SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS: uma associação possível? Valdira Barros 1 Resumo: Aborda-se o tema da segurança pública, considerando o cenário social brasileiro. Analisa-se a natureza contraditória da política de segurança pública a partir da categoria controle social na perspectiva de Istvan Meszaros. Discute-se a relação entre direitos humanos e segurança publica, enfocando o processo de luta por direitos humanos e conquista da cidadania no contexto brasileiro, assim como as especificidades da atuação do sistema de segurança neste cenário. Palavras-chave: Segurança pública, controle social, direitos humanos. Abstract: Studying the issue of public safety, considering the Brazilian social scene. Analyzes the contradictory nature of the policy of public security from the category of social control in view Istvan Meszaros. Is analyzed the relationship between human rights and security issues, focusing on the process of fighting for human rights and gaining citizenship in the Brazilian context as well as the specific performance of the security system in this scenario. Key words: Public security, social control, human rights. 1 Mestre. Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected] INTRODUÇÃO A questão da segurança tem permeado o cotidiano das sociedades brasileira e mundial. No caso brasileiro devido aos crescentes índices de criminalidade noticiados constantemente na mídia, e no mundo, entre outros fatores, em decorrência das políticas de mundialização do capital que colocam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial. A sensação de insegurança propalada em escala mundial faz com que se multipliquem os discursos que clamam por mais segurança, servindo também para legitimar ações cada vez mais duras no enfrentamento à criminalidade, muitas das quais violadoras dos direitos humanos de comunidades inteiras. Em razão do exposto, a questão da segurança pública e em particular da atuação policial, tem se tornado objeto de inúmeros trabalhos acadêmicos. E é nesta perspectiva, que apresento este artigo, buscando analisar a questão da segurança pública no contexto da luta por direitos humanos, enfocando a natureza contraditória desta política, que se coloca como mecanismo de proteção do cidadão e como estratégia de controle pelo capital. 1. SEGURANÇA PÚBLICA: UMA SITUAÇÃO EM DEBATE NO CENÁRIO SOCIAL BRASILEIRO. Nas últimas duas décadas, o tema da segurança pública tem se destacado no cenário nacional, pelos elevados índices de violência urbana, e pelas deficiências dos métodos e técnicas adotados pelos sistemas de segurança pública para controlar a escalada dessa violência. A recorrência do tema na cena pública brasileira seja por noticiários na imprensa periódica, seja por programas de rádio e televisão que promovem a “espetacularização” do crime e da violência, cria uma sensação de medo e insegurança na população. Esta ambiência torna-se propicia para a disseminação dos chamados discursos da “lei e da ordem”, que propõem alternativas conservadoras e antidemocráticas para resolução do problema da segurança pública, e ferem, inclusive, algumas garantias constitucionais. Nesta perspectiva, Ana Lúcia Sabadell nos diz que ...atualmente, as políticas de segurança interna estão sendo dominadas por conceitos como “erradicação da violência”, “medo da criminalidade” e “luta contra o crime”. Nesse sentido, as políticas de segurança constituem uma política simbólica que tenta legitimar a repressão por parte do Estado, explorando a “insaciável necessidade de segurança” propalada pelos políticos e pela mídia. (SABADELL, 2003, p. 9) Parto do pressuposto de que a questão da segurança pública não pode ser analisada isoladamente, dissociada, por exemplo, de temas correlatos como violência, direitos humanos e conjuntura social. Nesse sentido, o aumento da criminalidade violenta, é associado, entre outros fatores, às políticas de ajuste econômico, que agravaram as desigualdades sociais já existentes no país, colocando milhares de brasileiros em situação de extrema pobreza e de vulnerabilidade social, uma vez que não se apresentam perspectivas de transformação desta realidade. Concordo com Paulo Sérgio Pinheiro, quando este afirma que existe um elo entre pobreza e violência, não como uma relação mecânica e direta entre pobreza e crime violento, mas é imperativo considerar como os fatores de desigualdade afetam o problema de crime na América Latina[...](PINHEIRO, 1997, p.46) 2. A SEGURANÇA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL PELO CAPITAL. É corrente em meio aos movimentos sociais brasileiros o entendimento de que o controle social seria uma estratégia própria da chamada sociedade civil organizada para o monitoramento das políticas públicas e para a garantia dos direitos sociais. Essa estratégia teria os conselhos setoriais de políticas públicas como espaços privilegiados de participação, e sua fundamentação legal na lei maior do país, a Constituição Federal de 1988. No entanto, Istvan Meszaros no ensaio A necessidade do controle social traz a lume elementos que denotam a complexidade desta categoria. A partir deste autor inferese que o controle social configura-se também em uma estratégia de dominação adotada pelo capital, ou seja, o controle social não pode ser concebido somente como uma estratégia de caráter emancipatório. Ainda na tentativa de melhor configurar o controle social na perspectiva de Meszaros, recorro ao trabalho de Marina Maciel Abreu, que alicerçada no pensamento deste autor, esclarece: O controle social apresenta-se como uma necessidade inerente ao movimento de acumulação do capital. O capital é, antes de tudo, segundo MESZAROS(1999), uma modalidade de controle do metabolismo social, constituída mediante uma objetivação alienada dessa função, “como um corpo reificado separado e em oposição ao próprio corpo social” (MESAROS, 1993, p. 33). Apresenta-se como uma”estrutura totalizante de controle à qual tudo o mais, inclusive os seres humanos deve se adaptar, escolhendo entre provar sua viabilidade ou perecer.” (ABREU, 2002, p. 127) De acordo com ABREU (2002), nesta perspectiva o exercício do controle social supõe coerção/força, assim como ação persuasiva/educativa (ABREU, 2002, p. 128). Neste aspecto, considero imperativo sublinhar a função da segurança pública como instrumento privilegiado do controle social, haja vista sua configuração como aparato coercitivo do Estado. Cabe destacar que o Estado, no processo de controle social pelo capital, erige-se como um componente estrutural do comando político do capital, dotado de uma superestrutura jurídico-política e ideológica e seus aparatos coercitivos e educativos (ABREU, 2002, p. 129) com a função de salvaguardar de modo mais ou menos permanente as realizações econômicas do sistema, mediante ação terapêutica face às fragmentações inerentes ao capital(ABREU, 2002, p. 129). Feitas estas demarcações preliminares acerca do processo de controle social pelo capital, assim como do papel do Estado nesse processo, passo a configurar a natureza estratégica da segurança pública como instrumento do controle social no aspecto coercitivo. É notório que a principal instituição integrante da política de segurança pública é a polícia, que já nasce com a marca do controle social pelo capital, na medida em que a principal motivação para sua estruturação enquanto aparato repressivo do Estado na modernidade era a contenção das revoltas populares decorrentes das revoluções burguesas e das transformações capitalistas pós-Revolução Industrial. Conforme nos indica Marcos Rolim: Entre os historiadores, a opinião mais comum é a de que o fator imediato responsável pela formação das modernas forças de “policia” foi a emergência de um sem-número de revoltas populares e desordens de rua na maior parte dos países europeus e a incapacidade dos governos para continuarem lidando com elas através da convocação de tropas do Exército. [...] Era preciso, então, uma estrutura “permanente” e profissional que estivesse sempre nas ruas. Foi assim que nasceram as polícias modernas.(ROLIM, 2006, p.25) A configuração da Polícia como mecanismo de controle social fica evidenciada também nas palavras de José Vicente Tavares, em artigo que analisa os modelos de policiamento francês e inglês, os quais influenciaram a formação dos aparatos policiais no mundo ocidental. De acordo com este autor, na França a revolução burguesa provocava a necessidade de controlar os novos ilegalismos que emergiam enquanto atentado ao direito de propriedade e ameaça à construção do regime disciplinar do capitalismo industrial. (TAVARES, 1997,p. 159). No entanto, será na Inglaterra que a organização da polícia como instituição de controle da ordem pública dirigida contra as classes populares aparecerá mais claramente, voltando-se para contenção das desordens coletivas e do movimento operário cartista, o qual representaria uma ameaça para a ordem social estabelecida.2 A faceta da organização policial como instituição de manutenção da ordem capitalista também ficou evidenciada no caso da sociedade brasileira, conforme estudo de Heloisa R. Fernandes sobre a Força Pública de São Paulo no período da Primeira República, citado por José Vicente Tavares: ...a ordem urbano-industrial carrega em seu bojo a necessidade de manter através de uma força repressiva aperfeiçoada e burocratizada a integração das classes sociais. É esta imposição da própria estrutura de classes que explica o processo de aperfeiçoamento institucional de sua força mantenedora – ou restauradora – da ordem (FERNANDES, 1973, p. 162, 251 apud TAVARES, 1997, p. 160) A origem da organização policial como instância de controle social a serviço do capital, nos remete a um questionamento quanto à viabilidade de que a outra faceta dessa instituição ligada à defesa da vida possa um dia se sobressair. Neste aspecto, cabe uma reflexão quanto à contraditoriedade da luta por segurança pública no contexto dos movimentos de direitos humanos. 3. A SEGURANÇA PÚBLICA NA AGENDA DOS MOVIMENTOS DE DIREITOS HUMANOS: o caráter contraditório dessa luta. A luta pela garantia dos direitos humanos, a despeito de eventuais questionamentos acerca do caráter universalista do que se compreende por direitos humanos, é reconhecida por aglutinar indivíduos e organizações que se mobilizam no cotidiano para fazer valer o princípio da dignidade humana, o qual constitui o fundamento maior dos direitos humanos. 2 Nesta análise José Vicente Tavares cita trabalho de Jean-Louis Loubet del Bayle(1992), intitulado La police:approche sócio-politique. Paris, Montchrestien. O que se compreende como conteúdo dos direitos humanos na atualidade é resultado de um processo de lutas sociais e de conquistas, no qual entraram em cenas diversos atores, considerando os diversos interesses em disputa em cada momento histórico. Atualmente, o Brasil conta com uma Constituição Federal considerada avançada, por ter sido resultado de um intenso processo de discussão protagonizado por setores da sociedade civil organizada, contemplando demandas dos mais diversos segmentos dos movimentos populares, que se organizaram durante a Constituinte para assegurar no texto constitucional o respeito aos seus direitos. Em função disso, esta Constituição foi apelidada de “Constituição Cidadã”. A promulgação da Constituição Federal de 88 fez brotar um sentimento de esperança na transformação da realidade social brasileira, marcada por um modelo econômico concentrador de renda e pelo predomínio de relações sociais clientelistas e discriminatórias. Pela primeira vez na história do país, a Constituição seria cunhada pelas mãos de milhares e milhares de brasileiros, que carregavam a expectativa de que seus direitos agora fossem de fato efetivados. De acordo com Cláudio Salvadori Dedecca: A década de 1990 constitui um período de grande expectativa para a sociedade brasileira. A promulgação da nova Constituição nacional, no final da década anterior, foi marcada pela definição de diretrizes econômicas e sociais que carregavam grande esperança de uma retomada do crescimento econômico que favorecesse a superação do atraso da questão social (DEDECCA, 2002, p.109). Contudo, o que se observa logo após, com o Governo Collor é o início do processo de desmonte dessa Constituição no plano material, pela implementação de políticas neoliberais orientadas pelo Consenso de Washington e pelas agências de financiamento internacional (FMI, BIRD), com o objetivo de promover o chamado “ajuste fiscal” nos países endividados. Em nome desse ajuste fiscal tudo seria justificado. Com isso tem-se as privatizações, os cortes com gastos sociais, enfim, o privilegiamento do econômico em detrimento do social, sendo que muitos daqueles direitos inscritos no texto constitucional ficam limitados ao plano formal. Desta forma o país convive com a dualidade de ao mesmo tempo em que dispõe de uma legislação considerada democrática e garantidora de direitos, no plano material perpetua uma realidade de negação e violação de direitos de cidadania. Conforme assevera Dornelles A ordem constitucional democrática brasileira efetivamente não assegurou a plenitude das práticas democráticas e da cidadania para a maior parte da população brasileira, deixando prevalecer os “pontos negativos” que aparecem através da violência física, da discriminação étnico-racial (índios e negros, entre outros), do sexismo, da corrupção, do não-acesso á justiça, da criminalidade, das brutalidades policiais, da tortura, dos maus-tratos, e de um sistema penal que centra a sua atuação contra a população pobre e miserável (DORNELLES, 2003, p.114). A realidade vivenciada pela maioria dos brasileiros contrapõe-se ao discurso legalista e retórico da cidadania plena e universal, uma vez que estes “cidadãos” brasileiros convivem com a violação cotidiana e sistemática de seus direitos de cidadania. Neste cenário, arrisco-me a afirmar que a política de segurança pública, mais do que qualquer outra traz no seu bojo a marca da contradição, haja vista que sua finalidade principal é assegurar a manutenção da ordem pública, o direito a vida e o patrimônio. Mas de que ordem está se tratando? De uma ordem pautada nas desigualdades sociais, na concentração de renda, na defesa do patrimônio e da propriedade privada, portanto, uma ordem que fere o princípio da dignidade humana, uma ordem que por essa razão também produz a própria desordem. Em que pese haver todo um movimento no campo teórico e das lutas sociais no sentido de reformular ou ampliar o conceito da política de segurança pública, tentando concebê-la como uma política que seria assecuratória de direitos humanos e da cidadania, não se pode deixar de analisar o sentido histórico dessa política e sua importância estratégica para o controle social pelo capital. Basta lembrar que a polícia, que pode ser vista como a espinha dorsal do aparato de segurança pública, foi concebida como mecanismo estratégico de contenção das lutas sociais nos séculos XVIII e XIX e que o capital recorre a meios educativos para manutenção da sua estrutura e dominação, mas quando estes não funcionam ou perdem sua eficácia ele recorre aos meios coercitivos, no caso as forças de segurança, em especial a polícia. O que se evidencia na dinâmica do sistema segurança é uma atuação pautada na seletividade dos casos a serem apurados. Pressuponho que concorrem para isso diversos fatores, inclusive o grau de complexidade do crime a ser investigado. Contudo, há que se destacar o chamado lugar social das partes envolvidas nesta seleção, o qual compreende desde as condições sócio-econômicas materiais das vítimas (no caso em análise) até as representações presentes no imaginário da sociedade e da polícia. Um outro aspecto a ser considerado na institucionalização dessa forma seletiva de atuação diz respeito á própria natureza e formação da organização policial. Nesse sentido, João Ricardo Dornelles afirma que: A polícia brasileira apresenta, na sua ação, a marca bem nítida da opção de classe, da sua natureza preconceituosa e racista, mesmo considerando que os seus agentes, em grande parte, também são originários das classes, grupos ou segmentos “vulneráveis” e dos grupos raciais regularmente atingidos (DORNELLES,2003 p.78). Estas interpretações do chamado modus operandi policial são enfaticamente rechaçadas pelas autoridades que conduzem os órgãos de segurança pública, as quais justificam os erros, falhas e condutas ilícitas praticadas com diversos argumentos, como o número reduzido de policiais, a falta de equipamentos modernos e até mesmo a existência de “resquícios” de uma cultura autoritária. Como alternativa, propõem a realização de concursos públicos para contratação de mais policiais e o investimento em equipamentos, que propiciem a “modernização” da polícia. Aliás, esta é uma concepção que está entranhada em toda a sociedade. Marcos Luiz Bretas, em trabalho intitulado “Obervações sobre falência dos modelos policiais”, argumentando sobre a necessidade de se discutir as especificidades dos modelos policiais afirma: Ao mesmo tempo em que se clama contra a falência da polícia, existe uma dificuldade imensa em pensar alternativas, na medida em que a idéia genérica de polícia permanece. A fórmula utilizada tem sido em geral clamar pelo “mais do mesmo”, quer dizer, para resolver a crise são necessários mais policiais, penas mais duras, etc (BRETAS, 1997, p.80). O desafio para as organizações que lutam pelos direitos humanos e por uma política de segurança pública pautada no princípio da dignidade humana é não cair na armadilha do discurso “mais do mesmo” a que se refere BRETAS, e questionar a polícia como instituição de manutenção de uma ordem destrutiva, que coloca em cheque a sobrevivência da própria humanidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pese a complexidade da temática e as limitações deste artigo, a proposta era trazer para o debate acerca da relação entre luta por direitos humanos e segurança pública, as questões de fundo que envolvem a luta por direitos e a atuação das forças de segurança, em particular a polícia. A luta por direitos humanos, para fazer valer o princípio da dignidade humana, deve ser acima de tudo uma luta contra uma ordem social excludente, destruidora da dignidade humana. No contexto capitalista, o cerne da segurança pública é a manutenção dessa ordem, é a defesa do patrimônio muito mais que a defesa da vida. Em razão disso, os movimentos de direitos humanos devem estar atentos à a natureza contraditória da política de segurança pública e não sucumbir na esperança de transformação do conteúdo dessa política. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Marina Maciel. O controle social e a mediação da política de assistência social na sociedade brasileira na atualidade: indicações para o debate.Rev. Políticas Públicas.V. 6, N.1.São Luís: EDUFMA, p. 126-145 2002. BRETAS, Marcos Luiz. Observações sobre a falência dos modelos policiais. Tempo Social Revista de Sociologia da USP, v.9, n.1, p.79-94, maio, 1997. DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania.In: Os anos 90: política e sociedade no Brasil.org. Evelina Dagnino.São Paulo:Brasiliense, 1994. DEDECCA, Claudio Salvadori. Anos 1990: a estabilidade com desigualdade.In: Além da Fábrica:trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo, 2002. DORNELLES, João Ricardo W. 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