Estoque regulador do etanol NETTO DELFIM, ANTONIO. “Estoque regulador do etanol”. Valor Econômico. São Paulo, 02 de fevereiro de 2010. A enorme discussão a respeito do aumento estacional do preço do etanol revela a sua importância na substituição dos derivados do petróleo no setor de transporte (leve e pesado) e, muito em breve, na produção de energia elétrica. Estima-se que quase 2/3 daqueles derivados são utilizados no transporte de pessoas e mercadorias. As importações de petróleo são responsáveis por 61% do formidável déficit comercial dos EUA em 2009, o que mostra que aquele país perdeu a sua autonomia energética que caracteriza, junto com as autonomias alimentar e militar, o poder do Império. Não foi à toa, ou por acaso, que no lançamento do seu programa energético (5 de maio de 2009), o então recém-eleito presidente Barack Obama disse: "Devemos investir numa economia de energia limpa, que criará novos empregos, novos negócios e reduzirá nossa dependência da importação de petróleo. As medidas que estamos anunciando levam-nos para perto desse objetivo. Se desejarmos liderar a economia global do século XXI, devemos liderar a tecnologia da produção de energia limpa. Com a engenhosidade e determinação dos americanos, podemos e vamos ser bemsucedidos". Seu competente e eficiente secretário de Energia, Steven Chu anunciou, ao lançar o programa de quase US$ 800 bilhões (metade do PIB anual do Brasil!): "O desenvolvimento da tecnologia de próxima geração de biocombustíveis é a chave para terminar nossa dependência da importação de petróleo e amenizar a crise climática. Ao mesmo tempo criará milhões de empregos que não podem ser transferidos para o exterior (outsourced)", e acrescentou: "Com os investimentos e a engenhosidade dos americanos - e recursos criados aqui mesmo no país -poderemos liderar o desenvolvimento da nova economia verde". Atualmente, o Brasil, graças às pesquisas de organismos privados, da Embrapa e da Petrobras, lidera a produção de etanol e caminha na produção mais eficiente do biodiesel. Como demonstrou em excelente artigo no Valor o competente ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Machado Rezende, o Brasil está antenado para tentar conservar essa liderança. A prova disso é a inauguração, em Campinas, do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE). Este é um investimento fundamental. As novas tecnologias que estão sendo desenvolvidas nos laboratórios e na academia dos EUA (graças à dotação dos US$ 800 bilhões!) devem trazer, num futuro não muito distante, surpresas insuspeitadas em matéria de produção de energia verde. Um dos caminhos promissores (e privilegiados pelo programa americano) é a tecnologia da produção de etanol derivado de algas. Tudo indica que quando ela for economicamente factível (as pesquisas já têm mais de 50 anos) haverá uma verdadeira revolução na substituição do petróleo. O uso do etanol como combustível líquido no setor de transporte (terrestre e aéreo), no setor de energia elétrica (turbinas a etanol) e nos derivados do álcool-química são visíveis a olho nu. Dentro de alguns anos será fator determinante na formação dos preços dos combustíveis fósseis. Isso sem falar nas outras fontes de energia (solar, geotérmica, eólica, atômica etc.), cujas tecnologias se desenvolvem celeremente. A energia fóssil (carvão e petróleo), que produziu a revolução industrial e o desenvolvimento dos séculos XVIII a XX, vai perder a sua hegemonia no século XXI. Trará, como subproduto, uma redução da produção de CO2 (e outros gases de efeito estufa) por unidade do PIB, o que amenizará os efeitos da atividade humana sobre a evolução do clima do planeta. Essa perspectiva sugere que devemos tentar fazer do limão (o tremendo aumento estacional do etanol na safra 2009/2010) uma limonada: trabalhar para tornar, efetivamente, o etanol uma commodity, com preços regulados por contratos bem construídos nas bolsas internacionais. Isso exige uma ação preliminar do Brasil e dos Estados Unidos. O primeiro, eliminando a tarifa alfandegária de 20% sobre a importação do etanol; o segundo, aproveitando a oportunidade para eliminar seu abusivo imposto sobre a unidade do produto (2,5% "ad valorem", mais US$ 0,54 por galão) sobre sua importação. Esse é o único caminho para amenizar (não eliminar) a natural variação estacional dos preços de um produto agrícola (com safras diferentes dependendo da latitude dos países) que é produzido num curto período (menos de seis meses) e consumido de forma quase uniforme ao longo de 12 meses. Exatamente por causa das "incertezas do tempo" é necessário, também, manter um estoque de reserva de dois a três meses de consumo. A estocagem da reserva de passagem e do produto ao longo do ano tem um custo respeitável. Com parâmetros razoáveis: reserva de passagem de dois meses e meio, taxa de juros da ordem de 10% a 20% ao ano e custo de armazenagem de 1%, os preços do etanol são onerados entre 9% e 15%. Esse custo poderia ser significativamente reduzido e seus preços menos influenciados pelas variações estacionais, com o etanol como uma commodity internacional. É preciso não ser tentado pela solução aparentemente fácil que tal objetivo possa ser intermediado pela construção de um estoque regulador nacional controlado pelo governo. Esse filme nós já produzimos em preto e branco e não teve um final feliz... Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.