APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH WILHELM JOSEPH VON SCHELLING APPROACHES BETWEEN NATURE, SCIENCE AND ART IN FRIEDRICH WILHELM JOSEPH VON SCHELLING Thiago Macedo Alves de Brito* Recebido: 06/2016 Aprovado: 10/2016 Resumo: Este texto propõe expor alguns momentos do pensamento de Schelling, em especial sua filosofia da natureza, demonstrando a importância do conceito de organismo em seus argumentos. Desejou-se, também, mostrar sua maneira de apreender o absoluto por meio da intuição intelectual, como princípio e método de sua ciência especulativa. Por fim, apresenta-se como em Schelling a natureza e as artes são passíveis de analogia. É pela arte que se torna possível o acesso aos “segredos da natureza”. No entanto, mesmo com seus esforços para compreensão de uma natureza auto-producente, o filósofo recai numa concepção idealista da mesma. Palavras-chave: Schelling, Natureza, Organismo, Arte, Ciência. Abstract: This text proposes to expose a few moments of Schelling’s thought, especially his philosophy of nature, demonstrating the importance of the concept of organism in his arguments. It also intends to show his understanding of the absolute through intellectual intuition, the principle and method of his speculative science. Finally, it presents how, in Schelling, nature and the arts are likely to analogy. It is art that makes it possible to access the "secrets of nature." However, despite his efforts to understanding a self-productive nature, the philosopher retrocedes to an idealistic conception of it. Keywords: Schelling, Nature, Organism, Art, Science. Introdução Com apenas vinte anos Schelling começou a se afastar de seu mentor, Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Sua principal crítica a ele era a ausência de uma construção satisfatória da filosofia da natureza. Segundo Torres Filho (1979), a tese de Fichte do eu absoluto deixava a natureza em oposição – um limite criado por ele mesmo – à atividade infinita do eu. Schelling, discordando do seu mestre, acreditava que a natureza possuía não somente as características do eu, mas também era tão real quanto ele, pois é a natureza objetiva que fornece o material à consciência, e esta, por sua vez, o reproduz. Para Schelling, em sua origem a natureza e a consciência seriam uma só unidade incondicionada e, em seu devir, a natureza objetiva e inconsciente se reproduziria, tornando-se uma subjetividade consciente. Se a essência do eu é o espírito, a essência da natureza é a matéria. Em ambos encontra-se a * Doutor em Geografia pela UFMG. Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 doi:http://dx.doi.org/10.7443/problemata.v7i2. 29188 6 Thiago Macedo Alves de Brito força. Se pela atração a força é objetiva e natural, pela repulsão ela é subjetiva e espiritual. A valorização da natureza, divergindo de Fichte, fez de Schelling um cientista especulativo e um filósofo da natureza. Seu objetivo era interpretar a natureza como um todo orgânico unificado, compreendendo que o conceito de força poderia relacionar a natureza e o espírito. A partir de uma visão organicista do mundo, ele procurou mostrar como as ciências da natureza se ocupavam de fenômenos que tinham em sua origem a mesma força, que ele denominou de “atividade pura”. A natureza, então, poderia ser compreendida em sua própria atividade, que possibilita sua reprodução e sua evolução. Torres Filho (1979) salienta que essa elaboração de Schelling tinha sido exposta por Fichte, mas em relação ao eu. Ele sim era capaz de se autoproduzir. A natureza de Schelling, portanto, seria semelhante ao eu de Fichte, “uma aspiração infinita, uma tendência à dispersão, à qual se contrapõe uma tendência oposta. Todo o processo da realidade se cumpriria segundo um sistema dialético de oposições que, depois de sintetizadas, engendrariam novas contradições, e assim sucessivamente” (TORRES FILHO, 1979, p. IX). A filosofia da natureza de Schelling, ou a sua física especulativa, traz à tona a materialidade da natureza e critica o pensamento que pensa a si mesmo independentemente do mundo: ele quer inserir o ser humano na intricada cadeia de desenvolvimento da própria natureza. O desenvolvimento histórico da filosofia da natureza de Schelling tem a sua origem na Grécia antiga, nos filósofos jônicos e em Platão. Passa pela ideia medieval de alma do mundo, de Giordano Bruno (1548-1600), pela natura naturans de Baruch Spinoza (1632-1677), pela harmonia que rege o mundo, de Leibniz e, pela filosofia crítica, de Kant, mais especificamente pela constituição da matéria e pelo todo orgânico da terceira crítica (GONÇALVES, 2010). Na perspectiva de entender a transformação da matéria em organismo, Schelling recorre às ciências de seu tempo, sobremodo à química de Antoine Lavoisier (1743-1784), no que se refere às relações entre a água e a atmosfera e aos processos de combustão e oxidação; e à teoria de Luigi Galvani (17371798) sobre a condução de eletricidade nos corpos orgânicos, cuja tese central remete ao conceito de fluido elétrico, agindo como princípio vital que amalgama o corpo ao espírito. Essa tese influenciou também Humboldt (GONÇALVES, 2010, p. 9-10). Mesmo que as suas maiores referências tenham sido a física e a química, Schelling flertou com as teorias do médico e biólogo Carl Friedrich Kielmeyer (1765-1844). Segundo Gonçalves (2010), a visão sintética de Schelling dos fenômenos naturais se deve muito à anatomia comparada do cientista, em que as três forças – sensibilidade, irritabilidade e reprodução – se interagem no desenvolvimento da matéria orgânica. Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 7 Em seu sistema transcendental, segundo Torres Filho (1979), Schelling expõe os princípios de sua estética. A obra de arte, para ele, unificaria a natureza com o espírito e o objeto com o sujeito. Assim como no pensamento kantiano, a aproximação da arte com a natureza levaria à identificação do organismo vivo com a obra de arte. Ambos só poderiam ser compreendidos por uma reflexão teleológica se agissem em função de uma intencionalidade intrínseca. Nessa sua visão orgânica da natureza e da arte, consequentemente, as partes seriam membros constitutivos de um todo, e este possuiria um fim em si mesmo. A diferença entre a obra de arte e a natureza, em Schelling, residiria no pressuposto de que nesta última a atividade responsável por sua formação e reprodução estaria velada ou inconsciente, manifestando-se apenas no próprio produto, enquanto que na obra de arte a atividade criadora seria consciente e o seu produto, inconsciente. Na criação artística, a consciência se torna, pela primeira vez, autoconsciência, realizando todas as suas potencialidades ao ser livre das abstrações puramente filosóficas. A arte seria o apogeu da consciência, na medida em que nela se reconciliam a natureza e o espírito. “A inteligência teórica – diz Schelling – contempla o mundo, a inteligência prática ordena o mundo, a inteligência estética cria o mundo” (TORRES FILHO, 1979, p. X). Schelling parte do princípio da complementação entre a filosofia da natureza e o idealismo transcendental. Tomados separadamente, forneceriam apenas uma verdade parcial e a junção das duas, em uma absoluta indiferença, poderia produzir a realidade. Atrás dessa unidade entre o espírito e a natureza encontra-se a razão, una e infinita, que abrangeria tanto a coisa em si quanto os fenômenos postos ao conhecimento. Nela não haveria distinção entre sujeito e objeto, pois o seu princípio seria a identidade absoluta. Na totalidade da razão, em sua unidade originária, o absoluto, incondicionado, condiciona todas as suas diferenças ao se manifestar ora como natureza ora como sujeito. Ao manifestar-se como natureza ou como espírito, o absoluto, contudo, nada perde de si mesmo e o que caracteriza cada uma de suas potencialidades é a sua direta participação na totalidade unitária. Não há, portanto, uma relação de produção entre sujeito e objeto, natureza e espírito, ou seja, a consciência não é produzida a partir da realidade objetiva externa, ou vice-versa. Sujeito e objeto, espírito e natureza seriam, portanto, condicionados que têm seu fundamento último no absoluto incondicionado, único, indiferente e idêntico. Por essa razão, nem a natureza nem o espírito constituem seres peculiares, totalmente distintos um do outro: são ao mesmo tempo sujeito e objeto. Na natureza existiria um princípio vital, responsável por ela estar continuamente tentando sair de sua passividade; no espírito, por outro lado, manifestar-se-ia um princípio natural, que o impede de se constituir como um ser puro, voltado apenas para si mesmo (TORRES FILHO, 1979, p. XI). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 Thiago Macedo Alves de Brito 8 A dimensão objetiva, a natureza, e a subjetiva, o sujeito, fazem parte de um todo absoluto. São duas dimensões de uma identidade dialética: uma relação necessária e, ao mesmo tempo, de oposição entre o mundo objetivo e o subjetivo, mesmo reconhecendo que na natureza o espírito se encontra adormecido e só se desperta à medida que evolui para a autoconsciência de si mesmo. A liberdade da consciência humana, o último estágio do espírito, é, também, a natureza tomando consciência de si mesma – a realização da matéria. A forma pela qual a liberdade se expressa no mundo natural reflete a projeção do espírito para seu exterior. O mundo de Schelling se mostra sob a forma da reflexão ou da autoprodução da ideia, seja adormecida enquanto natureza ou desperta enquanto liberdade humana. Desse modo, a liberdade da razão alcançada pelo seu próprio desenvolvimento possibilita, ao passar de uma natureza inconsciente para outra consciente, que Schelling construa sua física especulativa. Natureza e organismo Em Schelling, a natureza deixa de ser apenas atributo da exteriorização do eu e assume o papel de incondicionalidade, assim como o eu absoluto em Fitche. Ela é uma atividade dinâmica – fluxo do absoluto – que se encontra determinada em seu ente finito. Como tal, possui autonomia. Porque suas leis emanam de seu interior, de seu próprio desenvolvimento, ela basta a si mesma. Na física especulativa de Schelling a natureza aparece como atividade autoproducente, natura naturans, mas também como natureza finita, particularizada, natura naturata. A natureza é, pois, atravessada por uma dualidade primordial. De um lado, ela é impulso (Trieb) infinito de expansão, denominado de produtividade; de outro, ela é um freio, um retardamento, uma desaceleração (Hemmung) daquele impulso, denominado produto. Afinal, produtividade infinita sem produto significaria uma atividade que não deixa qualquer rastro, qualquer sinal de sua presença, qualquer ente finito, provisoriamente permanente e capaz de testemunhar a atividade que o produziu (VIEIRA, 2007, p. 27). A natureza contém uma dualidade primordial, mas não uma dicotomia, já que a produtividade e o produto interagem entre si dialeticamente. A tarefa da filosofia de Schelling é, justamente, recuperar a unidade originária na natureza entre o impulso infinito de expansão, a produtividade, e o impulso de desaceleração, o produto; entre a natura naturata e a natura naturans: Nosotros nombramos a la naturaleza, en tanto que mero producto (natura naturata), naturaleza como objeto (la única por la que se interesa cualquer género de empiria). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 9 A la naturaleza en tanto que productividad (natura naturans) la llamamos naturaleza como sujeto (y de ésta es de la única que se ocupa cualquier género de teoría) (SCHELLING, 1996a, p. 131). Encontrando-se com o pensamento kantiano, Schelling adota a teoria de que a matéria contém duas forças, uma que atrai e outra que repele, forças centrípetas e centrífugas associadas às concepções de Newton sobre a atração e a repulsão dos planetas. O corpo e a matéria são essas forças opostas que, em interação, constituem a natureza em si mesma. Aproxima-se também de Leibniz, que considera a existência de uma harmonia preestabelecida da natureza capaz de unificar essas forças opostas em um todo, assim como na possibilidade de o pensamento representá-las. Os diferentes graus da matéria, suas diferentes dimensões ou ainda as diferentes potências da natureza são apresentadas não como postuladas por uma imaginação abstrata, mas antes como determinações do que ele denomina “imaginação ou formação em um (Einbildung) do infinito em direção ao finito. Ou seja, o que está sendo formado na forma de unidade dialeticamente fundadas em relações de forças opostas é a própria matéria. Mas a matéria é também o fundamento de tudo, a base da natureza, que se manifesta imediatamente aos nossos sentidos como forças (GONÇALVES, 2010, p. 22-23). Schelling apresenta um conceito dinâmico de matéria fundado na relação entre os opostos – a atração e a repulsão e a expansão e a contração –, que são predicados imanentes ao seu próprio movimento. “Também a matéria, como tudo que é, flui a partir da essência eterna, e é, no interior da aparição, ainda apenas indireta e mediatamente, um efeito da eterna sujeitoobjetivação e da imaginação (ou formação em um) de sua unidade infinita em direção à finitude e à multiplicidade” (SCHELLING1 apud GONÇALVES, 2010, p. 23). Tudo que se desenvolve no mundo seria, para Schelling, manifestação do desenvolvimento da própria matéria. Isso ocorreria por meio da duplicação do mundo em dois planos, o macrocosmo e o microcosmo. O macrocosmo representaria o universo como um todo, uma universalidade producente, enquanto que o microcosmo representaria a singularidade da natureza, a expressão do “todo petrificado” no espaço e no tempo. A teoria do microcosmo contém aquilo que Schelling denomina “individuação dos corpos”, um processo de singularização que decorre de um movimento dialético do infinito em direção ao finito e que retorna, depois, modificado pelo primeiro caminho, ao infinito. Dessa maneira, a primeira potência da matéria se elevaria à segunda potência, a luz, e depois se conformaria na terceira potência, o organismo vivo (GONÇALVES, 2010, p. 24). Schelling considera que os fenômenos da natureza, como o magnetismo, a eletricidade e as reações químicas fornecem as bases para a Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 10 Thiago Macedo Alves de Brito transformação da matéria até sua terceira potência, o organismo, ao mesmo tempo em que permitem compreender esse processo como parte integrante do desenvolvimento do universo, o macrocosmo. O organismo nada mais é do que a natureza que tornou totalmente autônomos e interiores todos esses processos de síntese química da matéria como resultado da interação das relações dinâmicas compreendidas por uma física especulativa. O organismo é matéria que internaliza o processo de individuação presente na construção do universo, é matéria que se anima com a energia da luz que, combinada com a força de gravidade realiza os dois movimentos também fundamentais à matéria, o movimento centrípeto, da coesão, e o movimento centrífugo, da expansão. Dessa dupla integração surgem os corpos que não apenas movem-se autonomamente, mas que também se excitam em contato com outros corpos e com o mundo, que se sensibilizam por meio desse mesmo contato e que finalmente se reproduzem (GONÇALVES, 2010, p. 26). A terceira potência da matéria, o organismo vivo, não pode ser compreendida apenas como síntese das duas potências anteriores, mas também como princípio gerador das singularidades da matéria. A síntese, de fato, é a fotossíntese, pois é nessa terceira dimensão que surge o oxigênio, como resultado proveniente da relação entre o organismo vivo e a luz (GONÇALVES, 2010, p. 25). Uma das particularidades da filosofia da natureza de Schelling reside na ruptura com a divisão estanque entre a matéria orgânica e a matéria inorgânica. O processo de autoformação da matéria, orgânica ou inorgânica, envolve uma conformidade com a realização da própria vida. Desse modo, a dinâmica interna da própria matéria inorgânica tende à organicidade: O reconhecimento da presença de uma ordem na matéria, que faz com que Schelling muitas vezes suavize os limites entre o orgânico e o inorgânico, é responsável tanto pela tese forte de Schelling de que há na natureza uma forma de liberdade, quanto por sua recusa da tese contrária de que a causa do movimento da natureza seria alheia ou exterior a ela (GONÇALVES, 2010, p. 27). O organismo é a expressão do absoluto, concretizando-se no particular do mundo real. Ou pode-se dizer também que o organismo simboliza a presença do universal nos fenômenos da natureza. A forma específica da materialidade orgânica espelha a ação da totalidade absoluta. A articulação entre esses dois polos compõe o conhecimento de cada um deles; ou seja, tanto do absoluto em seu devir quanto de seu congelamento em determinada forma natural. O organismo expressa essa indiferença entre o absoluto e a sua forma natural ou entre o universal e o particular. “Em todo ser (Wesen) orgânico – sim, em todo ele, mesmo na menor de suas partes! – tu reconheces a infinitude atual e a unidade, cada uma por si e, contudo, como um” (SCHELLING, 2010, p. 83). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 11 O organismo não é apenas fim último da matéria, mas a sua ideia, em constante processo de transformação. Tanto a natureza orgânica quanto a natureza inorgânica são regidas pelo princípio da identidade originária entre o universal e o particular, entre a natura naturans e a natura naturata. Essa identidade não é apenas uma intuição intelectual, mas também a expressão de uma poiesis, a imagem de um artista que produz sua obra a partir de si mesmo, da matéria absoluta. A natureza é para nós um autor, que escreveu em hieróglifos, cujas páginas são colossais, tal como diz o artista em Goethe. Quem quer pesquisar a natureza seguindo apenas o caminho empírico é justamente aquele que frequentemente carece do conhecimento de sua linguagem para tomá-la em sua verdade. A Terra é um livro que é montado a partir de fragmentos e rapsódias de épocas muito diferentes (SCHELLING2 apud GONÇALVES, 2010, p. 29). Ciência e intuição intelectual Schelling, no entanto, não descarta a objetividade do método científico. Ele dedica-se com afinco aos estudos das ciências naturais. Porém, não compartilha a visão de que estas ciências possuem a chave para a compreensão de todo e qualquer fenômeno natural. Pretendendo se desvencilhar da mecânica newtoniana e da empiria que se “restringe à superfície da natureza”, Schelling se declara adepto de uma cosmovisão na qual a natureza é uma autoatividade produtiva, um todo pleno e contínuo que integra as forças naturais, relacionando, organizando e hierarquizando essas forças que compõem o mundo. A natureza, desse modo, não é apenas um simples produto, mas também uma força produtiva. Para acessar a natureza, Schelling, com referência em Fichte, insere no idealismo alemão a noção de intuição intelectual, já exposta por Kant. Trata-se de um ponto crucial de sua filosofia, pois é o meio de se apreender o absoluto. Porém, como mencionado, Schelling se afasta de Fichte ao estender esta noção para além do eu, ou seja, para a natureza. Com efeito, em todos nós reside uma faculdade secreta, maravilhosa, de retirar-nos da mudança do tempo para nosso íntimo, para o nosso eu despido de tudo aquilo que vem de fora, e, ali, na forma de imutabilidade, intuir o eterno em nós. Essa intuição é a experiência mais íntima, mais própria, e unicamente dela depende tudo aquilo que sabemos e cremos de um mundo supra-sensível. Essa intuição, em primeiro lugar, nos convence de que algo é, em sentido próprio, enquanto todo o restante, ao qual transferimos essa palavra, apenas aparece. [...] Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser objeto para nós mesmos e quando, retirado em si mesmo, o eu que intui é idêntico ao eu intuído (SCHELLING, 1979a, p. 24). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 12 Thiago Macedo Alves de Brito Em Schelling, o conceito de intuição intelectual – “uma faculdade secreta” – é a base de sua filosofia. Ele permite, por meio do autoconhecimento, da certeza de si, o contato com o eu absoluto, suprassensível, que atravessa toda a natureza, do inorgânico ao orgânico, com a finalidade de alcançar o seu fim último, o homem, capaz de tomar ciência de si mesmo, de reconhecer-se como ser consciente. Es verdad que, dentro de la filosofía de la naturaleza, yo contemplo a ese sujetoobjeto, que llamo naturaleza, en su autoconstrucción. Para entender esto hay que elevarse a la intuición intelectual de la naturaleza. El empirista no se eleva hasta allí y es precisamente por eso lo que siempre es él el que construye en todas sus explicaciones (SCHELLING, 1996b, p. 271). Em Schelling, intuição intelectual e eu absoluto são conceitos correlatos, na medida em que o objeto não é seu oposto, mas uma produção de si mesmo. “Na intuição intelectual, producente e produto se dão conjuntamente, ou o eu se dá como infinito em e para si mesmo, incondicional e absolutamente, exterior a todo tempo, isto é, na eternidade. O eu” (BARBOZA, 2003, p. 19). O absoluto, do qual trata Schelling, está ancorado na unidade entre a subjetividade e a objetividade, e esta unidade é o princípio da sua filosofia. O absoluto contém a matéria e a forma, e ele se faz a si mesmo, em sua totalidade, ora como matéria ora como forma. Naquele momento, se podemos chamá-lo assim, em que ele é meramente matéria, essência, o Absoluto seria pura subjetividade, fechada e envolta em si mesma: quando ele faz de sua própria essência sua forma, aquela subjetividade inteira, em sua absolutez, se torna objetividade, assim como, na retomada e transformação da forma na essência, a objetividade inteira, em sua absolutez, se torna subjetividade (SCHELLING, 1979c, p. 50). Em Schelling, a matéria e a forma são manifestações do absoluto, mas, como há uma unidade entre a subjetividade e a objetividade, elas não são exteriores a ele. Essa unidade nada mais é o que Platão entendeu como ideia ou o que Leibniz compreendeu como Mônada. “Toda ideia é um particular, como tal, é absoluto; a absolutez é sempre uma, assim como o sujeitoobjetividade dessa absolutez e sua própria identidade; somente o modo como a absolutez na ideia é sujeito-objeto faz a distinção” (SCHELLING, 1979c, p. 51). A ideia é a síntese da identidade absoluta, na medida em que ela mesma é o ato puro de se autoproduzir, o agir eterno enquanto unidade. A forma é o símbolo do infinito no finito, e o que se torna objetivo nela é apenas a própria unidade absoluta. Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 13 O lado real daquele agir eterno torna-se patente na natureza: a natureza em si ou a natureza eterna é justamente o espírito trazido à luz na objetividade, a essência de Deus introduzida na forma, só que nela essa introdução compreende imediatamente a outra unidade. A natureza que aparece, em contrapartida, é a figuração da essência na forma aparecendo como tal ou na particularidade, portanto a natureza eterna na medida em que se corporifica e assim se expõe a por si mesma como particular. A natureza, na medida em que aparece como natureza, isto é, como essa unidade particular, já está, portanto, como tal, fora do Absoluto, não a natureza como o próprio ato-de-conhecimento absoluto (Natura naturans), mas a natureza como mero corpo ou símbolo daquela (Natura naturata). No Absoluto ela constitui, como a unidade oposta, que é o mundo ideal, uma única unidade, mas, justamente, por isso, naquela não está nem a natureza como natureza nem o mundo ideal como mundo ideal, mas ambas como um único mundo (SCHELLING, 1979c, p. 52). A filosofia, como ato de conhecer o absoluto, do qual a natureza é uma de suas manifestações, segundo a ideia absoluta da unidade, é o idealismo. Na natureza, o absoluto se torna em si mesmo particular, um ser que é também ideal, na medida em que é manifestação do próprio absoluto. A natureza, em sua particularidade, é aquela que aparece, que se manifesta enquanto forma. O absoluto nessa forma, como ser finito, é ao mesmo tempo essência e aparência e somente pode ser apreendido pela intuição. Somente pela intuição intelectual, portanto, se conhece o absoluto e somente por meio dela a filosofia penetraria na unidade essencial entre a natureza e o espírito. Esse princípio seria responsável por intuir o desenvolvimento da natureza em toda a sua potencialidade. Mas a intuição intelectual, aceita pelo filósofo, sofre dele restrições ao longo do tempo. Ele descobre que ela não seria a única forma para penetrar nos segredos do absoluto. Em concordância com a sua estética, ele opta pela criação artística como a forma mais acabada para se ter acesso ao incondicionado. Assim como os românticos, para Schelling a obra de arte, na qual a oposição entre o sujeito e o objeto se encontraria anulada, exprimiria de maneira mais pura a identidade dos opostos oriundas do próprio absoluto. Por último, a Ideia que unifica tudo, a ideia de beleza, tomada a palavra em seu sentido superior, platônico. Pois estou convicto que o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Ideias, é um ato estético, e de que verdade e bondade só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta. Os homens sem senso estético são nossos filósofos da letra. Não se pode ter espírito em nada, mesmo sobre a história não se pode raciocinar com espírito – sem senso estético (SCHELLING, 1979b, 42-43). A natureza não se traduz apenas por meio de conceitos. Ela pode ser representada de maneira artística. A formação de um conceito no interior da filosofia da natureza, em que se tem como fundamento a identidade entre o subjetivo e o objetivo, é um processo ao mesmo tempo científico e artístico, que em Schelling não são dois modos diferentes de se conhecer. Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 Thiago Macedo Alves de Brito 14 A produção da obra de arte tem seus fundamentos buscados na própria produção da natureza. Isso não quer dizer que uma seja o reflexo da outra. A natureza serve apenas de inspiração para a produção artística. Mas a liberdade da arte em Schelling reproduz uma liberdade já presente na natureza. Em outras palavras, diante do processo de formação da obra de arte ou da própria natureza o ato de criação é também uma opção entre caminhos alternativos em direção a uma determinada forma. Em Schelling, arte e natureza não ocupam duas esferas distintas de produção do conhecimento, mas uma única esfera capaz de revelar o absoluto em seu movimento incessante entre o universal e o singular. Schelling vê na eterna formação e geração de vida na natureza não somente uma alternância de formas finitas, mas a própria infinidade do ato de conceber do absoluto a si mesmo. Em outras e mais intuitivas palavras: é Deus (ou seja: o absoluto) o único e eterno princípio criador de tudo, princípio esse objetivado tanto na natureza quanto na arte, tanto no pensamento quanto na vontade, a qual – movida a partir de dentro da própria natureza – é, acima de tudo, livre (GONÇALVES, 2010, p. 32). É a beleza artística o ponto de interseção entre o ideal e o real. Ela está em toda parte onde há relação entre a matéria e a luz. Em Schelling, a beleza, em sua forma, é a plena realização da matéria, pois nela o infinito se realiza. A natureza e a arte fazem parte de um processo de formação que envolve a necessidade e a liberdade, ainda que Schelling reconheça que na natureza o nível de consciência ainda está “adormecido”. “A natureza, para Schelling, revelou-se tão livre quanto à arte e ambas, como momentos complementares de um único e infinito processo de atividade autoprodutiva, são concebidas pelo filósofo como igualmente belas” (GONÇALVES, 2010, p. 34). A analogia entre arte e natureza Em conjunto, mas sem submissão, o homem e a natureza realizam uma unidade produtiva baseada numa relação dialética entre o espírito consciente e espírito inconsciente. Enquanto na natureza a finalidade na produção de suas obras se encontra velada, nas obras de arte, de outro lado, a sua produção é feita conscientemente. A arte sintetiza aquilo que a reflexão separa; a unidade entre a natureza e a humanidade. O autor da Filosofia da arte opera como se, da máxima afirmação de identidade dos contrários, a sua dialética devesse superar positivamente as diversas modalidades de dualismo, não ruma a novas sínteses, mas em direção a uma síntese originária, cuja máxima expressão se resume na indiferença do infinito no finito (BARROS, 2011, p. 12). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 15 Schelling é um crítico das filosofias de Kant e Fichte, que separam a natureza e o ser humano como se fossem oposições. Sua alternativa para se livrar desse impasse se dá por meio da arte e de sua visão polimorfa da natureza. Sujeito e objeto se encontram, então, unidos, e a intuição é responsável por desvelar essa síntese originária. Mal o homem se pôs em contradição com o mundo exterior [...] dá-se o primeiro passo em direção à filosofia. É em primeiro lugar com essa separação que começa a especulação; de agora em diante ele separa aquilo que a natureza desde sempre uniu, separa o objeto e a intuição (SCHELLING3 apud BARROS, 2011, p, 11). O desenho é a primeira forma pela qual a unidade é apreendida em sua particularidade, segundo Schelling. Instituindo a forma, a pintura limita-se a um espaço determinado, circunscrevendo-se em seu próprio limiar. No desenho, a espacialidade é a condição de sua particularidade, de sua finitude. A forma torna-se o primeiro passo para o desenho se concretizar. Uma vez que o desenho e a pintura visam, antes de tudo, à exposição das formas, e uma vez que a condição para o belo, embora não de fato para a perfeição e acabamento dele, é a agradabilidade, esta tem que ser buscada no desenho somente até onde não prejudique as exigências mais altas da verdade e da correção. [...] Como o organismo é, interiormente e segundo sua essência, sucessão que se gera de si mesma e a si retorna, ela exprime essa forma também exteriormente pela predominância das formas elípticas, parabólicas e outras, que melhor exprimem a diferença na identidade (SCHELLING, 2001, p. 176). A pintura tem a magia de representar a imagem, mas o objeto representado na pintura não é o próprio objeto; é um ideal tornado real. No entanto, a representação simbólica da pintura não se diferencia substancialmente do objeto concreto, pois ela é a arte que sintetiza a verdade e a aparência. O conflito entre o real e o ideal tem que ser dissipado para, a partir dessa superação, alçar a identidade entre ambos, sendo que é nessa indiferença que a pintura se sobressai ao trazer à tona o sensível por ele mesmo (BARROS, 2011). Schelling pretende desvelar o ideal de natureza a partir do próprio sensível. Portanto, a ideia de uma natureza producente e criadora precisa permanecer na paisagem para que ela não apareça fria. Essa natureza viva é que o artista deve reproduzir à sua maneira, levando em conta a produção da natureza em si mesma. A obra de arte, nesse sentido, é o produto de uma ação inventiva que participa ativamente da reprodução de sua imagem, traduzindo o organismo vivo em suas diversas manifestações. Na beleza, opera-se a passagem do mundo das criaturas para o mundo da criação, da natura naturata para natura naturans, tornando-se assim imperioso mostrar que, com suas criações, as artes plásticas compartilham daquela “realidade inescrutável Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 16 Thiago Macedo Alves de Brito mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza” (BARROS, 2011, p. 21). Em Schelling, a particularidade do objeto o torna universal. O particular produz e, ao mesmo tempo, afirma a universalidade, que não vive apenas de sua limitação, mas também de sua força interna, que se afirma como uma totalidade. A forma enquanto separada da matéria não reproduz o todo, ao passo que a matéria sem a forma não contém sua particularidade. Forma e matéria constituem-se numa relação recíproca de afirmação do todo na sua unidade originária. Vigora aqui o aceite de que, enquanto ponderamos apenas sobre sua forma, a matéria será mera abstração; mas, ao considerarmos apenas a matéria, a forma permanecerá uma impressão disforme. Para ser bela, é necessário que a forma seja viva e sua vida, forma. Somente quando esta última viver em nossa sensibilidade lhe será dado expor-se vivamente ao nosso entendimento (BARROS, 2011, p. 24). A filosofia de Schelling associa a arte à natureza ao estabelecer o vínculo entre a forma e o conceito. O conceito transcendente articula o particular com o infinito. Na arte, percebe-se uma criação que nem sempre é consciente. Entretanto, a ligação entre essa atividade intuitiva e a consciência engendra a arte mais elevada. Não se percebe a arte autônoma, independente do sujeito que a produz. E onde a arte eleva-se ao conceito do entendimento ela se assemelha às obras da natureza. No entanto, na natureza o conceito vivo e consciente mostra-se adormecido, enquanto que na obra do artista a atividade consciente prevalece: a atividade da natureza e a do artista não coincidem. O artista, por exemplo, ao imitar a natureza produziria larvas, mas jamais obras de arte. Ele tem que caminhar no sentido de encontrar o espírito da natureza, expressando-se por meio de suas formas e procurando capturar o movimento espiritual, a essência da natureza. Desse modo, é possível para o artista criar algo verdadeiro. Melhor, mais uma vez, deixar Schelling com a palavra: Tanto na natureza quanto na arte, a essência busca efetivar-se e expor a si mesma primeiramente no particular. Por isso, em ambas, a maior rigidez da forma dá-se a conhecer logo no início; pois, sem limitação, o ilimitado não poderia aparecer; se não houvesse a dureza, a brandura tampouco poderia existir; e se a unidade deve fazerse sentir, isso só pode acontecer mediante particularidade, isolamento e oposição. A ser assim, de início, o espírito criador aparece inteiramente perdido na forma, inacessível, fechado e ainda austero em sua grandeza. Mas quanto mais ele logra unir sua inteira completude em uma única criatura, tanto mais ele reduz, passo a passo, sua rigidez, lá onde delineou inteiramente a forma, a ponto de nela dormitar e se apreender com satisfação, ele parece regozijar-se e começa, digamos, a moverse em linhas suaves. Esse é o estado consoante à mais bela maturidade e florescimento, no qual o puro invólucro se apresenta com perfeição e o espírito da natureza torna-se livre de suas amarras, sentindo sua afinidade com a alma (SCHELLING, 2011, p. 53). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 17 Aproximações entre Schelling, Goethe e Kant A filosofia da natureza de Schelling é um complemento de seu idealismo. Ela mostra que o eu possui uma história do seu desenvolvimento natural até a consciência de si. Não há, portanto, separação entre o sujeito e o objeto, assim como entre a experiência e a especulação. O idealismo se configura em duas vertentes de uma mesma filosofia geral. O filósofo da natureza trata seu objeto como o filósofo transcendental trata o eu, portanto a natureza mesma como incondicionada em sua atividade. Esta, pensada nos moldes da chamada substância absoluta espinosiana, recebe justamente o nome de natura naturans, a qual, não se enclausurando em si, manifesta-se como natura naturata (BARBOZA, 2003, p. 66). Schelling considera a natura naturata como a manifestação real e efetiva da natura naturans. Pela realidade da natureza chega-se ao conceito de alma cósmica, tratada como a vida universal, uma síntese das ideias de organismo em Kant e da biologia em Kielmeyer. A alma cósmica possui também um substrato racional ao mostrar que o desenvolvimento da natureza envolve metamorfoses e polaridades. Influência de Goethe, sem dúvida, por meio de seus conceitos de metamorfose das plantas e da importância atribuída por ele ao magnetismo. Para Goethe, a polaridade originária é o fio condutor de sua análise, que penetra e anima todas as formas. Tudo que aparece enquanto fenômeno natural tem a sua polaridade. A vida natural, para ele, apresenta “diástoles eternas”. Nos escritos sobre a metamorfose das plantas, Goethe introduz um esboço do que entende por polaridade: um par de oposto que impulsiona o desenvolvimento do organismo. Dessa maneira, a diferença específica desaparece para dar vez à relação entre polos de atração e repulsão, entre aparecer e desaparecer ou, na perspectiva mais geral, entre ação e reação, que fazem parte de uma unidade em movimento (BARBOZA, 2003). O conceito de polaridade em Schelling tem, portanto, em Goethe as suas raízes. Isso se deve graças a seus encontros em Weimar, entre 1782 e 1802. Nessa cidade, ele lecionou filosofia a convite do poeta. Goethe também será seu tutor em Jena, onde o filósofo vai lecionar a partir de 1799. Mas foi de Kielmeyer que Schelling absorveu seu conceito fundamental da filosofia da natureza, o qual o ajudará na passagem da natura naturans para a natura naturata: o organismo e a sua organização (BARBOZA, 2003, p. 73). No discurso de Kielmeyer, proferido em 11 de fevereiro de 1793 na Stuttgarter Karlsschule, os fenômenos animados, ou “organizações”, são considerados os mais apropriados para nos arrebatar com o “sentimento de grandeza da natureza”; o mundo orgânico apresenta-se numa série de organizações e “parece” avançar numa “trajetória de desenvolvimento” (Entwikclungsbahn). Animando-o, identificam-se três Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 18 Thiago Macedo Alves de Brito forças biológicas básicas: (1) a sensibilidade, ou a capacidade de reação à excitação recebida; (2) a irritabilidade, ou a capacidade de se contrair dos músculos; e (3) a força reprodutiva (BARBOZA, 2003, p. 73). No ser humano a sensibilidade encontra-se mais desenvolvida, diminuindo nos animais inferiores e desaparecendo nas plantas, ao passo que a irritabilidade, na medida em que se passa do inorgânico para o orgânico, diminui. Kielmeyer propõe, dessa maneira, que a diferença entre o orgânico e o inorgânico não se desfaz quando se parte do princípio de que as mesmas forças atuam tanto em um quanto em outro, mudando apenas o seu grau de desenvolvimento. Schelling acrescenta o sentido de energia vital, a substância absoluta, da qual surgem as diferentes etapas de transformação do organismo.4 O conceito de ser organizado como um fim natural, a partir de Kant, ajuda na formulação de Schelling da seguinte maneira: ele abre espaço para a compreensão da natureza como se nela estivesse agindo uma finalidade interna, cujo fundamento é uma ideia que escapa ao entendimento, mas que é acessível pela intuição. A finalidade se mostra quando se toma a natureza como um todo que determina suas formas e se expressa por meio delas. Schelling, assim, distancia-se de Kant ao ver a possibilidade de penetrar nos segredos da natureza a partir da intuição. “A intuição intelectual que remove o limite da finitude colocado ao entendimento, permite o acesso ao eu absoluto, à substância cósmica, revelando que esta é uma força viva impulsora do todo” (BARBOZA, 2003, p. 78). Ao conferir realidade à natureza, concebendo-a como ente finito condicionado pelo absoluto e apreendida por meio da intuição intelectual, Schelling concebe o orgânico como o momento visível do desenvolvimento do incondicionado. Em seu conceito de organismo, espírito e natureza encontramse unidos. Ou, em outras palavras, a liberdade e a necessidade se unem no mesmo fenômeno. Se a liberdade é a vida do organismo, a necessidade é a expressão de sua forma finita, da sua materialidade fenomênica. Em concordância com Goethe, o princípio vital é aplicado tanto ao orgânico quanto ao inorgânico. Ou seja, a polaridade de forças se concretiza tanto em um quanto no outro, variando apenas em seu grau. Schelling remete à ideia de um princípio organizador, que forma um mundo a partir de si mesmo, ou melhor, de suas forças polares interagindo entre si. “Aquilo que em Kant era mera totalidade da representação, juízo reflexionante teleológico que regula a investigação sistemática da natureza, transforma-se em princípio constitutivo do universo e do que há de mais básico nele, a matéria” (BARBOZA, 2003, p. 82). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 19 Considerações finais: Os limites da filosofia da natureza de Schelling segundo Nicolai Hartmann Em Schelling, o caminho da sua filosofia da natureza parte do objetivo em direção ao subjetivo, enquanto que o caminho de sua filosofia especulativa vai do subjetivo ao objetivo. É dessa maneira que se constrói a unidade dialética entre seu Sistema do Idealismo Transcendental (1800) e seus esboços, escritos ao longo dos anos, sobre Filosofia da Natureza (1797-1806). Se para Kant a pergunta essencial de sua filosofia era: como o sujeito chega ao objeto a partir dos juízos e das categorias? A filosofia da natureza de Schelling inverte a questão: “como o objeto, aparentemente fora do sujeito, chega até ele? O que está em questão para Schelling é a origem do homem, o problema de sua gênese histórica oriunda da natureza, a passagem do objeto ao sujeito, do espírito inconsciente para o consciente (BARBOSA, 2005). Barbosa (2005) vê limites na filosofia da natureza de Schelling. Considera que há mesmo um retrocesso em relação a Kant, na medida em que ele postula uma identidade entre sujeito e objeto e assimila o conhecimento como uma tomada de consciência da própria natureza por meio do homem. Não há como afirmar, segundo ele, como faz Schelling, que o fim último da natureza seria o homem ou a identidade dele com a natureza. Em primeiro lugar, simplesmente não se sabe se o tornar-se consciente da natureza é sua meta mais alta e última, nem que isto tenha se dado pela primeira vez no homem e pelo homem. Além disso, esta identidade originária de sujeito e objeto é o que resulta de uma ilícita projeção retrospectiva de uma meta supostamente atingida do homem pelo homem (BARBOSA, 2005, p. 243). A transposição da filosofia transcendental para uma filosofia da natureza simboliza a passagem de um princípio de identidade entre sujeito e objeto para um princípio de identidade e de não identidade entre sujeito e objeto. A natureza, nesse sentido, ou é inconsciente e objetiva ou é consciente e subjetiva. “A produção inconsciente corresponde à infinita multiplicidade do existente; já a produção consciente àquela própria ao homem, ele mesmo um produto da natureza” (BARBOSA, 2005, p. 243). Hartmann (1976) também reconhece que para Schelling na natureza há criação de uma inteligência inconsciente, o espírito adormecido, cujas fases de seu desenvolvimento são produtos da própria natureza e o seu grau último é o espírito consciente do homem. A natureza viva é o ponto de partida. Mas para Hartmann, Schelling tem muito mais de teólogo especulativo do que de investigador científico. É importante ter presente, desde o começo, esta franqueza da Filosofia da Natureza de Schelling; a elevação especulativa a que ascende, e do alto da qual o conjunto Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 20 Thiago Macedo Alves de Brito funciona como um impôtente edifício intelectual, só pode ser apreciada com exactidão à luz deste pressuposto. A ideia básica é muito simples. Na natureza existe uma organização prevalecente, organização que não se pode conceber sem uma força produtiva. Tal força necessita, por sua vez, dum princípio organizador. Este não pode ser um princípio cego da realidade, tem de ter produzido teleologicamente a adequação contida nas suas criações. Portanto, só um princípio espiritual pode ser capaz disto, quer dizer, um espírito exterior ao nosso espírito. Mas, já que não podemos admitir uma consciência fora do Eu, o espírito que cria na Natureza há-de ser um espírito inconsciente. [...] Schelling agarra-se a esta criação inconsciente, mas coloca-a no Objectivo-real, não sendo o Eu, para ele, o princípio criador espiritual, mas sim o que se encontra fora dele. É um princípio extraconsciente do real e, portanto, a Filosofia da Natureza de Schelling, comparada com a Doutrina da Ciência, é inteiramente realista. Não obstante, é um princípio espiritual e, portanto, é também, nessa medida, um princípio ideal. É, ao mesmo tempo, ideal e real, e daí a teoria que nele se baseia poder designar-se com certa razão ‘idealismo real’ (HARTMANN, 1976, p. 135-136). Schelling transforma as suas analogias dos fenômenos naturais em identidades metafísicas. O material fenomênico anterior a qualquer interpretação não existe separado da pureza de toda interpretação. O espírito inconsciente tem que ser uma força pura, sem qualquer substrato, porque o real só por meio dele poderá existir. O autor encontra no mundo objetivo, natural, o mesmo princípio ideal da atividade pura do qual Fichte havia partido. A Filosofia da Natureza, de Schelling, é um modelo puro de filosofia da unidade. O pensamento metafísico que lhe serve de base é um pensamento de identidade: unidade de natureza e espírito, semelhança essencial do espírito em nós e da natureza fora de nós. A natureza não está confinada no exterior e o espírito no interior; também fora de nós domina o mesmo espírito; também em nós a mesma natureza (HARTMANN, 1976, p. 136). A partir de uma unidade natural em si mesma homogênea, sem oposição, brotam a multiplicidade e a diferenciação. Da identidade surge um fator de cisão que se opõe a essa unidade, mas, ao mesmo tempo, coexiste com ela. A cisão na natureza é o momento de separação dos elementos comuns, que antes compunham a unidade e que posteriormente estarão presentes nos diferentes fenômenos naturais. Schelling transpõe o pensamento dialético fichteano da razão para a natureza. Não está na consciência a síntese das teses e antíteses da polaridade, mas na natureza ou na inteligência inconsciente. Sua dialética não está no desenvolvimento ideal da razão, como em Fitche, mas no desenvolvimento ideal da natureza. O processo evolutivo da natureza corresponde ao princípio de distinção progressiva, cujos primórdios se encontram na ideia de indiferença absoluta, mas que, ao mesmo tempo, obedece a um princípio de produção progressiva, no qual se exemplifica a tendência original à unidade. Na natureza o espírito que cria mas não reflete, é o espírito inconsciente, adormecido. As séries graduais dos fenômenos Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 21 naturais indicam o caminho percorrido pelo espírito até a chegada a ele mesmo, a ascensão de sua autoconsciência (HARTMANN, 1976). Em todo conflito de forças predomina a força primordial unitária, a indiferença absoluta, uma força unitária e homogênea que quanto mais se desenvolve produz de si mesma sua própria oposição, que se reduz à ação recíproca de forças polares. A natureza é um grande organismo vivo, uma totalidade, em que tudo se encontra harmonicamente conectado entre si. O organismo vivo de Schelling só é possível a partir do fundamento que cria o organismo, o espírito. O milagre da natureza não é, de modo algum, saber como pode organizar-se a vida nela; é, pelo contrário, este: como a vida, que desde o começo está oculta na natureza, tenha podido percorrer, aparentemente, tantos graus não vivos de formas para tornar sua aparição visível unicamente na planta e no animal (HARTMANN, 1976, p. 139-140). Em Schelling, o primordial não são os produtos orgânicos da natureza, mas, precisamente, a sua organização. “O organismo não é propriedade ou modo de existência de coisas naturais particulares; inversamente, estas são outras tantas delimitações ou formas de intuição do organismo universal” (HARTMANN, 1976, p. 139). Schelling toma de Spinoza, também para Hartmann, a unidade da natura naturans como princípio de todas as coisas. Já a continuidade das formas naturais e as finalidades intrínsecas nelas são heranças de Leibniz, da sua Monadologia. Porém, os encadeamentos desse contínuo, segundo princípios formais externos e internos, provêm da doutrina platônica das ideias5, assim como o seu conceito de potências da natureza. São noções de Deus (absoluto) e todas elas estão contidas nas ideias de Deus. A sua existência mutuamente separada na natureza, as suas relações que penetram através do mundo e que, como forças, o regem não constituem a sua essência própria, mas só o seu modo de aparecimento, o qual é objectivo e necessário porque só através dele o espírito de Deus chega à autointuição no Eu do homem (HARTMANN, 1976, p. 142). A mistura em Schelling da filosofia da natureza com a religião, uma criação divina que emana de todos os outros fenômenos, inclusive os sociais, é bem destacada por Hartmann. O materialismo de Schelling é um deslocamento do funcionamento do espírito para a natureza, mas se perde numa concepção divina, panteísta, mística de natureza. Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 Thiago Macedo Alves de Brito 22 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Ricardo. Sobre a tarefa da filosofia da natureza: uma reflexão a partir de Schelling. In: PUENTE, Fernando Rey; VIEIRA, Leonardo Alves. As filosofias de Schelling. 2005, p. 241-251. 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Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612 APROXIMAÇÕES ENTRE NATUREZA, CIÊNCIA E ARTE EM FRIEDRICH... 23 de la naturaleza. Tradução Arturo Leyte. Madrid: Alianza Universidad, [1800], 1996b, p. 175-255. ______. Filosofia da arte. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: EDUSP, [1804-1805], 2001. ______. Introducción al proyecto de un sistema de filosofia de la naturaleza: o sobre el concepto de la física especulativa y la organización interna de un sistema de esta ciencia. Tradução Arturo Leyte. In: SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph Von. Escritos sobre filosofía de la naturaleza. Madrid: Alianza Universidad, [1799], 1996a, p.119-174. ______. Sobre a relação das artes plásticas com a natureza. Tradução de Fernando R. de Moraes Barros. Belo Horizonte: Editora UFMG, [1807], 2011. FILHO, Rubens Rodrigues Torres. Schelling vida e obra. In: SCHELLING, Friedrich Von. Obras escolhidas. São Paulo: Editora Nova Cultural. 1979, p. VXIV. VIEIRA, Leonardo Alves. Schelling. 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A vida é a essência intuível na finalidade interna de cada ser na natureza. Em cada organização “tem de” imperar “a unidade suprema do processo vital”, “um único e mesmo processo vital individualiza-se ao infinito em cada ser particular”” (BARBOZA, 2003, p. 83). 5 As ideias de Platão são formas, princípios formais espirituais, modelos reais das coisas naturais. São os permanentes nos fluxos dos fenômenos; a essência do real precedido de toda experiência no a priori natural do ente (HARTMANN, 1976). Problemata: R. Intern. Fil. v. 7. n. 2 (2016), p. 05-23 ISSN 2236-8612