UFSM. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 101 seu próprio fundamento. Ademais, o imperativo categórico, ao ser confrontado com a estima de si, demonstra semelhanças, especialmente no que diz respeito à capacidade de autodeterminação racional. Seguindo na reflexão deontológica de Ricoeur, percebe-se que, de acordo com a segunda formulação do imperativo categórico, as pessoas devem ser respeitadas como fim em si mesmas, e não como meio. Neste ponto será demonstrado que a solicitude, somada ao respeito, estabelece uma relação de complementaridade. A solicitude permite que se possa não apenas respeitar o outro no sentido de não lhe fazer mal, mas também ir ao seu encontro, perceber suas necessidades e auxiliá-lo nas dificuldades. Ao final da investigação de cunho deontológico, Ricoeur reflete acerca da justiça. Já não mais as instituições, mas um contrato social é que será o responsável pela aplicação da justiça. O contrato social, originado de uma situação hipotética, em que todas as pessoas de uma determinada sociedade estão sob o véu da ignorância, garantirá que todos optem pela equidade e não pela igualdade. A igualdade é injusta, segundo Rawls, pois é evidente que as pessoas não tem necessidades absolutamente iguais. A equidade supõe desigualdades que serão estabelecidas de acordo com as necessidades de cada um, estabelecendo vantagens e obrigações a todos os membros da sociedade. Entretanto, sendo necessário que se estabeleça o contrato numa situação hipotética, se supõe que deva haver uma pré-compreensão acerca do que é justo e injusto. Esta compreensão, segundo Ricoeur, está fundada no princípio teleológico do “querer-viver-junto”. 1. A obrigação moral e a vida boa No sétimo estudo de O si-mesmo como um outro, a perspectiva ética aristotélica assume a primazia em relação à norma moral kantiana. Para tanto, o estudo foi distribuído por Ricoeur em três momentos distintos, condensados sob a fórmula que representa a perspectiva ética: “a perspectiva da ‘vida boa’ com e para outros nas instituições justas” (RICOEUR, 1991, p. 202). A ética aristotélica é caracterizada justamente pela sua finalidade (teleologia) e o objetivo é que se possa viver bem. Neste sentido, alcançar a realização pessoal significará o coroamento e o fim último das ações. 102 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 Contudo, a partir do oitavo estudo, Ricoeur submete a ética ao crivo da norma. De acordo com ele, é necessário que se desenvolva “uma ética enriquecida pela passagem através da norma e investida no julgamento moral em situação” (RICOEUR, 1991, p. 237). Em última instância, Ricoeur pretende demonstrar que a teleologia e a deontologia não são tradições que se contradizem, mas que podem ser conciliadas, servindo perfeitamente de complemento uma à outra. Ricoeur afirma que o exame do caráter de universalidade do imperativo categórico kantiano não pode ser entendido como uma forma de solipsismo moral. Pois, é justamente este princípio que garante a possibilidade de “experimentação pela norma do desejo de viver bem” (RICOEUR, 1991, p. 238). Neste sentido, não há ruptura entre o formalismo e a tradição teleológica, visto que, existem traços que demonstram a ligação que persiste entre a norma moral e a perspectiva ética. Portanto, não só a ética, mas também a obrigação moral possui um vínculo com a vida boa. 1 Nesse sentido, Ricoeur retoma o conceito kantiano de boa-vontade da Fundamentação da metafísica dos costumes: “neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 2007, p. 21). Assim, o bom sem restrição de Kant é compreendido como moralmente bom, conservando a impressão teleológica.2 Contudo, de acordo com Ricoeur, o conceito de bom, para Kant, depende da vontade. E vontade é entendida como poder de, por si, iniciar novos eventos (autodeterminação racional). A vontade na moral kantiana está vinculada com a lei, sendo o querer, portanto, fruto de um imperativo. 1 S egundo Ricoeur, Aristóteles ancorou e constituiu a práxis como princípio estruturante de sua perspectiva de vida boa; a práxis, enquanto ciência prática, “é uma atividade que não produz nenhuma obra distinta do agente e que não tem fim diferente da própria ação, a ‘euprática’, a boa prática sendo seu próprio fim” (RICOUER, 1991, p. 203). 2 “Desejaremos realmente notar as múltiplas ocorrências dos termos ‘estima’, ‘estimar’, ‘estimável’ na primeira seção dos Fondements, sempre em relação com a boa-vontade. É não somente a ancoragem na tradição teleológica que esses termos exprimem mas a ancoragem na experiência moral comum; como em Aristóteles, a filosofia moral em Kant não parte do nada; sua tarefa não é inventar a moral mas extrair o sentido do fato da moralidade” (RICOEUR, 1991, p. 240, grifo nosso). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 103 A ideia de universalidade kantiana se caracteriza por uma moral da obrigação e está vinculada à noção de constrangimento, que, por sua vez, é comum à noção de dever. É necessário que o dever constranja a vontade, visto que ela é comum a todos os indivíduos que agem pela razão. Dessa forma, para que esteja livre de limitações, a vontade deve ser restringida pelo dever, pela norma, pelo imperativo. Ricoeur conclui que, para Kant, falar em boa vontade e em ação feita por dever significa dizer a mesma coisa. Portanto, é necessário “levar esta condição finita da vontade à razão prática concebida como autolegislação, como autonomia. Somente neste estádio o si terá encontrado a primeira base de seu estatuto moral” (RICOEUR, 1991, p. 241). É por meio do imperativo categórico: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2007, p. 59), que o si encontra um princípio de universalização que é gerado em si mesmo. Depois deste primeiro momento de análise, Ricoeur parte para a questão do aspecto constrangedor, que determina a forma do imperativo kantiano, responsável pela regra de universalização. O aspecto constrangedor não trata de uma relação de comando e de obediência operada entre duas pessoas, mas une as duas funções em uma só pessoa, podendo esta comandar e obedecer ou desobedecer a si mesma. O terceiro momento de análise ricoeuriana diz respeito à noção de autonomia, enquanto fruto da liberdade. A liberdade é que designa a vontade, tornando a autonomia o equivalente à obediência de si-mesmo. “Quando a autonomia substitui a obediência a outro pela obediência a si-mesmo, a obediência perdeu todo o caráter de dependência e de submissão. A verdadeira obediência, poderíamos dizer, é a autonomia” (RICOEUR, 1991, p. 246). Assim, a filosofia moral kantiana parece conduzir a uma tese egológica, já que, a princípio, o sujeito parece não depender em nenhum momento de um outro. Tudo parece se resolver em si mesmo, no si autolegislador. Contudo, Ricoeur alerta que não se trata de uma teoria baseada apenas no eu, mas de uma busca pela “universalidade de querer, apanhada nesse momento abstrato onde ela não é ainda distribuída entre a pluralidade das pessoas” (RICOEUR, 1991, p. 247). Aqui se introduz a noção de respeito à lei moral, que tem como característica principal fazer uma máxima da própria lei (KANT, 2007, p. 32). Segundo Ricoeur, o respeito é o correspondente deontológico da 104 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 estima de si3 (teleológica), dado que ambos se caracterizam pela capacidade de autodeterminação racional. Desse modo, não se verifica um rompimento da ligação entre norma moral e perspectiva ética,4 mas aparece a “marca da razão no sentimento, a saber, sobre o modo negativo, a humilhação do amor-próprio e, sobre o modo positivo, a veneração pelo poder da razão em nós” (RICOEUR, 1991, p. 250). Segundo Ricoeur, esta passagem da estima de si pelo crivo da norma é necessária devido ao problema do mal. Nesse sentido, o amor-próprio,5 somado ao mau uso do livre arbítrio, é o responsável pela gênese do mal. “O mal é revelador da natureza última do (livre) arbítrio. O (livre) arbítrio humano aparece como portador de um golpe originário que atinge sua capacidade para determinar-se pró ou contra a lei” (RICOEUR, 1991, p. 255). Portanto, o mal é oriundo das escolhas (máximas) da ação, que se originam do livre arbítrio. “A propensão ao mal afeta o uso da liberdade, a capacidade de agir por dever, em suma, a capacidade para ser efetivamente autônoma [...]. Em outras palavras, a questão do bem e do mal volta com a questão do ‘fundamento subjetivo do uso da liberdade’” (RICOEUR, 1991, p. 253, grifo nosso). 3 N o sétimo estudo de O si-mesmo como um outro, Ricoeur – desde uma perspectiva teleológica – afirma que cada pessoa tem a possibilidade de ser tanto autora, quanto capaz de julgar seus próprios atos racionalmente, ou seja, é capaz de estimar a si mesma. Neste sentido, o si é digno de estima devido às suas próprias capacidades, ou seja, o si pode, tem condições de avaliar suas próprias ações e perceber como bons seus fins. Ao fazer isso o si tem condições de avaliar e de estimar a si mesmo como bom. Ademais, em seu texto O Justo 2, Ricoeur salienta que a estima de si (ou autoestima) não pode ser interpretada como uma relação de si para si-mesmo. “Esse sentimento inclui também um pedido dirigido aos outros. Inclui a expectativa da aprovação vinda desses outros. Nesse sentido, a autoestima é ao mesmo tempo um fenômeno reflexivo e um fenômeno relacional, e a noção de dignidade reúne as duas faces desse reconhecimento” (2008, p. 219). 4 Assim constitui-se “o vínculo – jamais rompido segundo nós – entre norma moral e perspectiva ética [...]. É perfeitamente legítimo ver no respeito kantiano a variante da estima de si que passou com sucesso a prova do critério de universalização [...]. O amor de si, arriscar-me-ia dizer, é a estima de si pervertida por isso que chamaremos, num momento, a inclinação para o mal. E o respeito, é a estima de si passada pelo crivo da norma universal e constrangedora, em suma, a estima de si sob o regime da lei" (RICOEUR, 1991, p. 251). 5 O amor-próprio é a causa do mal, ou seja, é uma perversão da estima de si, que se caracteriza pela tendência de querer “fazer das inclinações a condição prática suprema” (RICOEUR, 1991, p. 252). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 105 É devido ao problema do mal, que Ricoeur considera necessário que a ética se deixe validar pela moral. Depois desta provação da perspectiva pela norma, se deveria poder reescrever o imperativo categórico da seguinte forma, afirma o autor: “Age unicamente segundo a máxima que faz com que tu possas querer ao mesmo tempo que não seja o que não deveria ser, a saber, o mal” (RICOEUR, 1991, p. 255). 2. A norma moral e a solicitude Inicialmente Ricoeur afirma a possibilidade de, a partir da Regra de Ouro – ou regra da reciprocidade –, estabelecer a articulação entre a solicitude6 (teleológica) e a segunda formulação do imperativo categórico:7 “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2007, p. 69). 6 O conceito de solicitude indica uma relação de reciprocidade, pois se fundamenta “na troca entre dar e receber” (RICOEUR, 1991, p. 221). Segundo Rossatto, a solicitude “introduz um novo tipo de relação que torna possível restituir o equilíbrio entre partes inicialmente desiguais [...]. Com a solicitude, o dar terá de perder a força centrada na expectativa de receber, e o receber não poderá mais carregar a obrigatoriedade e o peso de ter de restituir algo [...]. É aí que se revela todo o potencial contido na solicitude: ela possibilita estimar o si-mesmo como um outro e o outro como a si-mesmo” (ROSSATTO, 2008, p. 30). A respeito da relação entre solicitude e estima de si, Garrido assinala que ambas são inseparáveis, ou seja, uma não pode ser pensada sem a outra. “A estima se apresenta na forma dialogal; dizer ‘si’ não é dizer eu; este ‘si’ leva à alteridade, significa que o outro está presente. A solicitude é o desdobramento da autoestima na sua forma dialogal, porque não é algo externo ou agregado à própria estima. Temos necessidade do outro e de sua mediação [...]. A solicitude para e com os outros é a continuidade da própria estima de si em outro grau, na qual se manifestam, de forma clara, os sentimentos que são dirigidos aos outros” (BÍBLIA, 2002, p. 132). 7 Segundo Ricoeur, Kant quase não cita a Regra de Ouro, justamente por considerá-la imperfeitamente formal. Primeiro, ela é parcialmente formal porque não diz sobre o que o outro gostaria ou não que lhe fosse feito. Em segundo lugar, é imperfeitamente formal, porque se refere a amar e detestar, entrando, portanto, no campo das inclinações. É pela prova de universalização da segunda formulação do imperativo que se poderá purificar as máximas do amor e do ódio em favor do princípio de autonomia. “Amor e ódio são os princípios subjetivos de máximas que, como empíricas, são inadequadas à exigência de universalidade” (RICOEUR, 1991, p. 261). 106 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 A Regra de Ouro pode ser compreendida sob dois enfoques. O primeiro, de Hillel, o mestre judeu de São Paulo, que diz: “não fazes a teu próximo o que tu detestarias que te fosse feito. Está aí a lei completa; o resto é comentário” (Talmud apud RICOEUR, 1991, p. 256). O segundo enfoque, de fórmula positiva, encontra-se em Mt 22, 39: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A fórmula de Hillel é responsável por garantir uma norma de reciprocidade, que funciona como uma forma de dizer não ao mal. A forma de comando que ela reveste, é justamente para caracterizar a interdição necessária. Nesse sentido, os imperativos – tu não matarás, tu não mentirás, tu não torturarás – são nada mais do que regras que existem para coibir e evitar o mal. Segundo Ricoeur, “a todas as figuras do mal responde o não da moral” (RICOEUR, 1991, p. 259). Até aqui, a forma negativa da moral se justifica. Contudo, a segunda formulação da Regra de Ouro não é constituída por uma negação de possíveis ações más, mas admite que se faça algo em prol do outro.8 Portanto, marca sobremaneira a articulação entre a solicitude e a norma.9 De acordo com Ricoeur, a solicitude é o fundamento da moral, visto que, na estima de si, as trocas mútuas entre as partes são ambas afirmativas, o que representa, na verdade, “a alma oculta da interdição. É ela que, em último caso, arma nossa indignação, isto é, nossa recusa da indignidade infligida a outros” (RICOEUR, 1991, p. 259). Convém investigar, neste ponto, a importância da segunda formulação do imperativo categórico, em que dois conceitos se tornam complementares: o conceito de humanidade e o conceito de pessoa como fim em si. Como avalia Ricoeur, “a ideia de humanidade, como termo singular, é introduzida no prolongamento da universalidade abstrata que rege o princípio da autonomia, sem acepção de pessoas; em compensação, a ideia das pessoas como fins nelas próprias pede que seja levada 8 D e acordo com Abel, “a vantagem das fórmulas positivas da reciprocidade é que estas orientam a moral para o respeito benevolente pelas pessoas e não para o respeito abstracto pela lei” (ABEL, 1996, p. 74). 9 Segundo Ricoeur, o respeito não pode ser algo que se refere somente a uma lei moral autônoma. O outro, “como pessoa agredida e sofrida é bem mais que a lei violada. Aqui se mostra, sobretudo, que a vida ética tem de ultrapassar o plano moral e jurídico: só assim o respeito mútuo poderá albergar a alteridade num mesmo círculo ético que resguarda a um só tempo o si-mesmo como um outro e o outro como um si-mesmo” (ROSSATTO, 2008, p. 33). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 107 em conta a pluralidade das pessoas” (RICOEUR, 1991, p. 260). A ideia de pluralidade não considera a humanidade enquanto soma matemática de indivíduos, mas a partir do ponto de vista do respeito10 que se deve a cada pessoa em particular. Não é possível estabelecer vínculos entre o si e o outro, se não for “determinado o que, na minha pessoa e naquela do outro, é digno de respeito” (RICOEUR, 1991, p. 261). Dessa forma, a ideia de humanidade elimina todo o princípio de alteridade radical que a solicitude contém. A noção de humanidade, somada ao princípio de autonomia e de respeito, conduz ao princípio de pluralidade. Portanto, segundo Ricoeur, “o si implicado reflexivamente pelo imperativo formal não era de natureza monológica, mas simplesmente indiferente à distinção das pessoas e, nesse sentido, capaz de uma inscrição no campo da pluralidade das pessoas” (RICOEUR, 1991, p. 262). Ademais, a noção de pessoa como fim em si mesma contribui para o equilíbrio da ideia de humanidade. Este equilíbrio se deve ao fato de que a segunda formulação do imperativo introduz uma distinção fundamental. Ele não trata apenas do si ou apenas do outro, mas distingue entre a tua pessoa e a pessoa de qualquer outro. Ora, se a primeira formulação do imperativo categórico dá uma acentuada ênfase ao si, o que conduziria necessariamente a uma egologia, a segunda formulação do imperativo, além de tratar da pessoa do outro, ainda recebe um reforço: o de que se deve tratar a humanidade como um fim e nunca como um meio. Segundo Ricoeur, Kant passou pelo crivo da crítica de forma a purificar e a clarificar aquilo tudo que a sabedoria popular já intuía a respeito da Regra de Ouro; pois, “o que é, com efeito, tratar a humanidade na minha pessoa e naquela de outrem como um meio, senão exercer sobre a vontade de outrem esse poder que, cheio de moderação na influência, desencadeia-se em todas as formas de violência e culmina na tortura?” (RICOEUR, 1991, p. 263). Por conseguinte, tanto a Regra de Ouro, quanto o imperativo categórico, possuem a mesma perspectiva, que é fazer com que se estabeleça a reciprocidade onde não há reciprocidade. 10 P ara Rossatto, “a introdução da noção de respeito traz consigo a distinção kantiana entre pessoa e coisa, assinalada na segunda formulação do imperativo categórico. Passa-se, então, a entender que o reconhecimento do outro não se deve dar com base nos moldes da relação pessoa-coisa, mas segundo a relação entre pessoas. Em conseqüência disso, o outro terá de ser tomado como fim em si mesmo, e nunca como meio utilizado em próprio benefício para atingir um fim” (ROSSATTO, 2008, p. 32). 108 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 De acordo com Ricoeur, a ideia de humanidade encontra na pluralidade da segunda formulação do imperativo categórico o pleno sentido de sua originalidade (RICOEUR, 1991, p. 265). Dessa forma, se torna legítimo ver no imperativo a formalização da Regra de Ouro, já que esta possui em si um princípio universal, que foi complementado pelo fundamento da reciprocidade, dado pelo imperativo. 3. Os princípios de justiça e o senso de justiça Para Ricoeur, as instituições, enquanto “estruturas variadas do querer viver junto” (RICOEUR, 1991, p. 265), têm a atribuição de garantir a virtude da justiça que, na perspectiva ética aristotélica, assume o significado de justiça distributiva.11 É por meio da justiça distributiva que se tornará possível estabelecer a confluência entre teleologia e deontologia. Nesse sentido, o autor esclarece que “o legado principal da ética à moral é a própria ideia do justo, a qual daqui em diante diz respeito aos dois lados: ao lado do ‘bom’ como extensão da solicitude ao ‘cada um’ dos sem-rosto da sociedade; do lado do ‘legal’, tanto o prestígio da justiça parece dissolver-se naquele da lei positiva” (RICOEUR, 1991, p. 266). Além disso, o autor assinala que a deontologia somente conseguirá atingir o ápice de sua formalização a respeito da justiça, através de uma teoria puramente processual da justiça. Ora, uma teoria processual depende de uma tradição contratualista. Tal tradição supõe “a ficção de um contrato social graças ao qual uma certa coleção de indivíduos consegue superar um estado suposto primitivo de natureza, para aceder ao estado de direito” (RICOEUR, 1991, p. 267). Contudo, enquanto que a autonomia pode ser considerada um fato de razão, que prova a existência da moralidade, o contrato é apenas uma 11 D e acordo com esta perspectiva, a distribuição encontra-se fundamentalmente vinculada à justiça. Segundo Ricoeur, “uma instituição considerada regra de distribuição só existe porque os indivíduos aí tomam parte” (RICOEUR, 1991, p. 234). Portanto, “uma das características fundamentais de toda instituição é regular a repartição. A distribuição não só se dá no plano econômico, mas também no referente a papéis, tarefas, vantagens e desvantagens. As instituições asseguram o trânsito dos aspectos e relações interpessoais numa sociedade; são responsáveis pela aplicação, tanto da justiça distributiva como da justiça reparadora” (GARRIDO, 2002, p. 133). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 109 ficção,12 ainda que seja uma ficção fundadora de uma república. Nesse sentido, Ricoeur indaga se de fato “os povos escravizados durante milênios sabem [...] que são soberanos? Ou realmente o fato é que a república não está ainda fundada, que ela está ainda por fundar-se e que ela não o será nunca efetivamente?” (RICOEUR, 1991, p. 268). Neste contexto, surge o contrato que servirá para estabelecer a igualdade entre justiça deontológica, autonomia e pessoa como fim em si. Kant não conseguiu superar o enigma da fundação da república, afirma Ricoeur. O que ele fez foi pressupor, sem justificar, um vínculo entre autonomia e contrato social “pelo qual cada membro de uma multidão abandona sua liberdade selvagem em vista de recobri-la sob a forma de liberdade civil como membro de uma república” (RICOEUR, 1991, p. 268). É justamente para este mesmo problema, especialmente no texto Uma teoria da justiça, que Rawls se volta na contemporaneidade.13 Segundo Ricoeur, é por meio do conceito de justiça como equidade que Rawls propõe “a ideia de um contrato original entre pessoas livres e racionais preocupadas em promover seus interesses individuais. Contratualismo e individualismo avançam assim de mãos dadas” (RICOEUR, 1991, p. 268). Desse modo, Rawls assume uma posição frontalmente antiteleológica. Contudo, o embate de Rawls é com relação a uma versão específica de teleologia. Trata-se do utilitarismo, que se expressa com muita força em John Stuart Mill. Ora, o utilitarismo é teleológico porque “define a justiça pela maximização do bem para o maior número” (RICOEUR, 1991, p. 269). Nesse sentido, o bem, quando se aplica às instituições, torna-se equivalente ao sacrifício dos prazeres individuais e imediatos em benefício do todo social, que concederá prazeres muito maiores que os imediatos e individuais. 12 A principal função da ficção é separar o justo do bom, segundo Ricoeur (1991, p. 267). Nesta perspectiva, a responsabilidade pelos princípios de justiça já não cabe às instituições que visam o bem comum, mas ao contrato social. 13 “Quero sublinhar que, pelo menos em seus estágios iniciais, uma teoria da justiça é precisamente isso, uma teoria. É uma teoria dos sentimentos morais (para evocar uma denominação do século XVIII) que estabelece os princípios que controlam as nossas forças morais, ou, mais especificamente, o nosso senso de justiça” (RAWLS, 2000, p. 54). 110 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 Entretanto, pelo utilitarismo a noção de sacrifício assume um aspecto temível. Segundo Ricoeur, “já não é um prazer privado que é sacrificado mas toda uma camada social; o utilitarismo [...] implica tacitamente um princípio sacrifical que equivale a legitimar a estratégia do bode expiatório” (RICOEUR, 1991, p. 269). Por conseguinte, a resposta de Rawls ao utilitarismo é, indubitavelmente, de ordem deontológica.14 Nesse sentido, é do contrato social que derivam os princípios da justiça equitativa. A equidade, por sua vez, garante que as instituições sejam organizadas de maneira justa. Este primeiro estágio da análise, segundo Ricoeur, faz com que desponte o seguinte problema: “que é que asseguraria a equidade da situação de deliberação da qual poderia resultar um acordo concernente a um arranjo justo entre as instituições?” (RICOEUR, 1991, p. 270). Este problema está diretamente vinculado à questão da posição original,15 marcada pelo véu da ignorância.16 Trata-se de uma proposição hipotética necessária para garantir as condições de equidade em todos os aspectos da vida social. 14 D e acordo com Rawls, “cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda de liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros [...]. Portanto, numa sociedade justa, as liberdades da cidadania igual são invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais” (RAWLS, 2000, p. 4). 15 Segundo Rawls, “na justiça como equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção da justiça” (RAWLS, 2000, p. 13) Disso resulta que, “a posição original é, poderíamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcançados são equitativos” (RAWLS, 2000, p. 19). Ricoeur esclarece que, na tradição deontológica, a posição original substitui o estado de natureza, visto que é uma posição de igualdade. “Lembramos que em Hobbes o estado de natureza era caracterizado pela guerra de todos contra todos [...]. O que está, portanto, em jogo, em Hobbes, não é a justiça mas a segurança. Rousseau e Kant [...] descrevem o estado de natureza como sem lei, isto é, sem nenhum poder de arbitragem entre reivindicações opostas. Em compensação, os princípios de justiça podem tornar-se o propósito de uma escolha comum se e somente se a posição original é equitativa, isto é, igual. Ora, ela só pode ser equitativa numa situação hipotética” (RICOEUR, 1991, p. 270). 16 A respeito do véu da ignorância, Rawls assinala que “de algum modo, devemos anular os efeitos das contingências específicas que colocam os homens em posição de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício” (RAWLS, 2000, p. 147). Sendo assim, verifica-se que a principal característica do véu da ignorância é que, na posição original, ninguém sabe qual será seu status na sociedade. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 111 A partir desta situação hipotética, Rawls demonstra que os parceiros17 devem estar cientes de que deverão escolher devidamente a distribuição das vantagens e desvantagens que cabem a cada um, em uma sociedade real, que supõe, além de direitos e deveres, também muitos interesses. Cada parceiro que vai assumir o contrato, necessariamente deverá saber que este possuirá um aspecto constrangedor na vida real. Neste contexto, os parceiros são iguais em informação apenas num primeiro momento. Contudo, quando se tratam de reivindicações, interesses e necessidades, os parceiros tenderão a entrar em conflito. Nisto consiste o contexto de aplicação da justiça (RAWLS, 2000, p. 22). A aplicação da justiça de modo equitativo, que supõe serem todos os princípios do acordo essencialmente justos, é um problema de difícil resolução. Para solucioná-lo, é necessário que se anulem os efeitos de contingência, que se devem à natureza e às circunstâncias sociais. Dessa forma, para Rawls, uma vez que os parceiros ignoram o que os diferencia e que eles são todos igualmente racionais e colocados na mesma situação, todos entrarão em consenso, convencidos pelo mesmo argumento, a saber: pela concepção de justiça que julgarem mais adequada (RAWLS, 2000, p. 13). Conforme mencionado acima, os princípios justos devem ser escolhidos sob o véu da ignorância. Estes são os princípios de distribuição, que indicam as vantagens e as obrigações que devem ser repartidas entre todos. Por conseguinte, tratam-se dos direitos e dos deveres, que distribuem benefícios e atribuem encargos. Para tanto, o objetivo do formalismo do contrato rawlsiano conduz a uma neutralidade destas vantagens e obrigações, de modo que se possa estabelecer uma regra de repartição, definindo o que é justo para cada parceiro. Entretanto, em um sistema social de distribuição, sempre poderá haver conflitos, pois existem muitas maneiras de repartição de vantagens e desvantagens que podem ser consideradas plausíveis. Por isso Rawls sustenta que o sistema seja, respectivamente, equitativo e estável (RAWLS, 2000, p. 15). 17 Parceiros são todas as pessoas que aderirem, de comum acordo, ao mesmo contrato. 112 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 De acordo com Ricoeur, tanto Aristóteles, quanto Rawls se deparam com o problema da justiça em relação à igualdade.18 O problema é justamente encontrar uma definição tal de igualdade, que reduza ao máximo possível as desigualdades. Para tanto, Rawls propõe a equidade, que supõe algumas desigualdades consentidas entre os parceiros do contrato, na situação inicial do véu da ignorância, como necessária para que se estabeleça a justiça (RAWLS, 2000, p. 16). Num primeiro momento, parece contraditório conceber a justiça através de desigualdades consentidas, visto que, estas desigualdades seriam responsáveis por perpetuar o caráter injusto e desigual entre os parceiros que compõem a sociedade. Contudo, a ideia rawlsiana de justiça possui dois momentos distintos, que justificam a tese das desigualdades consentidas. O primeiro é que estabelece o que de fato deve ser igual para todos. Trata-se do exercício da cidadania enquanto liberdade de expressão, de voto e de elegibilidade para os encargos públicos. Em segundo lugar, aparece o princípio da diferença. Este princípio está mais vinculado à divisão das riquezas e a repartição das funções de autoridade e de responsabilidade. A repartição das riquezas não precisa ser igual para todos, mas deve ser de acordo com as necessidades de cada um19 (RAWLS, 2000, p. 16). Segundo Ricoeur, os princípios rawlsianos de justiça significam um ataque frontal ao marxismo e ao utilitarismo, uma vez que as liberdades de base iguais para cada um são protegidas pelo primeiro princípio e não podem ser violadas através da concessão de benefícios sociais e econômicos. Além disso, aqueles que foram mais desfavorecidos na divisão das riquezas, devem ter prioridade sobre os mais favorecidos. Ou seja, trata-se de um princípio antissacrifical. Por conseguinte, “o que poderia ser a vítima não deveria ser sacrificado, mesmo em benefício do bem comum” (RICOEUR, 1991, p. 275). 18 “ É extraordinário, a esse respeito, que, em Rawls como em Aristóteles e provavelmente todos os moralistas, é o escândalo da desigualdade que movimenta o pensamento” (RICOEUR, 1991, p. 273). 19 De acordo com Rawls, as “desigualdades econômicas e sociais, por exemplo desigualdades de riqueza e autoridade, são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade” (RAWLS, 2000, p. 16). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 113 Nesse sentido, verifica-se que na posição original entre os parceiros prevalece a incerteza, pois ninguém sabe que lugar ocupará na sociedade real. Neste contexto, Ricoeur, na trilha de Rawls, afirma que todos optarão pelo maximin, termo equivalente a dizer que “os parceiros são levados a escolher o arranjo que maximiza a parte mínima” (RICOEUR, 1991, p. 276). Diante disso, a questão fundamental para Ricoeur – em Uma teoria da justiça – é identificar se um pacto não histórico pode garantir o funcionamento de uma sociedade real (histórica)20 (RICOEUR, 1991, p. 276). Neste ponto, Ricoeur assinala que Rawls recorre a um sentido ético de justiça, que de certa forma estaria pressuposto na teoria deontológica. Este sentido ético se verifica pelo fato de que Rawls considera a necessidade de uma pré-compreensão acerca do significado de justo e de injusto.21 Assim, tornar-se-ia possível aos parceiros compreenderem, identificarem-se e, por fim, aderirem aos princípios de justiça, na situação original do véu da ignorância (RICOEUR, 1991, p. 277). Por conseguinte, Ricoeur afirma que a deontologia tem por pretensão desvincular-se da teleologia. Nesse sentido, foi Kant que, por meio do imperativo categórico, estabeleceu um critério de moralidade que se define pela exigência de universalidade. E este critério não diz respeito apenas “à constituição de uma vontade pessoal racional nem mesmo à posição da pessoa como fim em si, mas à regra de justiça” (RICOEUR, 1991, p. 278). 20 R awls afirma que “certos princípios de justiça se justificam porque foram aceitos consensualmente numa situação inicial de igualdade. Tenho enfatizado que essa posição original é puramente hipotética. Se esse consenso jamais acontece de fato, é natural perguntar por que deveríamos nos interessar por esses princípios, morais ou de outra natureza. A resposta é que as premissas incorporadas na descrição da posição original são premissas que de fato aceitamos. Ou, se não as aceitamos, talvez possamos convencer-nos a fazê-lo mediante o raciocínio filosófico” (RAWLS, 2000, p. 24). 21 Segundo Rawls, “o que é justo e o que é injusto está geralmente sob disputa. Os homens discordam sobre quais princípios deveriam definir os termos básicos de sua associação. Todavia ainda podemos dizer, apesar dessa discordância, que cada um deles tem sua concepção da justiça. Isto é, eles entendem que necessitam, e estão dispostos a defender, a necessidade de um conjunto de princípios para atribuir direitos e deveres básicos e para determinar o que eles consideram como a distribuição adequada dos benefícios e encargos da cooperação social” (RAWLS, 2000, p. 5). 114 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 Portanto, o ponto de vista deontológico constitui-se três vezes num princípio que se vale de si próprio. Em primeiro lugar a autonomia, depois, a pessoa como fim em si e, por último, o contrato social. Contudo, “é preciso afirmar energicamente que a autonomia rege as três esferas, a ideia de pessoa como fim em si é tida como a expressão dialogal dela, e o contrato é o seu equivalente no plano das instituições” (RICOEUR, 1991, p. 279). O problema desta tentativa de desvinculação da deontologia com relação à teleologia está justamente na autofundação, que é justamente o que supõe esta desvinculação. Segundo Ricoeur, é preciso retornar ao princípio, ou ao ponto de partida da autonomia. Conforme mencionado acima, este ponto de partida encontra-se no conceito kantiano de boa vontade expresso na Fundamentação da metafísica dos costumes. Para o filósofo francês, a formulação deste conceito restabelece o vínculo primordial da deontologia com a teleologia. Sendo assim, ao afirmar que a pessoa existe como fim em si, pertencente a uma natureza diferenciada (a natureza dos seres racionais), Kant também não se desvincula completamente da teleologia. O vínculo permanece exatamente pelo fato de que se sabe desde sempre, pela sabedoria do senso comum, que pessoas não são coisas (as pessoas possuem valor e as coisas preço). Passando para o plano das instituições, Ricoeur afirma que, em Rawls, o contrato firmado sob o véu da ignorância ocupa o mesmo posto reivindicado pela autonomia com relação à moralidade. Porém, “enquanto a autonomia pode ser dita um ‘fato da razão’, o contrato social parece só poder valer-se de uma ficção, uma ficção fundadora certamente, mas, contudo, uma ficção” (RICOEUR, 1991, p. 280). Por conseguinte, se o contrato social de Rawls somente pode ser firmado através de uma ficção, não deve ser apenas porque o contrato não pode gozar de um fato da razão que ateste uma autofundação do corpo político. Segundo Ricoeur, existe um fundamento teleológico que é anterior ao contrato.22 “É porque os povos, escravizados durante milênios a 22 O fundamento de origem de uma sociedade encontra-se num querer coletivo e não no contrato. Segundo Abel, contrato é “o acto pelo qual um querer comum se institui. [...] o verdadeiro contrato tem que ser constantemente redescoberto em conjunto como um projecto esquecido, anterior a todas as nossas regras” (ABEL, 1996, p. 56). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 115 um princípio de dominação que transcende seu querer-viver-junto, não sabem que eles são soberanos de outro modo que não em virtude de um contrato imaginário, mas em virtude do querer-viver-junto, que eles esqueceram?” (RICOEUR, 1991, p. 280). Então, se realmente houver um esquecimento acerca do princípio teleológico de querer-viver-junto, somente por uma ficção se poderão criar as condições ideais para “igualar o contrato e o princípio de autonomia e a este da pessoa fim em si” (RICOEUR, 1991, p. 280). Neste ponto, Ricoeur vai ainda mais além, propondo que se faça um exercício de movimento ao contrário com relação à dúvida acerca do esquecimento, que afetou a ficção do contrato, de forma a aplicá-la também ao princípio da autonomia. Este princípio “não arriscaria também descobrir-se como uma ficção destinada a suprir o esquecimento da fundação da deontologia no desejo de viver bem com e para os outros nas instituições justas?” (RICOEUR, 1991, p. 280, grifo nosso). Sendo assim, fica clara a intenção ricoeuriana de demonstrar que as tradições kantiana e aristotélica, além de respeitáveis, não são adversas, mas complementares. Considerações finais O percurso estabelecido através do oitavo estudo de O si-mesmo como um outro teve a reflexão norteada pela norma moral kantiana. Ricoeur busca no imperativo categórico kantiano uma norma universal, que sirva como critério para que as pessoas respeitem a si mesmas e, pelo princípio de pluralidade, respeitem aos outros. Este é um dos pontos-chave da complementaridade que Ricoeur estabelece entre a norma moral e a perspectiva ética. Por conseguinte, tanto o imperativo categórico, quanto a estima de si se assemelham, no que diz respeito à capacidade de se autodeterminar pela razão. Para Kant, a vontade deve ser autônoma para ser livre, ou seja, deve obedecer a si mesma, ao imperativo que lhe indica a máxima da universalidade. Com relação à noção de respeito kantiana, baseada na segunda formulação do imperativo categórico, Ricoeur demonstra que é possível vinculá-la à noção de solicitude, através da segunda formulação da Regra de Ouro, que não apenas interdita – como na primeira formulação 116 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 –, mas permite que se faça algo em favor do outro. A regra de universalidade do imperativo permite pensar uma noção de humanidade, enquanto campo de aplicação da norma. A noção de humanidade, somada aos princípios da autonomia e da reciprocidade, conduz à noção de pluralidade expressa na segunda formulação do imperativo, indicando o respeito que se deve às pessoas em sua diversidade. O último momento da reflexão diz respeito à aplicação da justiça. Na tradição deontológica, não mais as instituições, mas o contrato social é o responsável por estabelecer os princípios de justiça. O contrato social tem origem em uma ficção, em que todas as pessoas de uma determinada sociedade, sob a posição original do véu da ignorância, acordam para a equidade e não para a igualdade que legitima o utilitarismo renegado por Rawls. O princípio da equidade supõe desigualdades consentidas entre os parceiros do contrato, de acordo com as necessidades de cada um. Destarte, os princípios justos são os princípios de distribuição, que garantem vantagens e obrigações a todos. Contudo, de acordo com Ricoeur, se o contrato só pode ser estabelecido a partir de uma ficção, é exatamente devido ao “com e para os outros”, princípio teleológico que foi esquecido. Sendo assim, evidencia-se que a ética se enriquece, ao ser confrontada com a norma. Em contrapartida, a norma moral carece da noção de perspectiva ética, enquanto fundamento do “querer-viver-junto”. Nesse contexto, a sabedoria prática significará uma tentativa de equilíbrio que busca salvaguardar ambas as propostas – a teleológica e a deontológica. O nono estudo de O si-mesmo como um outro, intitulado O si e a sabedoria prática: a convicção, irá demonstrar que a sabedoria prática não representa uma terceira instância, para além da perspectiva ética e do momento do dever. Nesse sentido, Ricoeur assinala que os conflitos do cotidiano nem sempre podem ser solucionados por meio das máximas universais de uma moral da obrigação. À sabedoria prática caberá o papel de analisar os conflitos a partir da singularidade de cada caso e de cada sujeito envolvido, recorrendo, quando necessário, à intuição primeira da perspectiva ética: a vida boa com e para os outros nas instituições justas. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012 117 Referências bibliográficas ABEL, O. Paul Ricoeur: a Promessa e a Regra. Trad. Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991. ______. O justo 2: justiça e verdade e outros estudos. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ROSSATTO, N. D. Viver bem: A “pequena ética” de Paul Ricoeur. In: Mente, Cérebro e Filosofia. v. 11, p. 26-33, 2008. 118 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 40, jan./jun. 2012