aproximações entre natureza, ciência e arte em friedrich wilhelm

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APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH VON SCHELLING
APPROACHES BETWEEN NATURE, SCIENCE AND ART IN
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH VON SCHELLING
Thiago Macedo Alves de Brito*
Recebido: 06/2016
Aprovado: 10/2016
Resumo: Este texto propõe expor alguns momentos do pensamento de Schelling, em
especial sua filosofia da natureza, demonstrando a importância do conceito de organismo
em seus argumentos. Desejou-se, também, mostrar sua maneira de apreender o absoluto
por meio da intuição intelectual, como princípio e método de sua ciência especulativa. Por
fim, apresenta-se como em Schelling a natureza e as artes são passíveis de analogia. É
pela arte que se torna possível o acesso aos “segredos da natureza”. No entanto, mesmo
com seus esforços para compreensão de uma natureza auto-producente, o filósofo recai
numa concepção idealista da mesma.
Palavras-chave: Schelling, Natureza, Organismo, Arte, Ciência.
Abstract: This text proposes to expose a few moments of Schelling’s thought, especially his
philosophy of nature, demonstrating the importance of the concept of organism in his
arguments. It also intends to show his understanding of the absolute through intellectual
intuition, the principle and method of his speculative science. Finally, it presents how, in
Schelling, nature and the arts are likely to analogy. It is art that makes it possible to access
the "secrets of nature." However, despite his efforts to understanding a self-productive
nature, the philosopher retrocedes to an idealistic conception of it.
Keywords: Schelling, Nature, Organism, Art, Science.
Introdução
Com apenas vinte anos Schelling começou a se afastar de seu mentor,
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Sua principal crítica a ele era a ausência
de uma construção satisfatória da filosofia da natureza. Segundo Torres Filho
(1979), a tese de Fichte do eu absoluto deixava a natureza em oposição – um
limite criado por ele mesmo – à atividade infinita do eu. Schelling, discordando
do seu mestre, acreditava que a natureza possuía não somente as
características do eu, mas também era tão real quanto ele, pois é a natureza
objetiva que fornece o material à consciência, e esta, por sua vez, o reproduz.
Para Schelling, em sua origem a natureza e a consciência seriam uma
só unidade incondicionada e, em seu devir, a natureza objetiva e inconsciente
se reproduziria, tornando-se uma subjetividade consciente. Se a essência do
eu é o espírito, a essência da natureza é a matéria. Em ambos encontra-se a
*
Doutor em Geografia pela UFMG.
Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612
doi:http://dx.doi.org/10.7443/problemata.v7i2. 29188
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Thiago Macedo Alves de Brito
força. Se pela atração a força é objetiva e natural, pela repulsão ela é subjetiva
e espiritual.
A valorização da natureza, divergindo de Fichte, fez de Schelling um
cientista especulativo e um filósofo da natureza. Seu objetivo era interpretar a
natureza como um todo orgânico unificado, compreendendo que o conceito de
força poderia relacionar a natureza e o espírito. A partir de uma visão
organicista do mundo, ele procurou mostrar como as ciências da natureza se
ocupavam de fenômenos que tinham em sua origem a mesma força, que ele
denominou de “atividade pura”. A natureza, então, poderia ser compreendida
em sua própria atividade, que possibilita sua reprodução e sua evolução.
Torres Filho (1979) salienta que essa elaboração de Schelling tinha sido
exposta por Fichte, mas em relação ao eu. Ele sim era capaz de se
autoproduzir. A natureza de Schelling, portanto, seria semelhante ao eu de
Fichte, “uma aspiração infinita, uma tendência à dispersão, à qual se contrapõe
uma tendência oposta. Todo o processo da realidade se cumpriria segundo um
sistema dialético de oposições que, depois de sintetizadas, engendrariam
novas contradições, e assim sucessivamente” (TORRES FILHO, 1979, p. IX).
A filosofia da natureza de Schelling, ou a sua física especulativa, traz à
tona a materialidade da natureza e critica o pensamento que pensa a si mesmo
independentemente do mundo: ele quer inserir o ser humano na intricada
cadeia de desenvolvimento da própria natureza.
O desenvolvimento histórico da filosofia da natureza de Schelling tem a
sua origem na Grécia antiga, nos filósofos jônicos e em Platão. Passa pela
ideia medieval de alma do mundo, de Giordano Bruno (1548-1600), pela natura
naturans de Baruch Spinoza (1632-1677), pela harmonia que rege o mundo, de
Leibniz e, pela filosofia crítica, de Kant, mais especificamente pela constituição
da matéria e pelo todo orgânico da terceira crítica (GONÇALVES, 2010).
Na perspectiva de entender a transformação da matéria em organismo,
Schelling recorre às ciências de seu tempo, sobremodo à química de Antoine
Lavoisier (1743-1784), no que se refere às relações entre a água e a atmosfera
e aos processos de combustão e oxidação; e à teoria de Luigi Galvani (17371798) sobre a condução de eletricidade nos corpos orgânicos, cuja tese central
remete ao conceito de fluido elétrico, agindo como princípio vital que amalgama
o corpo ao espírito. Essa tese influenciou também Humboldt (GONÇALVES,
2010, p. 9-10).
Mesmo que as suas maiores referências tenham sido a física e a
química, Schelling flertou com as teorias do médico e biólogo Carl Friedrich
Kielmeyer (1765-1844). Segundo Gonçalves (2010), a visão sintética de
Schelling dos fenômenos naturais se deve muito à anatomia comparada do
cientista, em que as três forças – sensibilidade, irritabilidade e reprodução – se
interagem no desenvolvimento da matéria orgânica.
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Em seu sistema transcendental, segundo Torres Filho (1979), Schelling
expõe os princípios de sua estética. A obra de arte, para ele, unificaria a
natureza com o espírito e o objeto com o sujeito. Assim como no pensamento
kantiano, a aproximação da arte com a natureza levaria à identificação do
organismo vivo com a obra de arte. Ambos só poderiam ser compreendidos por
uma reflexão teleológica se agissem em função de uma intencionalidade
intrínseca. Nessa sua visão orgânica da natureza e da arte,
consequentemente, as partes seriam membros constitutivos de um todo, e este
possuiria um fim em si mesmo.
A diferença entre a obra de arte e a natureza, em Schelling, residiria no
pressuposto de que nesta última a atividade responsável por sua formação e
reprodução estaria velada ou inconsciente, manifestando-se apenas no próprio
produto, enquanto que na obra de arte a atividade criadora seria consciente e o
seu produto, inconsciente.
Na criação artística, a consciência se torna, pela primeira vez,
autoconsciência, realizando todas as suas potencialidades ao ser livre das
abstrações puramente filosóficas. A arte seria o apogeu da consciência, na
medida em que nela se reconciliam a natureza e o espírito. “A inteligência
teórica – diz Schelling – contempla o mundo, a inteligência prática ordena o
mundo, a inteligência estética cria o mundo” (TORRES FILHO, 1979, p. X).
Schelling parte do princípio da complementação entre a filosofia da
natureza e o idealismo transcendental. Tomados separadamente, forneceriam
apenas uma verdade parcial e a junção das duas, em uma absoluta
indiferença, poderia produzir a realidade. Atrás dessa unidade entre o espírito e
a natureza encontra-se a razão, una e infinita, que abrangeria tanto a coisa em
si quanto os fenômenos postos ao conhecimento. Nela não haveria distinção
entre sujeito e objeto, pois o seu princípio seria a identidade absoluta. Na
totalidade da razão, em sua unidade originária, o absoluto, incondicionado,
condiciona todas as suas diferenças ao se manifestar ora como natureza ora
como sujeito.
Ao manifestar-se como natureza ou como espírito, o absoluto, contudo, nada perde
de si mesmo e o que caracteriza cada uma de suas potencialidades é a sua direta
participação na totalidade unitária. Não há, portanto, uma relação de produção entre
sujeito e objeto, natureza e espírito, ou seja, a consciência não é produzida a partir
da realidade objetiva externa, ou vice-versa. Sujeito e objeto, espírito e natureza
seriam, portanto, condicionados que têm seu fundamento último no absoluto
incondicionado, único, indiferente e idêntico. Por essa razão, nem a natureza nem o
espírito constituem seres peculiares, totalmente distintos um do outro: são ao
mesmo tempo sujeito e objeto. Na natureza existiria um princípio vital, responsável
por ela estar continuamente tentando sair de sua passividade; no espírito, por outro
lado, manifestar-se-ia um princípio natural, que o impede de se constituir como um
ser puro, voltado apenas para si mesmo (TORRES FILHO, 1979, p. XI).
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A dimensão objetiva, a natureza, e a subjetiva, o sujeito, fazem parte de
um todo absoluto. São duas dimensões de uma identidade dialética: uma
relação necessária e, ao mesmo tempo, de oposição entre o mundo objetivo e
o subjetivo, mesmo reconhecendo que na natureza o espírito se encontra
adormecido e só se desperta à medida que evolui para a autoconsciência de si
mesmo.
A liberdade da consciência humana, o último estágio do espírito, é,
também, a natureza tomando consciência de si mesma – a realização da
matéria. A forma pela qual a liberdade se expressa no mundo natural reflete a
projeção do espírito para seu exterior. O mundo de Schelling se mostra sob a
forma da reflexão ou da autoprodução da ideia, seja adormecida enquanto
natureza ou desperta enquanto liberdade humana. Desse modo, a liberdade da
razão alcançada pelo seu próprio desenvolvimento possibilita, ao passar de
uma natureza inconsciente para outra consciente, que Schelling construa sua
física especulativa.
Natureza e organismo
Em Schelling, a natureza deixa de ser apenas atributo da exteriorização
do eu e assume o papel de incondicionalidade, assim como o eu absoluto em
Fitche. Ela é uma atividade dinâmica – fluxo do absoluto – que se encontra
determinada em seu ente finito. Como tal, possui autonomia. Porque suas leis
emanam de seu interior, de seu próprio desenvolvimento, ela basta a si
mesma. Na física especulativa de Schelling a natureza aparece como atividade
autoproducente, natura naturans, mas também como natureza finita,
particularizada, natura naturata.
A natureza é, pois, atravessada por uma dualidade primordial. De um lado, ela é
impulso (Trieb) infinito de expansão, denominado de produtividade; de outro, ela é
um freio, um retardamento, uma desaceleração (Hemmung) daquele impulso,
denominado produto. Afinal, produtividade infinita sem produto significaria uma
atividade que não deixa qualquer rastro, qualquer sinal de sua presença, qualquer
ente finito, provisoriamente permanente e capaz de testemunhar a atividade que o
produziu (VIEIRA, 2007, p. 27).
A natureza contém uma dualidade primordial, mas não uma dicotomia, já
que a produtividade e o produto interagem entre si dialeticamente. A tarefa da
filosofia de Schelling é, justamente, recuperar a unidade originária na natureza
entre o impulso infinito de expansão, a produtividade, e o impulso de
desaceleração, o produto; entre a natura naturata e a natura naturans:
Nosotros nombramos a la naturaleza, en tanto que mero producto (natura naturata),
naturaleza como objeto (la única por la que se interesa cualquer género de empiria).
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A la naturaleza en tanto que productividad (natura naturans) la llamamos naturaleza
como sujeto (y de ésta es de la única que se ocupa cualquier género de teoría)
(SCHELLING, 1996a, p. 131).
Encontrando-se com o pensamento kantiano, Schelling adota a teoria de
que a matéria contém duas forças, uma que atrai e outra que repele, forças
centrípetas e centrífugas associadas às concepções de Newton sobre a
atração e a repulsão dos planetas. O corpo e a matéria são essas forças
opostas que, em interação, constituem a natureza em si mesma. Aproxima-se
também de Leibniz, que considera a existência de uma harmonia
preestabelecida da natureza capaz de unificar essas forças opostas em um
todo, assim como na possibilidade de o pensamento representá-las.
Os diferentes graus da matéria, suas diferentes dimensões ou ainda as diferentes
potências da natureza são apresentadas não como postuladas por uma imaginação
abstrata, mas antes como determinações do que ele denomina “imaginação ou
formação em um (Einbildung) do infinito em direção ao finito. Ou seja, o que está
sendo formado na forma de unidade dialeticamente fundadas em relações de forças
opostas é a própria matéria. Mas a matéria é também o fundamento de tudo, a base
da natureza, que se manifesta imediatamente aos nossos sentidos como forças
(GONÇALVES, 2010, p. 22-23).
Schelling apresenta um conceito dinâmico de matéria fundado na
relação entre os opostos – a atração e a repulsão e a expansão e a contração
–, que são predicados imanentes ao seu próprio movimento. “Também a
matéria, como tudo que é, flui a partir da essência eterna, e é, no interior da
aparição, ainda apenas indireta e mediatamente, um efeito da eterna sujeitoobjetivação e da imaginação (ou formação em um) de sua unidade infinita em
direção à finitude e à multiplicidade” (SCHELLING1 apud GONÇALVES, 2010,
p. 23).
Tudo que se desenvolve no mundo seria, para Schelling, manifestação
do desenvolvimento da própria matéria. Isso ocorreria por meio da duplicação
do mundo em dois planos, o macrocosmo e o microcosmo. O macrocosmo
representaria o universo como um todo, uma universalidade producente,
enquanto que o microcosmo representaria a singularidade da natureza, a
expressão do “todo petrificado” no espaço e no tempo. A teoria do microcosmo
contém aquilo que Schelling denomina “individuação dos corpos”, um processo
de singularização que decorre de um movimento dialético do infinito em direção
ao finito e que retorna, depois, modificado pelo primeiro caminho, ao infinito.
Dessa maneira, a primeira potência da matéria se elevaria à segunda potência,
a luz, e depois se conformaria na terceira potência, o organismo vivo
(GONÇALVES, 2010, p. 24).
Schelling considera que os fenômenos da natureza, como o
magnetismo, a eletricidade e as reações químicas fornecem as bases para a
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transformação da matéria até sua terceira potência, o organismo, ao mesmo
tempo em que permitem compreender esse processo como parte integrante do
desenvolvimento do universo, o macrocosmo.
O organismo nada mais é do que a natureza que tornou totalmente autônomos e
interiores todos esses processos de síntese química da matéria como resultado da
interação das relações dinâmicas compreendidas por uma física especulativa. O
organismo é matéria que internaliza o processo de individuação presente na
construção do universo, é matéria que se anima com a energia da luz que,
combinada com a força de gravidade realiza os dois movimentos também
fundamentais à matéria, o movimento centrípeto, da coesão, e o movimento
centrífugo, da expansão. Dessa dupla integração surgem os corpos que não apenas
movem-se autonomamente, mas que também se excitam em contato com outros
corpos e com o mundo, que se sensibilizam por meio desse mesmo contato e que
finalmente se reproduzem (GONÇALVES, 2010, p. 26).
A terceira potência da matéria, o organismo vivo, não pode ser
compreendida apenas como síntese das duas potências anteriores, mas
também como princípio gerador das singularidades da matéria. A síntese, de
fato, é a fotossíntese, pois é nessa terceira dimensão que surge o oxigênio,
como resultado proveniente da relação entre o organismo vivo e a luz
(GONÇALVES, 2010, p. 25).
Uma das particularidades da filosofia da natureza de Schelling reside na
ruptura com a divisão estanque entre a matéria orgânica e a matéria
inorgânica. O processo de autoformação da matéria, orgânica ou inorgânica,
envolve uma conformidade com a realização da própria vida. Desse modo, a
dinâmica interna da própria matéria inorgânica tende à organicidade:
O reconhecimento da presença de uma ordem na matéria, que faz com que
Schelling muitas vezes suavize os limites entre o orgânico e o inorgânico, é
responsável tanto pela tese forte de Schelling de que há na natureza uma forma de
liberdade, quanto por sua recusa da tese contrária de que a causa do movimento da
natureza seria alheia ou exterior a ela (GONÇALVES, 2010, p. 27).
O organismo é a expressão do absoluto, concretizando-se no particular
do mundo real. Ou pode-se dizer também que o organismo simboliza a
presença do universal nos fenômenos da natureza. A forma específica da
materialidade orgânica espelha a ação da totalidade absoluta. A articulação
entre esses dois polos compõe o conhecimento de cada um deles; ou seja,
tanto do absoluto em seu devir quanto de seu congelamento em determinada
forma natural. O organismo expressa essa indiferença entre o absoluto e a sua
forma natural ou entre o universal e o particular. “Em todo ser (Wesen)
orgânico – sim, em todo ele, mesmo na menor de suas partes! – tu reconheces
a infinitude atual e a unidade, cada uma por si e, contudo, como um”
(SCHELLING, 2010, p. 83).
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O organismo não é apenas fim último da matéria, mas a sua ideia, em
constante processo de transformação. Tanto a natureza orgânica quanto a
natureza inorgânica são regidas pelo princípio da identidade originária entre o
universal e o particular, entre a natura naturans e a natura naturata. Essa
identidade não é apenas uma intuição intelectual, mas também a expressão de
uma poiesis, a imagem de um artista que produz sua obra a partir de si mesmo,
da matéria absoluta.
A natureza é para nós um autor, que escreveu em hieróglifos, cujas páginas são
colossais, tal como diz o artista em Goethe. Quem quer pesquisar a natureza
seguindo apenas o caminho empírico é justamente aquele que frequentemente
carece do conhecimento de sua linguagem para tomá-la em sua verdade. A Terra é
um livro que é montado a partir de fragmentos e rapsódias de épocas muito
diferentes (SCHELLING2 apud GONÇALVES, 2010, p. 29).
Ciência e intuição intelectual
Schelling, no entanto, não descarta a objetividade do método científico.
Ele dedica-se com afinco aos estudos das ciências naturais. Porém, não
compartilha a visão de que estas ciências possuem a chave para a
compreensão de todo e qualquer fenômeno natural. Pretendendo se
desvencilhar da mecânica newtoniana e da empiria que se “restringe à
superfície da natureza”, Schelling se declara adepto de uma cosmovisão na
qual a natureza é uma autoatividade produtiva, um todo pleno e contínuo que
integra as forças naturais, relacionando, organizando e hierarquizando essas
forças que compõem o mundo. A natureza, desse modo, não é apenas um
simples produto, mas também uma força produtiva.
Para acessar a natureza, Schelling, com referência em Fichte, insere no
idealismo alemão a noção de intuição intelectual, já exposta por Kant. Trata-se
de um ponto crucial de sua filosofia, pois é o meio de se apreender o absoluto.
Porém, como mencionado, Schelling se afasta de Fichte ao estender esta
noção para além do eu, ou seja, para a natureza.
Com efeito, em todos nós reside uma faculdade secreta, maravilhosa, de retirar-nos
da mudança do tempo para nosso íntimo, para o nosso eu despido de tudo aquilo
que vem de fora, e, ali, na forma de imutabilidade, intuir o eterno em nós. Essa
intuição é a experiência mais íntima, mais própria, e unicamente dela depende tudo
aquilo que sabemos e cremos de um mundo supra-sensível. Essa intuição, em
primeiro lugar, nos convence de que algo é, em sentido próprio, enquanto todo o
restante, ao qual transferimos essa palavra, apenas aparece. [...] Essa intuição
intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser objeto para nós mesmos e
quando, retirado em si mesmo, o eu que intui é idêntico ao eu intuído (SCHELLING,
1979a, p. 24).
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Em Schelling, o conceito de intuição intelectual – “uma faculdade
secreta” – é a base de sua filosofia. Ele permite, por meio do
autoconhecimento, da certeza de si, o contato com o eu absoluto,
suprassensível, que atravessa toda a natureza, do inorgânico ao orgânico, com
a finalidade de alcançar o seu fim último, o homem, capaz de tomar ciência de
si mesmo, de reconhecer-se como ser consciente.
Es verdad que, dentro de la filosofía de la naturaleza, yo contemplo a ese sujetoobjeto, que llamo naturaleza, en su autoconstrucción. Para entender esto hay que
elevarse a la intuición intelectual de la naturaleza. El empirista no se eleva hasta allí
y es precisamente por eso lo que siempre es él el que construye en todas sus
explicaciones (SCHELLING, 1996b, p. 271).
Em Schelling, intuição intelectual e eu absoluto são conceitos correlatos,
na medida em que o objeto não é seu oposto, mas uma produção de si
mesmo. “Na intuição intelectual, producente e produto se dão conjuntamente,
ou o eu se dá como infinito em e para si mesmo, incondicional e
absolutamente, exterior a todo tempo, isto é, na eternidade. O eu” (BARBOZA,
2003, p. 19).
O absoluto, do qual trata Schelling, está ancorado na unidade entre a
subjetividade e a objetividade, e esta unidade é o princípio da sua filosofia. O
absoluto contém a matéria e a forma, e ele se faz a si mesmo, em sua
totalidade, ora como matéria ora como forma.
Naquele momento, se podemos chamá-lo assim, em que ele é meramente matéria,
essência, o Absoluto seria pura subjetividade, fechada e envolta em si mesma:
quando ele faz de sua própria essência sua forma, aquela subjetividade inteira, em
sua absolutez, se torna objetividade, assim como, na retomada e transformação da
forma na essência, a objetividade inteira, em sua absolutez, se torna subjetividade
(SCHELLING, 1979c, p. 50).
Em Schelling, a matéria e a forma são manifestações do absoluto, mas,
como há uma unidade entre a subjetividade e a objetividade, elas não são
exteriores a ele. Essa unidade nada mais é o que Platão entendeu como ideia
ou o que Leibniz compreendeu como Mônada. “Toda ideia é um particular,
como tal, é absoluto; a absolutez é sempre uma, assim como o sujeitoobjetividade dessa absolutez e sua própria identidade; somente o modo como
a absolutez na ideia é sujeito-objeto faz a distinção” (SCHELLING, 1979c, p.
51).
A ideia é a síntese da identidade absoluta, na medida em que ela
mesma é o ato puro de se autoproduzir, o agir eterno enquanto unidade. A
forma é o símbolo do infinito no finito, e o que se torna objetivo nela é apenas a
própria unidade absoluta.
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O lado real daquele agir eterno torna-se patente na natureza: a natureza em si ou a
natureza eterna é justamente o espírito trazido à luz na objetividade, a essência de
Deus introduzida na forma, só que nela essa introdução compreende imediatamente
a outra unidade. A natureza que aparece, em contrapartida, é a figuração da
essência na forma aparecendo como tal ou na particularidade, portanto a natureza
eterna na medida em que se corporifica e assim se expõe a por si mesma como
particular. A natureza, na medida em que aparece como natureza, isto é, como essa
unidade particular, já está, portanto, como tal, fora do Absoluto, não a natureza
como o próprio ato-de-conhecimento absoluto (Natura naturans), mas a natureza
como mero corpo ou símbolo daquela (Natura naturata). No Absoluto ela constitui,
como a unidade oposta, que é o mundo ideal, uma única unidade, mas, justamente,
por isso, naquela não está nem a natureza como natureza nem o mundo ideal como
mundo ideal, mas ambas como um único mundo (SCHELLING, 1979c, p. 52).
A filosofia, como ato de conhecer o absoluto, do qual a natureza é uma
de suas manifestações, segundo a ideia absoluta da unidade, é o idealismo.
Na natureza, o absoluto se torna em si mesmo particular, um ser que é também
ideal, na medida em que é manifestação do próprio absoluto. A natureza, em
sua particularidade, é aquela que aparece, que se manifesta enquanto forma.
O absoluto nessa forma, como ser finito, é ao mesmo tempo essência e
aparência e somente pode ser apreendido pela intuição.
Somente pela intuição intelectual, portanto, se conhece o absoluto e
somente por meio dela a filosofia penetraria na unidade essencial entre a
natureza e o espírito. Esse princípio seria responsável por intuir o
desenvolvimento da natureza em toda a sua potencialidade.
Mas a intuição intelectual, aceita pelo filósofo, sofre dele restrições ao
longo do tempo. Ele descobre que ela não seria a única forma para penetrar
nos segredos do absoluto. Em concordância com a sua estética, ele opta pela
criação artística como a forma mais acabada para se ter acesso ao
incondicionado. Assim como os românticos, para Schelling a obra de arte, na
qual a oposição entre o sujeito e o objeto se encontraria anulada, exprimiria de
maneira mais pura a identidade dos opostos oriundas do próprio absoluto.
Por último, a Ideia que unifica tudo, a ideia de beleza, tomada a palavra em seu
sentido superior, platônico. Pois estou convicto que o ato supremo da Razão, aquele
em que ela engloba todas as Ideias, é um ato estético, e de que verdade e bondade
só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto
o poeta. Os homens sem senso estético são nossos filósofos da letra. Não se pode
ter espírito em nada, mesmo sobre a história não se pode raciocinar com espírito –
sem senso estético (SCHELLING, 1979b, 42-43).
A natureza não se traduz apenas por meio de conceitos. Ela pode ser
representada de maneira artística. A formação de um conceito no interior da
filosofia da natureza, em que se tem como fundamento a identidade entre o
subjetivo e o objetivo, é um processo ao mesmo tempo científico e artístico,
que em Schelling não são dois modos diferentes de se conhecer.
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A produção da obra de arte tem seus fundamentos buscados na própria
produção da natureza. Isso não quer dizer que uma seja o reflexo da outra. A
natureza serve apenas de inspiração para a produção artística. Mas a
liberdade da arte em Schelling reproduz uma liberdade já presente na
natureza. Em outras palavras, diante do processo de formação da obra de arte
ou da própria natureza o ato de criação é também uma opção entre caminhos
alternativos em direção a uma determinada forma.
Em Schelling, arte e natureza não ocupam duas esferas distintas de
produção do conhecimento, mas uma única esfera capaz de revelar o absoluto
em seu movimento incessante entre o universal e o singular.
Schelling vê na eterna formação e geração de vida na natureza não somente uma
alternância de formas finitas, mas a própria infinidade do ato de conceber do
absoluto a si mesmo. Em outras e mais intuitivas palavras: é Deus (ou seja: o
absoluto) o único e eterno princípio criador de tudo, princípio esse objetivado tanto
na natureza quanto na arte, tanto no pensamento quanto na vontade, a qual –
movida a partir de dentro da própria natureza – é, acima de tudo, livre
(GONÇALVES, 2010, p. 32).
É a beleza artística o ponto de interseção entre o ideal e o real. Ela está
em toda parte onde há relação entre a matéria e a luz. Em Schelling, a beleza,
em sua forma, é a plena realização da matéria, pois nela o infinito se realiza. A
natureza e a arte fazem parte de um processo de formação que envolve a
necessidade e a liberdade, ainda que Schelling reconheça que na natureza o
nível de consciência ainda está “adormecido”. “A natureza, para Schelling,
revelou-se tão livre quanto à arte e ambas, como momentos complementares
de um único e infinito processo de atividade autoprodutiva, são concebidas
pelo filósofo como igualmente belas” (GONÇALVES, 2010, p. 34).
A analogia entre arte e natureza
Em conjunto, mas sem submissão, o homem e a natureza realizam uma
unidade produtiva baseada numa relação dialética entre o espírito consciente e
espírito inconsciente. Enquanto na natureza a finalidade na produção de suas
obras se encontra velada, nas obras de arte, de outro lado, a sua produção é
feita conscientemente. A arte sintetiza aquilo que a reflexão separa; a unidade
entre a natureza e a humanidade.
O autor da Filosofia da arte opera como se, da máxima afirmação de identidade dos
contrários, a sua dialética devesse superar positivamente as diversas modalidades
de dualismo, não ruma a novas sínteses, mas em direção a uma síntese originária,
cuja máxima expressão se resume na indiferença do infinito no finito (BARROS,
2011, p. 12).
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Schelling é um crítico das filosofias de Kant e Fichte, que separam a
natureza e o ser humano como se fossem oposições. Sua alternativa para se
livrar desse impasse se dá por meio da arte e de sua visão polimorfa da
natureza. Sujeito e objeto se encontram, então, unidos, e a intuição é
responsável por desvelar essa síntese originária.
Mal o homem se pôs em contradição com o mundo exterior [...] dá-se o primeiro
passo em direção à filosofia. É em primeiro lugar com essa separação que começa a
especulação; de agora em diante ele separa aquilo que a natureza desde sempre
uniu, separa o objeto e a intuição (SCHELLING3 apud BARROS, 2011, p, 11).
O desenho é a primeira forma pela qual a unidade é apreendida em sua
particularidade, segundo Schelling. Instituindo a forma, a pintura limita-se a um
espaço determinado, circunscrevendo-se em seu próprio limiar. No desenho, a
espacialidade é a condição de sua particularidade, de sua finitude. A forma
torna-se o primeiro passo para o desenho se concretizar.
Uma vez que o desenho e a pintura visam, antes de tudo, à exposição das formas, e
uma vez que a condição para o belo, embora não de fato para a perfeição e
acabamento dele, é a agradabilidade, esta tem que ser buscada no desenho
somente até onde não prejudique as exigências mais altas da verdade e da
correção. [...] Como o organismo é, interiormente e segundo sua essência, sucessão
que se gera de si mesma e a si retorna, ela exprime essa forma também
exteriormente pela predominância das formas elípticas, parabólicas e outras, que
melhor exprimem a diferença na identidade (SCHELLING, 2001, p. 176).
A pintura tem a magia de representar a imagem, mas o objeto
representado na pintura não é o próprio objeto; é um ideal tornado real. No
entanto, a representação simbólica da pintura não se diferencia
substancialmente do objeto concreto, pois ela é a arte que sintetiza a verdade
e a aparência. O conflito entre o real e o ideal tem que ser dissipado para, a
partir dessa superação, alçar a identidade entre ambos, sendo que é nessa
indiferença que a pintura se sobressai ao trazer à tona o sensível por ele
mesmo (BARROS, 2011).
Schelling pretende desvelar o ideal de natureza a partir do próprio
sensível. Portanto, a ideia de uma natureza producente e criadora precisa
permanecer na paisagem para que ela não apareça fria. Essa natureza viva é
que o artista deve reproduzir à sua maneira, levando em conta a produção da
natureza em si mesma. A obra de arte, nesse sentido, é o produto de uma
ação inventiva que participa ativamente da reprodução de sua imagem,
traduzindo o organismo vivo em suas diversas manifestações.
Na beleza, opera-se a passagem do mundo das criaturas para o mundo da criação,
da natura naturata para natura naturans, tornando-se assim imperioso mostrar que,
com suas criações, as artes plásticas compartilham daquela “realidade inescrutável
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mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza” (BARROS,
2011, p. 21).
Em Schelling, a particularidade do objeto o torna universal. O particular
produz e, ao mesmo tempo, afirma a universalidade, que não vive apenas de
sua limitação, mas também de sua força interna, que se afirma como uma
totalidade. A forma enquanto separada da matéria não reproduz o todo, ao
passo que a matéria sem a forma não contém sua particularidade. Forma e
matéria constituem-se numa relação recíproca de afirmação do todo na sua
unidade originária.
Vigora aqui o aceite de que, enquanto ponderamos apenas sobre sua forma, a
matéria será mera abstração; mas, ao considerarmos apenas a matéria, a forma
permanecerá uma impressão disforme. Para ser bela, é necessário que a forma seja
viva e sua vida, forma. Somente quando esta última viver em nossa sensibilidade lhe
será dado expor-se vivamente ao nosso entendimento (BARROS, 2011, p. 24).
A filosofia de Schelling associa a arte à natureza ao estabelecer o
vínculo entre a forma e o conceito. O conceito transcendente articula o
particular com o infinito. Na arte, percebe-se uma criação que nem sempre é
consciente. Entretanto, a ligação entre essa atividade intuitiva e a consciência
engendra a arte mais elevada. Não se percebe a arte autônoma, independente
do sujeito que a produz. E onde a arte eleva-se ao conceito do entendimento
ela se assemelha às obras da natureza. No entanto, na natureza o conceito
vivo e consciente mostra-se adormecido, enquanto que na obra do artista a
atividade consciente prevalece: a atividade da natureza e a do artista não
coincidem. O artista, por exemplo, ao imitar a natureza produziria larvas, mas
jamais obras de arte. Ele tem que caminhar no sentido de encontrar o espírito
da natureza, expressando-se por meio de suas formas e procurando capturar o
movimento espiritual, a essência da natureza. Desse modo, é possível para o
artista criar algo verdadeiro. Melhor, mais uma vez, deixar Schelling com a
palavra:
Tanto na natureza quanto na arte, a essência busca efetivar-se e expor a si mesma
primeiramente no particular. Por isso, em ambas, a maior rigidez da forma dá-se a
conhecer logo no início; pois, sem limitação, o ilimitado não poderia aparecer; se não
houvesse a dureza, a brandura tampouco poderia existir; e se a unidade deve fazerse sentir, isso só pode acontecer mediante particularidade, isolamento e oposição. A
ser assim, de início, o espírito criador aparece inteiramente perdido na forma,
inacessível, fechado e ainda austero em sua grandeza. Mas quanto mais ele logra
unir sua inteira completude em uma única criatura, tanto mais ele reduz, passo a
passo, sua rigidez, lá onde delineou inteiramente a forma, a ponto de nela dormitar e
se apreender com satisfação, ele parece regozijar-se e começa, digamos, a moverse em linhas suaves. Esse é o estado consoante à mais bela maturidade e
florescimento, no qual o puro invólucro se apresenta com perfeição e o espírito da
natureza torna-se livre de suas amarras, sentindo sua afinidade com a alma
(SCHELLING, 2011, p. 53).
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Aproximações entre Schelling, Goethe e Kant
A filosofia da natureza de Schelling é um complemento de seu
idealismo. Ela mostra que o eu possui uma história do seu desenvolvimento
natural até a consciência de si. Não há, portanto, separação entre o sujeito e o
objeto, assim como entre a experiência e a especulação. O idealismo se
configura em duas vertentes de uma mesma filosofia geral.
O filósofo da natureza trata seu objeto como o filósofo transcendental trata o eu,
portanto a natureza mesma como incondicionada em sua atividade. Esta, pensada
nos moldes da chamada substância absoluta espinosiana, recebe justamente o
nome de natura naturans, a qual, não se enclausurando em si, manifesta-se como
natura naturata (BARBOZA, 2003, p. 66).
Schelling considera a natura naturata como a manifestação real e efetiva
da natura naturans. Pela realidade da natureza chega-se ao conceito de alma
cósmica, tratada como a vida universal, uma síntese das ideias de organismo
em Kant e da biologia em Kielmeyer. A alma cósmica possui também um
substrato racional ao mostrar que o desenvolvimento da natureza envolve
metamorfoses e polaridades. Influência de Goethe, sem dúvida, por meio de
seus conceitos de metamorfose das plantas e da importância atribuída por ele
ao magnetismo.
Para Goethe, a polaridade originária é o fio condutor de sua análise, que
penetra e anima todas as formas. Tudo que aparece enquanto fenômeno
natural tem a sua polaridade. A vida natural, para ele, apresenta “diástoles
eternas”. Nos escritos sobre a metamorfose das plantas, Goethe introduz um
esboço do que entende por polaridade: um par de oposto que impulsiona o
desenvolvimento do organismo. Dessa maneira, a diferença específica
desaparece para dar vez à relação entre polos de atração e repulsão, entre
aparecer e desaparecer ou, na perspectiva mais geral, entre ação e reação,
que fazem parte de uma unidade em movimento (BARBOZA, 2003).
O conceito de polaridade em Schelling tem, portanto, em Goethe as
suas raízes. Isso se deve graças a seus encontros em Weimar, entre 1782 e
1802. Nessa cidade, ele lecionou filosofia a convite do poeta. Goethe também
será seu tutor em Jena, onde o filósofo vai lecionar a partir de 1799. Mas foi de
Kielmeyer que Schelling absorveu seu conceito fundamental da filosofia da
natureza, o qual o ajudará na passagem da natura naturans para a natura
naturata: o organismo e a sua organização (BARBOZA, 2003, p. 73).
No discurso de Kielmeyer, proferido em 11 de fevereiro de 1793 na Stuttgarter
Karlsschule, os fenômenos animados, ou “organizações”, são considerados os mais
apropriados para nos arrebatar com o “sentimento de grandeza da natureza”; o
mundo orgânico apresenta-se numa série de organizações e “parece” avançar numa
“trajetória de desenvolvimento” (Entwikclungsbahn). Animando-o, identificam-se três
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forças biológicas básicas: (1) a sensibilidade, ou a capacidade de reação à excitação
recebida; (2) a irritabilidade, ou a capacidade de se contrair dos músculos; e (3) a
força reprodutiva (BARBOZA, 2003, p. 73).
No ser humano a sensibilidade encontra-se mais desenvolvida,
diminuindo nos animais inferiores e desaparecendo nas plantas, ao passo que
a irritabilidade, na medida em que se passa do inorgânico para o orgânico,
diminui. Kielmeyer propõe, dessa maneira, que a diferença entre o orgânico e o
inorgânico não se desfaz quando se parte do princípio de que as mesmas
forças atuam tanto em um quanto em outro, mudando apenas o seu grau de
desenvolvimento. Schelling acrescenta o sentido de energia vital, a substância
absoluta, da qual surgem as diferentes etapas de transformação do
organismo.4
O conceito de ser organizado como um fim natural, a partir de Kant,
ajuda na formulação de Schelling da seguinte maneira: ele abre espaço para a
compreensão da natureza como se nela estivesse agindo uma finalidade
interna, cujo fundamento é uma ideia que escapa ao entendimento, mas que é
acessível pela intuição. A finalidade se mostra quando se toma a natureza
como um todo que determina suas formas e se expressa por meio delas.
Schelling, assim, distancia-se de Kant ao ver a possibilidade de penetrar nos
segredos da natureza a partir da intuição. “A intuição intelectual que remove o
limite da finitude colocado ao entendimento, permite o acesso ao eu absoluto, à
substância cósmica, revelando que esta é uma força viva impulsora do todo”
(BARBOZA, 2003, p. 78).
Ao conferir realidade à natureza, concebendo-a como ente finito
condicionado pelo absoluto e apreendida por meio da intuição intelectual,
Schelling concebe o orgânico como o momento visível do desenvolvimento do
incondicionado. Em seu conceito de organismo, espírito e natureza encontramse unidos. Ou, em outras palavras, a liberdade e a necessidade se unem no
mesmo fenômeno. Se a liberdade é a vida do organismo, a necessidade é a
expressão de sua forma finita, da sua materialidade fenomênica.
Em concordância com Goethe, o princípio vital é aplicado tanto ao
orgânico quanto ao inorgânico. Ou seja, a polaridade de forças se concretiza
tanto em um quanto no outro, variando apenas em seu grau. Schelling remete
à ideia de um princípio organizador, que forma um mundo a partir de si mesmo,
ou melhor, de suas forças polares interagindo entre si. “Aquilo que em Kant era
mera totalidade da representação, juízo reflexionante teleológico que regula a
investigação sistemática da natureza, transforma-se em princípio constitutivo
do universo e do que há de mais básico nele, a matéria” (BARBOZA, 2003, p.
82).
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Considerações finais: Os limites da filosofia da natureza de Schelling
segundo Nicolai Hartmann
Em Schelling, o caminho da sua filosofia da natureza parte do objetivo
em direção ao subjetivo, enquanto que o caminho de sua filosofia especulativa
vai do subjetivo ao objetivo. É dessa maneira que se constrói a unidade
dialética entre seu Sistema do Idealismo Transcendental (1800) e seus
esboços, escritos ao longo dos anos, sobre Filosofia da Natureza (1797-1806).
Se para Kant a pergunta essencial de sua filosofia era: como o sujeito chega
ao objeto a partir dos juízos e das categorias? A filosofia da natureza de
Schelling inverte a questão: “como o objeto, aparentemente fora do sujeito,
chega até ele? O que está em questão para Schelling é a origem do homem, o
problema de sua gênese histórica oriunda da natureza, a passagem do objeto
ao sujeito, do espírito inconsciente para o consciente (BARBOSA, 2005).
Barbosa (2005) vê limites na filosofia da natureza de Schelling.
Considera que há mesmo um retrocesso em relação a Kant, na medida em que
ele postula uma identidade entre sujeito e objeto e assimila o conhecimento
como uma tomada de consciência da própria natureza por meio do homem.
Não há como afirmar, segundo ele, como faz Schelling, que o fim último da
natureza seria o homem ou a identidade dele com a natureza.
Em primeiro lugar, simplesmente não se sabe se o tornar-se consciente da natureza
é sua meta mais alta e última, nem que isto tenha se dado pela primeira vez no
homem e pelo homem. Além disso, esta identidade originária de sujeito e objeto é o
que resulta de uma ilícita projeção retrospectiva de uma meta supostamente atingida
do homem pelo homem (BARBOSA, 2005, p. 243).
A transposição da filosofia transcendental para uma filosofia da natureza
simboliza a passagem de um princípio de identidade entre sujeito e objeto para
um princípio de identidade e de não identidade entre sujeito e objeto. A
natureza, nesse sentido, ou é inconsciente e objetiva ou é consciente e
subjetiva. “A produção inconsciente corresponde à infinita multiplicidade do
existente; já a produção consciente àquela própria ao homem, ele mesmo um
produto da natureza” (BARBOSA, 2005, p. 243).
Hartmann (1976) também reconhece que para Schelling na natureza há
criação de uma inteligência inconsciente, o espírito adormecido, cujas fases de
seu desenvolvimento são produtos da própria natureza e o seu grau último é o
espírito consciente do homem. A natureza viva é o ponto de partida. Mas para
Hartmann, Schelling tem muito mais de teólogo especulativo do que de
investigador científico.
É importante ter presente, desde o começo, esta franqueza da Filosofia da Natureza
de Schelling; a elevação especulativa a que ascende, e do alto da qual o conjunto
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funciona como um impôtente edifício intelectual, só pode ser apreciada com
exactidão à luz deste pressuposto. A ideia básica é muito simples. Na natureza
existe uma organização prevalecente, organização que não se pode conceber sem
uma força produtiva. Tal força necessita, por sua vez, dum princípio organizador.
Este não pode ser um princípio cego da realidade, tem de ter produzido
teleologicamente a adequação contida nas suas criações. Portanto, só um princípio
espiritual pode ser capaz disto, quer dizer, um espírito exterior ao nosso espírito.
Mas, já que não podemos admitir uma consciência fora do Eu, o espírito que cria na
Natureza há-de ser um espírito inconsciente. [...] Schelling agarra-se a esta criação
inconsciente, mas coloca-a no Objectivo-real, não sendo o Eu, para ele, o princípio
criador espiritual, mas sim o que se encontra fora dele. É um princípio
extraconsciente do real e, portanto, a Filosofia da Natureza de Schelling, comparada
com a Doutrina da Ciência, é inteiramente realista. Não obstante, é um princípio
espiritual e, portanto, é também, nessa medida, um princípio ideal. É, ao mesmo
tempo, ideal e real, e daí a teoria que nele se baseia poder designar-se com certa
razão ‘idealismo real’ (HARTMANN, 1976, p. 135-136).
Schelling transforma as suas analogias dos fenômenos naturais em
identidades metafísicas. O material fenomênico anterior a qualquer
interpretação não existe separado da pureza de toda interpretação. O espírito
inconsciente tem que ser uma força pura, sem qualquer substrato, porque o
real só por meio dele poderá existir. O autor encontra no mundo objetivo,
natural, o mesmo princípio ideal da atividade pura do qual Fichte havia partido.
A Filosofia da Natureza, de Schelling, é um modelo puro de filosofia da unidade. O
pensamento metafísico que lhe serve de base é um pensamento de identidade:
unidade de natureza e espírito, semelhança essencial do espírito em nós e da
natureza fora de nós. A natureza não está confinada no exterior e o espírito no
interior; também fora de nós domina o mesmo espírito; também em nós a mesma
natureza (HARTMANN, 1976, p. 136).
A partir de uma unidade natural em si mesma homogênea, sem
oposição, brotam a multiplicidade e a diferenciação. Da identidade surge um
fator de cisão que se opõe a essa unidade, mas, ao mesmo tempo, coexiste
com ela. A cisão na natureza é o momento de separação dos elementos
comuns, que antes compunham a unidade e que posteriormente estarão
presentes nos diferentes fenômenos naturais.
Schelling transpõe o pensamento dialético fichteano da razão para a
natureza. Não está na consciência a síntese das teses e antíteses da
polaridade, mas na natureza ou na inteligência inconsciente. Sua dialética não
está no desenvolvimento ideal da razão, como em Fitche, mas no
desenvolvimento ideal da natureza. O processo evolutivo da natureza
corresponde ao princípio de distinção progressiva, cujos primórdios se
encontram na ideia de indiferença absoluta, mas que, ao mesmo tempo,
obedece a um princípio de produção progressiva, no qual se exemplifica a
tendência original à unidade. Na natureza o espírito que cria mas não reflete, é
o espírito inconsciente, adormecido. As séries graduais dos fenômenos
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naturais indicam o caminho percorrido pelo espírito até a chegada a ele
mesmo, a ascensão de sua autoconsciência (HARTMANN, 1976).
Em todo conflito de forças predomina a força primordial unitária, a
indiferença absoluta, uma força unitária e homogênea que quanto mais se
desenvolve produz de si mesma sua própria oposição, que se reduz à ação
recíproca de forças polares. A natureza é um grande organismo vivo, uma
totalidade, em que tudo se encontra harmonicamente conectado entre si. O
organismo vivo de Schelling só é possível a partir do fundamento que cria o
organismo, o espírito.
O milagre da natureza não é, de modo algum, saber como pode organizar-se a vida
nela; é, pelo contrário, este: como a vida, que desde o começo está oculta na
natureza, tenha podido percorrer, aparentemente, tantos graus não vivos de formas
para tornar sua aparição visível unicamente na planta e no animal (HARTMANN,
1976, p. 139-140).
Em Schelling, o primordial não são os produtos orgânicos da natureza,
mas, precisamente, a sua organização. “O organismo não é propriedade ou
modo de existência de coisas naturais particulares; inversamente, estas são
outras tantas delimitações ou formas de intuição do organismo universal”
(HARTMANN, 1976, p. 139).
Schelling toma de Spinoza, também para Hartmann, a unidade da
natura naturans como princípio de todas as coisas. Já a continuidade das
formas naturais e as finalidades intrínsecas nelas são heranças de Leibniz, da
sua Monadologia. Porém, os encadeamentos desse contínuo, segundo
princípios formais externos e internos, provêm da doutrina platônica das
ideias5, assim como o seu conceito de potências da natureza.
São noções de Deus (absoluto) e todas elas estão contidas nas ideias de Deus. A
sua existência mutuamente separada na natureza, as suas relações que penetram
através do mundo e que, como forças, o regem não constituem a sua essência
própria, mas só o seu modo de aparecimento, o qual é objectivo e necessário
porque só através dele o espírito de Deus chega à autointuição no Eu do homem
(HARTMANN, 1976, p. 142).
A mistura em Schelling da filosofia da natureza com a religião, uma
criação divina que emana de todos os outros fenômenos, inclusive os sociais, é
bem destacada por Hartmann. O materialismo de Schelling é um deslocamento
do funcionamento do espírito para a natureza, mas se perde numa concepção
divina, panteísta, mística de natureza.
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Stuttgart, parte I, vol. 5, p. 246-247. (Tradução de Márcia Gonçalves).
3 SCHELLING, F.W.J. Ideias para uma filosofia da natureza. Tradução de Carlos Morujão. Lisboa: INCM,
2001, p. 39.
4 “Schelling, desse modo, oscilando continuamente entre misticismo e criticismo, ou fazendo “poesia
transcendental”, para usar a expressão de Novalis, recorre ora à polaridade de Goethe, ora à biologia de
Kielmeyer, e interpreta a força de formação que se propaga, enunciada por Kant na terceira crítica, como
um processo vital elementar do mundo, um todo que consiste ele mesmo “apenas na unidade do
processo vital”. A vida é a essência intuível na finalidade interna de cada ser na natureza. Em cada
organização “tem de” imperar “a unidade suprema do processo vital”, “um único e mesmo processo vital
individualiza-se ao infinito em cada ser particular”” (BARBOZA, 2003, p. 83).
5 As ideias de Platão são formas, princípios formais espirituais, modelos reais das coisas naturais. São os
permanentes nos fluxos dos fenômenos; a essência do real precedido de toda experiência no a priori
natural do ente (HARTMANN, 1976).
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