A DIDÁTICA NUMA ABORDAGEM FREIREANA Maria da Conceição Bizerra196 Introdução O presente estudo tem por objetivo refletir sobre o ensino da didática, inspirado no pensamento de Paulo Freire, no contexto dos cursos de formação de educadores. Fundamenta-se no entendimento da Didática em seu caráter prático de apoio à concretização do trabalho pedagógico, comprometido com as exigências da sociedade brasileira, fundada em novas relações de trabalho. Nesse sentido, o saber didático não se limita ao conhecimento específico do processo ensino-aprendizagem de uma dada disciplina do currículo e, também, não se identifica com um método geral de ensino. “Esse saber didático, enquanto saber de mediação, trata de princípios, essencialmente metodológicos, do processo pedagógico escolar – ensino entendidos à luz do estreito relacionamento entre conteúdo e forma, no contexto das condições concretas do trabalho didático, o qual possui sua expressão nuclear na sala de aula”. (OLIVEIRA, 1993: 133) A partir desse posicionamento, a Didática, no âmbito da teoria e da práxis pedagógica transformadora, considera o ensino como uma totalidade concreta. Essa compreensão orienta que a Didática deve trabalhar os conteúdos de forma que proporcione: • articulação do ensino à prática social, entendida como ponto de partida e de chegada do trabalho educativo; • problematização, elegendo temas extraídos da realidade, como eixos integrativos para o trabalho pedagógico; • vinculação entre teoria e prática pedagógicas; • encaminhamento do ensino para além dos métodos e técnicas. Confirma-se o saber didático como saber de mediação que deve ser abordado nas dimensões: histórica (natureza, objeto e conteúdo); antropológica (organização do trabalho pedagógico no contexto de sociedade brasileira); ideológica (relações entre fins pedagógicos e sociais do ensino); epistemológica (relação conteúdo e forma, método de ensino e aprendizagem e organização da disciplina estudada). No momento de colocar em prática, na sala de aula, o ensino da Didática numa perspectiva transformadora tomou-se como fonte de inspiração o pensamento de Paulo Freire, especialmente, no que se refere à “educação como prática de liberdade”, aos saberes necessários à prática educativa e aos procedimentos didáticos por ele sugeridos. O pensamento freireano: bases para o ensino da Didática. A organização do trabalho pedagógico nessa direção exige, inicialmente, uma reflexão sobre o sentido de educação como prática de liberdade. “Educação que desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação. A opção, por isso, teria de ser também, 196 Universidade Católica de Pernambuco. 266 entre educação” para a “domesticação”, para a alienação, e uma educação para a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito”. (FREIRE, 1994: 45) Para Freire, a decisão de adotar uma proposta de educação libertadora implica reconhecer o homem como um sujeito com vocação histórica. Nesse sentido, contrapôs-se à “educação bancária”, entendida como o processo que trata o “homem como objeto”, depósito de saberes considerados verdades absolutas. Alertou para que as condições do terceiro mundo não permitem que o homem exerça sua vocação, fazendo-se necessário libertá-lo para que isso acontecesse. O caminho apontado consiste na instauração de uma pedagogia assentada no diálogo, na comunicação, tendo em vista uma nova relação humana preocupada com a população, no sentido de que ela própria crie uma consciência crítica do mundo em que vive. Desse modo, a educação é entendida como o processo de conscientização do homem, possibilitando o seu engajamento na luta política e na transformação da realidade social. “Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece. A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência-mundo.” (FREIRE,1980:26 e 27). Outra reflexão importante, tendo em vista a organização do trabalho pedagógico na área da Didática consiste nos saberes fundamentais à prática educativa transformadora que, segundo FREIRE, (1996) são especificados nos seguintes temas: “Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém”. (FREIRE, 1996:25) “Ensinar não é transferir conhecimento. É preciso insistir: este saber necessário ao professor - que ensinar não é transferir conhecimento – não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica mas também precisa de ser constantemente testemunhado, vivido”. (ib., 52) “Ensinar é uma especificidade humana: como os demais saberes, este demanda do educador um exercício permanente. É a convivência amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se assumirem enquanto sujeitos sócio – histórico – culturais do ato de conhecer, é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia do educando.” (ib., 11) Com o objetivo de “desalienar a população” com vistas a sua conscientização, Freire criou a “pedagogia do diálogo” orientando que a relação educando – educador se desse de forma horizontal. De acordo com essa visão, o processo educativo tem como ponto de partida “as situações vividas” pelo educador na realidade do educando. Nesse processo, a relação “educador-educando” converte-se na relação “educando-educador e educadoreducando” da qual brotam os “temas geradores” ou “palavras geradoras” para serem trabalhadas nos círculos de cultura. Dessa forma, os círculos de cultura ocupavam-se dos temas geradores ou palavras geradoras que emanavam do diálogo sobre as experiências e 267 dificuldades vividas pelo educando, compartilhadas pelo educador. Os “temas geradores” ou as “palavras geradoras” deviam ser aprofundadas na perspectiva da “problematização”, desenvolvendo no educando “uma visão crítica” de sua realidade. Esse processo constitui-se como a base para conscientização que se complementa na ação social e política, na práxis social. Espera-se, assim, uma atuação do educadoreducando em prol da transformação da sociedade, o que implica na libertação do homem das condições de opressão. Contra o que é a educação bancária, Freire orienta uma didática organizada nos seguintes passos: vivência, seleção de temas geradores, problematização, conscientização e ação social e política. É esta metodologia que se pretende desenvolver em sala de aula, tendo como objeto de trabalho o conteúdo da Didática. Evidentemente que esse processo foi recriado considerando a especificidade da referida disciplina e as condições concretas do trabalho docente e discente. O pensam ento freireano rum o à sala de aula: aproxim ação e m ediação. Para assegurar essa direção política, o ensino da Didática está organizado em três momentos intimamente relacionados entre si: - descrição e problematização da prática pedagógica vivida ou observada pelos alunos dos cursos de formação de educadores; - análise crítica da prática pedagógica, buscando a explicação e a compreensão dos problemas da prática; - elaboração de propostas de ensino, tendo por referência as escolas-campo de atuação dos mencionados alunos. Nessa perspectiva, o trabalho pedagógico é orientado para “investigação – intervenção”, procurando articular teoria e prática, no sentido de “teoria não virar blablablá e a prática ativismo.” (FREIRE,1996:24) Para se obter a descrição e a problematização da prática pedagógica, os alunos são organizados em grupo de estudos, envolvendo os que já atuam na docência e aqueles que ainda não são professores. Esses grupos recebem como tarefa inicial socializar as experiências individuais, guiadas para compreensão da realidade educacional em sua dimensão coletiva. A descrição da prática ocorre de acordo com a seguinte orientação: “Reflita sobre a sua prática pedagógica problematizando-a nos seguintes termos: como se dá a relação, professor – aluno, como o professor ensina e os alunos aprendem; como o professor organiza o seu trabalho pedagógico e como se realiza como pessoa.” Paulo Freire, ensina que: “... este método – na medida em que ajuda o homem a aprofundar a consciência de sua problemática e de sua condição de pessoa e, portanto de sujeito – converte-se para ele em caminho de opção.” (FREIRE, 1980:48) Em geral, nos pequenos grupos, os alunos analisam essas questões de forma fragmentada, parcial, acrítica, apresentando relatos permeados por “chavões pedagógicos”. Concomitantemente, eles vão às escolas para tomarem conhecimento de experiências concretas de outros professores, para relacioná-las com as suas práticas, buscando pontos convergentes e divergentes. 268 Os resultados desses estudos e observações são socializadas num grande grupo. Os conteúdos emergentes são organizados em torno de “temáticas geradoras” que passam a orientar a proposta de ensino-aprendizagem. O desafio a ser enfrentado consiste em transformar o ensino numa mediação entre o saber emanado da prática pedagógica vivida e sentida pelos alunos dos cursos de formação de professores com o saber mais elaborado sobre a mesma situação. A problematização vai se consolidando na medida em que os “alunos professores”197 juntamente com o professor da disciplina didática vão percebendo criticamente as questões que afloram a partir da reflexão sobre a prática. “Entendendo-se a prática como uma síntese de múltiplas determinações, torna-se necessário procurar as mediações que possibilitem explicar e compreender esse produto, para negá-la dialeticamente, transformando-a”. (MARTINS, 1989:100). Com o auxílio do estudo da literatura pertinente, procede-se a análise crítica da prática pedagógica. Neste sentido, os alunos começam a pensar criticamente, procurando entender as causas dos problemas da prática na perspectiva de desvelar a realidade. Trata-se de uma instrumentalização para os alunos terem condições de cotejar as práticas pedagógicas por eles descritas com a literatura estudada. O trabalho se desenvolve a partir de diferentes procedimentos didáticos orientadas pela “pedagogia do diálogo”, tendo um objetivo principal a sistematização dos conteúdos estudados. É imperativo destacar a participação dos alunos como sujeitos do processo de sistematização do conhecimento. Verifica-se que eles tentam superar a condição de seres passivos, meros receptores do conhecimento como algo pronto e acabado, resultante de uma relação pedagógica verticalista para a condição de sujeitos ativos, capazes de construírem respostas coletivas para os problemas advindos da prática. No processo de sistematização, o professor da turma tem um papel importante de criar condições para explicitar os aspectos que ficaram obscuros no decorrer dos estudos, mostrando a impossibilidade da disciplina dar conta de todas as dimensões do real. Essa metodologia tem o propósito de ultrapassar o nível da explicação da prática pedagógica em busca de sua compreensão, face às múltiplas determinações sociais. Para tanto, são necessários estudos de aprofundamento teórico sobre o ensino, tendo como foco central a prática social. Convém ressalvar que, nesse momento, os alunos do curso de formação de professores estão construindo e reconstruindo uma nova prática de ensinar. “Só assim podemos falar realmente do saber ensinado, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, apreendido pelos educandos.” (FREIRE, 1996: 29) Tendo-se como orientação a organização do ensino a partir da realidade social, os "alunos-professores" assumem como tarefa a elaboração coletiva de propostas possíveis de serem implantadas nas escolas em que trabalham ou podem trabalhar. Em geral, essa tarefa é realizada em grupos que agregam os “alunos-professores” por série ou por área, e os resultados são socializados em reuniões plenárias. Sem desprezar o programa formal estabelecido pelas escolas, os “alunos-professores” conseguem produzir propostas que tentam vincular os conteúdos programáticos aos interesses dos seus alunos. Fica visível a preocupação de valorizar o saber que o aluno possui decorrente de suas condições de vida e 197 Alunos matriculados nos cursos de formação de professores que já exerceram a docência. 269 que o professor deverá agir no sentido de ressignificar esse saber. Começa-se a definir um movimento que parte da realidade e do saber nela gerado para chegar ao saber sistematizado, negando, dialeticamente, a prática pedagógica descrita no início das aulas. Algumas conclusões As propostas elaboradas caracterizam-se pela exequibilidade, respeitando os limites impostos pela prática pedagógica escolar. O objetivo parece ser atingido no momento em que se instala um processo de mudança, conscientemente assumido, tendo em vista a compreensão que a realidade educacional “não é, mas está sendo”. O papel do professor, não consiste apenas em constatar o que ocorre mas de intervir como sujeito de história. Em todas as propostas aparece a disposição dos “alunos-professores” para escutarem seus alunos, tentando apreender as suas experiências, bem como a sua lógica. “O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.” (FREIRE, 1996:128) A concretização da proposta de ensino, através do processo ação - reflexão – ação, permite retirar alguns elementos básicos para uma prática de ensino transformadora. É visível que para ensinar “ao aluno-professor ou futuro professor” a desenvolver uma proposta de ensino comprometida com os interesses e necessidades práticas dos alunos oriundos dos setores mais desfavorecidos da sociedade não é suficiente apenas falar sobre o ensino crítico. Torna-se necessário vivenciar com eles um novo processo, tendo como ponto de partida e de chegada a própria prática social. Trata-se de testemunhar, com uma prática, aquilo que se espera dos alunos nas suas futuras práticas docentes. Desse modo, o processo de aprendizagem exige a apropriação. “... do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo reiventá-lo ; aquele que é capaz de aplicar o aprendido – apreendido a situações existenciais concretas. Pelo contrário, aquele que é enchido por outros, de conteúdos cuja inteligência não percebe, de conteúdos que contradizem a própria forma de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende.” (FREIRE, 1975: 27 e 28). Sabe-se, entretanto, que a superação da prática pedagógica descrita no primeiro momento das aulas não ocorre de forma radical de um dia para o outro, mas acontece de forma gradativa num processo alimentado pela “convicção de que a mudança é difícil mas é possível.” É a partir deste saber fundamental que pode-se programar ações educativas comprometidas com humanização da sociedade. Nesse sentido, “a mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação, no fundo, o nosso sonho.” (FREIRE, 1996: 88) 270 Referências Bibliográficas: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. CENTRO PAULO FREIRE. Uma Obra sobre Paulo Freire. A Partir da Realidade Cultural no Nordeste Brasileiro. Recife: UFPE / NUPEP, Bagaço, 2000 FREIRE, Paulo. Conscientização. Teoria e Prática da Libertação uma Introdução ao Pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Morais, 1980 ______, Educação como Prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994 ______, Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975 ______, Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 GHIRALDELLI JUNIOR, P. Didática e Teorias Educacionais. Rio de Janeiro: DP& A. 2000 MARTINS, P. L. O. Didática Teórica. Didática Prática para além do confronto. São Paulo: Edições Loyola, 1984 OLIVEIRA, M. R. N. S. A Reconstrução da Didática . 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