Revista RecreArte 11 DIC09 Revista RecreArte 11 > III - Creatividad en las Artes: Expresividad Vivificadora David de Prado Díez Autistas Artistas – a criatividade na expressão visuo-plástica de jovens com síndroma de Autismo Isabel do Vale Trabucho Não obstante as grandes expressões criativas terem sido produzidas por um escasso número de pessoas, a criatividade é uma característica essencial da existência humana. Vygostky (1991) Resumo A comunicação é uma necessidade social e um imperativo para o Homem. Comunicar, que etimologicamente significa “pôr em contacto” ou “conviver com” pressupõe uma ligação ao outro, sendo um liame com o mundo. Daí que o jovem autista apresente características muito próprias tendo em conta os seus défices linguístico e comunicacional. Kanner diagnosticou nestes indivíduos o retraimento social, aos quais intitulou “autos” (sic) devido ao ensimesmamento que revelavam, concomitantemente com ligeiros ou graves défices na capacidade linguística. De igual modo, não possuíam, segundo este, criatividade ou imaginação por serem incapazes de qualquer abstracção. É ponto assente que a actividade imaginativa se encontra alterada. No entanto, avaliando a capacidade criativa destes indivíduos restava saber de que modo esta é divergente e/ou deficitária relativamente aos indivíduos que não são portadores deste distúrbio. Assim, há que discernir e avaliar até que ponto, através da linguagem verbal veiculada em textos simples, os jovens com síndroma autístico manifestam, ao nível da expressão visual, uma capacidade simbólica ou imaginativa despoletada por uma competência efectivamente criativa, nos vectores de originalidade, fechamento, complexidade/técnica e produtividade. Palavras-chave: Autismo; Criatividade; Expressão Visuo-plástica. Abstract Communication is a great need for man, in order to be in contact with the outside world. The autists have some peculiar characteristics which include the linguistic and communicational deficits. Kanner has reffered they live in an inside world and they don’t have imagination or creativity as they don’t show either abstract capacity. However, analysing their drawings we can detect a symbolic or imaginative ability with some vectors like originality, complexity and productivity. 2 A criatividade nos sujeitos com síndroma de autismo e, mais especificamente, na sua competência visuo-plástica revela um indicador de capacidade imaginativa e de abstracção que ainda hodiernamente tem gerado polémica no seu reconhecimento. A criatividade, capacidade, habilidade ou mecanismo cognitivo, considerado apanágio do ser humano, tem sido estudado, de modo intensivo, desde há algumas décadas, embora continue a ser pouco claro o seu conceito sendo raramente relacionado com indivíduos com necessidades educativas especiais. Segundo Lachman et al. (1979), o processamento da informação considera que algumas operações simbólicas relativamente básicas, tais como codificar, comparar, localizar e armazenar podem dar conta da inteligência humana e da capacidade para criar conhecimento, inovação e expectativa. Posteriormente, frente ao avanço do paradigma do processamento da informação, teóricos clássicos da criatividade, como Guilford, Mednick et al. (1968), começaram o estudo do processo criativo em termos de estratégias de resolução de problemas, mas sem esquecer a profunda influência psicométrica que, desde o início, tinha guiado os seus trabalhos. O autista apresenta características muito próprias tendo em conta os seus défices linguístico e comunicacional. Kanner diagnosticou nestes indivíduos o retraimento social, aos quais intitulou “autos” (sic) devido ao ensimesmamento que revelavam, concomitantemente com ligeiros ou graves défices na capacidade linguística. De igual modo, não possuíam, segundo este, criatividade ou imaginação por serem incapazes de qualquer abstracção. Embora consideremos que a actividade imaginativa possa encontrar-se alterada, na maior parte dos casos, há que identificar e analisar de que modo a capacidade criativa dos sujeitos com síndroma de autismo diverge e/ou é deficitária relativamente aos indivíduos que não são portadores deste distúrbio. Assim, o nosso objectivo prende-se com a necessidade de discernir e avaliar até que ponto, através da linguagem verbal veiculada em textos simples, os jovens com esta síndroma manifestam, ao nível da expressão visual, uma capacidade simbólica ou imaginativa despoletada por uma competência efectivamente criativa, nos vectores de originalidade, fechamento, complexidade/técnica e produtividade. O autista pode ser 3 estimulado a usar meios visuais ou gráficos, para codificar informações, de modo a poder memorizar. Jordan e Powell (1990) consideram que muitas crianças autistas pensam em termos visuais, pelo que quaisquer actividades nesta área deverão, por isso, ser estimuladas. Na psicologia existem diferenças importantes na abordagem da criatividade. Mas é inexplicável a inexistência, na bibliografia científica, de esforços tendentes à unificação conceptual do fenómeno e do reconhecimento do mesmo em indivíduos com distúrbios do desenvolvimento. Ainda hoje continuam a ser utilizadas as concepções e os testes, criados na década dos 60, para avaliar a criatividade (Guilford (1968), Torrance (1970), Yamamoto (1964)), não se tendo desenvolvido pesquisa na área dos possíveis. Assim, a pertinência do estudo prende-se com essa necessidade de analisar a capacidade de pensamento divergente na linguagem pictórica de indivíduos portadores da síndroma de Kanner e veiculará, por isso, um esforço na mensuração do processo criativo em indivíduos com espectro autístico, a partir da sua capacidade não verbal, manifestada em trabalhos de expressão visual (desenhos e pinturas), a fim de detectar a sua competência imaginativa e de abstracção. Deste modo, apresentamos inicialmente uma abordagem teórica, no que diz respeito às características e sintomatologia da síndroma do autismo, para depois procurar relações observáveis no desempenho dos sujeitos, numa análise da criatividade, com uma avaliação feita segundo os critérios estabelecidos por Yamamoto (1964), Guilford (1968) e Torrance (1970). Abordaremos inicialmente a problemática da síndroma de autismo, salientando a alteração nas relações sociais, as competências linguísticas e evidenciar-se-á a suposta incapacidade, nestes indivíduos, de um pensamento divergente ou criativo. Segundo a National Society for Autistic Children, o autismo é “... uma incapacidade no desenvolvimento que se manifesta de maneira grave, durante toda a vida” (Gauderer, 1993, p. 11). O autismo é descrito pelo psiquiatra pediátrico Leo Kanner (1943) citado por Marques, C. (2000) como sendo uma perturbação do desenvolvimento psicológico que afecta directamente a forma como as pessoas percebem emoções, expressões e acções. Até há algumas décadas atrás, o autismo era, 4 em geral, confundido com algum tipo de esquizofrenia infantil ou outras doenças mentais. Inúmeros estudos e pesquisas, desde a sua primeira identificação, por Kanner, têm ajudado a determinar um conjunto de critérios aceites pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e que se encontram registrados no CID-10 (International Classification of Disease - version 10) e no DSM IV (Diagnostical Statistical Manual - version 4) desenvolvido pela Associação Americana de Psiquiatria - APA (APA, apud Peeters, 1998). Ambos os sistemas de diagnóstico baseiam os seus critérios em três áreas consideradas importantes no diagnóstico do autismo – interacção social, comunicação (verbal e não verbal) e comportamental, mas os conjuntos de sintomas utilizados para detecção do autismo podem variar dependente do país. Correia (1999) define-o como sendo um problema neurológico que afecta a percepção, o pensamento e a atenção traduzido numa desordem do desenvolvimento vitalícia que se manifesta nos três primeiros anos de vida. No final dos anos setenta, Wing, Hermelin e O’Connor (1978, citados por Marques, 2000) sugeriram a existência de um problema central em todos os indivíduos autistas: uma tríade de incapacidades, nomeadamente uma incapacidade ao nível da interacção social com os outros (socialização), ao nível da comunicação verbal e não verbal (comunicação) e uma incapacidade a nível das capacidades lúdicas e imaginativas (imaginação). Por sua vez, Nielsen (1999) refere que o autismo é um problema neurológico ou cerebral que se caracteriza por um decréscimo da comunicação e das interacções sociais. O autismo é definido como uma desordem psiquiátrica em que o indivíduo se recolhe dentro de si próprio, não responde a factores externos e exibe indiferença relativamente a outros indivíduos ou a acontecimentos exteriores a ele mesmo. O mesmo autor, citando Gillingham (1995, p.8) diz que a Autism Society of America define autismo “como uma desordem desenvolvimental vitalícia com perturbações em componentes físicas, sociais e de linguagem”. Na generalidade, todos os sistemas coincidem em considerar uma pessoa com síndroma de autista quando esta apresenta: limitadas condutas verbais e comunicativas, manuseamento ritualizado de objectos, relações sociais anormais, comportamento estereotipado e auto-estimulação. 5 Alguns estudos mais recentes procuram identificar a origem dos distúrbios como desfasamentos cognitivos relacionados com as actividades simbólicas e a aprendizagem (problemas na metacognição/ metarepresentação) e afirmam que, ao contrário das doenças mentais, o autismo deve ser tratado principalmente na educação com terapias de apoio e somente em casos extremos utilizar o tratamento psiquiátrico (Peeters, 1998). O que talvez chame mais a atenção na síndroma é que esses desfasamentos sóciocognitivos não se apresentam uniformemente em todos os processos da mente. Por exemplo, em geral, os autistas têm um óptimo desempenho nas funções perceptivas visuais e espaciais, como quebra-cabeças, mas apresentam dificuldade se nesse processo perceptivo é requerido compreender o significado de uma situação, como por exemplo, compreender uma sequência de imagens que constituem uma história. Existem evidências científicas que mostram que autistas têm um pensamento concreto e visual (Hobson, 1995; Grandin, 1999). Para Hobson (1995), a característica principal do autismo é a limitação ou deficiência que a pessoa autista apresenta na sua capacidade de ter um “sentido da relação pessoal” e de experimentar essa relação, ou dito de outra forma, a pessoa autista tem uma limitação de criar um significado para a interacção social e, consequentemente, participar da mesma. Algumas das teorias existentes sobre autismo estão mais focadas em tentar caracterizar a síndroma e definir as suas limitações do que em definir formas de desenvolvimento. Acreditamos, porém, que uma visão sócio-histórica seja mais adequada para o desenvolvimento do sujeito, que levem em conta as suas potencialidades a partir de suas limitações como o próprio Vygotsky afirmou "... el defecto se convierte por consiguiente, en punto de partida y principal fuerza motriz principal del desarrollo psíquico de la personalidad. Establece el punto final, la meta hacia el cual tiende el desarrollo de todas las fuerzas psíquicas y orienta el proceso de crecimiento y formación de la personalidad" (Vygotsky, 1997, p.15). Assim, perante o exposto, os autistas seriam incapazes de realizar acções simbólicas ou imaginativas, pois para elas são necessárias metarepresentações, ou seja, representações de segunda ordem. Estes defices seriam, em última instância, na intersubjetividade secundária e não primária como estabelecida por Hobson (1995, 6 citado por Cuxart, 2000). A teoria apresentada tem sido provada nalguns aspectos, mas, ainda hodiernamente, existem questões em aberto nas pesquisas e que esta teoria não tem conseguido dar conta. Um deles é o facto de existirem autistas que passam pelos testes de metarepresentação e que, mesmo assim, mantêm os defices sociais nas interacções, ou seja, conseguem realizar representações dos estados mentais dos outros e de realidades extrínsecas, mas revelam uma incapacidade em utilizar essa informação na sua vida social quotidiana (Bottroff, 2000). Correia (1999) salienta que o autismo pode estar associado a outras problemáticas, como sejam, a deficiência mental, a deficiência auditiva, a deficiência visual e a epilepsia. O mesmo autor e citando Nichy (1990) apresenta um conjunto de características “típicas” do autismo tais como: comportamentos anormais quanto ao seu relacionamento com pessoas, objectos e eventos; níveis de actividade invulgares, muito altos ou muito baixos; dependência de rotinas e resistência à mudança; limitações na imaginação lúdica (uso de brinquedos e outros objectos de forma invulgar); incapacidades severas de interacção social; movimentos repetitivos, tal como, balanços e rotações constantes do corpo e batimentos persistentes com a cabeça. Nielsen (1999) acrescenta ainda outras características, tais como: incapacidade de ter consciência dos outros; incapacidade para comunicar com palavras ou gestos; vocalizações não relacionadas com a fala; repetição de palavras proferidas por outros (ecolália) e repetição de expressões anteriormente ouvidas (ecolália retardada), entre outros. Esta mesma autora refere que algumas destas características se podem verificar em crianças que apresentam outras deficiências e se isto acontecer é usada então a expressão “comportamento de tipo autista”. Para Rodriguez (1994), os autistas são pessoas que, claramente têm enormes dificuldades em aprender: parece que só aprendem aquilo que se lhes ensina de uma forma explícita, pouco beneficiando com aprendizagens abstractas; para eles não servem os métodos de ensino geralmente utilizados com as outras crianças, como imitação, aprendizagem por observação do que outra pessoa faz, ou qualquer forma de transmissão simbólica. A forma como a criança com autismo pensa e aprende, segundo Marques (1997) depende de três factores principais: o nível de capacidade intelectual, o 7 grau de autismo e as competências linguísticas. “O equilíbrio e a interacção destes três factores”, diz a mesma autora, “têm uma influência muito forte na forma como estas crianças pensam e aprendem” para além de fornecerem dados significativos, tendo em vista a preparação de estratégias para se trabalhar com elas. A palavra “autismo” provém da palavra usada e introduzida por Bleuler (1968, citado por Ritvo, 1976), e pretendia, à data, designar o afastamento intencional para um mundo de fantasia interior que manisfestavam alguns dos seus pacientes esquizofrénicos, conforme descreveu em 1911. A palavra em si mesmo remetia de imediato para a noção de uma retirada intencional, sendo que Leo Kanner tinha descrito uma incapacidade para estabelecer relações; parecia assim estar a atribuir-se uma premeditação ao isolamento habitualmente observado, que poderia relevar afinal certas incompetências cognitivas. Por outro lado, deixava, desse modo, pressupor uma vida interior relativamente elaborada, enquanto que na descrição de Kanner (1943) o que foi de facto evidenciado, foi uma “incapacidade” para estabelecer relações. No sentido que se empregou esse termo, fazia realmente pressupor uma “rica e fantástica vida interior” (Rutter, 1984, p.2), e as observações de Kanner, embora apontassem na generalidade certas competências, indicavam também uma falha nos aspectos relativos à imaginação. A tendência geral, no entanto, tem sido uma aplicação mais abrangente do que aquela que estava implícita na exposição de Kanner (1943), tendo chegado mesmo a ser usada a palavra “autismo” para “…designar crianças que simplesmente evitavam o contacto pelo olhar” (Rutter, 1984, p. 3). Esta tendência tem sido contestada na esperança de um uso e aplicação de critérios mais rigorosos, que aproximem melhor entre si diversos investigadores e clínicos, e que passam hoje pela constatação dos aspectos fulcrais das anormalidades sociais no autismo, ou essencialmente as dificuldades da linguagem, as falhas de contacto pelo olhar de um modo normal, falha de consciência social normal ou comportamento social normal (isolamento autista ou “aloneness”), interacção unilateral e uma incapacidade para a ligação a grupos sociais (Baron-Cohen, 1995). Tem sido particularmente difícil a aplicação de um sistema de classificação diagnóstica do autismo, de um modo claro e com o menor número de erros possível, 8 uma vez que têm evoluído ao longo dos anos, desde 1943, diferentes concepções sobre o sindroma. Havendo um crescente consenso de que o autismo pode ser causado biologicamente por diversos factores etiológicos, e difícil de definir pelas razões antes expostas, Wing (1988a;b) elaborou o conceito de um “continuum” ou “espectro” autista. O conceito não implica, no entanto, que haja uma visão de mistura do autismo com expressões comportamentais mais ou menos reconhecíveis, ou expressões comportamentais de “tipo autista” (Frith, 1989a). Em 1972, o psiquiatra inglês Michael Rutter, confirma cientificamente o autismo como sendo, na verdade, uma perturbação absolutamente distinta, ou seja, com validade clínica enquanto sindroma e, seis anos depois, desenvolve o primeiro modelo importante para o seu diagnóstico (Rutter, 1978). Cowan (1978) propôs que as crianças com disfunções severas do desenvolvimento poderiam ter desequilíbrios longos ou permanentes, entre os processos de assimilação e acomodação piagetianos, com as consequências resultantes nas funções figurativa e operativa. Daí que mostrassem divergência ou incompatibilidade entre as funções figurativa e operativa, ou seja entre conceptualização e representação. No autismo parece haver muitas vezes um atraso das funções operativas ao nível sensório-motor da conceptualização; as suas funções figurativas, contudo, progridem mais além, dando uma falsa impressão de um nível de funcionamento cognitivo elevado que confunde por esses desempenhos. Como dizia o autor, “…as elevadas competências gráficas e outras, encontradas em alguns indivíduos, representam regra geral reproduções de configurações ambientais feitas de memória, em vez de reflectirem qualquer expressão criativa. Os seus desempenhos não-verbais, com picos elevados nas tradicionais medidas de Q.I. (Rutter, 1974; 1984), podem representar igualmente um funcionamento onde o aspecto figurativo se sobrepõe e avança em relação ao operativo. As relações sociais alteradas das pessoas com autismo, caracterizam-se sobretudo pelas dificuldades de estabelecimento de vínculos afectivos ou comportamentos de carinho, mais acentuadas nos primeiros cinco anos de vida (Rutter, 1984; Baron-Cohen, 1995; Wing, 1996). As crianças com autismo parecem ignorar os seus pais, não 9 iniciando comportamentos espontâneos a partir do contacto com os outros; é difícil ou mesmo raro observá-los a procurarem conforto quando não executam algo de um modo conveniente, seja para procurarem ajuda, seja para partilharem com “o outro” aquela mesma situação; ou ainda, não tomam a iniciativa de procura, quando eles próprios não se encontram física ou psicologicamente bem. Um dos aspectos relacionais disfuncionais mais em evidência é o contacto pelo olhar, muito particular nos casos de autismo - o que é diferente é mais a forma com que usam o contacto pelo olhar, do que a quantidade de contactos que fazem e que parecem ter valores idênticos aos normais. As pessoas sem esta problemática, sejam crianças ou adultos, usam o contacto pelo olhar de um modo especial, ou seja quando desejam captar a atenção daqueles com quem comunicam, verbal ou não verbalmente. Nas pessoas com autismo, esse contacto parece ser fortuito, superficial e fugidio, havendo, muitas vezes, a sensação, por parte de quem se relaciona com elas, de estarem apenas atentos, entrecortadamente, ou seja, em momentos episódicos (Baron-Cohen, 1995; Wing, 1996). Outras dificuldades acentuadas são a falta de empatia, as inconsistências de estabelecimento e manutenção da troca social e igualmente falhas para perceber os sentimentos e as respostas dos outros, falhas no desenvolvimento e diversificação de amizades; consequentemente surgem e vão-se estruturando problemas bem marcados na capacidade de se envolverem em jogos colectivos e cooperativos com outras crianças e adultos, factores que caracterizam muito do comportamento social normal (Wing, 1996). São diversas e graves as alterações que precedem o desenvolvimento da linguagem nas crianças com autismo. Uma das mais importantes é a capacidade de imitação social, como, por exemplo, copiar as actividades das pessoas significativas, em suma, uma imitação directa em contextos sociais. Como referiam Jarrold, Boucher e Russell (1997), no que respeita ao sistema da linguagem em si mesmo, ”…mesmo aqueles indivíduos com autismo considerados mais aptos e que a adquirem, fazem-no tipicamente de um modo lento e depois de um estabelecimento tardio, tendendo a um 10 patamar nos níveis de linguagem conseguidos, abaixo do que seria esperado com base nas competências não verbais” (p. 57). Assim, têm apontado fundamentalmente seis tipos de anomalias que se caracterizam por um atraso ou falha no desenvolvimento da linguagem falada (não compensada por gestos ou mímica), falhas nas respostas à comunicação dos outros, falha relativa de iniciar ou manter a troca comunicacional, uso da linguagem estereotipado e repetitivo, utilização idiossincrática de palavras e anormalidades na prosódica do discurso (tom, tensão, cadência, ritmo e entoação da fala). A linguagem não parece ser utilizada com fins eminentemente sociais; pelo contrário, há uma ausência de intercâmbios e de interacções recíprocas ou uma dificuldade de as estabelecer, parecendo mesmo estar a falar a alguém, mais do que com alguém, tornando-se esta sua comunicação algo imprevisível, difícil, parcelar e com expressões curiosas e singulares (Rutter, 1978). A criatividade pode ser analisada sob diferentes perspectivas teóricas. Entre elas encontra-se uma concepção que aborda esta temática através de uma aproximação do estudo da criatividade com a inteligência (Guilford, 1967). Outra perspectiva é encontrada em Torrance (1976) em que a criatividade é caracterizada enquanto um processo: preparação, incubação, iluminação e revisão. Nesse processo, o indivíduo percebe lacunas e diante dessas passa a formar e testar hipóteses, criando. Em Rogers (1987) a criatividade não será abordada enquanto um mecanismo defensivo como apresentado pela perspectiva psicanalista, será considerada enquanto presente nas tendências do homem para se realizar, para se desenvolver e amadurecer. Na perspectiva de Moreno (1997), a criatividade passa a ser vista na sua relação com a espontaneidade. O processo de criação para Moreno seria iniciado com o aquecimento preparatório de um estado espontâneo que levaria a padrões de comportamento mais ou menos organizados. O acto criativo acarreta uma transformação integradora, no sentido do crescimento e da maturação, naquele que o realiza e também no meio que o rodeia. A criatividade é vista enquanto capacidade de responder adequadamente a um estímulo novo e/ou a faculdade de responder de maneira nova e adequada a um velho estímulo. 11 Segundo Brown (1989, citado por Glover, Ronning e Reynolds, 1991), desde o início do século XX, encontram-se pelo menos quatro abordagens que têm visto a criatividade como: um aspecto da inteligência; um processo inconsciente; um aspecto da resolução de problemas; um processo associativo. Vernon (1989) aceita que os cientistas que abordam a criatividade são consensuais na seguinte definição geral: criatividade é a capacidade de uma pessoa para produzir ideias novas ou originais, insights, reestruturações, invenções, ou objectos artísticos, os quais são aceites por especialistas como tendo valor científico, estético, social ou tecnológico. Ao avaliar a criatividade de um sujeito, há que, segundo Guilford (1950, 1952, 1968) fazê-lo em função de quatro factores principais: a fluência, a flexibilidade, a originalidade e a elaboração. Relativamente à Fluência, podem ser encontrados três tipos diferentes de fluência nos testes de criatividade. Um primeiro tipo é a fluência ideacional, representada pela taxa de geração de quantidades de ideias. Um outro tipo de fluência é a chamada fluência associativa que se refere ao completamento de relações, que envolve as ideias que se adaptam a uma classe. Outro tipo de fluência é chamada de fluência de expressão que se manifesta na hora de facilitar a construção de sequências. Quanto ao critério de flexibilidade, para este autor, existem igualmente diferentes tipos: a flexibilidade espontânea e a flexibilidade adaptativa. A elaboração é outro factor relacionado com a criatividade. Segundo Yamamoto (1966), uma das posturas, relativas ao problema inteligência/criatividade, diz que a criatividade não é independente do factor geral da inteligência. Outra, afirma que a inteligência é uma condição necessária, mas não suficiente para a criatividade. Para Torrance (1970b), o talento é uma qualidade de todos os seres humanos. Certamente, aceita a existência das diferenças individuais em todas as capacidades humanas, incluídas as criativas. A sua contribuição mais importante foi o Teste de Pensamento Criativo de Torrance utilizado em quase todas as pesquisas que envolvem a criatividade. No entanto, este mesmo autor afirma que o principal problema nos estudos sobre criatividade tem sido a dificuldade relacionada aos problemas de critérios de avaliação e validação. O problema central tem sido “o que deveria ser avaliado” ou a identificação 12 de sujeitos criativos, não prestando a suficiente atenção ao problema central dos mecanismos que a fazem possível. A criatividade tem sido analisada sob várias perspectivas (Guilford, 1950, 1952, 1968; Torrance, 1970b; Yamamoto, 1966), mas nenhuma das abordagens focou unicamente o seu interesse na capacidade criativa em jovens com espectro autístico e, mais especificamente, na sua linguagem não verbal, neste caso, na comunicação pictórica/plástica, de modo a aferir o seu potencial de pensamento divergente e de competência visuo-espacial. Desde Guilford, nos anos 50, que se assiste à preocupação em mensurar e analisar a criatividade, sendo esta, na maior parte dos casos, identificada com pessoas sobredotadas ou com um quociente de inteligência acima da média. Depois de um apurado estudo teórico da criatividade há que anuir o facto da sua concepção ser muito idêntica nas últimas cinco décadas, utilizando-se inclusive os mesmos testes para avaliar a criatividade. Concomitantemente, tem-se assistido à emergência de trabalhos artísticos (desenhos, pinturas) da autoria de jovens com autismo que evidencia o que anteriormente era negado – a sua capacidade de representação, abstracção, imaginação e criatividade não se encontra completamente obnubilada conforme a enumeração das características da síndroma faria supor (Rutter, 1984; Baron-Cohen, 1995; Wing, 1996). Deste modo, a relação entre a criatividade e autismo tem sido muito pouco explorada pelos investigadores. Essa lacuna, tanto a nível teórico como experimental, tem determinado uma estagnação conceptual e experimental no campo da criatividade e especificamente na área das ciências da educação/ educação especial, pelo que nos parece assaz pertinente uma investigação neste campo específico. Tendo observado, nos capítulos anteriores que, a nível teórico, existem algumas relações que poderão convergir a fim de nos trazer algo de novo, a parte experimental deste trabalho procurará confirmar essa mesma convergência. Com este nosso estudo almejámos identificar e analisar a criatividade ou capacidade de abstracção na actividade imaginativa e no desempenho visual e espacial de sujeitos com espectro de Autismo. Procurámos encetar a nossa investigação na demanda de uma capacidade divergente e criativa, nos vectores de originalidade, 13 fechamento, complexidade/técnica e produtividade. Considerando que muitas crianças autistas pensam em termos visuais, concluímos que quaisquer actividades nesta área deverão, por isso, ser estimuladas, assim como o seu estudo deve ser aprofundado. Apraz-nos considerar que estes indivíduos revelam, inequivocamente, uma habilidade ou mecanismo cognitivo ímpar, desencadeado, talvez, por esse fechamento de alma que caracteriza os indivíduos com síndroma autístico. Assim, a investigação prendeu--se com a necessidade primordial de analisar a capacidade de pensamento divergente na linguagem pictórica de indivíduos portadores do espectro identificado de Kanner e veiculou, desse modo, um esforço na mensuração do processo criativo destes jovens, partindo da sua capacidade não verbal, manifestada em trabalhos de expressão visual (desenhos e pinturas), a fim de detectar a sua competência imaginativa e de abstracção. Para além destes aspectos, que futuras abordagens da mesma temática poderiam, com proveito, vir a contemplar, existem muitos outros de relevância reconhecida, que foram de impossível inclusão no presente estudo. Referimo-nos, por exemplo, ao nível intelectual e ao estudo desse mesmo poder criativo com palavras. Afirmámos, no decurso deste estudo, a nossa intenção de contribuir para o conhecimento da criatividade e do autismo, pelo vector predominantemente ligado à inteligência visuo-espacial. Sendo este objectivo reconhecidamente vasto, consideramos que o contacto directo com os indivíduos autistas e com o seu envolvimento pessoal e familiar representou, para nós, uma fonte adicional, e sempre renovada, de interrogações que conferiram ao referido objectivo um carácter ainda mais ambicioso. Cientes, portanto, do pouco que foi possível conhecer, nota-se que esta investigação permitiu a recolha de informações referentes à etiologia, ao enquadramento comportamental e sócio-psicológico, assim como cognitivo-emocional, que assinalam a probabilidade de, numa área particular, se registar um desenvolvimento mais bem sucedido do que o comummente previsto. Espera-se que a presente investigação possa, de alguma forma, ter constituído um primeiro passo nesse sentido. Sendo evidente que as pessoas com autismo não são muito comunicativas, que não são capazes de exprimir de um modo adequado os seus pensamentos e sentimentos, 14 e que não são capazes de usar de um modo funcional aspectos de natureza cognitiva e metacognitiva, parece poder ser apoiada a noção de que, a nível pictórico, as suas vivências e as suas experiências do dia-a-dia são reveladas e expressas apresentando e veiculando claramente um significado. BIBLIOGRAFIA Alloy, Lauren B. et al., (1999) Mental Retardation and Autism. Abnormal Psychology: Current perspectives. New York: Mc Graw-Hill, pp.473-489. American Psychiatric Association ( 1996 ) Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais - DSM-IV (1ª Ed.). Lisboa: Climesi Editora. Baron-Cohen, S., Leslie, A. M. & Frith, U. (1986). Mechanical, behavioural, and intentional understanding of picture stories in autistic children. British Journal of Developmental Psychology, 4, pp. 113-125. 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