O ensino da variação linguística por intermédio do texto literário

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O ensino da variação linguística por intermédio do texto literário
Willian Souza
Universidade Estácio de Sá
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir de forma teórico-prática o ensino da
variação linguística por intermédio do texto literário. Apresenta-se por meio de um
estudo de caso de caráter multifacetado da língua presente na letra da canção “Samba do
Arnesto”, de Adoniran Barbosa, e do poema “Pronominais”, de Oswald de Andrade, aos
quais se segue a proposta de algumas atividades a serem desenvolvidas na sala de aula.
Para a investigação foram utilizadas como fontes diversos referenciais teóricos de
renomados autores. Em tempo, os resultados demonstraram que o ensino da variação
linguística, tendo o texto literário como recurso pedagógico, pode ampliar nos
indivíduos a competência comunicativa, ou seja, permiti-lhes uma utilização da língua
nos mais diversos propósitos comunicacionais.
Palavras-chave: Variação Linguística. Preconceito Linguístico. Texto Literário. Língua
Portuguesa.
Introdução
De acordo com Mollica (MOLLICA, 2015, p. 9), “a sociolinguística é uma das
subáreas da Linguística e estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala,
voltando a atenção para um tipo de investigação que correlaciona aspectos linguísticos e
sociais”. Assim, nota-se que o objeto de estudo da sociolinguística é a língua em uso
pelos mais diversos falantes e, ainda segundo essa autora (Ibidem, p.9), “esta ciência se
faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade,
focalizando precipuamente os empregos linguísticos concretos, em especial os de
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caráter heterogêneo”. Sendo assim, é de suma importância refletir a respeito da variação
linguística porque
na realidade, toda língua, quer sirva a uma grande nação
consideravelmente extensa e muito diferenciada cultural e
socialmente, quer pertença a uma pequena comunidade isolada de
apenas poucas dezenas de indivíduos, é um complexo de variedades,
um conglomerado de variantes. (BAGNO, 2012, p. 11).
Se o linguista Marcos Bagno se refere à língua como um complexo de
variedades, como um acumulado de variantes, torna-se oportuno questionar a respeito
da possibilidade de compreensão da língua como um ser homogêneo: “existe língua
homogênea?” A língua é dinâmica, viva, heterogênea, modifica-se ao longo do tempo, o
que valoriza ainda mais a diversidade linguística. Os Parâmetros Curriculares Nacionais
- PCNs (1998) apresentam a seguinte abordagem:
Linguagem aqui se entende, no fundamental, como ação
interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo
de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos
diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos de sua
história. Os homens e as mulheres interagem pela linguagem tanto
numa conversa informal, entre amigos, ou na redação de uma carta
pessoal, quanto na produção de uma crônica, uma novela, um poema,
um relatório profissional. (BRASIL, 1998, p. 20)
Os PCNs permitem a constatação de que o ensino de língua portuguesa, por
volta dos anos 1960 e 1970, esteve demasiadamente preso a concepções normativas. No
entanto, a partir dos anos 1980, as críticas referentes a tal ensino ganharam força devido
aos estudos linguísticos articulados ao plano social, à natureza heterogênea da língua.
Começou-se, então, uma reflexão sobre as finalidades da educação linguística, de seus
conteúdos, reconhecendo a urgência de que a educação passasse por uma revisão que
coadunasse com a nova realidade educacional do país. Levantaram-se questões relativas
ao excesso de metalinguagem fora do contexto, à desconsideração da realidade social
dos alunos, à priorização em demasia da gramática normativa, ao preconceito com
determinados usos linguísticos, à desvalorização do falar dos estudantes das classes
menos abastadas, dentre outras.
Considerando o exposto, as perguntas que originam esta pesquisa, a saber “as
variações linguísticas estão presentes em sala de aula?” e “como o texto literário pode
contribuir para a análise e ensino dessas variações?”, permite pensar sobre novas
perspectivas para as práticas de ensino de língua materna, sobre a importância do
trabalho com textos reais, a valorização das variedades linguísticas dos alunos, como o
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preconceito linguístico deve ser combatido em todo âmbito educacional, bem como
também a revisão do conceito de erro. Quando o professor desenvolve um ensino
essencialmente metalinguístico, torna-se preso à visão dicotômica “certo e errado” do
emprego da língua. Essa visão não permite ao aluno o conhecimento e o
reconhecimento da heterogeneidade da língua e lhe dificulta ser um “estrategista da
linguagem”, alguém que organiza seu discurso conforme propósitos comunicativos
(KOCH, 2006).
O patrimônio cultural, que é a língua portuguesa, torna-se enriquecido pelas
variações. Sendo assim, neste trabalho, apresenta-se um estudo de caso da variação
linguística presente no “Samba do Arnesto” de Adoniran Barbosa. A justificativa pela
escolha de um segundo corpus, a saber, o poema “Pronominais” do poeta modernista
Oswald de Andrade, dá-se a partir da pretensão de demonstrar como ele pode contribuir
para análise e ensino da heterogeneidade da língua, e também por ele ser rico na
exploração de recursos linguísticos.
Eugenio Coseriu (COSERIU, 1982, p.146) afirma que “a linguagem poética
revela-se não um uso linguístico entre outros, mas linguagem simplesmente (sem
adjetivos): realização de todas as possibilidades da linguagem como tal”. Desse modo,
objetivando dialogar e contribuir com o docente de língua materna, produziu-se uma
sequência de atividades relacionadas ao poema “Pronominais” a fim de possibilitar a
observação de que há lugar tanto para a língua popular (heterogeneidade linguística)
quanto para a língua padrão nas aulas de língua, e lugar para a realização do ensinoaprendizagem da leitura e da produção textual.
1 A língua compreendida como um produto heterogêneo
A língua tem como principal função a comunicação e, por isso, deve ser
entendida como uma atividade social que corresponde a
Um conjunto de usos concretos, historicamente situados, que
envolvem sempre um locutor e um interlocutor, localizados num
espaço particular, interagindo a propósito de um tópico conversacional
previamente negociado. [...] é um fenômeno funcionalmente
heterogêneo, representável por meio de regras variáveis socialmente
motivadas (CASTILHO, 2000, p. 12).
Ressalta-se, pois, que a língua é historicamente situada e heterogênea, o que
significa dizer que ela está sujeita a variações e mudanças no espaço e no tempo. Dessa
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forma, o sistema linguístico não é homogêneo, mas é constituído de regras variáveis (ao
lado de regras categóricas), que atuam em todos os níveis linguísticos: fonológico,
morfológico, sintático, lexical e discursivo. Essas regras variáveis são passíveis de
sistematização.
Pode-se definir a língua como uma constituição de variedades linguísticas,
também chamadas de dialetos. Segundo os PCNs (1998), “a variação é constitutiva das
línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá,
independentemente de qualquer ação normativa. Dessa forma, a Língua Portuguesa
pode ser entendida como uma unidade que se constitui de muitas variedades. [...]”.
A Sociolinguística, por sua vez, descreve a variação segundo os seguintes
tipos: variação regional ou geográfica, variação social e variação estilística, os quais são
descritos abaixo.
1.1 A variação geográfica
Podendo ser chamada de variação regional ou diatópica (do grego dia = através
de; topos = lugar), a variação geográfica relaciona-se às diferenças linguísticas
observáveis entre falantes oriundos das mais diversas regiões de um mesmo país ou de
diferentes países. Podem-se observar diferenças tanto entre o português falado na
Europa (Portugal, Açores, Madeira), na África (Angola, Moçambique, Guiné Bissau) e
na Ásia (Goa, Macau), com o português do Brasil, como entre os falares das várias
regiões do Brasil, como por exemplo, Nordeste e Sul.
São inúmeras as diversidades do Português falado no Brasil e em Portugal, no
campo da fonética, que se refere no modo de pronunciar os sons da língua. O brasileiro
diz “eu sei”, enquanto que o português diz “eu sâi”. No campo sintático, tem-se a
diferença no modo de dispor as frases, as orações e as partes que as compõem, pois,
enquanto no Brasil se diz “estou falando com você”; em Portugal, “estou a falar
consigo” (BAGNO, 2015).
Ainda segundo o mesmo autor, no campo do léxico, acentua-se ainda mais as
diferenças entre essas duas variantes, pois há palavras que existem no Brasil e não
existem em Portugal, ou vice-versa. O português chama de “soloio” o habitante da zona
rural, enquanto aqui no Brasil chama-se de “matuto”, “caipira”, “capiau”.
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As variações diatópicas, por seu turno, são aquelas que acontecem entre falares
locais ou regionais, que podem ser compreendidas como dialetos. Num país imenso
como o Brasil, percebe-se diferenças entre os falares gaúcho, paulista, carioca, baiano e
outros. Veja-se o exemplo da palavra “mandioca”, muito utilizada no Sul e no Sudeste,
já no Norte e Nordeste, recebe o nome de “aipim”.
1.2 A variação social
A variação social refere-se à diferença percebida entre as diversas camadas da
sociedade. Também conhecida como variação diastrática, encontra-se em grupos sociais
distintos, em que classe social, idade, sexo, nível de escolaridade são alguns dos fatores
a ela atribuídos. Um exemplo típico de variação social de acordo com Bagno (BAGNO,
2015, p.44) é a rotacização do L nos encontros consonantais, conforme acontece em
Cráudia/Cláudia, grobo/globo, pranta/planta, ingrês/inglês, broco/bloco.
Torna-se oportuno destacar que a variação social não impede a compreensão
entre indivíduos e, muito embora a utilização de determinadas variantes possam indicar
o nível socioeconômico de uma pessoa, há a possibilidade de um individuo menos
abastado (como por exemplo alguém que diga: “Fessora! A sinhora ia mi castiga
purarguma coisa qui eu num fiz?”) atingir o padrão de maior prestigio social (por
exemplo, essa mesma pessoa dizer: “Professora! A senhora iria me castigar por alguma
coisa que eu não fiz?”).
Não raro, o individuo que faz uso da norma não padrão é acusado de “não
saber português”, de “falar feio”, o que denota claramente um preconceito silencioso,
mesquinho, denominado de preconceito linguístico. Marcos Bagno adverte:
O que vemos é esse preconceito ser alimentado diariamente em
programas de televisão e de rádio, em colunas de jornal e revista, em
livros e manuais que pretendem ensinar o que é “certo” e o que é
“errado”, sem falar, é claro, dos instrumentos tradicionais de ensino da
língua: as gramáticas normativas e parte dos livros didáticos
disponíveis no mercado. (BAGNO, 2015, p. 21)
Verifica-se, nesse sentido, que o individuo, quando se manifesta oralmente,
acaba por expor sua origem regional e social. É como que se pelo seu registro oral, a sua
identidade revelasse a sua pertença a algum tipo de grupo social, o que contraria a ideia
de sofrer qualquer tipo de preconceito pelo modo de falar.
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1.3 A variação estilística
Conhecida também como variação contextual ou de registro, a variação
estilística se apresenta nas mais diversas situações comunicativas, ambiente familiar,
profissional, na roda de amigos, enfim, a depender da circunstância comunicacional.
Alguns contextos socioculturais exigem maior formalidade, ou seja, demandam do
falante o uso de uma linguagem mais elaborada e cuidada, denominada registro formal,
o qual pode ser verificado em uma palestra ou conferencia acadêmica. Outros contextos
socioculturais exigem menor formalidade, em que o indivíduo usará uma linguagem
menos monitorada, menos elaborada e mais descuidada, que ocorre em situações
familiares, no barzinho com os amigos e também em momentos informais, quando se
utiliza uma linguagem mais coloquial.
Compreende-se, então, a necessidade de o falante possuir habilidades dos usos
linguísticos, a fim de saber adequar a sua fala aos mais variados níveis de comunicação,
desde os informais aos mais formais, demonstrando, assim, a sua competência
comunicativa.
O que norteia a variação estilística são justamente os domínios em que se dão
as práticas sociais (universidade, lar, trabalho, etc), as relações sociais envolvidas
(professor-aluno, pai-filho, patrão-empregado, etc), o tipo de assunto (religião, esporte,
brincadeiras, etc). O fato é que os diversos modos de variação linguística não se isolam
entre si; na verdade elas se relacionam. É um mito pensar que a aprendizagem da norma
culta pode contribuir para que o indivíduo “cresça socialmente”. De acordo com Bagno
(Ibidem, p.106) “achar que basta ensinar a norma-padrão a uma criança pobre para que
ela „suba na vida‟ é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na
rua e de vagas nas penitenciárias para resolver o problema da violência urbana”.
2 “Samba do Arnesto”: um estudo de caso da variação linguística
Torna-se evidente a necessidade de a variação linguística estar presente na sala
de aula, na prática pedagógica do professor. Constitui papel da instituição escolar
proporcionar ao aluno meios de ampliar suas experiências linguísticas e seus recursos
comunicativos, haja vista que quando ele chega à escola já traz consigo um
conhecimento prévio das regras do português não padrão, da variedade popular ou
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coloquial e também de registros ou estilos que não são monitorados ou são pouco
monitorados.
Cabe à escola propor ao aluno o desenvolvimento de uma competência que lhe
garanta uma forma de assumir outras funções sociais, visto que:
Todo falante dispõe de suficiente competência linguística em sua
língua materna para produzir sentenças bem formadas e comunicar-se
com eficiência. Ao chegar à escola, portanto, todos os alunos
brasileiros que têm o português como língua materna já são
competentes em língua portuguesa [...] mas têm de ampliar a gama de
seus recursos comunicativos para poder atender às convenções sociais,
que definem o uso linguístico adequado a cada gênero textual, a cada
tarefa comunicativa, a cada tipo de interação. (BORTONI-RICARDO,
2004, p. 75).
Entrando em contato com o fenômeno da variação linguística, na perspicácia
de suas funções sociais, o discente amplia seu saber expressivo e passa a reconhecer a
necessidade de transitar por entre as variedades, promovendo, pois, adaptações ao
assunto, aos tipos de texto, ao interlocutor, as intenções de comunicação etc. O
entendimento acerca da variação linguística não visa a fazer o “erro” desaparecer e
muito menos fazer com que o aluno escreva “errado”, mas se constitui uma amostra de
possibilidades para que ele adapte seu texto às diversas circunstâncias do ato de fala, ou
seja, propõe uma reflexão crítica acerca da língua. Veja o que diz Travaglia (2001), ou
melhor, a forma como ele analisa as possibilidades de uso da língua:
Achamos natural exigir que o aluno aprenda a norma culta para
utilizá-la em determinadas situações sociais de comunicação social,
mas achamos absurdo, por exemplo, exigir que alguém tivesse de
aprender o dialeto caipira para falar com o pessoal da zona rural de
determinadas regiões do país (sobretudo sul de Minas Gerais e parte
de São Paulo). Por quê? Os falantes da norma culta ”exigem” que o
caipira aprenda seu modo de falar para circular entre eles, mas o
contrário não acontece: os caipiras não “exigem” que os falantes da
norma urbana culta aprendam seu dialeto pra circular entre eles.
Aprender dialeto caipira será sempre uma “concessão” dos membros
do outro grupo social, por interesse científico, ou porque isso pode ser
interessante, cômico, exótico, etc. (TRAVAGLIA, 2001, p. 64).
O ensino de língua portuguesa deve favorecer um espírito investigativo ao
aluno em relação à variação, por meio de múltiplas atividades, dentre as quais a
identificação das regras da variedade não padrão em oposição com a variedade padrão.
Isso pode lhe permitir um domínio maior da variedade padrão bem como lhe conduzir
ao combate ao preconceito linguístico e a valorização do seu próprio falar. Acredita-se
que assim o aluno identificar-se-á mais com a variação de sua fala, sem que o estudo da
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norma padrão lhe pareça algo imposto de maneira brusca, fazendo-o sentir-se
desprivilegiado pela língua que usa. Ao contrário, ele passará a perceber que a língua
deve ser utilizada em conformidade com cada momento comunicativo e compreenderá o
papel transformador da escola ao proporcionar ao aluno desenvolver sua competência
comunicativa. Segundo Soares (1995):
Em primeiro lugar, uma escola transformadora não aceita a rejeição
dos dialetos dos alunos pertencentes às camadas populares, não apenas
por eles serem tão expressivos e lógicos quanto o dialeto de prestígio,
mas também e, sobretudo, porque essa rejeição teria um caráter
político inaceitável [...] Em segundo lugar, uma escola transformadora
atribui ao bidialetalismo a função não de adaptação do aluno às
exigências da estrutura social, como faz a teoria das diferenças
linguísticas, mas a de instrumentalização do aluno, para que adquira
condições de participação na luta contra as desigualdades inerentes a
essa estrutura. (SOARES, 1995, p. 74).
Nessa perspectiva é que se propõe uma análise da letra da música de Adoniran
Barbosa, intitulado “Samba do Arnesto”, com a qual se almeja comprovar o escopo
teórico aqui apresentado e também mostrar o quanto de realidade há nela no que se
refere não só a variação linguística, como também da vida de um povo. Veja-se a letra
da canção:
O Arnesto nos convido prum samba, ele mora no Brás
Nóis fumos e não encontremos ninguém
Nóis vortemo cuma baita duma reiva
Da outra veiz nóis num vai mais
Nóis não semos tatu!
Outro dia encontremo com o Arnesto
Que pediu descurpa mais nóis não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nóis não se importa
Mais você devia ter ponhado um recado na porta
Um recado anssim: "Ói, turma, num deu prá esperá
Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância
Assinado em cruz porque não sei escrever
Arnesto".
A letra da música retrata fielmente a linguagem típica do Bexiga. Adoniran
utilizou essa variação linguística para contar, de forma amena, pequenas tragédias
cotidianas das favelas e dos subúrbios de São Paulo. Percebe-se já de início, no título do
texto, a variação no emprego do nome próprio, para muitos uma incorreção gramatical,
já que o nome do personagem Arnesto é uma derivação popular de Ernesto, o que bem
configura a variação social, a qual envolve fatores concernentes à organização
socioeconômica e cultural da comunidade de falantes. Logo, é comum nas classes
sociais menos abastadas e menos escolarizadas a troca de fonemas ao registrarem seus
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filhos (por desconhecerem o nome correto ou simplesmente por criatividade). Assim é
que Ernesto vira Arnesto.
Merece também serem destacados os tempos verbais utilizados na letra da
música, que apontam para o português não padrão, que, segundo Bagno (BAGNO,
2015, p.28) “é a língua da grande maioria dos pobres e dos analfabetos do nosso povo.
É também, consequentemente, a língua das crianças pobres e carentes que frequentam
as escolas públicas”.
Observa-se que as formas verbais, tais como “fumos”,
“encontremo”, “fiquemo”, “vortemo”, embora respeitem a formação do plural,
apresentam variações. Para Bagno (Ibidem, p. 51) o português não padrão “é mais
sóbrio, mais econômico, mais modesto, menos „vaidoso‟ Sua regra de plural é a
seguinte: „marcar uma só palavra para indicar um número de coisas maior que um”. É
muito criativo o emprego de “ponhado” ao invés de “posto”, ocupando o lugar de um
verbo regular como “colocar” ou “botar”.
Outra característica que dá ritmo, musicalidade, ao texto é a troca do fonema /l/
pelo /r/ em algumas palavras, como em “vortemo” ou “descurpa”. De acordo com
Bagno (Ibidem, p. 46) “quem diz broco em lugar de bloco não é „burro‟, não fala
„errado‟, nem é „engraçado‟, mas está apenas acompanhando a natural inclinação
rotacizante da língua”. Nota-se, ainda, como ocorre a colocação do “i” entre a vogal e o
“s” final das sílabas (como em “nóis”, “mais”, “veiz”), ou mesmo as variações em
“anssim”, “reiva” e “pidiu”. Considerando o exposto, a letra da música de Adoniran
Barbosa traz muitas marcas da oralidade, convergindo, portanto, à ideia de que a
variação linguística existe mais marcadamente no registro oral da língua.
A análise linguística do “Samba de Arnesto” leva a uma reflexão da
necessidade da utilização dos elementos linguísticos inquirindo as possibilidades do
sistema, bem como conhecer diversas gramáticas (tais como: normativa, descritiva,
implícita, internalizada, reflexiva, entre outras), de modo a facultar ao aluno a
ampliação de seu conhecimento idiomático. A simples e desnecessária “incorporação”
de regras gramaticais obsoletas e deterministas desrespeita as variedades linguísticas
assim como as identidades culturais dos falantes.
2 O ensino da variação linguística por meio do texto literário
O texto literário se revela como um relevante recurso para a exploração da
variação linguística em sala de aula, onde nem sempre é permitido fazer a manobra de
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corpus da modalidade falada da língua de modo a permitir a criação ou a recriação, de
forma estética, da realidade extralinguística e linguística, em especial, dos mais diversos
níveis de língua e dos registros de fala. Percebe-se no texto literário uma riqueza de
recursos que refletem a própria realidade, de tal sorte a criar mundos possíveis,
demonstrar a diversidade da linguagem e a multiplicidade social.
A partir do auxílio desse tipo de texto, o docente de língua materna pode
conduzir o discente à reflexão sobre os recursos linguísticos da obra aumentando, assim,
sua competência linguística, pois a tomada de consciência da variação linguística
promove no aluno a capacitação de dar mais verossimilhança a um texto construído por
ele. Conforme o aluno se apresenta como detentor da diversidade de recursos
linguísticos, a produção textual é vista como uma atividade criativa de exposição da
variação linguística e, dessa forma, o aluno trilha o caminho “uso > reflexão > uso”, que
fora proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,1998, p.40).
A variação linguística presente nos textos literários refere-se a um tema
abordado em outros momentos por diversos linguistas brasileiros. Cita-se, como
exemplo, Dino Pretti (1977), que traz uma fundamentação teórica da sociolinguística a
partir de textos do Romantismo e do Modernismo brasileiro, razão porque, neste
trabalho, para adentrar o cenário da variação linguística por intermédio do texto
literário, busca-se sustentação nesse renomado linguista, tomando-o como referência.
A opção pelo poema “Pronominais” de Oswald de Andrade é decorrente de ele
apresentar a variação linguística. Assim, a escolha justifica-se pela facilidade de
aplicação pedagógica desse texto haja vista que, em poucas aulas, é possível ler e
trabalhar com a linguagem e a variação linguística em conjunto com os alunos,
possibilitando-lhes sentir a poesia, saboreá-la, de modo que ela os eleve, transporte-os a
outros estágios, causando-lhes bem estar.
A leitura deve ser viabilizada por fruição, o ler, por gosto, por prazer, e não por
obrigação, numa perspectiva metalinguística, apenas para cumprir o que está no
material didático, pois se deve ler também para se emocionar, para adquirir e
redimensionar conhecimentos, para omitir opiniões, o que parece estar muito distante
dos bancos escolares. A leitura é tão significativa a ponto de favorecer o processo de
humanização. Lê-se que:
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser
satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar
forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos
liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura
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é mutilar a nossa humanidade. (CANDIDO, 1995 apud COSSON,
2014, p. 15).
Com essa visão é que se propõe a leitura do poema que se segue, de Oswald de
Andrade.
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
No poema, percebe-se a busca do autor por reduzir a distância entre a
linguagem falada e a escrita, uma das principais características do Primeiro Tempo
Modernista (1922-1930), negando, então, o passadismo acadêmico, uma vez que se tem
a defesa da colocação pronominal que segue o padrão fonético brasileiro, em que a
próclise é a mais comum, constituindo-se uma marca muito presente no português não
padrão, como se vê no verso “Me dá um cigarro”, diferente do português da norma culta
que orienta a valorização da ênclise: “Dê-me um cigarro”.
No primeiro verso de “Pronominais”, há um exemplo das muitas diferenças
existentes entre a língua que é considerada modelo, padrão, denominada norma culta, e
a língua falada, o português não padrão, que, de acordo com Bagno, é (Ibidem, p.
28) “utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas, marginalizadas,
oprimidas pela terrível injustiça social que impera no Brasil, o português não
padrão é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas pessoas”.
Faz-se oportuno aqui novamente esclarecer que o indivíduo detentor de
competência comunicativa utiliza a língua nos mais diversos contextos de
comunicação. Tente imaginar um domingo de manhã, a família reunida em torno
da mesa para tomarem o desjejum e o filho diz para a mãe: “Dê-me a xícara”. Soa
até um pouco estranho essa fala, dada à situação comunicativa. Assim, pelo bom
uso da contextualização da linguagem, melhor a informalidade. Portanto, não se
configura “erro” dizer: “Me dá uma xícara”.
Ao se refletir sobre o poema “Pronominais”, emerge a característica
modernista utilizada pelo autor com os versos livres, com o intuito de traduzir a
liberdade plena da forma, a qual não significa ausência de ritmo, mas a criação para
cada verso um ritmo. Ao mesmo tempo, percebe-se que o autor optou por ressaltar essas
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duas características com o objetivo de acentuar outras peculiaridades como a procura
pelo moderno, pelo controverso.
O nacionalismo se manifesta na linguagem do poema, sendo essa uma das mais
relevantes propostas do projeto artístico desse poeta, que é a anulação dos padrões da
língua literária culta, em busca de uma língua eminentemente brasileira, capaz de
agrupar todos os “erros” gramaticais, vistos por ele como verdadeiras contribuições para
a elucidação da nacionalidade.
4 Variação linguística: um estudo de caso no poema “Pronominais”
No poema “Pronominais”, Oswald de Andrade demonstra a regra variável da
colocação pronominal no português. Os pronomes do caso oblíquo átonos, no
português, podem ocorrer em três posições: antes do verbo (próclise) como em
“Alguém me ligou?”, no meio do verbo (mesóclise), a titulo de exemplo: “Falar-lhe-ei a
teu respeito” e depois do verbo (ênclise), tendo como exemplo: “Diga-me apenas a
verdade”. Cada uma dessas colocações dá-se em função das motivações do ambiente
linguístico em que ocorre, muito embora haja uma grande motivação sociocultural que
impera na escolha de uma ou outra colocação: o reconhecimento de que o português
falado no Brasil é diferente do português falado em Portugal (conforme se viu na
subseção 1.1).
No Brasil, o uso proclítico é predominante, diferentemente de Portugal e das
gramáticas normativas, inspiradas em autores portugueses, em que se impera a ênclise.
Oswald de Andrade retrata, ainda, em “Pronominais”, aspectos sociais relacionados a
usuários de cada um dos tipos de colocação pronominal: note-se que a ênclise,
concernente à norma padrão - aquela que prescreve as regras gramaticais e que é a
grande responsável por um ensino metalinguístico - faz referência à escolarização (o
professor, o aluno, o mulato sabido e, principalmente, a gramática). A próclise, por sua
vez, faz alusão à “Nação Brasileira”, ao povo pobre e analfabeto, que não conhece as
regras gramaticais. Relaciona-se às pessoas que falam “feio”, “errado”, que não tem
uma amplitude do seu repertório linguístico.
5 Sequência de atividades: uma proposta de ensino da variação linguística por
intermédio do texto literário
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Nesta seção, busca-se propor e executar uma sequência de atividades a partir
do poema “Pronominais” de Oswald de Andrade, tomando-o como recurso para se
trabalhar variação linguística por intermédio do texto literário em sala de aula.
Os objetivos aqui são demonstrar e refletir sobre a língua e suas variações;
compreender a língua como um fenômeno heterogêneo; identificar contextos e
adequações; estimular o espírito pesquisador-investigador; distinguir as principais
diferenças da língua escrita e da língua falada. As atividades descritas abaixo foram
baseadas na obra de Rildo Cosson, Letramento Literário (2014), e adaptadas para que
pudessem cumprir os objetivos propostos.
5.1 Produção textual
A crônica é um gênero textual pertencente à tipologia narrativa e tem por
finalidade narrar fatos cotidianos. Por isso, ela é uma leitura agradável levando, muitas
vezes, o leitor a identificar-se com as ações das personagens e interagir com os
acontecimentos. A proposta, portanto, é a escrita de uma crônica partindo do poema
“Pronominais”.
5.2 Pesquisa de opinião
A pesquisa de opinião pode ser utilizada na turma para avaliar o conhecimento
prévio dos alunos a respeito da variação linguística, podendo ser formulada questões
tais como: 1 – Você já ouviu falar em variação linguística? 2- Você já ouviu a expressão
preconceito linguístico? A pessoa que diz: “Me dá um cigarro” ela pode sofrer
preconceito linguístico? 3 – Você sabia que é possível estudar variação linguística por
meio do texto literário “Pronominais” de Oswald de Andrade? A opinião dos alunos
pode ser computada e apresentada estatisticamente pelo professor ou pelo grupo de
alunos, de preferência, por meio de gráficos e índices percentuais.
5.3 Dissertação prática
O professor começa explicando sobre a língua como um produto heterogêneo e
em seguida apresenta o poema “Pronominais” a fim de embasar a sua teoria sobre
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variação linguística. Divide-se a turma em grupos de quatro alunos para que eles
possam discutir sobre as diversas funções sociais da língua em cada atividade
comunicativa. Após essa discussão, o professor lista no quadro aquilo que foi falado
pelos alunos, que devem explicar como formularam determinados pensamentos, ideias e
pontos de vista e, assim, ambos (professor e aluno) fazem uma reflexão partilhada sobre
a heterogeneidade da língua.
5.4 Glosa
O professor apresenta um verso do poema “Pronominais” e solicita aos alunos
que aproveitem o verso para produzirem um texto, sendo que esse texto pode dar
continuidade àquele verso ou concluir com ele. Não é necessário que seja um poema,
pode, aliás, ser um texto narrativo. Uma variante da glosa consiste em tomar um verso e
ilustrá-lo com uma história. O verso, então, funcionará como uma espécie de moral de
fábula ou se pode fazer dele uma epígrafe, outra variante.
Além do mais, essa glosa pode, inclusive, ser conduzida como uma atividade
de interpretação.
Considerações finais
A proposta do presente trabalho foi refletir a urgente necessidade de o
professor de língua portuguesa trabalhar em sala de aula o fenômeno da variação
linguística por intermédio do texto literário, apresentando, portanto, uma proposta de
contribuições teóricas e práticas que facultem aos discentes adquirissem consciência das
regras linguísticas que dominam, as quais denunciam a gramática da variedade que
usam e, não raras vezes, fazem-nos vítimas de preconceitos linguísticos.
Tornou-se visível que a língua é um fenômeno heterogêneo e que sua principal
função é a comunicação. Assim, quando se fala em língua portuguesa esta se referindo a
uma unidade constituída de diversas variedades. Travaglia faz a seguinte abordagem:
[...] se se acredita que em diferentes tipos de situação tem-se ou devese usar a língua de modos variados, não há porque, ao realizar as
atividades de ensino/aprendizagem da língua materna, insistir no
trabalho apenas com uma das variedades, a norma culta, discutindo
apenas suas características e buscando apenas o seu domínio em
detrimento das outras formas de uso da língua que podem ser mais
adequadas a determinadas situações. (TRAVAGLIA, 2001, p.41)
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Com isso, verificamos a real necessidade de uma reflexão sobre a variação
linguística, de modo que proporcione em todos uma mudança de postura, visto que o
aluno chega à escola com uma variação, e que essa mesma deve ser respeitada e não
rotulada de “errada”. É função da escola promover o desenvolvimento da competência
comunicativa desse aluno, garantindo-lhe o uso da língua para atender a distintas
funções sociais. Constatou-se pelo estudo de caso da variação linguística presente na
letra da canção “Samba do Arnesto” que apenas decorar regras gramaticais anacrônicas
e arbitrárias destitui da língua suas variedades, assim como as identidades culturais dos
falantes.
Tornou-se aqui o texto literário como recurso pedagógico relevante para se
ensinar e analisar a variação linguística em sala de aula já que ele possibilita a
(re)criação, de forma estética, da realidade extralinguística e linguística, em especial,
dos mais diversos níveis de língua e dos registros de fala. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais se referem da seguinte forma ao texto literário:
O texto literário está livre para romper os limites fonológicos, lexicais,
sintáticos e semânticos traçados pela língua: esta se torna matériaprima (mais que instrumento de comunicação e expressão) de outro
plano semiótico- na exploração da sonoridade e do ritmo, na criação e
recomposição das palavras, na reinvenção e descoberta de estruturas
sintáticas singulares, na abertura intencional a múltiplas leituras pela
ambiguidade, pela indeterminação e pelo jogo de imagens e figuras.
Tudo pode tornar-se fonte virtual de sentidos, mesmo o espaço gráfico
signos não- verbais, como em algumas manifestações da poesia
contemporânea (BRASIL, 1998, p.27).
Conclui-se, desse modo, que o levantamento de proposta de algumas atividades
tendo como base o poema “Pronominais”, a fim de serem realizadas em sala de aula,
deu-se com o intuito de contribuir para um ensino epilinguistico, na esperança de um
trabalho capaz de desenvolver a criatividade linguística dos alunos e de ampliar-lhes a
competência para o uso da língua em qualquer propósito comunicativo.
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