Filosofia – Filosofia na Idade Média: Introdução A filosofia na Idade Média se divide em dois períodos: a filosofia patrística, que começa no século I e se estende até o século VII; e a filosofia escolástica, que compreende o período do século VIII ao século XIV. Filosofia Patrística A filosofia desse período é assim chamada por ser obra não só de dois apóstolos (Paulo e João), mas também dos chamados Padres da Igreja, isto é, dos primeiros dirigentes espirituais e políticos do cristianismo, após a morte dos apóstolos. A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião – o cristianismo – com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê-los a ela. A filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos grecoromanos: a idéia de criação do mundo a partir do nada, do pecado original do homem, de Deus como trindade uma, de encarnação e morte de Deus, de juízo final, de como o mal pode existir no mundo, etc. Para impor as idéias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus, por meio da Bíblia e dos santos, que, por serem decretos divinos, seriam dogmas, isto é, verdades irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge uma distinção desconhecida pelos antigos: as verdades reveladas pela fé e verdades da razão ou verdades humanas. Ou seja, os primeiros filósofos da Idade Média fazem uma distinção entre verdades sobrenaturais, o conhecimento recebido pela graça divina, e as verdades naturais, provindas do simples conhecimento racional; sendo a primeira superior a segunda. Essa é a diferença fundamental da filosofia da Idade Média em relação de todas a s filosofias que a precederam. Segundo toda filosofia medieval, toda filosofia anterior ao aparecimento de Cristo padecia do mesmo erro fundamental e estava infectada por uma única e mesma heresia. O poder da razão era exaltado como o mais alto poder do homem. Mas o que o homem jamais poderia ter sabido, até ser iluminado por uma revelação divina, é que a própria razão é uma das coisas mais questionáveis e ambíguas do mundo. A razão não nos pode demonstrar o caminho para a clareza, a verdade, e a sabedoria porque é, em si mesma, obscura em seu sentido, e sua origem está envolta em mistério – um mistério que só pode ser solucionado pela revelação cristã. Desta forma, o grande tema de toda Filosofia patrística é o da possibilidade ou impossibilidade de conciliar a razão com a fé. A esse respeito, haviam três possibilidades: 1.) 2.) Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior a razão “Creio por ser absurdo”. Entre eles se destaca o papa Tertuliano. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé - “Creio para compreender”. Assim pensava Santo Agostinho por exemplo. 3.) os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem se misturar a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida futura. Por exemplo, Clemente de Alexandria. Os inícios do período patrístico – A religião cristã O Cristianismo propõe uma doutrina sobre a natureza de Deus e do homem, sobre a origem do mundo e da humanidade, sobre a divina providência, as relações entre o homem e Deus, o destino da pessoa humana etc. Em todos os tempos os cristãos refletiram sobre esse conteúdo da fé, para defini-lo exatamente, organizá-lo e justificá-lo. Tal esforço de reflexão foi indispensável para o pleno desenvolvimento da religião cristã e à sua defesa contra a heresia e a descrença. Ou seja, os filósofos cristãos tomaram a tarefa de fornecer, principalmente em vista aos infiéis, uma justificativa racional da atitude dos cristãos. Nesse sentido, como os primeiros padres da igreja ocuparam-se em escrever em defesa das perseguições e acusações dos pagãos ao Cristianismo, em decorrência foram chamados de apologistas. Entre os apologistas destacava-se São Justino, considerado o fundador da patrística, que se propôs a demonstrar que a doutrina de cristo completava o velho testamento, sustentando que a filosofia já pregava o prenúncio do Cristianismo, buscando transformar Platão em discípulo de Moisés. Na verdade, toda literatura cristã sofre forte influência de Platão, e sua filosofia vai ser paulatinamente colocada ao lado de uma teologia, palavra esta que é na verdade a própria filosofia cristã. O pensamento na Idade Média passa a ser subordinado em primeiro lugar à Bíblia, e depois no papa, nos santos, ou de outros padres da igreja. Dos filósofos gregos, apenas Platão, e ao final da Idade Média, Aristóteles tinham alguma autoridade. Assim, os teólogos, ou filósofos cristãos, defendiam o que se convencionou chamar de princípio de autoridade, isto é, uma idéia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (a Bíblia, os santos, padres e papas. SANTO AGOSTINHO – AURÉLIUS AGUSTINUS (354 – 430) Vimos que com Santo Agostinho o homem vive em uma constante contradição, sua vida passa em uma tensão constante: ao mesmo tempo em que deseja a vida eterna e beata, convivendo no Amor e na Paz com o Pai Celeste e Misericordioso, experimenta o peso do Pecado Original em seu íntimo, puxando-o para baixo, para a desgraça e para a morte. Com isso, a natureza humana torna-se uma fonte de combate constante; a culpa em virtude de ter pecado, e a necessidade de se corrigir mediante uma nova aliança com Deus (o cristianismo), de agora em diante vão marcar para sempre a história do homem. Este se tornou um animal corrompido, lutando consigo mesmo para superar sua natureza pervertida e recolocar-se no caminho do bem. Mas a fraqueza típica dos humanos, a escravização do corpo às paixões desenfreadas, impede-os de alcançar o sublime e de viver segundo o espírito. Escutemos as palavras desse grande filósofo e cristão, e aprendamos com ele todo o sofrimento e fraqueza que caracterizam a vida humana, e ao mesmo tempo, todo o heroísmo e glória à que podemos alcançar quando agimos retamente: “Deus, Autor das naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas depravado por sua própria vontade e justamente condenado, gerou seres desordenados e depravados. Estivemos todos naquele um quando fomos todos aquele um [Agostinho se refere a Adão] que caiu em pecado pela mulher, dele feita antes do pecado. Ainda não fora criada e difundida a nossa forma individual, forma que cada qual havíamos de ter, mas já existia a natureza germinal, de que havíamos de descer todos. Desta [a natureza humana], viciada pelo pecado, ligada pelo vínculo da morte e justamente condenada, o homem, nascendo do homem, não nasceria de outra condição. Por isso, do mau emprego do livre-arbítrio originou-se verdadeira série de desventuras e desgraças, que de princípio viciado, como se corrompido na raiz o gênero humano, arrastaria a todos, em concatenação de misérias, ao abismo da morte segunda, que não tem fim, se a graça de Deus não livra-se alguns.”( Santo Agostinho: “A Cidade de Deus contra os pagãos”). Seu sofrimento é, portanto, merecido. A luta interior que o leva contra si próprio, a sua miséria, todo o trágico de sua existência são incompreensíveis se não se reconhece culpabilidade. É, pois, a vontade do homem que, ao fazer mal uso do livre-arbítrio, lhe confere um lugar e um significado muito particular no cosmos. É a vontade do homem que o faz uma espécie de adversário, de rival de Deus; que estabelece entre Deus e o homem uma relação muito particular que não se poderia comparar a nenhuma outra. Agostinho nos diz: “O homem e Deus encontram-se colocados um frente ao outro numa relação de vontade: vontade humana contra vontade divina” (Idem). Estamos, portanto, ligados a Deus por nossa vontade: o vínculo entre homem e Deus é uma relação de vontade; toda vida humana está ligada a Deus. Neste sentido, o ser humano é uma figura religiosa, tal como Deus. Tratam-se, na verdade, de representações correlativas, ou seja, não há nenhum Deus em si, mas somente o deus do homem, tal como não existe nenhum homem em si, mas apenas o homem que pecou relativamente a Deus e Lhe pede para ser salvo; não para ser uma criatura de outra espécie, mas para se aproximar o máximo possível, enquanto homem, da perfeição. Assim, não existe, na filosofia agostiniana, por um lado homem e por outro Deus, que em seguida seria preciso relacionar entre si. De alguma forma misteriosa, o homem tem o seu Deus em seu interior, e Deus tem o homem, em sua Bondade e Misericórdia. As questões filosóficas que Santo Agostinho se coloca concentram-se inteiramente no homem. O homem é um problema que só no transcendente encontra a sua plena e completa solução. Desta forma, o homem terrestre supõe o homem celeste; o homem terrestre não pode compreender-se a não ser em relação ao homem celeste, do mesmo modo que o homem celeste supõe o homem terrestre. Ou nas palavras de Agostinho: “O que eu era, e o que serei; ambos são necessários para explicar o homem que sou” (Confissões). Assim, a vida é um devir, um vir-a-ser para uma finalidade. Uma ascensão aberta por Deus para a beatitude, ou o fim do pecado, a morte eterna. Esta experiência total da miséria humana surge na concupiscentia, ou seja, na concupiscência, deleite ou luxúria carnal. No homem existe algo de negativo, é pecador, e o pecado o separa de Deus, mantendo-o preso a esta terra. Eis porque deve lutar sempre consigo próprio, dominar-se. Do sentimento de admiração pelo homem que se encontra em toda Antiguidade clássica – de Sófocles a Aristóteles e Marco Aurélio – surge um sentimento de inquietação pelo homem; há uma nostalgia de paz que não pode ser alcançada na terra. O seu destino será sempre o de querer, suspirar, esperar. É assim também que Agostinho vai encarar o problema das relações humanas na Cidade de Deus. Cidade dos Homens, Cidade de Deus. A Cidade Terrestre: a ética do conflito. Do mesmo modo que o homem é tirano de si mesmo, para Agostinho, também as relações humanas serão regidas pelo desejo de domínio de um homem sobre outro. A coerção, relação exclusiva do mundo decaído, precisa ser exercida; até mesmo para manter alguma ordem nesse mundo pecador. A dominação do homem sobre o homem não é, portanto, como era para Aristóteles, um dado do mundo natural, e sim uma criação humana, um instrumento forjado por seres decaídos para organizar suas vidas nesse mundo. Do mesmo modo, a vida política terrena e tudo o mais o que a ela segue. É por isso, inclusive, que a dominação terá lugar tanto entre pagãos quanto entre povos cristãos, indiscriminadamente. Pois governos terrenos são criações humanas que nada tem em comum com o domínio exercido pelo Pai no Paraíso sobre seus filhos. O domínio dos homens se dá pela força, o de Deus, como veremos, se dá por meio do Amor. Neste sentido, os homens estão, neste mundo, condenados à experiência da violência, que tem sua gênese na queda da humanidade em pecado. A única autoridade que Agostinho reconhece como natural é a autoridade do pai de família sobre a mulher e seus filhos. Diz ele na Cidade de Deus que a autoridade familiar “é prescrita pela ordem da natureza: é deste modo que Deus criou o homem”. Apoiado no livro Gênesis (I. 28), Agostinho afirma que Deus criou o homem para exercer domínio apenas sobre as criaturas irracionais e membros de sua própria família. Podemos afirmar que Agostinho não está interessado em explicar as instituições políticas. Não se pergunta, diferentemente de outros filósofos qual a melhor constituição de governo, ou como através de um processo social e histórico um regime se converte em outro. O que nosso filósofo procura saber é como se adequam as relações entre os homens. E ele responde: na Cidade Terrestre, pela Ética do Conflito. Mas o que vem a ser isso? Ele observa que alguns seres humanos têm autoridade de governar, ou melhor, de controlar as ações de outros, usando de coerção para tanto. Isto é profundamente antinatural ao homem, ao menos fora da família. Perguntando-se como a autoridade política veio a ser e qual sua finalidade, responde que isso provem da condição pecaminosa do homem, que precisa, para uma possibilidade de convivência uns com os outros, ser submetido e restringido pela força ou ameaça de força. Ou seja, se o Pecado Original não tivesse sido cometido, nós seríamos regidos apenas pela autoridade paterna, pelo núcleo familiar, esta sim derivada da condição natural do homem. Mas a desordem psicológica provocada pela queda de Adão, torna extremamente difícil para qualquer um de nós viver em paz conosco e com nossos semelhantes. Assim, a tendência humana ao conflito é tão forte que a paz não pode ser alcançada em grupos apenas governados por poder de tipo paterno. A autoridade para dar ordens, o porque de alguns deterem o poder de fazê-lo em detrimento de outros, é segundo Agostinho, provinda de Deus. Toda autoridade vem, em última instância, de Deus, que ordenou a autoridade política como um remédio terrestre para o pecado e os excessos do homem. Dito isso, ainda resta uma pergunta: qual a atitude ética correta, o rumo a seguir nessa terra tão infeliz e conflitante? Agostinho responde essa questão a partir de dois termos latinos: uti et frui, ou seja, usar e fruir. Segundo ele, moralmente só podemos fruir, alegrar-se e gozar dos bens eternos, pois só neles podemos repousar. Com relação às realidades terrestres, só nos cabe utilizálas, sem fruí-las, para que nos ajudem a procurar a alegria e a paz eterna. O comportamento pervertido, concupiscente, é aquele que procura gozar, alegrar-se e fruir dos bens terrenos, ignorando que a finalidade do homem é a beatitude e o Paraíso na eternidade. Assim, a avareza é o comportamento do homem que prefere fruir das riquezas terrenas em detrimento das riquezas eternas que não passam. A luxúria é o comportamento do homem que procura fruir a beleza e os prazeres da carne acima da Eterna Beleza e da Eterna Alegria. A soberba é o comportamento que procura fruir do próprio ego, dispensando o auxílio divino. Portanto, como diz Agostinho, “quem ama perversamente um bem torna-se escravo deste bem” (Cidade de Deus). É a ética da fruição dos bens divinos (frui), compatibilizada com a utilização dos bens terrenos (uti) que são instrumentos que alimentam a vida na nossa caminhada em direção ao verdadeiro bem e única e suprema felicidade. A Cidade de Deus: ética do amor. Se a Cidade Terrestre é guiada pela ética do conflito, pelo amor próprio, a Cidade Celeste é guiada pelo verdadeiro amor, o amor a Deus. A síntese dessas duas éticas está esplendidamente descrita na seguinte passagem d´ A Cidade de Deus: “Dois amores fundaram duas cidades, a saber: o amor de si levado ao desprezo de Deus, a terrestre; o amor de Deus levado ao desprezo de si mesmo, a celeste. Gloria-se a primeira cidade em si mesma em si mesma e a segunda em Deus; aquela busca a glória dos homens e esta tem por princípio a glória de Deus”. Uma afirmação básica da filosofia agostiniana, que foi retirada da platônica, é que a felicidade consiste em agir conforme a razão e o livre-arbítrio, acrescentando após sua conversão, também agir conforme a fé, buscando a verdade e a ordem. A virtude e a sabedoria consistem em obedecer à ordem, inscrita por Deus na natureza das coisas. Este fundamento ético, em partes retirado de Platão, mas reinterpretado pela ótica cristã, leva Agostinho a uma confiança na ordem natural das coisas como caminho para a transcendência divina e da felicidade humana. Adaptando o pensamento platônico ao modelo da fé cristã, Agostinho sustenta com firmeza a liberdade como fundamento da ética, visando com isso negar as forças externas, os corpos celestes, por exemplo, como determinantes da vontade humana, conforme sustentavam várias teorias de seu tempo. Não há um “destino” que nos impele fatalmente, como queriam os estóicos; o homem tem inteligência e o dom da fé e liberdade para decidir seu agir na direção da cidade celeste. Desta forma, a ética do amor funda-se na ordem das coisas criadas, no escalonamento das coisas criadas cada um em seu lugar. É como diz o livro da Sabedoria da Bíblia: “Deus tudo fez conforme medida, número e peso” (Sb 11, 21). As coisas pequenas se subordinam às grandes, as coisas corporais à vida, a vida vegetal à animal; esta ao homem e o homem à Deus. Esta é a famosa schala rerum ou os degraus das criaturas. Esta é a lei natural: a subordinação dos seres materiais e vivos. Vegetais, animais, humanos e Deus; este é o ordenamento natural das coisas, e apenas o homem, provido de razão, pode compreendê-lo. A lei natural é o espelhamento da lê eterna, “a vontade divina que manda conservar a ordem e proíbe sua perturbação”. Portanto, a lei eterna é a própria mente divina, Deus, que criou a essência de cada coisa e projetou-a na natureza, criando assim o mundo das realidades terrestres bem ordenado. Da lei eterna, em Deus, e da lei natural, nas coisas do mundo, deduz-se toda ética e moral cristã. Um só é o princípio da ética na Cidade Celeste: o amor. E a ética do amor consiste em amar a Deus criador e amar as criaturas porque são obras dele. Nelas nós vemos a imagem de Deus que amamos. Esta é a suprema regra da moralidade: o amor a Deus e às criaturas dele. O oposto da ética do amor é a idolatria que consiste em amar as criaturas e a elas apegar-se sem referi-las a Deus. Portanto, o agir humano que respeita a ordem das criaturas necessariamente vai a Deus.Esta é a maneira de atingir a verdade divina: o amor incondicional a Deus. E esta é a dinâmica da Cidade de Deus: sua autoridade é exercida por meio do amor perfeito, já que Ele é o Pai celeste e perfeito e somos todos seus filhos. Diferentemente da Cidade Terrestre não poderia haver coação, pois não é o conflito, mas o amor puro que rege a Cidade Celeste. Da mesma forma, a obediência a Deus vem porque nós O amamos, e não agimos assim porque somos obrigados, mas porque nos encontramos em perfeita comunhão com o Senhor e o amamos acima de tudo, por tudo ter criado e nos levado à vida eterna.