FUNDAÇÃO MINEIRA DE EDUCAÇÃO E CULTURA UNIVERSIDADE FUMEC Programa de Pós-Graduação em Direito Maria Elisa de Vilhena Loureiro A “DESSUBJETIVAÇÃO” DECISÓRIA INTERPRETATIVA COMO VIABILIZADORA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: considerações sobre as influências da teoria neoinstitucionalista reconstrução das práticas judiciárias Belo Horizonte 2013 do processo na Maria Elisa de Vilhena Loureiro A “DESSUBJETIVAÇÃO” DECISÓRIA INTERPRETATIVA COMO VIABILIZADORA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: considerações sobre as influências da teoria neoinstitucionalista do processo na reconstrução das práticas judiciárias Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Fundação Mineira de Educação e Cultura - Universidade FUMEC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. André Cordeiro Leal Belo Horizonte 2013 FICHA CATALOGRÁFICA Ficha catalográfica elaborada por: Xxx Xxx– CRBL375u Loureiro, Maria Elisa de Vilhena Loureiro. A ―dessubjetivação‖ decisória interpretativa como viabilizadora do Estado Democrático de Direito: considerações sobre as influências da teoria neoinstitucionalista do processo na reconstrução das práticas judiciárias. Maria Elisa de Vilhena Loureiro. Belo Horizonte: FUMEC – 2013. 67f. Orientador – Prof.Dr. André Cordeiro Leal. Dissertação (Mestrado em Direito) FUMEC – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Inclui bibliografia. 1. Decisão objetiva. 2. Reconstrução interpretativa. 3. Teoria neoinstitucionalista. 4. Estado Democrático de Direito. I. Leal, André Cordeiro II. FUMEC. III. Título. CDU – 336.2 Maria Elisa de Vilhena Loureiro A “DESSUBJETIVAÇÃO” DECISÓRIA INTERPRETATIVA COMO VIABILIZADORA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: considerações sobre as influências da teoria neoinstitucionalista do processo na reconstrução das práticas judiciárias Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Fundação Mineira de Educação e Cultura - Universidade FUMEC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. ___________________________________________________ Prof. Dr. André Cordeiro Leal (Orientador) – Universidade FUMEC ____________________________________________________ Profa. Dra. Maria Tereza Fonseca Dias – Universidade FUMEC ______________________________________________________ Profa. Dra. Andréa Alves de Almeida – UNIFEMM Belo Horizonte, 9 de julho de 2013. AGRADECIMENTOS Ao prof. André Leal, pelas palavras de inspiração e motivação. À minha família, pelo incentivo e confiança. Ao Leonardo, pela paciência e companheirismo. “É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim.” Sigmund Freud (O mal-estar da civilização) RESUMO O atual contexto das práticas judiciárias demonstra a ilegitimidade das decisões motivadas em interpretações acobertadas por preceitos morais e, portanto, subjetivos. Teorias autoritárias e parciais são deliberadamente utilizadas por nossos tribunais, cujas verdades universalizadas correspondem a justificativas irrefutáveis. Surge, portanto, a importante tarefa de assegurar uma discussão processual aberta e problematizada, num viés interpretativo (re)construtivo e democrático. O ―estado de exceção‖ é adotado por uma escolha estratégica, suspendendo o Direito, que, se transposto para a esfera processual, acaba por justificar provimentos que fogem à racionalidade. O que se pretende, desta feita, é demonstrar a forçosa necessidade do retorno ao Estado Democrático de Direito, com a reconstrução de conceitos fundamentais a uma sociedade democrática, tendo o processo como plano instituinte do direito democrático pelo discurso processualizado e testificado, possibilitando a crítica à linguagem (como meio universal de entendimento) e, como consequência, concedendo objetividade à decisão, conforme proposto pela teoria neoinstitucionalista do processo. Palavras-chave: Decisão objetiva. Reconstrução neoinstitucionalista. Estado Democrático de Direito. interpretativa. Teoria RESUMÉ Le contexte actuel des pratiques démontre l'illégitimité des décisions de justice sur les interprétations silencieuses motivée par des préceptes moraux et donc subjective. Théories autoritaires et partielle sont délibérément utilisés par nos tribunaux, dont universalisée vérités correspondent aux justifications irréfutables. Se pose donc la lourde tâche de veiller à une discussion ouverte et problématique de procédure, d'interprétation (re)constructif et démocratique. L 'état d'exception‘ est adopté par un choix stratégique, de suspendre la loi qui, si elle est appliquée dans le domaine de la procédure, en fin de compte justifier provisionses fuyant la rationalité. Ce qui est destinée, cette fois, est de démontrer la nécessité d'un retour forcé dans État de droit démocratique, avec la reconstruction des concepts fondamentaux d'une société démocratique et du plan de processus comme instituant le droit démocratique par la parole et a témoigné, ce qui permet critique à la langue (comme un moyen universel de compréhension) et, par conséquent, donner l'objectivité de la décision, tel que proposé par la théorie neoinstitucionalista. Mots-clés: Decision objective. Reconstruction neoinstitucionalista. L'état démocratique du droit. d'interprétation. La théorie SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 ALGUMAS CONCEPÇÕES SOBRE A LINGUAGEM E O CONHECIMENTO NA CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO DA LEI ................................................... 11 1.1 Linguagem, cognição e realidade e a construção do significado nas visões de Peirce, Saussure e Lacan ......................................................... 11 1.2 Conhecimento objetivo versus subjetivo e o problema do senso comum para Karl Popper ......................................................................................... 19 1.3 O conhecimento construído através das metodologias: tópica, sistema axiomático-dedutivo, sistema axiológico-teleológico e direito como sistema de princípios ................................................................................. 26 2 O DISCURSO PROCESSUAL COMO TEORIZANTE DA NORMA (INTERNORMATIVIDADE) ............................................................................ 31 2.1 Da estruturação do processo como contraditório segundo Fazzalari e a contribuição de outras teorias .................................................................. 31 2.2. A razão comunicativa habermasiana ......................................................... 35 2.3 A racionalidade crítica popperiana.............................................................. 39 2.4 A teoria neoinstitucionalista da decisão e o processo como eixo teóricolinguístico de estabilização do discurso constitucionalizado ................ 43 3 CRÍTICAS AO ATUAL CENÁRIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA ............................................................................................ 48 3.1 Discursos hegemônicos e a universalização de direitos: uma possível retórica ........................................................................................................ 48 3.2 A suspensão da aplicação da lei – o estado de exceção torna-se regra . 55 3.3 A dessubjetivação do conhecimento ou objetividade linguística como reconhecedora da sociedade democrática e legitimadora da decisão. 58 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 62 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 67 8 INTRODUÇÃO Bem se sabe que o Direito, em seu sentido lato, se expressa através de normas. A proposta deste trabalho é a de instalar um debate que objetiva demonstrar a necessidade precípua das normas se apresentarem suscetíveis a críticas pelos legitimados por meio do devido processo. Deparamo-nos hoje com teorias autoritárias e parciais utilizadas por nossos tribunais, cujas verdades universalizadas correspondem a justificativas metajurídicas e, portanto, irrefutáveis. Daí surge a importante tarefa de assegurar uma discussão processual aberta e problematizada, num viés interpretativo (re)construtivo e democrático. O que se pretende defender é que, para se lançar na tentativa de alcançar a gênese ou razão da lei, necessária se torna a busca do seu significado por uma linguagem autocrítica, ou melhor, a investigação da relação entre linguagem, cognição e realidade. Verificar-se-á, entretanto, que apenas a partir da testificação (falseamento) de direitos processualmente teorizados pelos envolvidos no processo por meio da instauração do denominado discurso jurídico constitucionalizado defendido pelo neoinstitucionalismo1 é possível desmistificar (pre)conceitos, ideologias e os próprios significados socializados, enraizados nas bases subjetivas do intérprete, permitindose, após este rompimento, a construção democrática do significado da lei. O marco teórico utilizado foi Karl Popper (e o racionalismo crítico por ele desenvolvido) e Rosemiro Leal (e sua teoria neoinstitucionalista do processo), a qual propõe a transposição do racionalismo crítico para o direito processual democrático. Com o fim de abordar organizada e evolutivamente o tema, no primeiro capítulo, serão analisadas algumas das teorias que visam à análise da relação entre significado e significante (de Peirce e Saussure), a busca pelo real, aquele que escapa à realidade (segundo Lacan) e, ainda, o conhecimento construído através da tópica e sistemas axiomático-dedutivo, axiológico-teleológico e de princípios, 1 ―A teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Pereira Leal esclarece o devido processo como instituinte do direito democrático, viabilizando a instauração de um espaço processual de discursividade crítica para investigação e construção do significado da lei democrática pelos destinatários da decisão.‖ (ALMEIDA, 2012, p. 145). 9 clarificando as diversas concepções da interpretação da lei e da construção do conhecimento. A problematização proposta confronta a ideia de objetividade e subjetividade, demonstrando as influências do processo histórico, cultural e a abordagem contextual na semiótica tradicional. Demonstrar-se-á que os efeitos dessa problematização surgem especialmente no espaço processualizado, já que este é o lugar onde se torna possível a intervenção e crítica à linguagem natural (subjetiva). Com a contribuição fazzalariana do procedimento em contraditório e o aperfeiçoamento da teoria do processo a partir das reflexões pragmáticas habermasianas e, sobretudo, através das conclusões problematizantes popperianas em sua lógica discursiva, a qual nos leva a crer que são indispensáveis funções mais elevadas da linguagem descritiva, crítica ou argumentativa para um discurso processual legítimo e constitucionalizado (ALMEIDA, 2012), o segundo capítulo tratará de abordar comparativamente tais evoluções teóricas. Pretende-se ratificar que é, portanto, perfeitamente plausível o pensamento de Karl Popper de que o conhecimento pode ser considerado objetivo quando ganha forma externa a nós mesmos, permitindo o debate. Os esforços aqui despendidos pretendem aprimorar a apreciação crítica em um discurso processual problematizado, além de deixar à mostra que esfinges como o uso deliberado de palavras cujo significado advém do dito ―senso comum‖ geram consequências devastadoras, o que se deve recalcitrantemente dirimir. A imersão na teoria neoinstitucionalista proporcionará a apresentação da aspirada diminuição do mando do referente na construção do significado da lei no discurso jurídico (LEAL, R. 2002). A perspectiva deste trabalho é sair da esfera comportamental, questionando e colocando à prova os fundamentos ideológicos, culturais ou estratégicos utilizados pelos intérpretes, quando a sociedade democrática (diversificada e não uniformizadora) se mostrará. O contexto atual demonstra claramente a ilegitimidade das decisões motivadas em interpretações imediatistas, acobertadas por preceitos morais (universalizados) e, portanto, subjetivos. No terceiro capítulo, a partir da teoria desenvolvida por Agamben, apresenta-se um cenário em que o ―estado de exceção‖ é adotado por uma escolha estratégica, que, se transposto para a esfera processual, acaba por justificar provimentos que fogem à racionalidade. 10 O que se pretende, portanto, é o retorno ao Estado Democrático de Direito, com a reconstrução de conceitos fundamentais a uma sociedade democrática, tendo o processo como plano instituinte do direito democrático pelo discurso processualizado e testificado, no qual coloca-se à prova a linguagem naturalmente utlizada. 11 1 ALGUMAS CONCEPÇÕES SOBRE A LINGUAGEM E O CONHECIMENTO NA CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO DA LEI 1.1 Linguagem, cognição e realidade e a construção do significado nas visões de Peirce, Saussure e Lacan A ideia de processo como pacto sígnico na democracia, desenvolvida pela teoria neoinstitucionalista, que será objeto de detalhado estudo nos próximos capítulos, pode ser compreendida como uma evolução na formulação de conceitos anteriormente suscitados por outros autores, os quais se propuseram a discutir o papel da linguagem e o momento (ou espaço) de construção do significado. Assim, antes de tratar propriamente da construção do significado da lei, sua interpretação e, mesmo, da busca pelo conhecimento objetivo no espaço processualizado como fora proposto; o que se sugere é esclarecer como são depreendidos os sentidos através de uma investigação científica. Com a finalidade de demonstrar a construção do significado em espaços desprocessualizados, Almeida explica o modelo triádico desenvolvido por Peirce sobre o pacto de sentido: Seu procedimento consistia em afastar, na formação do significado, três métodos: o método a priori, que leva a conclusões fáceis porque acolhe qualquer crença a que nos sintamos inclinados; o método da autoridade, que suprime por coação ou terrorismo moral o pensamento ameaçador; e o método da tenacidade, que escolhida uma crença, simplesmente se fecha a qualquer outra. (2012, p.146). Peirce acreditava que havia um método de clarificar as ideias e realmente conhecer o pensamento comum, levando a uma só conclusão. Segundo ele, há coisas reais que afetam todos os homens, que independem de suas opiniões e, por tal motivo, pode levá-los, através de uma linguagem racional, a uma ―conclusão única e Verdadeira‖ (PEIRCE apud ALMEIDA, 2012, p. 146). Por considerar que os métodos dedutivo e indutivo não seriam capazes de oferecer uma compreensão satisfatória, já que através da dedução não se obtém uma conclusão criativa e o indutivo, por sua vez, não concederia uma resposta segura; a abdução – critério eleito como adequado pelo autor para a formação do 12 significado – seria a possibilidade de se obter um pensamento sem apelar para a individualidade do intérprete, a forma de investigar a crença. Ocorre que o caminho percorrido para se obter tal resultado não é, sobremaneira, simples. O método sígnico por ele proposto conta com três elementos necessários, o signo, o objeto e o interpretante. Vale frisar, como Eco, in Almeida, bem explica, que: o interpretante não é o intérprete para Peirce. Ele seria a cadeia de signos ou significantes, representada pelo que o autor chamou de semiose ilimitada, já que, para estabelecer o significado de um significante, é necessário nomear o primeiro significado por meio de outro significante, que será interpretado por outro e assim sucessivamente, sendo esse o papel do signo interpretante (ECO apud ALMEIDA, 2012, p. 149). Com Almeida percebeu, o problema é que esses signos ou significados não assumem autonomia em relação a eles mesmos, nem ao objeto que trata de conferir significado, pois se busca, em última análise, o significante-significado-referente na realidade cultural dada, o que, por si só, impede o afastamento da subjetividade (ALMEIDA, 2012, p.148-149). O raciocínio por abdução sugere que algo ―pode ser‖ e, portanto, no processo de investigação a hipótese sempre deverá ser repetidamente comprovada, proporcionando apenas um pragmatismo exacerbado, senão vejamos: Uma abdução é um método de elaborar Previsão geral sem qualquer garantia positiva de que ela se concretizará, seja no caso especial, seja nos casos comuns; sua justificação está em ela ser a única esperança possível de regular racionalmente nossa futura conduta e em que a Indução, com base na experiência passada, nos fornece forte estímulo para esperar que venha a ter êxito no futuro. (PEIRCE apud ALMEIDA, 2012, p. 147). Mesmo com a tentativa de negar o apelo à individualidade como forma de proporcionar um conhecimento válido, Peirce não consegue afastar em seu método a experiência inquestionável, pressuposta, tida como verdade e, portanto, isenta de objetividade. No método da abdução, o signo deve ser conhecido para se referir ao objeto e, sem dúvida, para que possa se reproduzir. O interpretante, portanto, estará dotado de influências de opiniões, de uma unidade cultural, o que acarretaria na construção do significado em verdades consensuais, universalizadas, neste espaço desprocessualizado. 13 Um passo à frente do pensamento de Peirce, Schaff (1968, p. 320-321) procura acrescentar a realidade à investigação da linguagem formulando, a partir de uma visão mais concreta, a seguinte pergunta: seria possível tratarmos autonomamente a linguagem em abstração dos fatos extraluinguísticos? Com a finalidade de estabelecer de forma clara e menos filosófica a relação entre linguagem-pensamento e realidade, buscando responder qual seria a relação existente entre nossa cognição linguística e o objeto de tal cognição, analisa o que ocuparia o lugar antes do referente, defendendo a tese de que: [...] a linguagem, inseparavelmente ligada ao pensar e desempenhando juntamente com o pensar uma única e mesma função em que se baseia a natureza específica da cognição humana - é formada no processo de experiência humana e é em si fato empírico e não um produto de convenção arbitrária. Isto significa que a linguagem-pensamento dá um reflexo específico da realidade, que seu desenvolvimento é causado pelo desenvolvimento da própria realidade, e pelo desenvolvimento da compreensão humana desta realidade, quer na teoria, quer na prática.(SCHAFF, 1968, p. 324). Após seus estudos, chega a concluir que somente vislumbraria a possibilidade de esclarecer tal questão a partir da análise da teoria da reflexão, observado o sentido especifico que a filosofia marxista atribuiu ao termo, rejeitando as soluções de intepretação da linguagem como produto puramente convencional e a daquela que depreende da estrutura da linguagem uma imagem da realidade, (SCHAFF, 1968, p. 323). Para Rosemiro Leal o referente representa a realidade fabricada, como um ordenador ideológico da prática e estereótipos sociais, o que corrobora a impossibilidade de tratar a linguagem autonomamente (LEAL, R., apud ALMEIDA, 2012, p.152). Ainda, Buchholz, ao analisar sinteticamente o pensamento de Wittgenstein acerca da realidade, assevera: Wittgenstein parte da idéia de que proposições são figurações da realidade, cuja própria relação afiguradora não pode novamente ser exprimida em termos linguísticos. Além disso, ele deseja analisar logicamente as proposições da linguagem de uso cotidiana para evitar suas imprecisões e sua polissemia. Mais tarde ele simpatiza primeiro com a idéia de que o significado das palavras depende das suas regras de emprego de forma parecida com as possibilidades de movimento de uma peça de xadrez. Isso, por sua vez, leva Wittgenstein à concepção de que o significado linguístico é determinado pelos vínculos de ação nos quais os sinais linguísticos são empregados. Esses vínculos de ação, Wittgenstein os denomina jogos de linguagem. (2008, p. 83). 14 O jogo de linguagem, por ele preconizado, não vai além da tradução da ideia de ―contar acontecimentos passados‖ e, por tal motivo, os sinais somente têm um significado quando são empregados. Isso quer dizer que os sinais linguísticos retratam situações concretas, evidenciadas no contexto histórico-cultural, através do qual se relacionam umas com as outras as diversas ações de uma pessoa (BUCHHOLZ, 2008, p. 78-79). Ele entende que, se quisermos determinar significados, deveremos descrever vínculos de vida, sendo a linguagem cotidiana suficiente para determinar os significados das palavras. Mas bem se sabe que esta postura não ampliará o nosso saber, estando fadado ao culto da predestinação. Segundo Almeida (2012, p.152) e como pelo autor enunciado, Schaff, tem traços ideológicos embebidos na teoria marxista e hegeliana e entendem que o significado e o sentido das palavras são buscados no referente, que, por sua vez, é resultado da história, o que pode ser corroborado pelas palavras de Popper: O problema das definições e da ―significação das palavras‖ não se relaciona diretamente com o historicismo. Tem sido, porém, inexaurível fonte de confusão e daquela espécie particular de verborreia que, quando combina ao historicismo de Hegel, dá origem à venenosa enfermidade intelectual de nossos próprios dias a que chamo filosofia oracular. E é a mais importante fonte da ainda lastimavelmente predominante influência intelectual de Aristóteles, de todo aquele escolasticismo verbal e vazio que invade não só a Idade Média como a nossa própria filosofia contemporânea [...]. (POPPER, 1998b, p. 15). Segundo Popper, a filosofia oracular e as profecias históricas, tais como as denomina, estão fora do alcance do âmbito do método científico,demonstrando a tendência do historicismo de sustentar a impotência da razão na vida social, significando uma ―submissão passiva às forças pessoais ou anônimas que governam a sociedade‖ (POPPER, 1998a, p. 19). O autor não identifica o historicismo como o problema da significação, mas considera exagerado o pensamento hegeliano quanto à limitação de aquisição do conhecimento somente a partir da identidade entre a mente e o mundo. Diferentemente, Sausurre deixa de lado o referente na construção do significado, acreditando estar a significação no interior da própria linguagem. O valor linguístico estaria no próprio sistema de linguístico (SAUSURRE apud ALMEIDA, 2012, p.155). Pode-se dizer que: 15 [...] ele adotou o método estruturalista e a noção de sistema para os estudos linguísticos, afirmando que a linguagem reconstrói suas próprias regras de funcionamento, seus procedimentos e suas redes de dependência de maneira interna, ou seja, no interior do próprio sistema linguístico. (ALMEIDA, 2012, p. 155). Saussure insiste que o signo não é uma relação simples entre significante e significado e que suas diferenças não existem antes, mas somente depois de seu emprego, reunindo de modo positivo as diferenças, compreendidas como valores. Esses valores, por sua vez, só existem baseados na consciência de sujeitos falantes, pois apenas percebem as diferenças, ou seja, só há consciência dos valores, introduzindo a noção de um sistema dialético (no interior do próprio sistema linguístico) (ALMEIDA, 2012, p.156-157). Nöth conclui: Por isso o valor do signo linguístico na teoria de Saussure não se encontra ligado aos objetos que designa, mas é construído apenas dentro do espaço das relações com os outros signos com os quais forma o sistema, buscando-se o sentido no contexto do próprio texto e não mais subjetiva ou historicamente fora dele. (NÖTH apud ALMEIDA, 2012, p. 155). O sistema proposto por Saussure tem como base a percepção de sujeitos, que se forma a cada momento do discurso e, consequentemente, não pode ser homogêneo ou inerte, nem considerado pronto e acabado, mas um sistema em constante movimento e transformações. Sua teoria se fundamenta no caráter universal da língua (signo linguístico) em oposição à utilização individual da fala, deixando a fala fora da ciência (ALMEIDA, 2012, p.155). Longe de ser a intenção do autor a defesa de uma abstração, fundamenta as unidades do sistema linguístico na consciência dos sujeitos, ou seja, isto é o que daria permissão a falar de signos como um fato da realidade. No espaço saussureano de construção do significado, a linguagem constrói a realidade, sendo que o sentido acontece na relação existente entre os enunciados. Segundo o autor, ―o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica2‖ (SAUSSURE, 1988, p. 80), o que o faz concluir que a ideia de ação vocal traduz na realização da imagem interior no discurso. Para Saussure, ―todo meio de expressão aceito numa sociedade repousa em princípio num hábito coletivo ou, o que vem dar na mesma, na convenção‖ 2 O têrmo de imagem acústica parecerá, talvez, muito estreito, pois ao lado da representação dos sons de uma palavra, existe também a de sua articulação, a imagem muscular do ato fonatório. (Saussure, 1988, p. 80). 16 (SAUSSURE, 1988, p. 82), utilizando-se da palavra símbolo como o signo linguístico, um vínculo existente entre significante e significado. Rosemiro Leal reproduz, já no espaço processualizado, a hipótese levantada por Saussure de não utilização do referente na formação do significado da lei democrática. Reconstrói o enunciado da teoria do autor, esclarecendo que, para a adequação ao campo jurídico, substituiria o significante como imagem acústica pelo texto da lei, e o signo seria o processo como paradigma linguístico (LEAL, R. apud ALMEIDA, 2012, 156-157). Apressa-se a afirmar que a teoria neoinstitucionalista não pretende abolir a linguagem ou negar seu papel interpretativo, mas levar até ela a crítica, reforçando sua necessária refutabilidade. Isso porque haveria um hiato entre a identificação do significado pela linguagem do sujeito (Eu) e pela do Outro,3 que vai além da alteridade e poderia ser entendida em processos singulares. Por conseguinte, se revelaria um espaço não alcançado pelas teorias sígnicas apresentadas. Para Alain Badiou (1995, p. 13): Um não é, não há Todo-Outro; o que há é a alteridade infinita, forma geral do ser múltiplo. [...] E se alteridade é o que há, o Mesmo é o que advém, aquilo que constrói – um sujeito – ao serem percorridas as três dimensões 4 de uma processo de verdade: acontecimento, fidelidade e verdade propriamente dita. O autor deflagra a impossibilidade de se estabelecer categorias abstratamente universais, já que tal unanimidade negaria a crítica dos processos singulares. Badiou, na contracorrente do consenso, delineia conceitos de ―verdade‖, ―ética‖ tendo como paradigma Lacan, que trouxe contribuições aos processos de entendimento do real. Esse vazio ou resto não simbolizável ensejaria a motivação de Lacan para explicar o real. Partindo do referencial do signo como estrutura psíquica, levantado 3 4 Quando Lacan examina a alteridade, como aquilo estranho para um sujeito ainda não especificado, diz: ―Essa alteridade percorre a inauspiciosa escalada que vai desde o inconsciente (o Outro como linguagem) e o eu (o outro imaginário [eu ideal] e o Outro como desejo [ideal de eu]) ao supereu freudiano (o Outro como gozo).‖ (FINK,1995, p. 9). ―O acontecimento é aqui uma noção-chave: definido como ―suplemento‖ causal e imprevisível da situação, dela destacado, é precisamente o que faz advir outra coisa que não a situação e as opiniões instituídas. Isto porque seu caráter ontológico fundamental é a capacidade de demarcar o vazio da situação anterior, aquilo ―para que‖ ele é acontecimento. Nomear o vazio, esse núcleo não simbolizado em torno do qual se organiza a situação, é também nomear o não-sabido. E as verdades, perfurando os saberes estabelecidos, heterogêneos a elas, abrem campo para a produção de novos saberes; daí decorre o poder transformador do acontecimento.‖ (BADIOU, 1995, p. 13). 17 por Sausaure (1988), Lacan apresenta o real como novo elemento para desvendar a construção do significado. Lacan (1979, p.14-16) toma outra direção para explicar a relação entre significante e significado. Mostra que uma praxis pode ser compreendida pela ação realizada pelo homem que permite tratar o real pelo simbólico. Ele constata que a busca do signo em uma base pressuposta na formação do significado, seja de identidade cultural ou histórica, que faria parte de uma esteira simbólica (cadeia preexistente), revelaria uma experiência quase mística. Sustenta, portanto, em sua teoria que no discurso psicanalítico o homem tem a liberdade de fazer rearranjos com os significantes, construindo novo significado a partir da conexão entre o simbólico e o real (ALMEIDA, 2012, p. 159). Fink explora a concepção de signifcado para Lacan, dizendo que para o psicanalista ―compreender significa localizar ou encaixar uma configuração de significantes dentro de outra‖. E, ainda, complementa a ideia fazendo a afirmativa: ―na maioria dos casos, compreender um processo não tão consciente quanto se poderia desejar, e que não exige nenhuma ação por parte do sujeito: as coisas se encaixam dentro da teia de conexões variadas de pensamentos já ―assimilados‖ ‖ (FINK, 1995, p. 95). Essa incursão do real no simbólico possibilitaria a produção de um significante, de algo novo no real. Ele explica por meio de três registros a estrutura psíquica humana: o real, o imaginário e o simbólico. O real situa-se no que ainda não foi simbolizado, onde existe sempre um resto que persiste lado a lado com o simbólico (FINK, 1995, p. 43-47). O autor ilustra a ideia lacaniana com a seguinte comparação: O real é, por exemplo, o corpo de uma criança ―antes‖ do domínio da ordem simbólica, antes de controlar os esfíncteres e aprender os costumes do mundo. No curso da socialização, o corpo é progressivamente escrito ou sobrescrito com significantes; o prazer está localizado em determindas zonas, enquanto outras são neutralizadas pela palavra e persuadidas a se conformarem com as normas sociais e comportamentais.(FINK, 1995, p. 43) Lacan define o real de diferentes modos, mas em todos eles o que importa é seu caráter evasivo ao sentido, seria o puro não-sentido, ao passo que é precisamente o sentido que caracteriza o imaginário, e o duplo sentido o que caracteriza o simbólico. O real seria o que é impensável, é o impossível de ser simbolizado; o real é, por excelência, o trauma, o que não é passível de ser assimilado pelo aparelho psíquico, o que não tem qualquer representação possível. 18 Por isso, o real é também aquilo que retorna ao mesmo lugar, já que o simbólico não consegue deslocá-lo. A realidade, por sua vez, precede a linguagem, ainda situada no imaginário (não verbal) (FINK, 1995, p.44-46). O imaginário já está associado à construção individual da subjetividade, uma espécie de reconhecimento ilusório de si. E o simbólico é coletivo e cultural. O simbólico, quando entra em encontro com o real, é deslocado até assumir formato do que conhecemos por realidade, tendo o valor socializado (linguagem) como referência do comportamento coletivo, trazendo a diferença do imaginário do campo do analisável (LACAN, 2005a, p. 19-21). E diz: ―não é porque o analisável encontra o imaginário que o imaginário se confunde com o analisável, ou analisado‖ (LACAN, 2005a, p. 21) O real lacaniano consiste em um espaço onde se torna possível problematizar a linguagem, no qual a relação entre significado e significante acontece percebendo a presença do simbólico. Lacan parafraseia Saussure quando afirma que o sujeito ―alucina seu mundo‖ diferenciando o imaginário do real, concluindo que ―as satisfações ilusórias do sujeito são evidentemente de ordem diversa das satisfações que encontram o seu objeto no real puro e simples‖ (LACAN, 2005a, p.16-17). Pode-se dizer que tais desdobramentos se tornaram relevantes contribuições para a revelação da teoria neoinstitucionalista como possibilidade da autonomia do significado em relação à cadeia preexistente de significantes (afastando a influência da linguagem natural, a conexão entre o simbólico e o real). O significante como o texto da lei, precedido por uma teoria, pode, assim, ser testificado, pela instauração do devido processo, pela relação entre processo e a metalinguagem. O pensamento de que há um espaço para construção do significado sem a interferência do simbólico permite assemelhá-lo à teoria neoinstitucionalista, embora nesta não seja necessária a ligação entre o imaginário, o simbólico e o real; já que se parte da teorização do texto da lei, que, por seu turno, é testificada pelo devido processo. Embora tenha sido um ganho ao desenvolvimento da teoria neoinstitucionalista da decidibilidade, o objetivo de Lacan de propor o inconsciente como cadeia de significantes não permite fazer uma transposição de suas conclusões de forma imediata e integral para a esfera jurídica processual. Apenas permite concluir que o conteúdo (significado) das palavras não pode ser desprezado, 19 mas, por outro lado, não é suficiente para irromper todos os seus significados e determinar o seu alcance. Tem-se, portanto, que a linguagem como elemento de significação e identificação do referente no espaço desprocessualizado não se torna capaz de alcançar todos democraticamente (como plano instituinte da democracia), pois é insuficiente a busca simplista pelo sentido das palavras e o consequente significado das leis utilizando-se das teorias apresentadas, já que, nestes casos, ainda ocorreria um mando de subjetividade daquele que as interpretasse. A construção do significado das palavras exige que se promova uma discussão em um espaço aberto à crítica e sua teorização e testificação em um campo investigativo do conhecimento objetivo, como se verá a seguir. 1.2 Conhecimento objetivo versus subjetivo e o problema do senso comum para Karl Popper A única forma possível de entendimento entre os homens é a aplicação de uma palavra por meio de outra. Essa assertiva retrata o que Aristóteles chamava de definição, interpretação ou significação. E, com o fim de estabelecer o significado dos termos, através do método essencialista de definições, sob certo ângulo: Aristóteles sustentava, com Platão, que possuímos uma faculdade, a intuição intelectual, pela qual podemos visualizar essências e descobrir qual é a definição correta; [...] Insisto, porém, de outra parte, que tais experiências, por importantes que possam ser para os nossos empreendimentos científicos, não podem servir para estabelecer a verdade de qualquer ideia ou teoria, por maior que seja a força com que possamos sentir intuitivamente que ela deve ser verdadeira [...]. Tais intuições nem mesmo podem servir de argumento, embora nos possa encorajar a buscar argumentos. De facto, outra pessoa pode ter uma intuição igualmente forte de que a mesma teoria é falsa. (POPPER, 1998b, p. 22). Apesar de ter se tornado ponto de partida para o desenvolvimento de outros métodos, a percepção do homem foi se aperfeiçoando e a concepção essencialista aristotélica tornou-se insustentável, levando a uma vazia controvérsia sobre palavras. Pode-se atribuir a influência do método essencialista ao porquê de nossas percepções sobre o conhecimento ainda estar arraigados à Idade Média. Segundo 20 Crossman, dentre os filósofos modernos, Wittgenstein, alimentado pelo preconceito de que a linguagem pode ser mais precisa pelo uso de definições, sustentava a ideia de que: [...] se não conhecermos com precisão os significados das palavras que usamos, nada poderemos discutir com proveito. A maior parte dos debates fúteis com que gastamos nosso tempo se deve principalmente ao facto de que cada um tem suas próprias e vagas significações das palavras que usamos e admite que os opoentes as usem com os mesmos sentidos. Se começarmos por definir nossos termos, teremos discussões muitíssimo mais proveitosas. (CROSSMAN apud POPPER, 1998b, p. 23). A partir do aristotelismo (linguagem monádica) e concepções filosóficas correlatas, fomos induzidos a acreditar que era importante alcançar um conhecimento preciso da significação de termos por nós utilizados. Essa concentração do problema na significação, segundo Popper, não deixa apenas de estabelecer a precisão, como é ela a fonte principal de vaguidão, confusão e ambiguidade (1998b, p.26-27). Popper expõe que, quando se trata de ciência, devemos ter o cuidado de manter as afirmativas que fazemos livres da significação de nossos termos. Mesmo quando estes são indefinidos, ―nunca tentamos derivar qualquer informação da definição, ou basear nela qualquer argumento‖ (1998b, p.26). Isso acontece porque temos a consciência que esses termos vagos, quando usados, podem se aproximar da precisão, sem, contudo, sobrecarregar seu significado antes da aplicação prática. Se nossa preocupação se concentrasse na importância da significação dos termos, sua vaguidão e ambiguidade, certamente, nos levariam a um verbalismo ou escolasticismo. Para Popper (1999), a teoria do conhecimento humano tem se mostrado demasiadamente subjetivista, como um tipo de crença humana, como mero reconhecimento do senso comum. Por discordar desta tradição, o autor tenta demonstrar sua inadequação e consequente necessidade de substituição pelo conhecimento objetivo. A conceituação filosófica dos termos objetividade e subjetividade foi preconizada especialmente por Kant. A palavra "objetivo" passa a ser utilizada para indicar que o conhecimento científico deve ser justificável, independentemente da crença pessoal daquele que o interpreta. Por conseguinte, tal justificação poderá ser considerada objetiva se for, em princípio, por todos compreendida. Segundo Kant, 21 se algo for tido como válido para todos aqueles que estejam na posse da razão, seus fundamentos serão suficientes e objetivos (KANT, 1987). Já a palavra "subjetivo", segundo o autor, refere-se aos sentimentos pessoais de convicção, crenças ligadas a motivos diversos (religião, cultura, intuições etc.). Kant acrescenta que razões objetivas podem atuar como causas subjetivas de juízo.à medida que refletimos acerca dessas razões e, consequentemente, deixamonos convencer de seu caráter racionalmente necessário (KANT, 1987). Segundo Kant, não podemos conhecer as coisas em si, mas sim aquilo que é permitido pela mente humana, concedendo ―racionalidade‖ ao conhecimento e constituindo conceitos universais. Afirma, ainda, ser notória a existência de conhecimentos universais e necessários e que, quando encontramos tais características, temos a certeza de dispormos de um conhecimento a priori. Na obra ―Crítica da Razão Prática‖, Kant demonstra que a razão pura é prática por si própria, fornecendo as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas, por sua vez, são princípios práticos objetivos, regras válidas para todo ser racional. Distinguem-se, portanto, das máximas, que são princípios práticos subjetivos, regras que o sujeito considera como válidas apenas para sua própria vontade. O que se pode confirmar por suas palavras: Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas. (KANT, 199-, p. 31). Para Kant, se os desejos, impulsos, impressões ou qualquer objeto de vontade forem condições para o princípio da regra prática, então o princípio será empírico e não lei prática, não haverá incondicionalidade do agir, e assim a autonomia não será garantida. A lei universal deve independer da experiência e não ser determinada por causas empíricas. "Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si mesmo, ou seja, à felicidade própria" (KANT, 199-, p. 33). Para Kant, o princípio do amor por si ou o da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prática, tendo em vista que sua validade é apenas subjetiva. Essa afirmação é feita com base na individualidade de cada um e sua respectiva visão do que seria felicidade ou sentimento em relação a algo, já que em 22 todos esses casos, a formulação se dá subjetivamente. Segundo ele, se tratássemos esse princípio como lei natural, este seria contingente e não garantiria a autonomia. Para Kant, somente a razão, determinando por si mesma a vontade, é uma verdadeira faculdade superior de desejar. A vontade, para ser moral, não deve determinar-se pelo objeto, deve abstrair a matéria da lei, conservando-lhe a forma e concedendo-lhe universalidade. Kant conclui que um ser racional não deve considerar suas máximas (princípios subjetivos práticos) como leis práticas universais, pode apenas tê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não conforme a matéria, mas pela forma. Não seria, pois, a razão que determina a moral, ou o que é considerado bom ou mau, mas a necessidade coletiva que determina a moral e a racionalização do que é bom ou mau. Segundo ele, as necessidades práticas para a existência da vida em sociedade criam os chamados imperativos, prescrições, deveres que determinam a ação a priori, antes da experiência. Popper entende que, mesmo partindo de conceitos ―objetivos‖, ou apriorísticos, como defendido por Kant, não haverá uma dessubjetivação eficaz. Não basta que sejam previamente consideradas ―racionais‖, as teorias científicas devem ser testificadas, pois não são inteiramente justificáveis. Popper reconhece que Kant foi: [...]talvez o primeiro a afirmar que a objetividade dos enunciados científicos está estreitamente relacionada com a elaboração de teorias - com o uso de hipóteses e de enunciados universais [...]. Só quando certos acontecimentos se repetem, segundo regras ou regularidades, tal como é o caso dos experimentos passíveis de reprodução, podem as observações ser submetidas à prova - em princípio - por qualquer pessoa. (POPPER, 1989, p. 46-49). As teorias devem, portanto, independentemente de sua ―repetição‖, ser submetidas a testes de refutabilidade, com vistas a uma aproximação da verdade racional. Como consequência, conclui que a objetividade dos enunciados científicos deverá ser manifesta, o que se vererá no decorrer do trabalho. Nas palavras de Popper: Todos os enunciados teóricos, assim como todos os enunciados científicos são objetivos, não reclamam nem são suscetíveis de análise lógica porque todo enunciado, enquanto descoberta, encerra necessariamente um elemento irracional ou uma intuição criadora, não havendo possibilidade de um método lógico de conceber idéias novas. (POPPER, 1989, p. 106). 23 Pode parecer paradoxal, em uma leitura precoce, a afirmação de Popper quando conceitua o conhecimento subjetivo como: ―O conhecimento possuído por algum sujeito conhecedor chamarei de ‗conhecimento subjetivo‘, apesar do fato de que simplesmente não existe conhecimento subjetivo puro, ou genuíno, ou não adulterado‖ (1975, p. 77). Todavia ele admite a existência de interferências subjetivas na construção do conhecimento e, por este motivo, apresenta a proposta de diminuição do comando do referente subjetivo na construção do conhecimento cientifico através da refutação de teorias. O verdadeiro conhecimento ou conhecimento objetivo somente pode acontecer fora da mente dos sujeitos; o sentido objetivo, que consiste no conteúdo lógico de nossas conjecturas, suposições, não deve sofrer influências nem do mundo físico nem o de nossas percepções intuitivas subjetivas. Assim como já levantado por Kant, tal subjetividade eivaria a base de construção do conhecimento objetivo, que por sua vez deve ser independente do sujeito conhecedor. Segundo Chauí, a racionalidade está diretamente associada ao conhecimento objetivo da realidade, como mera descrição, diferentemente da ideia de Popper (CHAUÍ, 1996). Por isso, torna-se necessário reduzir o espaço para interferências oriundas de sentimentos, percepções, paixões, crenças e, se assim for, poderá se falar da relação entre racionalidade e verdade, objetividade e necessidade, não sendo considerado racional aquilo que é meramente subjetivo, assim toda forma de pensamento que fuja deste plano será considerado falso e irracional. Para Popper (1980), a capacidade argumentativa enquanto razão na discursividade é que possibilita a multiplicidade de interpretações e propicia, por sua vez, uma linguagem autônoma perante a lei convencionada, representando o rompimento com as leis pressupostas ou naturais. Necessário, portanto, o rompimento com o senso comum e com a ideia de universalidade diretamente ligada à racionalidade como embasadores de um conhecimento válido. Popper identifica uma série de problemas nas concepções tradicionais advindas do conhecimento vulgar, como é o caso da teoria de senso comum da indução, já que haveria, aprioristicamente, uma suposição de que o futuro seria como o passado e, ainda, na existência de inferências indutivas a serem extraídas 24 de normas, estas seriam feitas destituídas de crítica. Isso porque as experiências advindas das observações feitas no passado nos levam a crer que se repetirão, sem, contudo, buscarmos sua gênese (POPPER, 1999, p. 14-15). Hume, mesmo admitindo que todas as ideias derivam da experiência, negou uma solução positiva ao problema da indução. Ele argumentou que todo o conhecimento que se refere à matéria de fato emana das impressões dos sentidos, das intuições sensíveis, mas estas somente nos dão ideias particulares e contingentes. Segundo ele, não há justificativa para inferir dos enunciados particulares contingentes (que descrevem o que foi observado) enunciados universais necessários (as leis, os princípios das teorias científicas). "Mesmo após observar freqüentemente a constante conjunção de objetos, não temos razão para tirar qualquer inferência concernente a qualquer outro objeto que não aqueles com que tivemos experiência" (HUME apud POPPER, 1989, p. 421). Hume foi a inspiração de Kant, que acabou por antecipar aquilo em que no século XX tantos filósofos da ciência insistiram: qualquer experimento é antecedido por pressupostos; o cientista está sempre armado com teorias. "Todo o nosso conhecimento é impregnado de teoria, inclusive nossas observações" (POPPER, 1975, p. 75). Demonstrou, ainda, que a experiência nos dá acesso apenas a conhecimentos particulares e contingentes. Ela "nos ensina que algo é constituído deste ou daquele modo, mas não que não possa ser diferente" (KANT, 1987, p. 31). A fim de abordar o problema da indução, Popper estabeleceu como premissa a tradução das crenças, incluídos termos subjetivos e psicológicos, em termos objetivos, explicando como fazê-la: Assim, em vez de falar de uma ―crença‖, falo, digamos, de uma ―asserção‖ ou de uma ―teoria explanativa‖; em vez de uma ―impressão‖ falo de uma asserção de observação‖ ou de uma ―asserção de teste‖; e em vez de ―justificativa de uma crença‖ falo de ―justificativa da alegação de que uma teoria é verdadeira‖, etc. (POPPER, 1999, p. 17). Embora resolva o problema formal da objetivação das teorias, a questão essencial do problema lógico da indução é a validez de leis universais. A resposta que Popper formula é negatória de validade, já que as leis ou teorias devem ser encaradas como hipotéticas ou conjecturais. A base deste raciocínio é basicamente a busca da verdade ou falsidade de teorias como forma de construir o conhecimento, como uma lógica dedutiva, onde 25 ―há uma assimetria entre verificação e falsificação por experiência‖ (POPPER, 1999, p. 23). A refutação de teorias falsas e a consequente formulação de uma nova teoria levará a uma aproximação da melhor teoria, a sucessora ―melhor‖, a que mais se aproxima da satisfação daquelas exigências (POPPER, 1999, p. 27). Em continuidade à evolução da solução do problema proposto em relação ao conhecimento objetivo, questiona-se acerca dos critérios de preferência de uma teoria, ou seja, o que nos faz preterir uma em função de outra? Haveria uma preferência teórica ou pragmática? Para responder a essas perguntas, ressalte-se que haveria uma concorrência de teorias. O teórico teria seus meios de escolha da melhor teoria e o pragmático outros para averiguar aquela que teria sido melhor testada, o que quer dizer que nem em uma hipótese nem em outra teremos uma ―confiança absoluta‖, sempre nos levando a uma discussão crítica que, se bem conduzida, nada mais é que racional. Trata-se de uma concorrência de conteúdo teórico, colocando-se à prova a linguagem subjetiva. O senso comum5 deve ser substituído pela correção, ou transcendido e substituído por uma teoria crítica (POPPER, 1999, p. 41-107). Popper compara o processo de objetivação do conhecimento com a iniciativa de Descartes de sugerir o método da dúvida, para que o ponto de partida da inverstigação do conhecimento seja mais seguro (o que seria absolutamente indubitável) esse parta da própria existência (1999, p. 44). Para Descartes, assim como para Hume, o ponto de partida se dará pelas experiências subjetivas, enquanto Popper discorda que haja algo direto e imediado em nossa experiência. Segundo ele, há um complicado processo de decifração, o que não garante seu fucionamento infalível. Portanto, como ponto de partida, a busca da certeza deve ser abandonada, mas o conhecimento deve estar em constante progresso. ―A meta da ciência é o aumento da verossimilitude‖ (POPPER, 1999, p.75). Segundo Popper: 5 Sobre senso comum, Boaventura de Souza Santos afirma: ―As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum. É que enquanto no senso comum, e portanto no conhecimento prático em que ele se traduz, a causa e a intenção convivem sem problemas, na ciência a determinação da causa formal obtém-se ignorando a intenção‖ (SANTOS, 2001, p. 64). 26 Os princípios do progresso científico sao muito simples. Requerem que abandonemos a idéia antiga de que podemos atingir a certeza (ou mesmo um alto grau de ―probabilidade‖ no sentido do cálculo de probabilidade) com as proposições ou teorias da ciência (idéia que deriva da associação da ciência com a magia e do cientista com o mago): o alvo do cientista não é descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores (ou inventar holofotes cada vez mais potentes), capazes de ser submetidas a testes cada vez mais severos (e conduzindo-nos com isto a sempre novas experiências, que iluminam para nós). Mas isto significa que essas torias devem ser mostradas falsas: é pela verificação da falsidade que a ciência progride. (1999, p. 332). A seguir, serão confrontadas algumas teorias de construção do conhecimento que influenciaram esse processo de investigação do conhecimento objetivo, por meio de um discurso científico crítico, para melhor serem compreendidas. 1.3. O conhecimento construído através das metodologias: tópica, sistema axiomático-dedutivo, sistema axiológico-teleológico e direito como sistema de princípios A fim de compreender como os métodos ou fontes (utilizados na construção do significado) ainda estão presentes no discurso atual, os quais sugerem, equivocadamente, a validade discursiva processual; iremos nos deter, por ora, à explicação da construção do conhecimento sob a ótica de algumas teorias anteriormente desenvolvidas. Pode-se dizer que o conhecimento é resultado das mais variadas formas de seu desenvolvimento. Recorre-se, entretanto, ao raciocínio de Bachelard (1996), como analisado de forma comparativa, como a seguir demonstrado, com demais torias por Almeida estudadas em sua obra Espaço jurídico processual na discursividade linguística, para a construção do conhecimento científico a fim de auxiliar na apresentação da ideia deste trabalho. Um dos pensamentos do autor consiste na análise do conhecimento sob a forma de sua organização por imagens. Segundo ele, aquele conhecimento concebido por imagem (observação do objeto), ou seja, imediato, não tem caráter científico, ―é pitoresca, concreta, natural, fácil‖, compreendido por uma função descritiva, própria da linguagem (BACHELARD, 1996, p. 25). 27 Bachelard aponta esse tipo de conhecimento como aquele utilizado na Antiguidade até o século XVIII, podendo ser considerado uma pré-ciência, na qual os significados ficam adstritos à intuição sobre determinado objeto. Ainda, como forma de conhecimento utilizada, remete-se ao conhecimento obtido através de formas geométricas. Desde o fim do século XVIII até Einstein desenvolver a teoria da relatividade, o conhecimento como modo de pensar geometrizado foi considerado suficiente para a construção da ciência. (BACHELARD, 1996, p. 9) A geometrização do conhecimento (more geometrico) consistia na ordenação de conhecimentos decisivos em uma experiência, tomando forma por meio de um sistema dedutivo. ―Essa primeira ordenação abre-nos as perspectivas de uma abstração alerta e conquistadora, que nos levará a organizar racionalmente a fenomenologia como teoria da ordem pura‖ (BACHELARD, 1996, p. 8). Por muito tempo a organização geométrica era a lógica de um sistema dedutivo que partia de premissas intuitivas, sensíveis ao observador. Dessa forma, tornou-se insuficiente, pois fundada em um simples realismo,6 contraído a partir da mera observação (ALMEIDA, 2012, p.40-41). Com o terceiro tipo de conhecimento concebido em espaços de configurações, ―dos quais o espaço sensível não passa, no fundo, de um pobre exemplo‖ (BACHELARD, 1996, p.7), supera-se, pois, a relação do conhecimento com a matemática pura e sua geometrização, já que a simples observação do objeto pelo sujeito, sem a investigação de suas razões, não é capaz de construir novos conhecimentos (ALMEIDA, 2012, p. 41-42). Ainda, neste sentido, segundo Leal, a epistemologia avança para a análise da linguagem como construtora de mundos e não mais numa relação sujeito-objeto (LEAL, R., apud ALMEIDA, 2012, p. 42-43). O conhecimento passa a ser recinto de construção das relações de existência, onde os sentidos ou problemas não podem ser detectados por meio da observação superficial. No entanto, a última concepção proposta ainda não conseguiu se inserir no atual paradigma, estando presa à uma linguagem natural, decorrente de um entendimento universal (realidade natural e cultural). 6 Sobre o realismo, Popper afirma: ―Se o realismo é verdadeiro – mais especialmente, algo que se aproxime do realismo científico – então é óbvia a razão da impossibilidade de prová-lo. A razão é que nosso conhecimento subjetivo, mesmo o conhecimento perceptivo, consiste em disposições para agir, e é assim uma espécie de adaptação experimental à realidade; somos no máximo, investigadores e de qualquer modo falíveis‖ (1999, p. 49). 28 Pode-se dizer que a construção do conhecimento por imagens e pelo more geométrico foram aproveitadas por outros procedimentos na tentativa de desenvolver uma discursividade pragmática, como a tópica e os sistemas axiomático, axiológico e principiológico, que se difere do discurso processualizado da teoria neoinstitucionalista, como demonstrado por Almeida a seguir. Segundo Almeida, para Viehweg a tópica é representada por premissas tidas como verdadeiras, por opiniões reconhecidas (senso comum). E por esta razão se assemelha ao conhecimento por imagem (ALMEIDA, 2012, p.46). A teorização da forma de obter conhecimento revelou-se arcaica, permanecendo o conhecimento fundado em um realismo ingênuo, que não levou a outra conclusão a não sera lógica da pura observação do fatos, em um sistema fechado, como formador do conhecimento. Aristóteles imprimiu à geometria organização lógica e também insistiu no caráter absoluto, invariante, eterno e dedutivo ou silogismo que parte das premissas evidentes, instituídas pelo intelecto para formar postulados. (ALMEIDA, 2012, p. 40). Nesse sentido, a tópica teorizada por Aristóteles, como opinião normalmente aceita, utilizada para chegar a conclusões dialéticas, é retomada por Theodor Viehweg. Viehweg propõe o sistema axiomático-dedutivo, que tem como fontes a lei e a tópica, suficientes, segundo ele, a tornar o ordenamento jurídico capaz de solucionar problemas, já que a tópica, advinda da opinião de todos, concederia legitimidade para as decisões. O autor sugere, a partir da junção da lei e da tópica, uma ordem jurídica completa, hábil a dirimir todo e qualquer problema de insuficiência detectada no ordenamento. Porém, essa ideia de completude implica, necessariamente, na recorrência à tópica como principal metodologia para decidir, acarretando um decisionismo complusório (ALMEIDA, 2012, p.45-49). Portanto, a tópica, em sua raiz, não considera a existência de incompletudes ou contradições, ela seria autonomamente suficiente (autossuficiente). Segundo Almeida, [...] no pensamento sistemático axiomático, a abertura não é no sentido de ordem jurídica construída casuisticamente e apoiada na jurisprudência como se dá no sistema sustentado por Viehweg, mas no sentido de incompletude do conhecimento científico e do sistema objetivo, na capacidade de evolução e modificabilidade do sistema com a administração de questões exteriores a ele para resolver as lacunas. (ALMEIDA, 2012, p. 51). 29 Por outro lado, Canaris (1989, p. XLVII) discorda do uso dos topois como fonte, já que a compreende como metodologia, afirmando que apenas as antinomias são resolvidas pela tópica, admitindo a incompletude do ordenamento jurídico, sob o fundamento de que, quando nos deparamos com dois pontos de vista diversos, não há resposta para determinar qual ponto de vista eleger. Canaris (1989) defende a complementação entre tópica e sistema axiológico. Segundo ele, com esta amplificação do discurso jurídico, seria possível resolver as contradições e lacunas; já que a tópica, por si só, não representa nada além de uma solução, sem qualquer vinculação. Nesse sistema aberto e móvel proposto por Canaris, o qual não se dispersa numa multiplicidade de valores singulares desconexos, há possibilidade de renúncia de previsões normativas fechadas, além de o juiz poder buscar em outra dimensão (exterior ao sistema) um novo sentido (ALMEIDA, 2012, p. 48-53). Seu pensamento sistemático foi proposto com a finalidade de aperfeiçoar duas características advindas da ideia do Direito: ordem e unidade. A ordem seria ligada à adequação valorativa da ordem jurídica e a unidade consistiria na ausência de contradições (CANARIS, 1989, p. 18-23). Diferente é a visão de Dworkin (2007), que, para superar o problema das lacunas do Direito, propõe um sistema principiológico cujo suporte é a teoria do Direito como integridade. Na concepção de Dworkin, o importante é compreender o Direito como uma justificativa histórica, devendo o juiz realizar sua interpretação continuamente. Para Dworkin, ―a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado‖ (2007, p. 274). Como um sistema que considera decisões passadas, construídas ao longo do tempo, mas utilizadas como espelho para decisões futuras (passado em evolução), o principiologismo de Dworkin continua associando o provimento aos topoi, considerando que a moral e os costumes apresentam-se como forte influência na justificação das normas. Como visto, as teorias de argumentação jurídica apresentadas partem de um sistema cujos sentidos já estão pré-compreendidos e o discurso do texto da lei é, por conseguinte, direcionado por uma linguagem natural. Assim, os enunciados obtidos são dialéticos ou historicistas. 30 A ideia de ordem e unidade é mantida nos três sistemas (axiomático-dedutivo, axiológico-teleológico e principiológico) sempre com a finalidade da tradução de infalibilidade destes. Para garantir essa infalibilidade, tais sistemas possuem uma elasticidade proposital e acabam invadindo uma órbita obscura repleta de argumentos metajurídicos. O espaço que deveria ser ocupado pela discursividade construtiva passa a ser marcado pelos aspectos históricos e culturais que o permeiam. Portanto, caminhemos para a análise de um ambiente (aberto e democrático) capaz de propiciar um discurso processualizado, hábil a alcançar o conhecimento objetivo, a partir do estudo das teorias discursivas das decisões trazidas adiante. 31 2 O DISCURSO PROCESSUAL COMO TEORIZANTE DA NORMA (INTERNORMATIVIDADE) 2.1 Da estruturação do processo como contraditório segundo Fazzalari e a contribuição de outras teorias A teoria do processo e procedimento de Fazzalari embora em sua concepção não trate da metalinguagem, representa relevante ganho para a compreensão do processo num âmbito linguístico, ideia esta posteriormente desenvolvida pela teria neoinstitucionalista processo. Inquestionavelmente, os princípios estruturantes do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia) possibilitou uma avaliação crítica em relação a outros institutos, como a legitimidade das decisões, efetividade processual, celeridade processual (LEAL, R., 2002, p.13-16). Fazzalari explicita a sua formulação de contraditório, processo e procedimento: Se, pois, o procedimento é regulado de modo que dele participem também aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos – de modo que o autor dele (do ato final, ou seja, o juiz) deve dar a tais destinatários o conhecimento da sua atividade, e se tal participação é armada de modo que os contrapostos ―interessados‖ (aqueles que aspiram a emanação do ato final – “interessados” em sentido estrito – e aqueles que queiram evitá-lo, ou seja, os ―contra-interessados‖) estejam sob plano de simétrica paridade, então o procedimento compreende o ―contraditório‖, fazse mais articulado e complexo, e do genus ―procedimento‖ é possível extrair a species ―processo‖. (2006, p. 94). O objetivo da teoria estruturalista do processo de Fazzalari é, através do procedimento, sistematizar os atos procedimentais, sendo que cada uma das partes os praticam em forma de contraditório e simétrica paridade. Devido à teoria fazzalariana, é possível pensar no processo como lugar de racionalidade, onde se constrói e fundamenta a decisão, deixando clara a atenção dada ao conteúdo da lei. Rosemiro Leal ratifica a importância desta contribuição: Neste ponto a teoria do processo como procedimento em contraditório (Fazzalari) é que nos habilitou saltar de uma subjetividade apofânica milenar para uma concepção processual expressa numa relação espáciotemporal internormativa como estruturante jurídica do agir em simétrica paridade e instaladora do juízo discursivo preparatório do provimento (decisão). (2002, p. 15). 32 Leal considera que apenas com os estudos desenvolvidos por Fazzalari é que se democratizou o discurso processual, proporcionando revisitações de demais institutos utilizados quando da decidibiidade no Estado Democrático de Direito (2002, p.16). Ao longo do tempo, antes de Fazzalari, vários estudiosos do pensamento jurídico tentaram explicar a estrutura do processo. Teorias do processo, como o contrato de Pothier, após a de quase-contrato de Savigny, aquele que o considerava relação jurídica de Bülow, ou como situação jurídica de Goldschmidt e, ainda, do processo como instituição de Guasp, embasam, em características próprias, a formação do processo. Após Fazzalari, foi desenvolvida a teoria constitucionalista do processo por Baracho,7 Fix-Zamdio e Ítalo Andolina; e a teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Leal (2010b). Quanto às teorias defendidas por Bülow, Goldschmidt e Guasp, estas reproduziam a ideia de que o significado da lei era preenchido pelo juiz e o referente (a realidade fabricada). Fazzalari ainda que contrário à posição de protagonista (ator principal) do juiz, confere-lhe o poder de emitir juízos de ponderação, adequabilidade, proporcionalidade, além de utilizar de institutos como analogia, equidade; o que é entendido pela teoria neoinstitucionalista como equívoco (ALMEIDA, 2012, p. 145). Todavia, inegável é a substituição do paradigma da relação jurídica intersubjetiva (autor, juiz e réu) bülowiana8 e instigadora da atividade criadora da magistratura, por uma relação internormativa (o discurso desenvolvido no interior da norma). Em sua obra, Fazzalari define bem o procedimento como estrutura normativa quando afirma que ―o discurso se desenvolve, portanto, no interior do aspecto normativo, não como aquele sociológico, no exterior (2006, p. 98).‖ 7 8 Para Baracho, ―O processo constitucional não é apenas um direito instrumental, mas uma metodologia de garantia dos direitos fundamentais. Suas instituições estruturais (jurisdição, ação e processo) remetem-nos à efetivação dos direitos essenciais‖ (2006, p. 47). André Leal ensina que: ―o propósito de Bulow foi o de apresentar, com base na releitura do direito romano, fundamentos histórico-sociológicos pretensamente autorizativos da migração do controle social para as mãos da magistratura alemã e de justificar, a partir daí, a adoção de técnicas que permitissem a desvinculação dos julgadores das abordagens formalistas ou legalistas na aplicação do direito, minuciando, com isso, a magistratura de instrumentos de dominação idênticos aos pretores e magistrados em Roma‖ (2008, p. 62). 33 E, ―para concluir sobre relações entre as duas noções de ―odenamento jurídico‖ – a socilógica e a jurídica – deve-se dizer que, sem confundir-se, elas se servem mutuamente.‖ (2006, p. 98). Por outro lado, quando presente a moral, os costumes e a valoração histórica em sua teoria estruturalista do processo, por identificá-los como solução para a incompletude do ordenamento jurídico e, segundo André Leal, Fazzalari demonstra sua inadequação quanto ao alcance da legitimidade decisória, atendo-se apenas à validade a partir do procedimento. Com isso, a análise fazzalariana da procedimentalidade parece estar adtristra, ainda, a enfoques paradigmáticos inadequados à compreensão do Estado Democrático de Direito, porque deixa de tanger a questão da legitimidade, cingindo-se à validade (formal) e eficácia da decisão judicial. (LEAL, A., 2008, p. 122). Diz Fazzalari que ―o intérprete deve, em suma, aderindo ao dado positivo, cuidar da contínua depuração do discurso‖, o que nos faz notar, assim como apontado por Almeida (2012, p.30), que a teoria fazzalariana se rende ao historicismo, à tópica argumentativa e à interpretação valorativa ao afirmar que os valores ―positivos‖ interagem com a realidade e ―vivem‖ na história. O intérprete ―deve realizar modificações deste ou daquele valor positivo, por ele recolhido e considerado na realidade, por um conjunto de novas relações concretas.‖ (FAZZALARI, 2006, p. 469-470). Segundo André Leal (2008, p. 124), a concepção fazzalariana acerca da interpretação decisória não consegue concluir o giro teórico que havia iniciado: Como a questão do entretecimento entre direito e legitimidade não chega às cogitações fazzalarianas, pode-se concluir que os possíveis desdobramentos de sua teoria não foram utilizados para questionar as concepções anacrônicas de jurisdição. A jurisdição, permanecendo em Fazzalari atividade do juiz, continua parcialmente imunizada da retrocarga crítica que a teoria do processo democrático poderia oferecer. (LEAL, A., 2008, p. 127). Detecta-se, pois, uma falha na visão de Fazzalari acerca da legitimidade da decisão. Ele não desperta para a relação hierarquicamente desequilibrada criada entre o juiz e as partes e a consequente força de Estado, quando afirma ser o provimento uma ―ordem‖ do juiz direcionada aos litigantes, hipótese teórica cujos resquícios advêm da relação jurídica bülowiana. Com isso, Fazzalari deixa de contemplar todos os requisitos necessários para a promoção de teoria do processo adequada ao paradigma do Estado Democrático 34 de Direito. A contribuição fazzalariana, como já mencionado, introduz a compreensão de validade do procedimento a partir da observância do contraditório (discursividade), em uma estrutura construtiva. Por outro lado, se equivoca quando insiste em continuar deixando nas mãos do julgador uma atividade, representativa do Estado, que estaria acima das partes. Essa ―ordem‖ normativa seria, portanto, inconciliável com a legitimidade da decisão, não só pela ausência de retrocarga crítica, mas também pelo enfoque da jurisdição9 como poder ou atividade do Estado. Se se analisarem as bases científicas das teorias do processo, se verificará que são enraizadas em um poder estatal regulador, o qual, sob a justificativa de legitimar a finalidade ou interesses pretensamente sociais, mantinha a problematização inerte (LEAL, A., 2008, p. 134). Assim, pode-se dizer que os instrumentalitas10 de hoje julgam necessário extirpar qualquer postura unicamente técnico-jurídica, o que, como defendido por essa corrente, não corresponderia fielmente à realidade social e à realização dos seus valores, finalidade última do Estado. Sob esse enfoque a concretude da vontade se deslocaria do texto da lei para uma realidade social em si mesma – e nesse aspecto seria axiologizante (LEAL, A., 2008, p. 137). Os instrumentalistas, quando sustentam que o juiz poderá adequar o procedimento definindo os atos que antecedem o provimento e fundamentando no caso concreto a decisão; ainda concebem o procedimento como imagem, sendo a experiência (impressão) advinda da tópica, que se dá a partir dos fatos (análise do caso concreto) (ALMEIDA, 2012, p. 47). Da mesma maneira, como conclui Almeida (2012, p.59), embora tenha se apresentado a teoria fazzalariana como uma tentativa de romper com a adoção de catálogos de topoi, mesmo que de forma menos acentuada, ainda vislumbra a possibilidade de a argumentação se fundar em razões históricas e na opinião comum. 9 Sobre a concepção de jurisdição, André Leal assim entende: ―Mesmo alguns estudos importantes que levam em consideração o desenvolvimento da filosofia contemporânea acabam repetindo os equívocos que apontamos e continuam afirmando a jurisdição como atividade do juiz, e nomeando as partes de ―jurisdicionados‖‖ (2008, p. 140). 10 Luiz Guilherme Marinoni, expoente dessa linha teórica, ao discorrer sobre os escopos da jurisdição, é claro ao apontar a necessidade de que o processualista deveria se livrar de uma postura ―exclusivamente técnico-jurídica, própria da época da afirmação da autonomia científica do direito processual, e a tomar consciência de que o processo se destina à realização dos valores do Estado e da própria sociedade‖ (MARINONI apud LEAL, A., 2008, p. 136). 35 O pensamento norteador do presente trabalho se mostra nitidamente contrário a uma teoria do processo que tenha como alicerce sua reflexão a partir de escopos metajurídicos da jurisdição. Como se analisará mais à frente, tais ―atributos de cientificidade ou legitimidade‖ são completamente estanques do processo e jurisdição no paradigma do Estado Democrático de Direito. Ao adotar um modelo procedimental que pode ou não contemplar o princípio do contraditório, Fazzalari retrata uma postura convencionalista do Estado Social, que prioriza a sistematização do ordenamento juridico e seus valores. Assim, sua teoria incorreria em uma hipótese ilegítima de jurisdição, que não se mostra contra uma decisão proferida sem que tenha sido efetivamente garantida a discursividade dos litigantes. Portanto, perquirir a jurisdição a partir de uma teoria discursiva da democracia pode se mostrar um caminho mais ―fidedigno‖ quando problematizado, em vez de homologar um paradigma que tenha como pano de fundo um direito de précompreensões, contribuindo, inclusive, com a migração das reflexões jurídicas para a filosofia da linguagem. Por não se mostrar completa em relação à legitimidade da decisão, pelos fundamentos já expostos, serão analisadas, a seguir, as contribuições habermasianas acerca do princípio do discurso e sua legitimidade. 2.2. A razão comunicativa habermasiana Habermas, em Direito e democracia: entre facticidade e validade, propõe uma teoria discursiva da democracia que possa, através do Direito, conceder respostas a toda a sociedade. Afirma que apenas através da instauração do procedimento se torna possível a legitimidade do direito, quando ele alcança o sentido normativo pleno (HABERMAS apud LEAL, A., 2008). Conforme Lúcio Antônio Chamon Júnior: O princípio do Discurso, como bem colocado por Habermas, vem fazer referência a exigências pós-convencionais de legitimidade; equivale dizer que tal princípio – enquanto referido e referente a um momento em que a tensão entre facticidade e validade não mais pode ser neutralizada por uma forma de vida homogênea e compartilhada em instituições fortes e 36 constantes no mundo da vida, nem por figuras/sentimentos sacros – reflete, assim, uma abertura comunicativa de conteúdos e de participantes que, enquanto tal, fora construída socialmente. Assim é que o princípio do discurso enuncia ‗D: válidas são aquelas normas (e tão-somente aquelas normas) a que todos que por ela possam ver-se afetados possam prestar seu assentimento como participantes em discursos racionais.(CHAMON JÚNIOR apud LEAL, A., 2008, p. 145). Para Habermas, a ação comunicativa nasce como uma participação entre sujeitos, estabelecendo-se uma relação (de fala e ação) com a finalidade de obter uma compreensão sobre determinada situação, com o objetivo de que eles se entedam sobre algo no mundo. Nota-se uma influência do conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein apontada anteriormente. Neste processo de alcance do entendimento, suscitam pretensões de validade quanto à sua veracidade, correção normativa e autenticidade, cada uma dessas pretensões referindo-se respectivamente a um mundo objetivo dos fatos, a um mundo social das normas e a um mundo subjetivo das experiências. Assim como Fazzalari, o contraditório na intersubjetividade de Habermas significa a participação de sujeitos para reconhecer na linguagem a existência de um fundamento histórico. A normatividade habermasiana é embasada por princípios éticos e pragmáticos, não mais fundada apenas em princípios morais, como no direito natural. Ele admite a relação de complementariedade entre o direito e a moral.11 A razão comunicativa, entretanto, apenas alcança certezas (que não deixam de ser opiniões) contextualizadas e compartilhadas pela comunidade (mútuo entendimento).Como consequência, o pacto de sentido resta maculado por uma unidade cultural. Dessa forma, a razão comunicativa não consegue ser eficaz quanto ao mando da tradição no discurso, enraizado no cotidiano cultural do sujeito. Habermas parte do pressuposto de que o homem é possuidor de racionalidade e buscará construir um conceito de racionalidade que encontra seus fundamentos nos processos de comunicação intersubjetiva com vistas a alcançar o entendimento. Segundo Aragão (1992, p. 82): 11 ―Daí é que o novo Habermas da co-originariedade de direito e moral ainda guarda silêncio sobre a índole de sua procedimentalidade jurídica instituidora do princípio da democracia por uma razão comunicativa que fosse apta a elaborar entendimentos a partir de um medium linguístico indemarcado. O abandono da razão prática e filosofia do sujeito a favor da teoria do discurso não possibilita automaticamente a intersubjetividade criativa do direito em plano de entendimento mediado por uma linguagem inesclarecida, para legitimar pretensões de validade sobre algo no mundo em nome vitorioso de um melhor argumento‖ (LEAL, R., 2002, p. 174). 37 [...] Habermas acredita que, na estrutura da linguagem cotidiana, está embutida uma exigência de racionalidade pois, com a primeira frase proferida, o homem já manifestava uma pretensão de ser compreendido, uma busca de entendimento. Falta, contudo, a abertura de um espaço para construção e falseabilidade teórica; a discursividade para Habermas está adstrita a uma interlocução, onde se usa a linguagem como comunicação (atividade que se dá pela fala), mas a esfera pública12 é a fonte normativa. Enquanto na teoria do agir comunicativo o contraditório se dá pela oposição da pretensão de validade, no procedimento processualizado é a fala que se coloca sob suspeita. Essa seria a forma de publicizar o espaço, admitindo uma liberdade comunicativa, mas por meio de uma linguagem natural pressuposta (ALMEIDA, 2012, p.71-76). A falibilidade, na teoria discursiva de Habermas, é decorrente da provisoriedade do conhecimento, já que seu desenvolvimento se dá por meio de um processo (tempo) histórico. (ALMEIDA, 2012, p.71). Em uma tentativa reconstrutiva, Habermas elabora um conceito normativo de espaço público e de soberania popular como procedimento (HABERMAS apud ALMEIDA, 2012) que, com a influência da sua teoria do agir comunicativo, agregada à ideia de espaço (ou esfera) público e discurso da polis, resultaria na teoria procedural de democracia. Para ele, a esfera pública se constitui principalmente em uma estrutura comunicacional em que o agir é orientado pelo entendimento, dotado do poder de fiscalização da criação da normativa, sem que seja através da linguagem dos próprios participantes. A concepção proceduralista de democracia na esfera pública se dá por meio do locus para construção da constitucionalidade e é fonte normativa para o direito. Habermas (1990; 1997, v. 2), a partir da conceituação de Julius Fröbel, analisada por Almeida (2012, p.112-113), de decisão majoritária como consentimento condicional, aprimorou sua visão de soberania popular como procedimento e um conceito normativo de esferapública. 12 ―A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.‖ (HABERMAS, 1997, v. 2, p. 92). 38 Fröbel entendeu, contrariamente a Habermas, a ideia do discurso e espaço público, já que, enquanto pretendeu estruturar o discurso no campo teórico, a compreensão habermasiana de soberania popular vinculou-se ao procedimento equiparado ao discurso (fala) e comunicação (ALMEIDA, 2012, p.112-118). Almeida percebeu, a partir do estudo da obra de Fröbel, que existem, portanto, falhas na proposta da discursividade na esfera pública habermasiana se confrontada com a discursividade processual neoinstitucionalista, a seguir abordada. Pode-se afirmar que o obstáculo encontrado na teoria procedural de Habermas é o sistema de normas pressupostas em consensos, convenções sociais historicamente transpostas, o que inviabiliza o alcance epistemológico para o conhecimento objetivo. Partindo de influências platônicas, aristotélicas e kantianas de linguagem comum, impossível seria uma institucionalização jurídica do agir comunicativo habermasiano. A respeito da teoria do discurso habermasiano, Rosemiro Leal assevera: Também uma linguagem que per se contivesse intrínsecos conteúdos de comunicabilidade orientadora do agir para o entendimento reproduziria um essencialismo lógico do consenso das individualidades já pré-decidido por uma moral instituída em bases axiológicas de tradição e autoridade. (2002, p. 174). A teoria procedural não é capaz de conceder legitimidade a decisão na democracia, pois não seria possível refutar as pré-compreensões, nem um direito legítimo secularizado em tradições. A teoria do discurso paradigmática tem raiz sociológica e pragmática, por isso não escapa às acepções historicistas. Sobre a relação entre poder e saber, Rosemiro Leal expõe a dificuldade de se compreender a razão discursiva coerente com o direito democrático de hoje: O saber autocrático, ao se propor separar verdadeiro e falso, incorpora ao conceito de verdadeiro o auto-apoderamento da subjetividade em escala pedagógica crescente dos grupos escolares às universidades, conforme expõe Habermas[...] (2002, p. 92). Por isso conclui-se ser inevitável que o decididor não se ampare em uma ética social e uma moral tradicionalizada, que acomete o atual espaço processual. Tem-se que o pós-positivismo, nas mais variadas terminologias, ampara a construção das decisões judiciais, à luz do caso concreto, dada a impossibilidade de alcançar a todos de forma equivalente. Todavia, cria-se uma discursividade 39 indemarcada e, talvez, mais fragmentada, seja pela sumarização dos procedimentos ou pela celeridade processual. Consoante Almeida, Habermas não adota o indutivismo eliminacionasta e não demarca o discurso científico. A atitude crítica na teoria do agir comunicativo e na teoria procedural de democracia decorre da dialética, da adoção do princípio da não-contradição, da possibilidade de consenso numa comunidade pressuposta de sentido, o que faz com que a falibilidade seja apenas retórica e não se abandone o verificacionaismo, a busca de observações positivas. O paradigma de Habermas não cede a uma fiscalidade porque admite que o entendimento é inerente à uma linguagem natural (comunicacional). (2012, p. 67). Portanto, entende-se que na concepção habermasiana haveria um retrocesso quanto à fonte normativa do direito (esfera pública) e, ainda, em relação ao mundo da vida racionalmente pressuposto (linguagem como meio universal de entendimento), que Popper tratou de apontá-lo por meio da construção da ―racionalidade crítica‖. 2.3 A racionalidade crítica popperiana A partir de uma evolução teórica, desde a persecução do significado através da linguagem em espaços desprocessualizados (eixo perceptivo-cognitivo de Peirce e traços ideológicos de Schaff), trazidos a tona por Alemida (2012) ,que acabaram por se tornarem base para o desenvolvimento de teorias do processo como relação jurídica, situação jurídica e instituição; verifica-se que não se mostraram suficientemente adequadas para o alcance de significados construídos e, portanto, democráticos, já que maculadas por influências historicistas ou justificativas pragmáticas. Quanto à teoria proceduralística de Habermas, assim denominada por Rosemiro Leal, como a construção procedimental fazzalariana, também pudemos perceber sua inadequação, que, do mesmo modo, vislumbra o processo como consciência histórica e o contraditório significando apenas a interação dos sujeitos, a qual não consegue atingir a legitimidade quando da decisão. Contrariamente, a contribuição do racionalismo crítico de Popper permitiu Rosemiro Leal transpô-lo a um plano processual cuja discursividade se daria durante 40 a prática dos atos processuais na construção das decisões, ou seja, uma discursividade crítica e não homologatória do processo histórico. Popper (1998a, v. 1) contesta a possibilidade de profecias históricas tanto na ciência quanto na política e prevê a construção do devir. Para Rosemiro Leal, a discursividade, portanto, seria interenunciativa (confronto de enunciados teóricos), entre norma e não entre sujeitos. Há uma espécie de concorrência conteudística entre as teorias, colocando-se à prova a linguagem e a fala (subjetiva) sob suspeita. No racionalismo crítico de Popper não é possível dizer que uma teoria é verdadeira, mas sim se ela é falsa. Esta posição está ancorada numa assimetria entre verificabilidade e falseabilidade dos ditos enunciados universais, os quais podem ser refutados por enunciados singulares. Consequentemente, é possível, através do racionalismo crítico eliminacionista, chegar à falsidade, ou seja, uma das teorias prevalecerá à testificação. O que se pretende deixar em voga é que a abertura constante à crítica é base da concepção democrática. A linguagem, por sua vez, se desloca do conhecimento subjetivo e, no espaço processualizado, permite uma discursividade crítica popperiana: Nas suas teorias a experiência e a linguagem se completam: a experiência é transcrita em forma de proposições, que são verdadeiras enquanto exprimíveis. E as proposições 'têm sentido' enquanto mensuráveis (tudo o que não é mensurável não tem sentido). (ARANHA; MARTINS, 1995, p. 163). Popper reformula o problema da indução tendo como base a possibilidade de afirmar que ela é falsa, mas, por outro lado, não haveria como garantir que não é verdadeira. Por isso o indutivismo eliminacionista, através da experiência negativa, é capaz de descartar uma teoria, mas não se presta a construir teorias absolutas. Se a observação comum se desenvolve sem qualquer rigor científico, nos levando a mera repetição, torna-se necessário diante de certas situações o seu desenvolvimento a partir de um processo epistemológico que possibilite sua refutabilidade. […] A observação científica não é a simples observação de fatos. Que fatos? Quando observamos, já organizamos as inúmeras informações caoticamente recebidas e privilegiamos alguns aspectos. Por exemplo, duas pessoas diferentes observando a mesma paisagem selecionam aspectos diferentes, pois o olhar não é uma câmara fotográfica que tudo registra, mas 41 há uma intenção que dirige nosso olhar, o que significa que o olhar tende para alguma coisa. (ARANHA; MARTINS, 1995, p. 156). Contrariamente ao senso comum, cuja percepção do mundo ocorre de maneira imediata, escapando de um processo investigativo, a proposta popperiana se embasa na impossibilidade de alcançar verdades ou enunciados pretensa e irrestritamente universais. Não por isso se deve deixar de buscar a aproximação da verdade, caso contrário, se estaria admitindo subjetivismos advindos do contexto historicista, reafirmando a ―aceitação social‖ (POPPER, 1999, p. 39). É nesse sentido que Popper alega que a racionalidade deve ser construída pelo homem, opondo-se à doutrina humanística tradicional (1996, p. 156). O autor trata da racionalidade como possibilitadora do racionalismo crítico: Por racionalidade entendo apenas uma atitude crítica face aos problemas – a presteza em aprender com os erros e preconceitos. Portanto, ―racionalidade‖ quer dizer uma atitude consciente e crítica de eliminação de erros. (POPPER, 1996, p. 156). É possível, portanto, a linguagem em sua função crítico-argumentativa e para a prática científica adquirir autonomia em relação à linguagem (repetidora) e não construtora de mundo. Uma vez que o verificacionismo (dedutivismo) se ampara em observações positivas e o justificacionismo (indutivismo) na repetição das experiências (ALMEIDA, 2012, p.65), ambos tendem ao probabilismo e se afastam da problematização das questões reveladas. Desta feita, acabam promovendo a defesa de teorias dogmáticas, inibindo o criticionismo e impedindo o exercício à liberdade. Por partirem de uma observação passiva da realidade, tendem a enfraquecer a institucionalização democrática, como potencial transformadora de normas legítimas do direito. Popper, visando ao esclarecimento da problematização do discurso, descreve três universos: mundo 1, mundo 2 e mundo 3. Segundo Almeida: [...] o mundo 1 representa o mundo físico ou de estados materiais; o mundo 2, as experiências conscientes, o conhecimento subjetivo e as disposições comportamentais para agir; e o mundo 3 representa os sistemas teóricos, sendo os moradores mais importantes desse mundo os argumentos críticos e o elemento mais fértil dele os problemas. (ALMEIDA, 2012, p. 79). Este estudo será direcionado ao mundo 3, sobre o qual Popper sustenta três teses: 42 A primeira sustenta que o mundo 2, relativo ao campo da subjetividade, é irrelevante para o conhecimento científico. A segunda tese é a da autonomia do mundo 3, pois, muito embora os sistemas teóricos sejam criados por nós, eles produzem seus próprios problemas e o impacto que exercem sobre nós excede vastamente o impacto que qualquer de nós possa produzir sobre ele. Nesse sentido, podemos dizer que uma teoria cria n problemas não pretendidos [...]. A terceira tese postula que há uma retrocarga do mundo 3 (teorias) sobre o mundo 2 (conhecimento subjetivo) e o mundo 1 (realidade natural e cultural), ou seja, a epistemologia objetivista do mundo 3, que estuda o mundo 1, pode lançar imensa soma de luz sobre o mundo 2 (da consciência subjetiva). (ALMEIDA, 2012, p .79-80). O mundo 3 descrito por Popper difere por completo do espaço pretendido por Habermas, já que não se admite o discurso com bases sociais, históricas e tendo a linguagem como meio universal de entendimento, inerente à fala. O mundo 2, que coincide com o espaço da discursividade habermasiana, por sua vez, é irrelevante para a construção do conhecimento científico e não deve servir como pressuposto da teoria epistemológica por ele (Popper) formulada. O princípio universal da crítica como racionalidade também pode ser considerado integrante da concepção popperiana de sociedade aberta, vez que a crítica pode garantir a regra de proibição de vedação da liberdade (ALMEIDA, 2012, p. 88). Em outras palavras, a democracia deve se desenvolver no mundo 3, por se mostrar mais adequado a desenvolver através do discurso dessubjetivado o contraditório, a ampla defesa e isonomia. Assim visto, testar as teorias científicas faz parte de sua discussão crítica; ou como podemos dizer, faz parte de sua discussão racional pois neste contexto não conheço sinônimo melhor para ―racional‖ do que ―crítico‖. A discussão crítica nunca pode firmar razão suficiente para alegar que uma teoria é verdadeira; nunca pode ―justificar‖ nossa alegação de conhecimento. Mas, se formos felizes, a discussão crítica pode firmar razões suficientes para a seguinte alegação: ‗Essa teoria parece, presentemente, à luz de uma cuidadosa discussão crítica e de severos e engenhosos testes, ser, em muito, a melhor(a mais forte, a mais bem testada); e assim parece ser a mais próxima da verdade entre as teorias concorrentes‘‖. (POPPER, 1999, p. 85-86). Em síntese, uma teoria não pode ser racionalmente justificada – em sua verdade – mas é possível, utilizando-se justificativas racionalmente teorizadas, aproximar-se melhor da verdade. Comte-Sponville, que de um ponto de vista epistemológico aproxima-se do racionalismo crítico de Popper, em Valor e Verdade afirma: O problema que me ocupa hoje – e que definiria algo como um cinismo generalizado – é menos o das relações entre moral e política do que o 43 problema, de fato mais geral, das relações entre o valor e a verdade. È sobre esse problema que se opõem dogmáticos e sofistas, como vimos, mas eles se opõem, notemos, com base nem pressuposto comum: que valor e verdade devem andar juntos, que é imprescindível submeter ao outro ou identificar um com o outro, de tal sorte que o valor seja uma verdade (objetiva) ou que a verdade não seja mais que um valor (subjetivo). Como realizar essa conjunção, é o que os opõe; mas que seja necessário realizá-la, é o que os une. É por isso que o cinismo que procuro pensar rejeita [...] ambos. [...] é que a verdade e o valor, o real e o bem, o ser e o dever-ser, são disjuntos, primeiramente e em geral (cinismo generalizado: o valor não é verdadeiro, a verdade não é um valor). (2008, p. 45-46). Sobre a objetividade da norma e sua pretensa verdade, complementa o raciocínio: ―Não, de modo algum, que a verdade seja uma norma: se a verdade é verdade da coisa, todas as coisas são verdadeiras e todas o são igualmente. Verdade não normativa mas objetiva (efetiva, diz Maquiavel), não prescritiva mas descritiva‖ (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 47). Pode-se dizer que existe uma identidade entre Comte-Sponville e Popper ao negar que valor e verdade devem andar juntos ou que, para se obter um, se deve submetê-lo a outro. Esse pensamento se traduz na chance de se obter uma ―verdade‖ objetiva, que ao menos nega a influência do valor para se alcançar uma verdade. A tese popperiana não veda apenas que o sentido seja ditado pelo julgador ou pelas crenças do destinatário, ela impõe a condição de ser a verdade de um sentido ou de uma decisão obtida através da interpretação ao discurso. A teoria neoinstitucionalista da linguagem jurídido-processual, a ser analisada no próximo tópico, busca elucidar como se dá a formação desses sentidos para todos aqueles inseridos na comunidade jurídica. 2.4 A teoria neoinstitucionalista da decisão e o processo como eixo teóricolinguístico de estabilização do discurso constitucionalizado Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, passa-se a constituir um Estado Democrático de Direito, conforme seu artigo 1º dispõe. A assimilação desta nova condição, todavia, não se deu certamente de maneira automática. 44 Torna-se necessário romper com uma linguagem historicista concebida pelo republicanismo. A norma não mais pode ser aplicada segundo critérios morais e as decisões não devem ser construídas por supostos interesses comuns. A visão neoinstiticionalista da decidibilidade propõe a reconstrução, através de um referente lógico-jurídico, de teorias supostamente democráticas. Pela influência de uma nova lógica da pesquisa científica popperiana, foi possível criar uma versão falibilista do discurso, como meio de correção (LEAL, R., 2002, p. 159). Tal fiscalização, que se dá por meio do procedimento e, como visto, o papel demarcatório do contraditório no processo fazzalariano, sem dúvida, contribuíram para o desenvolvimento da teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Leal. Tem-se, todavia, que o esclarecimento do processo como referente lógicojurídico que possibilita a testificação de teorias numa esfera reconstrutiva foi um avanço epistemológico, propiciado pelo racionalismo crítico de Popper e pela teoria neoinstitucionalista, em relação à teoria do processo como procedimento em contraditório e a teoria constitucionalista do processo. A discursividade com a observância dos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia é imprescindível para a problematização democrática. Partindo dos déficits de legitimidade percebidos no atual paradigma processual, é possível suscitar condições objetivas (passíveis de refutabilidade) que afetarão a construção e interpretação normativa e, consequentemente, as decisões proferidas no Estado Democrático de Direito. Consoante André Leal: Considerando o processo em suas bases científicas atuais, as quais atendem também a um critério de demarcação popperiano (Popper, 2000) baseado na falseabilidade e problematização incessante das propostas teóricas, ganha relevo o tema da legitimidade decisória a partir da institucionalização das condições que assegurem a discursividade que funda e mantém legítimo o direito democrático. (2008, p. 135). Ressalte-se, ainda, que na teoria neoinstitucionalista o conceito de instituição, segundo Rosemiro Leal, não se dera apenas em virtude do conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a denominação jurídica de processo. Sua função precípua é assegurar o exercício dos direitos expressos no texto legal pelas partes em simétrica paridade, alcançados pelo procedimento institucionalizador do devido processo legal. Nesse sentido, explica: 45 No direito democratico, nao se concebe instituição como o que tem validade em si mesmo por uma vontade social diluída na corrente vitalista de valores sociais a impor a personificação das idéias governativas (organais) da sociedade ou das coisas integrantes do patrimônio ético-moral e econômico do mundo da vida social, porque instituir, na procedimentalidade democrática, é um decidir advindo de uma teoria processual de abertura ampla, isonômica e discursiva na formação da opinião e da vontade como fonte jurídica legitimadora do exercício da normatividade daí resultante. (LEAL, R., 2002, p. 188-189). A teoria neoinstitucionalista exige um procedimento processualizado distinto de outros ditos viabilizadores da discursividade, concebidos ou idealizados para a criação e a aplicação do direito. Ela dimensiona o processo no plano instituinte do direito democrático, para além de alusões técnicas e metodológicas (ALMEIDA, 2012, p.35), que não serão mais suficientes para esclarecer o processo como recinto possível e legítimo para a metalinguagem. A legitimidade fundante e a validade das instituições jurídicas emergem da estrutura normativa constitucional, quando esta passa a ser garantidora da atuação permanente da cidadania na transformação ou preservação do Estado e das demais instituições. Esta teoria neoinstitucionalista do processo só é compreensível por uma teoria constitucional de direito democrático de bases legitimantes na cidadania. (LEAL, R., 2001). O autor da teoria ensina: Na minha teoria neoinstitucionalista da linguagem jurídico-processual, devido processo não é ―metanível descritivo‖ que possa pretender estar dotado da ―propriedade de zerar a ideologia‖, mas é um núcleo inaugurador de um referente (interpretante) autocrítico-intradiscursivo (intradiscursivo) para todos os implicados de uma comunidade juridicamente (normativamente) constitucionalizada (coinstitucionalizada) e candidata à autoria de uma sociedade jurídico-política em que destinadores e destinatários normativos estejam em simétrica paridade isonômica. (LEAL, R., 2010a, p. 276-277). Como abordado nos tópicos anteriores, é necessário um aprofundamento nas teorias do conhecimento e da linguagem para esclarecer como o discurso processualizado poderá testificar a linguagem originária do texto legal, uma vez que depende deste para poder atuar. Quanto ao significado das palavras, Rosemiro Leal defende a construção de uma enunciação teórica autocrítica, na qual: [...] a desnaturalização da linguagem humana se faz agora pelo espaço científico a entravar um pacto sígnico sobre a possibilidade de autoconstrução humana a partir da arguição crítica de todas as linguagens 46 histórica e tecnologicamente recebidas das tradições culturais. (2010a, p. 256). A teoria neoinstitucionalista refuta a ideia de que, para se evitar um enrijecimento normativo, as normas podem ser livremente interpretadas num sistema em que a tópica seria o lugar comum para argumentação. Diversamente, sustenta que o sistema deve ser demarcado e construído pelos princípios autocríticos do processo, ampla defesa, contraditório e isonomia, afastando a tópica da possível linguagem legítima. Para devolver o caráter democrático da lei, o que se propõe é a reconstrução do significado (pressuposto) da lei quando da decisão, com o rompimento com os sentidos preestabelecidos das palavras, extraindo o autoritarismo do juiz, que ainda atua como principal ator do processo, segundo as visões fazzalariana e habermasiana tratadas. Acerca das decisões, a teoria neoinstitucionalista condiciona sua validade à observância da regra de proibição de vedação de liberdade que significa que: [...] na democracia temos que reservar para o outro a ocupação dos espaços de refutação. A ocupação do espaço processual pelo outro tem por fim a intervenção no erro-problema, pois aí está a oportunidade de elaborar (enunciar) conjecturas. Por isso o seu fim não se limita a alcançar consenso e retratar a opinião pública. A liberdade na sociedade aberta consiste na possibilidade de fiscalização ampla e irrestrita das decisões do Estado por meio do método de eliminação de erro e não por meio da dialética. Isto se dá porque a liberdade demanda possibilidade de se desgarrar do dado da realidade (da condição dada), não para anular a realidade, mas para que o homem possa construir o seu próprio mundo de significados. (ALMEIDA, 2012, p. 88). Diversamente do discurso constitucionalizado (processualizado), na dialética não se pretende confrontar ou eliminar a tese com a antítese; o que se desenvolve é o princípio da não contradição (aristotélico) ou a harmonização do que há em comum nas duas teorias. Portanto, não se pretende refutar (testar) uma ou outra, porque a síntese irá contemplar o melhor lado de ambas. O que ocorre é que, quando se adota a dialética, ―é sempre possível sustentar qualquer ideia, mesmo que haja contradições; [...] pois as críticas (contradições) que foram apontadas fazem parte do desenvolvimento (evolução) da razão e do mundo‖ (ALMEIDA, 2012, p. 90). Segundo Rosemiro Leal: [...] essa residência fixa numa razão instrumental de vocações gregárias capaz de tornar os diferentes iguais em liberdades pelo milagre iluminista 47 das razoabilidades do liberalismo, com o afastamento da razão discursiva que desconfia do seu universalismo estável, exclui a compreensão das sociedades a partir de uma validade jurídica em si mesma. (2002, p. 161). Verifica-se que, consoante a procedimentalidade constitucional do discurso, não se pode falar em democracia pela aceitação do racionalismo estabilizador, mas pela existência de um processo aberto, infinito, contra o arbítrio, por ―uma procedimentalidade teoricamente processualizada a caracterizar a preservação discursiva do equilíbrio político pelo nexum institucionalista da decisão não autoritária‖ (LEAL, R., 2002, p. 164-165). Portanto, o papel do povo diante da soberania popular que lhe é atinente será exercida pela própria fiscalização do procedimento, aberto e democratizado, diferentemente do modelo habermasiano de esfera pública, cuja racionalidade era pressuposta e anterior à aplicação do direito. Possibilita-se, nessa concepção, a reconstrução da normatividade, sua validade e razões, fora do ambiente ratificador do senso comum. Os critérios de formação decisória, por sua vez, não permanecerão ligados a: [...] uma jurisdição constitucional guardiã e paternal de direitos que se faça pela atividade dos juízes (assembléia de especialistas) que, em nome da razão estratégica que entende ilusórios ou decorativos os direitos fundamentais processualmente constitucionalizados, pudessem forjar uma realidade em louvor a uma artificiosa ―paz social‖ sistêmica em nome de todos sustentada por uma jurisprudência de valores topicamente axiomatizada. (LEAL, R., 2002, p. 172). Nesse sentido é que se deve distinguir a pretensa democracia fundada em máximas como paz social, justiça, interesse comum, e passar a falar de uma democracia discursiva, não-autoritária e uma possível igualdade perante a lei (objetiva), não traduzida em preceitos morais, contextos históricos ou utilizada de forma discricionária. 48 3 CRÍTICAS AO ATUAL CENÁRIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA 3.1 Discursos hegemônicos e a universalização de direitos: uma possível retórica Ainda nos dias atuais, não obstante os conteúdos teóricos determinantes da democracia, nos deparamos com ilegitimidades praticadas por um Estado (nada) democrático. Estratificações, uniformizações, ideologizações estão por detrás de práticas ditas sociais e democráticas. Mas se focalizarmos sua normatividade (interpretação das leis) e procedimentalidade (―sistematização‖ do ordenamento jurídico), não se torna possível legitimá-lo (Estado democrático) a partir de um referente lógico-jurídico interpretativo constitucionalizado. Há, portanto, uma distorção dos significados dos valores (pilares) de um Estado Democrático de Direito; sobre este aspecto Rosemiro Leal aduz: A ―valoração‖ no direito democrático ocorre pelo juízo discursivo processualizado ao atendimento de direitos fundamentais e não pelas estratificações ideologizadas das bases sociais pressupostas de uma racionalidade exorcizável. (2002, p. 189). Entendemos que a perspectiva de um discurso universalista vai de encontro à ampliação da própria essência humana, sua existência e evolução. Reduzir o agir da sociedade a um entendimento (racionalidade) pressuposta é negar a própria individualidade (diferença) e a liberdade do homem. O discurso não pode ser uniformizador ou totalitário e deve ser desenvolvido através de estruturas dimensionáveis, caso contrário rende-se ao discurso retórico. Chauí traz a definição de Foucault em Le Mots et les Choses sobre a linguagem, que este afirma ser: [...] representação e representação do pensamento. Representação, porque afirma e nega, estando sujeita ao erro e à verdade. Representação do pensamento, porque não é uma fachada exterior a ele, porém sua manifestação, ainda que as representações verbais se oponham às pensadas como o sucessivo se opõe ao simultâneo, o imediato ao refletido. Porém, justamente porque se deve representar o pensamento e servir a verdade, a linguagem será objeto de estudos para tornar-se adequada à sua função: a retórica (modo como a linguagem se especializa em ―figuras‖ 49 e a gramática (modo como a gramática ordena e articula a sucessão de signos) conferirão às representações verbais a capacidade para bem representar as idéias. (FOUCAULT apud CHAUÍ, 1981, p. 10). Foucault complementa seu pensamento afirmando que, além do aspecto de expressão, a linguagem se converte em discurso, onde o comentário cede lugar à interpretação do pensamento, dessacralizando os signos, e a proposição articula discurso e conhecimento (FOUCAULT apud CHAUÍ, 1981). Quando se fala de discurso, é necessário esclarecer que suas características diferem de uma teoria para outra, tanto no que diz respeito à sua formação quanto em relação às funções que exerce.Tendo em vista essa realidade, este trabalho se propõe a demonstrar o aprofundamento na concepção epistemológica das teorias e suas repercussões na esfera democrática. Enquanto a retórica pode ser compreendida como distorção, ou mesmo ampliação de um discurso, que passa a não mais ser fiel ao seu núcleo fundante, distanciado da sua razão precípua; um discurso científico, através de teorias críticas (rigorosas), permite alcançar conclusões (problematizadas) não simbolizadas, através da reconstrução do conhecimento objetivo. Parece existir uma insuficiência do entendimento pleno da concepção democrática. Na verdade, um irremovível conjunto complexo e bem entreteado de ideais é instalado, acobertados pelos denominados ―direitos fundamentais‖, que acabam sendo, de forma induzida e repetida, tidos como salvaguardores da democaria. Bobbio explica que, ao atribuir um direito a alguém, lhe é conferida a faculdade de fazer ou abster-se em fazer algo, o que pressupõe, em certos momentos, caso haja uma resistência, um dever, a existência de uma norma. Assim sendo, sem que se perceba, é celebrado: [...] um verdadeiro pacto entre partes contrapostas no que diz respeito aos direitos e deveres recíprocos na relação política, isto é, na relação entre dever de proteção (por parte do soberano) e o dever de obediência (no qual consiste a assim chamada ―obrigação política‖ por parte do súdito), comumente chamado de pactum subietionis. (BOBBIO, 1994, p. 13-14). Certo é que o Direito é o elo existente entre os sujeitos (cidadãos) e, entre a maioria de nós, o único capaz de se formar. Quanto a esta vinculação não há escape, os cidadãos vivem sob a regência do Direito através das proposições normativas. Resta saber se essas normas são dotadas de legitimidade e de que forma alcançam a todos, respeitando suas diferenças. 50 A afirmação dos direitos naturais e a ideia de que é legítimo aquele poder fundado na pressuposição de direitos que derivam de algo superior está estritamente ligada à discussão da concepção de universalização e interpretação da norma em sociedades plurais, além de questões que passam pela liberdade, dignidade, igualdade etc. Bobbio se posiciona contrariamente à doutrina universalista atemporal, que pode servir como pretexto para posições conservadoras, e confirma: Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, e nem de uma vez por todas. (2004, p. 25). Ele se opõe ao fundamento de perpetuamento (atemporalidade) que a universalidade dos direitos fundamentais atualmente pressupõe. Segundo ele, devese observar a história, os acontecimentos, a mudança e, portanto, o universalismo seria historicista e contextual. Os relativistas, que se opõem ao pensamento universalista, entendem que o ser humano é fruto do meio em que vive e que não haveria um valor intrínseco que transpusesse as particularidades culturais de cada povo. Em princípio, entende-se que os relativistas radicais tendem a conceder um valor maior às minorias, enquanto os universalistas radicais tendem a generalizar os direitos humanos. ―Na ótica relativista, há o primado do coletivismo. Isto é, o ponto de partida é a coletividade, e o indivíduo é percebido como parte integrante da sociedade. [...] na ótica universalista, há o primado do individualismo‖ (PIOVESAN, 2008, p. 149). Assim como o universalismo, esse relativismo radical sofreu críticas, pois o homem deveria conservar sua individualidade, devia ter uma esfera de liberdade que lhe possibilitasse ser mais do que o fruto do meio em que vive. Boaventura de Sousa Santos registra que: [...] enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do "choque de civilizações" tal como o concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest"). (2001, p. 15). 51 Essa seria uma crítica ao discurso hegemônico dos países do Ocidente, que Wallerstein irá ferrenhamente combater em sua obra ―O universalismo europeu: a retórica do poder‖. O autor demonstra que o denominado universalismo, na verdade, significa uma superestrutura ideológica das potências centrais e dominantes, mascarada por alguns valores como direitos humanos e democracia. Ao longo da história do sistema mundo-moderno, desde o século XVI, a retórica dos líderes do mundo paneuropeu, sobretudo dos Estados Unidos e Grã-Bretanha, da mídia e dos intelectuais do establishment, está cheia de apelos ao universalismo como justificativa para suas políticas (WALLERSTEIN, 2007). Utilizam, basicamente, três argumentos em que demonstram o apelo ao universalismo. O primeiro argumento é de que a política seguida pelos líderes do mundo pan-europeu defende os ―direitos humanos‖ e promove a chamada ―democracia‖. O segundo acompanha o jargão do choque entre civilizações, no qual sempre se pressupõe que a civilização ocidental é superior às ―outras‖ civilizações, por ser a única que se baseia nos ditos valores universais, que passam a ser tidos como verdades. E, por fim, o terceiro argumento é baseado na afirmação da verdade científica do mercado, do conceito de que ―não há alternativa‖ para os governos senão aceitar e agir de acordo com as leis da economia neoliberal. No entanto, há também uma história de oposição a essa retórica, cujo debate gira em torno do que Wallerstein quer significar com o termo ―universalismo‖. Segundo o autor, o chamado ―universalismo europeu‖, promovido por líderes e intelectuais pan-europeus na tentativa de defender os interesses do estrato dominante do sistema mundo-moderno, apresentou-se como parcial e distorcido. Como consequência, as bases teóricas interpretativas das leis, bem como a construção dos seus significados e sua aplicação, são, a todo momento, afetadas. Os conceitos de democracia, de direitos humanos e de superioridade da civilização ocidental, calcados em valores universais e de inescapabilidade da submissão ao ―mercado‖, são apresentados como evidentes por si sós. Na realidade, não são nada evidentes. Representam, por sua vez, ideias complexas que devem ser analisadas com atenção e despidas de parâmetros nocivos e nãoessenciais para que sejam avaliadas com precisão e postas a serviço de todos e não de poucos, como ocorre hoje em dia. Tais conceitos são apresentados pelas 52 grandes potências para legitimar e justificar o direito de intervenção, que avocam para si, e o desrespeito aos princípios de soberania e autodeterminação dos povos. As consequências são, igualmente, nitidamente percebidas quando da aplicação dos direitos (provimento) quando tais conceitos são invocados pelos decididores (julgadores), camuflados por um discurso retórico e não democrático, afetando diretamente a liberdade e autonomia individual. O que se pretende defender não é a negatória de influência de subjetivismos (moral, cultural, histórico) quando do plano da criação da lei, que, diferentemente, não deve ser confundida com a utilização indevida (autoritária) e distorcida de conceitos quando da sua aplicação. Não se admite, pois, a utilização de critérios irracionais e ideologizados (quando os temos a fácil acesso) sob o pretexto de um consenso (verdades universalizadas). Habermas, em seu projeto que contempla a ética do discurso (ou ética da comunicação), sustenta que uma posição cognitivista no domínio da filosofia moral, com a defesa de um princípio universal moderno, é capaz de trazer uma avaliação crítica das normas legais que aspiram ao título de legítimas (MAIA, 2008, p. 35). Todavia parece que, ao explicitar as origens do referido projeto, Habermas deixa clara a base transcendental de um princípio de universalização. Sobre esse princípio, o qual denomina ―U‖, afirma: Toda norma válida deve satisfazer à condição [de] que as conseqüências e efeitos colaterais que (previsivelmente) resultarem, para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos, do fato de ela ser universalmente seguida, possam ser aceitas por todos os concernidos (e preferidos a todas as conseqüências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem) .(HABERMAS apud MAIA, 2008, p. 52). A defesa de princípios universais referentes aos direitos humanos estaria ancorada em uma posição universalista no campo da moral, de forma a reconhecer os interesses de todos aqueles comumente ligados por regras. Posteriormente, após receber inúmeras críticas ao seu projeto ético, Habermas reinaugura o princípio da universalização como um vocabulário controlado, inserido em uma cultura da Modernidade, que, ainda assim, foi apontado como um posicionamento etnocentrista. Diante deste contexto, propõe-se a seguinte discussão: é possível coexistir uma política de respeito pelas diferenças e outra de universalização de direitos subjetivos? Percebe-se, no cenário internacionalizado, povos que anseiam por 53 independência e clamam pela igualdade, seja pelo reconhecimento de identidades coletivas ou mesmo igualdade de direitos para as diversas vidas culturais. Rawls e Dworkin vislumbram como resposta a esta questão uma ordem jurídica eticamente neutra, a qual deve garantir chances iguais a todos, devendo partir cada um daquilo que considera bom para guiar suas decisões. Já Charles Taylor contesta haver essa neutralidade ética no Direito e sugere ―uma teoria segundo a qual se garantem liberdades de ações subjetivas iguais para todos os jurisconsortes, sob a forma de direitos fundamentais‖ (HABERMAS, 2002, p. 234.) Taylor ainda sugere outro modelo, que admite, em determinadas situações, a existência de garantias restritivas aos direitos fundamentais, como no caso de preservar a forma de vida cultural, que seria a exacerbação máxima da valorização da cultura. Este posicionamento apresenta também um viés etnocêntrico, reconhecendo legitimidade e validade às normas e valores vigentes na sua cultura ou sociedade. Tem na sua origem a tendência em julgar determinado modo de vida como preferível e superior a todos os outros. Percebe-se que os valores da sociedade à qual pertencemos passam a ser, numa conjuntura precipitada, declarados como valores universalizáveis, aplicáveis a todos os homens, que, em última análise, não passam de falsas generalizações. A negação da diversidade humana, com visões de mundo autênticas, pode revelar-se em atitudes ilegítimas, com ambições puramente econômicas e destrutivas. Ressurge, assim, o debate sobre o relativismo, que segundo Benhabib (2006), é considerado a ausência de heterogeneidade absoluta. Revestido de formas distintas, o relativismo está associado às reivindicações identitárias e, ao mesmo tempo, ao multiculturalismo, valorizando a diversidade cultural como traço essencial da humanidade, como ―entidade‖ discrepante, ambígua e conflituosa. A visão puramente relativista dos direitos humanos, oposta à universalista, indica que não devem existir critérios mínimos para o diálogo entre culturas, ou seja, direitos humanos ou fundamentais são relativos, dependem de cada povo e, desta forma, seria impossível a universalização desses direitos, uma vez que cada cultura tem liberdade de considerá-los ou não. Na verdade, ambos os posicionamentos, a nosso ver, são incapazes de efetivar uma ―plenificação normativa de constitucionalidade democrática‖, que só 54 pode ser construída sem estar transvestida de velhas hermenêuticas. A única via construtiva da procedimentalidade irrestrita (em todos os seguimentos) se dá no espaço processualizado (LEAL, R., 2002, p. 194). Pode-se dizer que, por meio da instauração do processo, as qualidades positivas se deslocam para o "pluralismo" da diversidade. Segundo Sartori: [...] uma cultura pluralista implica uma visão de mundo baseada, essencialmente, na crença de que a diferença, e nãoa semelhança, o dissenso, e não a unanimidade, a mudança e não a imutabilidade, 13 contribuem à boa vida. (1995, p. 115). O "pluralismo" instalado na visão relativista seria, na verdade, uma justaposição de singularidades. O problemático é a noção de inteireza, que permite associar a cultura às metáforas do caráter e da identidade. É também esta inteireza que nos ilude ao considerar a cultura não como uma dimensão da vida social, mas como a vida social na sua totalidade. Consoante Rosemiro Leal: O constitucionalismo, como plataforma teórico-jurídico-processual de discussão do pluralismo, é que poderia – o que Rawls não vê – estabilizar pelo total acesso procedimental processualizado as idéias que devam prevalecer para a identificação por todos da democracia juridicamente (processualmente) instituída. Não será o sucesso da interação do “exercício compartilhado da reflexão prática daqueles que são razoáveis e racionais”, que demitindo-se das explicações de causalidade do seu êxito, produzirá perfeitas e irretocáveis razões de direito e justiça. (2002, p. 161). É verdade que cada ser humano tem sua individualidade, suas experiências de vida, e por isso são diferentes uns dos outros. Todavia, é necessário compatibilizar a proteção a direitos fundamentais (em seu âmbito geral) e a dignidade de cada indivíduo (em sua singularidade) e reconstruir teórica e normativamente os direitos. 13 No original: ―[...] una cultura pluralista implica una visión del mundo basada, en esencia, en la creencia de que la diferencia, y no la semejanza, el disenso, y no la unanimidad, el cambio y no la inmutabilidad, contribuyen a la buena vida‖. 55 3.2 A suspensão da aplicação da lei – o estado de exceção tornou-se regra Serão aqui analisados alguns ―impasses‖ já discutidos que vêm sendo enfrentados no âmbito da decidibilidade jurídica, agora com outra roupagem. Sob as mais diversas formas, mas normalmente alegando um só problema (suposta lacuna no ordenamento jurídico), os juízes julgam sem se atentarem para a lei. Nos últimos tempos, a lacuna ou vazio da lei, equivocadamente, tem cedido lugar a um saber universal, convidativo ao despotismo estatal, sob a justificação de suposta promoção de uma justiça social. Giorgio Agamben deflagra a distorção presente no ordenamento jurídico, que, dotado de meios de solucionar eventual insuficiência da lei quanto à sua aplicação, faz a exceção virar regra. Importante dizer que a lacuna aqui tratada não é interna à lei, mas relacionase com a realidade e, por conseguinte, diz respeito à sua possibilidade de aplicação. A regra é instalar o estado de exceção14 em uma situação extrema, já que, em última análise, o direito desaparece (AGAMBEN, 2008, p. 48-49). Torna-se difícil classificar o estado de exceção como pertencente ao plano do direito se se refere a uma suspensão do ordenamento vigente e, portanto, se apresenta como forma legal daquilo que em sua raiz não pode ter forma legal. Segundo Agamben: [...] por outro lado, se a exceção é o dispositivo original graças ao qual o direito de refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente direito. (2008, p. 12). Outro ponto de compreensão intrincada e estreita é relação com a guerra civil, esta última, considerada uma zona de indecidibilidade. Segundo Agamben, o Terceiro Reich pode ser considerado como totalitarismo moderno, que por meio da instauração do estado de exceção, do ponto de vista jurídico, permaneceu em guerra civil legal por doze anos, com a presença de práticas voluntárias disseminatórias. 14 Entre 1934 e 1948, diante do desmoronamento das democracias europeias, a teoria do estado de exceção – que havia feito uma primeira aparição isolada em 1921, no livro de Schmitt Die Diktatur [A ditadura] – teve um momento de especial sucesso; mas é significativo que isso tenha acontecido sob a forma pseudomórfica de um debate sobre a chamada ―ditadura constitucional‖. (AGAMBEN, 2008, p. 17). 56 Se transportarmos a teoria schmittiana para os dias atuais, verificaremos que o estado de exceção – como abolição provisória da distinção entre Poder Legislativo, Executivo e Judiciário – ou ao menos o alargamento das funções a serem exercidas por estes, virou regra. O que ora nos interessa é a crítica ao estado de exceção no espaço das decisões (jurisprudências ocultadoras das normas jurídicas). A partir da instalação de um discurso subjetivista, ancorado nas premissas universais e, ainda, reproduzido sob a justificativa da existência de lacuna na lei (desconsiderando-se estrategicamente direitos líquidos e certos); o estado de exceção torna-se a saída dos juízes-hércules. Conclui Rosemiro Pereira Leal: Este lugar (poder) do decidir anormativo é que aponta, a esmo, ilicitudes e estas como condictio sine qua non das condenações e sanções sentenciais que se notabilizam pela punição implacável (justiceira), encobrindo direitos fundamentais líquidos e certos que, se exercíveis a seu tempo e de modo ininterrupto (ao longo de uma fiscalidade processual difusa e irrestrita), teriam efeito preventivo das infracionalidades e da miséria social. Entretanto, ainda se explora a zona de anomia da lei, sempre aberta ao decisor talentoso, para um julgar pelas normas de realização do direito que diferem das normas vigorantes, tornando-se o direito processual mero instrumento autocrático de uma jurisdição de escopos meta-jurídicos (concretizadores de valores sociais e éticos retirados oniscientemente de um real anômico. (2005, p. 6-7). Carl Schmitt (apud AGAMBEN, 2004, p. 48) ―vê no estado de exceção precisamente o momento em que o Estado e direito mostram sua irredutível diferença (no estado de exceção ―o Estado continua a existir, enquanto o direito desaparece: Schmitt, 1922, p. 39‖)‖. Essa seria a semelhança entre a aplicablidade da teoria jurídica das lacunas no direito e a suspensão do direito, com o estado de exceção, fazendo o direito desaparecer. A pretexto de se depararem com obstáculos intransponíveis, os julgadores elaboram decisões que se tornam jurisprudências, ocultadoras da própria norma jurídica. Conclui-se que tornar a lei objetiva também é deixar de suspender o seu cumprimento, já que vigente no ordenamento jurídico. O lugar do decidir anormativo aponta ilicitudes, encobrindo direitos fundamentais líquidos e certos. Segundo Rosemiro Leal: [...] o que também se nota em um discurso de um direito banalizado pelo rótulo democrático é a distinção especiosa entre ausência de norma e 57 insuficiência do teor significante da norma, para jurisdicionalizar sua interpretação. Ora, ambas as hipóteses reclamariam soluções legiferantes e não [...], por intenções supletivas e de livre interpretação do julgador no caso de insuficiência da lei. (2002, p .106-107). De toda maneira, pode-se dizer que os positivistas ou neopositivistas preocupariam-se apenas com a inviolabilidade do sistema (ordenamento jurídico), guiando-se para garantir esse fim pela ―astúcia interpretativa ou pela habilidade em manejar os jogos de linguagem procedimental‖ (LEAL, R., 2002, p. 107). Desta feita, a decisão se tornaria compreensiva e adequada para seus destinatários se proferida conforme a lei. Na visão de Rosemiro, não só para os positivistas, mas também para os jusnaturalistas, jusracionalistas e relativistas; o que importa é manter a ordem e a segurança jurídica, reproduzidas por uma decisão cujo senso de justiça dos julgadores se torna precursor da concretização de tais objetivos. E sintetiza a esse respeito: Entendem, por unanimidade silenciosa e culturalmente jurisprudencializada, que a ordem jurídica social, moral ou ética decidida pela autoridade judicante, legislativa ou executiva é sempre legítima, desejável e legal, se obtiver, em caso de controvérsia, aprovação do Judiciário como única ou última instância orgânica de discussão e decisão exaurientes de quaisquer dúvidas. Para eles, a interpretação é sempre autopoietica, porque, considerando ou não o ordenamento jurídico completo ou lacunoso e a propria lei estabelecendo que, em caso de insuficiência ou lacuna (omissão) da lei, o juiz suprirá a falha do legislativo, também seria a norma jurídica a que determinasse o juiz preencher com suas próprias normas a lacuna da lei, resultando, portanto, atendido o princípio da reserva legal. (LEAL, R., 2002, p. 108). Portanto, não se interessam pela normatividade constitucionalizada do paradigma teórico legitimante da estatalidade decisória advida da validade e eficácia decisória. Preferem a decidibilidade compulsória como referente jurídico-teórico fundante da normatividade. Esse tipo de decididor, ao complementar a norma, revela sua exclusiva racionalidade, o que contraria a lógica construtiva do processo, já que, neste momento, desconsidera a participação de todos os envolvidos no processo. As decisões que invocam padrões teóricos que se orientam por valores ou convicções ideológicas, por si só, não está autorizada no Estado Democrático. As supostas notas características de um direito não podem ser, em direito democrático, somente audíveis por um só ouvinte privilegiado a quem incumbirá definir ou reconhecer direitos por conceitos herdados da tradição de alusivos a prudente arbítrio, equidade, bom-senso, relação adequada, boa-fé, justa causa e outros ideários axiológicos do mundo da vida. (LEAL, R., 2002, p. 112). 58 A partir das teorias vistas, o processo já pode ser considerado recinto de racionalidade na construção do provimento, sem ter que se buscar no sistema jurídico fontes indemarcadas (sem racionalidade e objetividade), como ética, moral, costume, juízos de valor e equidade. Conclui-se pela necessidade de substituição da subjetividade na construção do provimento pela testificação (racionalização) das teorias que se rotulam democráticas. 3.3 A dessubjetivação do conhecimento ou objetividade linguística como reconhecedora da sociedade democrática e legitimadora da decisão Pode-se dizer que a ciência moderna, após a segunda metade do século XX, não mais se sustenta como outrora, com seus conceitos absolutos, totalizantes, de ―razão‖, ―democracia‖, ―verdade‖. Neste sentido, Aroldo Plínio Gonçalves aduz: O século XX rompeu com o mito do século passado de que a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes, imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao contrário de depor contra o conhecimento científico, essa postura anseia pelo seu progresso, por sua contínua complementação, e conduz àquela palavra de fé, de que fala Bachelard, do cientista que termina seu dia de trabalho dizendo: ‗Amanhã saberei‘. E nessa profissão de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo conhecimento, em qualquer área, é fruto de muitos esforços conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e renovam, e, não raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas concepções repudiadas ou como respostas a elas. (2001, p. 13). O Estado Democrático de Direito vem tentando superar os dois modelos de paradigmas de Estado da Modernidade, os Estados liberal e social de direito. Ocorre que este movimento não é linear e perfeito; há alguns obstáculos correlatos aos ―antigos ideiais‖. Sobre a inserção da procedimentalidade como otimização de resultados mais democráticos, Terezinha Chaves preconiza: A substituição da positividade das leis pela eficiência mensurável dos procedimentos – operada pela Teoria dos Sistemas Autopoiéticos de Luhmann – pelos quais se permite ao direito mudar sua qualidade jurídica através de decisões que absorvem e apreendam as situações contingenciais, colocando a positividade do direito na capacidade de 59 absorção de situações emergentes no contexto das contingências, não serve ao paradigma proposicional de Estado de Direito Democrático. Isso porque o discurso dessa teoria possibilita um significativo aumento do poder dos juízes ou daqueles que decidem, porque, na verdade, eles é que têm a consciência do sistema e a capacidade de absorver e reduzir a complexidade do mundo circundante. Nessa concepção, o procedimento é apenas forma de otimização das performances do sistema, que não pode sofrer perturbações das infinitas possibilidades do mundo circundante. (CHAVES in LEAL, R., 2003, p. 99). A questão da legitimidade da decisão, após a institucionalização do processo pela Constituição Federal, por meio de seus princípios estruturantes (contraditório, ampla defesa e isonomia) e o devido processo, inaugura o paradigma constitucional processualizado e intolerante a arbitrariedades. A exigência da fundamentação das decisões suscita a criticabilidade (problematização) como condição da existência de uma sociedade político-jurídicodemocrática. A partir da possibilidade de crítica, há garantia do exercício da liberdade e individualidade (singularidade). Muitos veem a impossibilidade de uma metalinguagem – ―linguagem em que se possa falar de outra linguagem‖ – ou, na concepção da minha teoria neoinstitucionalista do processo, de uma metalinguagem autocrítica-jurídica pela principiologia do contraditório, ampla defesa e isonomia, para correlativamente identificar e enunciar a vida, liberdade, dignidadeigualdade [...], porque se aferram ao mito de que não é possível a alguém sair da linguagem (dogma lacaniano e historicista que o próprio Lacan em seu saber metalinguístico cuidou de derrogar pela via de seus matemas e Marx pelo seu socialismo científico). É que não percebem que a dessujeitização (dessubjetivação) do conhecimento se faz pela acumulação de teoriascríticas que exercem uma sobrecarga sobre a ciência e a técnica correntemente assentes. A partir desta etapa em que o acervo críticoteórico se habilita a arguir os saberes estabilizados por teorias duradouras é possível falar de uma objetividade linguística (Mundo 3 de Popper). (LEAL, R., 2010a, p. 178-179). Popper (1999) explica que a linguagem humana tem, ao menos, quatro funções: sintomática ou expressiva; comunicativa, sinalizadora ou libertadora; descritiva ou informativa; e argumentativa ou crítica. Ele categoriza as duas primeiras linguagens como inferiores (já que, além de serem comuns à linguagem dos animais, não podem exprimir certos estados) e as duas últimas como superiores (primeiramente porque os animais não as possuem e também por ultrapassarem as disposições comportamentais e, portanto, potencial veiculadora do conhecimento objetivo). Como ao debate interessam as linguagens superiores, restringiremos a abordagem a estas. Pode-se dizer que a função descritiva e informativa nos 60 possibilita que falemos se algo é verdadeiro ou falso, o que vai além da função comunicativa, pois passam a ser avaliados criticamente os fatos. Para Almeida (2008, p. 174), ―Popper não está se rendendo ao observacionismo, mas ressaltando que a verdade como correspondência com os fatos somente significa que ainda não se encontrou observação negativa para a asserção descritiva‖. Portanto a finalidade da problematização do processo é uma aproximação da verdade,15 busca-se esclarecer a realidade, mas não a justificação de uma teoria como verdadeira, até mesmo porque todas as teorias são hipóteses. Popper esclarece que a metalinguagem é a forma de compreendermos e avaliarmos a linguagem, matéria-prima do nosso estudo. A avaliação crítica da linguagem objeto através da metalinguagem nos faz transcender as barreiras impostas pela realidade cultural, crenças e preconceitos (da própria linguagem natural). A busca pelo devir no lugar da repetição do dever ser (cheio de subjetivismos) possibilita clarificar a linguagem, nos mostrando a importância de significar o real ao invés da realidade, que é carregada de simbolismos. Para o reconhecimento de uma sociedade plural, multicultural, autêntica, necessária se torna a desmistificação, o esclarecimento de conceitos prontos, imediatos e não questionáveis. A irrefutabilidade advinda de justificativas pressupostas travestidas de ―bem comum‖, ―função social‖ ou ―utilidade pública‖ não podem perdurar em um sistema que, além da lei, possui como paradigma democrático o devido processo, clarificador da interpretação do texto legal. A teoria neoinstitucionalista preconiza o processo como enunciado normativo sem que haja fundamentação em direitos inatos ou éticos, mas com base na razão. O argumento racionalizado pode ser falseado, criticado e, a partir de uma lógica dedutiva (do universal para o singular), pode se tornar legítimo em uma sociedade multicultural. A discursividade da linguagem (metalinguagem) se dá no devido processo – no falseamento das teorias – que é capaz de trazer à tona a dessubjetivação do conhecimento na interpretação decisória. 15 Para Comte-Sponville: ―Toda verdade é universal, pois que é verdadeira, de direito para todos. Mas um valor univesal seria o que valeria para todos, o que nunca se pode demonstrar, de direito, en constatar, de fato.‖ (COMTE-SPONVILLE, 2008, p.350). 61 A testificação de direitos ou a (re)construção de significados visa a afastar um totalitarismo jurisprudencial e abre passos para uma multiplicidade de interpretações, além de uma fiscalidade constante das normas. Em uma sociedade democrática, seria inviável permitir que argumentos metajurídicos, alheios a uma compreensão racional e à crítica pelos seus destinatários, perpetuem um ―estado de exceção‖. Segundo Almeida: Decisões com base em jurisprudência majoritária, súmula, presunção absoluta de verdade, experiência do juiz, casos repetitivos, juízo de probabilidade, proporcionalidade, ponderação de valores, razoabilidade, adequabilidade, reserva do possível, não passam de justificacionismo ou verificacionismo, de recusa a trabalhar o futuro; o que significa um retrocesso e não um progresso na democracia. Essas justificativas não são sequer falseáveis, porque respondem a qualquer pergunta, não importa como. Servem mesmo é para um procedimento arbitrário ou discricionário em que temos poucas perguntas e respostas para tudo, nem que seja para silenciar os opoentes, e não para a democracia, em que temos mais demandas do que respostas, já que é possível testificar todas as decisões e omissões. (2012, p. 75). O constitucionalismo juridicamente procedimentalizado, como posibilitador de discussão do pluralismo, é a via estabilizadora das ideias (teorias) suscitadas pelos participantes da democracia. Inadimissível, portanto, um contexto autoritário do Judiciário em um paradigma de Estado Democrático de Direito, sob pena de estarmos sendo coniventes com uma superestrutura, em último grau, violenta. 62 CONCLUSÃO O presente trabalho partiu do seguinte questionamento: É possível obter decisões legítimas no atual cenário do Estado Democrático de Direito? Procurei, através da análise de algumas teorias desenvolvidas por autores utilizados na pesquisa, entender se e como seria possível em uma sociedade diversificada a efetivação de direitos de forma democrática. Já que, por um lado, fala-se da supremacia dos chamados direitos humanos, de preceitos universalizados e, por outro, da individualização desses direitos, da interpretação caso a caso. O correto seria partir de verdades gerais ou relativizar? E, nenhuma das possíveis respostas me parecia completa, plausível. Ainda, havia uma dificuldade em identificar, na prática, qual seria a forma eficaz e legítima de implementar o direito democrático. Percebi, portanto, que seria necessária a reconstrução (uma nova construção) de repetições replicadas no universo jurídico, livre de preconceitos e padrões, raízes passadas. O dito senso comum, reforçando a ideia de verdades universais e, mesmo os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, na tentativa de alcançar possível adequação, ainda soava como justificativas com alta carga subjetiva e, portanto, antidemocráticas. A partir daí, pude traçar um caminho que me levasse a possível solução, iniciando a pesquisa da ―dessubjetivação‖ do conhecimento ou objetividade na relação entre linguagem, cognição e realidade. Durante a pesquisa e utilizando como foco as teorias do racionalismo crítico de Karl Popper e a teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Leal, com o auxílio das contribuições de Andréa Alemida, tornou-se claro o momento de tal objetivação, que se daria por meio da instauração do denominado ―discurso jurídico constitucionalizado‖, defendido pelo neoinstitucionalismo. Neste espaço, portanto, seria possível, através da discursividade crítica, promovida pelos próprios destinatários da decisão, a construção da lei democrática. Colocando-se à prova, dessa forma, os fundamentos ideológicos, culturais e estratégicos que, usualmente, servem aos nossos julgadores. 63 O que se defende é que este comportamento acarreta na ilegitimidade das decisões, acobertadas por preceitos morais, universalizados, subjetivos. E, por isso, pode-se dizer que tal escolha, a de embasar decisões nesses preceitos, muitas das vezes, oculta o conteúdo e a própria existência de normas jurídicas. Frequente se tornou o uso de justificativas como a ocorrência de lacuna na lei para que escopos metajurídicos fossem utilizados pelos decididores, o que nos leva a um contexto de estado de exceção, cuja aplicabilidade do direito fica suspensa. Esses decididores sustentam que a decisão que tenha como base um ―senso de justiça‖ seria legítima, já que o juiz suprirá eventual falha do Legislativo. Mas, na realidade, estes juízes não se interessam pela normatividade constitucionalizada do paradigma teórico legitimante da decisão. Preferem a decidibilidade compulsória, revelando sua exclusiva racionalidade e desconsiderando a participação dos envolvidos e contrariando sua lógica construtiva. Portanto, o que se propõe é a construção do provimento a partir do processo como recinto de racionalidade, afastando a busca de fontes indemarcadas ou subjetivas, como a ética, moral, juízos de valor e equidade. Para tanto, no primeiro capítulo foi abordada a construção do significado em espaços desprocessualizados. Apresentou-se algumas teorias que tentaram criar meios para se obter um pensamento sem apelar para a individualidade do intérprete. Todavia, percebeu-se, ao final, que os significados extraídos de tais investigações não detinham autonomia, tendo como referente a realidade cultural e a experiência pressuposta e, portanto, isenta de objetividade. Rosemiro Leal reproduz, já no espaço processualizado, esta hipótese de não utilização do referente na formação do significado da lei democrática, demonstrando o importante papel interpretativo e crítico do processo. A ideia de refutabilidade das teorias e suas interpretações surge da identificação de um hiato entre o entendimento do sujeito (Eu) e do (Outro). Este vazio ou não simbolizável ensejaria a motivação de Lacan para explicar o real, consistindo no que ainda não foi simbolizado e possibilitando a problematização da linguagem. 64 Percebe-se que estes pensamentos se tornaram relevantes para a teoria neoinstitucionalista, principalmente por afastar a influência da linguagem natural, nos permitindo afirmar que os conteúdos das palavras não podem ser desprezados, embora não sejam suficientes para irromper todos os seus sentidos. Portanto, a linguagem como elemento de significação no espaço desprocessualizado não se torna capaz de alcançar a todos democraticamente, sendo necessária a instalação de um debate aberto à crítica. Para Popper, devemos ter o cuidado de manter as afirmativas que fazemos livres da significação de nossos termos, o que demonstra uma posição subjetivista. E, como consequência, a teoria do conhecimento acabaria por traduzir em mero reconhecimento do senso comum, o que demonstra sua inadequação e necessidade de substituição pelo conhecimento objetivo, distante da crença pessoal. Conclui-se que as teorias devem, independemente de sua repetição, ser submetidas a testes de refutabilidade, já que o conhecimento objetivo, segundo Popper, acontece fora da mente dos sujeitos. Sustenta-se, assim, que a capacidade argumentativa enquanto razão na discursividade é que possibilita múltiplas interpretações e propicia uma linguagem autônoma perante a lei convencionada. A refutação de teorias e a consequente formulação de novas levarão a uma aproximação da ―melhor teoria‖. No segundo realizou-se uma transposição dos conceitos estudados no primeiro capítulo, além da apresentação de teorias processuais que auxiliaram na construção do eixo do trabalho, na compreensão do processo num âmbito linguístico. A contribuição fazzalariana, com a teoria do processo como procedimento em contraditório que nos leva a crer em uma relação internormativa como instaladora do discurso preparatório da decisão, e a razão comunicativa habermasina, que traz a ideia de instauração do procedimento como forma de alcançar o sentido normativo pleno, elucidam e reforçam a importância do discurso processual democratizado, mas ainda apresentam falhas em suas concepções. 65 Verificou-se que Fazzalari, por exemplo, confere ao juiz o poder de emitir juízos de ponderação, adequabilidade, além de permitir o uso da analogia e equidade, admitindo a moral e a valoração histórica em sua teoria estruturalista do processo. Demonstrando, assim, que suas soluções para possível incompletude do ordenamento jurídico não mais são suficientes para o alcance da legitimidade decisória, atendo-se à validade a partir do procedimento. Habermas, por sua vez, se preocupa com a obtenção de certezas (que não deixam de ser opiniões) contextualizadas e compartilhadas pela comunidade e, por tal motivo, não consegue abertura para a construção da falseabilidade teórica. A discursividade de Habermas está adstrita a uma interlocução e, a falibilidade é decorrente da provisoriedade do conhecimento sob o ponto de vista histórico. Já a racionalidade crítica popperiana serviu à teoria neoinstitucionalista do processo quando analisada no plano processual, cuja discursividade se daria na construção das decisões, uma discursividade crítica e não homologatória. Pode-se dizer que no racionalismo crítico de Popper não é possível assegurar se uma teoria é verdadeira, mas sim se é falsa. O teste é de falseabilidade de teorias, como no caso de enunciados universais, que podem ser refutados por enunciados singulares. Para Rosemiro Leal, a discursividade interenunciativa (o confronto de enunciados teóricos), a relação entre normas e não entre sujeitos, testa o conteúdo das normas e identifica a fala subjetiva, colocando-a sob suspeita. Torna-se possível, dessa forma, através da linguagem crítico-argumentativa, e não mais repetidora, identificar a concepção democrática processualizada da decisão. A teoria neoinstitucionalista do processo dimensiona o processo no plano instituinte do direito democrático, defendendo a construção de uma enunciação teórica autocrítica, como a desnaturalização da linguagem humana, o rompimento com os sentidos preestabelecidos das palavras. Já no terceiro capítulo, após a demonstração da evolução teórica sobre a objetividade jurídica no discurso constitucionalizado, passou-se a uma análise do atual cenário do Estado Democrático de Direito. 66 Viu-se que a avaliação crítica da linguagem através da metalinguagem nos permite transcender barreiras impostas pela realidade cultural, crenças e preconceitos, necessária para o reconhecimento de uma sociedade democrática e autêntica. A irrefutabilidade advinda de justificativas pressupostas como ―bem comum‖, ―função social‖, ―justiça‖, ou ainda pela existência de lacuna na lei, desconsiderandose, estrategicamente, direitos líquidos e certos, revela-se como uma saída de juízeshércules. Percebeu-se que o procedimento arbitrário, parcial, apresenta-se como uma superestrutura violeta, o que deve, a todo custo, ser questionado. Apenas o argumento racionalizado pode ser falseado, criticado e possível de se tornar legítimo em uma sociedade democrática. Caso contrário, seria admitir um retrocesso em relação às conquistas democráticas. Logo, através do desenvolvimento do trabalho, pude concluir que a proposta da teoria neoinstitucionalista de promover a dessubjetivação do conhecimento ou objetividade linguística é, além de coerente, indispensável para a reconstrução de práticas judiciárias em um Estado Democrático de Direito, onde, em muitos momentos, o estado de exceção faz-se presente. 67 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. Belo Horizonte: Fórum, 2005. ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metaliguística. Curitiba: CRV, 2012. APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994. ARAGÃO, L. M. de C. Razão Comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. 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