GT1: As ameaças à Democracia e aos Direitos Humanos na atual

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GT1: As ameaças à Democracia e aos Direitos Humanos na atual conjuntura brasileira e latinoamericana
A DESCONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DEMOCRÁTICA DO SUS: APONTAMENTOS
PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA NO CAMPO DO SERVIÇO SOCIAL
Camila Fernandes Bezerra da Silva1
Clívia Alves de Moraes Lira2
Resumo: O presente trabalho objetiva fornecer reflexões necessárias para a compreensão da
perspectiva de saúde como direito social associada ao processo democrático brasileiro
evidenciando as estratégias atuais existentes para a desconstrução de tal perspectiva. Esta leitura
será realizada abordando as principais transformações implementadas pelo processo, em curso, de
reestruturação do capital e do Estado. A partir de uma revisão bibliográfica de obras de referência
no campo do Serviço Social e da teoria social crítica, far-se-á uma breve exposição de
características centrais dos modelos de saúde no Brasil para mostrar algumas das suas
singularidades. Transita-se entre as características principais da construção da política de saúde
no Brasil, ressaltando seus aspectos fundamentais assim como suas modificações ao longo da
história. Destaca que as lutas encabeçadas pelo movimento de Reforma Sanitária mudaram a
perspectiva de saúde, ampliando-a, transformando-a em direito de todos e dever do Estado e
inserindo-a na proposta de democracia, consolidada através da Constituição de 1988. Como
resultado das lutas sociais, instaurou-se o Sistema Único de Saúde (SUS), universal, gratuito e
equânime, onde o setor privado deveria atuar apenas em caráter complementar. Contudo, o que se
assiste atualmente é uma dinâmica de retrocesso ao que havia sido conquistado. A tensão entre a
garantia e o desmonte da saúde pública democrática é uma característica permanente no Brasil.
As velhas nuances de privatização do social, focalização, segmentação, desfinanciamento, entre
outras, as quais levam a centralização das problemáticas no indivíduo, a perspectiva médico
curativa e hospitalocêntrica, que são próprias da construção da política de saúde pública no
Brasil, são atualizadas. Conclui-se, que o processo de reestruturação da saúde para beneficiar o
capital, apresenta-se como uma das faces de desconstrução dos princípios democráticos no Brasil,
o qual percebe a saúde de forma ampliada. Retroceder na consolidação do direito a saúde pública
é retroceder também na proposta democrática do país
Palavras-chave: Política de saúde. Direitos. Serviço Social.
1
Mestranda em Serviço Social pela UFPE.
2
Mestranda em Serviço Social do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPB.
1
INTRODUÇÃO
Para uma compreensão das consideráveis mudanças que vem incidindo sobre a política de
saúde brasileira, é necessário localizá-la no cenário político, social e econômico da atualidade,
uma vez que, suas determinações estão pautadas pela lógica de acumulação e, portanto,
reprodução do capitalismo na atual conjuntura. As políticas sociais são objeto de disputa e se
associam à forma como o capitalismo se produz e se reproduz, bem como ao movimento da
classe trabalhadora na luta pela defesa ou busca por direitos.
Dentre as políticas sociais componentes da Seguridade Social brasileira, a saúde recebe os
impactos da reestruturação do capital de forma particular. O presente estudo busca compreender
as bases e a razão de ser desses impactos tendo por objetivo fornecer os subsídios necessários
para a compreensão da dinâmica da política de saúde brasileira na atualidade, inserida nas
estratégias de reestruturação do capital e do Estado.
A partir de uma revisão bibliográfica, far-se-á uma breve exposição de características centrais
dos modelos de saúde no Brasil para mostrar algumas das suas singularidades, sustentando-se em
autores que estudam as políticas sociais e a saúde, especificamente, como: Elaine Behring (2008)
Inês Bravo (2009) e Raquel Soares (2010). Além disso, para tratar do contexto de crise do
capital, ancora-se em alguns dos autores da teoria social crítica, tais como: Mandel (1982),
Harvey (2009; 2005) e Mészáros (2009; 2012).
É justamente com a recente crise econômica deste sistema, iniciada nos anos 1970, que o
capital elabora estratégias para sua reorganização. Nesse sentido, busca garantir sua contínua
lucratividade na qual o Estado tem papel essencial: ajustar-se de modo a atender as atuais
necessidades do capitalismo, causando graves consequências no âmbito da seguridade social
estabelecida pela Constituição de 1988.
Intensas lutas sociais pautadas por uma proposta democrática marcaram a institucionalização
do Sistema Único de Saúde (SUS), consolidando constitucionalmente o dever do Estado na sua
garantia e efetivação enquanto política de saúde universal. Entretanto, tal proposta nasce em meio
às investidas da conjuntura internacional a qual visa à sua desconstrução. É sobre esta
particularidade que serão trazidas reflexões sobre a saúde pública brasileira.
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PARTICULARIDADES DA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE PÚBLICA NO
CONTEXTO BRASILEIRO
Nos países localizados no centro do capitalismo, os limites do mercado mundial começaram a
ser fortemente evidenciados com a grande depressão de 1929. Uma crise do sistema financeiro
norte-americano que se alastrou pelo mundo e inseriu a desconfiança no liberalismo econômico,
vigente até então, trazendo também uma crise na legitimidade do capitalismo sob o liberalismo.
Diante disso, este sistema precisou buscar alternativas político-econômicas e também ideológicas
para se reerguer. Instaurava-se o que se convencionou chamar de Estado de Bem Estar Social
(Welfare State), fundamentado no keynesianismo, desenvolveu-se principalmente na Europa
Ocidental e vigorou até meados dos anos 1960.
Este concebia um modelo de Estado pautado por um conjunto de medidas econômicas e
sociais que reestabelecesse o equilíbrio econômico através de uma política creditícia, fiscal e de
gastos para que atuem nos períodos de depressão estimulando a economia. Para esta intervenção
houve o incremento de um sistema de seguridade social, pautado pela generalização das medidas
de proteção social com concessão de benefícios aos trabalhadores.
Contudo, neste período em que havia uma instauração, ainda que restrita, de um modelo de
seguridade social na Europa, o Brasil era marcado por governos ditatoriais, com mínimas ações e
políticas sociais. Os anos entre 1930 e 1940 marcaram o Brasil com a intensificação das
expressões da questão social, pressionando o Estado Brasileiro a realizar ações para amenizá-la.
É importante destacar que o Brasil tem como característica própria de sua formação sócio
histórica o caráter de dependência à economia externa. Nesse sentido a economia colonial que
sustentou o país nos seus primórdios resguarda concepções colonialistas, paternalistas e
conservadoras que são refuncionalizadas na atualidade. O sentido da colonização fundamenta-se
na articulação da dinâmica mundial com os movimentos internos da economia e sociedade
brasileiras e, sendo assim, o processo de colonização serve à acumulação originária de capital nos
países centrais (BEHRING, 2008). Este processo insere outra característica essencial: os
obstáculos que o Brasil possui em possibilitar avanços democráticos. Ancorando-se em Florestan
Fernandes, Behring (2008) elucida que Estado brasileiro nasce sob a marca da forte ambiguidade
entre um liberalismo formal e o patrimonialismo.
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Retomando a discussão específica da saúde os anos entre 1930 e 1940 o caráter público da
saúde era direcionado aos segmentos mais pauperizados da população juntamente com a
filantropia e a medicina previdenciária. É válido assinalar que esta última acessava apenas
aqueles que tinham emprego formal, um quantitativo ínfimo da população brasileira naquele
período. Assim, a saúde pública caracterizou-se essencialmente por ações focalizadas,
centralizadas em práticas higienistas e na elaboração de condições sanitária mínimas, num
sistema subdivido em saúde pública e a medicina previdenciária (BRAVO, 2009). A noção de
saúde era reduzida a ausência de doença.
O Brasil apresenta configurações bastante apartadas do que preconiza a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) que além de estabelecer a saúde como direito de todos e
ampliar sua concepção, o direito à saúde vem acompanhado de uma série de outros direitos e é
aglutinado com a perspectiva dos direitos humanos. Ademais, o direito à saúde está
consubstanciado ao direito à vida, como assinala esta mesma Declaração. Em seu artigo XXV a
Declaração afirma
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a
sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em
caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda
dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (UNIC, 2009).
A partir dos anos 1960, com instauração da ditadura militar no Brasil, aquele quadro se
modifica, imprimindo características singulares à integração do Brasil à ordem econômica
internacional (MOTA, 2000). Ocorreu um salto econômico no país no período ditatorial que tem
a ver com um projeto de internacionalização da economia brasileira, projeto este que visa atender
as necessidades do capital restaurar as taxas de crescimento. Em meio ao contexto de perda de
liberdades democráticas o bloco tecnocrático militar buscava legitimação através da expansão e
modernização das políticas sociais Na saúde pública e previdenciária, havia o traço marcante da
“medicalização da vida social” (BRAVO, 2009). Mas, ao mesmo tempo em que as
impulsionavam, ainda que de maneira restrita, a ditadura abriu espaço para um sistema polarizado
de acesso à saúde.
Houve crescimento da medicina previdenciária em detrimento da saúde pública em um
modelo que privilegiava o setor privado, criando-se um complexo médico industrial. Enfatizava4
se a medicina curativa, individual e assistencialista. O Estado brasileiro articulava-se com o
contexto de restauração das taxas de lucro do capital, o que na saúde aparecia via fomento das
indústrias farmacêuticas e dos equipamentos hospitalares. A política de saúde voltada para a
grande camada popular brasileira estava em segundo plano devido à lógica de incentivo ao setor
privado, o qual acessavam apenas aqueles com possibilidade de pagar por ele.
Assim, é importante destacar que o sistema de saúde brasileiro tem o início de sua história
marcado pela fragmentação das problemáticas, centralização no indivíduo e perspectiva curativa,
medicocêntrica e hospitalocêntrica. Com isso, percebe-se que no período ditatorial militar
brasileiro fez-se uma política de saúde tecnicista, centralizadora e pautada por uma assistência
médica individualista, posto que, para a saúde pública, sobraram ações pontuais e fragmentadas,
pois, a dinâmica político econômica era de priorização do mercado privado.
Nas das décadas de 1960 e 1970 houve um aprofundamento da internacionalização da
economia como parte do processo de exportação de capitais, possibilitando a instalação em
território brasileiro de inúmeras empresas multinacionais. A saúde privilegiava a assistência
médico-privada em detrimento da saúde pública e o setor saúde passou a interessar ainda mais ao
capital devido ao seu lugar estratégico na reprodução da classe trabalhadora e na lucratividade do
mercado privado (SOARES, 2010). Percebe-se que, enquanto os países de capitalismo avançado
possuíam alguma estrutura de seguridade social voltada à classe trabalhadora, o Brasil,
subdesenvolvido e submetido às necessidades do capital internacional, tinha ações pontuais no
que se refere à saúde pública.
Entretanto, com um novo momento de crise do capital que surgiu no início dos anos 1970,
a hegemonia do poder ditatorial começa a ser amplamente questionada. Em linhas gerais, as
razões da atual crise capitalista datam do início dos anos 1970 a partir de um fenômeno clássico:
a manifestação de queda tendencial da taxa de lucros, decorrente da sobreacumulação dos
excedentes de capital, os quais, não encontram mais formas ou espaços para se realizar
lucrativamente, desvalorizando-se. O quadro econômico mundial que se desenhava deslocava os
investimentos para a especulação financeira, que buscava conquistar novos mercados, e acelerar
o tempo de giro do capital. A flexibilidade nos mercados e nas relações de trabalho passa a ditar a
lógica do funcionamento do capitalismo direcionando as suas estratégias à conquista de novos
espaços de valorização.
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Abre-se espaço para o chamado padrão de acumulação flexível (HARVEY, 2005), que
necessita não apenas de novas ferramentas no âmbito da produção, mas também e não menos
importante, de um novo tipo de Estado. Diante das determinações desta conjuntura as teses
neoliberais ganham força. Elas indicam que o Welfare State e sua teoria keynesiana, são
responsáveis pela crise por atribuir poder excessivo aos sindicatos, porque estes pressionam por
salários e aumento dos gastos sociais do Estado. Isso teria estimulado a destruição das taxas de
lucro das empresas e a inflação. Com essas transformações, a diferença entre a seguridade social
e o período keynesiano e o neoliberal consiste na forte conexão com a privatização da proteção
social.
Em consonância com o cenário mundial, a economia brasileira dava sinais de decréscimos,
fazendo com que o modelo de Estado ditatorial não conseguisse mais legitimação. Este processo
econômico, social e político corporificou as lutas populares pela redemocratização do Estado
brasileiro e pela consolidação de direitos sociais, civis e políticos, culminando na elaboração da
Constituição Federal de 1988. O movimento de Reforma Sanitária foi um dos eixos norteadores
desta luta, propondo um conceito diferenciado de saúde e de doença alicerçado na concepção de
sociedade democrática. As reivindicações encabeçadas pelo movimento da Reforma Sanitária
punham a necessidade de um sistema público de saúde de caráter universalista e democrático,
reivindicação esta que acaba, posteriormente, se materializando na formação do Sistema Único
de Saúde, o SUS.
A Constituição Federal de 1988 representa um dos maiores avanços no Brasil no tocante à
proteção social e no atendimento às históricas reivindicações da classe trabalhadora. A
Seguridade Social passa a ser composta pela tríade Saúde, Assistência Social e Previdência
Social e traz como destaques: a universalização; a concepção de direito social e dever do Estado;
o estatuto de política pública à assistência social; a definição de fontes de financiamento e novas
modalidades de gestão democrática e descentralizada com ênfase na participação social de novos
sujeitos sociais, com destaque para os conselhos e conferências (CFESS, 2010). Ao afirmar em
seu artigo 196 que a saúde é direito de todos, dever do Estado e garantida através de políticas
sociais e econômicas, a saúde passa a responsabilidade do Estado.
A Reforma Sanitária alicerçava-se pela concepção ampliada de saúde (entendida como
processo social), pela melhoria da qualidade dos serviços com a adoção de um novo modelo
assistencial, pautado na integralidade e equidade e por uma nova organização do sistema de saúde
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através da construção do Sistema Único de Saúde (SUS), onde o setor privado deveria atuar
apenas de forma complementar. A proposta da Reforma Sanitária foi fortemente defendida e
consagrada em 1986 na VIII Conferência Nacional de Saúde. A saúde passou a ter uma dimensão
política ligada ao processo democrático brasileiro. Entretanto, segundo Soares (2010) o processo
de democratização não ocorreu mediante uma real ruptura com as forças políticas hegemônicas
nem com a realização de efetivas reformas das instituições, sendo um processo de
democratização “pelo alto”, onde o Estado brasileiro traça um percurso coerente com a tendência
mundial de retrocesso nos direitos sociais, de avanço do neoliberalismo, apesar dos avanços
obtidos no âmbito legal (SOARES, 2010, p. 40).
A transição do regime ditatorial para o democrático foi caracterizada por uma “transição
negociada” (CFESS, 2010, p. 18), pois, não houve uma real ruptura com as forças políticas
hegemônicas. Este período da história brasileira expressa uma dicotomia entre a implementação
dos direitos consolidados na Constituição Federal de 1988 e as constantes tentativas de regressão
destes em virtude das determinações da crise do capital, como aponta Soares
A crise estrutural do capital mundial, a partir dos anos 1970, contribuiu
decisivamente para o fim do regime autocrático e institucionalização legal de
muitas reivindicações dos movimentos sociais na Constituição de 1988 – dentre
elas, o SUS. Mas, dialeticamente, as respostas a essa crise, mediadas pelas
particularidades e características da estrutura social e do estado brasileiros,
tornaram-se os limites para a materialização desse sistema conforme seu marco
legal. (SOARES, 2010, p. 40).
Corporifica-se o movimento de contrarreforma (BEHRING, 2008) do Estado brasileiro
como forma de responder à crise mundial do capital. Ao mesmo tempo em que a nova fase de
reestruturação produtiva do capital esgotou o modelo de Estado de Bem-Estar Social, o Brasil
vivia pela primeira vez na sua história uma aproximação com aquele modelo. Nessa dinâmica,
portanto, a construção de uma política de saúde pública democrática no Brasil, já nasce em meio
às tentativas para sua desconstrução.
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O NEOLIBERALISMO E AS AMEAÇAS À SAÚDE COMO DIREITO
A afirmação da hegemonia neoliberal no Brasil tem sido responsável pela redução de
direitos sociais e trabalhistas, desemprego estrutural, precarização do trabalho, desmonte da
previdência pública, sucateamento da saúde e educação (BRAVO, 2009). Os efeitos do
neoliberalismo com a flexibilização da economia e as mudanças no mundo do trabalho, além da
redução do Estado e a contração dos direitos sociais tiveram rebatimentos diretos na política de
saúde e necessitam ser problematizados para que possamos compreender as tensões existentes
para a efetivação de direitos sociais básicos nesse contexto em que, como aponta Behring (2008)
o Brasil adentra num período marcado por uma nova ofensiva burguesa, mais uma vez
adaptando-se às requisições do capitalismo mundial.
Vamos de encontro com o pensamento de Netto quando o autor afirma que “a grande
burguesia monopolista tem absoluta clareza da funcionalidade do pensamento neoliberal e, por
isto mesmo, patrocina a sua ofensiva: ela e seus associados compreendem que a proposta do
‘Estado mínimo’ pode viabilizar o que foi bloqueado pelo desenvolvimento da democracia
política- o Estado máximo para o capital.” (NETTO, 2001, p. 81).
No âmbito da política de saúde no contexto neoliberal, como mostra Bravo (2009) o que
foi construído na década de 80 em relação a essa política tem sido desconstruído. “A saúde fica
vinculada ao mercado, enfatizando-se as parcerias com a sociedade civil, responsabilizando a
mesma para assumir os custos da crise”. (BRAVO, 2009, p. 100).
De acordo com Bravo (2010) no Brasil, o projeto de Reforma Sanitária começa a ser
questionado no início dos anos 1990 e, na segunda metade dessa década, consolida-se o projeto
de saúde articulado ao mercado ou privatista. “Como principais características destacam-se: o
caráter focalizado para atender às populações vulneráveis, a privatização dos serviços e o
questionamento da universalidade do acesso”. (BRAVO, 2010, p. 13). Segundo a autora, o
Projeto Privatista, vinculado ao mercado, e o Projeto da Reforma Sanitária estão em disputa.
Soares (2010, p. 52) acrescenta outro projeto em confronto com aqueles mencionados
anteriormente: o projeto do “SUS possível”. Este, é representado por lideranças que defendem a
flexibilização da reforma sanitária, diante das limitações econômicas atuais. Porém,
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a concretização do SUS, conforme seu marco legal original, [...] deixa der ser
espaço político estratégico de atendimento dos interesses da classe trabalhadora
e de sua organização em torno de um projeto societário alternativo e passa a ser
concebida no interior do campo das “possibilidades”, isto é, o SUS possível
diante do ajuste neoliberal. (SOARES, 2010, p. 47).
Como afirma Netto (2012), desde os anos 1990, em todos os continentes registraram-se
crises financeiras, expressões localizadas da dinâmica necessariamente contraditória do sistema
capitalista. E crises, não só financeiras, fazem, também necessariamente, parte da dinâmica
capitalista – não existe capitalismo sem crise (NETTO, 2012, p. 415).
De acordo com Gomes (2013) a crise societal dos anos 1990 anuncia um influxo radical no
processo de reprodução das classes. Nesse sentido:
O conjunto dessas mudanças, como referência ao pragmatismo político e
econômico que se instalou no Brasil, e que é parte constitutiva da hegemonia
neoliberal, corresponde a uma estratégia de passivização do Estado, numa
direção clara de construção de contratendências que pudessem reverter, por um
lado, a crise de acumulação do capital nacional, herdeira da modernização
conservadora ditatorial, e, por outro, o avanço das forças de esquerda no país,
anulando, em todos os sentidos, a possibilidade clássica de combinação entre
coerção e consenso, resultando, portanto, numa verdadeira reforma intelectual
e moral, compatível com as novas exigências do capital. Na realidade, o
governo brasileiro não estava apenas preocupado em garantir o crescimento e o
equilíbrio macroeconômico do país, mas em adaptar-se às exigências
inescrupulosas do capitalismo financeiro mundial, mesmo às custas da
pauperização da população e do endividamento da nação ao capital estrangeiro.
(GOMES, 2013, p. 67).
Diante desse contexto e das ofensivas aparelhadas pelo capital para se recompor diante da
crise são despendidas estratégias de recomposição das taxas de lucro. No entanto, “é o próprio
capital, que leva às crises econômicas. Pois até nos momentos em que o capital se acumula,
permitindo a criação de riqueza, seu lado destrutivo está latente e sempre pode, de súbito, eclodir,
aniquilando massas de valor. O capital cria a grande ameaça à sua existência” (GRESPAN, 2015,
p. 145).
Segundo Meszáros (2011), o capital tem vivenciado uma crise estrutural do seu sistema
como um todo. Essa crise “vai se tornar a certa altura muito mais profunda, no sentido de invadir
não apenas o mundo das finanças globais mais ou menos parasitárias, mas também todos os
domínios da nossa vida social, econômica e cultural”. (MESZÁROS, 2011, p. 17). As reflexões
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do autor apontam para o que ele nomeia de crise endêmica, cumulativa, crônica e permanente, em
que se identificam as consequências destrutivas levando a uma destruição ambiental e a uma
precarização estrutural do trabalho.
Os princípios conquistados pela Constituição Federal de 1988 são fortemente tensionados
pela estratégia de extração de superlucros e pela supercapitalização (MANDEL, 1982), o que
apresenta a tendência geral da redução dos direitos sob o argumento de crise fiscal do Estado.
Ernest Mandel (1982) aponta o fenômeno da supercapitalização como central para a grande
expansão do setor de serviços, pois, tal conceito refere-se à realocação desses excedentes de
capital, que não tinham possibilidade de ser investidos, nos setores de serviços. Dessa forma, a
valorização passa a ser viabilizada.
É em torno daquele fenômeno que o autor explica o grande aumento do setor de serviços e,
com isso, uma grande absorção de trabalhadores no referido setor. Desta maneira, torna-se
imprescindível a participação do setor de serviços na fase do capitalismo tardio, já que, as
grandes quantidades de capital não conseguem mais ser valorizadas apenas na indústria
(MANDEL, 1982, p. 273). Mas, a supercapitalização não se refere apenas ao investimento de
capital em outros espaços para que estes se tornem lucrativos, mas também, significa a inserção
da lógica industrial naqueles espaços.
Diante das transformações, é exigido ao Estado pelo grande capital “um projeto/processo
restaurador” (NETTO, 2012, p. 209). Para este autor, esse projeto pode se apresentar em três
elementos: a flexibilização, a desregulamentação e a privatização. Os dois primeiros são
responsáveis para aumentar as atividades financeiras, que devido às novas tecnologias de
comunicação, tornam-se cada vez mais autonomizadas do controle do Estado. A privatização, por
sua vez, transferiu consideráveis parcelas do orçamento público para o capital.
Nas obras de Mandel (1982) e David Harvey (2009) os autores analisam a centralidade do
Estado enquanto instituição de classe burguesa e central na viabilização das soluções requeridas
pelo capitalismo no enfrentamento de suas crises, criadas por ele mesmo, e ambos os autores,
destacam o papel político do Estado. Ernest Mandel compreende o Estado como “administrador
das crises”. Esta passagem retoma de imediato a afirmação feita por Marx e Engels em 1848
dizendo que “o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar
os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX e ENGELS, 2011, p. 42).
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Atualmente, o domínio do capital financeiro juntamente com a doutrina neoliberal trouxe
uma gama de novos mecanismos de acumulação, como por exemplo, a “corporativização e
privatização” de bens públicos. Esta última, segundo o autor, tem se evidenciado como “uma
nova onda de expropriação das terras comuns”, cujo Estado é usado para impor a implantação
desse processo (HARVEY, 2009, p. 123). A privatização e a liberalização de mercado tornaramse políticas de Estado tornando os bens públicos em espaços para valorização do capital (Ibidem,
p. 130).
Neste processo, a participação do Estado é fundamental. Um dos pilares da sua reforma
gerencial é o ajuste dos gastos públicos, introduzindo novas formas de gestão do trabalho,
realidade que afeta, diretamente, a esfera dos serviços. Apesar de não se caracterizar como
produtora de mercadoria, a esfera dos serviços (especificamente os serviços públicos) está
permeada por relações mercantis e o Estado torna-se um grande comprador de produtos
industriais e serviços privados.
Nesta tendência de instrumentalização da racionalidade para os interesses burgueses, a
Reforma Gerencial da Administração Pública evidencia os pressupostos ideológicos e
econômicos da reforma. Pautando-se pelo discurso neoliberal as políticas sociais são entendidas
como razão de excesso de gastos de um Estado ineficiente economicamente e burocrático.
Bresser (1998) afirma que em relação à área social, a saúde é a parte mais difícil de
adentrar nessa lógica, pois, sendo o SUS um sistema universal e gratuito, o Estado possui
dificuldades de recursos e de “pessoal competente” para mantê-lo Além disso, destaca que sendo
um “ministério altamente politizado e ideologizado”, dificulta-se extremamente sua
administração segundo as prerrogativas da Reforma.
O Plano Diretor da Reforma do Estado foi elaborado pelo Ministério da Administração e
Reforma do Estado, projetado pelo governo FHC e aprovado em 1995 na Câmara da Reforma. O
debate acerca da formulação desse Plano girou em torno da definição das funções exclusivas e
não exclusivas do Estado. Este documento está pautado pela busca da “melhoria” da atuação
burocrática através de uma administração pública denominada “gerencial”. Para este, o tipo de
administração introduzida no passado seria caracterizado como lenta e ineficiente pelo fato de
centrar-se nos processos e não nos resultados em um sistema de grande complexidade e aquém
dos desafios que o Brasil enfrentava diante da globalização econômica. Assim, o referido
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documento afirma a importância dessa reforma gerencial para o Estado e para o cidadão
brasileiro
É preciso, agora, dar um salto adiante, no sentido de uma administração pública
que chamaria de “gerencial”, baseada em conceitos atuais de administração e
eficiência, voltada para o controle dos resultados e descentralizada para poder
chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, é quem dá legitimidade às
instituições e que, portanto, se torna “cliente privilegiado” dos serviços
prestados pelo Estado. (BRASIL, 1995, p. 5).
Aqui, é importante pontuar a visão de cidadão apresentada pelo Plano Diretor. Tratar os
usuários de políticas sociais como “clientes” é manifestar a lógica mercantil que se pretende
fornecer a essas políticas. Não se consideram os princípios e diretrizes da Seguridade Social
como um todo, cujo cidadão está reconhecido como portador de direitos sociais, mas sim, como
“cliente”.
A contrarreforma da saúde no Brasil vem tomando corpo desde os anos 1990 através da
contenção dos gastos para o setor com racionalização da oferta de serviços. Esse fenômeno
encontra-se em sintonia com o processo de mundialização do capital, regido pelo capital
financeiro. Essa mudança no sistema de acumulação vai exigir também que o Estado se
reformule, se refuncionalize, tornando-se “mínimo para o social e máximo para o capital”.
Nesse sentido, a tecnologia adentrou a reprodução para acelerar o processo de produção
capitalista por meio do estímulo nas esferas da circulação e do consumo, emergindo a tendência
da “supercapitalização”, configurada como “a industrialização da esfera da reprodução em
setores que não produzem mais-valia diretamente, mas que indiretamente aumentam a massa de
mais-valia. No Brasil, entre 2003 e 2011, a aquisição de equipamentos médicos e medicamentos
cresceu 14% ao ano, movimentando cerca de R$ 70 bilhões no mercado (POLI, 2013).
De acordo com Ximenes (2015, p. 161) umas das formas pela qual a contrarreforma do
Estado chegou ao SUS foi a redução orçamentária que provocou sucateamento das unidades
públicas de saúde. Este é um cenário estratégico para implantar propostas de privatização, pois, é
construído sob a justificativa da ineficácia e ineficiência do setor público.
Nesta lógica de transferência de gerenciamento das unidades e dos seus trabalhadores via
instrumentos de lógica de mercado, os dados apresentados por Ximenes (2015) mostram que ao
contrário do que propõe a iniciativa privada, ela não vêm assegurando a eficiência e a qualidade
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na saúde pública, posto que, a gestão pública no estado atende um número três vezes maior do
que a iniciativa privada. Assim, a gestão pública recebe menos recursos do governo e, em
contrapartida, realiza a imensa maioria dos atendimentos.
Na área da saúde, a proposta é de repasse da gestão do SUS para outras modalidades de
gestão não estatal, através dos contratos e parcerias viabilizadas pelas Organizações Sociais
(OSs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), pela Empresa Brasileira
de Serviços Hospitalares (EBSERH), expansão de planos privados e ferramentas gerenciadoras
das mais diversas, as quais resguardam a lógica empresarial e adentram a esfera pública. Há uma
tensão entre a consolidação constitucional do SUS e a realização do “SUS possível” (SOARES,
2010), que flexibiliza as diretrizes e princípios do SUS diante das alegadas limitações
econômicas atuais, reestruturando o sistema público de saúde por dentro.
Guimarães (1991) corrobora da análise de Francis Sodré observando que a “prática em
saúde” vem sendo reduzida à “prática médica” e esta, à técnica. A necessidade do capital em
estender a busca de lucros para os serviços difunde o uso de mecanismos tecnológicos àquele
setor. Assim, diz o autor:
É possível, assim, analisar a inovação tecnológica por que passa a prática médica
a parir das exigências de altos investimentos e lucros por parte das grandes
firmas. A demanda por novos equipamentos e processos é uma demanda
induzida por quem produz essas novas tecnologias, tornando prematuramente
obsoletas as técnicas de produção e podendo afetar padrões de comportamento e
a própria estrutura social (GUIMARÃES, 1991, p. 48).
O autor afirma que a tecnologia na área da saúde é produto das estruturas sociais sendo
possível “produzir, reproduzir e alterar essas mesmas estruturas”. Nesta lógica, desenvolvimento
de tecnologias que afirmam ter como objetivo melhorar a qualidade do funcionamento da saúde
escondem em seu discurso os fatores de ordem estrutural e também, os interesses de classe
(Ibidem, p. 49).
A política pública de saúde tem encontrado amplas dificuldades para sua efetivação,
percebidas através da desigualdade de acesso da população aos serviços, o desafio de construção
de práticas baseadas na integralidade, os dilemas para alcançar a equidade no financiamento do
setor, os avanços e recuos nas experiências de controle social, a falta de articulação entre os
movimentos sociais, entre outras. Todas essas questões são exemplos de que a construção e
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consolidação dos princípios da Reforma Sanitária permanecem como desafios fundamentais na
agenda contemporânea da política de saúde (CFESS, 2010).
Com as investidas privatizantes apresentadas fortaleceu-se no Brasil um sistema público
sucateado e de acesso seletivo e segregador ao invés de universal, já que, o SUS fica resguardado
àqueles segmentos mais pauperizados da população enquanto a saúde privada é acessada por
aqueles com poder aquisitivo um pouco maior. Este elemento remonta ao inicio das ações de
saúde pública no Brasil, opostas à concepção democrática dos dias atuais. Esta lógica de fomento
ao setor privado atende às necessidades de recomposição capitalista em detrimento da
consolidação da saúde como direito social e humano, em um processo de desconstrução dos
princípios democráticos do país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fim dos anos 1980 no país representaram um avanço democrático nunca antes visto na
história do país, modificando radicalmente a concepção de saúde, vinculando-a à democracia, à
cidadania e estabelecendo um sistema de saúde universal e equânime: o SUS. Mas, desde o
surgimento de políticas de saúde no Brasil, o setor privado e a lógica focalizada e polarizada em
relação ao acesso se fazem presentes. O processo democrático brasileiro além de historicamente
recente, convive desde sua institucionalização com constantes tentativas de desconstrução. Estas
ocorrem com uma mescla entre as características conservadoras próprias da formação sócio
históricas do país, e determinações da crise do capital em escala global e, consequentemente, do
movimento de contrarreforma do Estado brasileiro.
A entrada na década de 1990 é marcada pelo redirecionamento do papel do Estado,
influenciado pela política de ajuste neoliberal, descontruindo a proposta da política de saúde dos
anos 1980, defendida pelo movimento da Reforma Sanitária e, consolidada no arcabouço legal.
As novas estratégias de acumulação do capital tornaram setores que não eram diretamente
produtivos como espaços de valorização. Nesse sentido, ocorreu a expansão do setor de serviços,
e dentre eles, da saúde, como espaço de lucratividade para o capital, que passa a industrializar as
esferas da reprodução. A “supercapitalização” do setor da saúde não teria sido possível sem a
forte presença do Estado. Este tem se mostrado vital na garantia dos interesses privados. O Plano
Diretor é uma evidência disso e, do traço ideológico assumido pelo Estado.
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Como vimos o direito universal à saúde foi uma conquista e a criação do SUS está
relacionada com a responsabilização do Estado diante da garantia desse direito a população, no
entanto, o que presenciamos na atual conjuntura é a tentativa de desmonte no que concerne ao
caráter democrático e universal do SUS. Esse fenômeno vem se fortalecendo. Basta verificarmos,
por exemplo, a natureza da PEC 451/2014 que segmenta e fragiliza um direito garantido pela
constituição e alimenta o mercado empresarial dos planos de saúde. Estão em curso no Brasil
propostas que defendem um enxugamento ainda maior do SUS, estímulo aos planos privados e
cancelamento de programas como o Farmácia Popular.
A tensão entre a garantia e o desmonte da saúde pública democrática é permanente no
Brasil. As velhas nuances de privatização do social, focalização, segmentação, desfinanciamento,
entre outras, as quais levam centralização das problemáticas no indivíduo, a perspectiva médico
curativa e hospitalocêntrica, são próprias da construção da política de saúde pública no Brasil e
insistem em permanecer. Isto expressa uma tentativa de consolidar características arcaicas as
quais a Constituição de 1988 havia ultrapassado, em um país marcado pela subordinação à
exigências do capitalismo internacional.
Assim, percebe-se que o processo de reestruturação da saúde para beneficiar o capital,
apresenta-se como uma das faces de desconstrução dos princípios democráticos no Brasil, o qual
percebe a saúde de forma ampliada. Retroceder na consolidação do direito a saúde pública é
retroceder também na proposta democrática do país.
Este quadro é desafiador para o Serviço Social. O projeto ético-político da profissão no
Brasil articula-se às lutas e aos interesses democráticos da classe trabalhadora, sendo um grupo
profissional presente nos processos de conquista de direitos humanos, políticos e sociais. Assim,
é de fundamental importância que a profissão siga refletindo criticamente sobre os processos
sociohistóricos, políticos e econômicos em curso, para que tenha subsídios necessários para lutar
pelos direitos ao lado dos trabalhadores.
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