A sonho olímpico do agronegócio: Ouro-dos-parvos Antônio Augusto Rossotto Ioris 1 O que se passa no Brasil nos últimos tempos parece superar tudo o que aconteceu antes na história do país. Não bastassem o ‘7 a 1’ da copa de 2014, a corrida de corruptos em Brasília (sem obstáculos!), o marasmo parlamentar a serviço dos políticos, problemas e desacertos econômicos ‘nunca dantes navegados’, temos agora a primeira, e caríssima, olimpíada sediada na América do Sul e por uma nação que fala português. Nesse contexto controvertido e desanimador, o setor do agronegócio treina e reivindica recordes em cima de recordes. Seus líderes são infatigáveis no anúncio de marcas e índices de produção, produtividade e fertilidade. As estatísticas oficiais sugerem que aproximadamente 25% do PIB, 35% das exportações e 40% dos empregos estão plantados na lavoura do agronegócio. Ou seja, apesar das enormes dificuldades da economia, o agronegócio parece ser um compartimento isolado, distante das mazelas e reservatório de competência e racionalidade. Em junho deste ano, a TV Globo passou até a exibir vinhetas com a mensagem o “Agro é Pop”, ou seja, bom para o Brasil e benéfico para os brasileiros. Assim com os jogos olímpicos realizados no Rio de Janeiro, o setor reclama ser a pira central do ‘Brasil que dá certo’, expressão muito utilizada para diferenciar a pujança do agronegócio da agricultura familiar tradicional e do resto da economia considerada obsoleta. O paralelo subliminar entre ‘agro-pop’ e ‘olimpíada-sucesso’ ficou ainda mais explícito imediatamente após a cerimônia de abertura, na sexta-feira, 05 de agosto, quando em algumas redes sociais foi lançada uma inesperada crítica: a narrativa da nação verdeamarela apresentada durante o espetáculo ficara incompleta sem que se incluísse alguma referência à performance ‘espetacular’ dos fazendeiros brasileiros e seus parceiros comerciais. 1 Engenheiro agrônomo, PhD, professor da Escola de Geociências da Universidade de Edimburgo, Reino Unido; professor visitante e pesquisador em várias universidades brasileiras. E-mail: [email protected] Essa estranha choradeira em dia de festa deixa transparecer a ideia sutil de que a verdadeira olimpíada brasileira já foi jogada e, a duras penas, os produtores são merecedores de ouro, prata, bronze e o que mais puderem tocar. Com a queda sistemática do dólar, juros no alto do pódio e a maratona lastimável da infraestrutura, exportadores de soja e de outras commodities já começam a ensaiar a tradução dessa suposta imagem de ‘vitória’ e ‘popularidade’ em garantias de apoio e, se for o caso, resgate das penalidades impostas pelo mercado ou pela meteorologia na próxima safra... O momento nacional é sem dúvida turbulento, mas também requerer que se analisem os dilemas e as causas mais profundas das agruras sofridas pela população. A questão principal, no nosso ponto de vista, é que o agronegócio brasileiro, ao contrário do que se repete a cada dia, é muito mais parte do problema do que da solução. Na verdade, a imagem de bonança e competência é produto de uma construção ideológica que reafirma o poder de uma economia degradante e concentradora de oportunidades. Se a ‘agricultura-comoagronegócio’ tem se expandido para novas áreas na Amazônia, no Centro-Oeste e no Nordeste ocidental, isso é devido não somente à abundância de terras barata e recursos naturais, mas pela facilidade de se reproduzir padrões de exploração social e ambiental que foram adotados ao longo das longas fases de colonização e construção da identidade brasileira desde 1822. A modernidade associada ao agronegócio se restringe basicamente a avanços tecnológicos pontuais – em grande parte importados e que requerem investimentos significativos (capital intensive) em equipamentos, máquinas, genética e agroquímicos – mas que encobrem condições perversas de trabalho e múltiplas injustiças. O surgimento de cidades na fronteira do agronegócio contém o velho DNA da urbanização brasileira: desigualdades espaciais e uma periferia disfuncional. Tal é o padrão das cidades do norte de Mato Grosso e o florescimento de grandes fazendas nas mãos de fazendeiros urbanizados. A região do Alto Teles Pires, ao redor de Sorriso e Sinop, tem certamente marcas olímpicas de exportação de soja e algumas outras culturas, mas é um deserto alimentar que importa muito da comida que necessita. Deste modo, o agronegócio resulta de uma combinação ambivalente de tradição e novidade. Por um lado, o país é visto como uma potência agrícola que tem muito a oferecer em termos de redução de uma iminente, cada vez mais global, crise alimentar. O Brasil é hoje o segundo produtor e o principal exportador de soja no mundo e, de acordo com o Ministério da Agricultura, em 2019 o país irá responder por 40% do comércio global de grãos de soja e com 73% das transações de farelo de soja. Por outro lado, a geografia do agronegócio encapsula uma versão tropical da agroindústria contemporânea e sua máxima de converter trabalho, natureza e sonhos em mercadorias. Também é bastante questionável que o agronegócio crie riqueza e traga desenvolvimento efetivo e real. Paga poucos impostos (ajudado pela Lei Kandir de 1996) e lança o país em um novo ciclo de economia primária baseada em monoculturas e dependente dos humores do mercado internacional. Além do mais, há muitos efeitos colaterais da crescente dependência das exportações agrícolas, como uma progressiva desindustrialização da economia brasileira, aumento das importações de insumos intermediários e bens de capital, e perigosa dependência de investimentos estrangeiros. Entre 2000 e 2010, a exportação de bens primários aumentou de 25% para 45%, enquanto os bens manufaturados caíram de 56% para 43%. De 2004 a 2013, a indústria caiu de 55% para 38% do PIB, enquanto a produção primária aumentou de 29,5% para 46,7% (dados do Ministério do Desenvolvimento). Mostra-se, portanto, uma atividade de altos riscos e que serve maiormente para enriquecer grandes empresas transnacionais e agentes financeiros; cada vez mais fica evidente, tanto na literatura acadêmica, quanto no discurso dos fazendeiros que temos estudado há vários anos, o fenômeno da ‘financialização’ (financialization), ou seja, crescente especulação financeira em torno da atividade e propriedade agrícolas. Ao mesmo tempo, com níveis elevados de exploração sócio-ambiental, fica um rastro de degradação do solo, da água, dos ecossistemas, das paisagens e relações sociais. A mistificação do sucesso alcançado pelo agronegócio ajuda ainda a esconder disputas internas, especialmente entre a maioria dos agricultores e os grandes proprietários e empresas transacionais. O agronegócio está associado à figura de unidade e congraçamento, mas há sinais de desunião e, muitas vezes, de mal-estar com a forma como os agricultores são tratados por empresas, bancos e grupos urbanos. A transformação do aparelho do Estado sob a pressão por mais liberdades ao mercado levou a um novo padrão de interações, caracterizadas cada vez mais por associações estratégicas entre agências estatais, capital financeiro e grupos econômicos dominantes (alguns criados via financiamento do BNDES). Basta lembrar que uma série de novos instrumentos financeiros disponibilizados por bancos privados, empresas fornecedoras de insumos e de empresas comerciais preenchem a lacuna criada pela redução dos esquemas convencionais do governo federal. Apesar desse lado pouco esportivo do agronegócio, o setor parece imune a críticas, intrinsicamente benigno, e ocupante de um terreno no Olimpo econômico. Mudam os governos, mas os ministros da agricultura, no caso evidente dos senadores Kátia Abreu e Blairo Maggi (o ‘rei da soja’ agora transformado em magnata da infraestrutura e comercialização), parecem ser juízes arbitrando e celebrando atividades consideradas quase sagradas. Mas o resultado final é uma situação delicada e altamente controvertida, já que o agronegócio tem muitas características inovadoras quando comparado com a modernização nacionalista da agricultura em décadas anteriores, mas também trai os fortes elementos de exclusão social, autoritarismo e enganação. Por tudo isso, seria recorde mundial em tolices acreditar que o Brasil não poderia continuar correndo sem o agronegócio, como se o setor fosse maior que país. Fica claro que o agronegócio tem chantageado a economia e a sociedade brasileira na sua pretensão de ser universal e olímpico, enquanto na verdade joga na segunda divisão da modernidade e treina com os equipamentos mais obsoletos dos últimos séculos: violenta conquista territorial, destruição sócio-ambiental e concentração de riqueza. O agronegócio se apresenta como maratonista, mas na verdade corre provas de 100 metros a cada ano, colhe resultados modestos, quando se considera o potencial social, econômico e ambiental do Brasil, e no final carrega no peito medalhinhas de pirita, o ouro-dos-tolos (ou ouro-dos-parvos). 08 de agosto de 2016