trabalho decente e relações de gênero

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TRABALHO DECENTE E RELAÇÕES DE GÊNERO:
RESPONSABILIDADES FAMILIARES, IGUALDADE DE
OPORTUNIDADES E NEGOCIAÇÕES COLETIVAS
Volney Campos dos Santos
(UEPG - Universidade Estadual de Ponta Grossa)
Lenir Aparecida Mainardes da Silva
(UEPG - Universidade Estadual de Ponta Grossa)
INTRODUÇÃO
A importância das mulheres no processo produtivo brasileiro é uma realidade e vem
ganhando cada vez mais espaço no decorrer dos anos. Dados do IBGE confirmam o
crescimento constante de sua taxa de participação na população economicamente ativa,
fato esse presente não só no Brasil, mas em diferentes países e contextos sociais. Além
disso, a participação econômica da mulher na composição do rendimento familiar tem
tido importância crescente na superação da situação de pobreza.
Nesse sentido, a questão da igualdade de gênero no mercado de trabalho tem sido
reconhecida universalmente como um elemento estruturante para a promoção de uma
justiça social que tenha por fundamento a concretização dos direitos humanos
fundamentais dos indivíduos, sustentando pelo crescimento e desenvolvimento
econômico e social de cada país.
Porém, essa consolidação da participação feminina tem suscitado relevantes
questionamentos acerca das desigualdades de gênero que, percebidas em distintas
esferas das relações sociais, aparecem de maneira expressiva nas relações laborais,
constituindo verdadeiras barreiras ao acesso da mulher a um trabalho produtivo em que
padrões mínimos de rendimentos e proteção social sejam garantidos.
A discriminação baseada no sexo assume diferentes feições no mundo do trabalho,
prejudicando sobremaneira o acesso das mulheres trabalhadoras a direitos, benefícios,
formação profissional, progressão funcional etc.
Muitas dessas limitações enfrentadas estão relacionadas à permanência de uma divisão
sexual do trabalho na qual as mulheres aparecem como principais responsáveis pelos
afazeres domésticos e cuidados com a família. As responsabilidades familiares podem
constituir uma barreira importante ao acesso ao mercado de trabalho, já que essas
responsabilidades recaem desproporcionadamente sobre elas.
Atualmente, a questão da igualdade de gênero no mercado de trabalho está no centro do
debate acerca do desenvolvimento do Trabalho Decente promovido pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil e no mundo. Conceituado como o trabalho
produtivo e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade,
igualdade, segurança e dignidade, e livre de qualquer forma de discriminação, a
definição do que constitui o Trabalho Decente encontra fundamento em quatro objetivos
estratégicos definidos pela OIT, sendo eles: 1) a promoção de direitos fundamentais do
trabalho; 2) o emprego; 3) proteção social e 4) fortalecimento do diálogo social. (OIT,
2010)
Diante disso, é possível afirmar que a igualdade de gênero representa uma dimensão
estratégica do Trabalho Decente, cujo enfrentamento perpassa cada um dos seus quatro
pilares: a aplicação dos princípios e direitos fundamentais no trabalho, a criação de mais
e melhores empregos para homens e mulheres, a extensão da proteção social e,
especialmente, a valorização do diálogo social enquanto instrumento de conciliação.
O presente artigo tem por objetivo discutir a articulação entre trabalho decente, divisão
sexual de trabalho e relações de gênero. O argumento central é que divisão sexual do
trabalho constitui-se em elemento central na consolidação das barreiras enfrentadas
pelas trabalhadoras brasileiras, sobretudo em relação à precarização e a flexibilização
das relações de trabalho e quanto ao acúmulo quase exclusivo das responsabilidades
familiares. E, nesse contexto, as negociações coletivas de trabalho podem desempenhar
um papel importante na criação de ambientes de trabalho mais equitativos.
TRABALHO DECENTE E A PROMOÇÃO
OPORTUNIDADES DO MUNDO DO TRABALHO
DE
IGUALDADE
DE
O conceito de Trabalho Decente, segundo a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), deve ser entendido como um conjunto de propostas no sentido de promover
oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo,
justamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança,
realizado sem preconceito e que proporcione uma vida digna a todas as pessoas que
vivem do trabalho e suas famílias. (OIT, 2009a)
O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos56 da
OIT e condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades
sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.
56
56
SãoobjetivosestratégicosdoTrabalhoDecente:a)orespeitoàsnormas
internacionaisdotrabalho,emespecial,aosprincípiosedireitosfundamentaisdotrabalho;b)
Uma agenda imensa para o cumprimento das determinantes do Trabalho Decente foi
formulada. Nesta agenda surge, dentre outros temas de relevância internacional, a
promoção da igualdade de gênero como uma dimensão estratégica no combate a uma
das formas mais subliminares e arraigadas culturalmente de desigualdade, que é a
discriminação entre homens e mulheres em decorrência da reprodução dos estereótipos
de gênero estabelecidos socialmente e que repercutem no mercado de trabalho.
No que tange à criação de empregos com igualdade de oportunidades e de tratamento, a agenda levanta
um elemento complexo, o das diversas formas de discriminação no mercado de trabalho brasileiro. A
realidade brasileira está marcada por significativas e persistentes desigualdades de gênero e raça, e este é
um aspecto que deve ser levado em conta nos processos de formulação, implementação e avaliação das
políticas públicas em geral, e em particular das políticas de emprego, inclusão social e redução da
pobreza. (CIMBALISTA, 2007)
Este tratamento diferenciado em relação à mulher se manifesta por diversos meios, cuja
expressão mais conhecida está na existência de uma maior dificuldade para inserir-se no
mercado de trabalho, das menores oportunidades de ocupação em razão da segmentação
ocupacional (dito de outra forma, o leque de ocupações disponíveis para elas são mais
restritas), dos menores rendimentos percebidos e da maior informalidade com empregos
sem a devida proteção social. (MTE)
As desigualdades de gênero e raça no Brasil não se referem às ‘minorias’, ao contrário, diz respeito às
grandes maiorias da população: segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) 2003, as mulheres representam 43% da População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil, e os
negros (de ambos os sexos) representam 46%. Somados, correspondem a aproximadamente 70% da PEA
(60 milhões de pessoas). As mulheres negras, por sua vez, correspondem a mais de 15 milhões de pessoas
(18% da PEA) e, como resultado de uma dupla discriminação (de gênero e raça), apresentam uma
situação de sistemática desvantagem em todos os principais indicadores sociais e de mercado de trabalho.
(CIMBALISTA, 2007)
Outra dimensão intrinsecamente relacionada ao conceito de Trabalho Decente,
especialmente relacionada à inexistência de discriminação e capacidade de assegurar
uma vida digna a todas as pessoas que vivem de seu trabalho, está na luta pela
conciliação entre o mercado de trabalho e a vida pessoal e familiar. Trata-se de uma
estratégia de promoção da igualdade de gênero no mundo do trabalho com vistas
combater a discriminação relacionada às responsabilidades familiares.
Diante disso, a discriminação da mulher se manifesta por diferentes meios: pela maior
dificuldade para inserir-se no mercado de trabalho; pelas menores oportunidades em
razão da divisão sexual do trabalho, pelos menores rendimentos e da maior
informalidade com empregos sem a devida proteção social, pela sobrecarga decorrente
do acúmulo entre trabalho produtivo e trabalho domiciliar. A informalidade é a porta de
entrada do trabalho forçado e do trabalho degradante que atinge principalmente as
meninas e as adolescentes.
apromoçãodoempregoprodutivoedequalidade;c)aextensãodaproteçãosocialed)o
fortalecimentododiálogosocial.
A QUESTÃO DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO E A
DESIGUALDADE NO BRASIL
A consolidação da mulher enquanto força de trabalho ativa no Brasil tem reconfigurado
o cenário das relações de trabalho ao longo dos anos. De acordo com Valle e Costa
(2014, p. 156) “embora persista a desigualdade salarial entre homens e mulheres, houve
maior inserção das mulheres no mercado formal de trabalho, a chamada “feminização”
do mercado de trabalho, com a elevação da escolaridade das mulheres”.
A presença crescente das mulheres nas mais diversas esferas da sociedade, contudo, não
apaga diferenças em torno de direitos e de oportunidades, permanecendo determinadas
relações de desigualdade que demarcam papeis tradicionais atribuídos às mulheres.
Dados coletados pelo IBGE ao longo de décadas tem demonstrando um crescimento
constante da participação de mulheres na PEA (população economicamente ativa).
Segundo Alves (2013):
O Brasil apresentou um grande crescimento da População Economicamente Ativa (PEA) nas últimas 6
décadas. A PEA total passou de 17,1 milhões de pessoas, em 1950, para quase 93,5 milhões de pessoas,
em 2010 (aumento de 5,5 vezes). A PEA masculina passou de 14,6 milhões para 52,8 milhões
(incremento de 3,6 vezes), enquanto a PEA feminina teve uma elevação extraordinária, passando de 2,5
milhões, em 1950, para 40,7 milhões, em 2010 (crescimento de 16,3 vezes).
Ainda sobre o incremento do trabalho feminino em relação ao masculino no Brasil,
Alves (2013) aponta uma constante redução da taxa de atividade masculina, em
contrapartida de um crescimento da taxa de participação feminina no período entre 1950
e 2010:
Analisando o comportamento das taxas de atividade para homens e mulheres, entre 1950 e 2010, observase a redução das taxas masculinas, que passaram de 80,8% em 1950 para 67,1% em 2010 e aumento das
taxas femininas, que passaram de 13,6% para 48,9%, no mesmo período. [...] Em 1950, cerca de 81% dos
homens de 10 anos ou mais de idade estavam no mercado de trabalho. Eles entravam cedo e saiam tarde
da atividade econômica. Porém, com o processo de mordernização do país, os homens foram ficando
mais tempo na escola e passaram a sair mais cedo da força de trabalho devido ao aumento da cobertura da
previdência social. Em 2010, a taxa de atividade masculina era de apenas 67,1% [...].
No caso das mulheres houve aumento das taxas de atividade em todas as idades. A taxa
de atividade feminina era de apenas 13,6% em 1950 e passou para 48,9% em 2010. Em
1950, a faixa etária das mulheres em atividade variava entre 15 e 19anos. Para os anos
de 1970 e 1980, a faixa etária predominante era de 20 a 24 anos, caindo para as idades
posteriores. Porém, a partir de 1991 as taxas de atividade feminina continuaram
crescendo até o grupo etário 30 a 39 anos e só apresentando uma tendência de queda
rápida a partir dos 49 anos de idade. (ALVES, 2013).
A conclusão da análise estatística para o citado autor é que as diferenças de gênero nas
taxas de atividades eram muito grandes em 1950 e diminuíram muito em 2010: “O
padrão de participação, por sexo, está cada vez mais parecido, mas devido a divisão
sexual do trabalho as mulheres continuam com menor inserção no mercado de trabalho
remunerado e maior presença no trabalho doméstico não remunerado”. (ALVES, 2013).
Portanto, o aumento da participação feminina no mercado de trabalho não eliminou os
problemas de segregação ocupacional e discriminação salarial, embora tenham sido
abrandados no período analisado.
Uma forte referência na afirmação dessas desigualdades pode ser aferida a partir dos
dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) 2013. Eles apontam
que, dos quase 96 milhões de ocupados, 57,2% eram homens (55 milhões) e 42,8%,
mulheres (40,9 milhões). Proporcionalmente, há quase o dobro (8,5%) de mulheres
ocupadas e sem rendimento do que homens (4,7%)57. Ainda de acordo com a pesquisa, a
desigualdade salarial aparece na seguinte proporção: em média, em 2013, os homens
receberam R$ 1.890 e as mulheres R$ 1.392.
Outra dado que reforça a desigualdade existente decorre do Índice de Igualdade de
Gênero (IDG) apurado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) no Relatório de Desenvolvimento Humano 2014.
O IDG reflete as desigualdades baseadas em gênero em três dimensões: saúde
reprodutiva, empoderamento e atividade econômica. A saúde reprodutiva é medida pela
mortalidade materna e as taxas de gravidez entre adolescentes; o empoderamento é
medido pela proporção de assentos parlamentares ocupados por mulheres e a realização
do ensino fundamental e médio por cada gênero; e a atividade econômica é medida pela
taxa de participação das mulheres e homens no mercado de trabalho. O IDG pode ser
interpretado como a perda no desenvolvimento humano devido à desigualdade entre as
realizações femininas e masculinas nas três dimensões analisadas. (PNUD, 2014)
O Brasil possui IDG de 0,441 (quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade),
classificando-se em 85º entre 149 países avaliados em 2013. Apenas para ilustrar um
dos critérios usados como indicador, no Brasil apenas 9,6% dos assentos parlamentares
são ocupados por mulheres, enquanto que no México essa ocupação é de 36% e na
Colômbia 13,6%.
57
57
ParaoIBGE,apopulaçãoocupada,portanto,compreendeaspessoasquetinham
trabalhonasemanaanterioràdaentrevista,ouseja,osindivíduosquetinhamumpatrão
(empregados),osqueexploravamseupróprionegócio(trabalhadoresporconta)eosque
trabalhavamsemremuneraçãoemajudaamembrosdafamília.Cf.IBGE<
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme/pmemet3.s
htm>
Entre os BRICS, o Brasil está na 3ª posição, na frente da África do Sul (0,461) e atrás
de Rússia e China, com IDG 0,314 e 0,202 respectivamente (a Índia que não foi
avaliada em relação a esse indicador).
O Relatório de Desenvolvimento Humano 2014 (PNUD) traz ainda o Índice de
Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD)58. O Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil para 2013 é de 0,744. O IDH aponta um
valor médio das conquistas básicas de desenvolvimento humano em um país.
Porém, alerta o Relatório, como é comum acontecer com todas as médias, o IDH
mascara a desigualdade na distribuição do desenvolvimento humano entre a população.
Daí entra em cena outro índice, o IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano
Ajustado à Desigualdade) que leva em conta todas as três dimensões do IDH (padrão de
vida, acesso ao conhecimento e expectativa de vida ao nascer), descontado o valor
médio de cada dimensão, de acordo com seu nível de desigualdade. O deficit no
desenvolvimento humano devido à desigualdade é dada pela diferença entre o IDH e o
IDHAD, expressa em porcentagem. Quanto mais alto o percentual, maior é a
desigualdade e a perda de desenvolvimento dela decorrente.
O IDHAD do Brasil é de 0,542.
Assim, embora o Brasil tenha um IDH de 0,744, quando é descontada a desigualdade, o
IDHAD cai para 0,542, o que significa uma perda de 27% devido à desigualdade na
distribuição dos índices. Em comparação com os índices latino-americanos, México
apresenta uma perda de 22,9% e Colômbia 26,7%. Se comparado ao BRICS o Brasil
apresenta perda de 27%, Rússia 12% e Índia 28,6% (China e África do sul não possuem
essa avaliação). (PNUD, 2014)
É possível afirmar, portanto, que o Brasil é um país onde a desigualdade interfere
sobremaneira no desenvolvimento econômico e social, sendo que a desigualdade de
gênero permeia o cenário nacional, assumindo sua feição cruel quando as estatísticas
demonstram o quanto homens e mulheres são diferentemente considerados no ambiente
de trabalho.
As relações assimétricas no âmbito do mercado de trabalho podem ser diagnosticadas
nos mais variados níveis: de hierarquia, de qualificação, das oportunidades, da carreira e
do salário, que aparecem marcadamente diferenciadas de acordo com o sexo,
fundamentadas em construções históricas e culturais de comportamentos considerados
como tipicamente femininos e masculinos. (GONZALEZ, 2011)
58
58
AdesigualdadeaqueserefereoIDHDéemsentidoamplo,enãosomenteà
desigualdadedegênero.
Neste sentido, as ocupações em que se inserem as mulheres no trabalho assalariado
aparecem como uma extensão do trabalho realizado no âmbito doméstico, relacionadas
a capacidades ou habilidades identificadas como tipicamente femininas, valorizando
características como delicadeza, destreza, habilidade manual, paciência, etc.
Já o trabalho realizado pelos homens é associado a um conhecimento teórico
formalizado, profissional, enquanto as mulheres o desenvolvem de acordo com um
conhecimento (inato) não formalizado adquirido pela prática na esfera doméstica. Esta
consideração diferenciada e subqualificada do trabalho feminino relaciona-se a uma
“construção social do gênero que inclui também as qualidades de gênero desenvolvidas
socialmente através da educação e do trabalho.” (SOUZA-LOBO, 1985, p.59 apud
GONZALEZ, 2011).
A essa desvalorização profissional relacionada a estereótipos de gênero associam-se as
expressivas desigualdades salariais entre homens e mulheres em diversos setores do
mercado de trabalho e a sobre-representação feminina nas ocupações de maior
vulnerabilidade social e precariedade das condições de trabalho.
De outra sorte, um outro elemento relacionado às desigualdades entre homens e
mulheres no trabalho diz respeito à distribuição das responsabilidades familiares. A
permanência da responsabilidade feminina pela esfera familiar e pelos afazeres
domésticos revela-se fator determinante a ser considerado nesta conjuntura, na medida
em que incide diretamente nas possibilidades de acesso e profissionalização das
mulheres. (GONZALEZ, 2011).
DISTRIBUIÇÃO DAS RESPONSABILIDADES FAMILIARES COMO FATOR
DE DISCRIMINAÇÃO NO EMPREGO
As responsabilidades familiares (cuidar de filhos, filhas, de pessoas dependentes e
realizar diferentes tarefas domésticas) podem constituir uma barreira importante ao
acesso ao mercado de trabalho, restringir opções de emprego e limitar a capacidade de
gerar renda. Elas afetam particularmente as mulheres, já que, na maioria das sociedades,
essas responsabilidades recaem desproporcionadamente sobre elas.
A presença de filhos, associada ao ciclo de vida das trabalhadoras, à sua posição no
grupo familiar (como cônjuge, chefe de família etc.), à necessidade de prover ou
complementar o sustento do lar, são fatores que estão sempre presentes nas decisões das
mulheres de ingressar ou permanecer no mercado de trabalho. (OIT, 2011a)
Em muitas famílias com dupla renda, um dos membros do casal (geralmente o homem)
tende a continuar a ser considerado como o trabalhador “principal”, ou seja, tende a
trabalhar sem limitações domésticas e familiares. O outro membro (geralmente a
mulher) busca oportunidades de trabalho compatíveis com suas responsabilidades
familiares (um emprego em tempo parcial, por conta própria ou no próprio domicílio),
fazendo com que a sua renda tenda a ser mais baixa.
Segundo Valle e Costa (2014, p. 150), a mulher, ao ocupar espaço no mercado de
trabalho, teve que conciliar o tempo do trabalho com suas atividades dentro da família,
impondo a elas uma dupla jornada de trabalho, que marcou e ainda marca a vida das
mulheres, gerando uma relação familiar desigual na distribuição dos afazeres
domésticos.
O estabelecimento de uma divisão do trabalho no interior das famílias que reproduza
estereótipos tradicionais que associam o papel de cuidadora à função “natural” da
mulher acaba por repercutir também no mercado de trabalho, estabelecendo relações de
gênero em prejuízo do trabalho feminino.
Esse prejuízo fica evidente, conforme Valle e Costa (2014, p. 150), quando se constata
que as trajetórias laborais das mulheres são mais descontínuas e com menores opções de
promoção, se comparadas aos homens.
O desempenho das mulheres como assalariadas, em muitos casos, se vê interrompido
pela necessidade de cuidados na criação dos filhos e, dessa forma, se traduz em uma
redução de oportunidades de emprego, de perspectiva de carreira e até mesmo em
prejuízos previdenciários, tal como uma aposentadoria tardia em relação aos homens.
Por exemplo, os empregadores podem ter dúvidas no momento de contratar mulheres
para desempenhar determinadas funções (em regra aquelas que oferecem melhores
perspectivas em termos de carreiras) e também em relação a investir na sua formação
profissional. A dúvida de contratar ou não mulheres se baseia na premissa de que suas
responsabilidades familiares atuais ou futuras gerarão problemas ou custos. Assim, as
mulheres podem ser penalizadas pelas responsabilidades familiares devido à
persistência de um estereótipo que alimenta questões em relação ao seu
profissionalismo no desempenho de tarefas a elas designadas em razão de conflitos
entre suas responsabilidades familiares e condições de trabalho. (VALLE e COSTA,
2014, p. 158-9)
Em relação à cobertura previdenciária, é possível identificar a desigualdade entre
homens e mulheres em relação aos benefícios previdenciários. Considerando-se os
dados de 2008 da Previdência Social, verifica-se que as mulheres se aposentam mais
por idade (61% dos benefícios concedidos, contra 39% dos homens) e menos por tempo
de contribuição (27% dos benefícios concedidos, contra 73% dos homens). Disso se
conclui que a mulher tem maior dificuldade em cumprir sem interrupções o período
obrigatório para aposentadoria por tempo de contribuição e, em contra partida, acabam
se aposentando com idade mais avançada. (VALLE e COSTA, 2014, p. 158-9).
Se nos dias atuais, por um lado, as mulheres compartilham com os homens o tempo de
trabalho remunerado, por outro lado não ocorreu um processo equivalente de mudança
com relação à redistribuição das responsabilidades sobre as tarefas domésticas. Ainda,
pouco se fez por parte do Estado em relação à oferta significativa de serviços públicos
de apoio a estas tarefas, nem se alcançou um grau efetivo de reorganização da vida
social e seus estereótipos.
Pelo contrário, os marcos legais existentes – leis, políticas e serviços – muitas vezes
apresentam deficiências e acabam, direta ou indiretamente, contribuindo pouco ou quase
nada para a construção de um ambiente mais igualitário em relação à matéria.
A REPRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NA LEGISLAÇÃO
DO TRABALHO COMO FORMA DE DISCRIMINAÇÃO
Uma redistribuição mais igualitária das responsabilidades familiares entre homens e
mulheres exige, para além de uma modificação no modo de vida social e dos papéis a
serem desempenhos por eles e elas, o estabelecimento de serviços e políticas públicas
voltadas à satisfação das tarefas familiares, sobretudo, a conciliação efetiva entre o
trabalho produtivo e a vida familiar.
A legislação trabalhista, a previdência social e as políticas de conciliação determinam a
interação entre a vida no trabalho e familiar. Porém, as referências legais que existentes
apresentam, por vezes, algumas deficiências.
[as políticas] tendem a centrar-se em demandas conciliatórias muito específicas, relacionadas à gravidez e
à maternidade, desconsiderando as responsabilidades familiares correspondentes a pais e mães. Em
segundo lugar, as formas de acesso às medidas e benefícios como a licença maternidade estão geralmente
associadas ao vínculo empregatício e, portanto, restritas às assalariadas formais. Uma exclusão
significativa é gerada em razão disso: ficam fora os homens e as mulheres que trabalham na
informalidade, o que, em alguns países, significa a maioria das trabalhadoras que são, além disso, as mais
pobres e as que mais necessitam deste tipo de apoio. Ficam fora também as trabalhadoras cujas
contribuições previdenciárias não estejam em dia. Uma terceira deficiência se deve ao alto
descumprimento das leis existentes devido à evasão e à falta de fiscalização. (OIT, 2009b)
Essas discrepâncias acabam por promover uma crise dos métodos tradicionais de
conciliação, cujo peso recai sobre as trabalhadoras. A sobrecarga de responsabilidades
familiares costuma ser o combustível das discriminações e desvantagens que
experimentam as mulheres no mercado de trabalho. Desvantagens essas que se
manifestam de diversas formas, tais como: a) maiores dificuldades para inserir-se no
mercado de trabalho (o que significa menor taxa de participação e maiores taxas de
desemprego); b) menores oportunidades em função da segmentação ocupacional (leque
de ocupações mais restrito); c) menores rendimentos: resultado da discriminação
salarial e da desvalorização das ocupações nas quais as mulheres se concentram; e d)
maior informalidade, que se manifesta na sobre-representação das mulheres na
economia informal e nos empregos sem proteção social. (OIT, 2009b)
Exemplificando, se a proteção da maternidade, de um lado, representa um grande
avanço legislativo na proteção da trabalhadora, por outro lado, ela segue sendo uma das
causas de discriminação laboral mais importante, afinal, em vez de contribuir para
eliminar o modelo familiar segundo o qual compete à mulher as responsabilidades de
cuidado familiar, acaba por afirmá-lo, podendo trazer para as mulheres diversos reflexos
negativos no âmbito do trabalho conforme antes mencionado. (VALLE e COSTA,
2014, p. 161).
A sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidado que pesa sobre as mulheres acaba por
gerar ainda consequências negativas para as famílias, que acabam por experimentar
maiores dificuldades em propiciar uma atenção adequada às crianças, idosos e doentes.
Os homens são privados de participar ativamente da criação de seus filhos e do cuidado
de seus familiares, fragilizando seus laços afetivos; as crianças são privadas, em sua
vida cotidiana, do contato com papéis masculinos, o que dificulta seu desenvolvimento
integral. (OIT, 2009b).
A omissão política e legislativa sobre o tema também surge como reprodutores dessa
lógica discriminatória. É o que ocorre quando a legislação obriga que as crianças
brasileiras frequentem a escola a partir dos quatro anos de idade, mas as escolas não
oferecem educação integral, proporcionando dificuldades aos pais no cuidado com o
filho no período em que não está na escola. A se reproduzir a diferença de gênero
estabelecida no modelo de família predominante, caberá mais à mulher a obrigação do
cuidado com filho, colocando em segundo plano sua trajetória profissional.
De se mencionar, por fim, que a OIT possui normas internacionais do trabalho que
abordam, específica ou indiretamente, o tema da relação entre a vida laboral e a
familiar. De se mencionar as Convenções da OIT nº 183 (ano 2000), sobre a Proteção
da Maternidade e nº 156 (ano 1981) sobre Trabalhadores e Trabalhadoras com
Responsabilidades Familiares. O Brasil não ratificou nenhuma dessas Convenções, o
que representa uma barreira na construção da igualdade de homens e mulheres, fazendo
com que o debate a cerca das responsabilidades familiares continue sendo um assunto
pertencente à esfera privada das famílias, e não uma política pública. (OIT, 2009b)
O PAPEL DAS CONVENÇÕES COLETIVAS DE TRABALHO
ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO.
NA
O direito efetivo à negociação coletiva e à liberdade sindical e de associação integra a
Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e constitui um elemento central da ação da OIT para a
promoção do trabalho decente.
A negociação coletiva é instrumento fundamental para a promoção da igualdade de
oportunidades de gênero e raça no trabalho. Por meio dela, é possível avançar na
ampliação dos direitos e benefícios previstos em lei e na sua cobertura, assim como
instituir novos direitos. (OIT, 2009)
Segundo Dorneles (2002, p. 15-50), é possível afirmar que a legitimidade de uma
política eficaz de combate à discriminação no local de trabalho está diretamente
relacionada com a participação direta dos trabalhadores envolvidos no processo de
transformação de suas pretensões em direitos.
Nesse contexto, a negociação coletiva de trabalho passa a ocupar papel privilegiado no
combate à discriminação, posto se tratar de instituto jurídico de ampla utilização por
representações de trabalhadores na normatização de condições de trabalho mais dignas
aos empregados.
E quanto à sua utilização na definição de políticas antidiscriminação, afirma Ackerman
(1998, p. 5):
Em geral de forma implícita ou indireta, ainda que em algum caso de modo expresso, a Convenção n. 111
e, especialmente, a Recomendação n. 111 da OIT, abrem quatro grupos de possibilidades para que suas
regras sejam aplicadas ou veiculadas através da negociação coletiva: definição e instrumentação de
políticas; ampliação dos motivos de discriminação; definição de medidas de proteção e assistência que
não se consideram discriminatórias; e diretrizes sobre conteúdos não discriminatórios59 . (tradução livre)
A OIT tem reiterado sistematicamente que a negociação coletiva é um instrumento
crucial para que as organizações de trabalhadores possam desencadear alterações
concretas nas condições de vida e de trabalho e nas perspectivas dos trabalhadores
vulneráveis à discriminação. (BIT, 2007).
Nesse sentido, algumas das condições básicas para a igualdade tem sido asseguradas a
partir dos dispositivos de acordos e convenções coletivas tais como a adoção de
procedimentos que contribuam a tornar efetivo o princípio da remuneração igual para
trabalho de igual valor, a ampliação da igualdade de oportunidades de acesso a postos
de trabalho mais qualificados e melhor remunerados, a eliminação de mecanismos
59
59
Engeneralenfomaimplícitaoindirecta,aunqueenalgúncasodemodoexpreso,el
Convenio111y,especialmente,laRecomendación111delaOIT,abrencuatrogruposde
posibilidadesparaquesusreglasseanaplicadasoimpulsadasporvíadelanegociación
colectiva:definicióneinstrumentacióndepolíticas;ampliacióndemotivosdediscriminación;
definicióndemedidasdeprotecciónyasistenciaquenoseconsiderandiscriminatorias;y
directivasobrecontenidosnodiscriminatorios.
discriminatórios em processos de seleção, a garantia e a ampliação da licença
maternidade e de outros mecanismos de promoção do equilíbrio entre trabalho e família.
A negociação coletiva contribui também para o fortalecimento da legislação trabalhista
e das políticas públicas, na medida em que pode ampliar o seu impacto e garantir nos
acordos e convenções coletivas o princípio da igualdade.
Assim, de se concluir que a concretização do objetivo da igualdade no local de trabalho
para todos depende, em grande parte, de um empenho efetivo e de uma intervenção
sistemática por parte das organizações de empregadores e de trabalhadores, que podem
desempenhar um papel muito importante na promoção da igualdade no local de trabalho
e noutras áreas.
Se é no local de trabalho que a discriminação se estabelece, é nesse local também que
ela deve ser combatida. Afinal, tal como qualquer outra instituição social, organizações
de empregadores e de trabalhadores têm tendência para reproduzir e perpetuar as
práticas discriminatórias que os rodeiam. O reconhecimento da existência dessas
práticas e o combate às mesmas no seio das suas próprias estruturas através da
negociação coletiva é um passo essencial na direção certa. (BIT, 2007, p. 93).
CONCLUSÃO
As convenções coletivas de trabalho representam um elemento estruturante na
conceituação do trabalho decente, representado pelo fundamento do diálogo social
como necessário para a promoção de oportunidades para que homens e mulheres
obtenham um trabalho produtivo, justamente remunerado, exercido em condições de
liberdade, equidade e segurança, realizado sem preconceito e que proporcione uma vida
digna a todas as pessoas que vivem do trabalho e suas famílias.
Se a divisão sexual do trabalho, estruturada a partir de estereótipos de gênero criados
histórica e socialmente, tem proporcionado maiores dificuldades às mulheres que aos
homens, é necessário que Estado e sociedade contribuam para sua eliminação e a
construção de um mercado de trabalho mais justo e mais equitativo, inclusive, na
distribuição das responsabilidades familiares.
As negociações coletivas têm sido um instrumento poderoso para se alcançar avanços
na legislação em matéria de proteção da maternidade e responsabilidades familiares.
Em muitos países, os sindicatos têm negociado diversas medidas nesse sentido e, em
alguns casos, direitos inicialmente garantidos por meio de negociações coletivas foram
posteriormente incorporados a legislações nacionais, como ocorreu no caso da licençapaternidade no Brasil.
Ainda, para além das garantias legais, em muitos casos, as negociações coletivas
permitiram ampliar sua duração ou aumentar os benefícios pecuniários correspondentes.
Alguns benefícios, como por exemplo a garantia de horários mais flexíveis de entrada
ou saída ou licenças curtas remuneradas por motivo de emergências familiares, podem
ser muito benéficas para trabalhadores e trabalhadoras e até mais significativas que um
pequeno aumento salarial.
Efetivamente, muitas vezes os sindicatos têm conseguido garantir avanços em relação à
legislação e acordos sobre temas não abrangidos por elas.
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