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FUNDAÇÃO MINEIRA DE EDUCAÇÃO E CULTURA
UNIVERSIDADE FUMEC
Programa de Pós-Graduação em Direito
Maria Elisa de Vilhena Loureiro
A
“DESSUBJETIVAÇÃO”
DECISÓRIA
INTERPRETATIVA
COMO
VIABILIZADORA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: considerações
sobre
as
influências
da
teoria
neoinstitucionalista
reconstrução das práticas judiciárias
Belo Horizonte
2013
do
processo
na
Maria Elisa de Vilhena Loureiro
A
“DESSUBJETIVAÇÃO”
DECISÓRIA
INTERPRETATIVA
COMO
VIABILIZADORA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: considerações
sobre
as
influências
da
teoria
neoinstitucionalista
do
processo
na
reconstrução das práticas judiciárias
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Fundação Mineira de
Educação e Cultura - Universidade FUMEC, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Direito.
Orientador: Prof. Dr. André Cordeiro Leal
Belo Horizonte
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha catalográfica elaborada por: Xxx Xxx– CRBL375u
Loureiro, Maria Elisa de Vilhena Loureiro.
A ―dessubjetivação‖ decisória interpretativa como viabilizadora do Estado
Democrático de Direito: considerações sobre as influências da teoria neoinstitucionalista do
processo na reconstrução das práticas judiciárias.
Maria Elisa de Vilhena Loureiro.
Belo Horizonte: FUMEC – 2013.
67f.
Orientador – Prof.Dr. André Cordeiro Leal.
Dissertação (Mestrado em Direito) FUMEC –
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito.
Inclui bibliografia.
1. Decisão objetiva. 2. Reconstrução interpretativa.
3. Teoria neoinstitucionalista. 4. Estado Democrático de Direito.
I. Leal, André Cordeiro II. FUMEC. III. Título.
CDU – 336.2
Maria Elisa de Vilhena Loureiro
A
“DESSUBJETIVAÇÃO”
DECISÓRIA
INTERPRETATIVA
COMO
VIABILIZADORA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: considerações
sobre
as
influências
da
teoria
neoinstitucionalista
do
processo
na
reconstrução das práticas judiciárias
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Fundação Mineira de
Educação e Cultura - Universidade FUMEC, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Direito.
___________________________________________________
Prof. Dr. André Cordeiro Leal (Orientador) – Universidade FUMEC
____________________________________________________
Profa. Dra. Maria Tereza Fonseca Dias – Universidade FUMEC
______________________________________________________
Profa. Dra. Andréa Alves de Almeida – UNIFEMM
Belo Horizonte, 9 de julho de 2013.
AGRADECIMENTOS
Ao prof. André Leal, pelas palavras de inspiração e motivação.
À minha família, pelo incentivo e confiança.
Ao Leonardo, pela paciência e companheirismo.
“É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões
de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os
admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No
entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão
variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam
com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos
e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão. Facilmente,
poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia
esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo,
devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas
ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas
provavelmente não são tão simples assim.”
Sigmund Freud (O mal-estar da civilização)
RESUMO
O atual contexto das práticas judiciárias demonstra a ilegitimidade das decisões
motivadas em interpretações acobertadas por preceitos morais e, portanto,
subjetivos. Teorias autoritárias e parciais são deliberadamente utilizadas por nossos
tribunais, cujas verdades universalizadas correspondem a justificativas irrefutáveis.
Surge, portanto, a importante tarefa de assegurar uma discussão processual aberta
e problematizada, num viés interpretativo (re)construtivo e democrático. O ―estado
de exceção‖ é adotado por uma escolha estratégica, suspendendo o Direito, que, se
transposto para a esfera processual, acaba por justificar provimentos que fogem à
racionalidade. O que se pretende, desta feita, é demonstrar a forçosa necessidade
do retorno ao Estado Democrático de Direito, com a reconstrução de conceitos
fundamentais a uma sociedade democrática, tendo o processo como plano
instituinte do direito democrático pelo discurso processualizado e testificado,
possibilitando a crítica à linguagem (como meio universal de entendimento) e, como
consequência, concedendo objetividade à decisão, conforme proposto pela teoria
neoinstitucionalista do processo.
Palavras-chave:
Decisão
objetiva.
Reconstrução
neoinstitucionalista. Estado Democrático de Direito.
interpretativa.
Teoria
RESUMÉ
Le contexte actuel des pratiques démontre l'illégitimité des décisions de justice sur
les interprétations silencieuses motivée par des préceptes moraux et donc
subjective. Théories autoritaires et partielle sont délibérément utilisés par nos
tribunaux, dont universalisée vérités correspondent aux justifications irréfutables. Se
pose donc la lourde tâche de veiller à une discussion ouverte et problématique de
procédure, d'interprétation (re)constructif et démocratique. L 'état d'exception‘ est
adopté par un choix stratégique, de suspendre la loi qui, si elle est appliquée dans le
domaine de la procédure, en fin de compte justifier provisionses fuyant la rationalité.
Ce qui est destinée, cette fois, est de démontrer la nécessité d'un retour forcé dans
État de droit démocratique, avec la reconstruction des concepts fondamentaux d'une
société démocratique et du plan de processus comme instituant le droit
démocratique par la parole et a témoigné, ce qui permet critique à la langue (comme
un moyen universel de compréhension) et, par conséquent, donner l'objectivité de la
décision, tel que proposé par la théorie neoinstitucionalista.
Mots-clés:
Decision
objective.
Reconstruction
neoinstitucionalista. L'état démocratique du droit.
d'interprétation.
La
théorie
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
1 ALGUMAS CONCEPÇÕES SOBRE A LINGUAGEM E O CONHECIMENTO NA
CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO DA LEI ................................................... 11
1.1 Linguagem, cognição e realidade e a construção do significado nas
visões de Peirce, Saussure e Lacan ......................................................... 11
1.2 Conhecimento objetivo versus subjetivo e o problema do senso comum
para Karl Popper ......................................................................................... 19
1.3 O conhecimento construído através das metodologias: tópica, sistema
axiomático-dedutivo, sistema axiológico-teleológico e direito como
sistema de princípios ................................................................................. 26
2 O DISCURSO PROCESSUAL COMO TEORIZANTE DA NORMA
(INTERNORMATIVIDADE) ............................................................................ 31
2.1 Da estruturação do processo como contraditório segundo Fazzalari e a
contribuição de outras teorias .................................................................. 31
2.2. A razão comunicativa habermasiana ......................................................... 35
2.3 A racionalidade crítica popperiana.............................................................. 39
2.4 A teoria neoinstitucionalista da decisão e o processo como eixo teóricolinguístico de estabilização do discurso constitucionalizado ................ 43
3 CRÍTICAS AO ATUAL CENÁRIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
E
A
NECESSIDADE
DE
RECONHECIMENTO
DA
SOCIEDADE
DEMOCRÁTICA ............................................................................................ 48
3.1 Discursos hegemônicos e a universalização de direitos: uma possível
retórica ........................................................................................................ 48
3.2 A suspensão da aplicação da lei – o estado de exceção torna-se regra . 55
3.3 A dessubjetivação do conhecimento ou objetividade linguística como
reconhecedora da sociedade democrática e legitimadora da decisão. 58
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 62
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 67
8
INTRODUÇÃO
Bem se sabe que o Direito, em seu sentido lato, se expressa através de
normas. A proposta deste trabalho é a de instalar um debate que objetiva
demonstrar a necessidade precípua das normas se apresentarem suscetíveis a
críticas pelos legitimados por meio do devido processo.
Deparamo-nos hoje com teorias autoritárias e parciais utilizadas por nossos
tribunais, cujas verdades universalizadas correspondem a justificativas metajurídicas
e, portanto, irrefutáveis. Daí surge a importante tarefa de assegurar uma discussão
processual aberta e problematizada, num viés interpretativo (re)construtivo e
democrático.
O que se pretende defender é que, para se lançar na tentativa de alcançar a
gênese ou razão da lei, necessária se torna a busca do seu significado por uma
linguagem autocrítica, ou melhor, a investigação da relação entre linguagem,
cognição e realidade.
Verificar-se-á, entretanto, que apenas a partir da testificação (falseamento) de
direitos processualmente teorizados pelos envolvidos no processo por meio da
instauração do denominado discurso jurídico constitucionalizado defendido pelo
neoinstitucionalismo1 é possível desmistificar (pre)conceitos, ideologias e os próprios
significados socializados, enraizados nas bases subjetivas do intérprete, permitindose, após este rompimento, a construção democrática do significado da lei.
O marco teórico utilizado foi Karl Popper (e o racionalismo crítico por ele
desenvolvido) e Rosemiro Leal (e sua teoria neoinstitucionalista do processo), a qual
propõe a transposição do racionalismo crítico para o direito processual democrático.
Com o fim de abordar organizada e evolutivamente o tema, no primeiro
capítulo, serão analisadas algumas das teorias que visam à análise da relação entre
significado e significante (de Peirce e Saussure), a busca pelo real, aquele que
escapa à realidade (segundo Lacan) e, ainda, o conhecimento construído através da
tópica e sistemas axiomático-dedutivo, axiológico-teleológico e de princípios,
1
―A teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Pereira Leal esclarece o devido processo como instituinte
do direito democrático, viabilizando a instauração de um espaço processual de discursividade crítica
para investigação e construção do significado da lei democrática pelos destinatários da decisão.‖
(ALMEIDA, 2012, p. 145).
9
clarificando as diversas concepções da interpretação da lei e da construção do
conhecimento.
A problematização proposta confronta a ideia de objetividade e subjetividade,
demonstrando as influências do processo histórico, cultural e a abordagem
contextual na semiótica tradicional. Demonstrar-se-á que os efeitos dessa
problematização surgem especialmente no espaço processualizado, já que este é o
lugar onde se torna possível a intervenção e crítica à linguagem natural (subjetiva).
Com a contribuição fazzalariana do procedimento em contraditório e o
aperfeiçoamento da teoria do processo a partir das reflexões pragmáticas
habermasianas e, sobretudo, através das conclusões problematizantes popperianas
em sua lógica discursiva, a qual nos leva a crer que são indispensáveis funções
mais elevadas da linguagem descritiva, crítica ou argumentativa para um discurso
processual legítimo e constitucionalizado (ALMEIDA, 2012), o segundo capítulo
tratará de abordar comparativamente tais evoluções teóricas.
Pretende-se ratificar que é, portanto, perfeitamente plausível o pensamento
de Karl Popper de que o conhecimento pode ser considerado objetivo quando ganha
forma externa a nós mesmos, permitindo o debate.
Os esforços aqui despendidos pretendem aprimorar a apreciação crítica em
um discurso processual problematizado, além de deixar à mostra que esfinges como
o uso deliberado de palavras cujo significado advém do dito ―senso comum‖ geram
consequências devastadoras, o que se deve recalcitrantemente dirimir.
A imersão na teoria neoinstitucionalista proporcionará a apresentação da
aspirada diminuição do mando do referente na construção do significado da lei no
discurso jurídico (LEAL, R. 2002).
A perspectiva deste trabalho é sair da esfera comportamental, questionando e
colocando à prova os fundamentos ideológicos, culturais ou estratégicos utilizados
pelos
intérpretes,
quando
a
sociedade
democrática
(diversificada
e
não
uniformizadora) se mostrará.
O contexto atual demonstra claramente a ilegitimidade das decisões
motivadas em interpretações imediatistas, acobertadas por preceitos morais
(universalizados) e, portanto, subjetivos. No terceiro capítulo, a partir da teoria
desenvolvida por Agamben, apresenta-se um cenário em que o ―estado de exceção‖
é adotado por uma escolha estratégica, que, se transposto para a esfera processual,
acaba por justificar provimentos que fogem à racionalidade.
10
O que se pretende, portanto, é o retorno ao Estado Democrático de Direito,
com a reconstrução de conceitos fundamentais a uma sociedade democrática, tendo
o
processo
como
plano
instituinte
do
direito
democrático
pelo
discurso
processualizado e testificado, no qual coloca-se à prova a linguagem naturalmente
utlizada.
11
1 ALGUMAS CONCEPÇÕES SOBRE A LINGUAGEM E O CONHECIMENTO NA
CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO DA LEI
1.1 Linguagem, cognição e realidade e a construção do significado nas visões
de Peirce, Saussure e Lacan
A ideia de processo como pacto sígnico na democracia, desenvolvida pela
teoria neoinstitucionalista, que será objeto de detalhado estudo nos próximos
capítulos, pode ser compreendida como uma evolução na formulação de conceitos
anteriormente suscitados por outros autores, os quais se propuseram a discutir o
papel da linguagem e o momento (ou espaço) de construção do significado.
Assim, antes de tratar propriamente da construção do significado da lei, sua
interpretação e, mesmo, da busca pelo conhecimento objetivo no espaço
processualizado como fora proposto; o que se sugere é esclarecer como são
depreendidos os sentidos através de uma investigação científica.
Com a finalidade de demonstrar a construção do significado em espaços
desprocessualizados, Almeida explica o modelo triádico desenvolvido por Peirce
sobre o pacto de sentido:
Seu procedimento consistia em afastar, na formação do significado, três
métodos: o método a priori, que leva a conclusões fáceis porque acolhe
qualquer crença a que nos sintamos inclinados; o método da autoridade,
que suprime por coação ou terrorismo moral o pensamento ameaçador; e o
método da tenacidade, que escolhida uma crença, simplesmente se fecha a
qualquer outra. (2012, p.146).
Peirce acreditava que havia um método de clarificar as ideias e realmente
conhecer o pensamento comum, levando a uma só conclusão. Segundo ele, há
coisas reais que afetam todos os homens, que independem de suas opiniões e, por
tal motivo, pode levá-los, através de uma linguagem racional, a uma ―conclusão
única e Verdadeira‖ (PEIRCE apud ALMEIDA, 2012, p. 146).
Por considerar que os métodos dedutivo e indutivo não seriam capazes de
oferecer uma compreensão satisfatória, já que através da dedução não se obtém
uma conclusão criativa e o indutivo, por sua vez, não concederia uma resposta
segura; a abdução – critério eleito como adequado pelo autor para a formação do
12
significado – seria a possibilidade de se obter um pensamento sem apelar para a
individualidade do intérprete, a forma de investigar a crença. Ocorre que o caminho
percorrido para se obter tal resultado não é, sobremaneira, simples.
O método sígnico por ele proposto conta com três elementos necessários, o
signo, o objeto e o interpretante. Vale frisar, como Eco, in Almeida, bem explica, que:
o interpretante não é o intérprete para Peirce. Ele seria a cadeia de signos ou
significantes, representada pelo que o autor chamou de semiose ilimitada, já que,
para estabelecer o significado de um significante, é necessário nomear o primeiro
significado por meio de outro significante, que será interpretado por outro e assim
sucessivamente, sendo esse o papel do signo interpretante (ECO apud ALMEIDA,
2012, p. 149).
Com Almeida percebeu, o problema é que esses signos ou significados não
assumem autonomia em relação a eles mesmos, nem ao objeto que trata de conferir
significado, pois se busca, em última análise, o significante-significado-referente na
realidade cultural dada, o que, por si só, impede o afastamento da subjetividade
(ALMEIDA, 2012, p.148-149).
O raciocínio por abdução sugere que algo ―pode ser‖ e, portanto, no processo
de investigação a hipótese sempre deverá ser repetidamente comprovada,
proporcionando apenas um pragmatismo exacerbado, senão vejamos:
Uma abdução é um método de elaborar Previsão geral sem qualquer
garantia positiva de que ela se concretizará, seja no caso especial, seja nos
casos comuns; sua justificação está em ela ser a única esperança possível
de regular racionalmente nossa futura conduta e em que a Indução, com
base na experiência passada, nos fornece forte estímulo para esperar que
venha a ter êxito no futuro. (PEIRCE apud ALMEIDA, 2012, p. 147).
Mesmo com a tentativa de negar o apelo à individualidade como forma de
proporcionar um conhecimento válido, Peirce não consegue afastar em seu método
a experiência inquestionável, pressuposta, tida como verdade e, portanto, isenta de
objetividade.
No método da abdução, o signo deve ser conhecido para se referir ao objeto
e, sem dúvida, para que possa se reproduzir. O interpretante, portanto, estará
dotado de influências de opiniões, de uma unidade cultural, o que acarretaria na
construção do significado em verdades consensuais, universalizadas, neste espaço
desprocessualizado.
13
Um passo à frente do pensamento de Peirce, Schaff (1968, p. 320-321)
procura acrescentar a realidade à investigação da linguagem formulando, a partir de
uma visão mais concreta, a seguinte pergunta: seria possível tratarmos
autonomamente a linguagem em abstração dos fatos extraluinguísticos?
Com a finalidade de estabelecer de forma clara e menos filosófica a relação
entre linguagem-pensamento e realidade, buscando responder qual seria a relação
existente entre nossa cognição linguística e o objeto de tal cognição, analisa o que
ocuparia o lugar antes do referente, defendendo a tese de que:
[...] a linguagem, inseparavelmente ligada ao pensar e desempenhando
juntamente com o pensar uma única e mesma função em que se baseia a
natureza específica da cognição humana - é formada no processo de
experiência humana e é em si fato empírico e não um produto de
convenção arbitrária. Isto significa que a linguagem-pensamento dá um
reflexo específico da realidade, que seu desenvolvimento é causado pelo
desenvolvimento da própria realidade, e pelo desenvolvimento da
compreensão humana desta realidade, quer na teoria, quer na
prática.(SCHAFF, 1968, p. 324).
Após seus estudos, chega a concluir que somente vislumbraria a
possibilidade de esclarecer tal questão a partir da análise da teoria da reflexão,
observado o sentido especifico que a filosofia marxista atribuiu ao termo, rejeitando
as soluções de intepretação da linguagem como produto puramente convencional e
a daquela que depreende da estrutura da linguagem uma imagem da realidade,
(SCHAFF, 1968, p. 323).
Para Rosemiro Leal o referente representa a realidade fabricada, como um
ordenador ideológico da prática e estereótipos sociais, o que corrobora a
impossibilidade de tratar a linguagem autonomamente (LEAL, R., apud ALMEIDA,
2012, p.152).
Ainda, Buchholz, ao analisar sinteticamente o pensamento de Wittgenstein
acerca da realidade, assevera:
Wittgenstein parte da idéia de que proposições são figurações da realidade,
cuja própria relação afiguradora não pode novamente ser exprimida em
termos linguísticos. Além disso, ele deseja analisar logicamente as
proposições da linguagem de uso cotidiana para evitar suas imprecisões e
sua polissemia. Mais tarde ele simpatiza primeiro com a idéia de que o
significado das palavras depende das suas regras de emprego de forma
parecida com as possibilidades de movimento de uma peça de xadrez. Isso,
por sua vez, leva Wittgenstein à concepção de que o significado linguístico
é determinado pelos vínculos de ação nos quais os sinais linguísticos são
empregados. Esses vínculos de ação, Wittgenstein os denomina jogos de
linguagem. (2008, p. 83).
14
O jogo de linguagem, por ele preconizado, não vai além da tradução da ideia
de ―contar acontecimentos passados‖ e, por tal motivo, os sinais somente têm um
significado quando são empregados. Isso quer dizer que os sinais linguísticos
retratam situações concretas, evidenciadas no contexto histórico-cultural, através do
qual se relacionam umas com as outras as diversas ações de uma pessoa
(BUCHHOLZ, 2008, p. 78-79).
Ele entende que, se quisermos determinar significados, deveremos descrever
vínculos de vida, sendo a linguagem cotidiana suficiente para determinar os
significados das palavras. Mas bem se sabe que esta postura não ampliará o nosso
saber, estando fadado ao culto da predestinação.
Segundo Almeida (2012, p.152) e como pelo autor enunciado, Schaff, tem
traços ideológicos embebidos na teoria marxista e hegeliana e entendem que o
significado e o sentido das palavras são buscados no referente, que, por sua vez, é
resultado da história, o que pode ser corroborado pelas palavras de Popper:
O problema das definições e da ―significação das palavras‖ não se relaciona
diretamente com o historicismo. Tem sido, porém, inexaurível fonte de
confusão e daquela espécie particular de verborreia que, quando combina
ao historicismo de Hegel, dá origem à venenosa enfermidade intelectual de
nossos próprios dias a que chamo filosofia oracular. E é a mais importante
fonte da ainda lastimavelmente predominante influência intelectual de
Aristóteles, de todo aquele escolasticismo verbal e vazio que invade não só
a Idade Média como a nossa própria filosofia contemporânea [...].
(POPPER, 1998b, p. 15).
Segundo Popper, a filosofia oracular e as profecias históricas, tais como as
denomina, estão fora do alcance do âmbito do método científico,demonstrando a
tendência do historicismo de sustentar a impotência da razão na vida social,
significando uma ―submissão passiva às forças pessoais ou anônimas que
governam a sociedade‖ (POPPER, 1998a, p. 19).
O autor não identifica o historicismo como o problema da significação, mas
considera exagerado o pensamento hegeliano quanto à limitação de aquisição do
conhecimento somente a partir da identidade entre a mente e o mundo.
Diferentemente, Sausurre deixa de lado o referente na construção do
significado, acreditando estar a significação no interior da própria linguagem. O valor
linguístico estaria no próprio sistema de linguístico (SAUSURRE apud ALMEIDA,
2012, p.155).
Pode-se dizer que:
15
[...] ele adotou o método estruturalista e a noção de sistema para os estudos
linguísticos, afirmando que a linguagem reconstrói suas próprias regras de
funcionamento, seus procedimentos e suas redes de dependência de
maneira interna, ou seja, no interior do próprio sistema linguístico.
(ALMEIDA, 2012, p. 155).
Saussure insiste que o signo não é uma relação simples entre significante e
significado e que suas diferenças não existem antes, mas somente depois de seu
emprego, reunindo de modo positivo as diferenças, compreendidas como valores.
Esses valores, por sua vez, só existem baseados na consciência de sujeitos
falantes, pois apenas percebem as diferenças, ou seja, só há consciência dos
valores, introduzindo a noção de um sistema dialético (no interior do próprio sistema
linguístico) (ALMEIDA, 2012, p.156-157).
Nöth conclui:
Por isso o valor do signo linguístico na teoria de Saussure não se encontra
ligado aos objetos que designa, mas é construído apenas dentro do espaço
das relações com os outros signos com os quais forma o sistema,
buscando-se o sentido no contexto do próprio texto e não mais subjetiva ou
historicamente fora dele. (NÖTH apud ALMEIDA, 2012, p. 155).
O sistema proposto por Saussure tem como base a percepção de sujeitos,
que se forma a cada momento do discurso e, consequentemente, não pode ser
homogêneo ou inerte, nem considerado pronto e acabado, mas um sistema em
constante movimento e transformações. Sua teoria se fundamenta no caráter
universal da língua (signo linguístico) em oposição à utilização individual da fala,
deixando a fala fora da ciência (ALMEIDA, 2012, p.155).
Longe de ser a intenção do autor a defesa de uma abstração, fundamenta as
unidades do sistema linguístico na consciência dos sujeitos, ou seja, isto é o que
daria permissão a falar de signos como um fato da realidade.
No espaço saussureano de construção do significado, a linguagem constrói a
realidade, sendo que o sentido acontece na relação existente entre os enunciados.
Segundo o autor, ―o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um
conceito e uma imagem acústica2‖ (SAUSSURE, 1988, p. 80), o que o faz concluir
que a ideia de ação vocal traduz na realização da imagem interior no discurso.
Para Saussure, ―todo meio de expressão aceito numa sociedade repousa em
princípio num hábito coletivo ou, o que vem dar na mesma, na convenção‖
2
O têrmo de imagem acústica parecerá, talvez, muito estreito, pois ao lado da representação dos
sons de uma palavra, existe também a de sua articulação, a imagem muscular do ato fonatório.
(Saussure, 1988, p. 80).
16
(SAUSSURE, 1988, p. 82), utilizando-se da palavra símbolo como o signo
linguístico, um vínculo existente entre significante e significado.
Rosemiro Leal reproduz, já no espaço processualizado, a hipótese levantada
por Saussure de não utilização do referente na formação do significado da lei
democrática. Reconstrói o enunciado da teoria do autor, esclarecendo que, para a
adequação ao campo jurídico, substituiria o significante como imagem acústica pelo
texto da lei, e o signo seria o processo como paradigma linguístico (LEAL, R. apud
ALMEIDA, 2012, 156-157).
Apressa-se a afirmar que a teoria neoinstitucionalista não pretende abolir a
linguagem ou negar seu papel interpretativo, mas levar até ela a crítica, reforçando
sua necessária refutabilidade. Isso porque haveria um hiato entre a identificação do
significado pela linguagem do sujeito (Eu) e pela do Outro,3 que vai além da
alteridade e poderia ser entendida em processos singulares. Por conseguinte, se
revelaria um espaço não alcançado pelas teorias sígnicas apresentadas.
Para Alain Badiou (1995, p. 13):
Um não é, não há Todo-Outro; o que há é a alteridade infinita, forma geral
do ser múltiplo. [...] E se alteridade é o que há, o Mesmo é o que advém,
aquilo que constrói – um sujeito – ao serem percorridas as três dimensões
4
de uma processo de verdade: acontecimento, fidelidade e verdade
propriamente dita.
O
autor
deflagra
a
impossibilidade
de
se
estabelecer
categorias
abstratamente universais, já que tal unanimidade negaria a crítica dos processos
singulares. Badiou, na contracorrente do consenso, delineia conceitos de ―verdade‖,
―ética‖ tendo como paradigma Lacan, que trouxe contribuições aos processos de
entendimento do real.
Esse vazio ou resto não simbolizável ensejaria a motivação de Lacan para
explicar o real. Partindo do referencial do signo como estrutura psíquica, levantado
3
4
Quando Lacan examina a alteridade, como aquilo estranho para um sujeito ainda não especificado,
diz: ―Essa alteridade percorre a inauspiciosa escalada que vai desde o inconsciente (o Outro como
linguagem) e o eu (o outro imaginário [eu ideal] e o Outro como desejo [ideal de eu]) ao supereu
freudiano (o Outro como gozo).‖ (FINK,1995, p. 9).
―O acontecimento é aqui uma noção-chave: definido como ―suplemento‖ causal e imprevisível da
situação, dela destacado, é precisamente o que faz advir outra coisa que não a situação e as
opiniões instituídas. Isto porque seu caráter ontológico fundamental é a capacidade de demarcar o
vazio da situação anterior, aquilo ―para que‖ ele é acontecimento. Nomear o vazio, esse núcleo não
simbolizado em torno do qual se organiza a situação, é também nomear o não-sabido. E as
verdades, perfurando os saberes estabelecidos, heterogêneos a elas, abrem campo para a
produção de novos saberes; daí decorre o poder transformador do acontecimento.‖ (BADIOU, 1995,
p. 13).
17
por Sausaure (1988), Lacan apresenta o real como novo elemento para desvendar a
construção do significado.
Lacan (1979, p.14-16) toma outra direção para explicar a relação entre
significante e significado. Mostra que uma praxis pode ser compreendida pela ação
realizada pelo homem que permite tratar o real pelo simbólico. Ele constata que a
busca do signo em uma base pressuposta na formação do significado, seja de
identidade cultural ou histórica, que faria parte de uma esteira simbólica (cadeia
preexistente), revelaria uma experiência quase mística.
Sustenta, portanto, em sua teoria que no discurso psicanalítico o homem tem
a liberdade de fazer rearranjos com os significantes, construindo novo significado a
partir da conexão entre o simbólico e o real (ALMEIDA, 2012, p. 159).
Fink explora a concepção de signifcado para Lacan, dizendo que para o
psicanalista ―compreender significa localizar ou encaixar uma configuração de
significantes dentro de outra‖. E, ainda, complementa a ideia fazendo a afirmativa:
―na maioria dos casos, compreender um processo não tão consciente quanto se
poderia desejar, e que não exige nenhuma ação por parte do sujeito: as coisas se
encaixam dentro da teia de conexões variadas de pensamentos já ―assimilados‖ ‖
(FINK, 1995, p. 95).
Essa incursão do real no simbólico possibilitaria a produção de um
significante, de algo novo no real. Ele explica por meio de três registros a estrutura
psíquica humana: o real, o imaginário e o simbólico. O real situa-se no que ainda
não foi simbolizado, onde existe sempre um resto que persiste lado a lado com o
simbólico (FINK, 1995, p. 43-47). O autor ilustra a ideia lacaniana com a seguinte
comparação:
O real é, por exemplo, o corpo de uma criança ―antes‖ do domínio da ordem
simbólica, antes de controlar os esfíncteres e aprender os costumes do
mundo. No curso da socialização, o corpo é progressivamente escrito ou
sobrescrito com significantes; o prazer está localizado em determindas
zonas, enquanto outras são neutralizadas pela palavra e persuadidas a se
conformarem com as normas sociais e comportamentais.(FINK, 1995, p. 43)
Lacan define o real de diferentes modos, mas em todos eles o que importa é
seu caráter evasivo ao sentido, seria o puro não-sentido, ao passo que é
precisamente o sentido que caracteriza o imaginário, e o duplo sentido o que
caracteriza o simbólico. O real seria o que é impensável, é o impossível de ser
simbolizado; o real é, por excelência, o trauma, o que não é passível de ser
assimilado pelo aparelho psíquico, o que não tem qualquer representação possível.
18
Por isso, o real é também aquilo que retorna ao mesmo lugar, já que o simbólico não
consegue deslocá-lo. A realidade, por sua vez, precede a linguagem, ainda situada
no imaginário (não verbal) (FINK, 1995, p.44-46).
O imaginário já está associado à construção individual da subjetividade, uma
espécie de reconhecimento ilusório de si. E o simbólico é coletivo e cultural. O
simbólico, quando entra em encontro com o real, é deslocado até assumir formato
do que conhecemos por realidade, tendo o valor socializado (linguagem) como
referência do comportamento coletivo, trazendo a diferença do imaginário do campo
do analisável (LACAN, 2005a, p. 19-21). E diz: ―não é porque o analisável encontra
o imaginário que o imaginário se confunde com o analisável, ou analisado‖ (LACAN,
2005a, p. 21)
O real lacaniano consiste em um espaço onde se torna possível problematizar
a linguagem, no qual a relação entre significado e significante acontece percebendo
a presença do simbólico. Lacan parafraseia Saussure quando afirma que o sujeito
―alucina seu mundo‖ diferenciando o imaginário do real, concluindo que ―as
satisfações ilusórias do sujeito são evidentemente de ordem diversa das satisfações
que encontram o seu objeto no real puro e simples‖ (LACAN, 2005a, p.16-17).
Pode-se dizer que tais desdobramentos se tornaram relevantes contribuições
para a revelação da teoria neoinstitucionalista como possibilidade da autonomia do
significado em relação à cadeia preexistente de significantes (afastando a influência
da linguagem natural, a conexão entre o simbólico e o real). O significante como o
texto da lei, precedido por uma teoria, pode, assim, ser testificado, pela instauração
do devido processo, pela relação entre processo e a metalinguagem.
O pensamento de que há um espaço para construção do significado sem a
interferência do simbólico permite assemelhá-lo à teoria neoinstitucionalista, embora
nesta não seja necessária a ligação entre o imaginário, o simbólico e o real; já que
se parte da teorização do texto da lei, que, por seu turno, é testificada pelo devido
processo.
Embora
tenha
sido
um
ganho
ao
desenvolvimento
da
teoria
neoinstitucionalista da decidibilidade, o objetivo de Lacan de propor o inconsciente
como cadeia de significantes não permite fazer uma transposição de suas
conclusões de forma imediata e integral para a esfera jurídica processual. Apenas
permite concluir que o conteúdo (significado) das palavras não pode ser desprezado,
19
mas, por outro lado, não é suficiente para irromper todos os seus significados e
determinar o seu alcance.
Tem-se, portanto, que a linguagem como elemento de significação e
identificação do referente no espaço desprocessualizado não se torna capaz de
alcançar todos democraticamente (como plano instituinte da democracia), pois é
insuficiente a busca simplista pelo sentido das palavras e o consequente significado
das leis utilizando-se das teorias apresentadas, já que, nestes casos, ainda ocorreria
um mando de subjetividade daquele que as interpretasse.
A construção do significado das palavras exige que se promova uma
discussão em um espaço aberto à crítica e sua teorização e testificação em um
campo investigativo do conhecimento objetivo, como se verá a seguir.
1.2 Conhecimento objetivo versus subjetivo e o problema do senso comum
para Karl Popper
A única forma possível de entendimento entre os homens é a aplicação de
uma palavra por meio de outra. Essa assertiva retrata o que Aristóteles chamava de
definição, interpretação ou significação. E, com o fim de estabelecer o significado
dos termos, através do método essencialista de definições, sob certo ângulo:
Aristóteles sustentava, com Platão, que possuímos uma faculdade, a
intuição intelectual, pela qual podemos visualizar essências e descobrir qual
é a definição correta; [...] Insisto, porém, de outra parte, que tais
experiências, por importantes que possam ser para os nossos
empreendimentos científicos, não podem servir para estabelecer a verdade
de qualquer ideia ou teoria, por maior que seja a força com que possamos
sentir intuitivamente que ela deve ser verdadeira [...]. Tais intuições nem
mesmo podem servir de argumento, embora nos possa encorajar a buscar
argumentos. De facto, outra pessoa pode ter uma intuição igualmente forte
de que a mesma teoria é falsa. (POPPER, 1998b, p. 22).
Apesar de ter se tornado ponto de partida para o desenvolvimento de outros
métodos, a percepção do homem foi se aperfeiçoando e a concepção essencialista
aristotélica tornou-se insustentável, levando a uma vazia controvérsia sobre
palavras.
Pode-se atribuir a influência do método essencialista ao porquê de nossas
percepções sobre o conhecimento ainda estar arraigados à Idade Média. Segundo
20
Crossman, dentre os filósofos modernos, Wittgenstein, alimentado pelo preconceito
de que a linguagem pode ser mais precisa pelo uso de definições, sustentava a ideia
de que:
[...] se não conhecermos com precisão os significados das palavras que
usamos, nada poderemos discutir com proveito. A maior parte dos debates
fúteis com que gastamos nosso tempo se deve principalmente ao facto de
que cada um tem suas próprias e vagas significações das palavras que
usamos e admite que os opoentes as usem com os mesmos sentidos. Se
começarmos por definir nossos termos, teremos discussões muitíssimo
mais proveitosas. (CROSSMAN apud POPPER, 1998b, p. 23).
A partir do aristotelismo (linguagem monádica) e concepções filosóficas
correlatas, fomos induzidos a acreditar que era importante alcançar um
conhecimento preciso da significação de termos por nós utilizados. Essa
concentração do problema na significação, segundo Popper, não deixa apenas de
estabelecer a precisão, como é ela a fonte principal de vaguidão, confusão e
ambiguidade (1998b, p.26-27).
Popper expõe que, quando se trata de ciência, devemos ter o cuidado de
manter as afirmativas que fazemos livres da significação de nossos termos. Mesmo
quando estes são indefinidos, ―nunca tentamos derivar qualquer informação da
definição, ou basear nela qualquer argumento‖ (1998b, p.26).
Isso acontece porque temos a consciência que esses termos vagos, quando
usados, podem se aproximar da precisão, sem, contudo, sobrecarregar seu
significado antes da aplicação prática. Se nossa preocupação se concentrasse na
importância da significação dos termos, sua vaguidão e ambiguidade, certamente,
nos levariam a um verbalismo ou escolasticismo.
Para Popper (1999), a teoria do conhecimento humano tem se mostrado
demasiadamente subjetivista, como um tipo de crença humana, como mero
reconhecimento do senso comum. Por discordar desta tradição, o autor tenta
demonstrar sua inadequação e consequente necessidade de substituição pelo
conhecimento objetivo.
A conceituação filosófica dos termos objetividade e subjetividade foi
preconizada especialmente por Kant. A palavra "objetivo" passa a ser utilizada para
indicar que o conhecimento científico deve ser justificável, independentemente da
crença pessoal daquele que o interpreta. Por conseguinte, tal justificação poderá ser
considerada objetiva se for, em princípio, por todos compreendida. Segundo Kant,
21
se algo for tido como válido para todos aqueles que estejam na posse da razão,
seus fundamentos serão suficientes e objetivos (KANT, 1987).
Já a palavra "subjetivo", segundo o autor, refere-se aos sentimentos pessoais
de convicção, crenças ligadas a motivos diversos (religião, cultura, intuições etc.).
Kant acrescenta que razões objetivas podem atuar como causas subjetivas de
juízo.à medida que refletimos acerca dessas razões e, consequentemente, deixamonos convencer de seu caráter racionalmente necessário (KANT, 1987).
Segundo Kant, não podemos conhecer as coisas em si, mas sim aquilo que é
permitido pela mente humana, concedendo ―racionalidade‖ ao conhecimento e
constituindo conceitos universais. Afirma, ainda, ser notória a existência de
conhecimentos universais e necessários e que, quando encontramos tais
características, temos a certeza de dispormos de um conhecimento a priori.
Na obra ―Crítica da Razão Prática‖, Kant demonstra que a razão pura é
prática por si própria, fornecendo as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas,
por sua vez, são princípios práticos objetivos, regras válidas para todo ser racional.
Distinguem-se, portanto, das máximas, que são princípios práticos subjetivos, regras
que o sujeito considera como válidas apenas para sua própria vontade.
O que se pode confirmar por suas palavras:
Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento
prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas,
mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão
meras máximas. (KANT, 199-, p. 31).
Para Kant, se os desejos, impulsos, impressões ou qualquer objeto de
vontade forem condições para o princípio da regra prática, então o princípio será
empírico e não lei prática, não haverá incondicionalidade do agir, e assim a
autonomia não será garantida.
A lei universal deve independer da experiência e não ser determinada por
causas empíricas. "Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem
exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si
mesmo, ou seja, à felicidade própria" (KANT, 199-, p. 33).
Para Kant, o princípio do amor por si ou o da felicidade jamais poderiam servir
de fundamento para uma lei prática, tendo em vista que sua validade é apenas
subjetiva. Essa afirmação é feita com base na individualidade de cada um e sua
respectiva visão do que seria felicidade ou sentimento em relação a algo, já que em
22
todos esses casos, a formulação se dá subjetivamente. Segundo ele, se
tratássemos esse princípio como lei natural, este seria contingente e não garantiria a
autonomia.
Para Kant, somente a razão, determinando por si mesma a vontade, é uma
verdadeira faculdade superior de desejar. A vontade, para ser moral, não deve
determinar-se pelo objeto, deve abstrair a matéria da lei, conservando-lhe a forma e
concedendo-lhe universalidade.
Kant conclui que um ser racional não deve considerar suas máximas
(princípios subjetivos práticos) como leis práticas universais, pode apenas tê-las
como princípios que determinam o fundamento da vontade, não conforme a matéria,
mas pela forma. Não seria, pois, a razão que determina a moral, ou o que é
considerado bom ou mau, mas a necessidade coletiva que determina a moral e a
racionalização do que é bom ou mau. Segundo ele, as necessidades práticas para a
existência da vida em sociedade criam os chamados imperativos, prescrições,
deveres que determinam a ação a priori, antes da experiência.
Popper entende que, mesmo partindo de conceitos ―objetivos‖, ou
apriorísticos, como defendido por Kant, não haverá uma dessubjetivação eficaz. Não
basta que sejam previamente consideradas ―racionais‖, as teorias científicas devem
ser testificadas, pois não são inteiramente justificáveis.
Popper reconhece que Kant foi:
[...]talvez o primeiro a afirmar que a objetividade dos enunciados científicos
está estreitamente relacionada com a elaboração de teorias - com o uso de
hipóteses e de enunciados universais [...]. Só quando certos
acontecimentos se repetem, segundo regras ou regularidades, tal como é o
caso dos experimentos passíveis de reprodução, podem as observações
ser submetidas à prova - em princípio - por qualquer pessoa. (POPPER,
1989, p. 46-49).
As teorias devem, portanto, independentemente de sua ―repetição‖, ser
submetidas a testes de refutabilidade, com vistas a uma aproximação da verdade
racional. Como consequência, conclui que a objetividade dos enunciados científicos
deverá ser manifesta, o que se vererá no decorrer do trabalho.
Nas palavras de Popper:
Todos os enunciados teóricos, assim como todos os enunciados científicos
são objetivos, não reclamam nem são suscetíveis de análise lógica porque
todo enunciado, enquanto descoberta, encerra necessariamente um
elemento irracional ou uma intuição criadora, não havendo possibilidade de
um método lógico de conceber idéias novas. (POPPER, 1989, p. 106).
23
Pode parecer paradoxal, em uma leitura precoce, a afirmação de Popper
quando conceitua o conhecimento subjetivo como: ―O conhecimento possuído por
algum sujeito conhecedor chamarei de ‗conhecimento subjetivo‘, apesar do fato de
que simplesmente não existe conhecimento subjetivo puro, ou genuíno, ou não
adulterado‖ (1975, p. 77). Todavia ele admite a existência de interferências
subjetivas na construção do conhecimento e, por este motivo, apresenta a proposta
de diminuição do comando do referente subjetivo na construção do conhecimento
cientifico através da refutação de teorias.
O verdadeiro conhecimento ou conhecimento objetivo somente pode
acontecer fora da mente dos sujeitos; o sentido objetivo, que consiste no conteúdo
lógico de nossas conjecturas, suposições, não deve sofrer influências nem do
mundo físico nem o de nossas percepções intuitivas subjetivas.
Assim como já levantado por Kant, tal subjetividade eivaria a base de
construção do conhecimento objetivo, que por sua vez deve ser independente do
sujeito conhecedor.
Segundo Chauí, a racionalidade está diretamente associada ao conhecimento
objetivo da realidade, como mera descrição, diferentemente da ideia de Popper
(CHAUÍ, 1996). Por isso, torna-se necessário reduzir o espaço para interferências
oriundas de sentimentos, percepções, paixões, crenças e, se assim for, poderá se
falar da relação entre racionalidade e verdade, objetividade e necessidade, não
sendo considerado racional aquilo que é meramente subjetivo, assim toda forma de
pensamento que fuja deste plano será considerado falso e irracional.
Para Popper (1980), a capacidade argumentativa enquanto razão na
discursividade é que possibilita a multiplicidade de interpretações e propicia, por sua
vez, uma linguagem autônoma perante a lei convencionada, representando o
rompimento com as leis pressupostas ou naturais.
Necessário, portanto, o rompimento com o senso comum e com a ideia de
universalidade diretamente ligada à racionalidade como embasadores de um
conhecimento válido.
Popper identifica uma série de problemas nas concepções tradicionais
advindas do conhecimento vulgar, como é o caso da teoria de senso comum da
indução, já que haveria, aprioristicamente, uma suposição de que o futuro seria
como o passado e, ainda, na existência de inferências indutivas a serem extraídas
24
de normas, estas seriam feitas destituídas de crítica. Isso porque as experiências
advindas das observações feitas no passado nos levam a crer que se repetirão,
sem, contudo, buscarmos sua gênese (POPPER, 1999, p. 14-15).
Hume, mesmo admitindo que todas as ideias derivam da experiência, negou
uma solução positiva ao problema da indução. Ele argumentou que todo o
conhecimento que se refere à matéria de fato emana das impressões dos sentidos,
das intuições sensíveis, mas estas somente nos dão ideias particulares e
contingentes.
Segundo ele, não há justificativa para inferir dos enunciados particulares
contingentes (que descrevem o que foi observado) enunciados universais
necessários (as leis, os princípios das teorias científicas). "Mesmo após observar
freqüentemente a constante conjunção de objetos, não temos razão para tirar
qualquer inferência concernente a qualquer outro objeto que não aqueles com que
tivemos experiência" (HUME apud POPPER, 1989, p. 421).
Hume foi a inspiração de Kant, que acabou por antecipar aquilo em que no
século XX tantos filósofos da ciência insistiram: qualquer experimento é antecedido
por pressupostos; o cientista está sempre armado com teorias. "Todo o nosso
conhecimento é impregnado de teoria, inclusive nossas observações" (POPPER,
1975, p. 75). Demonstrou, ainda, que a experiência nos dá acesso apenas a
conhecimentos particulares e contingentes. Ela "nos ensina que algo é constituído
deste ou daquele modo, mas não que não possa ser diferente" (KANT, 1987, p. 31).
A fim de abordar o problema da indução, Popper estabeleceu como premissa
a tradução das crenças, incluídos termos subjetivos e psicológicos, em termos
objetivos, explicando como fazê-la:
Assim, em vez de falar de uma ―crença‖, falo, digamos, de uma ―asserção‖
ou de uma ―teoria explanativa‖; em vez de uma ―impressão‖ falo de uma
asserção de observação‖ ou de uma ―asserção de teste‖; e em vez de
―justificativa de uma crença‖ falo de ―justificativa da alegação de que uma
teoria é verdadeira‖, etc. (POPPER, 1999, p. 17).
Embora resolva o problema formal da objetivação das teorias, a questão
essencial do problema lógico da indução é a validez de leis universais. A resposta
que Popper formula é negatória de validade, já que as leis ou teorias devem ser
encaradas como hipotéticas ou conjecturais.
A base deste raciocínio é basicamente a busca da verdade ou falsidade de
teorias como forma de construir o conhecimento, como uma lógica dedutiva, onde
25
―há uma assimetria entre verificação e falsificação por experiência‖ (POPPER, 1999,
p. 23).
A refutação de teorias falsas e a consequente formulação de uma nova teoria
levará a uma aproximação da melhor teoria, a sucessora ―melhor‖, a que mais se
aproxima da satisfação daquelas exigências (POPPER, 1999, p. 27).
Em continuidade à evolução da solução do problema proposto em relação ao
conhecimento objetivo, questiona-se acerca dos critérios de preferência de uma
teoria, ou seja, o que nos faz preterir uma em função de outra? Haveria uma
preferência teórica ou pragmática?
Para responder a essas perguntas, ressalte-se que haveria uma concorrência
de teorias. O teórico teria seus meios de escolha da melhor teoria e o pragmático
outros para averiguar aquela que teria sido melhor testada, o que quer dizer que
nem em uma hipótese nem em outra teremos uma ―confiança absoluta‖, sempre nos
levando a uma discussão crítica que, se bem conduzida, nada mais é que racional.
Trata-se de uma concorrência de conteúdo teórico, colocando-se à prova a
linguagem subjetiva. O senso comum5 deve ser substituído pela correção, ou
transcendido e substituído por uma teoria crítica (POPPER, 1999, p. 41-107).
Popper compara o processo de objetivação do conhecimento com a iniciativa
de Descartes de sugerir o método da dúvida, para que o ponto de partida da
inverstigação do conhecimento seja mais seguro (o que seria absolutamente
indubitável) esse parta da própria existência (1999, p. 44).
Para Descartes, assim como para Hume, o ponto de partida se dará pelas
experiências subjetivas, enquanto Popper discorda que haja algo direto e imediado
em nossa experiência. Segundo ele, há um complicado processo de decifração, o
que não garante seu fucionamento infalível.
Portanto, como ponto de partida, a busca da certeza deve ser abandonada,
mas o conhecimento deve estar em constante progresso. ―A meta da ciência é o
aumento da verossimilitude‖ (POPPER, 1999, p.75).
Segundo Popper:
5
Sobre senso comum, Boaventura de Souza Santos afirma: ―As leis da ciência moderna são um tipo
de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual
o fim das coisas. É por esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso
comum. É que enquanto no senso comum, e portanto no conhecimento prático em que ele se
traduz, a causa e a intenção convivem sem problemas, na ciência a determinação da causa formal
obtém-se ignorando a intenção‖ (SANTOS, 2001, p. 64).
26
Os princípios do progresso científico sao muito simples. Requerem que
abandonemos a idéia antiga de que podemos atingir a certeza (ou mesmo
um alto grau de ―probabilidade‖ no sentido do cálculo de probabilidade) com
as proposições ou teorias da ciência (idéia que deriva da associação da
ciência com a magia e do cientista com o mago): o alvo do cientista não é
descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores
(ou inventar holofotes cada vez mais potentes), capazes de ser submetidas
a testes cada vez mais severos (e conduzindo-nos com isto a sempre novas
experiências, que iluminam para nós). Mas isto significa que essas torias
devem ser mostradas falsas: é pela verificação da falsidade que a ciência
progride. (1999, p. 332).
A seguir, serão confrontadas algumas teorias de construção do conhecimento
que influenciaram esse processo de investigação do conhecimento objetivo, por
meio de um discurso científico crítico, para melhor serem compreendidas.
1.3. O conhecimento construído através das metodologias: tópica, sistema
axiomático-dedutivo, sistema axiológico-teleológico e direito como
sistema de princípios
A fim de compreender como os métodos ou fontes (utilizados na construção
do significado) ainda estão presentes no discurso atual, os quais sugerem,
equivocadamente, a validade discursiva processual; iremos nos deter, por ora, à
explicação da construção do conhecimento sob a ótica de algumas teorias
anteriormente desenvolvidas.
Pode-se dizer que o conhecimento é resultado das mais variadas formas de
seu desenvolvimento. Recorre-se, entretanto, ao raciocínio de Bachelard (1996),
como analisado de forma comparativa, como a seguir demonstrado, com demais
torias por Almeida estudadas em sua obra Espaço jurídico processual na
discursividade linguística, para a construção do conhecimento científico a fim de
auxiliar na apresentação da ideia deste trabalho.
Um dos pensamentos do autor consiste na análise do conhecimento sob a
forma de sua organização por imagens. Segundo ele, aquele conhecimento
concebido por imagem (observação do objeto), ou seja, imediato, não tem caráter
científico, ―é pitoresca, concreta, natural, fácil‖, compreendido por uma função
descritiva, própria da linguagem (BACHELARD, 1996, p. 25).
27
Bachelard aponta esse tipo de conhecimento como aquele utilizado na
Antiguidade até o século XVIII, podendo ser considerado uma pré-ciência, na qual
os significados ficam adstritos à intuição sobre determinado objeto. Ainda, como
forma de conhecimento utilizada, remete-se ao conhecimento obtido através de
formas geométricas.
Desde o fim do século XVIII até Einstein desenvolver a teoria da relatividade,
o conhecimento como modo de pensar geometrizado foi considerado suficiente para
a construção da ciência. (BACHELARD, 1996, p. 9) A geometrização do
conhecimento (more geometrico) consistia na ordenação de conhecimentos
decisivos em uma experiência, tomando forma por meio de um sistema dedutivo.
―Essa primeira ordenação abre-nos as perspectivas de uma abstração alerta e
conquistadora, que nos levará a organizar racionalmente a fenomenologia como
teoria da ordem pura‖ (BACHELARD, 1996, p. 8).
Por muito tempo a organização geométrica era a lógica de um sistema
dedutivo que partia de premissas intuitivas, sensíveis ao observador. Dessa forma,
tornou-se insuficiente, pois fundada em um simples realismo,6 contraído a partir da
mera observação (ALMEIDA, 2012, p.40-41).
Com
o
terceiro
tipo
de
conhecimento
concebido
em espaços
de
configurações, ―dos quais o espaço sensível não passa, no fundo, de um pobre
exemplo‖ (BACHELARD, 1996, p.7), supera-se, pois, a relação do conhecimento
com a matemática pura e sua geometrização, já que a simples observação do objeto
pelo sujeito, sem a investigação de suas razões, não é capaz de construir novos
conhecimentos (ALMEIDA, 2012, p. 41-42). Ainda, neste sentido, segundo Leal, a
epistemologia avança para a análise da linguagem como construtora de mundos e
não mais numa relação sujeito-objeto (LEAL, R., apud ALMEIDA, 2012, p. 42-43).
O conhecimento passa a ser recinto de construção das relações de
existência, onde os sentidos ou problemas não podem ser detectados por meio da
observação superficial. No entanto, a última concepção proposta ainda não
conseguiu se inserir no atual paradigma, estando presa à uma linguagem natural,
decorrente de um entendimento universal (realidade natural e cultural).
6
Sobre o realismo, Popper afirma: ―Se o realismo é verdadeiro – mais especialmente, algo que se
aproxime do realismo científico – então é óbvia a razão da impossibilidade de prová-lo. A razão é
que nosso conhecimento subjetivo, mesmo o conhecimento perceptivo, consiste em disposições
para agir, e é assim uma espécie de adaptação experimental à realidade; somos no máximo,
investigadores e de qualquer modo falíveis‖ (1999, p. 49).
28
Pode-se dizer que a construção do conhecimento por imagens e pelo more
geométrico foram aproveitadas por outros procedimentos na tentativa de
desenvolver uma discursividade pragmática, como a tópica e os sistemas
axiomático, axiológico e principiológico, que se difere do discurso processualizado
da teoria neoinstitucionalista, como demonstrado por Almeida a seguir.
Segundo Almeida, para Viehweg a tópica é representada por premissas tidas
como verdadeiras, por opiniões reconhecidas (senso comum). E por esta razão se
assemelha ao conhecimento por imagem (ALMEIDA, 2012, p.46).
A
teorização
da
forma
de
obter
conhecimento
revelou-se
arcaica,
permanecendo o conhecimento fundado em um realismo ingênuo, que não levou a
outra conclusão a não sera lógica da pura observação do fatos, em um sistema
fechado, como formador do conhecimento.
Aristóteles imprimiu à geometria organização lógica e também insistiu no
caráter absoluto, invariante, eterno e dedutivo ou silogismo que parte das
premissas evidentes, instituídas pelo intelecto para formar postulados.
(ALMEIDA, 2012, p. 40).
Nesse sentido, a tópica teorizada por Aristóteles, como opinião normalmente
aceita, utilizada para chegar a conclusões dialéticas, é retomada por Theodor
Viehweg.
Viehweg propõe o sistema axiomático-dedutivo, que tem como fontes a lei e a
tópica, suficientes, segundo ele, a tornar o ordenamento jurídico capaz de solucionar
problemas, já que a tópica, advinda da opinião de todos, concederia legitimidade
para as decisões. O autor sugere, a partir da junção da lei e da tópica, uma ordem
jurídica completa, hábil a dirimir todo e qualquer problema de insuficiência detectada
no ordenamento. Porém, essa ideia de completude implica, necessariamente, na
recorrência à tópica como principal metodologia para decidir, acarretando um
decisionismo complusório (ALMEIDA, 2012, p.45-49).
Portanto, a tópica, em sua raiz, não considera a existência de incompletudes
ou contradições, ela seria autonomamente suficiente (autossuficiente).
Segundo Almeida,
[...] no pensamento sistemático axiomático, a abertura não é no sentido de
ordem jurídica construída casuisticamente e apoiada na jurisprudência
como se dá no sistema sustentado por Viehweg, mas no sentido de
incompletude do conhecimento científico e do sistema objetivo, na
capacidade de evolução e modificabilidade do sistema com a administração
de questões exteriores a ele para resolver as lacunas. (ALMEIDA, 2012, p.
51).
29
Por outro lado, Canaris (1989, p. XLVII) discorda do uso dos topois como
fonte, já que a compreende como metodologia, afirmando que apenas as antinomias
são resolvidas pela tópica, admitindo a incompletude do ordenamento jurídico, sob o
fundamento de que, quando nos deparamos com dois pontos de vista diversos, não
há resposta para determinar qual ponto de vista eleger.
Canaris (1989) defende a complementação entre tópica e sistema axiológico.
Segundo ele, com esta amplificação do discurso jurídico, seria possível resolver as
contradições e lacunas; já que a tópica, por si só, não representa nada além de uma
solução, sem qualquer vinculação.
Nesse sistema aberto e móvel proposto por Canaris, o qual não se dispersa
numa multiplicidade de valores singulares desconexos, há possibilidade de renúncia
de previsões normativas fechadas, além de o juiz poder buscar em outra dimensão
(exterior ao sistema) um novo sentido (ALMEIDA, 2012, p. 48-53).
Seu pensamento sistemático foi proposto com a finalidade de aperfeiçoar
duas características advindas da ideia do Direito: ordem e unidade. A ordem seria
ligada à adequação valorativa da ordem jurídica e a unidade consistiria na ausência
de contradições (CANARIS, 1989, p. 18-23).
Diferente é a visão de Dworkin (2007), que, para superar o problema das
lacunas do Direito, propõe um sistema principiológico cujo suporte é a teoria do
Direito como integridade.
Na concepção de Dworkin, o importante é compreender o Direito como uma
justificativa histórica, devendo o juiz realizar sua interpretação continuamente. Para
Dworkin, ―a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios
suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado‖ (2007, p. 274).
Como um sistema que considera decisões passadas, construídas ao longo do
tempo, mas utilizadas como espelho para decisões futuras (passado em evolução),
o principiologismo de Dworkin continua associando o provimento aos topoi,
considerando que a moral e os costumes apresentam-se como forte influência na
justificação das normas.
Como visto, as teorias de argumentação jurídica apresentadas partem de um
sistema cujos sentidos já estão pré-compreendidos e o discurso do texto da lei é, por
conseguinte, direcionado por uma linguagem natural. Assim, os enunciados obtidos
são dialéticos ou historicistas.
30
A ideia de ordem e unidade é mantida nos três sistemas (axiomático-dedutivo,
axiológico-teleológico e principiológico) sempre com a finalidade da tradução de
infalibilidade destes.
Para garantir essa infalibilidade, tais sistemas possuem uma elasticidade
proposital e acabam invadindo uma órbita obscura repleta de argumentos
metajurídicos. O espaço que deveria ser ocupado pela discursividade construtiva
passa a ser marcado pelos aspectos históricos e culturais que o permeiam.
Portanto, caminhemos para a análise de um ambiente (aberto e democrático)
capaz de propiciar um discurso processualizado, hábil a alcançar o conhecimento
objetivo, a partir do estudo das teorias discursivas das decisões trazidas adiante.
31
2 O DISCURSO PROCESSUAL COMO TEORIZANTE DA NORMA
(INTERNORMATIVIDADE)
2.1 Da estruturação do processo como contraditório segundo Fazzalari e a
contribuição de outras teorias
A teoria do processo e procedimento de Fazzalari embora em sua concepção
não trate da metalinguagem, representa relevante ganho para a compreensão do
processo num âmbito linguístico, ideia esta posteriormente desenvolvida pela teria
neoinstitucionalista processo. Inquestionavelmente, os princípios estruturantes do
processo (contraditório, ampla defesa e isonomia) possibilitou uma avaliação crítica
em relação a outros institutos, como a legitimidade das decisões, efetividade
processual, celeridade processual (LEAL, R., 2002, p.13-16).
Fazzalari
explicita
a
sua
formulação
de
contraditório,
processo
e
procedimento:
Se, pois, o procedimento é regulado de modo que dele participem também
aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos
– de modo que o autor dele (do ato final, ou seja, o juiz) deve dar a tais
destinatários o conhecimento da sua atividade, e se tal participação é
armada de modo que os contrapostos ―interessados‖ (aqueles que aspiram
a emanação do ato final – “interessados” em sentido estrito – e aqueles que
queiram evitá-lo, ou seja, os ―contra-interessados‖) estejam sob plano de
simétrica paridade, então o procedimento compreende o ―contraditório‖, fazse mais articulado e complexo, e do genus ―procedimento‖ é possível extrair
a species ―processo‖. (2006, p. 94).
O objetivo da teoria estruturalista do processo de Fazzalari é, através do
procedimento, sistematizar os atos procedimentais, sendo que cada uma das partes
os praticam em forma de contraditório e simétrica paridade.
Devido à teoria fazzalariana, é possível pensar no processo como lugar de
racionalidade, onde se constrói e fundamenta a decisão, deixando clara a atenção
dada ao conteúdo da lei. Rosemiro Leal ratifica a importância desta contribuição:
Neste ponto a teoria do processo como procedimento em contraditório
(Fazzalari) é que nos habilitou saltar de uma subjetividade apofânica
milenar para uma concepção processual expressa numa relação espáciotemporal internormativa como estruturante jurídica do agir em simétrica
paridade e instaladora do juízo discursivo preparatório do provimento
(decisão). (2002, p. 15).
32
Leal considera que apenas com os estudos desenvolvidos por Fazzalari é que
se democratizou o discurso processual, proporcionando revisitações de demais
institutos utilizados quando da decidibiidade no Estado Democrático de Direito
(2002, p.16). Ao longo do tempo, antes de Fazzalari, vários estudiosos do
pensamento jurídico tentaram explicar a estrutura do processo. Teorias do processo,
como o contrato de Pothier, após a de quase-contrato de Savigny, aquele que o
considerava relação jurídica de Bülow, ou como situação jurídica de Goldschmidt e,
ainda, do processo como instituição de Guasp, embasam, em características
próprias, a formação do processo.
Após Fazzalari, foi desenvolvida a teoria constitucionalista do processo por
Baracho,7 Fix-Zamdio e Ítalo Andolina; e a teoria neoinstitucionalista de Rosemiro
Leal (2010b).
Quanto às teorias defendidas por Bülow, Goldschmidt e Guasp, estas
reproduziam a ideia de que o significado da lei era preenchido pelo juiz e o referente
(a realidade fabricada). Fazzalari ainda que contrário à posição de protagonista
(ator principal) do juiz, confere-lhe o poder de emitir juízos de ponderação,
adequabilidade, proporcionalidade, além de utilizar de institutos como analogia,
equidade; o que é entendido pela teoria neoinstitucionalista como equívoco
(ALMEIDA, 2012, p. 145).
Todavia, inegável é a substituição do paradigma da relação jurídica
intersubjetiva (autor, juiz e réu) bülowiana8 e instigadora da atividade criadora da
magistratura, por uma relação internormativa (o discurso desenvolvido no interior da
norma).
Em sua obra, Fazzalari define bem o procedimento como estrutura normativa
quando afirma que ―o discurso se desenvolve, portanto, no interior do aspecto
normativo, não como aquele sociológico, no exterior (2006, p. 98).‖
7
8
Para Baracho, ―O processo constitucional não é apenas um direito instrumental, mas uma
metodologia de garantia dos direitos fundamentais. Suas instituições estruturais (jurisdição, ação e
processo) remetem-nos à efetivação dos direitos essenciais‖ (2006, p. 47).
André Leal ensina que: ―o propósito de Bulow foi o de apresentar, com base na releitura do direito
romano, fundamentos histórico-sociológicos pretensamente autorizativos da migração do controle
social para as mãos da magistratura alemã e de justificar, a partir daí, a adoção de técnicas que
permitissem a desvinculação dos julgadores das abordagens formalistas ou legalistas na aplicação
do direito, minuciando, com isso, a magistratura de instrumentos de dominação idênticos aos
pretores e magistrados em Roma‖ (2008, p. 62).
33
E, ―para concluir sobre relações entre as duas noções de ―odenamento
jurídico‖ – a socilógica e a jurídica – deve-se dizer que, sem confundir-se, elas se
servem mutuamente.‖ (2006, p. 98).
Por outro lado, quando presente a moral, os costumes e a valoração histórica
em sua teoria estruturalista do processo, por identificá-los como solução para a
incompletude do ordenamento jurídico e, segundo André Leal, Fazzalari demonstra
sua inadequação quanto ao alcance da legitimidade decisória, atendo-se apenas à
validade a partir do procedimento.
Com isso, a análise fazzalariana da procedimentalidade parece estar
adtristra, ainda, a enfoques paradigmáticos inadequados à compreensão do
Estado Democrático de Direito, porque deixa de tanger a questão da
legitimidade, cingindo-se à validade (formal) e eficácia da decisão judicial.
(LEAL, A., 2008, p. 122).
Diz Fazzalari que ―o intérprete deve, em suma, aderindo ao dado positivo,
cuidar da contínua depuração do discurso‖, o que nos faz notar, assim como
apontado por Almeida (2012, p.30), que a teoria fazzalariana se rende ao
historicismo, à tópica argumentativa e à interpretação valorativa ao afirmar que os
valores ―positivos‖ interagem com a realidade e ―vivem‖ na história. O intérprete
―deve realizar modificações deste ou daquele valor positivo, por ele recolhido e
considerado na realidade, por um conjunto de novas relações concretas.‖
(FAZZALARI, 2006, p. 469-470).
Segundo André Leal (2008, p. 124), a concepção fazzalariana acerca da
interpretação decisória não consegue concluir o giro teórico que havia iniciado:
Como a questão do entretecimento entre direito e legitimidade não chega às
cogitações
fazzalarianas,
pode-se
concluir
que
os
possíveis
desdobramentos de sua teoria não foram utilizados para questionar as
concepções anacrônicas de jurisdição. A jurisdição, permanecendo em
Fazzalari atividade do juiz, continua parcialmente imunizada da retrocarga
crítica que a teoria do processo democrático poderia oferecer. (LEAL, A.,
2008, p. 127).
Detecta-se, pois, uma falha na visão de Fazzalari acerca da legitimidade da
decisão. Ele não desperta para a relação hierarquicamente desequilibrada criada
entre o juiz e as partes e a consequente força de Estado, quando afirma ser o
provimento uma ―ordem‖ do juiz direcionada aos litigantes, hipótese teórica cujos
resquícios advêm da relação jurídica bülowiana.
Com isso, Fazzalari deixa de contemplar todos os requisitos necessários para
a promoção de teoria do processo adequada ao paradigma do Estado Democrático
34
de Direito. A contribuição fazzalariana, como já mencionado, introduz a
compreensão de validade do procedimento a partir da observância do contraditório
(discursividade), em uma estrutura construtiva. Por outro lado, se equivoca quando
insiste em continuar deixando nas mãos do julgador uma atividade, representativa
do Estado, que estaria acima das partes.
Essa ―ordem‖ normativa seria, portanto, inconciliável com a legitimidade da
decisão, não só pela ausência de retrocarga crítica, mas também pelo enfoque da
jurisdição9 como poder ou atividade do Estado.
Se se analisarem as bases científicas das teorias do processo, se verificará
que são enraizadas em um poder estatal regulador, o qual, sob a justificativa de
legitimar
a
finalidade
ou
interesses
pretensamente
sociais,
mantinha
a
problematização inerte (LEAL, A., 2008, p. 134).
Assim, pode-se dizer que os instrumentalitas10 de hoje julgam necessário
extirpar qualquer postura unicamente técnico-jurídica, o que, como defendido por
essa corrente, não corresponderia fielmente à realidade social e à realização dos
seus valores, finalidade última do Estado. Sob esse enfoque a concretude da
vontade se deslocaria do texto da lei para uma realidade social em si mesma – e
nesse aspecto seria axiologizante (LEAL, A., 2008, p. 137).
Os instrumentalistas, quando sustentam que o juiz poderá adequar o
procedimento definindo os atos que antecedem o provimento e fundamentando no
caso concreto a decisão; ainda concebem o procedimento como imagem, sendo a
experiência (impressão) advinda da tópica, que se dá a partir dos fatos (análise do
caso concreto) (ALMEIDA, 2012, p. 47).
Da mesma maneira, como conclui Almeida (2012, p.59), embora tenha se
apresentado a teoria fazzalariana como uma tentativa de romper com a adoção de
catálogos de topoi, mesmo que de forma menos acentuada, ainda vislumbra a
possibilidade de a argumentação se fundar em razões históricas e na opinião
comum.
9
Sobre a concepção de jurisdição, André Leal assim entende: ―Mesmo alguns estudos importantes
que levam em consideração o desenvolvimento da filosofia contemporânea acabam repetindo os
equívocos que apontamos e continuam afirmando a jurisdição como atividade do juiz, e nomeando
as partes de ―jurisdicionados‖‖ (2008, p. 140).
10
Luiz Guilherme Marinoni, expoente dessa linha teórica, ao discorrer sobre os escopos da jurisdição,
é claro ao apontar a necessidade de que o processualista deveria se livrar de uma postura
―exclusivamente técnico-jurídica, própria da época da afirmação da autonomia científica do direito
processual, e a tomar consciência de que o processo se destina à realização dos valores do Estado
e da própria sociedade‖ (MARINONI apud LEAL, A., 2008, p. 136).
35
O pensamento norteador do presente trabalho se mostra nitidamente
contrário a uma teoria do processo que tenha como alicerce sua reflexão a partir de
escopos metajurídicos da jurisdição. Como se analisará mais à frente, tais ―atributos
de cientificidade ou legitimidade‖ são completamente estanques do processo e
jurisdição no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Ao adotar um modelo procedimental que pode ou não contemplar o princípio
do contraditório, Fazzalari retrata uma postura convencionalista do Estado Social,
que prioriza a sistematização do ordenamento juridico e seus valores.
Assim, sua teoria incorreria em uma hipótese ilegítima de jurisdição, que não
se mostra contra uma decisão proferida sem que tenha sido efetivamente garantida
a discursividade dos litigantes.
Portanto, perquirir a jurisdição a partir de uma teoria discursiva da democracia
pode se mostrar um caminho mais ―fidedigno‖ quando problematizado, em vez de
homologar um paradigma que tenha como pano de fundo um direito de précompreensões, contribuindo, inclusive, com a migração das reflexões jurídicas para
a filosofia da linguagem.
Por não se mostrar completa em relação à legitimidade da decisão, pelos
fundamentos
já
expostos,
serão
analisadas,
a
seguir,
as
contribuições
habermasianas acerca do princípio do discurso e sua legitimidade.
2.2. A razão comunicativa habermasiana
Habermas, em Direito e democracia: entre facticidade e validade, propõe uma
teoria discursiva da democracia que possa, através do Direito, conceder respostas a
toda a sociedade. Afirma que apenas através da instauração do procedimento se
torna possível a legitimidade do direito, quando ele alcança o sentido normativo
pleno (HABERMAS apud LEAL, A., 2008).
Conforme Lúcio Antônio Chamon Júnior:
O princípio do Discurso, como bem colocado por Habermas, vem fazer
referência a exigências pós-convencionais de legitimidade; equivale dizer
que tal princípio – enquanto referido e referente a um momento em que a
tensão entre facticidade e validade não mais pode ser neutralizada por uma
forma de vida homogênea e compartilhada em instituições fortes e
36
constantes no mundo da vida, nem por figuras/sentimentos sacros – reflete,
assim, uma abertura comunicativa de conteúdos e de participantes que,
enquanto tal, fora construída socialmente. Assim é que o princípio do
discurso enuncia ‗D: válidas são aquelas normas (e tão-somente aquelas
normas) a que todos que por ela possam ver-se afetados possam prestar
seu assentimento como participantes em discursos racionais.(CHAMON
JÚNIOR apud LEAL, A., 2008, p. 145).
Para Habermas, a ação comunicativa nasce como uma participação entre
sujeitos, estabelecendo-se uma relação (de fala e ação) com a finalidade de obter
uma compreensão sobre determinada situação, com o objetivo de que eles se
entedam sobre algo no mundo. Nota-se uma influência do conceito de jogos de
linguagem de Wittgenstein apontada anteriormente.
Neste processo de alcance do entendimento, suscitam pretensões de
validade quanto à sua veracidade, correção normativa e autenticidade, cada uma
dessas pretensões referindo-se respectivamente a um mundo objetivo dos fatos, a
um mundo social das normas e a um mundo subjetivo das experiências.
Assim como Fazzalari, o contraditório na intersubjetividade de Habermas
significa a participação de sujeitos para reconhecer na linguagem a existência de um
fundamento histórico.
A normatividade habermasiana é embasada por princípios éticos e
pragmáticos, não mais fundada apenas em princípios morais, como no direito
natural. Ele admite a relação de complementariedade entre o direito e a moral.11
A razão comunicativa, entretanto, apenas alcança certezas (que não deixam
de ser opiniões) contextualizadas e compartilhadas pela comunidade (mútuo
entendimento).Como consequência, o pacto de sentido resta maculado por uma
unidade cultural. Dessa forma, a razão comunicativa não consegue ser eficaz quanto
ao mando da tradição no discurso, enraizado no cotidiano cultural do sujeito.
Habermas parte do pressuposto de que o homem é possuidor de
racionalidade e buscará construir um conceito de racionalidade que encontra seus
fundamentos nos processos de comunicação intersubjetiva com vistas a alcançar o
entendimento. Segundo Aragão (1992, p. 82):
11
―Daí é que o novo Habermas da co-originariedade de direito e moral ainda guarda silêncio sobre a
índole de sua procedimentalidade jurídica instituidora do princípio da democracia por uma razão
comunicativa que fosse apta a elaborar entendimentos a partir de um medium linguístico
indemarcado. O abandono da razão prática e filosofia do sujeito a favor da teoria do discurso não
possibilita automaticamente a intersubjetividade criativa do direito em plano de entendimento
mediado por uma linguagem inesclarecida, para legitimar pretensões de validade sobre algo no
mundo em nome vitorioso de um melhor argumento‖ (LEAL, R., 2002, p. 174).
37
[...] Habermas acredita que, na estrutura da linguagem cotidiana, está
embutida uma exigência de racionalidade pois, com a primeira frase
proferida, o homem já manifestava uma pretensão de ser compreendido,
uma busca de entendimento.
Falta, contudo, a abertura de um espaço para construção e falseabilidade
teórica; a discursividade para Habermas está adstrita a uma interlocução, onde se
usa a linguagem como comunicação (atividade que se dá pela fala), mas a esfera
pública12 é a fonte normativa.
Enquanto na teoria do agir comunicativo o contraditório se dá pela oposição
da pretensão de validade, no procedimento processualizado é a fala que se coloca
sob suspeita. Essa seria a forma de publicizar o espaço, admitindo uma liberdade
comunicativa, mas por meio de uma linguagem natural pressuposta (ALMEIDA,
2012, p.71-76).
A falibilidade, na teoria discursiva de Habermas, é decorrente da
provisoriedade do conhecimento, já que seu desenvolvimento se dá por meio de um
processo (tempo) histórico. (ALMEIDA, 2012, p.71).
Em uma tentativa reconstrutiva, Habermas elabora um conceito normativo de
espaço público e de soberania popular como procedimento (HABERMAS apud
ALMEIDA, 2012) que, com a influência da sua teoria do agir comunicativo, agregada
à ideia de espaço (ou esfera) público e discurso da polis, resultaria na teoria
procedural de democracia.
Para ele, a esfera pública se constitui principalmente em uma estrutura
comunicacional em que o agir é orientado pelo entendimento, dotado do poder de
fiscalização da criação da normativa, sem que seja através da linguagem dos
próprios participantes. A concepção proceduralista de democracia na esfera pública
se dá por meio do locus para construção da constitucionalidade e é fonte normativa
para o direito.
Habermas (1990; 1997, v. 2), a partir da conceituação de Julius Fröbel,
analisada
por
Almeida
(2012,
p.112-113),
de
decisão
majoritária
como
consentimento condicional, aprimorou sua visão de soberania popular como
procedimento e um conceito normativo de esferapública.
12
―A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,
tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto
de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o
mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo,
implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a
compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.‖ (HABERMAS, 1997, v. 2, p. 92).
38
Fröbel entendeu, contrariamente a Habermas, a ideia do discurso e espaço
público, já que, enquanto pretendeu estruturar o discurso no campo teórico, a
compreensão habermasiana de soberania popular vinculou-se ao procedimento
equiparado ao discurso (fala) e comunicação (ALMEIDA, 2012, p.112-118).
Almeida percebeu, a partir do estudo da obra de Fröbel, que existem,
portanto, falhas na proposta da discursividade na esfera pública habermasiana se
confrontada com a discursividade processual neoinstitucionalista, a seguir abordada.
Pode-se afirmar que o obstáculo encontrado na teoria procedural de
Habermas é o sistema de normas pressupostas em consensos, convenções sociais
historicamente transpostas, o que inviabiliza o alcance epistemológico para o
conhecimento objetivo. Partindo de influências platônicas, aristotélicas e kantianas
de linguagem comum, impossível seria uma institucionalização jurídica do agir
comunicativo habermasiano.
A respeito da teoria do discurso habermasiano, Rosemiro Leal assevera:
Também uma linguagem que per se contivesse intrínsecos conteúdos de
comunicabilidade orientadora do agir para o entendimento reproduziria um
essencialismo lógico do consenso das individualidades já pré-decidido por
uma moral instituída em bases axiológicas de tradição e autoridade. (2002,
p. 174).
A teoria procedural não é capaz de conceder legitimidade a decisão na
democracia, pois não seria possível refutar as pré-compreensões, nem um direito
legítimo secularizado em tradições. A teoria do discurso paradigmática tem raiz
sociológica e pragmática, por isso não escapa às acepções historicistas.
Sobre a relação entre poder e saber, Rosemiro Leal expõe a dificuldade de se
compreender a razão discursiva coerente com o direito democrático de hoje:
O saber autocrático, ao se propor separar verdadeiro e falso, incorpora ao
conceito de verdadeiro o auto-apoderamento da subjetividade em escala
pedagógica crescente dos grupos escolares às universidades, conforme
expõe Habermas[...] (2002, p. 92).
Por isso conclui-se ser inevitável que o decididor não se ampare em uma
ética social e uma moral tradicionalizada, que acomete o atual espaço processual.
Tem-se que o pós-positivismo, nas mais variadas terminologias, ampara a
construção das decisões judiciais, à luz do caso concreto, dada a impossibilidade de
alcançar a todos de forma equivalente. Todavia, cria-se uma discursividade
39
indemarcada e, talvez, mais fragmentada, seja pela sumarização dos procedimentos
ou pela celeridade processual.
Consoante Almeida,
Habermas não adota o indutivismo eliminacionasta e não demarca o
discurso científico. A atitude crítica na teoria do agir comunicativo e na
teoria procedural de democracia decorre da dialética, da adoção do
princípio da não-contradição, da possibilidade de consenso numa
comunidade pressuposta de sentido, o que faz com que a falibilidade seja
apenas retórica e não se abandone o verificacionaismo, a busca de
observações positivas. O paradigma de Habermas não cede a uma
fiscalidade porque admite que o entendimento é inerente à uma linguagem
natural (comunicacional). (2012, p. 67).
Portanto, entende-se que na concepção habermasiana haveria um retrocesso
quanto à fonte normativa do direito (esfera pública) e, ainda, em relação ao mundo
da
vida
racionalmente
pressuposto
(linguagem
como
meio
universal
de
entendimento), que Popper tratou de apontá-lo por meio da construção da
―racionalidade crítica‖.
2.3 A racionalidade crítica popperiana
A partir de uma evolução teórica, desde a persecução do significado através
da linguagem em espaços desprocessualizados (eixo perceptivo-cognitivo de Peirce
e traços ideológicos de Schaff), trazidos a tona por Alemida (2012) ,que acabaram
por se tornarem base para o desenvolvimento de teorias do processo como relação
jurídica, situação jurídica e instituição; verifica-se que não se mostraram
suficientemente adequadas para o alcance de significados construídos e, portanto,
democráticos, já que maculadas por influências historicistas ou justificativas
pragmáticas.
Quanto à teoria proceduralística de Habermas, assim denominada por
Rosemiro Leal, como a construção procedimental fazzalariana, também pudemos
perceber sua inadequação, que, do mesmo modo, vislumbra o processo como
consciência histórica e o contraditório significando apenas a interação dos sujeitos, a
qual não consegue atingir a legitimidade quando da decisão.
Contrariamente, a contribuição do racionalismo crítico de Popper permitiu
Rosemiro Leal transpô-lo a um plano processual cuja discursividade se daria durante
40
a prática dos atos processuais na construção das decisões, ou seja, uma
discursividade crítica e não homologatória do processo histórico. Popper (1998a, v.
1) contesta a possibilidade de profecias históricas tanto na ciência quanto na política
e prevê a construção do devir.
Para Rosemiro Leal, a discursividade, portanto, seria interenunciativa
(confronto de enunciados teóricos), entre norma e não entre sujeitos. Há uma
espécie de concorrência conteudística entre as teorias, colocando-se à prova a
linguagem e a fala (subjetiva) sob suspeita.
No racionalismo crítico de Popper não é possível dizer que uma teoria é
verdadeira, mas sim se ela é falsa. Esta posição está ancorada numa assimetria
entre verificabilidade e falseabilidade dos ditos enunciados universais, os quais
podem ser refutados por enunciados singulares.
Consequentemente,
é
possível,
através
do
racionalismo
crítico
eliminacionista, chegar à falsidade, ou seja, uma das teorias prevalecerá à
testificação. O que se pretende deixar em voga é que a abertura constante à crítica
é base da concepção democrática.
A linguagem, por sua vez, se desloca do conhecimento subjetivo e, no espaço
processualizado, permite uma discursividade crítica popperiana:
Nas suas teorias a experiência e a linguagem se completam: a experiência
é transcrita em forma de proposições, que são verdadeiras enquanto
exprimíveis. E as proposições 'têm sentido' enquanto mensuráveis (tudo o
que não é mensurável não tem sentido). (ARANHA; MARTINS, 1995, p.
163).
Popper reformula o problema da indução tendo como base a possibilidade de
afirmar que ela é falsa, mas, por outro lado, não haveria como garantir que não é
verdadeira. Por isso o indutivismo eliminacionista, através da experiência negativa, é
capaz de descartar uma teoria, mas não se presta a construir teorias absolutas.
Se a observação comum se desenvolve sem qualquer rigor científico, nos
levando a mera repetição, torna-se necessário diante de certas situações o seu
desenvolvimento a partir de um processo epistemológico que possibilite sua
refutabilidade.
[…] A observação científica não é a simples observação de fatos. Que
fatos? Quando observamos, já organizamos as inúmeras informações
caoticamente recebidas e privilegiamos alguns aspectos. Por exemplo, duas
pessoas diferentes observando a mesma paisagem selecionam aspectos
diferentes, pois o olhar não é uma câmara fotográfica que tudo registra, mas
41
há uma intenção que dirige nosso olhar, o que significa que o olhar tende
para alguma coisa. (ARANHA; MARTINS, 1995, p. 156).
Contrariamente ao senso comum, cuja percepção do mundo ocorre de
maneira imediata, escapando de um processo investigativo, a proposta popperiana
se embasa na impossibilidade de alcançar verdades ou enunciados pretensa e
irrestritamente universais. Não por isso se deve deixar de buscar a aproximação da
verdade, caso contrário, se estaria admitindo subjetivismos advindos do contexto
historicista, reafirmando a ―aceitação social‖ (POPPER, 1999, p. 39).
É nesse sentido que Popper alega que a racionalidade deve ser construída
pelo homem, opondo-se à doutrina humanística tradicional (1996, p. 156). O autor
trata da racionalidade como possibilitadora do racionalismo crítico:
Por racionalidade entendo apenas uma atitude crítica face aos problemas –
a presteza em aprender com os erros e preconceitos. Portanto,
―racionalidade‖ quer dizer uma atitude consciente e crítica de eliminação de
erros. (POPPER, 1996, p. 156).
É possível, portanto, a linguagem em sua função crítico-argumentativa e para
a prática científica adquirir autonomia em relação à linguagem (repetidora) e não
construtora de mundo.
Uma vez que o verificacionismo (dedutivismo) se ampara em observações
positivas e o justificacionismo (indutivismo) na repetição das experiências
(ALMEIDA, 2012, p.65), ambos tendem ao probabilismo e se afastam da
problematização das questões reveladas.
Desta feita, acabam promovendo a defesa de teorias dogmáticas, inibindo o
criticionismo e impedindo o exercício à liberdade. Por partirem de uma observação
passiva da realidade, tendem a enfraquecer a institucionalização democrática, como
potencial transformadora de normas legítimas do direito.
Popper, visando ao esclarecimento da problematização do discurso, descreve
três universos: mundo 1, mundo 2 e mundo 3. Segundo Almeida:
[...] o mundo 1 representa o mundo físico ou de estados materiais; o mundo
2, as experiências conscientes, o conhecimento subjetivo e as disposições
comportamentais para agir; e o mundo 3 representa os sistemas teóricos,
sendo os moradores mais importantes desse mundo os argumentos críticos
e o elemento mais fértil dele os problemas. (ALMEIDA, 2012, p. 79).
Este estudo será direcionado ao mundo 3, sobre o qual Popper sustenta três
teses:
42
A primeira sustenta que o mundo 2, relativo ao campo da subjetividade, é
irrelevante para o conhecimento científico. A segunda tese é a da
autonomia do mundo 3, pois, muito embora os sistemas teóricos sejam
criados por nós, eles produzem seus próprios problemas e o impacto que
exercem sobre nós excede vastamente o impacto que qualquer de nós
possa produzir sobre ele. Nesse sentido, podemos dizer que uma teoria cria
n problemas não pretendidos [...]. A terceira tese postula que há uma
retrocarga do mundo 3 (teorias) sobre o mundo 2 (conhecimento subjetivo)
e o mundo 1 (realidade natural e cultural), ou seja, a epistemologia
objetivista do mundo 3, que estuda o mundo 1, pode lançar imensa soma de
luz sobre o mundo 2 (da consciência subjetiva). (ALMEIDA, 2012, p .79-80).
O mundo 3 descrito por Popper difere por completo do espaço pretendido por
Habermas, já que não se admite o discurso com bases sociais, históricas e tendo a
linguagem como meio universal de entendimento, inerente à fala. O mundo 2, que
coincide com o espaço da discursividade habermasiana, por sua vez, é irrelevante
para a construção do conhecimento científico e não deve servir como pressuposto
da teoria epistemológica por ele (Popper) formulada.
O princípio universal da crítica como racionalidade também pode ser
considerado integrante da concepção popperiana de sociedade aberta, vez que a
crítica pode garantir a regra de proibição de vedação da liberdade (ALMEIDA, 2012,
p. 88).
Em outras palavras, a democracia deve se desenvolver no mundo 3, por se
mostrar mais adequado a desenvolver através do discurso dessubjetivado o
contraditório, a ampla defesa e isonomia.
Assim visto, testar as teorias científicas faz parte de sua discussão crítica;
ou como podemos dizer, faz parte de sua discussão racional pois neste
contexto não conheço sinônimo melhor para ―racional‖ do que ―crítico‖. A
discussão crítica nunca pode firmar razão suficiente para alegar que uma
teoria é verdadeira; nunca pode ―justificar‖ nossa alegação de
conhecimento. Mas, se formos felizes, a discussão crítica pode firmar
razões suficientes para a seguinte alegação: ‗Essa teoria parece,
presentemente, à luz de uma cuidadosa discussão crítica e de severos e
engenhosos testes, ser, em muito, a melhor(a mais forte, a mais bem
testada); e assim parece ser a mais próxima da verdade entre as teorias
concorrentes‘‖. (POPPER, 1999, p. 85-86).
Em síntese, uma teoria não pode ser racionalmente justificada – em sua
verdade – mas é possível, utilizando-se justificativas racionalmente teorizadas,
aproximar-se melhor da verdade.
Comte-Sponville, que de um ponto de vista epistemológico aproxima-se do
racionalismo crítico de Popper, em Valor e Verdade afirma:
O problema que me ocupa hoje – e que definiria algo como um cinismo
generalizado – é menos o das relações entre moral e política do que o
43
problema, de fato mais geral, das relações entre o valor e a verdade. È
sobre esse problema que se opõem dogmáticos e sofistas, como vimos,
mas eles se opõem, notemos, com base nem pressuposto comum: que
valor e verdade devem andar juntos, que é imprescindível submeter ao
outro ou identificar um com o outro, de tal sorte que o valor seja uma
verdade (objetiva) ou que a verdade não seja mais que um valor (subjetivo).
Como realizar essa conjunção, é o que os opõe; mas que seja necessário
realizá-la, é o que os une. É por isso que o cinismo que procuro pensar
rejeita [...] ambos. [...] é que a verdade e o valor, o real e o bem, o ser e o
dever-ser, são disjuntos, primeiramente e em geral (cinismo generalizado: o
valor não é verdadeiro, a verdade não é um valor). (2008, p. 45-46).
Sobre a objetividade da norma e sua pretensa verdade, complementa o
raciocínio: ―Não, de modo algum, que a verdade seja uma norma: se a verdade é
verdade da coisa, todas as coisas são verdadeiras e todas o são igualmente.
Verdade não normativa mas objetiva (efetiva, diz Maquiavel), não prescritiva mas
descritiva‖ (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 47).
Pode-se dizer que existe uma identidade entre Comte-Sponville e Popper ao
negar que valor e verdade devem andar juntos ou que, para se obter um, se deve
submetê-lo a outro. Esse pensamento se traduz na chance de se obter uma
―verdade‖ objetiva, que ao menos nega a influência do valor para se alcançar uma
verdade.
A tese popperiana não veda apenas que o sentido seja ditado pelo julgador
ou pelas crenças do destinatário, ela impõe a condição de ser a verdade de um
sentido ou de uma decisão obtida através da interpretação ao discurso.
A teoria neoinstitucionalista da linguagem jurídido-processual, a ser analisada
no próximo tópico, busca elucidar como se dá a formação desses sentidos para
todos aqueles inseridos na comunidade jurídica.
2.4 A teoria neoinstitucionalista da decisão e o processo como eixo teóricolinguístico de estabilização do discurso constitucionalizado
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, passa-se a constituir
um Estado Democrático de Direito, conforme seu artigo 1º dispõe. A assimilação
desta nova condição, todavia, não se deu certamente de maneira automática.
44
Torna-se necessário romper com uma linguagem historicista concebida pelo
republicanismo. A norma não mais pode ser aplicada segundo critérios morais e as
decisões não devem ser construídas por supostos interesses comuns.
A visão neoinstiticionalista da decidibilidade propõe a reconstrução, através
de um referente lógico-jurídico, de teorias supostamente democráticas. Pela
influência de uma nova lógica da pesquisa científica popperiana, foi possível criar
uma versão falibilista do discurso, como meio de correção (LEAL, R., 2002, p. 159).
Tal fiscalização, que se dá por meio do procedimento e, como visto, o papel
demarcatório do contraditório no processo fazzalariano, sem dúvida, contribuíram
para o desenvolvimento da teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Leal.
Tem-se, todavia, que o esclarecimento do processo como referente lógicojurídico que possibilita a testificação de teorias numa esfera reconstrutiva foi um
avanço epistemológico, propiciado pelo racionalismo crítico de Popper e pela teoria
neoinstitucionalista, em relação à teoria do processo como procedimento em
contraditório e a teoria constitucionalista do processo.
A discursividade com a observância dos princípios do contraditório, ampla
defesa e isonomia é imprescindível para a problematização democrática. Partindo
dos déficits de legitimidade percebidos no atual paradigma processual, é possível
suscitar condições objetivas (passíveis de refutabilidade) que afetarão a construção
e interpretação normativa e, consequentemente, as decisões proferidas no Estado
Democrático de Direito.
Consoante André Leal:
Considerando o processo em suas bases científicas atuais, as quais
atendem também a um critério de demarcação popperiano (Popper, 2000)
baseado na falseabilidade e problematização incessante das propostas
teóricas, ganha relevo o tema da legitimidade decisória a partir da
institucionalização das condições que assegurem a discursividade que
funda e mantém legítimo o direito democrático. (2008, p. 135).
Ressalte-se, ainda, que na teoria neoinstitucionalista o conceito de instituição,
segundo Rosemiro Leal, não se dera apenas em virtude do conjunto de princípios e
institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a
denominação jurídica de processo. Sua função precípua é assegurar o exercício dos
direitos expressos no texto legal pelas partes em simétrica paridade, alcançados
pelo procedimento institucionalizador do devido processo legal.
Nesse sentido, explica:
45
No direito democratico, nao se concebe instituição como o que tem validade
em si mesmo por uma vontade social diluída na corrente vitalista de valores
sociais a impor a personificação das idéias governativas (organais) da
sociedade ou das coisas integrantes do patrimônio ético-moral e econômico
do mundo da vida social, porque instituir, na procedimentalidade
democrática, é um decidir advindo de uma teoria processual de abertura
ampla, isonômica e discursiva na formação da opinião e da vontade como
fonte jurídica legitimadora do exercício da normatividade daí resultante.
(LEAL, R., 2002, p. 188-189).
A teoria neoinstitucionalista exige um procedimento processualizado distinto
de outros ditos viabilizadores da discursividade, concebidos ou idealizados para a
criação e a aplicação do direito. Ela dimensiona o processo no plano instituinte do
direito democrático, para além de alusões técnicas e metodológicas (ALMEIDA,
2012, p.35), que não serão mais suficientes para esclarecer o processo como recinto
possível e legítimo para a metalinguagem.
A legitimidade fundante e a validade das instituições jurídicas emergem da
estrutura normativa constitucional, quando esta passa a ser garantidora da atuação
permanente da cidadania na transformação ou preservação do Estado e das demais
instituições. Esta teoria neoinstitucionalista do processo só é compreensível por uma
teoria constitucional de direito democrático de bases legitimantes na cidadania.
(LEAL, R., 2001).
O autor da teoria ensina:
Na minha teoria neoinstitucionalista da linguagem jurídico-processual,
devido processo não é ―metanível descritivo‖ que possa pretender estar
dotado da ―propriedade de zerar a ideologia‖, mas é um núcleo inaugurador
de um referente (interpretante) autocrítico-intradiscursivo (intradiscursivo)
para todos os implicados de uma comunidade juridicamente
(normativamente) constitucionalizada (coinstitucionalizada) e candidata à
autoria de uma sociedade jurídico-política em que destinadores e
destinatários normativos estejam em simétrica paridade isonômica. (LEAL,
R., 2010a, p. 276-277).
Como abordado nos tópicos anteriores, é necessário um aprofundamento nas
teorias do conhecimento e da linguagem para esclarecer como o discurso
processualizado poderá testificar a linguagem originária do texto legal, uma vez que
depende deste para poder atuar.
Quanto ao significado das palavras, Rosemiro Leal defende a construção de
uma enunciação teórica autocrítica, na qual:
[...] a desnaturalização da linguagem humana se faz agora pelo espaço
científico a entravar um pacto sígnico sobre a possibilidade de
autoconstrução humana a partir da arguição crítica de todas as linguagens
46
histórica e tecnologicamente recebidas das tradições culturais. (2010a, p.
256).
A teoria neoinstitucionalista refuta a ideia de que, para se evitar um
enrijecimento normativo, as normas podem ser livremente interpretadas num sistema
em que a tópica seria o lugar comum para argumentação. Diversamente, sustenta
que o sistema deve ser demarcado e construído pelos princípios autocríticos do
processo, ampla defesa, contraditório e isonomia, afastando a tópica da possível
linguagem legítima.
Para devolver o caráter democrático da lei, o que se propõe é a reconstrução
do significado (pressuposto) da lei quando da decisão, com o rompimento com os
sentidos preestabelecidos das palavras, extraindo o autoritarismo do juiz, que ainda
atua como principal ator do processo, segundo as visões fazzalariana e
habermasiana tratadas.
Acerca das decisões, a teoria neoinstitucionalista condiciona sua validade à
observância da regra de proibição de vedação de liberdade que significa que:
[...] na democracia temos que reservar para o outro a ocupação dos
espaços de refutação. A ocupação do espaço processual pelo outro tem por
fim a intervenção no erro-problema, pois aí está a oportunidade de elaborar
(enunciar) conjecturas. Por isso o seu fim não se limita a alcançar consenso
e retratar a opinião pública. A liberdade na sociedade aberta consiste na
possibilidade de fiscalização ampla e irrestrita das decisões do Estado por
meio do método de eliminação de erro e não por meio da dialética. Isto se
dá porque a liberdade demanda possibilidade de se desgarrar do dado da
realidade (da condição dada), não para anular a realidade, mas para que o
homem possa construir o seu próprio mundo de significados. (ALMEIDA,
2012, p. 88).
Diversamente do discurso constitucionalizado (processualizado), na dialética
não se pretende confrontar ou eliminar a tese com a antítese; o que se desenvolve é
o princípio da não contradição (aristotélico) ou a harmonização do que há em
comum nas duas teorias. Portanto, não se pretende refutar (testar) uma ou outra,
porque a síntese irá contemplar o melhor lado de ambas.
O que ocorre é que, quando se adota a dialética, ―é sempre possível sustentar
qualquer ideia, mesmo que haja contradições; [...] pois as críticas (contradições) que
foram apontadas fazem parte do desenvolvimento (evolução) da razão e do mundo‖
(ALMEIDA, 2012, p. 90).
Segundo Rosemiro Leal:
[...] essa residência fixa numa razão instrumental de vocações gregárias
capaz de tornar os diferentes iguais em liberdades pelo milagre iluminista
47
das razoabilidades do liberalismo, com o afastamento da razão discursiva
que desconfia do seu universalismo estável, exclui a compreensão das
sociedades a partir de uma validade jurídica em si mesma. (2002, p. 161).
Verifica-se que, consoante a procedimentalidade constitucional do discurso,
não se pode falar em democracia pela aceitação do racionalismo estabilizador, mas
pela existência de um processo aberto, infinito, contra o arbítrio, por ―uma
procedimentalidade teoricamente processualizada a caracterizar a preservação
discursiva do equilíbrio político pelo nexum institucionalista da decisão não
autoritária‖ (LEAL, R., 2002, p. 164-165).
Portanto, o papel do povo diante da soberania popular que lhe é atinente será
exercida pela própria fiscalização do procedimento, aberto e democratizado,
diferentemente do modelo habermasiano de esfera pública, cuja racionalidade era
pressuposta e anterior à aplicação do direito.
Possibilita-se, nessa concepção, a reconstrução da normatividade, sua
validade e razões, fora do ambiente ratificador do senso comum. Os critérios de
formação decisória, por sua vez, não permanecerão ligados a:
[...] uma jurisdição constitucional guardiã e paternal de direitos que se faça
pela atividade dos juízes (assembléia de especialistas) que, em nome da
razão estratégica que entende ilusórios ou decorativos os direitos
fundamentais processualmente constitucionalizados, pudessem forjar uma
realidade em louvor a uma artificiosa ―paz social‖ sistêmica em nome de
todos sustentada por uma jurisprudência de valores topicamente
axiomatizada. (LEAL, R., 2002, p. 172).
Nesse sentido é que se deve distinguir a pretensa democracia fundada em
máximas como paz social, justiça, interesse comum, e passar a falar de uma
democracia discursiva, não-autoritária e uma possível igualdade perante a lei
(objetiva), não traduzida em preceitos morais, contextos históricos ou utilizada de
forma discricionária.
48
3 CRÍTICAS AO ATUAL CENÁRIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E
A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO DA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA
3.1 Discursos hegemônicos e a universalização de direitos: uma possível
retórica
Ainda nos dias atuais, não obstante os conteúdos teóricos determinantes da
democracia, nos deparamos com ilegitimidades praticadas por um Estado (nada)
democrático. Estratificações, uniformizações, ideologizações estão por detrás de
práticas ditas sociais e democráticas. Mas se focalizarmos sua normatividade
(interpretação das leis) e procedimentalidade (―sistematização‖ do ordenamento
jurídico), não se torna possível legitimá-lo (Estado democrático) a partir de um
referente lógico-jurídico interpretativo constitucionalizado.
Há, portanto, uma distorção dos significados dos valores (pilares) de um
Estado Democrático de Direito; sobre este aspecto Rosemiro Leal aduz:
A ―valoração‖ no direito democrático ocorre pelo juízo discursivo
processualizado ao atendimento de direitos fundamentais e não pelas
estratificações ideologizadas das bases sociais pressupostas de uma
racionalidade exorcizável. (2002, p. 189).
Entendemos que a perspectiva de um discurso universalista vai de encontro à
ampliação da própria essência humana, sua existência e evolução. Reduzir o agir da
sociedade a um entendimento (racionalidade) pressuposta é negar a própria
individualidade (diferença) e a liberdade do homem.
O discurso não pode ser uniformizador ou totalitário e deve ser desenvolvido
através de estruturas dimensionáveis, caso contrário rende-se ao discurso retórico.
Chauí traz a definição de Foucault em Le Mots et les Choses sobre a linguagem,
que este afirma ser:
[...] representação e representação do pensamento. Representação, porque
afirma e nega, estando sujeita ao erro e à verdade. Representação do
pensamento, porque não é uma fachada exterior a ele, porém sua
manifestação, ainda que as representações verbais se oponham às
pensadas como o sucessivo se opõe ao simultâneo, o imediato ao refletido.
Porém, justamente porque se deve representar o pensamento e servir a
verdade, a linguagem será objeto de estudos para tornar-se adequada à
sua função: a retórica (modo como a linguagem se especializa em ―figuras‖
49
e a gramática (modo como a gramática ordena e articula a sucessão de
signos) conferirão às representações verbais a capacidade para bem
representar as idéias. (FOUCAULT apud CHAUÍ, 1981, p. 10).
Foucault complementa seu pensamento afirmando que, além do aspecto de
expressão, a linguagem se converte em discurso, onde o comentário cede lugar à
interpretação do pensamento, dessacralizando os signos, e a proposição articula
discurso e conhecimento (FOUCAULT apud CHAUÍ, 1981).
Quando se fala de discurso, é necessário esclarecer que suas características
diferem de uma teoria para outra, tanto no que diz respeito à sua formação quanto
em relação às funções que exerce.Tendo em vista essa realidade, este trabalho se
propõe a demonstrar o aprofundamento na concepção epistemológica das teorias e
suas repercussões na esfera democrática.
Enquanto a retórica pode ser compreendida como distorção, ou mesmo
ampliação de um discurso, que passa a não mais ser fiel ao seu núcleo fundante,
distanciado da sua razão precípua; um discurso científico, através de teorias críticas
(rigorosas), permite alcançar conclusões (problematizadas) não simbolizadas,
através da reconstrução do conhecimento objetivo.
Parece existir uma insuficiência do entendimento pleno da concepção
democrática. Na verdade, um irremovível conjunto complexo e bem entreteado de
ideais é instalado, acobertados pelos denominados ―direitos fundamentais‖, que
acabam sendo, de forma induzida e repetida, tidos como salvaguardores da
democaria.
Bobbio explica que, ao atribuir um direito a alguém, lhe é conferida a
faculdade de fazer ou abster-se em fazer algo, o que pressupõe, em certos
momentos, caso haja uma resistência, um dever, a existência de uma norma. Assim
sendo, sem que se perceba, é celebrado:
[...] um verdadeiro pacto entre partes contrapostas no que diz respeito aos
direitos e deveres recíprocos na relação política, isto é, na relação entre
dever de proteção (por parte do soberano) e o dever de obediência (no qual
consiste a assim chamada ―obrigação política‖ por parte do súdito),
comumente chamado de pactum subietionis. (BOBBIO, 1994, p. 13-14).
Certo é que o Direito é o elo existente entre os sujeitos (cidadãos) e, entre a
maioria de nós, o único capaz de se formar. Quanto a esta vinculação não há
escape, os cidadãos vivem sob a regência do Direito através das proposições
normativas. Resta saber se essas normas são dotadas de legitimidade e de que
forma alcançam a todos, respeitando suas diferenças.
50
A afirmação dos direitos naturais e a ideia de que é legítimo aquele poder
fundado na pressuposição de direitos que derivam de algo superior está
estritamente ligada à discussão da concepção de universalização e interpretação da
norma em sociedades plurais, além de questões que passam pela liberdade,
dignidade, igualdade etc.
Bobbio se posiciona contrariamente à doutrina universalista atemporal, que
pode servir como pretexto para posições conservadoras, e confirma:
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender,
fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos
de uma vez, e nem de uma vez por todas. (2004, p. 25).
Ele se opõe ao fundamento de perpetuamento (atemporalidade) que a
universalidade dos direitos fundamentais atualmente pressupõe. Segundo ele, devese observar a história, os acontecimentos, a mudança e, portanto, o universalismo
seria historicista e contextual.
Os relativistas, que se opõem ao pensamento universalista, entendem que o
ser humano é fruto do meio em que vive e que não haveria um valor intrínseco que
transpusesse as particularidades culturais de cada povo.
Em princípio, entende-se que os relativistas radicais tendem a conceder um
valor maior às minorias, enquanto os universalistas radicais tendem a generalizar os
direitos humanos. ―Na ótica relativista, há o primado do coletivismo. Isto é, o ponto
de partida é a coletividade, e o indivíduo é percebido como parte integrante da
sociedade. [...] na ótica universalista, há o primado do individualismo‖ (PIOVESAN,
2008, p. 149).
Assim como o universalismo, esse relativismo radical sofreu críticas, pois o
homem deveria conservar sua individualidade, devia ter uma esfera de liberdade que
lhe possibilitasse ser mais do que o fruto do meio em que vive.
Boaventura de Sousa Santos registra que:
[...] enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os
direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma
forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento
do "choque de civilizações" tal como o concebe Samuel Huntington (1993),
ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against
the rest"). (2001, p. 15).
51
Essa seria uma crítica ao discurso hegemônico dos países do Ocidente, que
Wallerstein irá ferrenhamente combater em sua obra ―O universalismo europeu: a
retórica do poder‖.
O autor demonstra que o denominado universalismo, na verdade, significa
uma superestrutura ideológica das potências centrais e dominantes, mascarada por
alguns valores como direitos humanos e democracia. Ao longo da história do
sistema mundo-moderno, desde o século XVI, a retórica dos líderes do mundo paneuropeu, sobretudo dos Estados Unidos e Grã-Bretanha, da mídia e dos intelectuais
do establishment, está cheia de apelos ao universalismo como justificativa para suas
políticas (WALLERSTEIN, 2007).
Utilizam, basicamente, três argumentos em que demonstram o apelo ao
universalismo. O primeiro argumento é de que a política seguida pelos líderes do
mundo pan-europeu defende os ―direitos humanos‖ e promove a chamada
―democracia‖. O segundo acompanha o jargão do choque entre civilizações, no qual
sempre se pressupõe que a civilização ocidental é superior às ―outras‖ civilizações,
por ser a única que se baseia nos ditos valores universais, que passam a ser tidos
como verdades. E, por fim, o terceiro argumento é baseado na afirmação da verdade
científica do mercado, do conceito de que ―não há alternativa‖ para os governos
senão aceitar e agir de acordo com as leis da economia neoliberal.
No entanto, há também uma história de oposição a essa retórica, cujo debate
gira em torno do que Wallerstein quer significar com o termo ―universalismo‖.
Segundo o autor, o chamado ―universalismo europeu‖, promovido por líderes e
intelectuais pan-europeus na tentativa de defender os interesses do estrato
dominante do sistema mundo-moderno, apresentou-se como parcial e distorcido.
Como consequência, as bases teóricas interpretativas das leis, bem como a
construção dos seus significados e sua aplicação, são, a todo momento, afetadas.
Os conceitos de democracia, de direitos humanos e de superioridade da
civilização ocidental, calcados em valores universais e de inescapabilidade da
submissão ao ―mercado‖, são apresentados como evidentes por si sós. Na
realidade, não são nada evidentes. Representam, por sua vez, ideias complexas que
devem ser analisadas com atenção e despidas de parâmetros nocivos e nãoessenciais para que sejam avaliadas com precisão e postas a serviço de todos e
não de poucos, como ocorre hoje em dia. Tais conceitos são apresentados pelas
52
grandes potências para legitimar e justificar o direito de intervenção, que avocam
para si, e o desrespeito aos princípios de soberania e autodeterminação dos povos.
As consequências são, igualmente, nitidamente percebidas quando da
aplicação dos direitos (provimento) quando tais conceitos são invocados pelos
decididores (julgadores), camuflados por um discurso retórico e não democrático,
afetando diretamente a liberdade e autonomia individual.
O que se pretende defender não é a negatória de influência de subjetivismos
(moral, cultural, histórico) quando do plano da criação da lei, que, diferentemente,
não deve ser confundida com a utilização indevida (autoritária) e distorcida de
conceitos quando da sua aplicação. Não se admite, pois, a utilização de critérios
irracionais e ideologizados (quando os temos a fácil acesso) sob o pretexto de um
consenso (verdades universalizadas).
Habermas, em seu projeto que contempla a ética do discurso (ou ética da
comunicação), sustenta que uma posição cognitivista no domínio da filosofia moral,
com a defesa de um princípio universal moderno, é capaz de trazer uma avaliação
crítica das normas legais que aspiram ao título de legítimas (MAIA, 2008, p. 35).
Todavia parece que, ao explicitar as origens do referido projeto, Habermas
deixa clara a base transcendental de um princípio de universalização. Sobre esse
princípio, o qual denomina ―U‖, afirma:
Toda norma válida deve satisfazer à condição [de] que as conseqüências e
efeitos colaterais que (previsivelmente) resultarem, para a satisfação dos
interesses de cada um dos indivíduos, do fato de ela ser universalmente
seguida, possam ser aceitas por todos os concernidos (e preferidos a todas
as conseqüências das possibilidades alternativas e conhecidas de
regragem) .(HABERMAS apud MAIA, 2008, p. 52).
A defesa de princípios universais referentes aos direitos humanos estaria
ancorada em uma posição universalista no campo da moral, de forma a reconhecer
os interesses de todos aqueles comumente ligados por regras.
Posteriormente, após receber inúmeras críticas ao seu projeto ético,
Habermas reinaugura o princípio da universalização como um vocabulário
controlado, inserido em uma cultura da Modernidade, que, ainda assim, foi apontado
como um posicionamento etnocentrista.
Diante deste contexto, propõe-se a seguinte discussão: é possível coexistir
uma política de respeito pelas diferenças e outra de universalização de direitos
subjetivos? Percebe-se, no cenário internacionalizado, povos que anseiam por
53
independência e clamam pela igualdade, seja pelo reconhecimento de identidades
coletivas ou mesmo igualdade de direitos para as diversas vidas culturais.
Rawls e Dworkin vislumbram como resposta a esta questão uma ordem
jurídica eticamente neutra, a qual deve garantir chances iguais a todos, devendo
partir cada um daquilo que considera bom para guiar suas decisões.
Já Charles Taylor contesta haver essa neutralidade ética no Direito e sugere
―uma teoria segundo a qual se garantem liberdades de ações subjetivas iguais para
todos os jurisconsortes, sob a forma de direitos fundamentais‖ (HABERMAS, 2002,
p. 234.)
Taylor ainda sugere outro modelo, que admite, em determinadas situações, a
existência de garantias restritivas aos direitos fundamentais, como no caso de
preservar a forma de vida cultural, que seria a exacerbação máxima da valorização
da cultura. Este posicionamento apresenta também um viés etnocêntrico,
reconhecendo legitimidade e validade às normas e valores vigentes na sua cultura
ou sociedade. Tem na sua origem a tendência em julgar determinado modo de vida
como preferível e superior a todos os outros.
Percebe-se que os valores da sociedade à qual pertencemos passam a ser,
numa conjuntura precipitada, declarados como valores universalizáveis, aplicáveis a
todos os homens, que, em última análise, não passam de falsas generalizações.
A negação da diversidade humana, com visões de mundo autênticas, pode
revelar-se em atitudes ilegítimas, com ambições puramente econômicas e
destrutivas. Ressurge, assim, o debate sobre o relativismo, que segundo Benhabib
(2006), é considerado a ausência de heterogeneidade absoluta.
Revestido de formas distintas, o relativismo está associado às reivindicações
identitárias e, ao mesmo tempo, ao multiculturalismo, valorizando a diversidade
cultural como traço essencial da humanidade, como ―entidade‖ discrepante, ambígua
e conflituosa.
A visão puramente relativista dos direitos humanos, oposta à universalista,
indica que não devem existir critérios mínimos para o diálogo entre culturas, ou seja,
direitos humanos ou fundamentais são relativos, dependem de cada povo e, desta
forma, seria impossível a universalização desses direitos, uma vez que cada cultura
tem liberdade de considerá-los ou não.
Na verdade, ambos os posicionamentos, a nosso ver, são incapazes de
efetivar uma ―plenificação normativa de constitucionalidade democrática‖, que só
54
pode ser construída sem estar transvestida de velhas hermenêuticas. A única via
construtiva da procedimentalidade irrestrita (em todos os seguimentos) se dá no
espaço processualizado (LEAL, R., 2002, p. 194).
Pode-se dizer que, por meio da instauração do processo, as qualidades
positivas se deslocam para o "pluralismo" da diversidade. Segundo Sartori:
[...] uma cultura pluralista implica uma visão de mundo baseada,
essencialmente, na crença de que a diferença, e nãoa semelhança, o
dissenso, e não a unanimidade, a mudança e não a imutabilidade,
13
contribuem à boa vida. (1995, p. 115).
O "pluralismo" instalado na visão relativista seria, na verdade, uma
justaposição de singularidades. O problemático é a noção de inteireza, que permite
associar a cultura às metáforas do caráter e da identidade. É também esta inteireza
que nos ilude ao considerar a cultura não como uma dimensão da vida social, mas
como a vida social na sua totalidade.
Consoante Rosemiro Leal:
O constitucionalismo, como plataforma teórico-jurídico-processual de
discussão do pluralismo, é que poderia – o que Rawls não vê – estabilizar
pelo total acesso procedimental processualizado as idéias que devam
prevalecer para a identificação por todos da democracia juridicamente
(processualmente) instituída. Não será o sucesso da interação do “exercício
compartilhado da reflexão prática daqueles que são razoáveis e racionais”,
que demitindo-se das explicações de causalidade do seu êxito, produzirá
perfeitas e irretocáveis razões de direito e justiça. (2002, p. 161).
É verdade que cada ser humano tem sua individualidade, suas experiências
de vida, e por isso são diferentes uns dos outros. Todavia, é necessário
compatibilizar a proteção a direitos fundamentais (em seu âmbito geral) e a
dignidade de cada indivíduo (em sua singularidade) e reconstruir teórica e
normativamente os direitos.
13
No original: ―[...] una cultura pluralista implica una visión del mundo basada, en esencia, en la
creencia de que la diferencia, y no la semejanza, el disenso, y no la unanimidad, el cambio y no la
inmutabilidad, contribuyen a la buena vida‖.
55
3.2 A suspensão da aplicação da lei – o estado de exceção tornou-se regra
Serão aqui analisados alguns ―impasses‖ já discutidos que vêm sendo
enfrentados no âmbito da decidibilidade jurídica, agora com outra roupagem. Sob as
mais diversas formas, mas normalmente alegando um só problema (suposta lacuna
no ordenamento jurídico), os juízes julgam sem se atentarem para a lei.
Nos últimos tempos, a lacuna ou vazio da lei, equivocadamente, tem cedido
lugar a um saber universal, convidativo ao despotismo estatal, sob a justificação de
suposta promoção de uma justiça social. Giorgio Agamben deflagra a distorção
presente no ordenamento jurídico, que, dotado de meios de solucionar eventual
insuficiência da lei quanto à sua aplicação, faz a exceção virar regra.
Importante dizer que a lacuna aqui tratada não é interna à lei, mas relacionase com a realidade e, por conseguinte, diz respeito à sua possibilidade de aplicação.
A regra é instalar o estado de exceção14 em uma situação extrema, já que, em
última análise, o direito desaparece (AGAMBEN, 2008, p. 48-49).
Torna-se difícil classificar o estado de exceção como pertencente ao plano do
direito se se refere a uma suspensão do ordenamento vigente e, portanto, se
apresenta como forma legal daquilo que em sua raiz não pode ter forma legal.
Segundo Agamben:
[...] por outro lado, se a exceção é o dispositivo original graças ao qual o
direito de refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão,
uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para se
definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente direito.
(2008, p. 12).
Outro ponto de compreensão intrincada e estreita é relação com a guerra civil,
esta última, considerada uma zona de indecidibilidade. Segundo Agamben, o
Terceiro Reich pode ser considerado como totalitarismo moderno, que por meio da
instauração do estado de exceção, do ponto de vista jurídico, permaneceu em
guerra civil legal por doze anos, com a presença de práticas voluntárias
disseminatórias.
14
Entre 1934 e 1948, diante do desmoronamento das democracias europeias, a teoria do estado de
exceção – que havia feito uma primeira aparição isolada em 1921, no livro de Schmitt Die Diktatur
[A ditadura] – teve um momento de especial sucesso; mas é significativo que isso tenha acontecido
sob a forma pseudomórfica de um debate sobre a chamada ―ditadura constitucional‖. (AGAMBEN,
2008, p. 17).
56
Se transportarmos a teoria schmittiana para os dias atuais, verificaremos que
o estado de exceção – como abolição provisória da distinção entre Poder
Legislativo, Executivo e Judiciário – ou ao menos o alargamento das funções a
serem exercidas por estes, virou regra.
O que ora nos interessa é a crítica ao estado de exceção no espaço das
decisões (jurisprudências ocultadoras das normas jurídicas). A partir da instalação
de um discurso subjetivista, ancorado nas premissas universais e, ainda,
reproduzido sob a justificativa da existência de lacuna na lei (desconsiderando-se
estrategicamente direitos líquidos e certos); o estado de exceção torna-se a saída
dos juízes-hércules.
Conclui Rosemiro Pereira Leal:
Este lugar (poder) do decidir anormativo é que aponta, a esmo, ilicitudes e
estas como condictio sine qua non das condenações e sanções sentenciais
que se notabilizam pela punição implacável (justiceira), encobrindo direitos
fundamentais líquidos e certos que, se exercíveis a seu tempo e de modo
ininterrupto (ao longo de uma fiscalidade processual difusa e irrestrita),
teriam efeito preventivo das infracionalidades e da miséria social.
Entretanto, ainda se explora a zona de anomia da lei, sempre aberta ao
decisor talentoso, para um julgar pelas normas de realização do direito que
diferem das normas vigorantes, tornando-se o direito processual mero
instrumento autocrático de uma jurisdição de escopos meta-jurídicos
(concretizadores de valores sociais e éticos retirados oniscientemente de
um real anômico. (2005, p. 6-7).
Carl Schmitt (apud AGAMBEN, 2004, p. 48) ―vê no estado de exceção
precisamente o momento em que o Estado e direito mostram sua irredutível
diferença (no estado de exceção ―o Estado continua a existir, enquanto o direito
desaparece: Schmitt, 1922, p. 39‖)‖.
Essa seria a semelhança entre a aplicablidade da teoria jurídica das lacunas
no direito e a suspensão do direito, com o estado de exceção, fazendo o direito
desaparecer. A pretexto de se depararem com obstáculos intransponíveis, os
julgadores elaboram decisões que se tornam jurisprudências, ocultadoras da própria
norma jurídica.
Conclui-se que tornar a lei objetiva também é deixar de suspender o seu
cumprimento, já que vigente no ordenamento jurídico. O lugar do decidir anormativo
aponta ilicitudes, encobrindo direitos fundamentais líquidos e certos.
Segundo Rosemiro Leal:
[...] o que também se nota em um discurso de um direito banalizado pelo
rótulo democrático é a distinção especiosa entre ausência de norma e
57
insuficiência do teor significante da norma, para jurisdicionalizar sua
interpretação. Ora, ambas as hipóteses reclamariam soluções legiferantes e
não [...], por intenções supletivas e de livre interpretação do julgador no
caso de insuficiência da lei. (2002, p .106-107).
De toda maneira, pode-se dizer que os positivistas ou neopositivistas
preocupariam-se apenas com a inviolabilidade do sistema (ordenamento jurídico),
guiando-se para garantir esse fim pela ―astúcia interpretativa ou pela habilidade em
manejar os jogos de linguagem procedimental‖ (LEAL, R., 2002, p. 107).
Desta feita, a decisão se tornaria compreensiva e adequada para seus
destinatários se proferida conforme a lei. Na visão de Rosemiro, não só para os
positivistas, mas também para os jusnaturalistas, jusracionalistas e relativistas; o que
importa é manter a ordem e a segurança jurídica, reproduzidas por uma decisão cujo
senso de justiça dos julgadores se torna precursor da concretização de tais
objetivos. E sintetiza a esse respeito:
Entendem, por unanimidade silenciosa e culturalmente jurisprudencializada,
que a ordem jurídica social, moral ou ética decidida pela autoridade
judicante, legislativa ou executiva é sempre legítima, desejável e legal, se
obtiver, em caso de controvérsia, aprovação do Judiciário como única ou
última instância orgânica de discussão e decisão exaurientes de quaisquer
dúvidas. Para eles, a interpretação é sempre autopoietica, porque,
considerando ou não o ordenamento jurídico completo ou lacunoso e a
propria lei estabelecendo que, em caso de insuficiência ou lacuna (omissão)
da lei, o juiz suprirá a falha do legislativo, também seria a norma jurídica a
que determinasse o juiz preencher com suas próprias normas a lacuna da
lei, resultando, portanto, atendido o princípio da reserva legal. (LEAL, R.,
2002, p. 108).
Portanto, não se interessam pela normatividade constitucionalizada do
paradigma teórico legitimante da estatalidade decisória advida da validade e eficácia
decisória. Preferem a decidibilidade compulsória como referente jurídico-teórico
fundante da normatividade. Esse tipo de decididor, ao complementar a norma, revela
sua exclusiva racionalidade, o que contraria a lógica construtiva do processo, já que,
neste momento, desconsidera a participação de todos os envolvidos no processo.
As decisões que invocam padrões teóricos que se orientam por valores ou
convicções ideológicas, por si só, não está autorizada no Estado Democrático.
As supostas notas características de um direito não podem ser, em direito
democrático, somente audíveis por um só ouvinte privilegiado a quem
incumbirá definir ou reconhecer direitos por conceitos herdados da tradição
de alusivos a prudente arbítrio, equidade, bom-senso, relação adequada,
boa-fé, justa causa e outros ideários axiológicos do mundo da vida. (LEAL,
R., 2002, p. 112).
58
A partir das teorias vistas, o processo já pode ser considerado recinto de
racionalidade na construção do provimento, sem ter que se buscar no sistema
jurídico fontes indemarcadas (sem racionalidade e objetividade), como ética, moral,
costume, juízos de valor e equidade.
Conclui-se pela necessidade de substituição da subjetividade na construção
do provimento pela testificação (racionalização) das teorias que se rotulam
democráticas.
3.3 A dessubjetivação do conhecimento ou objetividade linguística como
reconhecedora da sociedade democrática e legitimadora da decisão
Pode-se dizer que a ciência moderna, após a segunda metade do século XX,
não mais se sustenta como outrora, com seus conceitos absolutos, totalizantes, de
―razão‖, ―democracia‖, ―verdade‖.
Neste sentido, Aroldo Plínio Gonçalves aduz:
O século XX rompeu com o mito do século passado de que a ciência é um
conjunto de verdades e certezas, permanentes, imutáveis, definitivamente
estabelecidas. Ao contrário de depor contra o conhecimento científico, essa
postura anseia pelo seu progresso, por sua contínua complementação, e
conduz àquela palavra de fé, de que fala Bachelard, do cientista que
termina seu dia de trabalho dizendo: ‗Amanhã saberei‘. E nessa profissão
de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo conhecimento, em
qualquer área, é fruto de muitos esforços conjugados, em que conceitos e
teorias se substituem e renovam, e, não raras vezes, a renovação se faz
com esteio nas antigas concepções repudiadas ou como respostas a elas.
(2001, p. 13).
O Estado Democrático de Direito vem tentando superar os dois modelos de
paradigmas de Estado da Modernidade, os Estados liberal e social de direito. Ocorre
que este movimento não é linear e perfeito; há alguns obstáculos correlatos aos
―antigos ideiais‖.
Sobre a inserção da procedimentalidade como otimização de resultados mais
democráticos, Terezinha Chaves preconiza:
A substituição da positividade das leis pela eficiência mensurável dos
procedimentos – operada pela Teoria dos Sistemas Autopoiéticos de
Luhmann – pelos quais se permite ao direito mudar sua qualidade jurídica
através de decisões que absorvem e apreendam as situações
contingenciais, colocando a positividade do direito na capacidade de
59
absorção de situações emergentes no contexto das contingências, não
serve ao paradigma proposicional de Estado de Direito Democrático. Isso
porque o discurso dessa teoria possibilita um significativo aumento do poder
dos juízes ou daqueles que decidem, porque, na verdade, eles é que têm a
consciência do sistema e a capacidade de absorver e reduzir a
complexidade do mundo circundante. Nessa concepção, o procedimento é
apenas forma de otimização das performances do sistema, que não pode
sofrer perturbações das infinitas possibilidades do mundo circundante.
(CHAVES in LEAL, R., 2003, p. 99).
A questão da legitimidade da decisão, após a institucionalização do processo
pela Constituição Federal, por meio de seus princípios estruturantes (contraditório,
ampla defesa e isonomia) e o devido processo, inaugura o paradigma constitucional
processualizado e intolerante a arbitrariedades.
A exigência da fundamentação das decisões suscita a criticabilidade
(problematização) como condição da existência de uma sociedade político-jurídicodemocrática. A partir da possibilidade de crítica, há garantia do exercício da
liberdade e individualidade (singularidade).
Muitos veem a impossibilidade de uma metalinguagem – ―linguagem em
que se possa falar de outra linguagem‖ – ou, na concepção da minha teoria
neoinstitucionalista do processo, de uma metalinguagem autocrítica-jurídica
pela principiologia do contraditório, ampla defesa e isonomia, para
correlativamente identificar e enunciar a vida, liberdade, dignidadeigualdade [...], porque se aferram ao mito de que não é possível a alguém
sair da linguagem (dogma lacaniano e historicista que o próprio Lacan em
seu saber metalinguístico cuidou de derrogar pela via de seus matemas e
Marx pelo seu socialismo científico). É que não percebem que a
dessujeitização (dessubjetivação) do conhecimento se faz pela acumulação
de teoriascríticas que exercem uma sobrecarga sobre a ciência e a técnica
correntemente assentes. A partir desta etapa em que o acervo críticoteórico se habilita a arguir os saberes estabilizados por teorias duradouras é
possível falar de uma objetividade linguística (Mundo 3 de Popper). (LEAL,
R., 2010a, p. 178-179).
Popper (1999) explica que a linguagem humana tem, ao menos, quatro
funções: sintomática ou expressiva; comunicativa, sinalizadora ou libertadora;
descritiva ou informativa; e argumentativa ou crítica. Ele categoriza as duas
primeiras linguagens como inferiores (já que, além de serem comuns à linguagem
dos animais, não podem exprimir certos estados) e as duas últimas como superiores
(primeiramente porque os animais não as possuem e também por ultrapassarem as
disposições comportamentais e, portanto, potencial veiculadora do conhecimento
objetivo).
Como ao debate interessam as linguagens superiores, restringiremos a
abordagem a estas. Pode-se dizer que a função descritiva e informativa nos
60
possibilita que falemos se algo é verdadeiro ou falso, o que vai além da função
comunicativa, pois passam a ser avaliados criticamente os fatos.
Para Almeida (2008, p. 174), ―Popper não está se rendendo ao
observacionismo, mas ressaltando que a verdade como correspondência com os
fatos somente significa que ainda não se encontrou observação negativa para a
asserção descritiva‖.
Portanto a finalidade da problematização do processo é uma aproximação da
verdade,15 busca-se esclarecer a realidade, mas não a justificação de uma teoria
como verdadeira, até mesmo porque todas as teorias são hipóteses.
Popper esclarece que a metalinguagem é a forma de compreendermos e
avaliarmos a linguagem, matéria-prima do nosso estudo. A avaliação crítica da
linguagem objeto através da metalinguagem nos faz transcender as barreiras
impostas pela realidade cultural, crenças e preconceitos (da própria linguagem
natural).
A busca pelo devir no lugar da repetição do dever ser (cheio de subjetivismos)
possibilita clarificar a linguagem, nos mostrando a importância de significar o real ao
invés da realidade, que é carregada de simbolismos. Para o reconhecimento de uma
sociedade plural, multicultural, autêntica, necessária se torna a desmistificação, o
esclarecimento de conceitos prontos, imediatos e não questionáveis.
A irrefutabilidade advinda de justificativas pressupostas travestidas de ―bem
comum‖, ―função social‖ ou ―utilidade pública‖ não podem perdurar em um sistema
que, além da lei, possui como paradigma democrático o devido processo, clarificador
da interpretação do texto legal.
A teoria neoinstitucionalista preconiza o processo como enunciado normativo
sem que haja fundamentação em direitos inatos ou éticos, mas com base na razão.
O argumento racionalizado pode ser falseado, criticado e, a partir de uma lógica
dedutiva (do universal para o singular), pode se tornar legítimo em uma sociedade
multicultural.
A discursividade da linguagem (metalinguagem) se dá no devido processo –
no falseamento das teorias – que é capaz de trazer à tona a dessubjetivação do
conhecimento na interpretação decisória.
15
Para Comte-Sponville: ―Toda verdade é universal, pois que é verdadeira, de direito para todos. Mas
um valor univesal seria o que valeria para todos, o que nunca se pode demonstrar, de direito, en
constatar, de fato.‖ (COMTE-SPONVILLE, 2008, p.350).
61
A testificação de direitos ou a (re)construção de significados visa a afastar um
totalitarismo
jurisprudencial
e
abre
passos
para
uma
multiplicidade
de
interpretações, além de uma fiscalidade constante das normas. Em uma sociedade
democrática, seria inviável permitir que argumentos metajurídicos, alheios a uma
compreensão racional e à crítica pelos seus destinatários, perpetuem um ―estado de
exceção‖.
Segundo Almeida:
Decisões com base em jurisprudência majoritária, súmula, presunção
absoluta de verdade, experiência do juiz, casos repetitivos, juízo de
probabilidade, proporcionalidade, ponderação de valores, razoabilidade,
adequabilidade, reserva do possível, não passam de justificacionismo ou
verificacionismo, de recusa a trabalhar o futuro; o que significa um
retrocesso e não um progresso na democracia. Essas justificativas não são
sequer falseáveis, porque respondem a qualquer pergunta, não importa
como. Servem mesmo é para um procedimento arbitrário ou discricionário
em que temos poucas perguntas e respostas para tudo, nem que seja para
silenciar os opoentes, e não para a democracia, em que temos mais
demandas do que respostas, já que é possível testificar todas as decisões e
omissões. (2012, p. 75).
O constitucionalismo juridicamente procedimentalizado, como posibilitador de
discussão do pluralismo, é a via estabilizadora das ideias (teorias) suscitadas pelos
participantes da democracia.
Inadimissível, portanto, um contexto autoritário do Judiciário em um
paradigma de Estado Democrático de Direito, sob pena de estarmos sendo
coniventes com uma superestrutura, em último grau, violenta.
62
CONCLUSÃO
O presente trabalho partiu do seguinte questionamento: É possível obter
decisões legítimas no atual cenário do Estado Democrático de Direito?
Procurei, através da análise de algumas teorias desenvolvidas por autores
utilizados na pesquisa, entender se e como seria possível em uma sociedade
diversificada a efetivação de direitos de forma democrática. Já que, por um lado,
fala-se da supremacia dos chamados direitos humanos, de preceitos universalizados
e, por outro, da individualização desses direitos, da interpretação caso a caso. O
correto seria partir de verdades gerais ou relativizar?
E, nenhuma das possíveis respostas me parecia completa, plausível. Ainda,
havia uma dificuldade em identificar, na prática, qual seria a forma eficaz e legítima
de implementar o direito democrático. Percebi, portanto, que seria necessária a
reconstrução (uma nova construção) de repetições replicadas no universo jurídico,
livre de preconceitos e padrões, raízes passadas.
O dito senso comum, reforçando a ideia de verdades universais e, mesmo os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade, na tentativa de alcançar possível
adequação, ainda soava como justificativas com alta carga subjetiva e, portanto,
antidemocráticas.
A partir daí, pude traçar um caminho que me levasse a possível solução,
iniciando a pesquisa da ―dessubjetivação‖ do conhecimento ou objetividade na
relação entre linguagem, cognição e realidade.
Durante a pesquisa e utilizando como foco as teorias do racionalismo crítico
de Karl Popper e a teoria neoinstitucionalista de Rosemiro Leal, com o auxílio das
contribuições de Andréa Alemida, tornou-se claro o momento de tal objetivação, que
se
daria
por
meio
da
instauração
do
denominado
―discurso
jurídico
constitucionalizado‖, defendido pelo neoinstitucionalismo.
Neste espaço, portanto, seria possível, através da discursividade crítica,
promovida pelos próprios destinatários da decisão, a construção da lei democrática.
Colocando-se à prova, dessa forma, os fundamentos ideológicos, culturais e
estratégicos que, usualmente, servem aos nossos julgadores.
63
O que se defende é que este comportamento acarreta na ilegitimidade das
decisões, acobertadas por preceitos morais, universalizados, subjetivos. E, por isso,
pode-se dizer que tal escolha, a de embasar decisões nesses preceitos, muitas das
vezes, oculta o conteúdo e a própria existência de normas jurídicas.
Frequente se tornou o uso de justificativas como a ocorrência de lacuna na lei
para que escopos metajurídicos fossem utilizados pelos decididores, o que nos leva
a um contexto de estado de exceção, cuja aplicabilidade do direito fica suspensa.
Esses decididores sustentam que a decisão que tenha como base um ―senso
de justiça‖ seria legítima, já que o juiz suprirá eventual falha do Legislativo. Mas, na
realidade, estes juízes não se interessam pela normatividade constitucionalizada do
paradigma teórico legitimante da decisão. Preferem a decidibilidade compulsória,
revelando sua exclusiva racionalidade e desconsiderando a participação dos
envolvidos e contrariando sua lógica construtiva.
Portanto, o que se propõe é a construção do provimento a partir do processo
como recinto de racionalidade, afastando a busca de fontes indemarcadas ou
subjetivas, como a ética, moral, juízos de valor e equidade.
Para tanto, no primeiro capítulo foi abordada a construção do significado em
espaços desprocessualizados. Apresentou-se algumas teorias que tentaram criar
meios para se obter um pensamento sem apelar para a individualidade do intérprete.
Todavia, percebeu-se, ao final, que os significados extraídos de tais investigações
não detinham autonomia, tendo como referente a realidade cultural e a experiência
pressuposta e, portanto, isenta de objetividade.
Rosemiro Leal reproduz, já no espaço processualizado, esta hipótese de não
utilização do referente na formação do significado da lei democrática, demonstrando
o importante papel interpretativo e crítico do processo.
A ideia de refutabilidade das teorias e suas interpretações surge da
identificação de um hiato entre o entendimento do sujeito (Eu) e do (Outro). Este
vazio ou não simbolizável ensejaria a motivação de Lacan para explicar o real,
consistindo no que ainda não foi simbolizado e possibilitando a problematização da
linguagem.
64
Percebe-se que estes pensamentos se tornaram relevantes para a teoria
neoinstitucionalista, principalmente por afastar a influência da linguagem natural, nos
permitindo afirmar que os conteúdos das palavras não podem ser desprezados,
embora não sejam suficientes para irromper todos os seus sentidos.
Portanto,
a
linguagem
como
elemento
de
significação
no
espaço
desprocessualizado não se torna capaz de alcançar a todos democraticamente,
sendo necessária a instalação de um debate aberto à crítica.
Para Popper, devemos ter o cuidado de manter as afirmativas que fazemos
livres da significação de nossos termos, o que demonstra uma posição subjetivista.
E, como consequência, a teoria do conhecimento acabaria por traduzir em mero
reconhecimento do senso comum, o que demonstra sua inadequação e necessidade
de substituição pelo conhecimento objetivo, distante da crença pessoal.
Conclui-se que as teorias devem, independemente de sua repetição, ser
submetidas a testes de refutabilidade, já que o conhecimento objetivo, segundo
Popper, acontece fora da mente dos sujeitos.
Sustenta-se, assim, que a capacidade argumentativa enquanto razão na
discursividade é que possibilita múltiplas interpretações e propicia uma linguagem
autônoma perante a lei convencionada. A refutação de teorias e a consequente
formulação de novas levarão a uma aproximação da ―melhor teoria‖.
No segundo realizou-se uma transposição dos conceitos estudados no
primeiro capítulo, além da apresentação de teorias processuais que auxiliaram na
construção do eixo do trabalho, na compreensão do processo num âmbito
linguístico.
A contribuição fazzalariana, com a teoria do processo como procedimento em
contraditório que nos leva a crer em uma relação internormativa como instaladora do
discurso preparatório da decisão, e a razão comunicativa habermasina, que traz a
ideia de instauração do procedimento como forma de alcançar o sentido normativo
pleno, elucidam e reforçam a importância do discurso processual democratizado,
mas ainda apresentam falhas em suas concepções.
65
Verificou-se que Fazzalari, por exemplo, confere ao juiz o poder de emitir
juízos de ponderação, adequabilidade, além de permitir o uso da analogia e
equidade, admitindo a moral e a valoração histórica em sua teoria estruturalista do
processo. Demonstrando, assim, que suas soluções para possível incompletude do
ordenamento jurídico não mais são suficientes para o alcance da legitimidade
decisória, atendo-se à validade a partir do procedimento.
Habermas, por sua vez, se preocupa com a obtenção de certezas (que não
deixam de ser opiniões) contextualizadas e compartilhadas pela comunidade e, por
tal motivo, não consegue abertura para a construção da falseabilidade teórica. A
discursividade de Habermas está adstrita a uma interlocução e, a falibilidade é
decorrente da provisoriedade do conhecimento sob o ponto de vista histórico.
Já a racionalidade crítica popperiana serviu à teoria neoinstitucionalista do
processo quando analisada no plano processual, cuja discursividade se daria na
construção das decisões, uma discursividade crítica e não homologatória.
Pode-se dizer que no racionalismo crítico de Popper não é possível assegurar
se uma teoria é verdadeira, mas sim se é falsa. O teste é de falseabilidade de
teorias, como no caso de enunciados universais, que podem ser refutados por
enunciados singulares.
Para Rosemiro Leal, a discursividade interenunciativa (o confronto de
enunciados teóricos), a relação entre normas e não entre sujeitos, testa o conteúdo
das normas e identifica a fala subjetiva, colocando-a sob suspeita.
Torna-se possível, dessa forma, através da linguagem crítico-argumentativa,
e não mais repetidora, identificar a concepção democrática processualizada da
decisão. A teoria neoinstitucionalista do processo dimensiona o processo no plano
instituinte do direito democrático, defendendo a construção de uma enunciação
teórica autocrítica, como a desnaturalização da linguagem humana, o rompimento
com os sentidos preestabelecidos das palavras.
Já no terceiro capítulo, após a demonstração da evolução teórica sobre a
objetividade jurídica no discurso constitucionalizado, passou-se a uma análise do
atual cenário do Estado Democrático de Direito.
66
Viu-se que a avaliação crítica da linguagem através da metalinguagem nos
permite transcender barreiras impostas pela realidade cultural, crenças e
preconceitos, necessária para o reconhecimento de uma sociedade democrática e
autêntica.
A irrefutabilidade advinda de justificativas pressupostas como ―bem comum‖,
―função social‖, ―justiça‖, ou ainda pela existência de lacuna na lei, desconsiderandose, estrategicamente, direitos líquidos e certos, revela-se como uma saída de juízeshércules.
Percebeu-se que o procedimento arbitrário, parcial, apresenta-se como uma
superestrutura violeta, o que deve, a todo custo, ser questionado. Apenas o
argumento racionalizado pode ser falseado, criticado e possível de se tornar legítimo
em uma sociedade democrática. Caso contrário, seria admitir um retrocesso em
relação às conquistas democráticas.
Logo, através do desenvolvimento do trabalho, pude concluir que a proposta
da teoria neoinstitucionalista de promover a dessubjetivação do conhecimento ou
objetividade linguística é, além de coerente, indispensável para a reconstrução de
práticas judiciárias em um Estado Democrático de Direito, onde, em muitos
momentos, o estado de exceção faz-se presente.
67
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