EDUCAÇÃO, RAÇA E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UMA

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EDUCAÇÃO, RAÇA E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UMA AVALIAÇÃO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS INCLUSIVAS RECENTES.
Arilda Arboleya1
José Carlos dos Santos2
Resumo: A engenharia de exploração e subjugação do trabalho negro no Brasil configurou um circuito de
desigualdades sociais reincidente. Ligeiro olhar para as universidades públicas brasileiras nos fará ver
facilmente que, a despeito da população nacional ser de maioria negra, este é ainda hoje um ambiente
essencialmente branco. Tal fato coloca em pauta as barreiras estruturais e simbólicas que se interpõem na
trajetória educacional dos negros: suas oportunidades de acesso à educação de qualidade, o campo de
possibilidades de ascensão social através da educação, as representações sociais que configuram as relações
raciais no Brasil, as escolhas e ações políticas que favorecem ou limitam a superação deste quadro. Tomando
assim, neste trabalho, a educação como um expoente empírico que elucida as tensões raciais e seus
desdobramentos em termos de escalonamento social, este trabalho pretende analisar as políticas públicas
educacionais recentes no Brasil, avaliando seus impactos em termos de reconfiguração das representações
sociais e de criação de possibilidades para a mobilidade social negra, especialmente através do acesso à
educação superior de qualidade. Nesta pesquisa, que se encontra em estágio intermediário, de teste de hipóteses
e problematização, a análise desenvolve-se recuperando produções sociológicas clássicas e contemporâneas que
problematizam a relação entre educação, raça e mobilidade social, e permitem tratar o contexto formativo deste
nosso modelo sócio organizacional excludente e seus impactos sobre a organização social no Brasil e, com ela,
sobre o sistema educacional ao longo dos anos, pontuando os elementos que conduziram à implementação de
políticas educacionais inclusivas para negros. A partir daí, realizamos dois movimentos metodológicos: i)
análise documental dos conteúdos destas políticas públicas educacionais inclusivas, visando captar os elementos
de significação e de reconfiguração das representações sociais do negro no esquadro social e político brasileiro;
ii) averiguação do impacto destas políticas públicas sobre o sistema educacional brasileiro, através de uma
análise de dados quantitativos de fontes secundárias (especificamente do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, e do Instituto Nacional de Educação e Pesquisas – INEP).
1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná/Brasil, vinculada ao Grupo de
Pesquisa Pensamento social, Intelectuais e Circulação de Ideias (http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7183528190125330). Contato:
[email protected]
2
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Brasil; Especialista em Ciência
Política pela Universidade de Brasília, UnB - Brasil; Assessor na Presidência da República Federativa do Brasil. Contato:
[email protected].
INTRODUÇÃO
Entre os dilemas históricos da formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, uma das principais
temáticas no horizonte das preocupações sociológicas é, por certo, o drama das relações raciais. A presença
negra foi trata de maneiras diversas em momentos políticos e intelectuais diversos, passando por argumentos de
eugenia social (eliminação do negro), democracia racial (invisibilização) e integração (pela necessidade do
arranjo produtivo).
Talvez o principal marco de ressignificação intelectual da presença negra na sociedade brasileira tenha
sido o Projeto UNESCO, quando Florestan Fernandes e Roger Bastide conduziram uma série de estudos acerca
das relações raciais no Brasil, que agiram para a deslegitimação do mito da harmonia racial. Obras de Florestan
Fernandes publicadas entre os anos 1950 e 1970 caminham nessa vereda, onde, demarcando peculiaridades da
modernização brasileira, o autor aponta um descompasso de ritmo e abrangência modernizadora entre as esferas
econômica, política e social.
Nesse arranjo, a imbricação entre o modo de produção escravista e a ordem societária e senhorial, toma
a escravidão como base da acumulação capitalista primária e expoente do modelo sociopolítico excludente,
estamental, patrimonialista, numa dinâmica em que se produziria sempre “novos modelos de desenvolvimento
capitalista que exigem a conciliação do arcaico e do moderno – antigas estruturas coloniais com novos
disfarces” (FERNANDES, 2010, p. 30). Ou seja, o sistema econômico evoluiu, porém, alicerçado no mesmo
modelo societário de dominação estamental e patrimonialista, mesmo quando da consolidação da ordem social
competitiva, mantendo os despossuídos à margem. Nisso, o negro em sua condição de escravo (sub-humano),
tornou-se o pilar central do escalonamento de status e distinção social.
Paulatinamente, operou-se uma “revolução” nas estruturas produtiva sem, contudo, promover alterações
das estruturas de poder, nem tão pouco das dinâmicas de escalonamento social. A partir de 1822, com a
Independência nacional, abriu-se uma nova fase na acumulação capitalista, seguida de uma diferenciação dos
papéis políticos, econômicos e sociais, em atenção ao movimento de urbanização. O mesmo se processa na
instauração da República e nos marcos políticos subsequentes: os interesses das elites conduziram a opção pela
não ruptura, de modo que, uma linha de adaptações ambíguas (FERNANDES, 1981) lhes permitiu seguirem
íntegras à ponta das dinâmicas de dominação no processo de formação da sociedade de classes brasileira. O
resultado geral foi a perenidade de uma desigualdade de status estamental e de castas, configurando uma
dominação autocrática, particularista, assentado sobre privilégios que desenham o retrato da exclusão social.
De outro modo, a Abolição não alterou as condições objetivas de participação econômica, social,
cultural e política do negro. Ao contrário, resultou em seu completo deslocamento do sistema produtivo, dado,
I) o despreparo com que fora lançado ao mercado de trabalho livre; II) as marcas materiais e simbólicas da
escravidão (a auto subjetivação e a representação estigmatizada pelo conjunto da sociedade); III) a concorrência
com a mão de obra imigrante europeia; IV) o completo abandono do Estado. (FERNANDES, 1965). Tais
fatores conjuntos lançaram o negro à exclusão do mundo do trabalho e da sociedade (subemprego, desprestígio,
marginalidade). Foram afastados sistematicamente das organizações sociais e, por conseguinte, das condições
de preparação para a inserção na sociedade urbana competitiva. As oportunidades que surgiam eram
incompatíveis com as necessidades do grupo.
Neste circuito de desenvolvimento fechado e excludente, alicerçado sobre um Estado elitista e
autocrático, inviabilizou-se ao negro às condições primárias para a plena integração na engenharia capitalista
competitivas: educação, trabalho e renda. Não operou-se ali, o critério da igualdade de acesso, do que pode-se
entender que a gênese dos impasses históricos modernos no Brasil, reside na permanente rejeição de integrar e
permitir cidadania efetiva aos populares, preservando a desigualdade prática, apesar a igualdade jurídica.
Próximo de 50 anos após a publicação dos primeiros estudos raciais numa perspectiva crítica, o
momento atual no Brasil aponta tensões próprias de uma sociedade que começa a repensar-se no que concerne
ao quadro histórico de exclusão social a que os negros foram relegados. Neste sentido, tanto o campo
intelectual, quanto o ativista e o político, têm se voltado para a avalição e a proposição de políticas públicas
afirmativas, como as reservas de vagas para afrodescendentes em concursos públicos e, de modo especial, cotas
em universidades públicas.
No entanto, ainda hoje se percebem traços marcantes do modelo social excludente naturalizado entre
nós, que se apresentam claros num modo de navegação compósito entre estruturas privilegiadas e padrões de
representação social do negro – o material e o simbólico articulados sobre a negação discursiva e a prática
reiterada do racismo institucional.
1. ABORDAGENS TEÓRICAS: AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA EDUCAÇÃO
Segundo Guimarães (2003), entre o prelúdio da República e os anos 1940, concorreram três linhas de
representação do negro no pensamento social brasileiro: 1) a inexistência de uma linha de cor pela grande
miscigenação; 2) o negro como massa inaproveitável pela deploração moral e intelectual que o excluía das
possibilidades de civilização e cultura; 3) a ideia de que no Brasil não haveria preconceito racial enquanto
fenômeno social.
A institucionalização das ciências sociais somada às transformações políticas e econômicas do pós-1946,
promoveu uma nova constelação de representações: 1) não existem raças, existem cores (NOGUEIRA, 1955;
HARRIS, 1967; AZEVEDO, 1953); em consequência, 2) as desigualdades sociais não se explicariam na
categoria étnica e sim na categoria classe. Disto, seja numa chave weberiana de classe como grupos abertos
(PIERSON, 1971), seja na plataforma marxista do conflito entre proletariado/burguesia (COSTA PINTO,
1953), a questão racial foi convertida em epifenômeno da desigualdade social.
Tais estudos contribuíram funcionalmente para a difusão político-ideológica da democracia racial
quando, na construção da identidade nacional, o negro e suas necessidades foram subsumidos. Os anos 1970
marcariam um novo arranjo intelectual em torno do tema ao assumir, contrariando as constelações anteriores, o
reconhecimento da linha de cor, nítida “em termos de posição social, em termos de oportunidades educacionais,
em termos de distribuição de renda, em termos de atendimento de saúde, em termos de qualquer indicador
social que se queira” (GUIMARÃES, 2003: 7).
Emergiu daí, uma série de estudos sobre negritudes, pobreza e diversidade social, destacando-se autores
como Silva (1978), Schwarcz (1987), Hasenbalg (1979), da Matta (1999), Nascimento (2002), Guimarães
(2002), Henriques (2001), coadunados em torno da percepção do preconceito racial como fenômeno social,
materializado no que Silva e Hasenbalg (1988) denominam “ciclo de acumulação de desvantagens”. Isto é,
haveria ao longo da formação dos sujeitos negros um aumento cumulativo e sucessivo de danos, que partem da
origem social e se materializam no assimétrico aos bens sociais: uma discriminação educacional que
repercutiria no trabalho, na percepção de rendas e nos status sociais.
Resulta daí que, “a principal barreira para a integração do negro na sociedade brasileira, para o
tratamento igualitário do negro, é a educação” (GUIMARÃES, 2003: 8). Este ideário se fez transversal no
pensamento social, presente em textos como Azevedo (1953), que busca o limite da ascensão negra em termos
de perspectiva cultural ou, numa tônica bem diversa, em Fernandes (1965), que indica a incompatibilidade das
oportunidades com as necessidades reais, mas também a falta de escolarização como fator determinante para a
não ascensão social do grupo, na medida em que lhe faltava armas na competição trabalhista.
Também o movimento negro se orientou nesse ideário. Demonstrativo disso, Cardoso (1977)
apresentava o esforço de ressignificação do preconceito por grupos negros do sul do país pré-abolição na
insígnia não da cor, mas da ignorância, assimilando o ideário de que “a ascensão social e a instrução seriam
suficientes para provocar a revisão das representações do branco para com os negros” (IBID: 262). Entretanto, o
autor alertava para condições objetivas: não bastava desejar, os canais de ascensão negra seguiam regulados
pelos dominantes brancos.
Nesta chave, pensadores como Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos defendiam que a escolarização
sem um esforço de reafirmação da identidade negra, não seria elemento suficiente para superar a subalternidade,
denunciando a omissão do Estado no provimento de uma educação não eurocêntrica e inclusiva, onde não
apenas o acesso, mas o próprio currículo escolar e suas representações do negro deveriam ser revistos (PIRES,
2014).
Fernandes (1965, 2010) observa que o quadro de marginalização negra, particularmente expressa na
inacessibilidade ao mercado de trabalho, foi tensionado pela expansão da industrialização, que promoveu uma
recategorização do negro no marco da cidadania a pelo trabalho (SANTOS, 1998; GOMES, 2002). Inaugura-se
assim um movimento de ascensão social em que “o quadro global é menos tenebroso e apresenta aspectos
compensadores, onde o trabalho, o emprego, a classificação ocupacional e a mobilidade profissional incorporam
o negro à classe operária e alguns setores das classes médias” (FERNANDES, 2010: 123).
Nesta perspectiva, buscar por educação enquanto projeto grupal seria assumir uma lógica contestatória
do modelo social branco e do lugar convencional do negro; mas fora dessa chave de significação, seria
reproduzir acentuando o modelo discriminatório: “a tolerância sob forte desigualdade racial restringe
severamente o campo de oportunidades e regula o movimento de ascensão econômica e social pelo modelo de
infiltração, como se fosse um conta-gotas” (FERNANDES, 2010: 117). Uma minoria negra se destaca num
processo produtivo mecânico, que tende à agregar novos grupos sem alterar o paralelismo de raça e classe3.
Assim, se a educação alarga o campo de possibilidades, enquanto elemento de acesso ao mercado de
trabalho, ela não é condição suficiente para eliminar as desigualdades raciais, dado que o racismo entre nós
opera como um arraigado modelo de conduta social discriminatório (GUIMARÃES, 2002), ideologicamente
articulado sobre o mito da democracia racial e da meritocracia, que obscurece o quadro assimétrico da
competição.
Hasenbalg e Silva (1992) investigando esta questão, recusam a conversão do racismo em epifenômeno
das desigualdades econômicas, demarcando que, a despeito do dinamismo gerado pela industrialização, a
população negra permaneceu exposta a desvantagens sistemáticas quanto a oportunidades de mobilidade social,
de modo que o processo de modernização no país não eliminou a classificação social por cor. O quadro
educacional seria maior expoente disso, revelando a disparidade entre os níveis educacionais e retornos
adquiridos entre brancos e negros da mesma origem social, em termos de inserção ocupacional e renda
(HASENBALG e SILVA, 1988; HENRIQUES, 2001).
Isso indicaria que desvantagens especificamente raciais atuam sobre suas trajetórias educacionais, pela
“desigual apropriação das oportunidades educacionais e os efeitos acumulados da discriminação racial no
âmbito da educação formal” (IBID, 1992: 81). Há um maior grau de atrito no trânsito escolar negro, percebido
especialmente na elevada evasão escolar, fruto não de incompetência intelectual, mas das diferenças
significativas no ritmo de acesso à educação, o que faz dela, segundo os autores, o nó górdio das desigualdades
raciais no país.
Autores como Carvalho (2005), Müller (2003), Dávila (2003) e Ribeiro (2001) localizam nos primórdios
da Primeira República o processo primário de exclusão educacional do negro, aprimorada posteriormente com
Vargas na ideologia da democracia racial, que “celebrou a nossa mestiçagem, [mas] não teve como plataforma
política restaurar ou promover uma igualdade racial no sistema escolar – nem sequer no primário, o que dirá
então no superior” (CARVALHO, 2005: 99), promovendo o alijamento negro da escola e da docência e
delegando-lhe uma integração ao trabalho pela porta dos fundos4.
3
FERNANDES e BASTIDE (1965) analisam como no Brasil, pela cor da pele estabeleceu-se o não acesso dos negros aos meios
institucionais de ascensão social, desenhando essa imbricação entre raça e pobreza.
4
Como exemplo, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, intelectuais e ativistas negros que lecionaram em universidades
estrangeiras, mas nunca conseguiram lugar em universidades públicas brasileiras (OLIVEIRA, 1995; NASCIMENTO, 2002).
Rosemberg (2009) aponta, numa perspectiva bem próxima de Bourdieu (1995)5, outro ponto elementar
desta segregação informal: a contemporânea universalização do acesso à educação não universaliza qualidade
do ensino. Há uma marcante diferença entre escolas da periferia, para negros pobres, e escolas de zonas urbanas
privilegiadas, agindo como engenharia atualizada do racismo institucional, que mantém os elementos de
distinção e desigualdade no acesso ao ensino superior e estabelece uma reserva de mercado branca.
Também um fator importante nesse processo é a dimensão do simbólico: o caráter racista dos currículos
da escola base tende a produzir a internalização da condição de inferioridade nos negros desde a infância,
desestimulando sua permanência na escola (HASENBALG e SILVA, 1977; RIBEIRO, 2001, OLIVEIRA e
GONÇALVES, 2003; SANTOS, 2007). Por isso, “embora a educação seja uma variável considerada
preponderante, quando nos propormos a analisar os processos de ascensão, ainda assim diversos outros fatores
contribuirão com níveis diferenciados para o alcance do sucesso” (SILVA, 2010: 23), pois, como os dados nos
mostram, a variável cor/raça tem importância significativa na estruturação da estratificação social, dado o nível
determinante das representações simbólicas.
É por isso que Henriques (2001), a partir de análises quantitativas, defende desnaturalizar a desigualdade
racial. Para o autor, a nítida concentração de pobres nos contingentes populacionais negros assevera um
alinhamento de raça e classe no qual nascer negro “aumenta de forma significativa a probabilidade de um
brasileiro ser pobre” (IBID: 11), visto que a estrutura da distribuição de renda “traduz um nítido
‘embranquecimento’ da riqueza e do bem-estar no país” (IBID: 17) e demarca a intensa desigualdade de
oportunidades a que os negros estão sujeitos, particularmente explicitada pela heterogeneidade educacional dos
grupos de cor. Nesse sentido, seria urgente problematizar o arranjo social no qual o negro tem um lugar
“natural” nos estamentos mais pobres.
Então, se o papel da educação no processo de mobilidade social é indubitável, há, porém, uma nítida
linha de cor no retrato socioeconômico da desigualdade que tensiona a sua eficácia, visto que “a população
escurece quando nos adentramos no mapa da exclusão” (PRUDENTE, 2003: 90). Diante desse quadro teórico
reflexivo, buscamos analisar como as políticas públicas recentes no Brasil elabora ressignificações das
representações sociais do negro, os argumentos que mobilizam e as práticas que estabelecem.
2. Políticas pública recentes no Brasil: parâmetros e semântica de um projeto inclusivo
Em 2015, o Brasil possui a segunda maior população afrodescendente do mundo: cerca de 105 milhões de
pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. O Sistema ONU no Brasil, em parceria com a Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), lançou nacionalmente a Década Internacional de
5
O autor questiona tomar-se a educação como veículo de ascensão e igualdade social, apresentando-a, antes, como instrumento de
reprodução das desigualdades sociais, dada sua ação homogeneizadora que, pela indiferença às disparidades nos pontos de partida,
legitima as desigualdades e sanciona a herança cultural como dom natural.
Afrodescendentes com o tema “Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento” (1º de janeiro
de 2015 e fim em 31 de dezembro de 2024).
3. Avaliação da efetividade: os dados atuais entre o material e o simbólico
Segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
50,74% dos brasileiros são negros6. Este grupo compreendia 28,46% da população economicamente ativa
(PEA), sendo que apenas 1,77% deles possuíam ensino superior completo, e percebiam renda média sempre
menor: em fevereiro de 2014, o rendimento médio da PEA branca era de R$ 2.510,44, enquanto a PEA negra
alcançava uma média de R$ 1.428,79 (Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE). Entrando na segunda década do
século XXI, os negros permanecem super-representados entre desempregados e ocupações precárias
(PNAD/IBGE 2012). Normalmente tende-se a explicar esses dados pelos diferentes níveis de escolarização.
Segundo o DIEESE (2014), o acesso à educação de qualidade é um dos principais mecanismos de distribuição
de renda, no entanto, a escolaridade média dos negros em 2012 era de 7,1 anos de estudo, (80% da média de
estudo dos brancos); ainda mais, 70% dos brasileiros analfabetos são negros. A mesma disparidade aparece nos
níveis mais elevados de escolarização:
Tabela 1 – Pessoas que frequentavam ensino superior e pós-graduação – Brasil 2010
Nível de ensino
Superior de graduação
Especialização de nível superior
Mestrado
Doutorado
Cor ou raça
Total
%
Total
6.197.318
10,40
Brancos
3.906.166
6,56
Negros
2.187.707
3,67
Total
666.613
1,12
Brancos
449.314
0,75
Negros
205.510
0,29
Total
177.472
0,30
Branca
127.971
0,21
Negros
46.242
0,07
Total
77.763
0,13
Brancos
58.947
0,10
Negros
17.304
0,03
Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2010. Elaboração dos autores.
Mas, mesmo equalizando a escolaridade, do total de negros com ensino superior concluído, 42,6% têm
renda domiciliar per capita (RDPC) de até dois salários mínimos, o que representa uma renda 30% menor que a
de brancos com o mesmo nível escolar (IPEA, 2014). O mesmo se repete com relação aos pós-graduados: ao
passo em que 65% dos mestres e doutores declaram ter RDPC superior a três salários mínimos, entre os negros
deste grupo escolar a renda média se limita a dois salários mínimos7.
6
São os dados totais mais recentes. Seguindo a maioria dos estudos raciais, bem como a categorização do Movimento Negro,
considera-se população negra a soma das categorias “Preta” (7,61%) e “Parda” (43,13%) identificadas pelo IBGE.
7
Segundo a PME/IBGE de fevereiro de 2014, negros com 11 anos ou mais de escolarização recebiam em média de R$ 1.722,13,
enquanto brancos R$ 2.966,42, uma diferença superior a 70%.
Ou seja, a questão racial impacta sobre a distribuição das posições ocupacionais e em suas hierarquias.
Mais do que isso, estes dados indicam a pujança do racismo institucional brasileiro na atualidade, que age na
conformação de pontos de partida, no acesso desigual aos instrumentos de competição. Um bom exemplo disso
é a administração pública onde, apesar dos critérios impessoais de seleção, a maioria branca é inquestionável,
especialmente nas carreiras de maior prestígio e remuneração: na diplomacia tem-se 94,1% de brancos; nas
carreiras de superintendências (CVM/SUSEP8), 6,3% são negros. Ou seja, a presença negra cresce na medida
em que diminui o grau de prestígio da ocupação e de sua remuneração na carreira pública. Isso acontece porque,
“assim como ocorre no ingresso no ensino superior, resta evidente que não há iguais condições de formação e
preparação dos candidatos” (IPEA, 2014: 5)9.
Tomamos assim, a educação como um dos mais expressivos indicadores dessa desigualdade, que
repercute no mundo do trabalho e nas possibilidades de ascensão social dos grupos negros. Sobre isso, dados
preliminares do Censo do Ensino Superior de 2013 indica que os negros eram apenas 14,51% dos que
frequentavam o ensino superior no Brasil, o que representa um crescimento de 4 pontos percentuais em relação
à 2010. De modo geral, sua presença se concentra também em áreas de formação de menor prestígio,
especialmente educação e licenciaturas (SILVA, 2010; TEIXEIRA, 2003).
Um bom exemplo disso está no aumento acentuado de professores negros na educação básica: 60,52%
entre 2003 e 2013 (DIEESE, 2014). As explicações possíveis, segundo o DIEESE, seriam um o aumento do
auto-reconhecimento dos negros como negros (declaração de pertencimento étnico dos já professores) e as
políticas afirmativas governamentais de recorte racial. Noutra perspectiva, poder-se-ia pensar ainda que, como a
expansão quantitativa da educação nem sempre vem acompanhada de expansão qualitativa, a educação tem se
tornado uma ocupação cada vez mais precária, implicando uma retirada dos brancos e a consequente relegação
desta atividade aos grupos tradicionalmente desprivilegiados.
Mas de modo geral, todos esses dados alcançam importância na medida em que expressam uma
disparidade que se aprofunda quando se avança nos níveis de excelência educacional, recaindo no ponto central
desta análise – a carreira docente universitária. Tida como um clímax da ascensão intelectual e de estabilidade
socioeconômica quando em instituições públicas, ela se constitui um foco analítico particularmente expressivo
das tensões que permeiam o racismo institucional, enquanto fenômeno estrutural e simbólico.
A despeito de uma maioria populacional negra, docentes negros no ensino superior são ínfima minoria:
TABELA 2 – Docente no Ensino Superior por cor/raça – Brasil 2012
COR/RAÇA
Branca
8
TOTAL
180.052
%
47,51
Banco Central (BC), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) e
Superintendência de Seguros Privados.
9 PAIXÃO (et. al., 2014), trabalhando com dados ativos das 6 maiores regiões metropolitanas do Brasil obtidos do IBGE e do
Ministério do Trabalho, indica que somente 30% dos servidores públicos cadastrados no Sistema Integral de Administração de
Recursos Humanos (SIAPE) das agencias federais são negros, dos quais a grande maioria ocupa carreiras de porteiro, zelador,
segurança, coletores de lixo, carregadores.
Preta
5.035
1,32
Parda
45.110
11,9
Amarela
2.927
0,77
Indígena
377
0,09
Não Declarada
82.152
21,68
IES Não Dispõe de Informação
63.286
16,7
TOTAL
378.939
100
Fonte: INEP - Censo da Educação Superior 2012. Elaboração dos autores.
Se trabalharmos apenas com os dados declarados de cor/raça, retirando os totais não informados, termos
um universo de 77% de docentes brancos, contra 22% de negros:
1%0%
20%
Docentes Por Cor/Raça
2%
77%
Branca
Preta
Parda
No início dos anos 2000 grandes universidades públicas brasileiras somavam uma variação próxima de
1% de docentes negros em seus quadros funcionais, indicando o que Carvalho (2006) denomina de
confinamento racial do mundo acadêmico. Para o autor, opera uma invisibilização do racismo nestas
universidades, na medida em que se teoriza sobre o tema, mas não se reconhece a prática insulada e excludente,
claramente expressa na escassez de negros pós-graduandos e docentes.
Passada mais de uma década e sob o impacto de ações afirmativas, lamentamos observar que este quadro
não sofreu alterações vultuosas: várias importantes instituições de ensino não informam dados sobre a
composição étnica de seus quadros docentes10. Dentre as universidades às quais pertencem nossos
entrevistados, a UNIOESTE também não dispõe da informação, a UNICAMP contava com 1,82% de docentes
negros em 2012, a UFPR com 1,59%. Dos 50.145 docentes negros indicados na base do INEP 2012, somente
33,9% estão em IES públicas (estaduais e federais); são de maioria masculina (54,43%) e, em geral, possuem
titulação máxima de mestres: 43,09% (36,48% são especialistas e 17,34% são doutores)11.
Assim, apesar dos avanços contemporâneos e da expansão do ensino universitário na última década
(INEP, 2013), a presença negra na docência permanece diminuta. Opera por traz e como desencadeador dessa
realidade, o passivo histórico de um projeto social exclusivista que, desde o limiar da República, orienta a nação
e tem na educação um de seus instrumentos base: a escola pública tornou-se um espaço branco (MÜLLER,
2003; DÁVILA, 2003), porque branca era a cor da civilização e da modernidade. E quando, no contexto dos
10
40% da distribuição total de IES não apresentam informações étnicas, é o caso da UnB, por exemplo. Os dados preliminares do
INEP 2013 também não trazem esta categoria, razão pela qual trabalhamos aqui com a base de Microdados de 2012.
11 Os dados totais desagregados por cor/raça indicam que, dos 378.939 docentes em IES nacionais, 39% são mestres e 31% são
doutores.
anos 1930, surgiram nossas universidades, “já o fizeram dentro de um clima geral racista que desautorizava a
presença negra na educação. [...] É um fato histórico, portanto, que a universidade pública no Brasil foi
instalada explicitamente sob o signo da brancura” (CARVALHO, 2005: 96).
Percebe-se que, se a educação constitui importante filtro para a mobilidade social, também tem agido
para a reprodução das desigualdades sociais (Bourdieu, 1995).
Considerações finais
Afinal, quais as ações concretas do governo federal brasileiro que podem ser enquadradas como um
conjunto de estratégias coordenadas e convergentes para superação do diagnóstico acima, notadamente na
Educação? Sem pretender prognóstico exaustivo, elencam-se as principais ações, ênfase no período 2003-2014,
organizadas por quatro períodos sucessivos de governo que mantiveram os pactos originais para igualdade
racial. O quadro a seguir seleciona organiza algumas das principais delas.
QUADRO 1 INSTRUMENTOS E FIGURAS LEGAIS PARA IGUALDADE RACIAL
NSTRUMENTO OU
FIGURA LEGAL INÍCIO DA VIGÊNCIA TEMPO DE VIDA
statuto da Igualdade
Racial
INAPIR, Sistema
Nacional de Políticas de
romoção da Igualdade
Racial
2010
2013
PRINCIPAL EXPRESSÃO OU RESULTADO
05 anos
Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010
02 anos
Instituído pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), o Sistema Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) foi regulamentado peloDecreto n° 8136/2013,
assinado pela presidenta Dilma Rousseff na abertura da III Conferência Nacional de
Promoção da Igualdade Racial (III Conapir), que ocorreu de 5 a 7 de novembro de 2013,
e pela Portaria SEPPIR n.º 8, de 11 de fevereiro de 2014.
Conselho Nacional de
romoção da Igualdade
Racial
2003
12 anos
O Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial (CNPIR) é um órgão colegiado, de
caráter consultivo e integrante da estrutura básica da SEPPIR. Sua principal
missão é propor políticas de promoção da igualdade racial, com ênfase na população
negra e outros segmentos raciais e étnicos da população brasileira. Além do combate ao
racismo, o CNPIR tem por missão propor alternativas para a superação das desigualdades
raciais, tanto do ponto de vista econômico quanto social, político e cultural, ampliando,
assim, os processos de controle social sobre as referidas políticas. Presidido
pela ministra da SEPPIR, o Conselho é composto por 22 órgãos do Poder Público
Federal, 19 entidades da sociedade civil, escolhidas através de edital público, e por três
notáveis indicados pela SEPPIR.
istema de
Monitoramento de
olíticas de Igualdade
Racial
2010
05 anos
http://monitoramento.seppir.gov.br/
Ouvidoria Nacional da
gualdade racial
2011
04 anos
A Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial é um órgão da estrutura da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR/PR,
cuja função precípua é receber denúncias de racismo e de discriminação racial e
encaminhá-las aos órgãos responsáveis nas esferas federal, estaduais e municipais. A
Ouvidoria é também encarregada de receber observações, críticas ou sugestões para
garantir a sintonia do trabalho da SEPPIR com os anseios da sociedade.
Fonte: SEPPIR, Secretaria Especial de Políticas de Igualdade racial. Elaboração dos autores.
Ao tempo em que se conclui este artigo, a 29 de agosto de 2015, a Lei 12.711/2012 (Lei das Cotas nas
Universidades) completa três anos.
A medida é resultado de uma das mais longevas estratégias de mobilização dos movimentos sociais
negros para ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Todas as 128 universidades ou institutos
federais de ensino superior têm compromissos e metas a cumprir, conforme extrato, abaixo, incluindo
resultados recentes já atingidos. Se alunos negros entram, ao menos, em maior número nas universidades
federais, vejamos em pesquisas a futuro, suas trajetórias e se acaso se tornarão mestres ou doutores nesses
mesmos ambientes.
QUADRO 1. PORCENTUAL DE VAGAS OFERTADAS PARA COTISTAS. EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR
META
REALIZADO
2013
-
33%
2014
-
40%
2015
-
-
2016
50%
Fontes: Ministério da Educação e Cultura, MEC e Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR (2015). Elaboração dos autores.
Em setembro de 2015 o governo federal brasileiro realizará uma das mais largas reformas
administrativas de sua história, em um ambiente marcado por signos de muitos e múltiplos níveis de
desconfiança oriundos de determinados setores da Sociedade. Desde 2013 inúmeros protestos – alguns com
conotações eleitorais, outros pleiteando políticas públicas específicas de transporte ou genéricas de
saúde/educação ou ainda de ascenso de grupos de oposição de direita – têm pressionado o governo de muitas
formas, sem que este tenha aberto mão de práticas e de tecnologias de diálogo social utilizadas amplamente,
com êxito, desde 2003.
A reforma administrativa de 2015 deverá organizar e orientar uma nova divisão ministerial incluindo a
supressão e o redesenho de instituições, como os Ministérios e as Secretarias Especiais, caso da SEPPIR,
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. A posição que a SEPPIR deverá assumir no novo
organograma do governo brasileiro muito dirá sobre o empoderamento de agentes e o protagonismo da agenda
até aqui construídas e constituídas.
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