HEGEL, SCHELLING E A VERDADE NA ARTE Douglas L. Pereira

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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982-6613
Vol. 3, Edição 7, Ano 2008.
HEGEL, SCHELLING E A VERDADE NA ARTE
Douglas L. Pereira
[email protected]
Rio de Janeiro – RJ
2008
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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982-6613
Vol. 3, Edição 7, Ano 2008.
HEGEL, SCHELLING E A VERDADE NA ARTE
Douglas L. Pereira1
[email protected]
Resumo
A obra O Sistema do Idealismo Transcendental é o sistema que posiciona a arte como o
organon de toda a filosofia. Nessa obra, Schelling apresenta a síntese entre liberdade e
necessidade em um único produto: o produto artístico. De certa forma, a produção artística em
Schelling está articulada não só à produção natural – necessidade – como também à produção
livre – liberdade –, e só isso já serve para dizermos que Schelling, assim como Hegel, também
está em direto diálogo com a filosofia crítica kantiana. Pois, ainda que Schelling e Hegel
admitam, em certa medida, muitos pressupostos da filosofia crítica, o modo como pensam a
relação da arte com a verdade é bem diverso. Por um lado, temos uma filosofia que permite
um acesso direto e imediato ao absoluto e, por outro, uma que entende esse acesso
mediatizado. Hegel, com seu senso histórico, foi o grande crítico dessa imediatidade e não
poupou adjetivos – na Fenomenologia do Espírito, por exemplo – para desqualificar como
misteriosa e obscura essa forma de acesso à verdade.
Palavras-chave: Arte – Verdade – Beleza.
I
O caminho que parte da natureza e tem seu fim no homem é o processo que vai da
não-consciência para a consciência. O homem, como termo último dessa passagem, é o
membro que dá sentido aos outros elementos naturais, pois é através dele que a natureza pode
se autorefletir. No homem, necessidade natural e liberdade se encontram, pois a natureza, a
partir de uma força inconsciente, foi capaz de gerar um ser consciente. A produção que se
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Graduado em Filosofia pela UERJ e mestrando em Filosofia pela PUC-Rio.
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propõe aqui deve percorrer o caminho inverso, isto é, da consciência para a não-consciência,
do sujeito para a natureza. O produto, ao mesmo tempo em que foi produzido livre e
conscientemente deve aparecer como produto de uma atividade necessária, dessa forma fruto
também de uma atividade natural cega, capaz de suspender a contradição entre liberdade e
necessidade, consciência e não-consciência. Nesse sentido, a contradição que fez surgir a
consciência da não-consciência, ou seja, o sujeito a partir da natureza, deve aparecer agora
reunida num produto inconsciente, entretanto, agora derivado da consciência, do sujeito.
Na atividade natural inconsciente que teve como fim o homem, essa unidade ainda
não era refletida de forma consciente, isto é, no homem, mas antes, era reflexo de uma
contradição que se encontrava na natureza e que só posteriormente gerou a consciência, uma
contradição que não aparecia ainda no próprio sujeito, na consciência. Agora, essa
contradição deve mostrar-se dentro da subjetividade, em uma produção que é ao mesmo
tempo resultado de uma ação livre, mas também necessária, unificando em um produto a
contradição entre consciência e não-consciência, entre liberdade e necessidade. Logo, como o
produto artístico deve expressar essa identidade, ele não pode ser fruto somente de uma
vontade subjetiva, um desejo, tendo que ser resultado também de uma força inconsciente, que
numa contradição com a consciência cria um produto artístico singular. Sobre este ponto,
Schelling deixa claro que:
(...) a identidade de ambas deveria ser suprimida unicamente a propósito da
consciência, mas a produção deve terminar na não-consciência; logo, tem de
existir um ponto onde ambas coincidem e, inversamente, onde ambas
coincidem, a produção tem de deixar de aparecer como livre. (SCHELLING,
1998, p. 4122).
Uma produção capaz de cessar a eterna contradição não pode ser uma ação
voluntária da consciência, mas antes deve ser uma ação orientada por uma força inconsciente
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Todas as citações referentes à obra SCHELLING F. W. J. Sistema del Idealismo Trascendental. Barcelona:
Antropos, 1998, a tradução pertence ao autor do presente artigo.
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e um ímpeto de criar que escapam ao controle do sujeito e independem de sua vontade. Essa
só pode ser, para Schelling, a produção genial, pois:
(...) como se denomina destino aquele poder que através do nosso agir livre,
sem o nosso saber e mesmo contra o nosso querer, realiza fins nãorepresentados, designa-se pelo obscuro conceito de gênio o incompreensível
que acrescenta o objetivo ao consciente, sem intervenção da liberdade (...).
(SCHELLING, 1998, p. 413).
Destinado, o gênio é o medium dessa relação – e nisso Schelling remete-se a Kant –,
pois é aquele que torna possível a aparição do objeto que é resultado da contradição entre o
consciente e o não-consciente, entre liberdade e necessidade. O caráter genial da obra de arte
revela então essa contradição e se resolve em um produto que provoca
(...) o sentimento de uma harmonia infinita, e o fato de que este sentimento
que acompanha a conclusão é ao mesmo tempo uma comoção já prova que o
artista não atribui [apenas] a si mesmo a resolução integral da contradição
que vê em sua obra, mas a um favor voluntário de sua natureza.
(SCHELLING, 1998, p. 415).
Na medida em que é fruto de uma contradição que age no sujeito e o impulsiona a
produzir – não havendo, portanto, no produto artístico primazia de um elemento sobre o outro,
isto é, nem do consciente sobre o não-consciente nem vice-versa –, a síntese final dessa
atividade só pode ser um produto que reúne em si a identidade do consciente e do nãoconsciente, do livre e do necessário. Assim, a tensão conflituosa entre ambas as atividades
termina numa obra-de-arte. O gênio é somente o intermediário e portador dessa força
produtiva, pois, ainda que muitos elementos artísticos possam ser aprendidos e ensinados, sua
real criação é uma unidade entre duas atividades, agindo de forma livre e ao mesmo tempo
involuntária. Além disso, na produção genial, o artista nunca está subordinado a nenhuma
regra de execução, no sentido de produzir uma arte que seguirá por caminhos dados de fora,
externamente. Segundo Schelling, a obra-de-arte deve ser a expressão de uma “quietude e de
uma grandeza tranqüila, mesmo ali onde deve ser exprimida a tensão máxima da dor ou da
alegria” (SCHELLING, 1998, p. 418).
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No gênio, a produtividade inconsciente coincide com a atividade livre e consciente e,
assim, na obra-de-arte pode aparecer a identidade entre liberdade e necessidade, sujeito e
objeto, espírito e matéria. A possibilidade de diferentes interpretações que atribuem à obra-dearte uma infinidade de significados, dos quais não podemos afirmar se foram ou não expostos
com a intenção do artista, é o que caracteriza o involuntário na obra e, portanto, o elemento
genial.
Desse modo, a contradição infinita apresentada em um objeto finito é, para Schelling,
a própria expressão da beleza. Na obra-de-arte, a beleza é resultado tanto da atividade livre do
sujeito como fruto de uma atividade natural, pois a mesma atividade produtiva que fez surgir
o homem como membro último da cadeia orgânica dos seres naturais também fez surgir à
obra-de-arte. No entanto, como o produto final da natureza ainda não é resultado da
contradição entre liberdade e necessidade, consciência e não-consciência, a beleza não pode
se manifestar em um produto natural. O produto orgânico enquanto fruto da ação inconsciente
da natureza é anterior à separação entre o sujeito e objeto, entre liberdade e natureza. Por isso,
como não expressa a tensão entre o que acontece no sujeito, seu resultado ainda não pode
aparecer como belo, ainda que Schelling caracterize a natureza como “a poesia originária,
ainda não-consciente” (SCHELLING, 1998, p. 159).
Em suma, a natureza é incapaz de apresentar em um produto singular essa
contradição infinita que atravessa toda criação genial. O que a natureza apresenta na forma de
um todo orgânico vivo, em perfeita harmonia, a obra-de-arte apresenta num único produto.
Aquilo que a filosofia não pode apresentar externamente é deixado à arte, capaz de mostrar
em um produto, em uma obra, a identidade originária entre a atividade não-consciente e
consciente, entre liberdade e necessidade, espírito e matéria. Sendo assim, a arte pode ser
pensada como o órgão geral da filosofia, porque apresenta objetivamente aquilo que a
filosofia somente pode realizar subjetivamente – já que intui esse absoluto somente através do
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pensamento – e, por isso, então ela se constitui no “único órgão verdadeiro e eterno da
filosofia, e ao mesmo tempo seu documento, que reconhece sempre o que a filosofia não pode
apresentar externamente, ou seja, o não-consciente no agir e no produzir e a sua identidade
originária com o consciente” (SCHELLING, 1998, p. 425).
II
A crítica de Hegel ao sistema de Schelling recai justa e enfaticamente sobre o seu
ponto nevrálgico, ou seja, sobre a possibilidade de um acesso direto ao absoluto através de um
produto, pois, na medida em que somente através de uma intuição podemos ter acesso ao
absoluto, portanto um acesso imediato, a necessidade de Hegel pensar um termo mediador na
passagem do particular ao universal o coloca de frente com o Sistema do Idealismo
Transcendental. No entanto, embora Hegel não admita esse acesso imediato ao absoluto, isso
em nada quer dizer que estamos voltando aqui para uma postura kantiana, em que não é
possível nenhum modo de acesso ao absoluto, ou seja, à coisa-em-si. De certa forma, Hegel
concorda com Schelling em que o absoluto é o ponto de unidade entre sujeito e objeto, entre o
espírito e o sensível, mas discorda da forma como podemos ter consciência ou conhecimento
deste momento, pois, ainda que Hegel enfatize a arte como atividade humana, ele não está
disposto a pensá-la como fruto da genialidade, de uma força inconsciente que age no
indivíduo e o mobiliza a produzir artisticamente. Sendo assim, “embora o talento e genius do
artista tenham também em si mesmos um momento natural, eles necessitam essencialmente da
formação pelo pensamento, da reflexão no modo de sua produção, bem como do exercício e
habilidade no produzir” (HEGEL, 1999, p.48).
Na medida em que o belo para Hegel apresenta-se como “aparência sensível da
Idéia” (HEGEL, 1999, p.126), sua exposição na matéria deve então seguir um percurso que
vai da forma de arte mais sensível e menos espiritualizada até, enfim, a mais alta
espiritualização da matéria, “pois o espírito (...) deve passar por um trajeto de etapas”
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(HEGEL, 1999, p.88) que marcam, de fato, os momentos em que a verdade se manifesta no
particular, no sensível. Desse modo, em seu processo de idealização da matéria, a arte
apresenta-se dividida em arte simbólica, clássica e romântica. No entanto, como seria fácil
pensar, essa diferença no grau de espiritualização do sensível não é uma qualidade negativa
intrínseca que determinadas obras possuem, mas antes o efeito do espírito de uma época que
faz com que a Idéia se realize na matéria com determinado conteúdo. Não nos interessa aqui
detalhar cada momento, mas apenas sublinhar como a compreensão histórica e processual
hegeliana difere do acesso imediato ao absoluto permitido pela arte no pensamento de
Schelling.
Portanto, enquanto Schelling buscava pensar a produção natural, a artística e a
filosófica como formas do absoluto se apresentar integralmente, em que a diferença pesava
somente no que diz respeito à consciência ou inconsciência dessa expressão – natureza:
inconsciente; arte: consciente-insconsciente; e filosofia: consciente –, Hegel pensa que essas
formas são absolutamente diferentes, pois cada uma corresponde a uma etapa necessária do
desenvolvimento do absoluto na objetividade, no mundo. O absoluto não se manifesta todo,
íntegro em cada etapa histórica. Com isso, a natureza, como etapa primeira do
desenvolvimento, é incapaz de qualquer espiritualização, sendo o grau absolutamente ausente
de Idéia e, por isso, uma mera exterioridade bruta.
Nesse sentido, a crítica de Hegel incide no ponto em que a unidade entre sujeito e
objeto, entre natureza e espírito só pode acontecer depois do espírito ter percorrido certas
etapas históricas. Quando Hegel, na introdução à sua Estética, afirma que:
A bela arte é, pois, apenas nesta sua liberdade verdadeira arte e leva a termo
a sua mais alta tarefa quando se situa na mesma esfera da religião e da
filosofia e torna-se apenas um modo de trazer à consciência e exprimir o
divino, os interesses mais profundos da humanidade, as verdades mais
abrangentes do espírito (HEGEL, 1999, p.32).
O que de fato está em jogo é a manifestação do divino no real e, por conseguinte, a
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expressão temporal do espírito através do sensível.
Por essa razão, na medida em que a arte exprime a verdade através de obras
históricas, Hegel pôde pensar o tão discutido ‘fim da arte’, que só acontece porque a forma
como o divino se manifesta no sensível nunca permanece a mesma, posto que a matéria
sensível esteja submetida à temporalidade. Assim, por conta desse caráter processual, a
expressão do divino se deslocaria, com o tempo, para outra forma, e então podemos pensar o
fim da arte como o término de um determinado modo do espírito se manifestar, isto é, do fim
de toda uma forma da verdade aparecer aos homens. Decerto, quem chega ao seu término não
é a arte efetivamente, mas a Forma daquele conteúdo divino acontecer em uma matéria
determinada. Quando a arte medieval ou romântica alcança o ponto mais alto de
espiritualização da matéria, então ela deve dar lugar para outra Forma do espírito se
manifestar, já que seu conteúdo não cabe mais nessas Formas sensíveis. Na clássica passagem
em que Hegel anuncia essa tese, ele afirma que “ela [a arte] também perdeu para nós a
autêntica verdade e vitalidade e está relegada à nossa representação, o que torna impossível
que ela afirme sua antiga necessidade na realidade efetiva e que ocupe seu lugar superior”
(HEGEL, 1999, p.35).
Contrariamente, do ponto de vista do que cada um esperava do papel ou da posição
da arte, Schelling expõe – quase três décadas antes de Hegel apresentar a sua Estética pela
última vez em 1828-29 – no Sistema do Idealismo Transcendental toda a sua esperança na
possibilidade de um dia o pensamento expressar-se poeticamente, retornando, afinal, a uma
unidade quase mítica entre natureza, arte e pensamento. Nas palavras a seguir, em que deixa
essa tarefa para a geração futura, diz:
Mas como pode surgir uma nova mitologia, que não pode ser invenção do
poeta singular, mas de uma nova geração que por assim representa apenas
um único poeta, é um problema cuja solução só deve ser esperada dos
destinos posteriores do mundo e do curso mais afastado da história.
(SCHELLING, 1996, p. 422).
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REFERÊNCIAS
HEGEL, G. W. Cursos de Estética. Trad. Marco Aurélio Werle. Vol 1. São Paulo: EdUSP,
1999.
SCHELLING, F. W. J. Sistema del Idealismo Trascendental. Barcelona: Antropos, 1998.
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