filosofia contemporânea carlos joão correia 2014-2015 1ºSemestre “Para descobrir em que é que consiste a identidade pessoal temos de saber o que é que a pessoa representa [stands for] – e que penso tratar-se de um ser pensante e inteligente que tem razão e reflexão e que pode considerar-se a si mesmo como si mesmo [it self as it self], como uma mesma coisa pensante, em diferentes tempos e espaços; é-lhe possível fazer isto devido apenas a essa consciência [...] Porque uma vez que a consciência acompanha sempre o pensamento e é o que faz com que cada um seja ele próprio [self] e, desse modo, se distinga de outras coisas pensantes, é somente nisto que consiste a identidade pessoal, ou seja, a mesmidade [sameness] de um ser racional; e até onde esta consciência retroceder em direcção a uma acção ou pensamento, aí chega a identidade dessa pessoa; é o mesmo eu [self] agora e no passado” Locke, An Essay concerning Human Understanding 2.27.9 [11] A Objecção de Thomas Reid “Suponhamos que um militar corajoso [brave officer] foi punido na escola por ter roubado um pomar, que na sua primeira campanha derrotou o inimigo e que foi promovido a general já em idade avançada; suponhamos também, o que pode ser possível, que quando derrotou o inimigo, tinha consciência de ter sido punido na escola e que, quando foi promovido a general, tinha consciência de ter derrotado o inimigo, embora tenha perdido completamente a consciência da sua punição em criança. Supondo estas coisas, segue-se da doutrina do Sr. Locke que quem foi punido na escola é a mesma pessoa que derrotou o inimigo e que quem derrotou o inimigo é a mesma pessoa que foi promovida a general. Donde se segue, caso haja alguma verdade na lógica, que o general é a mesma pessoa que foi castigada na escola. Mas a consciência do general já não é tão boa ao ponto de lhe permitir lembrar-se da sua punição; consequentemente, de acordo com a doutrina do Sr. Locke, ele não é a pessoa que foi castigada. Por conseguinte, o general é e não é, ao mesmo tempo, a mesma pessoa que foi punida na escola.” Thomas Reid. [1710-1796] Essays on the Intellectual Powers of Man [1785]. Ed. Jonathan Bennett. III [Memory], 6 [Locke’s account of our personal identity]. 2010, 147-148 se A = B e B = C, então A = C “Resposta”de Locke “Suponhamos que eu perco totalmente a memória de algumas partes da minha vida ao ponto de ser impossível recuperá-las e, talvez, de não poder voltar a ter consciência delas; não serei eu a mesma pessoa que praticou aquelas acções e teve aqueles pensamentos de que tive, em tempos, consciência, ainda que os tenha agora esquecido? Ao que respondo que deveremos ter em consideração aquilo a que a palavra eu [the word I] se aplica e que, neste caso, é apenas ao ser humano [Man]. E, presumindo que o mesmo ser humano é a mesma pessoa, é fácil supor que eu refere aqui a mesma pessoa. Mas, se for possível que o mesmo ser humano tenha consciências distintas e incomunicáveis em momentos diferentes, sem dúvida que o mesmo ser humano pode, em momentos diferentes, constituir pessoas diferentes.” Locke. An Essay 2.27.20 [22] O sentimento de si é constituído pela memória ou é antes revelado por ela? HAL 9000 “Sou um computador Hal 9000 de 3ªsérie. Entrei em funcionamento no Illinois em 12 de Janeiro de 1997. Dois vezes dois são…aproximadamente 4 vírgula… Estou com problemas…” 2000 1999 “O leitor está a olhar para esta página, a ler este texto e a elaborar o significado das minhas palavras à medida que vai avançando na leitura. Porém, o que se passa na sua mente não se limita de forma alguma ao que diz respeito ao texto e ao seu significado. Paralelamente à representação das palavras impressas e à evocação de conceitos necessária para compreender aquilo que escrevi, a sua mente revela também uma outra coisa, algo que é suficiente para indicar, a cada instante, que é o leitor e não outra pessoa quem está a ler e a compreender o texto. As imagens que correspondem às suas percepções externas e às percepções daquilo que recorda ocupam quase toda a extensão da sua mente, mas não ocupam a sua totalidade. Para além destas imagens, existe igualmente uma outra presença que o significa a si, enquanto espectador das coisas imaginadas, proprietário das coisas imaginadas e actor potencial sobre as coisas imaginadas. (…) Se esta presença não existisse, como poderia saber que os seus pensamentos lhe pertencem? Quem poderia afirmá-lo? Esta presença é calma e subtil e por vezes é pouco mais do que uma alusão meio aludida e um dom meio compreendido (…). Nesta perspectiva, a presença do si é o sentir daquilo que acontece quando o seu ser é modificado pela acção de apreender alguma coisa. Essa presença tenaz nunca desiste”. António Damásio. O Sentimento de Si. 29 imagem de si sentimento de si nuclear - consciência de si aqui e agora imagem de si “Devo ser eu porque eu estou aqui”. Foi isto que a Emily disse, cautelosa e vagarosamente, ao contemplar o rosto que estava no espelho à sua frente. Tinha que ser ela; tinha-se colocado em frente ao espelho, por sua livre vontade, por isso tinha que ser dela a imagem do espelho, de quem mais poderia ser? Todavia, a Emily não era capaz de reconhecer o seu rosto no espelho, estava certa de que era uma cara de mulher, mas de quem não fazia ideia. Não parecia que fosse a dela, mas também não podia dizer que não fosse, uma vez que não conseguia visualizar a sua face na mente, mesmo que insistisse em recordá-la da memória. (…) A situação mostrava-lhe de forma inequívoca que não podia ser outra pessoa senão ela, e foi isso que aceitou a minha afirmação de que era ela sem qualquer dúvida. (…) Não era capaz de reconhecer o rosto do marido, o dos filhos ou de outros familiares, amigos e conhecidos. (…). E quantos valores teve a Emily na minha classificação da consciência nuclear? Vinte. Não preciso de vos dizer que a Emily está vígil e atenta sob todos os pontos de vista. A sua atenção concentra-se facilmente e pode ser mantida em toda a espécie de tarefas. As emoções e os sentimentos que refere também são inteiramente normais. O seu comportamento é intencional e adequado em todos os contextos, imediatos ou a longo prazo” 193-196 prosopagnosia linguagem linguagem "Nos tempos em que estudava medicina e neurologia, lembro-me de perguntar a algumas das pessoas mais sábias que me rodeavam como é que produzíamos a mente consciente. Curiosamente, a resposta era sempre a mesma: o segredo está na linguagem. Diziam-me que as criaturas sem linguagem estavam limitadas à sua ignorante existência, ao contrário de nós, felizardos humanos, a quem a linguagem permitia conhecer. A consciência era uma interpretação verbal dos processos mentais em curso. A linguagem providenciava o afastamento necessário para podermos olhar para as coisas com a distância necessária. Esta resposta pareceu-me sempre muito simples, simples demais para explicar um fenómeno que eu imaginava na altura impossível de explicar dada a sua complexidade. E a resposta não só era simples, mas também improvável, dado o que me era dado ver sempre que visitava o Jardim Zoológico. Nunca acreditei na resposta e agrada-me muito nunca ter acreditado. A linguagem, com as suas palavras e frases, é tradução de uma outra coisa, é uma conversão de imagens não-linguísticas que representam entidades, eventos, relações e inferências. Se a linguagem funciona em relação ao si e à consciência do mesmo modo que funciona para todas as outras coisas, ou seja, simbolizando em palavras e frases aquilo que começa por existir de uma forma não verbal, então deverá existir um sentimento de si não-verbal” 133-134