O neoliberalismo foi implementado no Brasil tardiamente, assim

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XI Congresso Brasileiro de Sociologia
1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP
Título da Atividade: Grupo de Trabalho - Estado e Sociedade na América Latina
Título do Trabalho: Estado, Conflitos Sociais e Desigualdades Sociais
Autoras: Renata Mena Brasil do Couto e Aline Silveira de Assis
O neoliberalismo foi implementado no Brasil tardiamente, assim como nos
demais países latino-americanos, e foi mundialmente entendido como uma
alternativa à crise da social democracia, não se limitando a medidas econômicas e
gerando conseqüências sociais graves e permanentes.
Com o intuito de orientar esse processo, realizou-se, em 1989, uma reunião
entre os organismos de financiamento internacional de Bretton Woods (FMI, BID,
Bando Mundial), funcionários do governo americano e economistas latinoamericanos, para avaliar as reformas econômicas da América Latina. Essa
reunião ficou conhecida como Consenso de Washington, tendo abarcado
diferentes áreas.
Este atraso na implementação do neoliberalismo fez com que a América
Latina, já entrasse na fase das chamadas medidas corretivas, combinando as já
conhecidas políticas ortodoxas com propostas ditas de "reforma do Estado",
aliadas a programas de alívio para a pobreza.
O
projeto
neoliberal
apareceu,
como
estratégia
hegemônica
de
reestruturação geral do capital face à crise, ao avanço tecnológico-científico, à
reorganização geopolítica e às lutas de classe que se desenvolvem pós-70, se
desdobrando basicamente em três frentes articuladas: a reestruturação produtiva,
a reforma do Estado e o combate ao trabalho (às leis trabalhistas e às lutas
sindicais e da esquerda).
Inicia-se, então, gradualmente, o processo de "ajuste" capitalista no
Brasil e, conseqüentemente, o amadurecimento da idéia de reformar o Estado,
eliminando seus aspectos trabalhistas e sociais, vindos do período Varguista nos
anos 30-60, esvaziando as conquistas sociais contidas na Constituição de 1988.
É incontestável que, a partir dos anos 80, a sociedade brasileira, ao mesmo
tempo que passou por um processo de democratização política, superando o
período ditatorial instaurado em 1964, também experimentou uma profunda crise
econômica, que persiste até hoje.
A discussão acerca desta crise ainda é marcada, fundamentalmente, por
uma análise da estagnação da economia e o agravamento das condições de vida
da população brasileira como conseqüência do modelo econômico implementado
em 64 e/ou como produto da crise econômica internacional.
O discurso que passa a ser utilizado pelas lideranças políticas é o de
retomada do crescimento econômico, da inserção do Brasil na economia
internacional e da necessidade de redefinição do papel do Estado.
As esquerdas não imprimem uma direção política a esse movimento e
acabam por comprometer, de certa forma, seu histórico papel de protagonistas de
um projeto social alternativo. Assim, atribuem ao processo de formação de
alianças políticas, o papel de alternativa principal para o enfrentamento da crise.
O caráter indiferenciado deste projeto de retomada do crescimento
econômico, acaba por sugerir que o enfrentamento da crise depende da formação
de um projeto de natureza “transclassista” já que a recuperação econômica do
país beneficia a todos, indistintamente, razão maior do discurso da colaboração e
do salvacionismo indiferenciado.
Politicamente, esta estratégia tem como conseqüência a formação de uma
vontade política “universal”, que independe da inserção dos sujeitos sociais na
estrutura social, em detrimento de um projeto de classe, de corte anti-capitalista.
O discurso da crise passa então a ser formador de uma cultura política que
procura negar os referenciais teóricos, políticos e ideológicos, que permitiam, no
caso brasileiro, até a segunda metade da década de 80, identificar propostas e
práticas diferenciadas por parte das classes trabalhadoras e capitalistas acerca da
situação econômica e social do país.
Em função deste encaminhamento, os principais movimentos sociais
surgidos no país, nos anos 90, possuem uma suposta natureza policlassista e são
destituídos do caráter de movimento da classe trabalhadora. Como exemplos
temos as campanhas em favor da cidadania, contra fome, pela ética na política,
etc., que são radicalmente diferentes das experiências organizativas dos
trabalhadores, construídas ao longo da década de 80.
Uma outra referência, no campo das práticas emergentes, são as
organizações não-governamentais (ONGs) que, também, vêm fomentando a
cultura das iniciativas autônomas. Estas surgem no cenário político e cultural, ao
lado da também revalorizada filantropia, do privado, do voluntarismo e do
apoliticismo.
Esta crise de diferenciação, se relacionada à cultura política da crise,
contribui na formação de um novo conformismo social, ao tornar genéricos e
universais os interesses de uma classe. Assim, esse discurso de superação
conjunta da crise, neutraliza a organização política dos trabalhadores brasileiros
depois de uma década de lutas reativas e ofensivas contra a ditadura, o
autoritarismo e a concentração do capital, iniciadas no pós-64.
Não podemos deixar de atribuir um caráter inovador a este processo,
levando em conta o fato de que a burguesia, historicamente, não optou pela
construção do consenso e sempre operou suas revoluções pelo alto, excluindo,
econômica e politicamente, as classes subalternas através de sua força coercitiva.
A burguesia, que vinha delegando ao Estado a função política, embora sem
abdicar de estar presente no interior do aparelho de Estado, procurou novas
formas de inserção na sociedade civil, com vistas a recuperar seu atraso políticoideológico. Pressionada pelo avanço da organização autônoma do operariado e
das camadas médias, a burguesia começou, paulatinamente, a assumir a
responsabilidade política, intelectual e moral de organização da relação
Estado/Sociedade Civil, bem como das relações entre capital e trabalho no interior
das unidades produtivas.
Neste período de recuperação da década perdida, percebe-se um aumento
da concentração do poder e da gestão do econômico e uma crescente
fragmentação da gestão social. Setores políticos tenderam a assumir funções na
esfera do mercado, ao passo que, forças sociais passaram a desempenhar
funções políticas.
Revelaram-se novas formas de participação da sociedade civil na esfera
das políticas sociais brasileiras. Observamos uma reconfiguração da relação entre
o Estado e a Sociedade Civil no enfrentamento dessa nova face da questão social,
moldada a partir da redução do Estado nessa esfera em conformidade aos
postulados neoliberais.
Vimos um aumento bastante considerável do chamado "Terceiro Setor",
que
se
constitui
majoritariamente
por
organizações
não-governamentais.
Independentemente de qual seja a proposta dessas ONGs, a maioria delas,
devido a políticas explicitas por parte dos próprios governos, vem assumindo um
papel substitutivo ao Estado, sobretudo naqueles lugares mais pobres e
afastados, de onde o Estado, ou se retirou, ou simplesmente não existia.
Esse caráter de substituição, e não de complementação, é que acaba por
desmascarar essas supostas parcerias entre o Estado e a Sociedade. Substituemse programas nacionais e regionais por iniciativas "locais incapazes de dar uma
cobertura suficiente e cujo impacto é praticamente nenhum quando se trata de
grandes contingentes populacionais em situação de pobreza.
Torna-se então conhecido o fenômeno intitulado "publicização" que, sob o
pretexto de envolver a sociedade no controle social e na gestão de serviços
sociais, desenvolvendo a democracia e a cidadania, implicava a transferência de
questões públicas da responsabilidade estatal para o chamado "terceiro setor", e o
repasse de recursos públicos para o âmbito privado. Uma verdadeira privatização
de serviços sociais e de parte dos fundos públicos.
Esta "publicização" tinha como metodologia à descentralização, a
organização social e a parceria.
Entendemos descentralização como "transferência de decisões para
unidades subnacionais, como a delegação de autoridade a administradores de
nível mais baixo" (cf. Bresser Pereira, 1998: 23).
As organizações sociais seriam instituições centrais para o desempenho de
atividades sociais, sendo entidades públicas, não-estatais. O crescimento destas
entidades, mais o aumento das formas corporativas de associação, levaria ao
fortalecimento do "capital social" (mistificado como alternativo ao "capital
econômico"). Aqui aparece o conceito de "Terceiro Setor", onde criam-se leis e
incentivos para organizações sociais, para filantropia empresarial, para o serviço
voluntário e outras atividades, desenvolvendo-se uma relação de parceria entre
elas e o Estado.
Estas parcerias, mais do que um incentivo à ação cidadã, representam a
desresponsabilização do Estado com relação à questão social e a transferência
dos cuidados desta para o setor privado, seja visando lucros, seja para fins
públicos.
O governo alega que esta "publicização" teria como objetivo aumentar a
esfera pública, melhorar o atendimento à população e desenvolver a democracia e
a cidadania mediante a ampliação da participação no controle social. No entanto,
nós temos o entendimento de que a verdadeira motivação para este processo seja
a diminuição dos custos sociais, a retirada deste do âmbito democrático-estatal,
sua transferência para o âmbito e direito privados, seu controle seguindo os
critérios gerenciais das empresas e a assistência conforme um nível de
solidariedade e responsabilidade sociais.
“O motivo é fundamentalmente político-ideológico: retirar e esvaziar a dimensão de direito
universal do cidadão quanto às políticas sociais (estatais) de qualidade; criar uma cultura
de auto-culpa pelas mazelas que afetam a população, e de auto-ajuda e ajuda mútua para
seu enfrentamento; desonerar o capital de tais responsabilidades, criando, por um lado,
uma imagem de transferência de responsabilidades e, pó outro, a partir da precarização e
focalização (não-universalização) da ação social estatal e do “Terceiro Setor”, uma nova e
abundante demanda lucrativa para o setor industrial.” (MONTANÕ, 2002: )
A transferência de recursos federais para estados e municípios aumentou
cerca de 22% e os municípios que conseguem manter uma boa qualidade dos
serviços sociais básicos vem sendo "invadidos" por populações vizinhas onde isso
não acontece. Isso acaba gerando um reforço nos esquemas tradicionais de poder
de elites locais, como é o caso do coronelismo.
A transferência de parte das responsabilidades do Estado para as
"comunidades" organizadas em ações de parceria com as denominadas
organizações não-governamentais (ONGs), incluindo-se aí as fundações e a
chamada filantropia privada, está diretamente ligada à desregulamentação do
papel do Estado proposta pelo ideário neoliberal. Isso faz ressurgir o discurso de
participação comunitária e o estímulo a iniciativas privadas nas ações sociais.
Esses ajustes provocaram reformas de programas sociais brasileiros que
são ainda incompletas no que diz respeito ao aumento de sua eficiência e
equidade, mas que possuem, pelo menos, três características em comum: a
descentralização, os novos parâmetros de alocação de recursos e a redefinição da
relação público-privado no financiamento e na provisão de bens e serviços sociais.
Segundo a concepção neoliberal, o bem estar social pertence ao âmbito
privado, obstruindo assim a esfera pública e a dimensão ética da vida social pela
recusa das responsabilidades e obrigações sociais do Estado. No Brasil, ao invés
de evoluirmos para o conceito de política social como constitutiva do direito da
cidadania, retrocedemos para uma concepção focalista, emergencial e parcial,
onde a população pobre tem que dar conta de seus próprios problemas.
A privatização das políticas sociais no Brasil e na América Latina tem como
conseqüência uma dualidade no acesso a estes serviços, criando um setor público
para pobres, sem recursos e cada vez mais desfinanciado; e um setor privado
para quem pode pagar, cada vez mais subsidiado com recursos públicos. Esse
processo vem gerando grande "exclusão" hoje no Brasil e na América Latina,
trazendo conseqüências muitas vezes fatais para aqueles que dependem do setor
público para a sua sobrevivência.
As respostas às questões sociais passam a ser auto-responsabilidade dos
próprios sujeitos portadores de necessidade, e da ação filantrópica, "solidáriavoluntária", de organizações e indivíduos. A resposta às necessidades sociais
deixa de ser uma responsabilidade de todos (na contribuição ao financiamento
estatal) e um direito do cidadão, e passa a ser uma opção do voluntário que ajuda
ao próximo, e um não-direito do portador de necessidades.
Apesar de reconhecer o agravamento da pobreza e da miséria no país, o
governo o faz a partir das carências da sociedade, e não pela afirmação de
direitos. O governo retira as políticas sociais da responsabilidade pública e
transfere
para
o
campo
das
iniciativas
emergenciais,
descontínuas
e
alimentadoras de práticas clientelistas.
É importante lembrar que, refletindo um processo histórico de aliança entre
o Estado brasileiro e o capital na reprodução social, a investida do neoliberalismo
na sociedade brasileira não se deparou com fortes resistências ao agredir as
instituições públicas voltadas para a prestação de serviços e políticas sociais, que,
ainda que de forma precária, demarcavam um Estado de Bem-Estar Social.
Desviando-se a atenção para as minimalistas ações estatais e para as
supostas novas respostas do "Terceiro Setor", escondem-se os verdadeiros
fenômenos e esvaziam-se os debates sobre eles: a desregulação da relação
capital/trabalho, os preceitos democráticos, a anulação da perspectiva de
superação da ordem vigente, a precarização do trabalho e do sistema de proteção
social (estatal) ao trabalhador e ao cidadão carente, o peso no trabalhador dos
custos do ajuste estrutural orientado segundo as necessidades do grande capital.
Ainda que o "Terceiro Setor" se caracterize como um fenômeno que
envolve um número significativo de organizações e instituições (organizações nãogovernamentais, sem fins lucrativos, instituições filantrópicas, empresas cidadãs,
entre outras) e sujeitos individuais (voluntários ou não), também envolve o Estado,
tanto no plano legal, quanto na esfera financeira, como contrapartida à retirada
paulatina da responsabilidade estatal no trato da questão social.
Apesar disso, entendemos a importância da mobilização da sociedade
contra a fome e a miséria, porém não podemos ignorar que estas ações são
emergenciais e dão resposta imediatas, sendo assim, não resolvem a médio e
longo prazos as causas da fome e da miséria, consolidando uma relação de
dependência dessa população por essas ações.
Além disso, as ONGs, que numericamente já chegam a casa de 200 mil
organizações na sociedade civil, correspondendo a cerca de 1 milhão de
empregos, são mais eficazes em sua ação simbólica do que em resultados
quantitativos.
Também não podemos esquecer da importância das conquistas sociais que
são garantidas pela intervenção e no âmbito do Estado. Ao apostar apenas e
prioritariamente nas ações dessas organizações da Sociedade Civil, não
avançamos o processo de democratização. Passamos a vivenciar, no lugar da luta
de classes, atividades de ONGs e fundações; no lugar da contradição
capital/trabalho, a parceria entre classes por supostos interesses comuns; e no
lugar da superação no modelo vigente, a reprodução e "humanização" deste.
Para esta análise inicial do conceito de "Terceiro Setor", partimos do
processo de reestruturação do capital, pós-70, orientado segundo os princípios
neoliberais de flexibilização dos mercados nacional e internacional, das relações
de trabalho, da produção, do investimento financeiro, do afastamento do Estado
das suas responsabilidades sociais e da regulação social entre capital e trabalho.
A partir daí, entendemos o debate hegemônico acerca do "Terceiro Setor"
como funcional à reestruturação do capital, ao passo que, colabora na formulação
de respostas às seqüelas da questão social implicando a perda de direitos de
cidadania, a precarização e focalização das políticas sociais e a remercantilização
e refilantropização da questão social, afetando profundamente tanto os setores
mais carentes quanto o conjunto dos trabalhadores.
Podemos afirmar que os principais efeitos produzidos pelas novas práticas
da sociedade civil nos anos 90 no Brasil não refletem nenhum índice de
diminuição da miséria ou da fome propriamente dita. Seus principais efeitos
decorrem da intervenção de suas ações na realidade do país, como “inovação”
político-cultural, contribuindo para uma nova cultura política que ameniza a luta de
classes e estabelece uma suposta vontade universal.
“O núcleo temático desta cultura é a socialização da idéia de que a crise afeta
indistintamente toda a sociedade. Enfim, uma visão socializadora da crise que desqualifica,
do ponto de vista político-econômico, as posições antagônicas das classes, ao mesmo
tempo em que constrói um modo de integração passiva à ordem do capital.” (MOTA;
1995:108)
Com base no que foi exposto, podemos concluir que o "Terceiro Setor"
surge como fenômeno produzido pelos governos neoliberais, orientados para
América latina pelo Consenso de Washington, e a abordagem crítica do conceito e
do fenômeno real que ele mascara, constitui uma ferramenta importante para o
enfrentamento do processo neoliberal de alteração da modalidade de trato à
questão social, assim como no desvelamento dos sujeitos e processos de lutas
locais.
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