73 O ensino da variação linguística por intermédio do texto literário Willian Souza Universidade Estácio de Sá Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir de forma teórico-prática o ensino da variação linguística por intermédio do texto literário. Apresenta-se por meio de um estudo de caso de caráter multifacetado da língua presente na letra da canção “Samba do Arnesto”, de Adoniran Barbosa, e do poema “Pronominais”, de Oswald de Andrade, aos quais se segue a proposta de algumas atividades a serem desenvolvidas na sala de aula. Para a investigação foram utilizadas como fontes diversos referenciais teóricos de renomados autores. Em tempo, os resultados demonstraram que o ensino da variação linguística, tendo o texto literário como recurso pedagógico, pode ampliar nos indivíduos a competência comunicativa, ou seja, permiti-lhes uma utilização da língua nos mais diversos propósitos comunicacionais. Palavras-chave: Variação Linguística. Preconceito Linguístico. Texto Literário. Língua Portuguesa. Introdução De acordo com Mollica (MOLLICA, 2015, p. 9), “a sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação que correlaciona aspectos linguísticos e sociais”. Assim, nota-se que o objeto de estudo da sociolinguística é a língua em uso pelos mais diversos falantes e, ainda segundo essa autora (Ibidem, p.9), “esta ciência se faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos linguísticos concretos, em especial os de ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 74 caráter heterogêneo”. Sendo assim, é de suma importância refletir a respeito da variação linguística porque na realidade, toda língua, quer sirva a uma grande nação consideravelmente extensa e muito diferenciada cultural e socialmente, quer pertença a uma pequena comunidade isolada de apenas poucas dezenas de indivíduos, é um complexo de variedades, um conglomerado de variantes. (BAGNO, 2012, p. 11). Se o linguista Marcos Bagno se refere à língua como um complexo de variedades, como um acumulado de variantes, torna-se oportuno questionar a respeito da possibilidade de compreensão da língua como um ser homogêneo: “existe língua homogênea?” A língua é dinâmica, viva, heterogênea, modifica-se ao longo do tempo, o que valoriza ainda mais a diversidade linguística. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs (1998) apresentam a seguinte abordagem: Linguagem aqui se entende, no fundamental, como ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua história. Os homens e as mulheres interagem pela linguagem tanto numa conversa informal, entre amigos, ou na redação de uma carta pessoal, quanto na produção de uma crônica, uma novela, um poema, um relatório profissional. (BRASIL, 1998, p. 20) Os PCNs permitem a constatação de que o ensino de língua portuguesa, por volta dos anos 1960 e 1970, esteve demasiadamente preso a concepções normativas. No entanto, a partir dos anos 1980, as críticas referentes a tal ensino ganharam força devido aos estudos linguísticos articulados ao plano social, à natureza heterogênea da língua. Começou-se, então, uma reflexão sobre as finalidades da educação linguística, de seus conteúdos, reconhecendo a urgência de que a educação passasse por uma revisão que coadunasse com a nova realidade educacional do país. Levantaram-se questões relativas ao excesso de metalinguagem fora do contexto, à desconsideração da realidade social dos alunos, à priorização em demasia da gramática normativa, ao preconceito com determinados usos linguísticos, à desvalorização do falar dos estudantes das classes menos abastadas, dentre outras. Considerando o exposto, as perguntas que originam esta pesquisa, a saber “as variações linguísticas estão presentes em sala de aula?” e “como o texto literário pode contribuir para a análise e ensino dessas variações?”, permite pensar sobre novas perspectivas para as práticas de ensino de língua materna, sobre a importância do trabalho com textos reais, a valorização das variedades linguísticas dos alunos, como o ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 75 preconceito linguístico deve ser combatido em todo âmbito educacional, bem como também a revisão do conceito de erro. Quando o professor desenvolve um ensino essencialmente metalinguístico, torna-se preso à visão dicotômica “certo e errado” do emprego da língua. Essa visão não permite ao aluno o conhecimento e o reconhecimento da heterogeneidade da língua e lhe dificulta ser um “estrategista da linguagem”, alguém que organiza seu discurso conforme propósitos comunicativos (KOCH, 2006). O patrimônio cultural, que é a língua portuguesa, torna-se enriquecido pelas variações. Sendo assim, neste trabalho, apresenta-se um estudo de caso da variação linguística presente no “Samba do Arnesto” de Adoniran Barbosa. A justificativa pela escolha de um segundo corpus, a saber, o poema “Pronominais” do poeta modernista Oswald de Andrade, dá-se a partir da pretensão de demonstrar como ele pode contribuir para análise e ensino da heterogeneidade da língua, e também por ele ser rico na exploração de recursos linguísticos. Eugenio Coseriu (COSERIU, 1982, p.146) afirma que “a linguagem poética revela-se não um uso linguístico entre outros, mas linguagem simplesmente (sem adjetivos): realização de todas as possibilidades da linguagem como tal”. Desse modo, objetivando dialogar e contribuir com o docente de língua materna, produziu-se uma sequência de atividades relacionadas ao poema “Pronominais” a fim de possibilitar a observação de que há lugar tanto para a língua popular (heterogeneidade linguística) quanto para a língua padrão nas aulas de língua, e lugar para a realização do ensinoaprendizagem da leitura e da produção textual. 1 A língua compreendida como um produto heterogêneo A língua tem como principal função a comunicação e, por isso, deve ser entendida como uma atividade social que corresponde a Um conjunto de usos concretos, historicamente situados, que envolvem sempre um locutor e um interlocutor, localizados num espaço particular, interagindo a propósito de um tópico conversacional previamente negociado. [...] é um fenômeno funcionalmente heterogêneo, representável por meio de regras variáveis socialmente motivadas (CASTILHO, 2000, p. 12). Ressalta-se, pois, que a língua é historicamente situada e heterogênea, o que significa dizer que ela está sujeita a variações e mudanças no espaço e no tempo. Dessa ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 76 forma, o sistema linguístico não é homogêneo, mas é constituído de regras variáveis (ao lado de regras categóricas), que atuam em todos os níveis linguísticos: fonológico, morfológico, sintático, lexical e discursivo. Essas regras variáveis são passíveis de sistematização. Pode-se definir a língua como uma constituição de variedades linguísticas, também chamadas de dialetos. Segundo os PCNs (1998), “a variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Dessa forma, a Língua Portuguesa pode ser entendida como uma unidade que se constitui de muitas variedades. [...]”. A Sociolinguística, por sua vez, descreve a variação segundo os seguintes tipos: variação regional ou geográfica, variação social e variação estilística, os quais são descritos abaixo. 1.1 A variação geográfica Podendo ser chamada de variação regional ou diatópica (do grego dia = através de; topos = lugar), a variação geográfica relaciona-se às diferenças linguísticas observáveis entre falantes oriundos das mais diversas regiões de um mesmo país ou de diferentes países. Podem-se observar diferenças tanto entre o português falado na Europa (Portugal, Açores, Madeira), na África (Angola, Moçambique, Guiné Bissau) e na Ásia (Goa, Macau), com o português do Brasil, como entre os falares das várias regiões do Brasil, como por exemplo, Nordeste e Sul. São inúmeras as diversidades do Português falado no Brasil e em Portugal, no campo da fonética, que se refere no modo de pronunciar os sons da língua. O brasileiro diz “eu sei”, enquanto que o português diz “eu sâi”. No campo sintático, tem-se a diferença no modo de dispor as frases, as orações e as partes que as compõem, pois, enquanto no Brasil se diz “estou falando com você”; em Portugal, “estou a falar consigo” (BAGNO, 2015). Ainda segundo o mesmo autor, no campo do léxico, acentua-se ainda mais as diferenças entre essas duas variantes, pois há palavras que existem no Brasil e não existem em Portugal, ou vice-versa. O português chama de “soloio” o habitante da zona rural, enquanto aqui no Brasil chama-se de “matuto”, “caipira”, “capiau”. ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 77 As variações diatópicas, por seu turno, são aquelas que acontecem entre falares locais ou regionais, que podem ser compreendidas como dialetos. Num país imenso como o Brasil, percebe-se diferenças entre os falares gaúcho, paulista, carioca, baiano e outros. Veja-se o exemplo da palavra “mandioca”, muito utilizada no Sul e no Sudeste, já no Norte e Nordeste, recebe o nome de “aipim”. 1.2 A variação social A variação social refere-se à diferença percebida entre as diversas camadas da sociedade. Também conhecida como variação diastrática, encontra-se em grupos sociais distintos, em que classe social, idade, sexo, nível de escolaridade são alguns dos fatores a ela atribuídos. Um exemplo típico de variação social de acordo com Bagno (BAGNO, 2015, p.44) é a rotacização do L nos encontros consonantais, conforme acontece em Cráudia/Cláudia, grobo/globo, pranta/planta, ingrês/inglês, broco/bloco. Torna-se oportuno destacar que a variação social não impede a compreensão entre indivíduos e, muito embora a utilização de determinadas variantes possam indicar o nível socioeconômico de uma pessoa, há a possibilidade de um individuo menos abastado (como por exemplo alguém que diga: “Fessora! A sinhora ia mi castiga purarguma coisa qui eu num fiz?”) atingir o padrão de maior prestigio social (por exemplo, essa mesma pessoa dizer: “Professora! A senhora iria me castigar por alguma coisa que eu não fiz?”). Não raro, o individuo que faz uso da norma não padrão é acusado de “não saber português”, de “falar feio”, o que denota claramente um preconceito silencioso, mesquinho, denominado de preconceito linguístico. Marcos Bagno adverte: O que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e revista, em livros e manuais que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem falar, é claro, dos instrumentos tradicionais de ensino da língua: as gramáticas normativas e parte dos livros didáticos disponíveis no mercado. (BAGNO, 2015, p. 21) Verifica-se, nesse sentido, que o individuo, quando se manifesta oralmente, acaba por expor sua origem regional e social. É como que se pelo seu registro oral, a sua identidade revelasse a sua pertença a algum tipo de grupo social, o que contraria a ideia de sofrer qualquer tipo de preconceito pelo modo de falar. ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 78 1.3 A variação estilística Conhecida também como variação contextual ou de registro, a variação estilística se apresenta nas mais diversas situações comunicativas, ambiente familiar, profissional, na roda de amigos, enfim, a depender da circunstância comunicacional. Alguns contextos socioculturais exigem maior formalidade, ou seja, demandam do falante o uso de uma linguagem mais elaborada e cuidada, denominada registro formal, o qual pode ser verificado em uma palestra ou conferencia acadêmica. Outros contextos socioculturais exigem menor formalidade, em que o indivíduo usará uma linguagem menos monitorada, menos elaborada e mais descuidada, que ocorre em situações familiares, no barzinho com os amigos e também em momentos informais, quando se utiliza uma linguagem mais coloquial. Compreende-se, então, a necessidade de o falante possuir habilidades dos usos linguísticos, a fim de saber adequar a sua fala aos mais variados níveis de comunicação, desde os informais aos mais formais, demonstrando, assim, a sua competência comunicativa. O que norteia a variação estilística são justamente os domínios em que se dão as práticas sociais (universidade, lar, trabalho, etc), as relações sociais envolvidas (professor-aluno, pai-filho, patrão-empregado, etc), o tipo de assunto (religião, esporte, brincadeiras, etc). O fato é que os diversos modos de variação linguística não se isolam entre si; na verdade elas se relacionam. É um mito pensar que a aprendizagem da norma culta pode contribuir para que o indivíduo “cresça socialmente”. De acordo com Bagno (Ibidem, p.106) “achar que basta ensinar a norma-padrão a uma criança pobre para que ela „suba na vida‟ é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas nas penitenciárias para resolver o problema da violência urbana”. 2 “Samba do Arnesto”: um estudo de caso da variação linguística Torna-se evidente a necessidade de a variação linguística estar presente na sala de aula, na prática pedagógica do professor. Constitui papel da instituição escolar proporcionar ao aluno meios de ampliar suas experiências linguísticas e seus recursos comunicativos, haja vista que quando ele chega à escola já traz consigo um conhecimento prévio das regras do português não padrão, da variedade popular ou ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 79 coloquial e também de registros ou estilos que não são monitorados ou são pouco monitorados. Cabe à escola propor ao aluno o desenvolvimento de uma competência que lhe garanta uma forma de assumir outras funções sociais, visto que: Todo falante dispõe de suficiente competência linguística em sua língua materna para produzir sentenças bem formadas e comunicar-se com eficiência. Ao chegar à escola, portanto, todos os alunos brasileiros que têm o português como língua materna já são competentes em língua portuguesa [...] mas têm de ampliar a gama de seus recursos comunicativos para poder atender às convenções sociais, que definem o uso linguístico adequado a cada gênero textual, a cada tarefa comunicativa, a cada tipo de interação. (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 75). Entrando em contato com o fenômeno da variação linguística, na perspicácia de suas funções sociais, o discente amplia seu saber expressivo e passa a reconhecer a necessidade de transitar por entre as variedades, promovendo, pois, adaptações ao assunto, aos tipos de texto, ao interlocutor, as intenções de comunicação etc. O entendimento acerca da variação linguística não visa a fazer o “erro” desaparecer e muito menos fazer com que o aluno escreva “errado”, mas se constitui uma amostra de possibilidades para que ele adapte seu texto às diversas circunstâncias do ato de fala, ou seja, propõe uma reflexão crítica acerca da língua. Veja o que diz Travaglia (2001), ou melhor, a forma como ele analisa as possibilidades de uso da língua: Achamos natural exigir que o aluno aprenda a norma culta para utilizá-la em determinadas situações sociais de comunicação social, mas achamos absurdo, por exemplo, exigir que alguém tivesse de aprender o dialeto caipira para falar com o pessoal da zona rural de determinadas regiões do país (sobretudo sul de Minas Gerais e parte de São Paulo). Por quê? Os falantes da norma culta ”exigem” que o caipira aprenda seu modo de falar para circular entre eles, mas o contrário não acontece: os caipiras não “exigem” que os falantes da norma urbana culta aprendam seu dialeto pra circular entre eles. Aprender dialeto caipira será sempre uma “concessão” dos membros do outro grupo social, por interesse científico, ou porque isso pode ser interessante, cômico, exótico, etc. (TRAVAGLIA, 2001, p. 64). O ensino de língua portuguesa deve favorecer um espírito investigativo ao aluno em relação à variação, por meio de múltiplas atividades, dentre as quais a identificação das regras da variedade não padrão em oposição com a variedade padrão. Isso pode lhe permitir um domínio maior da variedade padrão bem como lhe conduzir ao combate ao preconceito linguístico e a valorização do seu próprio falar. Acredita-se que assim o aluno identificar-se-á mais com a variação de sua fala, sem que o estudo da ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 80 norma padrão lhe pareça algo imposto de maneira brusca, fazendo-o sentir-se desprivilegiado pela língua que usa. Ao contrário, ele passará a perceber que a língua deve ser utilizada em conformidade com cada momento comunicativo e compreenderá o papel transformador da escola ao proporcionar ao aluno desenvolver sua competência comunicativa. Segundo Soares (1995): Em primeiro lugar, uma escola transformadora não aceita a rejeição dos dialetos dos alunos pertencentes às camadas populares, não apenas por eles serem tão expressivos e lógicos quanto o dialeto de prestígio, mas também e, sobretudo, porque essa rejeição teria um caráter político inaceitável [...] Em segundo lugar, uma escola transformadora atribui ao bidialetalismo a função não de adaptação do aluno às exigências da estrutura social, como faz a teoria das diferenças linguísticas, mas a de instrumentalização do aluno, para que adquira condições de participação na luta contra as desigualdades inerentes a essa estrutura. (SOARES, 1995, p. 74). Nessa perspectiva é que se propõe uma análise da letra da música de Adoniran Barbosa, intitulado “Samba do Arnesto”, com a qual se almeja comprovar o escopo teórico aqui apresentado e também mostrar o quanto de realidade há nela no que se refere não só a variação linguística, como também da vida de um povo. Veja-se a letra da canção: O Arnesto nos convido prum samba, ele mora no Brás Nóis fumos e não encontremos ninguém Nóis vortemo cuma baita duma reiva Da outra veiz nóis num vai mais Nóis não semos tatu! Outro dia encontremo com o Arnesto Que pediu descurpa mais nóis não aceitemos Isso não se faz, Arnesto, nóis não se importa Mais você devia ter ponhado um recado na porta Um recado anssim: "Ói, turma, num deu prá esperá Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância Assinado em cruz porque não sei escrever Arnesto". A letra da música retrata fielmente a linguagem típica do Bexiga. Adoniran utilizou essa variação linguística para contar, de forma amena, pequenas tragédias cotidianas das favelas e dos subúrbios de São Paulo. Percebe-se já de início, no título do texto, a variação no emprego do nome próprio, para muitos uma incorreção gramatical, já que o nome do personagem Arnesto é uma derivação popular de Ernesto, o que bem configura a variação social, a qual envolve fatores concernentes à organização socioeconômica e cultural da comunidade de falantes. Logo, é comum nas classes sociais menos abastadas e menos escolarizadas a troca de fonemas ao registrarem seus ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 81 filhos (por desconhecerem o nome correto ou simplesmente por criatividade). Assim é que Ernesto vira Arnesto. Merece também serem destacados os tempos verbais utilizados na letra da música, que apontam para o português não padrão, que, segundo Bagno (BAGNO, 2015, p.28) “é a língua da grande maioria dos pobres e dos analfabetos do nosso povo. É também, consequentemente, a língua das crianças pobres e carentes que frequentam as escolas públicas”. Observa-se que as formas verbais, tais como “fumos”, “encontremo”, “fiquemo”, “vortemo”, embora respeitem a formação do plural, apresentam variações. Para Bagno (Ibidem, p. 51) o português não padrão “é mais sóbrio, mais econômico, mais modesto, menos „vaidoso‟ Sua regra de plural é a seguinte: „marcar uma só palavra para indicar um número de coisas maior que um”. É muito criativo o emprego de “ponhado” ao invés de “posto”, ocupando o lugar de um verbo regular como “colocar” ou “botar”. Outra característica que dá ritmo, musicalidade, ao texto é a troca do fonema /l/ pelo /r/ em algumas palavras, como em “vortemo” ou “descurpa”. De acordo com Bagno (Ibidem, p. 46) “quem diz broco em lugar de bloco não é „burro‟, não fala „errado‟, nem é „engraçado‟, mas está apenas acompanhando a natural inclinação rotacizante da língua”. Nota-se, ainda, como ocorre a colocação do “i” entre a vogal e o “s” final das sílabas (como em “nóis”, “mais”, “veiz”), ou mesmo as variações em “anssim”, “reiva” e “pidiu”. Considerando o exposto, a letra da música de Adoniran Barbosa traz muitas marcas da oralidade, convergindo, portanto, à ideia de que a variação linguística existe mais marcadamente no registro oral da língua. A análise linguística do “Samba de Arnesto” leva a uma reflexão da necessidade da utilização dos elementos linguísticos inquirindo as possibilidades do sistema, bem como conhecer diversas gramáticas (tais como: normativa, descritiva, implícita, internalizada, reflexiva, entre outras), de modo a facultar ao aluno a ampliação de seu conhecimento idiomático. A simples e desnecessária “incorporação” de regras gramaticais obsoletas e deterministas desrespeita as variedades linguísticas assim como as identidades culturais dos falantes. 2 O ensino da variação linguística por meio do texto literário O texto literário se revela como um relevante recurso para a exploração da variação linguística em sala de aula, onde nem sempre é permitido fazer a manobra de ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 82 corpus da modalidade falada da língua de modo a permitir a criação ou a recriação, de forma estética, da realidade extralinguística e linguística, em especial, dos mais diversos níveis de língua e dos registros de fala. Percebe-se no texto literário uma riqueza de recursos que refletem a própria realidade, de tal sorte a criar mundos possíveis, demonstrar a diversidade da linguagem e a multiplicidade social. A partir do auxílio desse tipo de texto, o docente de língua materna pode conduzir o discente à reflexão sobre os recursos linguísticos da obra aumentando, assim, sua competência linguística, pois a tomada de consciência da variação linguística promove no aluno a capacitação de dar mais verossimilhança a um texto construído por ele. Conforme o aluno se apresenta como detentor da diversidade de recursos linguísticos, a produção textual é vista como uma atividade criativa de exposição da variação linguística e, dessa forma, o aluno trilha o caminho “uso > reflexão > uso”, que fora proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,1998, p.40). A variação linguística presente nos textos literários refere-se a um tema abordado em outros momentos por diversos linguistas brasileiros. Cita-se, como exemplo, Dino Pretti (1977), que traz uma fundamentação teórica da sociolinguística a partir de textos do Romantismo e do Modernismo brasileiro, razão porque, neste trabalho, para adentrar o cenário da variação linguística por intermédio do texto literário, busca-se sustentação nesse renomado linguista, tomando-o como referência. A opção pelo poema “Pronominais” de Oswald de Andrade é decorrente de ele apresentar a variação linguística. Assim, a escolha justifica-se pela facilidade de aplicação pedagógica desse texto haja vista que, em poucas aulas, é possível ler e trabalhar com a linguagem e a variação linguística em conjunto com os alunos, possibilitando-lhes sentir a poesia, saboreá-la, de modo que ela os eleve, transporte-os a outros estágios, causando-lhes bem estar. A leitura deve ser viabilizada por fruição, o ler, por gosto, por prazer, e não por obrigação, numa perspectiva metalinguística, apenas para cumprir o que está no material didático, pois se deve ler também para se emocionar, para adquirir e redimensionar conhecimentos, para omitir opiniões, o que parece estar muito distante dos bancos escolares. A leitura é tão significativa a ponto de favorecer o processo de humanização. Lê-se que: A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 83 é mutilar a nossa humanidade. (CANDIDO, 1995 apud COSSON, 2014, p. 15). Com essa visão é que se propõe a leitura do poema que se segue, de Oswald de Andrade. Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro. No poema, percebe-se a busca do autor por reduzir a distância entre a linguagem falada e a escrita, uma das principais características do Primeiro Tempo Modernista (1922-1930), negando, então, o passadismo acadêmico, uma vez que se tem a defesa da colocação pronominal que segue o padrão fonético brasileiro, em que a próclise é a mais comum, constituindo-se uma marca muito presente no português não padrão, como se vê no verso “Me dá um cigarro”, diferente do português da norma culta que orienta a valorização da ênclise: “Dê-me um cigarro”. No primeiro verso de “Pronominais”, há um exemplo das muitas diferenças existentes entre a língua que é considerada modelo, padrão, denominada norma culta, e a língua falada, o português não padrão, que, de acordo com Bagno, é (Ibidem, p. 28) “utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas, marginalizadas, oprimidas pela terrível injustiça social que impera no Brasil, o português não padrão é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas pessoas”. Faz-se oportuno aqui novamente esclarecer que o indivíduo detentor de competência comunicativa utiliza a língua nos mais diversos contextos de comunicação. Tente imaginar um domingo de manhã, a família reunida em torno da mesa para tomarem o desjejum e o filho diz para a mãe: “Dê-me a xícara”. Soa até um pouco estranho essa fala, dada à situação comunicativa. Assim, pelo bom uso da contextualização da linguagem, melhor a informalidade. Portanto, não se configura “erro” dizer: “Me dá uma xícara”. Ao se refletir sobre o poema “Pronominais”, emerge a característica modernista utilizada pelo autor com os versos livres, com o intuito de traduzir a liberdade plena da forma, a qual não significa ausência de ritmo, mas a criação para cada verso um ritmo. Ao mesmo tempo, percebe-se que o autor optou por ressaltar essas ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 84 duas características com o objetivo de acentuar outras peculiaridades como a procura pelo moderno, pelo controverso. O nacionalismo se manifesta na linguagem do poema, sendo essa uma das mais relevantes propostas do projeto artístico desse poeta, que é a anulação dos padrões da língua literária culta, em busca de uma língua eminentemente brasileira, capaz de agrupar todos os “erros” gramaticais, vistos por ele como verdadeiras contribuições para a elucidação da nacionalidade. 4 Variação linguística: um estudo de caso no poema “Pronominais” No poema “Pronominais”, Oswald de Andrade demonstra a regra variável da colocação pronominal no português. Os pronomes do caso oblíquo átonos, no português, podem ocorrer em três posições: antes do verbo (próclise) como em “Alguém me ligou?”, no meio do verbo (mesóclise), a titulo de exemplo: “Falar-lhe-ei a teu respeito” e depois do verbo (ênclise), tendo como exemplo: “Diga-me apenas a verdade”. Cada uma dessas colocações dá-se em função das motivações do ambiente linguístico em que ocorre, muito embora haja uma grande motivação sociocultural que impera na escolha de uma ou outra colocação: o reconhecimento de que o português falado no Brasil é diferente do português falado em Portugal (conforme se viu na subseção 1.1). No Brasil, o uso proclítico é predominante, diferentemente de Portugal e das gramáticas normativas, inspiradas em autores portugueses, em que se impera a ênclise. Oswald de Andrade retrata, ainda, em “Pronominais”, aspectos sociais relacionados a usuários de cada um dos tipos de colocação pronominal: note-se que a ênclise, concernente à norma padrão - aquela que prescreve as regras gramaticais e que é a grande responsável por um ensino metalinguístico - faz referência à escolarização (o professor, o aluno, o mulato sabido e, principalmente, a gramática). A próclise, por sua vez, faz alusão à “Nação Brasileira”, ao povo pobre e analfabeto, que não conhece as regras gramaticais. Relaciona-se às pessoas que falam “feio”, “errado”, que não tem uma amplitude do seu repertório linguístico. 5 Sequência de atividades: uma proposta de ensino da variação linguística por intermédio do texto literário ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 85 Nesta seção, busca-se propor e executar uma sequência de atividades a partir do poema “Pronominais” de Oswald de Andrade, tomando-o como recurso para se trabalhar variação linguística por intermédio do texto literário em sala de aula. Os objetivos aqui são demonstrar e refletir sobre a língua e suas variações; compreender a língua como um fenômeno heterogêneo; identificar contextos e adequações; estimular o espírito pesquisador-investigador; distinguir as principais diferenças da língua escrita e da língua falada. As atividades descritas abaixo foram baseadas na obra de Rildo Cosson, Letramento Literário (2014), e adaptadas para que pudessem cumprir os objetivos propostos. 5.1 Produção textual A crônica é um gênero textual pertencente à tipologia narrativa e tem por finalidade narrar fatos cotidianos. Por isso, ela é uma leitura agradável levando, muitas vezes, o leitor a identificar-se com as ações das personagens e interagir com os acontecimentos. A proposta, portanto, é a escrita de uma crônica partindo do poema “Pronominais”. 5.2 Pesquisa de opinião A pesquisa de opinião pode ser utilizada na turma para avaliar o conhecimento prévio dos alunos a respeito da variação linguística, podendo ser formulada questões tais como: 1 – Você já ouviu falar em variação linguística? 2- Você já ouviu a expressão preconceito linguístico? A pessoa que diz: “Me dá um cigarro” ela pode sofrer preconceito linguístico? 3 – Você sabia que é possível estudar variação linguística por meio do texto literário “Pronominais” de Oswald de Andrade? A opinião dos alunos pode ser computada e apresentada estatisticamente pelo professor ou pelo grupo de alunos, de preferência, por meio de gráficos e índices percentuais. 5.3 Dissertação prática O professor começa explicando sobre a língua como um produto heterogêneo e em seguida apresenta o poema “Pronominais” a fim de embasar a sua teoria sobre ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 86 variação linguística. Divide-se a turma em grupos de quatro alunos para que eles possam discutir sobre as diversas funções sociais da língua em cada atividade comunicativa. Após essa discussão, o professor lista no quadro aquilo que foi falado pelos alunos, que devem explicar como formularam determinados pensamentos, ideias e pontos de vista e, assim, ambos (professor e aluno) fazem uma reflexão partilhada sobre a heterogeneidade da língua. 5.4 Glosa O professor apresenta um verso do poema “Pronominais” e solicita aos alunos que aproveitem o verso para produzirem um texto, sendo que esse texto pode dar continuidade àquele verso ou concluir com ele. Não é necessário que seja um poema, pode, aliás, ser um texto narrativo. Uma variante da glosa consiste em tomar um verso e ilustrá-lo com uma história. O verso, então, funcionará como uma espécie de moral de fábula ou se pode fazer dele uma epígrafe, outra variante. Além do mais, essa glosa pode, inclusive, ser conduzida como uma atividade de interpretação. Considerações finais A proposta do presente trabalho foi refletir a urgente necessidade de o professor de língua portuguesa trabalhar em sala de aula o fenômeno da variação linguística por intermédio do texto literário, apresentando, portanto, uma proposta de contribuições teóricas e práticas que facultem aos discentes adquirissem consciência das regras linguísticas que dominam, as quais denunciam a gramática da variedade que usam e, não raras vezes, fazem-nos vítimas de preconceitos linguísticos. Tornou-se visível que a língua é um fenômeno heterogêneo e que sua principal função é a comunicação. Assim, quando se fala em língua portuguesa esta se referindo a uma unidade constituída de diversas variedades. Travaglia faz a seguinte abordagem: [...] se se acredita que em diferentes tipos de situação tem-se ou devese usar a língua de modos variados, não há porque, ao realizar as atividades de ensino/aprendizagem da língua materna, insistir no trabalho apenas com uma das variedades, a norma culta, discutindo apenas suas características e buscando apenas o seu domínio em detrimento das outras formas de uso da língua que podem ser mais adequadas a determinadas situações. (TRAVAGLIA, 2001, p.41) ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 87 Com isso, verificamos a real necessidade de uma reflexão sobre a variação linguística, de modo que proporcione em todos uma mudança de postura, visto que o aluno chega à escola com uma variação, e que essa mesma deve ser respeitada e não rotulada de “errada”. É função da escola promover o desenvolvimento da competência comunicativa desse aluno, garantindo-lhe o uso da língua para atender a distintas funções sociais. Constatou-se pelo estudo de caso da variação linguística presente na letra da canção “Samba do Arnesto” que apenas decorar regras gramaticais anacrônicas e arbitrárias destitui da língua suas variedades, assim como as identidades culturais dos falantes. Tornou-se aqui o texto literário como recurso pedagógico relevante para se ensinar e analisar a variação linguística em sala de aula já que ele possibilita a (re)criação, de forma estética, da realidade extralinguística e linguística, em especial, dos mais diversos níveis de língua e dos registros de fala. Os Parâmetros Curriculares Nacionais se referem da seguinte forma ao texto literário: O texto literário está livre para romper os limites fonológicos, lexicais, sintáticos e semânticos traçados pela língua: esta se torna matériaprima (mais que instrumento de comunicação e expressão) de outro plano semiótico- na exploração da sonoridade e do ritmo, na criação e recomposição das palavras, na reinvenção e descoberta de estruturas sintáticas singulares, na abertura intencional a múltiplas leituras pela ambiguidade, pela indeterminação e pelo jogo de imagens e figuras. Tudo pode tornar-se fonte virtual de sentidos, mesmo o espaço gráfico signos não- verbais, como em algumas manifestações da poesia contemporânea (BRASIL, 1998, p.27). Conclui-se, desse modo, que o levantamento de proposta de algumas atividades tendo como base o poema “Pronominais”, a fim de serem realizadas em sala de aula, deu-se com o intuito de contribuir para um ensino epilinguistico, na esperança de um trabalho capaz de desenvolver a criatividade linguística dos alunos e de ampliar-lhes a competência para o uso da língua em qualquer propósito comunicativo. Referências bibliográficas ANDRADE, O. Obras completas, Volumes 6-7. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. BAGNO, M. Linguística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 2012. ______. A língua de Eulália. São Paulo: Contexto, 2015. ______. Preconceito linguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016 88 BORTONI-RICARDO, S. M.Educação em língua materna – A sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais – Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – língua portuguesa. 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