1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Patrícia Casoy DIREITO E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO São Paulo 2006 2 Patrícia Casoy DIREITO E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Orientador: Prof. Dr. Alysson Leandro B. Mascaro São Paulo 2006 3 Casoy, Patrícia Direito e Educação: Políticas públicas no Sistema Educacional Brasileiro / Patrícia Casoy. – 2006. 85f; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2006. Bibliografia: f. 81-85. 1. Direito. 2. Educação – Educação Básica. 3. Política Pública. I. Título. 4 Patrícia Casoy DIREITO E EDUCAÇÃO: POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico. Aprovada em agosto de 2006. Banca Examinadora ______________________________________________________ PROF. DR. ALYSSON LEANDRO. B. MASCARO Universidade Presbiteriana Mackenzie ______________________________________________________ PROF. DR. GILBERTO BERCOVICI Universidade Presbiteriana Mackenzie ______________________________________________________ PROFª . DRª . MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES Universidade de São Paulo 5 Aos meus pais, por toda força, amor, carinho e incentivo. À minha querida irmã Tatiana. Ao professor Alysson Leandro Mascaro, mestre e amigo, com quem sempre dividirei a busca pelo justo. 6 Agradecimentos Agradeço ao programa de Mestrado em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na pessoa de seu coordenador, o ilustre Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto; A todos os meus queridos amigos, em especial Ilan Kruglianskas, primeiro a incentivar-me a ser protagonista nesta jornada; Giovana Barbosa de Souza, pelo auxílio na produção deste trabalho, obrigada pela alegre e doce companhia em minhas novas descobertas; e Denise Harari, irmã e amiga, pela constante força e cuidado. Aos amigos e colegas do curso de Mestrado, Renato Aparecido Gomes, Evandro Zuliani e Silvio Luis de Almeida. À querida professora Maria Victoria Benevides, pelas valiosas dicas na banca de qualificação, disponibilidade e doçura, minha completa admiração. 7 "O homem razoável adapta-se ao mundo; o homem que não é razoável obstina-se a tentar que o mundo se lhe adapte. Qualquer progresso, portanto, depende do homem que não é razoável." George Bernard Shaw 8 Resumo O presente trabalho tem a intenção de promover um debate institucional entre o direito e a educação, duas poderosas ferramentas para a transformação social, além de apontar a importância das políticas públicas como agentes de aproximação entre lei e realidade posta. Ao longo do texto, procuraremos demonstrar como ambos têm o condão para transformar ou para manter a ordem vigente, consubstanciada hoje na lógica capitalista, que segrega social e economicamente, os indivíduos da sociedade moderna. Desta maneira, a primeira parte do trabalho se concentrará na análise desta dualidade, na contradição ínsita aos dois elementos no âmbito da estrutura das relações sociais. Em seguida, procuraremos construir um pequeno panorama da Educação no Brasil de hoje, entrelaçando aspectos teóricos e práticos das concepções acerca da Educação. Na investigação teórica, discutiremos o alcance ideal da Educação, qual seja o da formação de indivíduos artífices plenos de sua cidadania. Assim, esta qualidade de Educação é posta como única alternativa para que os indivíduos se emancipem à categoria de atores sociais conscientes e disseminadores dos valores de justiça, solidariedade e democracia. No que tange à investigação prática fragmentaremos, num primeiro momento, o sistema educacional brasileiro, com recorte na educação básica (que engloba a educação infantil e os ensinos fundamental e médio) de modo a facilitar a análise de sua legislação, estratégias e ações. Neste mesmo panorama, se investigará também a atuação da sociedade civil organizada. Ao final da dissertação, os esforços se concentrarão em identificar as conquistas e falhas que permearam e permeiam o processo da consolidação dos princípios, direitos e garantias da Carta de 88, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Palavras-chave: Direito; Educação – Educação Básica; Políticas Públicas; Cidadania, Emancipação. 9 Abstract The present dissertation aims at promoting an institutional debate between education and law, two powerful tools to social transformation, besides revealing the importance of public policies as helpers for an approximation between law and today’s reality. Throughout this text, we will try to demonstrate how these two items actually possess a magic wand to change or maintain the order in force, currently based on the capitalist logic, which promotes social and economic segregation of modern society individuals. Thus, the first part of this work will focus on the analysis of this duality, this contradiction present in both elements, on the structure of social relations level. Next, we will try to depict a brief view of today’s Education in Brazil, mixing theoretical and practical aspects of the definitions of Education. During the theoretical investigation, we will discuss the ideal performance of Education, as means to form individuals responsible for their own full citizenship. Thus, this Education quality is presented as the only way for the emancipation of individuals to the level of conscious social actors, disseminating values such as justice, brotherhood and democracy. As far as practical investigation goes, we will fragmentate, at first, the Brazilian educational system, focusing on basic education (which comprises kindergarten, elementary and high school), so as to facilitate the analysis of its laws, strategies and course of actions. On the same view, we will also investigate the role of organized civil society. At the end of the dissertation, we will concentrate our efforts on identifying the conquests and flows that have characterized and still characterize the principles consolidation process, rights and guarantees of the Federal Constitution of 1988, from the Child and Adolescent Statute, and of the Directions and Basis of National Education Law. Key-words: Law; Education – Basic Education; Public Policies; Citizenship; Emancipation. 10 ÍNDICE INTRODUÇÃO ..................................................................................... 1 I. EDUCAÇÃO PARA UMA SOCIEDADE DESEDUCADA 1. A Justiça na dialética do Direito nos dias atuais.................................... 6 2. O papel da Educação............................................................................ 13 II. ASPECTOS POLÍTICO-JURÍDICOS DA EDUCAÇÃO 1. Introdução ............................................................................................ 26 2. A infância e a juventude na pauta jurídica internacional ..................... 27 3. A estrutura jurídica dos direitos da infância e da juventude ..................30 3.1. Histórico: o processo de construção da Lei estatutária .......... 30 3.2. O Estatuto da Criança e do Adolescente hoje ........................ 33 4. Legislação educacional brasileira........................................................ 36 4.1. A educação nas Constituições Federais ................................ 36 4.2. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ............... 39 4.2.1. Um breve histórico ................................................... .39 4.2.2. Uma leitura crítica da Lei nº 9.394/96 ....................... 42 4.2.3. Competências ........................................................... 45 5. O sistema de garantia dos direitos previstos........................................ 47 5.1. A filosofia do Estatuto ............................................................ 47 5.2.Os Conselhos de Direitos ....................................................... 50 5.3. A atuação do terceiro setor .................................................... 51 11 III. O DESCOMPASSO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FRENTE À REALIDADE EDUCACIONAL BRASILEIRA 1. Conceito de Política Pública............................................................... 55 2. As propostas do Estado Brasileiro...................................................... 57 3. Orçamento para a Educação.............................................................. 65 3.1. Aspectos Gerais .................................................................... 65 3.2. Passos para a elaboração do orçamento federal ................... 66 3.3.Justificativas para o investimento em educação ...................... 68 3.4. Perspectivas e conclusão ....................................................... 72 IV. ESPERANÇAS DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA... 75 CONCLUSÃO.........................................................................................78 BIBLIOGRAFIA..................................................................................... 81 12 INTRODUÇÃO Embora norteado por uma carta constitucional há muito esperada, o Brasil ainda não conseguiu erradicar suas mazelas sociais. Não obstante venha se assistindo à intensificação de movimentos de mudança, a maioria das conquistas é isolada, causando pouco impacto. O Estado continua a procurar a solução para a realidade da desigualdade socioeconômica brasileira apenas na elaboração de leis e construção de programas sociais incipientes, mergulhados no caráter assistencialista. Conseqüentemente, perdura a realidade social das diferenças e da injustiça, que emoldura o diário aviltamento aos direitos fundamentais dos indivíduos da nossa sociedade. O reconhecimento e conquista de direitos e garantias ficam no limite da letra da lei, não se traduzindo em realidade palpável. Este Direito que aí se coloca não é suficiente para resolver as questões sociais mais que urgentes de nosso país, já que seus esforços estão centrados apenas no caráter do formalismo jurídico, e não na distribuição de eqüidade e justiça. O constante fazer e refazer de leis não é a prática essencial da democracia, é apenas o uso hipócrita não somente dela, mas também do instrumento mais importante para sua conservação, o próprio Direito. Em um país que perpetua a proteção de interesses de restritos grupos em detrimento dos da maioria da população, onde reside o Direito que pode levar à justiça e à democracia? 13 Verifica-se, sem muito espanto, a velha dissociação entre teoria e prática; o Brasil foi pioneiro ao concretizar, em forma de estatuto, a doutrina da formação integral de crianças e adolescentes, para elevá-los à condição de sujeitos de direitos. Contudo, dados oficiais demonstram que a realidade de milhares de crianças e adolescentes brasileiros distancia-se da do enunciado claro da letra da lei. Outrossim, desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, texto que nasceu já com o respaldo filosófico do Estatuto da Criança e do Adolescente, no tocante à defesa de um público portador de direitos específicos dada a sua condição de seres em desenvolvimento, já se passaram dez anos. À época, não vinha solitária: a viabilização da Lei de Diretrizes e Bases da Educação já estava estruturada pelo Plano Nacional de Educação3, que previa, no prazo acima mencionado, as implementações e concretizações de mudanças que revertessem o quadro da infância e adolescência brasileiras, tido como preocupante. Recentemente, foi divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) o Relatório sobre a Situação da Infância no Brasil. Ele aponta que, no tocante à legislação, o país apresentou um avanço nos últimos anos. A grande dificuldade, conclui o documento, é fazer com que as leis sejam cumpridas. Há um grande esforço no sentido de se elaborar as leis, mas nenhuma atenção é dispensada à fiscalização do seu cumprimento ou à punição pelo seu descumprimento. É exatamente nesta lacuna que o Brasil aprofunda suas diferenças, e consagra a celebrada igualdade formal, presente nos discursos da elite 3 Muito embora o Plano não consolidasse, efetivamente, soluções objetivas às falhas que à época já se identificavam no sistema educacional brasileiro, devemos considerá-lo como um importante ponto de partida para a viabilização prática da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 14 econômica, traduzidos em leis. E é precisamente nesta lacuna que devem operar as políticas públicas, concretizando as boas intenções que inspiraram mudanças para a transformação social. Assim, colocam-se duas relações dialéticas sobre as quais buscaremos refletir ao longo destas linhas. A primeira, fundamental, é a contradição dentro do próprio Direito e da própria Educação: ambos podem ser tanto instrumentos mantenedores como transformadores da dinâmica social posta, cujas regras são ditadas pela lógica capitalista; a segunda é a contradição que ocorre nas relações sociais que produzem constantemente remédios inócuos, formatados para dirimir as injustiças sociais. Ou seja, os produtos tanto do Direito quanto da Educação, destinados a abordar e resolver problemas específicos no sistema educacional brasileiro, ainda são falhos. Em relação à segunda dialética posta, percebemos que a plena transformação social só ocorrerá quando as contradições forem abordadas do ponto de vista estrutural das relações sociais. Enquanto isto não ocorrer, continuaremos a priorizar a elevação do superávit primário em detrimento da não-liberação do recurso total destinado ao Programa de Desenvolvimento da Educação Infantil. Ou seja, os aspectos que cuidam da preservação do capital vêm à frente e com prioridade absoluta sobre questões que privilegiem o ser humano em seu desenvolvimento pleno. Sim, é sabido que a desigualdade em nosso país é histórica, e ainda não há vontade política suficiente que a conduza ao seu fim. Mas há vontade para 15 fazer uso dos instrumentos democráticos de pressão desta vontade política. E, alegremente, no campo da educação, temos colecionado pequenas conquistas, já que esta vem se tornando uma prática crescente. Como exemplos temos o movimento da sociedade civil para a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, há pouco mais de quinze anos atrás e a mobilização em torno do FUNDEB hoje. Todavia, há concorrência dentro do próprio segmento educacional. Educação básica e ensino superior disputam a atenção nacional nos últimos anos para conquistar uma fatia maior do investimento do Estado. Este, diga-se de passagem, ainda não definiu, em dez anos de vigência da Lei de Diretrizes e Bases, seu plano de prioridades na educação. Não basta garantir o direito à educação como fundamental, é necessário que o Estado forneça condições para que todos possam usufruir desse direito. Entretanto, o Estado brasileiro não logrou ainda alcançar uma educação pública nacionalmente democrática, nem em relação ao seu conteúdo, nem no tocante à acessibilidade. O desafio é, sem dúvida, gigantesco. Contudo, ele deve ser encarado de maneira crítica, evitando que intervenções de caráter assistencialista ganhem o status de consolidação da transformação social em marcha. As soluções fáceis, que suprimem as angústias em sua superfície são, na realidade, a negação da emancipação do indivíduo de sua condição social mergulhada na desigualdade e injustiça. 16 Mas, se são difíceis as soluções – tanto para identificá-las como para colocá-las em prática - de que vale a retórica da justiça? O valor dessa retórica está na provocação da indignação. Enquanto ainda formos capazes de nos indignar, saberemos que não temos que nos contentar com a liberdade de escolher apenas entre destinos indignos ao ser humano. 17 CAPÍTULO I Educação para uma sociedade deseducada 1. A justiça na dialética do Direito nos dias atuais A dialética primeira que se coloca em questão é em relação à escolha que os indivíduos devem fazer quanto ao papel social que desempenharão enquanto cidadãos: o de meros espectadores da história, ou seus atores, artífices de mudanças de uma realidade insatisfatória no que diz respeito à dignidade humana. A partir do momento em que pensamos o mundo de maneira consciente, lutando para manter uma visão crítica do mesmo, fugindo à conformidade em relação à realidade posta, já envergamos o segundo papel. Partindo de um ponto de vista otimista, apoiado no pressuposto que o ser humano em essência é bom, conclui-se que todo o indivíduo busca a felicidade, tanto no âmbito privado (que concentra seus desejos e sentimentos humanos, buscando ao atendimento de suas necessidades básicas para a sobrevivência), como no âmbito público (espaço em que o indivíduo lança-se ao mundo, realizando suas atividades sociais, produzindo objetos que garantam não apenas sua própria reprodução, mas também a do mundo). Para que os indivíduos alcancem a felicidade coletivamente, ou seja, no espaço público, a sociedade deve ser justa. A justiça é uma prerrogativa para a existência da felicidade no âmbito social. 18 Mas qual é o significado desta justiça social? No intuito de empreender uma tentativa para determiná-lo, há que se proceder a uma análise da estreita1 articulação existente entre justiça e Estado. Assim, deve-se compreender as diversas interpretações de justiça de acordo com o tempo histórico em que estão inseridas, ou seja, de acordo com a forma de Estado instaurada. O Estado liberal, individualista por excelência, guardava, igualmente, esta característica em relação à justiça. Esta dizia respeito, sobretudo, à proteção do direito individual da propriedade privada, que conseqüentemente se distanciava do conceito aristotélico de justiça distributiva, a partir da equidade. Assim, com a ruptura da ordem econômica feudal, imutável por natureza, instaura-se a máxima da igualdade de todos perante a lei: o que era tido como justo pela burguesia nada mais era do que a universalidade do Direito. Assistia-se ao fim dos privilégios absolutistas, e a inauguração de uma suposta convivência de iguais, com base nos conceitos de liberdade formal e direitos civis. Fim de privilégios para uns, início deles para outros, que, para igualmente preservá-los de maneira absoluta, encontraram habilmente no Direito um meio para fazê-lo. Lança-se mão do positivismo jurídico (o que está posto por lei é o justo), que mascara as desigualdades da vida econômica do homem, legitimando a 1 ESTEVÃO, Carlos V. Educação, justiça e democracia: um estudo sobre a geografia das injustiças em educação. São Paulo: Cortez, 2004. p. 11: “É possível pensar, então, as relações entre justiça e o Estado como relações íntimas, embora não se possa dizer que a justiça seja instaurada pelo Estado (apenas lhe confere um carácter público). Por outro lado, a justiça para o Estado não é só uma questão funcional ou acessória mas tem a ver, também, com a sua legitimação, interferindo inclusive, na definição de sua própria natureza (Fisk, 1989)”. 19 transferência dos privilégios outrora fervorosamente combatidos. Conforme ilustra o Prof. Alysson Mascaro:4 O universal é essencialmente o burguês. A burguesia é a classe universal, e um direito universal esconde no fundo a sua grande perversão: a luta por dizer que todos são iguais perante a lei acaba com o antigo privilégio absolutista, mas esconde as diferenças de fundo que são o eixo de estrutura da sociedade moderna. (...) A diferença entre exploradores e explorados, o conflito de classes e a desarmonia latente da sociedade somem perante a concórdia promovida pelo direito. A instância política e jurídica da vida social apaga as diferenças profundas da própria vida produtiva. Inauguram-se, numa superfície político-jurídica de iguais, a cidadania, a liberdade formal e os direitos civis, e enterram-se longe das vistas da sociedade as desigualdades da vida econômica do homem. Assim, a associação de uma legalidade abstrata a um comando impessoal, aliada a uma lógica imperativa, racional, fruto de um mundo politicamente organizado, acabaram por consolidar, pacificamente, as injustiças sociais daquela época. Em oposição a este modelo surge o Welfare State (Estado Social), que propugnava a justa distribuição dos benefícios sociais, defendendo um padrão comum de justiça, inclusive entre grupos com interesses incompatíveis. É o que constata Estevão5 O Estado social visava, de facto, compensar as desigualdades e as injustiças e assegurar sobretudo os direitos sociais. Isto não significava, porém, que houvesse necessariamente mais justiça social. É que o Estado social servia uma multiplicidade de funções (promoção da economia, estabilidade da governação, procura de bem-estar social, por exemplo) nem sempre compatíveis entre si e funcionava não 4 MASCARO, Alysson Leandro. O direito para a transformação social in Fronteiras do Direito Contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p.8. 5 ESTEVÃO, Carlos V. Educação, justiça e democracia: um estudo sobre a geografia das injustiças em educação. São Paulo: Cortez, 2004, p. 13. 20 apenas para reconciliar a democracia com o capitalismo mas também para reproduzir o capitalismo através de mecanismos de manutenção de um alto patamar de procura (...). Nos dias de hoje, dentro do Estado neoliberal de direito, presenciamos o resgate da essência dos conceitos de igualdade, bem comum e justiça. O bemestar não mais é um direito reclamável; a justiça passa a ser um produto do próprio mercado, e os pilares do Estado liberal, acima mencionados, vêm situados no livre jogo dos mercados internacionais. Assim, ao longo da história, o conceito de justiça vem sendo objeto de diversas e conflituosas interpretações, passando pelas filosofias concernentes ao direito natural, ao utilitarismo e ao marxismo, para citar algumas. Percebe-se, pois, a complexidade das relações entre justiça e Estado. Feito este breve esclarecimento, passemos ao questionamento de como utilizar as ferramentas já existentes para efetivamente alcançar-se a justiça. Dentro deste raciocínio, cabe frisar que inócua seria qualquer discussão acerca da ordem social como se esta estivesse desvinculada da ótica econômica. E que a justiça não está, portanto, limitadamente inserida na legalidade formal, como afirmam os positivistas. Se assim o fosse, uma das piores mazelas sociais hodiernas, qual seja, o trabalho infantil, não mais existiria em virtude da ratificação, pelo Brasil, de Convenções Internacionais sobre o tema, ou da aprovação de leis específicas que o coíbem. Existe uma ordem econômica que agasalha a prática inescrupulosa do trabalho infantil; ela deve ser questionada, inclusive, no estratégico e oportuno 21 momento em que a sociedade brasileira assiste a cortes no orçamento federal destinado à infância e à juventude. A legalidade não é sinônimo de democracia, embora seja freqüentemente hasteada como sua principal bandeira. É, sem dúvida, uma condição para a sua existência. No entanto, assim como o processo democrático é dinâmico e deve constantemente ser revisto e discutido, o mesmo deveria ocorrer com a legalidade formal que o ampara, para que esta não seja um mero tecnicismo intocável da essência democrática. O Direito não se limita, portanto, à estrita legalidade. Ele vai muito além de um conjunto de normas jurídicas reguladoras da vida social, ele é, a própria busca da justiça: Não é que o direito (a busca do justo) possa prescindir de regras. Elas são necessárias, desde que o direito aí esteja relatado (entendendo-se a regra como o relato breve da coisa justa) seja emergente da justiça (virtude) com os olhos voltados para o econômico. Neste sentido, o justo é a verdade; e o econômico é identificado com a verdade ontológica. A ponte entre o justo e a verdade é o cuidado, a necessidade de sobreviver no cotidiano mundano; e muito mais do que isto, o justo, autenticamente, é a realização do ser, em geral e de cada um. (grifo da autora)6 Voltando-nos à ordem econômica vigente, esta indica, contudo, que o único caminho de sobrevivência possível é o da adaptação e dependência de situações já existentes, e em relação às quais os indivíduos são impotentes. Sob 6 MAMAN, Jeanette Antonios. Fenomenologia existencial do direito: crítica do pensamento jurídico brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 90. 22 este prisma, o homem fica permanentemente condenado a uma situação de nãoemancipação, de não-liberdade, de não-justiça. Para superar esta questão, mais uma decisão deve ser tomada: escolheremos ser o sujeito (aquele envergado de autonomia, pronto para o questionamento crítico, pronto para pensar alternativas) ou o objeto (elaborar crítica sem perspectiva de possibilidade de mudança, de alternativa à lógica vigente, adotar postura conformista, adaptável à situação posta)? A gigantesca responsabilidade inerente ao Direito como sendo uma das ferramentas para a transformação social passa, infelizmente, desapercebida por muitos. Os chamados operadores do Direito (expressão que torna seus estudiosos e profissionais como meros reprodutores de uma técnica esvaziada de conteúdo, que os reduz – injustamente a todos, adequadamente a muitos - a bancos de dados legais, amorfos, sem consciência social e política) não podem esquivar-se de esforçar seu olhar não apenas para a constatação óbvia de que vivemos em uma sociedade injusta, mas que o próprio Direito é aliado poderoso, por vezes, na manutenção destas mesmas injustiças. É o que reitera o Prof. Alysson Mascaro7 Ao jurista, o dilema da transformação social é angustiante, pois que ele é agente e operador de um espaço dito público e democrático mas que, no fundo, é uma grande arena de domínio social e legitimação de injustiças. O investimento no direito, no diálogo, na possibilidade de argumentação, na possibilidade democrática, deve ser o investimento na possibilidade real de 7 MASCARO, Alysson Leandro. O direito para a transformação social in Fronteiras do Direito Contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 14 e 15. 23 argumentar, de ter voz, de saber dizer se já se tem voz, do contraditório efetivo. Esta ação do jurista é certamente angustiante, na medida em que os propósitos não se consubstanciam em realidades plenas, na medida em que as ações são incompletas, localizadas e circunscritas a uma situação estruturalmente opressora. No entanto, a resposta tradicional dos juristas, que é a de contemplação de seus castelos jurídicos, já não vai bastando como explicação de sua realidade.Seus impasses éticos no plano individual já não salvam suas almas em face de suas responsabilidades sociais. Viver pelo justo, cada vez mais, é entender o injusto social, é saber trabalhar não só tecnicamente mas politicamente com o direito (...). O sentido novo do direito, para uma maior justiça social e popular, não está no campo da própria legalidade apenas, não está também nos limites de nossa vontade individual, mas é antes um sentido social, prático, para a ação transformadora. Sob esta ótica, vale a pena esclarecer que, muito embora seja diversas vezes utilizado como mantenedor da lógica capitalista eminentemente injusta (que visa principalmente à proteção ao direito da propriedade privada e, às vezes, cordialmente lança mão de medidas de natureza demagógica), o Direito guarda em sua própria essência a capacidade de promover a justiça. A mesma contradição se verifica na Educação, que pode ser utilizada tanto para construir os indivíduos chamados por Freire de “homens livres”, quanto para prover uma formação técnica, burocrática, que dê aos indivíduos subsídios apenas para que encontrem função no mercado de trabalho. De frente para a dialética atual do direito, a oposição entre a igualdade jurídico-formal e a desigualdade sócio-econômica real, o abismo existente entre o aquilo garantido pelos instrumentos jurídicos e a realidade, percebe-se, cada vez mais, que a redenção coletiva ocorrerá quando da conquista do justo e, conseqüentemente, da felicidade. 24 2. O papel da educação “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. João Cabral de Melo Neto. Assim como o Direito, pode também a Educação8 ser utilizada tanto como ferramenta para a transformação como para a manutenção da desigualdade vigente. Theodor Adorno enxerga a educação como instrumento de erradicação da barbárie, a qual define como sendo o atual estado de contradição social, em que se assiste à evolução do mundo tecnológico e à involução do ser humano. O autor esclarece9 : Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação à sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade 8 Não se trata da educação jurídica, mas da educação em amplo sentido, enquanto formação humanista e aquisição de conhecimento aliados, esculpindo uma consciência crítica em cada indivíduo. 9 a ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3 edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 155-156. 25 primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. E completa seu pensamento ao dizer que a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade, composta por homens, mulheres e crianças sujeitos, não objetos. Enriquecendo este posicionamento está Paulo Freire, no qual enxergamos a similaridade da idéia de barbárie de Adorno nas conseqüências, propagadas pelo mestre brasileiro, da massificação. Esta “desintegra” o indivíduo do mundo em que ele vive, e assim, reafirma a lógica individualista. A massificação acarreta o “desenraizamento do homem. A sua ‘destemporalização’. A sua acomodação. O seu ajustamento.”10 Para o filósofo alemão, a educação seria a produção de uma consciência verdadeira, não apenas conformada à lógica posta. Daí que a emancipação (e é quase impossível não querer de pronto associar o emancipar ao educar) só ocorre quando da tomada de consciência. Quem deseja educar para a cidadania precisa ter muito claro quais são as falhas da democracia e, ainda assim, demonstrar que há maneiras de superá-las, para construir uma sociedade de indivíduos artífices de sua própria cidadania, uma sociedade, enfim, justa. Assim, esta tomada de consciência ocorre, em um primeiro momento, em relação à cidadania do próprio indivíduo. É ela pilar essencial quanto à revelação do papel social que cada um tem e dos direitos a cada um cabíveis e exigíveis. 10 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 28ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 50. 26 Desta forma, a educação deve ser voltada, desde o início, para a cidadania democrática. Segundo a visão da Profa Maria Victoria Benevides, é necessário que separemos as leis e princípios fundantes de liberdades e direitos da própria consciência de tais direitos, além da existência de mecanismos que garantam a sua prática, quando nos propomos a discutir a consciência da cidadania numa determinada sociedade. No Brasil, como resultado de uma necessidade de ruptura definitiva ao cerceamento da liberdade na época da ditadura, o país assistiu a todo um processo de abertura política, que culminou na promulgação da Constituição de 88, também conhecida como Constituição Cidadã. Referido processo colocou a salvo os direitos políticos, mas pôs um pouco de lado os direitos sociais. Um bom exemplo é a garantia do sufrágio universal, inegável conquista da democracia, mas que ainda assim não garante, apenas, mediante o livre direito de voto a todos os cidadãos, a dignidade de cada um deles. Os direitos políticos, por si sós, não conseguem obter a emancipação aqui tão discutida; só atingirão esse objetivo se forem exercidos em conjunto com os direitos econômicos e sociais. Desta forma, a prática da cidadania extrapola o simples ato de votar. Há que se atentar, neste contexto, pela não-redução ao binômio‘ excesso de verbalismo e ausência de conteúdo’, evitando incorrer, simplesmente, na defesa de alegoria democrática. 27 A bandeira da cidadania vem, cada vez mais, sendo referida nos diálogos da sociedade civil sobre sua relação com o Estado de Direito. Importante frisar que além da prática dos direitos, o conceito de cidadania engloba, outrossim, os deveres dos indivíduos para com a sociedade. A reivindicação dos direitos garantidos pela Carta Maior é, sem dúvida, de extrema importância para que a cidadania seja efetiva. Entretanto, não podemos nos esquecer de que todos nós, como cidadãos, temos o dever de contribuir para o desenvolvimento qualitativo da sociedade em que vivemos, e não apenas exigir dela o que nos é de direito. Não se trata de evocar o contrato social vislumbrado por Rousseau, já que o que se postula não são somente as concessões que devemos fazer para se viver em sociedade, mas também a postura necessária para que se efetive a cidadania plena. O meio em que esta ocorre não é o das relações de natureza privada; este lugar é o âmbito público, hoje cotidianamente aviltado pela falta de ética na política. A noção da exclusiva exigência dos direitos garantidos (e incontestáveis), sem a devida contrapartida e participação dos indivíduos à melhoria deste espaço público é meramente um ato individualista. Identifica-se, pois, a necessidade de mudança de paradigma, cujo embrião está na disseminação de uma educação para a cidadania. É a educação sonhada por Paulo Freire, dirigida para a decisão, para a responsabilidade política e social. E ao falar-se em educação para a emancipação, segundo Adorno, ou em pedagogia para homens livres, nas palavras de Freire, é relevante que seja inserida 28 no contexto das estruturas econômicas das classes sociais. É o que destaca Aníbal Ponce11: O conceito da evolução histórica como um resultado das lutas de classe nos mostrou, com efeito, que a educação é o processo mediante o qual as classes dominantes preparam na mentalidade e na conduta das crianças as condições fundamentais da sua própria existência. (...) A classe que domina materialmente é também a que domina com a sua moral, a sua educação e as suas idéias. Nenhuma reforma pedagógica fundamental pode impor-se antes do triunfo da classe revolucionária que a reclama, e se essa afirmação parece ter sido desmentida alguma vez pelos fatos é porque, freqüentemente, a palavra dos teóricos oculta, conscientemente ou não, as exigências das classes que representam. (grifos do autor). Por isso, não devemos nos limitar a pensar, tão-somente, na emancipação das classes sociais mais pobres, cujos membros, enquanto cidadãos detentores de uma consciência política verdadeira, consigam questionar e mudar a sociedade em que vivem, participando ativamente dos processos decisórios na esfera pública. A emancipação deve acontecer também para as elites, no sentido do entendimento genuíno de que não se pode viver em uma sociedade justa mantendose uma política de privilégios. A educação (assim como a justiça) não é um privilégio, é um direito fundamental de todos. Sob este prisma, constatamos que a deseducação atinge também a elite brasileira, defensora da lógica capitalista e, portanto, negligente quanto aos conceitos ideais de justiça e solidariedade. Imersa em sua própria alienação, esta elite entende que deve pensar em propostas de solução para a pobreza somente na medida em que esta lhe vem 11 PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes: 21ª edição. São Paulo: Cortez, 2005, p. 171. 29 como estorvo, como por exemplo, em relação às crescentes ondas de violência urbana e rural. A violência introduz um elemento novo, que não se aloca diretamente na ordem das relações econômicas. Ao cidadão burguês escapa o conhecimento em saber lidar com esta irrupção. O elemento em questão é o medo, que traz distúrbios à ordem social, campo onde a burguesia não desempenha atuação tão segura quanto no palco das relações econômicas do mercado neoliberal. Assim, a elite burguesa vai se empenhar, até um limite satisfatório de comprometimento, em equilibrar as forças na balança das relações sociais, através de ações de caráter assistencialista12. Neste contexto é que se enaltecem qualidades de uma educação compensatória que, por oferecer pseudo-soluções (dado seu já mencionado caráter assistencialista) à questão da desigualdade, acaba por sobrepujar a educação para a cidadania. Esta é projeto mais trabalhoso, de longo prazo e perigoso por fomentar nos indivíduos oprimidos o questionamento acerca da injustiça social da qual são vítimas. A liberdade, igualdade e garantia aos direitos fundamentais dos outros - que não a elite - habitam o discurso burguês, mas não as suas ações práticas. 12 “A educação foi trazida para o contexto da assistência social através da correlação entre níveis mais baixos de educação, de um lado, e índices de desemprego mais altos e salários mais baixos, de outro. Surgiu a idéia de um ‘ciclo de pobreza’ auto-alimentado, no qual baixas aspirações e carências no cuidado com a criança levavam a um baixo rendimento na escola, que por sua vez levava ao fracasso no mercado de trabalho e à pobreza na próxima geração. A educação compensatória foi vista, então, como um meio de romper este ciclo e de interromper a herança da pobreza.” CONNEL, R. W.Pobreza e educação. In: GENTILI, Pablo (org.). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. 10ª edição.Petrópolis,RJ: Vozes, 2002, p. 15. 30 Incutir, principalmente nas elites, o conceito, da impossibilidade da coexistência perpetuada entre o abismo sócio-econômico e a sociedade cidadãdemocrática já seria significativa conquista na luta contra uma sociedade deseducada. Contudo, ao nos referirmos a uma sociedade democraticamente sustentável, a educação proposta não é aquela da oportunidade dada aos pobres. Ela se distancia da visão paternalista, abandona a postura cortês da burguesia, sempre apoiada no discurso liberal da legalidade universalizada e da justiça formal acima mencionadas. Esta legalidade controla, quase que homeopaticamente, as dosagens de participação popular dentro do sistema democrático. A emancipação ocorre dentro de uma democracia que abre espaço para que aqueles que não têm, a priori, condições de participar de seu processo, sejam beneficiados com a oportunidade de serem formados para tal, dentro de uma dinâmica estabelecida em regras de eqüidade. A participação de todos nos processos decisórios concernentes à esfera pública, independentemente da segregação social imposta pela ordem econômica é o maior indicador da consolidação de uma democracia real, e não apenas formal. Muitos julgam que a transformação social para a concretização da justiça é uma utopia e por isso, a filosofia que a sustenta já é condenada ao mesmo fracasso que as alternativas à lógica capitalista vigente. 31 Primeiramente, cabe esclarecer que a busca por um modelo de desenvolvimento sócio-econômico não está na recuperação daquilo que a história já provou não ter dado certo. As utopias, enquanto um primeiro passo, são um fato da própria transformação social. Elas devem servir para alavancar o movimento da mudança. Enfim, para consolidar a questão, vale a pena mencionar Pierre Furter13, que sintetiza: Talvez seja útil distinguir aqui a utopia de outras atitudes próximas do desejo. Assim, a utopia não é um mero sonho, pretende realizar algo aqui nesta terra. Depois, a utopia não é mera visão profética; nela o pensamento utópico prevê uma possibilidade dentro de nosso espaço. O pensamento utópico, portanto, ao pretender chegar a resultados bem definidos – poder-se-ia criticá-lo, ao contrário, pelos seus excessos de definição -, bem colocados, é um fator de transformação social. A utopia é uma maneira de preparar a opinião pública para certas realidades possíveis. O direito à educação é o primeiro passo a ser dado no necessário “projeto de reconstrução social humana”14, dentro das perspectivas hegeliana e marxista de que a história é uma ação social, e não um processo biológico, inexorável. Há uma óbvia necessidade histórica, no conceito trazido por Marx, de se elaborar alternativa ao cenário de desigualdade construído pela lógica capitalista. E, dentro desta sombria perspectiva de contínua propagação de desigualdades socioeconômicas, é que o homem se coloca como ser questionador, criativo, artífice desta urgente mudança. 13 a FURTER, Pierre. Educação e reflexão. 7 edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973, p. 41-42. MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 135. 14 32 Acreditamos que a única maneira de alcançar este perfil de agente transformador é através da educação para a cidadania democrática. O necessário projeto de reconstrução social humana tem como primeiro passo o acesso à educação de qualidade, desde a primeira infância. Trata-se de uma educação que forme atores sociais questionadores e críticos, e não meros reprodutores da lógica imposta. É o paralelo que se verifica em Marx15, quando analisa o trabalhador esvaziado de valor na condição de ser humano, sendo interessante à sociedade apenas pela sua capacidade de produção: Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral. (...) O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se fez coisal, é a objetivação do trabalho. A partir do momento em que há a desvalorização do mundo dos homens em detrimento da valorização das coisas, o indivíduo vai gradualmente sendo extirpado de sua consciência crítica. Assim, se a palavra de ordem é a produção para obtenção apenas do lucro, se fará uso de maneira exponencial dos instrumentos que potencializam a geração do mesmo. Dentro deste contexto, a Educação é destinada somente à formação para o trabalho, que por sua vez produz e reproduz objetos, num ciclo opressor, que se repete infinitamente. 15 MARX, Karl. Trabalho alienado e superação positiva da auto-alienação humana. In FERNANDES, Florestan (org.). K. Marx e F. Engels. Coleção “Grandes Cientistas Sociais”, volume 36. 3ª edição. São Paulo: Ática, 2003,p. 148-149. 33 Despida de sua subjetividade (que possibilita a multiplicidade de enfoques sobre o mundo e agasalha o valor democrático e a emancipação em seu bojo), a educação não valoriza o processo de formação do ser humano16, apenas se volta para potencializar a qualificação do indivíduo para que possa produzir mais, reduzindo a criatividade para um nível quase que inexistente. Ela se torna, objetivamente, um instrumento para a dominação; reproduz o interesse do capitalismo nas formas e conteúdos dos conhecimentos de maneira a aumentar a produção para o trabalho, ao mesmo tempo em que silenciosamente sufoca qualquer possibilidade de reflexão crítica sobre o exercício desta dominação. Desta forma, percebemos que a Educação, assim como o Direito, pode, contraditoriamente, vir a assumir o papel de importante instrumento de dominação e reprodução da lógica capitalista, em seu sentido mais óbvio, qual seja, a manutenção das diferenças para a preservação do status quo da classe dominante. Esta “manutenção” pode se dar nas diferentes relações da sociedade com o indivíduo. Se observada sob o prisma da formação do ser humano para o trabalho, temos de um lado a educação para a profissão manual, que exige meramente a execução de tarefas delimitadas. De outro, temos a educação como formação para as profissões intelectuais, que requerem amplo embasamento teórico, a fim de preparar as elites e representantes das classes dirigentes do país. 16 O fim da educação democrática é o próprio ser humano na condição de cidadão, para que ele dela faça uso de modo a evoluir tanto individualmente, quanto como parte da coletividade onde está inserido (contribuindo para a promoção de iguais oportunidades de acesso nas searas política, econômica e social). Este processo é sabotado pela ótica capitalista, pela prioridade que esta destina à capacidade de produção do indivíduo e ao acúmulo de bens materiais, em contraponto à evolução do mesmo como ser humano ou cidadão. Nesta dinâmica inescrupulosa, a educação para a cidadania não encontra morada, sendo claramente afastada do espaço onde naturalmente floresceria: a escola pública. 34 Nas duas hipóteses, a educação não funciona como elemento de afirmação da essência humana, mas sim como instrumento de “coisificação” do indivíduo. Se transpusermos a educação para o contexto da cultural, a dualidade se dá na exigência concomitante da universalização da alta cultura frente às crescentes dificuldades colocadas pelas relações sociais burguesas para que se construa uma política de cultura, que culmine em última instância no desenvolvimento humano. Assim, o resultado é a coexistência do “rebaixamento vulgar da cultura para as massas com a sofisticação esterilizadora da cultura das elites”17 que acarreta nas culturas do mimetismo e da dominação, apontadas por Boff.18 O discurso que se encerra apenas na Educação como mecanismo de transformação da sociedade, tão somente, é inócuo, quase ingênuo. Ele deve, necessariamente, vir inserido no contexto da luta de classes. Em uma sociedade moderna como a nossa, apoiada no modo de produção capitalista, os meios de produção são detidos pela burguesia. Dada a sua característica inerente de sempre renová-los, ela tende, nas palavras de Saviani, “a 17 SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. 9ª edição. Campinas: Autores Associados, p. 193. 18 BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 45-46: “Há a cultura da dominação que é pura reprodução de valores, hábitos, gostos, saberes, tecnologias daqueles povos e centros de poder que nos subalternizaram e subalternizam. Criam-se então subjetividades coletivas, hipnotizadas por tudo o que vem dos centros metropolitanos, que nada tem a ver com o nosso meio eco-social. (...). Há a cultura do mimetismo: ao invés de criação existe imitação servil e adaptação subtropical da cultura dos outros. (...) Tanto a cultura da dominação quanto a do mimetismo são hegemônicas nos setores dominantes da sociedade. Eles dominam o espaço público da comunicação e conseguem introjetar-se na cultura popular. Esta se apresenta cindida entre os elementos antipopulares presentes no popular e os elementos autenticamente populares que traduzem a vida e a luta do povo. Tal constatação demanda permanentemente um discernimento crítico para não cairmos no populismo e para reforçarmos as matrizes populares da cultura.” 35 converter todos os produtos do trabalho em valor-de-troca cuja mais-valia é incorporada ao capital que se amplia insaciavelmente”19. Assim, a educação, tida como uma potência científica será trabalhada pela burguesia para que possa ser um importante ingrediente de ampliação do capital: “O predomínio da cidade e da indústria sobre o campo e a agricultura tende a se generalizar e a esse processo corresponde a exigência da generalização da escola. Assim, não é por acaso que a constituição da sociedade burguesa trouxe consigo a bandeira da escolarização universal e obrigatória. Com efeito, a vida urbana, cuja base é a indústria, rege-se por normas que ultrapassam o direito natural, sendo codificadas no chamado ‘direito positivo’ que, dado o seu caráter convencional, formalizado, sistemático, se expressa em termos escritos. Daí a incorporação, na vida da cidade, da expressão escrita de tal modo que não se pode participar plenamente dela sem o domínio desta forma de linguagem. (...) A escola é a instituição que propicia de forma sistemática o acesso à cultura letrada reclamado pelos membros da sociedade moderna. (...) onde (...) não é possível compreender a educação sem a escola, mas é possível compreender a escola sem a educação”.20 Não se trata, com a transcrição acima, de se desvalorizar a capacidade da escola como ferramenta para a conquista da eqüidade entre os indivíduos em uma mesma sociedade. O educador, tendo ou não consciência, é politicamente comprometido. O que se aponta é a falta de vontade política em relação à consecução de leis que podem ser satisfatórias, ou até mesmo extremamente positivas no papel, mas que não solucionam as problemáticas sociais estruturais. Destarte, referidas problemáticas acabam por manifestar-se no âmbito coletivo. No contexto da educação, o espaço por excelência é o da escola pública, que passa a ser, assim, o palco para a reprodução das injustiças sociais. 19 20 SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição.Campinas: Autores Associados, 2004, p. 2. Idem, p. 2-3. 36 Por outro lado, a partir do momento em que a educação é encarada como um dos motores que levam à transformação social (relações estruturais), e não apenas à melhoria de vida dentro de padrões já delimitados pela dinâmica das relações sociais burguesas (relações superficiais), reaproximamo-nos da “tomada de consciência” a que se refere Adorno. Passamos a discutir a educação que se opõe a reificar o individuo e favorece o desenvolvimento de uma visão crítica sobre o mundo, propiciando, a cada um, a liberdade de escolha para se “encaixar” na sociedade de acordo com seus talentos, competências e desejos. É libertação, como coloca Paulo Freire, do “homem simples, minimizado e sem consciência desta minimização (...)”.21 Assim, conclui-se que há muitas contradições, mas apenas duas eminentes transformações: a primeira diz respeito ao direito à educação, ao acesso propriamente dito, dentro do prescrito na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A segunda diz respeito à revolução da educação enquanto ciência, para que se constitua em instrumento de formação de cidadãos críticos, que adquirem conhecimento para interferir de maneira positiva nas relações sociais. Embora trilhem caminhos distintos, ambas transformações partem de um pressuposto comum: a superação da lógica individualista. 21 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 28ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 43. 37 CAPÍTULO II Aspectos político-jurídicos da Educação 1. Introdução A educação é colocada pela Carta Constitucional no artigo 205, como direito de todos, o que importa em traduzi-la concretamente na ordem social como serviço público essencial. Aprofundando-se um pouco mais neste conceito, fica evidente que estamos lidando com um direito fundamental, inato à personalidade humana, que se inicia com o nascimento e finda apenas com sua morte. A esse respeito, Machado Júnior22 acrescenta que Esse direito não se refere tão somente à uma liberdade de aprendizagem (liberdade de pensamento, de expressão e de acesso à informação), mas se caracteriza como direito social, pois todos podem exigir do Estado a criação de serviços públicos para atendê-lo, tendo características de direito absoluto, intransmissível, irrenunciável e inextinguível. Quanto à realização, na prática, dos objetivos da educação inseridos no texto constitucional, aponta José Afonso da Silva: A consecução prática dos objetivos da educação consoante o art 205 - pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho – só se realizará num sistema educacional democrático, em que a organização da educação formal (via escola) concretize o direito ao ensino, informado por princípios com ele coerentes, que, realmente, foram acolhidos pela Constituição, como são: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; 22 MACHADO JÚNIOR, César Pereira da Silva. O direito à educação na realidade brasileira. São Paulo: LTr, 2003, p. 3. 38 liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais do ensino garantido na forma da lei; planos de carreira para o magistério público, com piso salarial e profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; gestão democrática; garantia de padrão de qualidade (art. 206). Grifos do autor. Dado que o recorte feito no presente estudo em relação à Educação tangencia os limites da educação básica, é necessária análise acerca da estrutura jurídica que se refere ao público sujeito de direito deste segmento do sistema educacional brasileiro, as crianças e os adolescentes. Passaremos, em seguida, a examinar as legislações infraconstitucionais referentes a este público, bem como as convenções na ordem internacional, para identificar onde e como vem assegurado o direito à educação. Na seqüência, passaremos a investigar a legislação sobre educação, com o foco no segmento já mencionado. 2. A infância e a juventude na pauta jurídica internacional A proteção aos Direitos Humanos firmou-se como questão central na ordem internacional. Contudo, para que este cenário se tornasse efetivo, “foi necessário redefinir o âmbito e o alcance do tradicional conceito de soberania estatal, a fim de que se permitisse o advento dos direitos humanos como questão de legítimo interesse internacional.”23 As duas Guerras Mundiais mudaram, cada qual em seu tempo, a situação geopolítica do planeta. Não obstante, nenhum êxito palpável havia sido 23 a PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5 edição. SP: Max Limonad, 2002, p. 46. 39 atingido no campo da preservação dos direitos humanos, tanto individuais como coletivos. A fundação, em 1945, da Organização das Nações Unidas, é marco importante no processo de internacionalização dos direitos humanos. Referido órgão solidificou a intenção de proteger os direitos fundamentais do homem no mundo pósguerra, bem como garantir o progresso social ao redor do planeta. Para tanto, estabeleceu, em sua Constituição, a justiça e a dignidade como conditio sine qua non nas relações entre as nações e os indivíduos. Cabe informar que, historicamente, no ano de 1924 houve a primeira manifestação internacional em prol dos direitos das crianças e adolescentes: a Convenção de Genebra. Contudo, é o documento firmado em 1959 que acaba por impactar o cenário internacional de maneira significativa: a Declaração Universal dos Direitos da Criança influenciou fortemente o surgimento de muitos pactos internacionais acerca da matéria, sobretudo a partir das décadas de 80 e 90. O movimento de reconhecimento e conseqüente consolidação desta categoria específica de direitos intensificam-se a partir de 1979, declarado ano internacional da criança. A partir disso, foi elaborado, no âmbito da comissão de direitos humanos da Organização das Nações Unidas, o texto da Convenção dos Direitos da Criança, adotado pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, e assinado pelo governo brasileiro aos 26 de janeiro de 1990. 40 Referido documento demonstra sua importância ao concretizar os preceitos erigidos trinta anos antes, fazendo com que os países signatários adaptassem suas normas e princípios às legislações internas. Neste sentido nota-se que o Estatuto incorporou os três princípios básicos da Convenção dos Direitos da Criança: proteção especial dada à condição da criança como ser em desenvolvimento, a família como âmbito ideal para seu desenvolvimento e obrigatoriedade das nações em constituir a criança como prioridade, adaptando-os, devidamente à conjuntura social, cultural, política e econômica. Destarte, conforme esclarecimento de Pereira de Souza24, “(...) o Estatuto e a Convenção não estabelecem entre si um confronto hierárquico e de conteúdo, representando, o Estatuto, instrumento complementar da Convenção, necessário à sua adequação à nossa realidade”. Ainda, sob a influência do texto de 59, podemos destacar, em relação à matéria em questão as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas para a administração da Justiça Juvenil e para os jovens privados de liberdade, as Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinqüência Juvenil, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (especificamente os arts. 23 e 24) e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art.10), além de diretrizes específicas das agências internacionais especializadas que visam o bemestar da criança. O movimento mundial em relação à sedimentação de um sistema de proteção da infância exerceu grande influência na ordem jurídica brasileira. Até 24 PEREIRA DE SOUZA, Sérgio Augusto Guedes. Os Direitos da Criança e os Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 130. 41 então tutelados pela Constituição de maneira geral, os direitos da criança e do adolescente ganharam força quando da promulgação do Estatuto. O mundo assistia, no período pós-guerra, à eclosão de uma nova geração de direitos humanos, os pertencentes às categorias de pessoas que eram singularizadas por sua condição de vulnerabilidade, como crianças, idosos, mulheres, etc. 3. A estrutura jurídica dos direitos da infância e juventude 3.1. Histórico: o processo de construção da Lei estatutária Hodiernamente, é quase impossível que se discutam os direitos relativos à infância e juventude, sem menção nominal e direta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Juntamente com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, trata-se de uma legislação especial que já foi assimilada e é amplamente conhecida pela sociedade. A história da evolução jurídica no que diz respeito ao reconhecimento, proteção e garantia destes direitos no Brasil é recente. Na verdade, o efetivo reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros consagrou-se com a Carta Constitucional, e foi sublinhado pelo já aludido Estatuto. O marco inicial é em 1927, com o Código Mello Matos (Decreto no 17.943-A), primeira legislação especial sobre a matéria, que consagra a doutrina da situação irregular, instaurando a nomenclatura “menor” para definir todos os 42 indivíduos cuja faixa etária não excedia a dos dezoito anos de idade, e coloca a infância pobre como potencialmente perigosa. No ano de 1964, já durante a ditadura militar, surge a FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, instituída pela Lei no 4.513 daquele mesmo ano, da qual surgiram as conhecidas unidades da FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). A questão da infância e juventude era, naquela época – quando prevalecia a lógica da situação irregular-, tida como problema social, o que contrariava diametralmente a filosofia de proteção e promoção de direitos. O Código de Menores, de 1979, ou Novo Código de Menores, veio atualizar, terminologicamente, ambas as legislações sobre a matéria. Por muitos, foi tido como retrocesso, devido à postura adotada quanto ao tratamento dos jovens autores de atos infracionais: o encarceramento. Ao longo do período da ditadura militar, iniciaram-se movimentos de defesa dos direitos das crianças e adolescentes, com diversas tendências em torno da causa. Com a abertura democrática, no início da década de oitenta, diversos movimentos sociais que promoviam ações de caráter assistencialista (especialmente a Igreja) ganharam espaço para a atuação política. Na Assembléia Constituinte de 1986, entidades mobilizaram a opinião pública para que fosse incorporada ao texto constitucional a questão da infância e da juventude. O resultado desta pressão popular foi a criação de duas emendas aos arts. 204 e 227, da Constituição Federal. 43 Relata Antônio Chaves25 que, em junho de 1987, foi apresentada ao Congresso Nacional a emenda popular “Criança, Prioridade Nacional”, resultado de um trabalho em conjunto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, da Sociedade Brasileira de Pediatria, da Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi, da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Serviço Nacional Justiça e Não-Violência. O objetivo era o de alertar para a já considerada grave situação da infância e juventude brasileiras na época e contribuir para a incorporação, na Carta Constitucional, de dispositivos legais de promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Após a promulgação da Carta de 1988, a mobilização se manteve, e rapidamente encontrou abrigo oficial no Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Deste Fórum, que reuniu pensadores e representantes da sociedade civil de diversas correntes de pensamento, nasceu o Estatuto da Criança e do Adolescente – o ECA - no ano de 1990, em plena era Collor, que se apropriou da bula legal como signo da modernidade. De fato, o ECA foi a primeira legislação, em toda a América Latina, a romper drasticamente com a doutrina da situação irregular e adotar a doutrina da proteção e promoção integral dos direitos. Além disso, o Estatuto faz com que crianças e adolescentes, antes objetos de direitos, passem a ser sujeitos de direitos, ou seja, passam a ter proteção da ordem jurídica vigente caso seus direitos não sejam efetivados. 25 CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1997, p.43. 44 3.2. O Estatuto da Criança e do Adolescente hoje Passados pouco mais de quinze anos da promulgação da lei estatutária, são inquestionáveis os avanços conquistados: todos os indivíduos abaixo da faixa etária dos dezoito anos passaram a ser considerados sujeitos de direitos, o número de vagas nas escolas aumentou, e a luta pela erradicação do trabalho infantil em território brasileiro já alcança resultados extremamente positivos26. Todavia, faz-se também necessária uma avaliação crítica sobre algumas lacunas em seu texto. Observando-se o país em um processo democrático 26 Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD), 2003/IBGE. A Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI) realizou um interessante levantamento acerca do respaldo dado pela mídia em relação à luta pela erradicação do trabalho infantil, especificamente em suas quatro piores formas, citadas pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, e já ratificada pelo Brasil. A reportagem da Agência investigou a forte presença da mídia nas manifestações do dia 12 de junho, considerado o dia mundial da luta pela erradicação do trabalho infantil: “Os jornais abriram espaço para noticiar a realização de dezenas de ações, entre caminhadas e debates, nas mais diversas regiões, além de anunciarem decisões governamentais de enfrentamento da prática. As notícias trouxeram ainda informações da atuação dos Fóruns Estaduais de Erradicação do Trabalho Infantil. E registraram a entrega a alguns governadores da cópia do Termo de Compromisso – assinado por todos os titulares dos Executivos Estaduais e Distrito Federal e pelo Presidente da República – no qual todos se comprometeram com o combate à exploração do trabalho precoce no País. A assinatura do Termo de Compromisso foi o resultado da Caravana Nacional pela Erradicação do Trabalho Infantil, que percorreu todo o Brasil, entre junho e dezembro de 2004, no marco do décimo aniversário do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. (...) A ANDI identificou, entre 1º de abril e 30 de junho de 2005, um total de 925 matérias em mais de 60 jornais e revistas de todo país. A maior parte das matérias (56,76%) tratou de quatro das piores formas abordadas pela Análise de Mídia (agricultura familiar, narcotráfico, trabalho infantil doméstico e informal urbano), além de outras formas de exploração do trabalho infantil. As demais reportagens analisadas neste boletim (400 matérias) trataram exclusivamente de questões ligadas à exploração sexual e crianças e adolescentes. Desta vez, incentivadas pela pauta dos eventos acima mencionados, notícias sobre ações de enfrentamento das situações de exploração da mão-de-obra infanto-juvenil – sejam do setor público, sejam de entidades não-governamentais –, tiveram praticamente o mesmo espaço dado ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), tradicionalmente o assunto mais abordado. As ações de combate representaram 18,47% do material analisado, enquanto o Peti somou 20,19% do total. Em relação ao programa governamental, mais uma vez, o enfoque principal foi a verba destinada às bolsas, de atraso do repasse a irregularidades na distribuição. A participação do Peti nas atividades em torno das datas comemorativas também foi destacada nas matérias analisadas, sobretudo naquelas sobre o dia 12 de junho”..Análise de Mídia: Piores Formas do Trabalho Infantil. Edição nº 4 (abril/junho 2005), ANDI e OIT, p. 2 e 4. Disponível em http:// www.andi.org.br. 45 um pouco mais maduro comparado à época de eclosão da luta sempre permanente pelos direitos humanos, pergunta-se quais os efetivos resultados que trouxe o Estatuto, especificamente em relação à educação básica? Para tanto, é imprescindível que se observe cuidadosamente o processo de transição entre a doutrina da situação irregular para a de proteção integral. A vigência do Estatuto, que rompeu drasticamente com o sistema anterior tanto pela filosofia e valores instaurados (os Juízes passaram a ser conhecidos como Juízes da Infância e Juventude, não mais como Juízes de Menores) como pela prática das ações (a criação dos Conselhos Tutelares descentralizou a ação dos magistrados e passou-se a discutir medidas alternativas à simples internação de adolescentes autores de atos infracionais), foi imposta à maioria dos membros da magistratura, que se abstiveram de participar do processo de construção do Estatuto, pela divergência em relação a esta nova linha de pensamento. De fato, conforme relata o juiz Moacir Rodrigues27, a maioria dos juízes acreditava que uma simples reforma em alguns aspectos do Código de Menores bastaria para que se resolvesse o chamado “problema da infância e juventude brasileiras” que começava (!) a alarmar a sociedade. Esta visão, extremamente reducionista, no sentido de não enxergar a criança e o adolescente como sujeito de direitos (que eram logicamente diluídos no direito de família), conseguia apenas tratar do problema do crescimento da criminalidade entre adolescentes, mas nunca da situação específica da infância e da adolescência no país, como queria o discurso que sustentava a legislação vigente. 27 CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1997, p. 45. 46 Dado o fervor provocado pela forte mobilização em prol da mudança da lei, o ECA foi posto em vigor sem consenso, já que construído sem a participação deste setor importante da sociedade. Os reflexos deste processo ainda são percebidos nos dias de hoje, principalmente no que diz respeito à questão da criminalidade praticada por adolescentes e na maneira adotada pelo Estatuto para a resolução do problema, ainda, vale dizer, muito incipiente. Este aspecto é, sem dúvida, o grande calcanhar-de-aquiles da lei estatutária. Toda a discussão que gira em torno da diminuição da maioridade penal e da falência da FEBEM por vezes é alimentada com os ideais retrógrados e certamente não simpáticos à causa dos direitos humanos por aqueles que são os herdeiros do discurso da lei revogada. A questão da criminalidade adolescente não deve se voltar exaustivamente à diminuição da idade juridicamente permitida para uma punição mais severa ou da qualidade e quantidade de órgãos de internação – esta discussão é secundária. A partir do momento em que se aprofundar o debate, será cristalina a resposta para sua resolução: investimentos em maior quantidade e qualidade em educação, além da garantia da acessibilidade ao ensino de maneira justa para todos. Especificamente sobre educação, aspecto que é objeto do presente estudo, dispõe o Estatuto, em seu artigo 54, § 3º, inciso VII, sobre o atendimento assegurado no ensino fundamental, dizendo que compete ao Poder Público a responsabilidade última pela freqüência das crianças à escola. Aqui avistamos uma 47 falha grave na legislação: embora o artigo seja de natureza programática do artigo em epígrafe que não oferece detalhamentos nem impõe sanções acerca do descumprimento da norma estabelecida. Conseqüentemente, não se identifica a priorização de ações, na lei, em relação à qualidade dos investimentos em educação, ou a existência de qualquer legislação complementar que o faça. Assim, se é clara a constatação de que o ECA ainda tem um longo caminho pela frente, no sentido de ser aplicado de maneira efetiva na realidade complexa que o cerca, é também indubitável que seus ajustes e cumprimento integral dependam de dois elementos: vontade política e mudança cultural. 4. Legislação educacional brasileira 4.1. A Educação nas Constituições Federais. A primeira referência feita à educação em um texto legal consta na Constituição do Império, datada de 1824. No tocante à educação básica, a menção se reduzia à garantia do acesso gratuito à instrução primária. A Constituição de 1891 trata da educação no capítulo “Das Atribuições do Congresso”, desalojando-a do espaço que ocupava entre as garantias dos direitos civis e políticos, na Carta de 1824, e colocando-a como tarefa a ser realizada pelos deputados e senadores. À matéria é dedicado pouco espaço, dado que a Carta primava pela autonomia das unidades federativas, subentendendo que a legislação referente à educação deveria ser elaborada em âmbito estadual. Cabia à 48 União apenas o ensino superior da capital (art.34), a instrução militar (art. 87) e a tarefa, não exclusiva, de “animar, no país, o desenvolvimento das letras, artes e ciências” (art. 35).28 A Constituição de 1934, por sua vez, amplia o escopo quando trata da matéria. Estabelece a competência privativa da União para traçar as diretrizes da educação nacional e divide a responsabilidade da difusão da instrução pública, em todos os seus graus, entre a União e os estados. Ainda, prevê um capítulo específico que trata da educação e da cultura, estabelecendo a primeira como um direito de todos. Ela deveria ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, visando o desenvolvimento da consciência da solidariedade humana (art. 149). Nesta mesma Carta constitucional, previa-se um plano nacional de educação, que deveria ser elaborado pelo Conselho Federal de Educação, detentor do papel de não apenas sugerir ao Governo as medidas que julgasse necessárias para a melhor solução dos problemas educativos, mas também de opinar quanto à distribuição adequada dos fundos especiais (art. 152). Assim, aliando-se a unidade gerada por um plano nacional de educação à escolaridade primária obrigatória, pretendia-se combater a ausência de unidade política entre as unidades federativas. Contudo, evitava-se usurpar a autonomia dos estados na implantação de seus sistemas de ensino. No período que abrange o final da década de 20 e início da década de 30, um novo movimento vem se contrapor ao ensino oligárquico no país, herança 28 Interessante informar que somente em 1931 foi criado o Ministério da Educação. Até então, todos os assuntos ligados à educação eram submetidos ao jugo do Departamento Nacional de Ensino, ligado ao Ministério da Justiça. 49 direta do monopólio da educação pela Igreja desde a Colônia; verifica-se, nesta época a marca, segundo Gadotti29, da “(...) pregação liberal da educação que defendia a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário, bem como a laicidade e a co-educação. Essa pregação opunha-se à concepção dominante na educação, representada pelos católicos. Concretamente, católicos e liberais se defrontavam para garantir a hegemonia de sua concepção na elaboração da Carta Constitucional de 1934. (grifos do autor). Estes aspectos permeiam o texto da nova Constituição de 1937, que já denota seu caráter paternalista quando reserva ao Estado o papel de prover conforto e cuidados indispensáveis à preservação física e moral em caso de abandono físico, moral ou intelectual das crianças e jovens, e de garantir aos pais miseráveis auxílio para a subsistência e educação de seus filhos (art. 127). É neste texto constitucional que os municípios, pela primeira vez, são igualmente chamados a assegurar o acesso a uma educação adequada (art. 129). E se formam, sob a responsabilidade das indústrias e dos sindicatos, as escolas de aprendizes, destinadas aos filhos dos operários ou associados. A Carta de 1946, sem trazer muitas novidades concretas, atesta a necessidade de se elaborar novas leis que direcionem a educação no país. É o início da longa construção da Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, que só viria a ser aprovada em 1961. Já a Carta Constitucional de 67 tratou do acesso à educação especial e gratuita dos deficientes físicos, e estabeleceu o ensino primário obrigatório para todos, a partir dos sete até os catorze anos de idade. Houve redução, também, da participação dos municípios enquanto garantidores do acesso 29 a GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 9 edição. São Paulo: Cortez, 1995, p. 117. 50 à educação, sendo que esta tarefa passou a ser exclusiva dos Estados e do Distrito Federal. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a educação é classificada como um direito social. A União teve seu papel reduzido no que se refere à intervenção nos Estados e no Distrito Federal, salvo no caso de aplicação abaixo do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais (Emenda nº 14, de 12/09/96 e, posteriormente, Emenda nº 29, de 13/09/2000, ambas ao artigo 34). No capítulo que trata especificamente da educação, cultura e desporto, o legislador garantiu a valorização dos profissionais do ensino (art. 206, alterado pela Emenda Constitucional nº 19). Uma outra mudança importante trazida pela Emenda nº 14 foi o estabelecimento da competência do município em relação à educação infantil e a dos Estados e Distrito Federal no tocante à oferta dos ensinos fundamental e médio. 4.2. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 4.2.1. Um breve histórico A primeira Lei de Diretrizes e Bases foi promulgada no governo de João Goulart. O projeto desta primeira Lei, contudo, chegou à Câmara Federal no ano de 1948, só sendo oficialmente debatido pelos deputados nove anos depois, 51 tramitando, neste ínterim, entre a Comissão Mista de Leis Complementares e a Comissão de Educação e Cultura daquela Casa Parlamentar. Em sua primeira versão, a Lei de Diretrizes detinha caráter notoriamente descentralizador. Contudo, o relator designado para avaliação do projeto, o deputado Gustavo Capanema, entendeu diferentemente, recomendando a reelaboração ou emenda do texto que, ato contínuo, foi arquivado. Em 1951, é solicitado o seu desarquivamento. Novamente, o projeto tramita na mesma Comissão de Educação e Cultura, por mais cinco anos, até o momento em que é finalmente entregue a um novo relator, o deputado Lauro Cruz. No final do ano de 1957, depois de muitas discussões acerca do projeto, este era apresentado à Câmara, com número considerável de emendas. Em 1960 é finalmente aprovado e encaminhado ao Senado, onde recebeu mais 238 emendas30 e ao final, foi aprovado, em agosto de 1961. O embate em torno da elaboração do texto da lei dava-se, basicamente, entre os partidos de esquerda, conhecidos como estatistas e os ligados aos partidos de centro e de direita, ou liberalistas. Os primeiros sustentavam que, sendo a finalidade da educação o preparo do indivíduo para o bem da sociedade, a competência para educar deveria ser centralizada pelo Estado. As escolas particulares, nesta ótica, poderiam existir como uma concessão do poder público. Por outro lado, os opositores a esta corrente 30 SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2004, p.17. 52 filosófica defendiam que ao Estado caberia apenas a função de traçar as diretrizes do sistema educacional e garantir o acesso às escolas particulares a pessoas de baixa renda por meio de bolsas, já que a educação era vista como um dever da família. Ao final, venceu a “estratégia da conciliação”, conforme aponta Saviani. A lei, publicada aos 20 de dezembro de 1961, não correspondeu totalmente às expectativas de nenhum dos lados envolvidos na disputa. Tal fato levou muitos a classificá-la, de imediato, como incapaz de gerar qualquer impacto significativo. Dez anos depois, durante o regime militar, a lei sofre alterações, justificadas pela necessidade de se adequar seu conteúdo à nova realidade política instaurada. As adequações foram efetuadas através da Lei nº 5.540/68, que reformou a estrutura do ensino superior, e da Lei nº 5.692/71, que procedeu à alteração das nomenclaturas de ensino primário e médio, que passariam a se chamar ensino de primeiro e segundo graus. Contudo, após a promulgação da Carta Constitucional de 88, já era considerada obsoleta.31 Assim, dotado de algumas emendas, o projeto da nova Lei foi submetido à Comissão de Constituição, Justiça e Redação o projeto da nova Lei no ano de 1989, sendo relator o deputado Jorge Hage. Contrariamente ao processo de 31 “A situação educacional configurada a partir das reformas instituídas pela ditadura militar logo se tornou alvo da crítica dos educadores que crescentemente se organizavam em associações de diferentes tipos, processo esse que se iniciou em meados da década de 70 e se intensificou ao longo dos anos 80 “. Ibid., p. 33. 53 debate (restrito) que circundou a LDB de 61, o projeto da atual Lei de Diretrizes e Bases teve ampla representatividade da sociedade acadêmica do país, percebida nos fóruns estaduais e municipais constituídos como desdobramentos do Fórum em Defesa da Escola Pública. O projeto foi finalmente aprovado na Câmara em 1993. Mas foi apenas em 1996 que foi sancionada a nova Lei, em vigor até os dias de hoje. Contudo, o texto aprovado não foi exatamente aquele de 1993. Isso porque, tendo sido solicitada sua volta à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, o relator designado foi o senador Darcy Ribeiro. Este, no mesmo ano da vitória do projeto na Câmara, já havia tentado a aprovação de idéias diferentes em relação às diretrizes para a educação nacional. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na forma do Substitutivo Darcy Ribeiro, foi novamente remetida à Câmara, que a aprovou aos 17 de dezembro de 1996, não sofrendo qualquer veto presidencial, e promulgada no dia 20 daquele mesmo mês. 4.2.2. Uma leitura crítica da Lei nº 9.394/96 Já tratamos antes da recorrente contradição que se verifica, na ideologia neoliberal, entre as pequenas liberdades conquistadas e a manutenção da dominação. Em um recorte pragmático, esta dualidade se manifesta na lei em análise. 54 Em uma primeira leitura são constatadas diversas mudanças em relação às leis anteriores, entre as quais a inclusão da educação infantil como primeira etapa da educação básica. Também consta a instituição do Conselho Nacional de Educação (antigo Conselho Federal), que pela primeira vez passa a contar com a participação de membros indicados pela sociedade. Igualmente, a Lei nº 9.394/96 contribui para o processo de descentralização executiva do processo educativo para as esferas estaduais e municipais, dando certa autonomia às escolas e flexibilizando também a gestão dos centros de ensino superior32. Contudo, analisando o texto com mais cuidado, sob que aspectos os cidadãos brasileiros dela se beneficiam, percebemos detalhes interessantes, a começar pelo próprio trâmite irregular, por vezes turbulento, do projeto que se consolidou na presente Lei. Uma primeira contradição que nos chama a atenção é a discrepância entre os textos da LDB e da Constituição Federal em relação ao que é por ambos considerado direito público subjetivo. No texto constitucional (art. 208), o legislador entendeu o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como sendo este direito, ao passo que a lei infraconstitucional o configurou apenas em relação ao acesso ao ensino fundamental. Houve omissão no texto da LDB, tanto quanto ao restante da educação básica, como à condição de gratuidade do ensino. 32 RAMAL, Andrea Cecília. A nova LDB: destaques, avanços e problemas. Salvador: Revista de Educação CEAP, ano 5, nº 17, junho de 1997, p. 05-21. 55 Por outro lado, a consolidação do conceito de educação básica é uma das grandes vitórias da LDB, já que indica, nas palavras de Saviani33, um (...) caminhar em direção a um verdadeiro sistema nacional de educação abrangente e universalizado, isto é, capaz de garantir a plena escolaridade a toda a população do país. (...) É preciso, no entanto, não perder de vista que o conceito de educação básica adotado implica não apenas uma reordenação do ensino fundamental, mas o empenho decidido em universalizar o ensino médio na perspectiva de uma escola unificada, capaz de articular a diversidade de experiências e situações em torno do objetivo de formar seres humanos plenamente desenvolvidos e, pois, em condição de assumir a direção da sociedade ou de controlar quem dirige. Especificamente em relação à educação infantil, a lei apenas indica sua finalidade (art. 29) e organização; não aborda, contudo, o que pensamos ser obrigatório: a necessidade de autorização para funcionamento das escolas de educação infantil e a fiscalização das mesas, no sentido de se constatar se as escolas trabalham com um efetivo programa de educação voltado para este público específico ou se aplicam cursos livres (que se encaixam na lógica da assistência social, mas não da educação). Tal aspecto é preocupante, já que a educação infantil é de extrema importância, conforme será demonstrado adiante; o acompanhamento, pelo Poder Público competente, se faz necessário primeiramente por reforçar a categoria de direito público subjetivo (ainda que não expressa na lei), e também por garantir a plena realização das finalidades desta etapa da educação. 33 SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2004, p. 210. 56 Ao tratar do ensino fundamental, a LDB indica o critério da expansão de jornada escolar para o período integral. Ainda que não mandatório, abre a possibilidade – tida por muitos educadores como positivo, por influenciar diretamente no aumento da qualidade do desempenho escolar, principalmente em relação às crianças de baixa renda – de ser concretizado futuramente. No tocante à regulamentação do ensino médio, a lei atual não traz muitas novidades em relação ao texto anterior, estabelecendo a necessidade da articulação entre os estudos teóricos e os processos práticos.34 A Lei nº 9.394/96 se apresenta como um instrumento jurídico que não trouxe rupturas tanto positivas como negativas ao sistema educacional brasileiro. Ao mesmo tempo em que não traz a resolução de muitos aspectos práticos em relação à situação do ensino no Brasil, também não restringe possibilidades de melhoria do mesmo, por ser um texto bastante aberto. Ao mesmo tempo que não restringe altamente novas propostas de atuação, não projeta, para o país um plano de educação sólido e estruturado. 4.2.3. Competências A Lei organiza, no título IV, as competências para a gestão da educação nacional. À União fica designado o papel de coordenadora da política nacional de educação (art. 8º, § 1º), sendo responsável pela elaboração do Plano 34 SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação. 9ª edição. Campinas, SP: Autores Associados, 2004, p. 213. 57 Nacional de Educação e pelo estabelecimento das competências para a Educação Básica. Esta abrange desde a educação infantil até os ensinos fundamental e médio. Sob a responsabilidade dos municípios está a educação infantil, que é aquela oferecida às crianças de zero a seis anos de idade. O atendimento a este público divide-se em creches (para crianças de zero a três anos de idade), préescolas (para crianças de quatro a seis anos) e centros de educação infantil, que oferecem de maneira não-fragmentada (por comportar a creche e a pré-escola em um mesmo local) o atendimento global a este público. Interessante esclarecer que até o ano de 1996, a verba direcionada às creches estava vinculada à pasta de Assistência Social, devido ao entendimento de que se tratava de um direito da mulher dispor de um local em que pudesse deixar seus filhos durante o período de trabalho. Contudo, este caráter de assistência perde força quando do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, que enuncia a educação como direito fundamental desde a primeira infância. Cinco anos mais tarde, a LDB vem reforçar este entendimento, conforme se depreende dos artigos 29, 30 e 31. Não obstante, ainda é comum encontrarmos nos municípios creches vinculadas tanto à Secretaria de Educação quanto à de Promoção Social. O ensino fundamental, que comporta a faixa etária dos sete aos catorze anos, é de responsabilidade tanto do Estado como do município, ao passo que a providência do ensino médio, que atende alunos dos 15 aos 18 anos de idade, é atribuída ao Estado. 58 Finalmente, vale mencionar que as funções do Ministério da Educação e Cultura (MEC), estão descritas no texto da Lei nº 9.131/95. Assim, com a colaboração do Conselho Nacional de Educação e das Câmaras que compõem este último, cabe-lhe formular e avaliar a política nacional de educação, além de zelar pela qualidade do ensino e velar pelo cumprimento das leis que o regem (art. 6º, caput). 5. O sistema de garantia dos direitos previstos 5.1. A filosofia do Estatuto Quando se faz referência aos direitos de crianças e adolescentes previstos no texto constitucional, a alusão é principalmente em relação ao art. 227, que enuncia: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Seguindo este raciocínio, enuncia o ECA: Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; 59 b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Desta forma, entende-se que, na visão do legislador, o cumprimento de todos os direitos e garantias pertencentes a este grupo só é possível mediante a combinação do exercício adequado do poder familiar com o acesso a políticas públicas. O primeiro diz respeito ao poder-dever dos pais em assistir, educar e criar seus filhos. O dever do Estado é o de possibilitar meios para que estas ações possam se concretizar fora do ambiente doméstico, ou seja, deve prover os serviços públicos que materializem o previsto em Lei. Quanto ao acesso a políticas públicas, a filosofia seguida pelo próprio Estatuto reza que qualquer política pública bem-sucedida inclui descentralização, mobilização e participação. A descentralização diz respeito, de acordo com o texto legal, com a mudança do papel da União (que antes instaurava uma política hermética, e imposta de cima para baixo – a FUNABEM), que é mera coordenadora das esferas políticoadministrativas. A partir do momento em que as políticas públicas devem ser realizadas pelos Estados e municípios, há sem dúvida, uma aproximação do Estado com seu público-alvo. 60 Há que se considerar, também, a descentralização sob o aspecto da gestão compartilhada de políticas públicas entre as esferas pública e privada, almejando-se maior eficiência no serviço oferecido à população, de acordo com o anteriormente exposto. O modelo centralizador do Estado não é efetivo; pelo contrário, por ser extremamente burocratizado, o Estado não conta com um modelo de gestão eficiente. Desta forma, o modelo que se busca é o de gestão compartilhada, conforme acima ilustrado, atingindo-se, assim, os resultados buscados. Já a mobilização diz respeito às forças inerentes à comunidade na tentativa de solucionar os problemas. Trata-se uma diretriz de política pública, já que é mencionada no Estatuto como indispensável a participação dos diversos segmentos da sociedade. A participação é, por sua vez, uma tendência expressa na Carta Constitucional de 88, que em seu art. 1o, parágrafo único, prevê a democracia participativa, alinhada à representativa. Estabelece ainda algumas de suas ferramentas, tais como iniciativa popular de projetos de lei, o referendo, o plebiscito e a ação popular, além da ação constante da sociedade civil através das organizações não-governamentais, conselhos de direitos e conselhos tutelares. 61 5.2. Os Conselhos de Direitos Como alternativa à limitação da participação popular no processo democrático, surge, no final da década de oitenta a experiência brasileira – significativa - com os Conselhos Populares. O Estatuto estabelece, em seu art. 88, inciso II, a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente pressupondo, através dos mesmos, a participação popular paritária. Assim, são instalados, nas esferas nacional, estadual e municipal, respectivamente, o CONANDA35, os CONDECA36 e os CMDCA37. A participação é a maneira de se romper com a não-integração entre atuação popular e programas sociais propostos pelo governo. Os conselhos são criados pelo poder executivo, para que seja efetiva a participação da sociedade no processo democrático, ampliando a mesma para além dos períodos de eleição. Cabe, contudo trazer a arguta observação de Liberati e Cyrino, ao apontar que esta integração não inclui a participação do povo no processo decisório38, limitando-o ao estudo do problema em si (sua origem, razão e alternativas para sua solução), excluindo-o do momento da decisão. 35 Conselho Nacional dos Direitos Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente 37 Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente 38 LIBERATI, Wilson Donizeti e CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente. 2ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 54: “Assim, os governos buscam legitimar suas ações já consumadas, sem que o povo tenha tomado parte no processo decisório, dando, pois, uma falsa idéia de respaldo popular”. 36 62 5.3. A atuação do terceiro setor Os grupos organizados da sociedade civil – organizações nãogovernamentais, fundações, institutos, associações comunitárias – têm, por sua vez, papel relevante quanto à providência destes serviços, já que, constantemente em busca do aperfeiçoamento de seus conhecimentos, e muitas vezes caminhando lado a lado com as universidades, têm muito a contribuir no “como fazer”. Até o início dos anos 90, os programas sociais do Estado vinham revestidos pelo manto do assistencialismo (que, por meramente resolver os conflitos sociais em curto prazo, acaba postergando sua resolução definitiva). Aí se resume todo o know-how do Estado no tocante à elaboração e execução das políticas públicas. A ampliação do espaço de atuação dos grupos civis organizados indica a efetiva realização, conforme já previsto no texto constitucional quanto às formas democráticas do modelo participativo, concomitante ao representativo (já que não são excludentes, e sim complementares). Trata-se de um modelo de ação conjunta: o papel do Estado é de extrema importância haja vista sua capacidade em atingir um extenso número de pessoas de maneira não-fragmentada, potencializando o resultados das ações. Ele tem a verba e a estrutura para fazê-lo. Já as organizações civis reúnem o conhecimento sobre as garantias e direitos que devem ser tornados tangíveis 63 através das políticas públicas, além do conhecimento específico e experiência acerca de sua área de atuação. Da mesma maneira que o Estatuto é um avanço, a realidade ainda é carente do que é implementado pela Lei. Como então pode a Lei no 8.069/90 efetivamente se concretizar? Especialistas, estudiosos e profissionais da área da infância concordam em que o primeiro passo a ser dado é a construção de uma educação sólida, tanto no que diz respeito à qualidade e quantidade dos equipamentos (centros de educação infantis e escolas de ensino fundamental e médio), como também na formação dos professores e educadores. A divisão recorrente em relação aos setores, propagada especialmente para estabelecer-se uma divisão de papéis e isenção de responsabilidades dentro de uma nação democraticamente constituída também deveria ser objeto de reflexão. A divisão do Estado de Direito em setores, tendo cada setor uma responsabilidade, acaba por reforçar ainda mais o entendimento de que o exercício da cidadania é a mera reclamação de políticas públicas por parte da sociedade civil quando o Estado deixa de prover estes serviços, quando se ausenta de sua responsabilidade. Ocorre que a construção deste Estado de direito deve ser feita democraticamente, não apenas quanto à identificação de problemas e responsabilidades, mas principalmente no que diz respeito à superação das dificuldades para que a sociedade, em sua totalidade, seja favorecida. A cidadania aloja-se, também, na propositura de soluções em conjunto, mas relevante ressaltar que isso não é sinônimo de uma substituição de papéis. Se 64 por vezes o Estado se ausenta de efetivar os direitos garantidos em esfera constitucional pela não execução (e em certos casos até de não formulação) de políticas públicas, não quer dizer que a sociedade civil, através do chamado terceiro setor tenha que fazer as vezes deste. Ela deve se organizar para identificar estas lacunas e mobilizar-se para que o Estado venha a supri-las. O Estado mínimo é necessário. Ele é o único ente, dada a sua característica inerente de ser para e pelo público, de promover a justiça e a eqüidade no âmbito sócio-político. Ele deve ser o mediador dos conflitos de interesses para que prevaleça sempre aquele que atenda à maior parte dos concidadãos, da maneira mais justa possível. O Brasil assistiu a um crescimento exponencial de organizações nãogovernamentais nos últimos dez anos39. Contudo, tal aspecto não denota que o chamado terceiro setor tenha capacidade de gerir a nação no âmbito das políticas sociais. Tal posicionamento seria, inclusive, antidemocrático. Referidas organizações surgem para contribuir para a construção de uma sociedade mais equilibrada socialmente, complementando a atuação do Estado. A democracia participativa clama pela atuação em conjunto de todos os setores da sociedade. Sob esta ótica, poderíamos nos libertar da divisão entre primeiro, segundo e terceiro setores. Estamos nos referindo à sociedade como um 39 O Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) acusou um crescimento de 208% em sua rede de associados em dez anos. Hoje, especificamente na área de educação, conta com 75 associados (www.gife.org.br). Já a Associação Brasileira de Organizações Não – Governamentais, a ABONG, identifica 93 organizações atuando na área de educação no Brasil atualmente. Dados disponíveis em http://www.abong.org.br. 65 todo, que colabora com seus diferentes talentos e capacidades na tentativa da resolução de suas necessidades econômicas, sociais e políticas. 66 CAPÍTULO III O descompasso das políticas públicas frente à realidade educacional brasileira 1. Conceito de política pública As políticas públicas são o modo efetivo do Estado de responder às demandas que emergem da sociedade e do seu próprio interior, através da previsão legal de direitos e garantias. São também expressão do compromisso público de atuação, em longo prazo, em uma determinada área. Seriam, nas palavras de Maria Paula Dallari Bucci40, uma “evolução em relação à idéia da lei em sentido formal”. A política social é um tipo de política pública, cuja expressão se dá através de um conjunto de princípios, diretrizes, normas e objetivos, de caráter permanente e abrangente, que orientam a atuação do poder público em uma determinada área. Uma política pública educacional deve ser orientada pelos valores de igualdade e eqüidade de oportunidades na educação. O primeiro vem inserido em uma meta social na qual se estabelece que as pessoas ou grupos de pessoas devem ser tratados de forma igual - ou desigual - o que denota sua íntima ligação 40 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 252. 67 com normas de distribuição de benefícios e custos. A distribuição igualitária de determinado recurso pode não ser eqüitativa. Já o conceito de eqüidade, mais amplo que o primeiro, pode ser traduzido como o de igualdade de oportunidades. Se entendemos, sem dúvida alguma, como já exaustivamente exposto anteriormente, que a educação é o instrumento que tem o poder de romper com a perpetuação da injustiça social (que por sua vez é sustentada pela desigualdade na distribuição de renda), ela deve estar ao alcance de todos. Assim, o acesso à educação de qualidade é condicionante para o acesso às oportunidades. Interessante mencionar, brevemente, a questão da descentralização; o conceito vem sendo popularmente disseminado, sendo reclamada sua incorporação às políticas públicas. Isso porque a participação popular no que tange à colaboração na formulação e fiscalização das mesmas é mais acessível quando falamos em políticas públicas em nível municipal, posto que a proximidade entre governo e sociedade é mais visível nesta esfera. Contudo, a descentralização traz em seu bojo alguns problemas, consoante a sensata observação de Gilberto Bercovici41 O grande problema da repartição de rendas realizada pela Constituição de 1988 foi ter sido realizada a descentralização de receitas e competências sem nenhum plano ou programa de atuação definido entre União e entes federados. (...) No entanto, após a Constituição de 1988, de modo lento, constante e desordenado, os Estados e Municípios vêm substituindo a União 41 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 180. 68 em várias áreas de atuação (...), ao mesmo tempo em que outras esferas estão sem qualquer atuação governamental graças ao abandono promovido pelo Governo Federal. No que se refere à Educação, fica claro que o financiamento das ações chega na frente das próprias ações. Inexiste, conforme já apontado, um plano que priorize ações dentro do sistema educacional brasileiro. Da mesma forma, consoante se verificará no item 2 deste capítulo, muitas falhas no sistema de educação vêm sendo constatadas exatamente pela ausência de planejamento. 2. As propostas do Estado brasileiro O período a ser analisado neste item será delimitado a partir da promulgação da Carta Constitucional, em 1988. Primeiramente, destacamos o FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), implantado em 1998. Até este ano, a legislação estabelecia que 50% das verbas vinculadas à educação deveriam ser usadas na erradicação do analfabetismo e universalização do ensino fundamental, dispositivo constitucional que nunca foi cumprido. Com a criação do Fundo, 60% dos recursos vinculados à educação passaram a ser destinados ao ensino fundamental. Contudo, esta atual estrutura deixa de atender importantíssimo segmento: o da educação infantil. Frente a esta problemática, foi elaborado o projeto do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de 69 Valorização dos Profissionais da Educação), que amplia o repasse da verba de modo a incorporar esta relevante etapa da educação. O FUNDEB é composto de vinte e sete fundos estaduais, que são alimentados por parte dos impostos municipais e estaduais, como, FPM, ICMS, IPI, IRRF e IPVA42. Os impostos exclusivos dos municípios (IPTU, ISS e ITBI)43, com exceção do ITR44, não são direcionados ao Fundo, contrariamente ao ITCMD45, imposto de arrecadação exclusivamente estadual. A contribuição inicia-se em 16,25%, com o intuito de alcançar 20% no quarto ano de vigência do Fundo único, assim permanecendo até o término de vigência do FUNDEB. A emenda que cria o Fundo prevê vigência de catorze anos, de 2006 a 2019. O montante das contribuições é repartido entre a administração estadual e as municipais, de acordo com o número de matrículas que cada esfera administra. Os Estados recebem o repasse pelos alunos dos ensinos fundamental e médio, e pelos matriculados na educação de jovens e adultos, bem como pelos alunos dos cursos profissionalizantes. Já aos municípios o repasse é direcionado para que financie as crianças inseridas na pré-escola e nos estabelecimentos de ensino fundamental sob sua responsabilidade. Os valores de financiamento variam segundo o nível do sistema de ensino (pré-escola, fundamental ou médio). O valor estabelecido por aluno em cada 42 As siglas significam, na ordem do texto: Fundo de Participação dos Municípios; Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços; Imposto sobre Produtos Industrializados; Imposto de Renda Retido na Fonte e Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores. 43 Os impostos municipais acima referidos são: Imposto Predial e Territorial Urbano; Imposto sobre Serviços e Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis. 44 Imposto Territorial Rural. 45 Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos. 70 uma dessas modalidades também difere de acordo com a região (em um estado com maior capacidade fiscal, ou seja, maior poder de arrecadação, o valor do repasse referente a um aluno do ensino médio será maior), mas nunca poderá ser inferior ao valor nacional. Nesses casos, atestada a incapacidade do repasse mínimo por parte de um estado, a União complementará o investimento até o teto definido nacionalmente. O valor real por aluno será ainda definido pela lei que regulamentará o FUNDEB, após sua aprovação. O investimento é feito diretamente na conta do Fundo, cabendo à administração estadual redistribuí-lo aos municípios. A proposta do FUNDEB prevê exclusivamente para este fim R$ 4,3 bilhões do orçamento federal, a serem repassados nos primeiros quatro anos do Fundo46. A Proposta de Emenda Constitucional ainda estabelece que, dos 18% de impostos da União vinculados à Educação (art. 212 da Constituição Federal), só poderão ser aplicados, no máximo, 30% no FUNDEB. Isso equivale a R$ 1,3 bilhão dos R$ 4,3 bilhões previstos. Segundo o texto, o restante deve advir da redução permanente de outras despesas em ações e programas educacionais. 47 A proposta inicial do FUNDEB incorreu em grave erro: a não-inclusão da faixa etária dos 0 aos 3 anos, o que acarretaria a exclusão imediata de treze milhões de crianças das creches.48 Tal falha foi felizmente corrigida, após intensa 46 Os valores serão corrigidos pelo IPC. Boletim da Agência Nacional dos Direitos da Infância, nº 66, julho de 2005. 48 Dados divulgados pela Ação Educativa. Disponíveis em http://www.acaoeducativa.org.br. 47 71 mobilização da sociedade em diversos fóruns nacionais e estaduais sobre a matéria.49 Outros dois aspectos críticos, mas (ainda) não vencidos dizem respeito, respectivamente, à não-reserva de verbas para novas matrículas, o que culmina por manter a decisão sobre o custo por aluno nas mãos da União (sendo que a Educação Infantil e o Ensino Médio são, respectivamente, de competência do município e Estado), e a uma política apontada por muitos profissionais da educação como sendo de curto prazo (catorze anos). De acordo com a proposta aprovada pela Câmara, o FUNDEB será composto de 20% das receitas dos estados e do Distrito Federal, ficando a cargo da União a complementação de recursos quando o valor anual por aluno não alcançar o mínimo definido. Este valor complementar, conforme aprovado pela Câmara, será progressivo, iniciando-se em R$ 2 bilhões, aumentando para R$ 2,85 bilhões no segundo ano de vigência, para R$ 3,7 bilhões no terceiro ano e, finalmente, para R$ 4,5 bilhões no quarto ano, valor que será mantido até o término da vigência do fundo. Serão diretamente beneficiados cerca de 48 milhões de alunos. A previsão dos recursos no quarto ano de vigência do FUNDEB gira em torno dos R$ 50 bilhões50. 49 Destaque para o Movimento da Rede de Monitoramento da Educação Infantil, que congregou diversas organizações da sociedade civil a fim de pressionar o governo pela inclusão das creches no FUNDEB. 50 Dados oficiais do Ministério da Educação. Disponíveis em http://www.mec.gov.br. 72 Ocorre que até a data de conclusão deste texto, o Senado não havia aprovado o projeto do Fundo, o que é extremamente alarmante, já que foi concebido para substituir o vigente FUNDEF, que perde a validade no final do ano de 2006. Destarte, não havendo FUNDEB para substituí-lo, para onde seguirá a Educação no Brasil, que aguarda um repasse certo por parte da União para o ano de 2007, mas não tem aprovado o Fundo legal para recebê-lo? Ainda, outro aspecto preocupante e até o momento não abordado pelo Governo no âmbito de discussão do FUNDEB é a fiscalização dos recursos destinados à educação. O Ministério da Educação, em dez anos de vigência do FUNDEF não desenvolveu qualquer mecanismo de controle visando à coibição da evasão do dinheiro. O governo federal, contudo não se posiciona no sentido de definir de quem é a responsabilidade pela fiscalização da aplicação idônea das verbas, se do próprio Ministério da Educação, se do Tribunal de Contas da União, se dos Tribunais Estaduais e Municipais. O crítico é que, muito embora o problema para qualquer ação ou programa seja sempre o de falta de verbas para tal, não se contemplou, no FUNDEB, verba para a fiscalização da aplicação dos recursos. Ainda que se entenda a não-competência da alocação de verba para ações dessa natureza dentro do Fundo de Financiamento para a Educação, esta é uma estratégia que necessariamente deve ser pensada para o sucesso de um programa de governo. Este fato é extremamente discutível, dado que a fiscalização das verbas passa a ser tão importante quanto a construção de escolas ou capacitação de professores; na realidade é condição primeira para que todos esses resultados aconteçam. 73 Finalmente, cabe fazer referência à Lei nº 10.172/01, que aprova o Plano Nacional de Educação. Desta forma, fica determinado que Estados, Distrito Federal e Municípios deverão elaborar seus planos decenais de educação (art. 2º), assim como processos de avaliação periódica no tocante à implementação do Plano (art. 3º). Nestes processos de avaliação encontra-se abertura à participação da sociedade, através de fóruns sobre o tema nas respectivas localidades onde as metas são buscadas. O Relatório de Diagnóstico Regional51, elaborado pelo Ministério da Educação, estabelece o acompanhamento e avaliação do Plano Nacional e dos planos decenais correspondentes. Com o intuito de se esboçar uma pequena fotografia da situação da educação no Brasil hoje, autorizamo-nos a transcrever alguns dados referentes à educação básica. Dentro do cenário da Educação Infantil, uma das metas é a ampliação da sua oferta para até 50% à população de zero a três anos de idade até o ano de 2010. Para as crianças na faixa etária dos quatro aos seis anos, a meta é que a taxa de atendimento chegue, no mesmo ano, a 80%. Contudo, a projeção da taxa para o atendimento na primeira infância (dos zero aos três anos de idade) mostra que, mantido o crescimento histórico, a meta não será alcançada, chegando a apenas 51 As informações aqui transcritas não foram, ainda, publicadas oficialmente pelo Ministério da Educação. Os dados foram socializados no Seminário Regional de Avaliação do Plano Nacional de Educação e Planos Estaduais e Municipais correspondentes, na cidade do Rio de Janeiro, no período de 19 a 21 de junho de 2006. 74 17,5%. No caso da população de quatro a seis anos de idade, há grandes possibilidades de cumprimento integral da meta pretendida. De maneira geral, o relatório estabelece como maiores desafios para este segmento o aumento progressivo da escola integral na pré-escola, o aumento da oferta de creches, melhor capacitação dos professores e melhor infra-estrutura dos equipamentos. Quanto ao ensino fundamental, o foco é a redução em 50% das taxas de repetência e evasão no período de cinco anos.Segundo dados do Censo Escolar 2003, 28,9% dos alunos que cursavam a primeira série não conseguiram progredir; e, em relação à taxa de evasão, o país concentra as taxas mais elevadas nas séries finais: em 2003, 12,5% dos alunos que cursavam a oitava série abandonaram o curso antes de seu término. Em uma projeção futura, o país conseguiria apenas atender a meta referente à repetência. O Relatório acrescenta ainda que a redução da repetência e da evasão está diretamente ligada à infra-estrutura das escolas, que está aquém do padrão desejável; em 2003, apenas 57,4% dos alunos cursavam escolas com bibliotecas, 30,9% freqüentavam escolas com laboratório de informática, 19,9% dos alunos tinham acesso a laboratório de ciências, 54,7% usufruíam de quadra de esportes em sua escola e apenas 33,1% cursavam escolas com acesso a Internet. A formação de docentes é outro aspecto preocupante (apenas 36,1% dos professores das séries iniciais têm curso superior). 75 Finalmente, quanto à universalização (garantia de acesso e permanência de todas as crianças na escola), a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2003 já apontava em 97,2% a taxa de atendimento, o que denota uma tranqüilidade em se alcançar plenamente esta meta. Já no âmbito do Ensino Médio, o Plano estabelece a redução em 5% da repetência e evasão, objetivando diminuir para quatro anos o período deste nível de ensino. A análise histórica da taxa de repetência no país durante o período de 1998 a 2003 mostra praticamente uma estagnação, o que igualmente ocorre com a evasão. Se mantida esta tendência histórica, as projeções destas taxas apontam a impossibilidade do cumprimento das metas. Mas, semelhantemente ao verificado no Ensino Fundamental, a infra-estrutura das escolas influencia na variação destas taxas, assim como a melhor preparação dos professores. Uma das metas do Plano é poder oferecer vagas para atender 100% da demanda (população dos quinze aos dezessete anos de idade) até o ano de 2010, mas de acordo com as projeções realizadas, conseguirá fazê-lo para apenas 65,7% do seu público-alvo. Concluindo, o Relatório aponta, em todos os níveis da Educação Básica o longo caminho que o Brasil ainda tem pela frente, no que se refere ao atendimento mínimo das metas estabelecidas a partir de suas atuais diretrizes. 76 3. Orçamento para a Educação 3.1. Aspectos gerais A problemática da educação, como se vê, é extremamente complexa. Tornando os olhos para o campo das realizações, a direção primeira que se deve mirar é a do orçamento, que revelará claramente o encontro ou desencontro do discurso com a vontade política. A Constituição Federal Brasileira determina que a União deve aplicar pelo menos 18% de sua receita líquida proveniente de impostos (excluídas as transferências) na manutenção e desenvolvimento do ensino. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por determinação da mesma natureza, devem aplicar pelo menos 25% de suas receitas líquidas de impostos com a mesma finalidade. Há ainda, no texto constitucional, o salário educação como fonte adicional de financiamento do ensino fundamental. Antes da Emenda nº 14, que criou o Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o artigo 60 do Ato das Disposições Transitórias previa o investimento de “não menos que 60%” das verbas vinculadas à educação, acima mencionadas, na erradicação do analfabetismo e na universalização do ensino fundamental, por um período de dez anos. Referido dispositivo constitucional nunca foi cumprido. 77 Em sua proposta original, a Emenda nº 14 eliminava esta exigência, mas a proposição acabou sendo aprovada com a obrigação do investimento de pelo menos 30% do equivalente às vinculações previstas. Fica clara a ausência de uma política de educação séria e planejada por parte do Estado brasileiro nas últimas décadas. O prazo decenal estabelecido pela Constituição nunca foi respeitado, ou seja, inexiste um planejamento a longo prazo em relação à educação para que esta atinja um nível digno de qualidade. O planejamento técnico deve estar vinculado ao orçamento, e ambos devem ser pensados em longo prazo, para que se atinjam resultados efetivos. Contudo, o governo brasileiro somente se propõe a estabelecer um planejamento orçamentário de quatro anos, o chamado plano plurianual. Alie-se a isso a característica permissiva do orçamento, no sentido de sua não-executabilidade. Ainda que a Constituição enuncie a prioridade das crianças e adolescentes no planejamento orçamentário (art. 227), são freqüentes os cortes e remanejamentos nessa área. Isso porque o orçamento é meramente autorizativo e não obrigatório. 3.2.Passos para a elaboração do orçamento federal O processo desde a elaboração até a sanção do orçamento federal ocorre da seguinte forma: os grandes investimentos que serão feitos em quatro anos de gestão são de antemão identificados no plano plurianual. Este, por sua vez, entra 78 em vigência a partir do segundo ano do mandato em curso e se extingue ao fim do primeiro ano do mandato do governo seguinte. Nos quatro primeiros meses do ano, os trabalhos concentram-se em torno da elaboração do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias52, primeira etapa na construção do orçamento público anual, que deve ser enviado ao Congresso Nacional, para aprovação nas duas Casas, onde será votado. Ato contínuo, o Executivo formula o projeto da Lei Orçamentária Anual, que detalha o orçamento público do ano. A única exigência é que a mesma seja, logicamente, compatível com os programas e previsões constantes tanto no Plano Plurianual quanto na Lei de Diretrizes Orçamentárias. O projeto deverá, então, ser enviado à apreciação dos parlamentares até a data de 31 de agosto. Uma vez no Congresso, o projeto segue para a Comissão Mista de Orçamento, onde a proposta é dividida em dez comissões setoriais53, que têm quinze dias para apresentar emendas, cujo único impedimento é a dotação abaixo do valor estabelecido em texto constitucional. Finalizados os relatórios, são enviados, no formato de documento único, à Plenária do Congresso, que deverá realizar a votação até o fim do ano fiscal, encaminhando-o, na seqüência, para a sanção presidencial. 52 Esta lei é a responsável por orientar o direcionamento do orçamento do ano seguinte, servindo de base para a Lei Orçamentária Anual, que fixa os valores das despesas governamentais e estima as receitas públicas. 53 Constituem os dez setores da Comissão Mista de Orçamento: Justiça e Defesa; Fazenda e Desenvolvimento; Agricultura e Desenvolvimento Agrário; Infra-estrutura; Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, Esporte e Turismo; Saúde; Previdência e Assistência Social; Integração Nacional e Meio Ambiente; e Planejamento e Desenvolvimento Urbano. 79 O processo é similar nas esferas estadual e municipal, que elaboram seus projetos da Lei de Diretrizes Orçamentárias por meio de suas respectivas secretarias de planejamento, e aguardam sua aprovação ou eventuais ofertas de emendas por parte das Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais. Os prazos para encaminhamento, aprovação e devolução ao Chefe do Poder Executivo tanto da Lei de Diretrizes Orçamentárias quanto da Lei de Orçamento Anual são determinados, em cada estado, pelas Constituições Estaduais. 3.3. Justificativas para o investimento em educação Não há que se discutir que o investimento em educação básica afeta diretamente o desenvolvimento qualitativo de uma nação. É o principal propulsor dos países para a elevação de seu índice de desenvolvimento humano (IDH). Dados divulgados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em setembro de 2005, apontam que o investimento sério em educação mostra resultados concretos. É o caso da Uganda54 que com pesados investimentos em educação durante a década de 90, conseguiu elevar seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) a ponto de ultrapassar a marca de 0,500, que, para o estudo, separa as nações de médio e baixo desenvolvimento humano55. O investimento público naquele país em ensino básico subiu de US$ 5,3 milhões para US$ 7,6 milhões, entre 1997 e 2003. Ainda, as taxas de matrículas entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos passaram a ser as mesmas; a diferença percentual entre meninos e meninas nas escolas foi eliminada. O estudo 54 INFANTE, Alan. Uganda aposta na educação e salta no IDH. Disponível http://www.pnud.org.br/noticias. 55 PNUD. Desenvolvimento Humano e IDH. Disponível em http:// www.pnud.org.br/idh. em 80 indica que ainda há problemas, principalmente em relação ao controle da taxa de evasão escolar, mas é indiscutível a existência de um resultado concreto devido ao investimento ao longo da década passada. Da mesma forma, estudos56 realizados nos últimos vinte anos já não deixam dúvida: Os primeiros anos da infância correspondem ao período de maior sensibilidade, quando o cérebro precisa de estímulos para criar ou fortalecer estudos mentais, cognitivos e emocionais. Isso porque até os 6 anos de idade formam-se 90% das sinapses cerebrais.(...) é o período no qual, neurologicamente, as crianças estão mais propensas a desenvolver várias habilidades. O investimento em educação infantil traz benefício direto óbvio a milhares de crianças, como o desenvolvimento integral na faixa de 0 a 3 anos de idade, e o impacto na vida social, garantindo uma vida adulta melhor. Foi igualmente constatado que crianças inseridas em programas de educação infantil têm melhor colocação profissional e maiores salários, assim como enfrentam menor probabilidade de engravidarem na adolescência ou de cometerem crimes, do que crianças excluídas da educação infantil.57 Uma outra pesquisa58, elaborada pelo Banco Mundial, também aponta a economia que o Estado faz no futuro investindo na educação infantil, divulgando que a criança que teve acesso a ela incorre em menor probabilidade de repetir ou de sofrer defasagem entre a idade e a série. Assim, fica claro que centrar esforços na 56 UNICEF. Relatório da situação da infância brasileira 2006, p. 67. Idem. 58 BANCO MUNDIAL.Desenvolvimento da primeira infância: foco sobre os impactos da pré-escola. Brasília, 1999. 57 81 educação até os quatro anos de idade (sobretudo nas famílias de baixa renda) é investimento com retorno garantido. O estudo Desenvolvimento da Primeira Infância, realizado pela mesma organização em conjunto com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), registra: As intervenções de desenvolvimento da primeira infância permitem que as crianças pobres entrem na escola com uma base de desenvolvimento em equilíbrio com a de seus colegas mais ricos, quebrando assim o ciclo persistente de transferência de pobreza entre as gerações.59. As creches hoje não mais detêm o mero papel de local para acolhida de crianças pertencentes a famílias de baixo poder aquisitivo, no período em que suas mães estão trabalhando. São, como já apontado, espaços para a realização da primeira e fundamental etapa da formação daquela criança, que tem direito de freqüentá-la. O não-investimento60 em educação infantil é uma irresponsável concordância com o apontado determinismo que espreita o futuro de milhares de crianças brasileiras. 59 Boletim da Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI), nº 66, julho de 2005. Disponível em http:// www.andi.org.br. 60 De acordo com o divulgado no Boletim nº 66 da ANDI, “apesar da importância da Educação Infantil, é pequena a parcela de meninos e meninas brasileiros que a freqüentam em sua totalidade (...) somente 11,7% estão inseridos nas creches. Apenas 8% desses beneficiados pertencem a grupos familiares com renda per capta de até ½ salário mínimo. A título de comparação, a situação de crianças de 7 a 14 anos oriundas de famílias nessa mesma condição é bem diferente: 95,7% freqüentam escolas. Os dados levam à conclusão de que uma das parcelas da população infantil mais necessitadas de apoio governamental está excluída da proposta do Fundeb. De acordo com as entidades integrantes da mobilização, somente com o aumento dos investimentos públicos no setor será possível reverter esse quadro.”. 82 A atenção neste segmento do ensino, e especialmente na faixa etária de zero aos três anos é enfatizada nestas linhas porque se trata também de aceitála culturalmente, aspecto que, já é mais tranqüilo ao se falar do investimento nos ensinos fundamental e médio. As creches e pré-escolas só foram oficialmente reconhecidas como um direito da criança e integradas à educação básica há dez anos atrás. Esta mudança implica em ajustes e orientações para que referidas instituições evoluam do cuidado básico à prática educacional, que guarda extrema relevância neste período da vida da criança, conforme exaustivamente justificado acima. Destarte, incorporadas à Educação Básica, creches e pré-escolas passam a disputar seu espaço também no orçamento. Contraditoriamente, há um embate interno, entre Educação Básica e Ensino Superior. O Estado, que não prioriza a educação como um todo no país (haja vista o decrescente orçamento destinado para a área desde 1998), acaba por cometer a atrocidade de escolher a educação em que irá investir. A reforma universitária proposta pelo governo, e que hoje aguarda apenas a assinatura do presidente para sua aprovação, mina toda a discussão acerca do aumento da destinação orçamentária à educação básica. O projeto propõe que o Ministério da Educação (MEC) repasse 75% de sua verba para as universidades federais, o que aumentará em R$ 1 bilhão o custeio das universidades61. É inevitável que nesta matemática o prejudicado seja o ensino 61 O Estado de São Paulo, 13/05/06, p. A6. 83 básico, já que não há previsão de aumento do orçamento global destinado à educação. O corte orçamentário em uma agenda prioritária ao desenvolvimento nacional não encontra justificativa racional. A escolha em relação à alocação do recurso arrecadado pelo Estado não é condizente com o clamor da própria sociedade. Neste sentido, pontua Hayek:62 The economic problem of society is thus not merely a problem of how to allocate ´given´resources (...). It is rather a problem of how to secure the best use of resources known to any of the members of society, for ends whose relative importance only these individuals know. Este recorte da realidade denota mais uma vez que as pequenas conquistas para o justo (a vitória da inclusão das creches no FUNDEB), estes pequenos fragmentos de libertação, são engolidos pela totalidade injusta, que impede as transformações sociais, mantendo a lógica da exclusão. 3.4. Perspectivas e Conclusão No Brasil, se analisarmos o gasto público com educação como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), no período de 1994 a 1999, veremos que houve um crescimento relativamente baixo, de 0,4%.63. Não podemos esquecer de que se trata do investimento em educação como um todo, ou seja, desde o 62 HAYEK, Friedrich August. The use of knowledge in society/ The American Economic Review, number four, volume XXXV. Setembro, 1954. 63 IPEA/DISOC, IBGE/MP e INEP/MEC – Anexo 14. Gasto Público como Porcentagem do PIB de 1994 a 1999. 84 ensino básico até o superior. Os feitos dos governos em relação à educação no país estendem-se apenas à promulgação de leis, ou sanções de emendas e decretos; estes são, sem dúvida, o primeiro passo. Mas o que justifica nunca seguir adiante? O que justifica os esforços em se aprovar leis com forte impacto no financiamento da educação, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o FUNDEF e o próprio Plano Nacional de Educação se a porcentagem do PIB gasto com ensino é de 4%, ao passo que 8% ficam reservados aos juros e encargos da dívida pública?64 Ultimamente, vem se discutindo acerca da negociação pela troca de parte da dívida externa dos países em desenvolvimento por investimentos em educação, recém-aprovada, unanimemente, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em sua 33ª Conferência Geral. O Brasil, ao lado de países como Argentina, Venezuela e Costa Rica teve importante papel para a aprovação do apoio à conversão. E vem trabalhando no sentido de conseguir o benefício, a exemplo do que concretizou a Argentina, que obteve o perdão de parte de sua dívida (60 milhões de euros) com a Espanha. Atualmente, a dívida líquida brasileira é de R$ 192,75 bilhões, sendo que 79% desse valor não podem ser convertidos, por se tratar de dívida mobiliária. O débito com o Clube de Paris - grupo de credores formado por países do primeiro mundo - é de R$ 8,81 bilhões.65 64 65 Dados referentes ao período de 1995 a 2002. Disponível em http:// www.mec.gov.br. 85 Ao se discutir seriamente um plano de desenvolvimento nacional, torna-se imprescindível a elaboração de uma política nacional de educação como um dos pilares deste necessário programa. A escolha acerca do investimento do dinheiro público é a concretização da vontade política de se cuidar de pontos prioritários ao país. Estas questões não devem estar em níveis inferiores ao da política econômica. As políticas sociais e econômicas se complementam, não se determinam66. Destarte, não há que se pensar em desenvolvimento apenas pela ótica da economia, mas pela perspectiva de um engrandecimento da nação, tendo por base a superação individual do índice de desenvolvimento humano dos países. 66 DEMO, Pedro. Política Social, Educação e Cidadania. Coleção “Magistério: Formação e Trabalho a Pedagógico”. 4 edição. Campinas: Ed Papirus, 2001, p. 16. 86 CAPÍTULO IV Esperanças de uma educação emancipadora Para que se viabilize, praticamente, esta educação emancipadora, há que se ter claro, primeiramente, que o espaço social em que ela ocorre é o da escola. “Se a educação é um processo de transformação do indivíduo e da sociedade, a escola não pode ficar isolada das lutas mais globais da sociedade”67. A escola pública, que por ser exatamente pública, no sentido de possibilitar a convivência das diferenças e de fortalecer a atuação política, deve ser o local onde esta educação acontece. Também, é preciso investir no educador, não no especialista. O educador observa a realidade social e educacional de uma maneira global, não recortada, como o faz o especialista. Este elege como principal objetivo a mais perfeita formação técnica de seus alunos, pondo de lado sua formação humana e política. O educador ao qual nos referimos é aquele comprometido não com a burocracia do sistema educacional, mas com os alunos, os pais dos alunos, a comunidade em que estão inseridos, e com todos aqueles indivíduos excluídos da escola. Seu papel é o de organizar a cultura, não de reproduzir a lógica injusta estabelecida. É o de formar cidadãos, motivando-os a participar da vida pública, superando os obstáculos no processo de identificação do como realizar tal empreendimento. “Apesar das dificuldades encontradas, o educador pode ainda 67 a GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 9 edição. São Paulo: Cortez, 1995, p. 155. 87 ensinar não só a ler e escrever, mas ensinar a falar. Ensinar a falar, a gritar, que é o papel político do educador.”68 A educação é um processo de transformação do indivíduo e da sociedade, adquirindo papel essencial na construção de um novo paradigma que indique alternativas à lógica vigente, injusta, conformada na consciência coletiva. Ilustra, nesse sentido, Hannah Arendt69 Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusivamente do lar doméstico. Ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou reação inusitada. A educação para a emancipação não cabe nos estreitos limites do conformismo. Ela encontra seu sentido na medida em que é concebida como ação e como autonomia. A esperança na abolição desta condição de não-ação encontra grandes aliados tanto na educação quanto no Direito; aquela enquanto educação para a cidadania democrática, este enquanto busca do justo. Ambos direcionando seus esforços para a transformação social. Quando Bobbio70 discorre acerca de resistência e contestação como meios para se combater a opressão, estabelecendo que a contestação extrapola o caráter de mero comportamento, passando a figurar como uma “ruptura, uma atitude 68 Ibidem, p. 156. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 50. 70 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 144. 69 88 de crítica, que põe em questão a ordem constituída sem necessariamente pô-la em crise”, entendemos que este questionamento, por si próprio, já inicia o processo de transformação. Neste momento é que se revela o protagonismo indelével da educação, já que ela instrumentaliza a contestação, que, em um segundo momento, culminará na mudança do modelo cultural que legitima as injustiças. Do Brasil, dizem as letras das músicas que é o país do futuro. Este futuro, que implica em uma vida social com dinâmicas de relações menos violentas em todos os seus sentidos (político, humano e econômico), começa a ser construído pela educação que sua sociedade escolhe praticar, trocar, disseminar. A transformação, sem dúvida, é lenta. A educação promove a transformação no cotidiano, de forma imperceptível a olho nu, mimetiza um escultor em seu trabalho, no ato de modelar, aos poucos, seu objeto: o ser humano. 89 CONCLUSÃO Indiscutível que as desigualdades sociais brasileiras carregam o peso de uma herança histórica; mas esta mesma história em que estão inseridas é dinâmica, avança para o futuro, possibilita mudanças. O Estado tem o papel de planejar propostas de enfrentamento das desigualdades sociais. Este enfrentamento, que hoje se traduz na roupagem das políticas sociais, note-se, não chegará à completa eliminação destas desigualdades, mas possibilitará significativa redução das mesmas. A Organização Internacional do Trabalho divulgou recentemente, 71 em seu Relatório Global, a concreta relação entre freqüência escolar e trabalho infantil. Paralelamente, não se constata um compromisso real quanto ao investimento na qualidade das escolas, e não só com relação ao ensino, mas também a projetos de inclusão social que contribuam no combate à evasão escolar. Consoante o exposto no capitulo anterior, as políticas que cuidem deste aspecto específico nem sequer foram elaboradas depois de dez anos passados desde a promulgação da LDB. 71 Disponível em http://www.estadao.com.br/educacao/noticias/2006/mai/04/288.htm. "A forma que a criança vive a infância vai determinar toda a vida dela quando adulta". De acordo com o relatório, lançado no Palácio do Planalto, os números de trabalhadores infantis em todo o mundo caíram 11% entre 2000 e 2004 - de 246 milhões para 218 milhões. No Brasil, os índices de crianças de cinco a nove anos que trabalham caíram 61% de 1992 a 2004. Na faixa etária de dez a 17 anos, a exploração diminuiu 36%. O documento avalia que políticas sociais de manutenção das crianças na escola e seu sucesso escolar, conjugadas com a melhoria dos rendimentos familiares, têm alto impacto na redução do trabalho infantil. O relatório da OIT atribui a redução do trabalho infantil à vontade política, à conscientização e a ações concretas, particularmente no campo do combate à pobreza e da educação. De acordo com o texto, a América Latina e o Caribe tiveram a queda mais rápida do trabalho infantil nos últimos quatro anos.” 90 Vivemos em uma sociedade que produz para produzir; o interesse se encerra na produção de bens úteis, que tragam lucro e, conseqüentemente, a acumulação do capital. É uma sociedade formalmente igualitária, mas efetivamente (e historicamente) desigual. Como inserir, nesta lógica, esta educação emancipadora? O grande desafio da Educação é colocado: sobrepor a qualificação humana às leis do mercado, quebrando sua potencialidade inerente de figurar como instrumento de dominação. Como bem lembra Frigotto72, A qualificação humana diz respeito ao desenvolvimento de condições físicas, mentais, afetivas, estéticas e lúdicas do ser humano (condições omnilaterais) capazes de ampliar a capacidade de trabalho na produção dos valores de uso em geral como condição de satisfação das múltiplas necessidades do ser humano no seu devenir histórico. Está, pois, no plano dos direitos, que não podem ser mercantilizados e, quando isso ocorre, agride-se elementarmente a própria condição humana A educação que desejar uma sociedade justa objetiva a construção do cidadão, incutindo-lhe a noção de convivência solidária para além da competição e da concorrência, provocando-lhe a contínua auto-educação para o exercício de sua cidadania tanto individualmente como em relação a outros sujeitos. Uma revolução nos destinos do país como se pretende não se dará a partir da ação individual, mas de um bloco de forças que se unem, visando o projeto comum de um Brasil mais justo. Esta revolução se inicia na educação que escolhemos praticar. 72 FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 5ª edição. São Paulo: Cortez, 2003, p. 31-32. 91 Constata Cristóvão Buarque73 O Brasil carrega toda a tragédia e toda a potencialidade do final do século XX. E está descobrindo a necessidade de mudança. Diferentemente de outros países ricos, que não têm necessidade de mudanças, dos muito pobres e pequenos que não têm condições de imaginar ou construir mudanças, ou de países como a China e a Índia, que não sofrem nossas pressões internas, o Brasil tem todos os ingredientes da crise e de sua alternativa. Por isso, pode ser o local onde uma nova modernidade ética poderá surgir. Uma modernidade ética que coloque os valores éticos da sociedade como os valores determinantes dos objetivos sociais, estes como definidores da racionalidade econômica, para se ter a opção técnica mais conveniente, afinal. Isso representa uma subversão total na atual hierarquia do avanço técnico definindo a racionalidade econômica, que determina os objetivos sociais a serem atendidos, relegando os valores éticos da sociedade. Resta aí a esperança de uma educação para a cidadania democrática: a derradeira emancipação dos indivíduos, em prol de uma sociedade não excludente e solidária. De uma sociedade, enfim, mais justa. 73 BUARQUE, Cristóvão. A segunda abolição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 38. 92 Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BANCO MUNDIAL.Desenvolvimento da primeira infância: foco sobre os impactos da pré-escola. Brasília, 1999. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa. São Paulo: Ática, 1992. __________________________________. Cidadania, direitos humanos e democracia in Fronteiras do Direito Contemporâneo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. 1a edição. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003. BLOCH, Ernst. O princípio esperança, volume I. Rio de Janeiro: EdUerj, 2005. BOBBIO, Norberto. 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