A FUNÇÃO DIAGNÓSTICA ENTRE PARÊNTESES NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS) Marisa Alves Satler1 Roberta Lane Pereira Teixeira2 Fábio Walace de Souza Dias3 Resumo: Este artigo visa refletir sobre a função diagnóstica nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) apontando em qual sentido ela pode contribuir ou se constituir como um impasse para a condução dos casos. Para tal, traz a contextualização da política de saúde mental no Brasil desde o surgimento do processo de Reforma Psiquiátrica até a criação dos Centros de Atenção Psicossocial, assim como também, apresenta uma discussão sobre o uso do diagnóstico nos CAPS como um dos critérios utilizados para inserção, ou não, do usuário neste serviço. Para finalizar, problematizamos de que forma a singularidade do sujeito pode ser resguardada diante de uma construção diagnóstica. Nesse sentido, evidenciamos a importância da construção do caso clínico e de se considerar a lógica do caso a caso como uma das possibilidades para a instauração de novas práticas no campo da saúde mental. Dessa forma, sinalizamos para o “diagnóstico entre parênteses”, dando relevância à singularidade do sujeito no trabalho realizado nos CAPS pelos operadores da Saúde Mental. Palavras Chave: Diagnóstico. Reforma Psiquiátrica. Saúde Mental. INTRODUÇÃO Para compreensão da função diagnóstica nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um dos dispositivos abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico no campo da saúde mental no Brasil, se faz necessário o resgate de alguns aspectos históricos da saúde mental visto que a questão da loucura perpassou por várias interpretações ao longo da história da humanidade. Sendo assim, em um breve recorte histórico, tomaremos a questão da loucura e suas interpretações, percebendo-a como uma construção social de acordo com o contexto em que se encontrava inserida. Historicamente, a loucura até a Idade Média não era vista como algo negativo, muito menos uma doença. Ao contrário, a loucura era considerada um privilégio, algo da esfera divina e mística. Isso, pois o problema social a ser enfrentado na época era a lepra. Já na Idade Média, a loucura substituiu a lepra em seu espaço de exclusão. O que antes era ocupado pelos leprosos, passa a se destinar aos insanos. Neste período, ainda, não existia um saber específico sobre a loucura, porém as primeiras instituições criadas já se destinavam a recolher todos aqueles considerados socialmente desajustados (FOUCAULT, 1991). Ainda de acordo com Foucault (1991), no final do século XVIII sob a égide da máxima “descarteana”: “penso logo existo” e a predominância do saber científico -, que se deu no período do Iluminismo -, a loucura recebeu o status de desrazão sendo indesejada para o projeto moderno de sociedade. Ansiando restituir no louco a razão e adequar a sua loucura ao referido projeto, o saber médico a captura e a transforma em enfermidade. Delegando assim ao hospital, dispositivo de referência para tratar a loucura, a função de manter os loucos longe dos olhares da sociedade. Alguns anos mais tarde, surgiu na França em 1656 o primeiro Hospital Geral a partir do agrupamento de várias instituições como Salpêtriêre, Pitiê e Bicêtre como espaço para abrigar todos que se encontravam opostos a ordem pública e social, sendo estes espaços considerados depósitos de loucos. Entretanto, com a Revolução Francesa, houve uma nova reestruturação do espaço social da loucura, pois, já não era admissível o enclausuramento de todos que não se adaptavam à ordem social: mendigos, leprosos, prostitutas, etc. E, por se constituírem como uma ameaça à sociedade “moderna e igua- litária” os espaços de exclusão destinaram-se somente aos loucos, tendo em vista o seu caráter de periculosidade agora referendado pelo saber científico. Desta forma, o louco passou a ser tratado como doente e não mais como “pecador”, sendo encaminhado à espaços chamados de Manicômios, que possuíam função asilar, entretanto, com objetivo de cura. Neste contexto, a psiquiatria ganhou espaço a partir da necessidade que o saber médico tinha de se constituir como uma nova especialidade dedicada aos cuidados dos loucos em reclusão. Assim, ficou a loucura submetida ao saber e poder da medicina como uma realidade “concentrada numa vontade alheia que é a vontade onipotente do médico” (FOUCAULT, 2006, p.183). O surgimento da psiquiatria nesta época, contou com importante contribuição de Pinel, com a postulação de um novo método clínico que se fundamentou na [...] “observação rigorosa e sistemática dos sintomas como procedimento de avaliar e fundamentar um diagnóstico” (RIBEIRO, 2011, p.66), inaugurando, desta forma, um novo modelo de tratar a loucura, prevalecendo o “tratamento moral”. Este tratamento consistia na reeducação das mentes, afastando os delírios e ilusões, chamando a consciência à realidade (AMARANTE, 2008). No decorrer do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, houve uma expansão dos manicômios e hospitais psiquiátricos em toda Europa, se constituindo como modelo hegemônico de tratamento da loucura. Esses espaços não apenas cresceram em número, mas se tornaram cada vez mais violentos, com maus tratos, péssimas condições de higiene, alimentação e isolamento. Estas práticas foram se agravando ao longo do tempo, o que fez surgir os primeiros movimentos de Reforma Psiquiátrica ao final da segunda Guerra Mundial (AMARANTE, 1998). No Brasil, a história da loucura não se difere tanto da Europa, pois antes do século XVIII, os loucos transitavam livremente pelas cidades. Somente no final do século XIX que a loucura também foi capturada pelo saber médico, destinando às instituições psiquiátricas o lugar do louco. Um marco importante da assistência psiquiátrica brasileira foi a criação do Hospital Psiquiátrico Pedro II em 1852, na cidade do Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, outras instituições com a mesma finalidade também foram construídas em outros estados. Com a rápida expansão dos hospitais psiquiátricos em todo o Brasil, consequentemente houve uma superlotação dos leitos psiquiátricos públicos. Com 46 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2015/1 - NÚMERO 10 - ISSN 2176 7785 isto, para sanar o problema da superlotação ou desassistência foi necessário a realização de convênios firmados entre o poder público e instituições privadas. No entanto, o fato destas objetivarem o lucro fácil, assistiu-se no Brasil o efeito reverso da moeda: a “psiquiatrização”, e internação indiscriminada gerando assim a chamada “indústria da loucura”. Esse momento caracterizado como indústria da loucura, fortaleceu a lógica da exclusão através do enclausuramento e de práticas cada vez mais repressivas, o que levou a denúncias e críticas de diversos seguimentos sociais que se organizavam pela redemocratização do país (AMARANTE, 1998; RIBEIRO, 2011). A Reforma Psiquiátrica brasileira nasceu como um movimento de cunho social e político, com práticas transformadoras visando à ruptura dos paradigmas existentes no que diz respeito à relação entre sociedade e loucura. A consolidação das novas práticas em saúde mental no Brasil se materializou com a promulgação da lei 10.216 em 2001, que regulamenta a assistência em saúde mental e a portaria 336/2002 que oficializa os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como estratégia principal para substituição do hospital psiquiátrico. Assim as referidas Lei e Portaria consolidaram uma nova forma de tratamento no Brasil -, em liberdade e conduzido por equipe multidisciplinar. Todavia, para a inserção do usuário no CAPS, o diagnóstico médico se constituiu como instrumento de identificação e condução do tratamento. Tendo em vista sua importância para este tipo de serviço e as polêmicas que se constroem à seu respeito é que pretendese discutir neste artigo como e se o diagnóstico nos CAPS pode se configurar, para além de um critério de inserção e manejo clínico dos casos, como um instrumento de classificação e exclusão. POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL: DA REFORMA PSIQUIATRICA BRASILEIRA AOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL Em um cenário de efervescência política e cultural eclodiram diferentes movimentos de Reforma, na década de 1960 e 1970 em várias partes do mundo à saber: Inglaterra, Estados Unidos, França e Itália, cada qual com suas características e particularidades. Este movimento veio trazendo uma crítica radical ao saber médico-psiquiátrico no trato com a loucura, buscando o rompimento com o modelo assistencial e a disciplina hospitalar (MINAS GERAIS, 2006; AMARANTE, 2008). Faz-se necessário um tratamento, ainda que breve, sobre a história das políticas sociais no Brasil antes de adentrarmos ao movimento de Reforma Psiquiátrica. Podemos situar a história de tais políticas a partir do século XX, época em que a prioridade era dada ao sistema econômico e político, prejudicando as políticas sociais como um todo. Do início do século XX até o final dos anos de 1970, “os direitos sociais eram negociados como privilégios de certos grupos” (WERNECK, 2001, p.29). E, com relação à política de saúde, nesta época, nicômios (ROTELLI et. al. 1990), com o intuito da inclusão social das diferenças e rompimento com a lógica manicomial. Este movimento de Reforma contou com o envolvimento dos trabalhadores da saúde, usuários e familiares em busca de mudanças que extrapolassem o campo da assistência em saúde mental, visto que a Reforma Psiquiátrica no Brasil é compreendida por Delgado et. al. (2007) como um processo político e social, com práticas e saberes que transformam o dia a dia das instituições, serviços e as relações sociais existentes. O autor acrescenta ainda que, diz-se processo, por ser algo em movimento, que se transforma ao longo do caminho com a implicação de vários atores sociais. Desse processo de Reforma podemos, historicamente, situar o II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, como um propulsor para a busca de transformações no modelo de atenção à saúde mental no Brasil, sendo inicialmente chamado de movimento da sociedade civil e evoluindo mais tarde para Movimento da Luta Antimanicomial (TAVARES & SOUSA, 2009), cujo principal foco, dentre outros, era desmitificar o imaginário social sobre a loucura, dando condições ao doente mental de um tratamento digno e em liberdade. A partir das mobilizações sociais e das ações legais, um novo paradigma veio influenciar fortemente as práticas de atenção à saúde mental, um novo modelo de cuidados parece ter se inaugurado com a Reforma Psiquiátrica no Brasil: o modelo de Atenção Psicossocial. Este veio substituir as práticas psiquiátricas até então vigentes, e é descrito por Costa-Rosa et. al. como um “conjunto de ações teórico-práticas, político-ideológicas e éticas norteadas pela aspiração de substituírem o modo asilar e algumas vezes o próprio paradigma da psiquiatria” (2003, p.16). Nesta lógica, os serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos foram se organizando e propondo um novo tipo de atenção à pessoa em sofrimento mental, reivindicando o direito à cidadania e à sua reinserção social. Desta forma, o campo da saúde mental e atenção psicossocial devem ser entendidos não como um modelo fechado, mas como um processo social com estrutura flexível, que busca vínculos com outros serviços para ampliação dos recursos existentes. Deste modo, devem ser entendidos como “lugar de acolhimento, de cuidado e de trocas sociais” (AMARANTE, 2008, p.69), que se materializam nos CAPS. Sobre o seu surgimento, foi no ano de 1986 que se deu a constituição do primeiro CAPS -, na época nomeado como Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) -, na cidade de São Paulo, que de acordo com Tavares e Sousa (2009, p.41), “são espaços facilitadores da promoção da saúde mental, de apreensão das diversas facetas do processo saúde/adoecimento e de construção de novas práticas para trabalhar com o sofrimento humano”. Portanto, é considerado dispositivo em consonância com o movimento da Luta Antimanicomial e da legislação em o que se via era um sistema que funcionava de forma excludente e desigual, pois somente os trabalhadores que contribuíam para o sistema previdenciário é que tinham direito à assistência pública em saúde. Diante deste cenário, o movimento de Reforma Sanitária, veio questionar estas políticas de saúde existentes, buscando garantir a todos o direito à saúde, contribuindo para a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990, com a promulgação da Lei 8080 e 8142 (LUZIO & YASUI, 2010; WERNECK, 2001). Foi paralelo a este movimento que eclodiu a Reforma Psiquiátrica e o consequente rompimento com o modelo asilar materializado nos hospitais psiquiátricos. A Reforma Psiquiátrica brasileira sofreu forte influência da Reforma Psiquiátrica italiana que se sustentou no princípio da desinstitucionalização do sofrimento psíquico. Ou seja, compreendendo-o para além da classificação e sintomas da doença, buscando considerar a relação do sujeito que sofre com a sua própria loucura e com o social, tendo como consequência a construção de uma sociedade sem ma- saúde mental substituindo a lógica psiquiátrica de tratamento. Em termos legais o grande marco no campo da saúde mental brasileira foi a Lei 10.216 de 06 de abril/2001, de autoria do deputado Paulo Delgado, que dispõe “sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em Saúde Mental” (LUZIO & YASUI, 2010, p.21). Esta lei significou um avanço no campo da saúde mental brasileira, mas, faz-se necessário lembrar que já existiam aprovadas leis em alguns estados e municípios que, também, contribuíram para o avanço do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Outro passo importante foi a promulgação da Portaria GM/336 de fevereiro de 2002 (Ministério da Saúde, 2002), que instituiu e criou linhas de financiamento para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), como também trouxe alguns critérios para seu funcionamento. O art. 1º da portaria estabelece que os Centros de Atenção Psicossocial devem se constituir nas seguintes modalidades de serviços: PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2015/1 - NÚMERO 10 - ISSN 2176 7785 | 47 CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de porte/ complexidade e abrangência populacional, horário de funcionamento, dentre outros. Também, a Lei garante o atendimento de crianças e adolescentes em Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) e para usuários abusivos de álcool e outras drogas nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPSad). A referida portaria ainda dispõe que os CAPS devem oferecer atendimento nas modalidades: Intensiva; Semi-intensiva; Não -intensiva. Além disso, de acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde, os CAPS devem ser dispositivos de atenção diária segundo a lógica do território e integrados à rede básica de saúde. Entendendo território não somente como espaço geográfico, mas incluindo as pessoas, instituições, conflitos, valores e costumes existentes em torno da vida dos usuários (BRASIL, 2004). Portanto, o CAPS inserido neste território deve se encontrar articulado com as redes existentes para atender às demandas dos usuários em sofrimento mental. Redes estas, que devem ser construídas e articuladas pelo próprio CAPS, a partir do desenvolvimento do projeto terapêutico de cada sujeito, encaminhando-o para os serviços do campo da saúde mental e demais serviços das redes da saúde e outros setores que se fizerem necessários para o tratamento livre, o cuidado, o restabelecimento da autonomia e o exercício da cidadania deste usuário. Nesta perspectiva de trabalho em rede, os CAPS devem ser dispositivos abertos, acolhedores, preocupados com o usuário, respeitando sua singularidade, sua história de vida, etc., visto que seu objetivo é “realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários” (BRASIL, 2004, p.13). Para tal, conforme o Ministério da Saúde (2004), os CAPS devem ofertar os seguintes recursos terapêuticos: atendimentos individuais e em grupo; atendimento às famílias; atividade de suporte social e inserção comunitária; oficinas terapêuticas; visitas domiciliares. O modelo de assistência em saúde mental se redirecionou e ampliaram-se os cuidados tanto em sua intensidade quanto em sua diversidade. Não apenas com a oferta de CAPS e sua articulação com “as redes relacionais e de convivência social” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p.68), mas também com a criação de outros modos de cuidados e atenção em saúde mental como: Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); Programa de Volta para Casa (PVC); Saúde Mental na Atenção Primária; Leitos em hospital geral; Centros de Convivência; Consultório na Rua; Escola de Redutores de Danos (ERD), etc. Diante do exposto, fica claro que a política de saúde mental no Brasil trouxe grandes avanços na forma de abordar o sofrimento psíquico, tanto em extensão quanto na intenção e abrangência dos cuidados. Mas, ainda, existem impasses que precisam ser extrapolados, vencidos diariamente para que o rompimento com a lógica manicomial se efetive. Percebe-se que a expansão dos cuidados se dá na materialidade dos serviços e com a construção de novos espaços e lógicas de tratamento. Contudo, esses espaços se orientam por diretrizes das políticas públicas: do SUS e especificamente da Saúde Mental. Sendo assim, são tratamentos ofertados “para todos” respeitando-se obviamente a necessidade do tratamento. Ora, o próprio SUS preconiza dentro de suas diretrizes: universalidade no acesso e igualdade na assistência (BRASIL, 2000). E, contraditoriamente, este novo modelo de cuidado em saúde mental sustenta a necessidade de se levar em conta a singularidade e a subjetividade de cada usuário, sempre trabalhando a lógica do caso a caso, mas, como isto é possível tendo em vista, o caráter universal de uma política pública? Referendando tal questionamento, Rotelli apud Luzio & Yasui (2010, p.24) aponta que: O novo modo de cuidado na saúde mental deve orientar-se pela superação do paradigma doença/cura e colocar entre parênteses a doença mental (o diagnóstico e todo o aparato de tratamento do modelo psiquiátrico), entrando em contato com o sujeito para conhecê-lo em sua experiência-sofrimento, com a finalidade de possibilitar seu reposicionamento no mundo, considerando-se sua dimensão subjetiva e social. Se as teorias sinalizam para a necessidade de que os trabalhadores da saúde mental estejam atentos à complexidade da vida dos usuários e a singularidade de cada caso, os atendimentos protocolares e inscritos numa lógica universalizante seriam suficientes? Sendo assim, faz-se necessário colocarmos em suspensão o diagnóstico -, ao considerá-lo como um “protocolo” para inserção ou não de usuários nos CAPS -, para que de certo modo se possa enxergar a existência de um sujeito que sofre, para além de uma classificação diagnóstica. O USO DO DIAGNÓSTICO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL E A INSERÇÃO DOS USUÁRIOS NOS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL Para problematizarmos o uso do diagnóstico no campo da saúde mental, faz-se necessário situar, inicialmente, o seu lugar antes e depois da Reforma Psiquiátrica, apontando o seu sentido, as contribuições e impasses do seu uso para a condução dos casos em saúde mental. A etimologia da palavra diagnóstico, pelo latim quer dizer: dia (através de) e gnóstico (conhecimento). Portanto, o diagnóstico elucida o conhecimento ou a determinação de uma doença pela observação de seus sintomas constituindo, assim, a disciplina da “psicopatologia”. Sendo esta, um campo específico do conhecimento que estuda o sofrimento psíquico: psi (alma); pato (sofrimento); e logia (teoria). Desta forma, o conhecimento da psicopatologia tem se constituído como prática que embasa o campo da psiquiatria ao se tornar plenamente uma especialidade da medicina (IZAGUIRRE, 2011). Ao situar o diagnóstico nos paradigmas da psicopatologia, podemos perceber as influências da cultura e dos paradigmas vigentes em cada época e lugar, sob a psiquiatria que ainda não se caracterizava como uma ciência. Izaguirre (2011) explica que, o primeiro paradigma da psicopatologia dominou desde fins do século XVIII até a metade do XIX com a ideia de que a psicopatologia estava organizada por uma única afecção, a qual Pinel e também outros autores da época chamou de “alienação mental”. Destacamos o segundo paradigma que diz das “doenças mentais” reunidas no que Emil Kraepelin denominou de “Compêndio de Psiquiatria” em 1883, rompendo com a ideia de doença ou afecção única de Pinel. A partir daí se desenvolveu a organização dos grandes quadros classificatórios. Já o terceiro paradigma, chamado de grandes “estruturas psicopatológicas”, surgiu através da influência de várias disciplinas, inclusive a fenomenologia e a psicanálise que exerceu e exerce enorme influência na psicopatologia. O autor ainda acrescenta que há uma correlação entre paradigma e tratamento. Sendo que para a doença única correspondia um tratamento da loucura pela via da moral e formas jurídicas específicas de se apropriar do alienado. Em contrapartida, neste período, desenvolvem-se novas formas de tratamento, incluindo-se os psicofármacos, fato que passou a ter cada vez maior importância, e imediatamente começou a ter um predomínio dos estudos sobre as neurociências e a genética, o que tem levado a psiquiatria a se apoiar cada vez mais nesse tripé: neurociências, genética e psicofarmacologia. A atuação da psiquiatria como uma especialidade da medicina a partir de Pinel, ficou restrita aos casos de demência, de deficiência mental e às psicoses orgânicas e sintomáticas, prevalecendo na maioria dos casos o método clínico não alicerçando o normal e o 48 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2015/1 - NÚMERO 10 - ISSN 2176 7785 patológico em bases fisiológicas ou na clínica anátomo-patológica, mas nos costumes de uma sociedade. Barreto (2012) esclarece que a psiquiatria não se fundamentando nem na anatomia, nem na fisiologia para definir o normal e o patológico irá se basear na norma. Porém, numa norma social ou cultural. Como vimos, para a doença única o tratamento era por via da moral, entretanto, houve avanços desde a chegada de Kraepelin e, com a consolidação do “Compêndio de Psiquiatria” ampliaram-se os quadros psicopatológicos e com isso a forma de tratar. Em contrapartida ao tratamento pela via da moral, Izaguirre (2011) permite dizer que, o surgimento dos diversos quadros nosográficos não responde a um novo paradigma, mas é a expressão de uma crise no terceiro paradigma psiquiátrico e inclusive da própria psicanálise, impondo uma mudança no modo de pensar a psicopatologia. “Em consequência, perde-se a ideia de um tratamento único para dar lugar à diversidade de tratamentos, havendo um, específico, para cada doença ou para cada grupo de doenças” (IZAGUIRRE, 2011, p.15). Tendo em vista as contribuições herdadas da medicina e da psiquiatria antes da Reforma Psiquiátrica e a entrada de pleno direito da psiquiatria na medicina, podemos relacionar saúde mental com norma cultural e concluir que a doença mental é, antes de tudo, uma doença social, no sentido de ser uma construção de uma dada organização social? Para tentarmos elucidar essa questão, faz-se necessário, ainda que sucintamente, apresentar o conceito de diagnóstico com o qual opera a psiquiatria contemporânea. Posteriormente à Reforma Psiquiátrica a questão do normal e do patológico na psiquiatria pode ser abordada a partir das classificações das doenças mentais, tendo como principais referências, o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Norte Americana de Psiquiatria (DSM), atualmente em sua 5º edição, atualizado em maio de 2013, e a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento (CID), hoje em sua 10º edição. Apesar da entrada em cena de “outros saberes, outros profissionais, outros serviços [...], o campo da saúde mental é o resultado de uma reorganização do campo da psiquiatria” (BARRETO, 2012, p.8). Ela não é apenas uma parte no campo da saúde mental, mas o saber que ainda disputa com os demais pelo exercício pleno de poder no tratamento da loucura. Ao mesmo tempo, porém, o campo da psiquiatria vivencia o surgimento e o amadurecimento de inúmeras iniciativas de uma clínica renovada, onde a doença mental pode vir a interessar na sua dimensão subjetiva. Trata-se de uma psiquiatria atravessada pela questão do sujeito, dando espaço para outros discursos e intervenções terapêuticas. Neste contexto, encontramos a lógica diagnóstica da psiquiatria e de outro campo de saber ou de produção de saberes: a psicanálise, onde se discute as formulações sobre diagnóstico estrutural versus diagnóstico fenomenológico e diagnóstico sindrômico/nosográfico versus diagnóstico nosológico (FIGUEIREDO & TENÓRIO, 2002). Convém entender o que isso quer dizer: a psiquiatria se apropriou da fenomenologia para descrição e categorização dos sintomas, tendo como principal instrumento o diagnóstico fenomenológico. Em contrapartida, o diagnóstico estrutural se volta para o funcionamento básico e diz de uma estrutura que existe e condiciona o sujeito desde o seu nascimento. Mas, como foco principal, tratemos aqui da distinção entre diagnóstico sindrômico ou nosográfico e diagnóstico nosológico, segundo os dois sistemas atuais de classificação – o DSM-V e a CID-10. O diagnóstico sindrômico, portanto, descreveria o conjunto de sinais e sintomas, sem definir a doença de fundo. Já a nosologia é, como está no dicionário, “o estudo das moléstias”. O diagnóstico nosológico, portanto indicaria qual é a “moléstia”, qual é a doença de fundo, nos termos da nosografia psiquiátrica (nosografia por sua vez é a “descrição metódica das doenças”) (FIGUEIREDO & TENÓRIO, 2002, p.33). Essas questões se correlacionam, partindo do geral, ou seja, o campo da saúde mental para o particular, o diagnóstico neste campo. Conforme Barreto (2012), a ideia de saúde mental, é mais abrangente do que os referidos tratamentos embasados apenas no diagnóstico, pois inclui também o trabalho com as famílias, os programas específicos, a organização dos serviços e as diretrizes políticas. As discussões e as formulações em torno das práticas antimanicomiais dizem da relação entre duas ênfases: a clínica, que se refere ao tratamento oferecido a cada sujeito na sua individualidade e a política, que em geral, descarta a noção de clínica em favor de uma prática política voltada para a reinserção social e para o resgate da cidadania. “Umas das expressões mais frequentemente utilizadas para designar as diferentes tentativas de articulação entre clínica e política é a de ‘clínica ampliada’” (FERREIRA NETO, 2007, p.112). A proposta de trabalho da clínica ampliada irá indicar para uma revisão das práticas em saúde mental e dos meios de trabalho de assistência individual, familiar e de grupos. Portanto, conforme as pontuações de Matos et. al. (2005) poderíamos concluir que o diagnóstico nosográfico não se presta a substituir a abrangência do diagnóstico clínico, que resulta da intuição, da percepção e do feeling e que prioriza a relação que se estabelece entre o profissional e o paciente. “Desta forma, ambos os sistemas diagnósticos – DSM-V e CID-10 – são nosográficos e tem por objetivo listar e classificar os transtornos mentais, mas não substituem o exercício da clínica” (MATOS et. al. 2005, p.315). E aí podemos pensar que, não substitui nem o exercício de uma clínica mais “tradicional” e, tampouco, de uma clínica ampliada. Diante deste contexto, indagamos qual o sentido do diagnóstico para a equipe de saúde mental num dispositivo como o CAPS, aonde, a própria questão clínica vem sendo repensada a partir da lógica da clínica ampliada. Para discutirmos essa ponto, tomaremos de empréstimo a reflexão feita por Barreto sobre o diagnóstico: “talvez sua maior importância e contribuição seja esta: fornecer a descrição e a classificação dos transtornos mentais e comportamentais. Definir o que deve ser tratado e a que objetivo o tratamento deve visar” (BARRETO, 2012, p.8). O Centro de Atenção Psicossocial deve ser substitutivo e não complementar ao hospital psiquiátrico, com relevância para o caráter de promoção de autonomia e articulação de recursos em variadas redes: sociais, saúde, jurídicas, educacionais e outras possíveis. De acordo com o Manual do CAPS, as pessoas atendidas neste dispositivo, são aquelas que apresentam intenso sofrimento psíquico, que lhes impossibilita de viver e realizar seus projetos de vida, podendo ser encaminhadas pela rede de atenção básica de saúde ou por demanda espontânea e ao procurar o serviço, a pessoa é acolhida e escutada em seu sofrimento (BRASIL, 2004). Schmidt e Figueiredo (2009) nos explicam que o acolhimento é o primeiro contato com quem nos procura; é o momento em que são discutidos quem atender, como e o que pode oferecer, e discriminar a demanda. Esse acolhimento poderá ser feito por qualquer profissional da equipe técnica, o qual se caracteriza como técnico de referência das pessoas que apresentam demanda para acompanhamento no CAPS, sendo referência também para o desenvolvimento do Projeto Terapêutico Individual (PTI) que irá dispor das propostas para o tratamento no serviço, incluindo as atividades terapêuticas, medicamentos, vínculos e modalidade de permanência. Na construção do PTI, salientamos a importância do diagnóstico no CAPS, embora sugerirmos que este deva estar “entre parênteses”, ou seja, não deve ser PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2015/1 - NÚMERO 10 - ISSN 2176 7785 | 49 empregado como um fim, mas como um meio ou como uma hipótese ou fio condutor para o caso. Mas, se pensarmos os CAPS em linhas gerais como espaços destinados a: 1)acolher os pacientes com diversos tipos de sofrimento mental grave; 2) estimular o fortalecimento dos vínculos sociais e familiares e, 3) promover a busca de autonomia através da oferta de atendimentos psiquiátricos, sociais, ocupacionais e psicológicos; quais os critérios utilizados para se definir a gravidade e os cuidados a serem dispensados aos seus usuários? Se o sofrimento mental é o que está em questão, seria possível mensurá-lo? Como pautar essas ações apenas pelo estabelecimento do diagnóstico? Quanto à prática de acolhimento, e podemos expandir para a prática do diagnóstico como critério de seleção, Viganó em “O Lugar da Psicanálise nas Instituições”, propõe a possibilidade de outra rede, pois esta rede que sustenta o acolhimento caracteriza-se por uma organização social, por um gestor que determina que os indivíduos sejam selecionados a partir de seus atos e seu comportamento, uma espécie de rede segregadora que funciona somente recebendo as pessoas pelos seus sintomas nos pontos de recepção pré-estabelecidos. O alcoolista, o toxicômano e acrescentaríamos principalmente o neurótico grave e os psicóticos. Esse tipo de organização produz no sujeito que demanda ajuda um efeito de identificação social: identifica e segrega (apud ALVES, s/d). Nesse sentido, cabe criticar o diagnóstico como critério de inserção para esses serviços. Para além de inserir para tratamento, oferece significantes sociais “negativos” e segregadores: alcoólatra, psicótico, neurótico, obsessivo, etc. Contrariando a lógica segregatória, em geral de acordo com o Manual do CAPS, os seus usuários podem ter tido uma longa história de internações psiquiátricas, podem nunca ter sido internados ou podem ter sido atendidos em outros serviços da rede de saúde; o importante é que saibam que podem ser acolhidos e compreendam o que é o serviço, assim como o que oferecem para além das consultas psiquiátricas e o tratamento medicamentoso (BRASIL, 2004). Há que se ressaltar também, conforme nos expõe Barreto (2012) que estabelecer um diagnóstico é importante, principalmente para o manejo do usuário na rede de serviços. Mas, advertimos para a cautela em seu emprego, pois não deverá ser o único objeto de comunicação e encontro do usuário com o serviço e a equipe interdisciplinar. Caso contrário, corremos o risco de anular o sujeito em prol de um manual que apesar de ser um instrumento de inclusão do usuário no serviço, nos permite questionar se esse mesmo critério de inclusão não contribui para uma prática também excludente, o qual deixa muitas pessoas desassistidas, sem levar em consideração a importância da construção diagnóstica que permite colocar em evidência a singularidade do caso a caso. no Centro de Atenção Psicossocial não como um fim, mas como um trabalho ao longo do tratamento, tendo em vista as singularidades e a produção de sentido que distinguem os diversos sujeitos como uma forma de não anulá-lo. Sobre a clínica psiquiátrica, Figueiredo e Tenório (2002), apontam que um bom exemplo é resgatar a clínica como prática que se faz junto ao paciente, e como mediação entre o universal da nosografia e o singular de cada caso. Com o advento do século XXI o diagnóstico, diante da adoção de uma postura empirista pela psiquiatria, prioriza exclusivamente a descrição dos fenômenos clínicos, e desta forma, ganharam força no campo da saúde mental os manuais de classificação diagnóstica, como os já citados DSM-V e CID-10 que cumprem a sua parte em escala universal. Neste sentido, Figueiredo e Tenório (2002, p.40) dizem que, “[...] o que se vê aí é um empobrecimento interno à própria lógica psiquiátrica. Empobrecimento que consiste em privilegiar a descrição dos sintomas, privilegiar a síndrome em detrimento da doença, em detrimento da categoria da doença”. Neste contexto, cumpre destacar a importância do diagnóstico em saúde mental para psiquiatria, como citado acima e, em oposição, para a psicanálise. A psicanálise aplicada ao campo da saúde mental, parte da lógica do não saber, mas se propõe à construção de saberes, tendo em vista todos os discursos envolvidos. Conforme afirma Barreto (2012), funda-se na singularidade da relação do sujeito com seu próprio sintoma, desta forma, podemos afirmar que cada sujeito é diferente do outro. Ainda, sobre o diagnóstico distinto do campo da psiquiatria: A SINGULARIDADE DO SUJEITO DIANTE DA CONSTRUÇÃO DIAGNÓSTICA O conceito de diagnóstico em saúde mental que estamos discutindo tem suas bases estabelecidas aos tempos de Pinel, Kraepelin e outros percursores com o surgimento da psiquiatria desde o trato das alienações mentais à diversidade de categorias diagnósticas. O caráter psicopatológico e fenomenológico do diagnóstico se sustenta ainda pela afirmação de Vilhena e Rosa (2012, p.30), que “os diagnósticos têm uma característica representacional e objetivista, na medida em que procuram descrever as anomalias subjacentes ao funcionamento do paciente”. A psiquiatria tem como ponto de partida a descrição do fenômeno, trabalha visando a sua eliminação e tem como fim a adequação psicossocial, circulando pelo discurso da normatização. Neste sentido, cumpre destacar a importância da construção diagnóstica que cabe ao usuário do CAPS e a sua possibilidade de circulação e desenvolvimento de sua autonomia nos espaços sociais. Em contrapartida, podemos pensar que esse assujeitamento que é produzido no serviço, por um lado, já é um ganho, visto que o acompanhamento e tratamento do usuário em crise requerem de início o exercício da contratualidade na simples aceitação e implicação ao tratamento, para então a partir daí, construir e resgatar a cidadania na perspectiva de uma subjetividade socializadora e a responsabilização por parte do usuário. A esse respeito, ressalta-se que: ...é importante considerar que o sujeito é determinado por uma estrutura simbólica que não só lhe pré existe como o condiciona desde antes o seu nascimento. Estrutura que põe em jogo um sistema de regras e convenções, funcionando como código e definindo-o por sua posição e não por um conteúdo interno (BARRETO, 2012, p. 19). A construção diagnóstica pela psiquiatria, embasada na descrição e categorização dos fenômenos e sustentada pelos manuais atuais, ainda hoje, tem sido o modelo que orienta as práticas em saúde, principalmente a saúde mental, pois ainda predomina a construção sócio-histórica de que o sofrimento psíquico está relacionado a uma incapacidade de escolhas e de autonomia na sociedade. É importante ressaltar que houve avanços no modelo de atenção à saúde mental, muito embora o usuário do CAPS ainda seja tratado pelos profissionais de saúde como paciente, que em muitos dos casos, o reduz a uma condição de assujeitamento ao serviço e seus profissionais, diante da necessidade do acompanhamento e gerenciamento de diversas demandas, o que na verdade interfere no papel social [...] embora haja no CAPS uma reprodução das relações sociais de trocas, esse significado evidencia os avanços da relação do usuário de saúde mental com os profissionais de saúde, pois o coloca na condição de exercer alguma contratualidade (eu só aceito me submeter ao tratamento se você me der algo em troca), mesmo que seja uma contratualidade 50 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2015/1 - NÚMERO 10 - ISSN 2176 7785 passiva ou adaptativa, e pouco orientada para a criticidade, esta já se configura um grande distanciamento do modelo manicomial (TAVARES & SOUSA, 2009, p. 45). Sustentar o acompanhamento se constitui como um dos maiores desafios do trabalho na saúde mental, tendo em vista as políticas de caráter universal que embasam esta prática. E, principalmente diante da necessidade de gerenciamento dos casos que coloque o diagnóstico “entre parênteses”, como forma de resguardar o singular e possibilitar produzir respostas ao usuário. De acordo com Barros et. al. (2010) o acompanhamento no CAPS, deve buscar valorizar as falas, as experiências dos usuários e familiares e, a partir disso, estimulá-los a desempenhar um papel ativo, rompendo com a ideia de assujeitamento como paciente e assumindo uma conduta fundamentada no desenvolvimento da autonomia nas suas relações interpessoais e na condução da sua própria vida. A organização das práticas no cotidiano dos serviços de saúde deve considerar a atenção à pessoa com sofrimento psíquico no âmbito das relações e redes sociais e não apenas da assistência à saúde, mas buscando ampliar a construção de estratégias terapêuticas de ampla articulação social como determinante também das condições gerais de saúde. Assim, Barros et. al. (2010), pontuam que o desafio de se produzir o cuidado em saúde de forma integral é possibilitar a garantia do usuário em ser atendido; tendo acesso pleno e universal a toda rede de serviços e principalmente ao diálogo singular com os técnicos de referência para o atendimento de suas necessidades subjetivas e demandas em torno do sofrimento mental. A partir do apresentado, indagamos como é possível, dentro de uma política universal, fazer uma prática a partir de um? Uma resposta pertinente ao campo da saúde mental é a construção do caso clínico. A construção do caso clínico é uma das principais contribuições da psicanálise para a psicopatologia, por meio da construção diagnóstica e da saúde mental, por meio da relevância para a construção da palavra através da escuta de diversos atores envolvidos e da compreensão da relação que o sujeito estabelece com o seu sofrimento. Convém esclarecermos, o que quer dizer construção do caso clínico. De acordo com Figueiredo (2004), a construção é a partilha de determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, podendo se constituir como um método clínico de maior alcance. O outro termo: caso, se refere a um encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível. Quanto à clínica, seu sentido é o de debruçar-se sobre o leito do paciente e produzir um saber a partir daí. Em suma, Alves (s/d) explica que a construção do caso clínico é importante para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso. Com relevância para a sua história, apreendendo-se a sua relação com o Outro e como esse sujeito interpreta o mundo, buscando intervir na sua relação com o Outro, possibilitando alguma mudança subjetiva e principalmente às saídas que o próprio sujeito tem desenvolvido para lidar com o seu sofrimento, enfatizando a singularidade e colocando o diagnóstico “entre parênteses”. Desta forma, ressaltamos o trabalho em equipe nas instituições de saúde mental, entendendo que a construção do caso clínico é uma das ferramentas para o acompanhamento do caso e (re)elaboração do projeto terapêutico individual já discutido. Tal construção pode ser pensada assim como o matriciamento em saúde mental, que se constitui como um trabalho em equipe e possibilita a comunicação entre diversos profissionais, dispositivos e redes com o apoio de um especialista às equipes de referência. Tendo em vista a participação de uma equipe interdisciplinar, “a construção do caso pode conter elementos discursivos de familiares, de outros envolvidos, mas não pode perder o fio da meada que é a referência ao sujeito em questão” (FIGUEIREDO, 2004, p.83). Para finalizarmos, é imprescindível darmos conta do que foi exposto e discutido e voltarmos à questão articuladora: como é possível, dentro de uma política universal, fazer uma prática a partir de um? È possível que o diagnóstico para além de contribuir para a condução de um caso, produza a exclusão do sujeito? Como lidar com essas questões no cotidiano de serviços como os CAPS? Entendemos que, se cada sujeito é diferente do outro, sua história, sofrimento e relações sociais são ímpares... Sendo assim cada tratamento é singular, o que o diferencia do outro. Portanto, o que deve fundamentar o tratamento no CAPS não é uma lei universal, mas a construção ética que se faz uma a uma. CONDIDERAÇÕES FINAIS A discussão a respeito da função e uso do diagnóstico no Centro de Atenção Psicossocial nos conduziu a análise do diagnóstico como um instrumento de identificação para inserção do usuário no serviço. Contudo, pode-se percebê-lo também, como produtor de impasses no que diz respeito à condução dos casos nos CAPS, tendo em vista sua condição de classificação, exclusão e categorização dos sujeitos e seu modo de relacionar com o adoecimento mental. Embora o diagnóstico seja um instrumento importante no campo da Saúde Mental, é preciso ter cautela no seu uso, pois, seria possível inserir o usuário no serviço apenas baseando-se em critérios diagnósticos? Nesse sentido, compreender a complexidade da função diagnóstica chamando atenção para o “diagnóstico entre parênteses” pode se constituir como uma das tarefas fundamentais para a Saúde Mental. Isso quer dizer, colocar em suspensão o diagnóstico sustentado pelos manuais e, com isso, possibilitar um novo manejo em saúde mental, favorecendo a compreensão da relação do sujeito com o seu sofrimento e na construção do caso clínico. Assim, a função diagnóstica entre parênteses permitiria evidenciar a singularidade do sujeito possibilitando a construção de novas intervenções privilegiadas pela escuta ética e singular de cada caso. REFERÊNCIAS ALVES, Leila Tavares. Psicanálise: a Interface com a Saúde Mental e a Saúde Pública. s/d. Disponível em: <http://srvwebbib.univale.br/pergamum/tcc/Psicanaliseainterfacecomasaudementaleasaudepublica.pdf>. Acesso em: Acesso em 02/02/2014. AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. AMARANTE, Paulo. (Coord.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. BARRETO, Francisco Paes. 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NOTAS DE FIM 2 Psicóloga e pós-graduada em Saúde Mental: Clínica e Sociedade pela Faculdade Pitágoras Ipatinga – MG ([email protected]). 3 Psicólogo; Especialista em Saúde Mental e Psicanálise; Mestre em Psicologia Social/UFMG; Doutorando em Psicologia Social/UFMG; Professor da Faculdade Pitágoras de Ipatinga – MG ([email protected]). FIGUEIREDO, Ana Cristina; TENÓRIO, Fernando. O Diagnóstico em Psiquiatria e Psicanálise. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., V. 1, mar/2002; p. 29-43. Disponível em: <http://scholar.google.com.br/scholar?q=O+Diagn%C3%B3stico+em+Psiquiatria+e+Psican%C3%A1lise&hl=pt-BR&as_sdt=0&as_ vis=1&oi=scholart&sa=X&ei=rtgsU_-rPJHnkAe_-YDIBQ&ved=0CDAQgQMwAA>. Acesso em: 31/01/2014. FOUCAULT, Michael. O Poder Psiquiátrico: curso dado no college de France (1973-1974). Edição estabelecida por Jaques Lagrange sob a direção de Francois Ewald e Alessandro Fontana. São Paulo: Martins Fontes, 2006 – (Topicos). FOUCAULT, Michael. História da loucura na Idade Clássica. (J. T. C. 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