O desemprego é uma oportunidade?

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in Soeiro, José; Serra, Nuno; e Cardina, Miguel (Org) (2013), Não Acredite em Tudo o que Pensa. Lisboa:
Editora Tinta-da-China.
O desemprego é uma oportunidade?
Elísio Estanque
A palavra latina tripalium, que está na raiz etimológica de «trabalho», correspondia na era do
Império Romano a um instrumento de tortura e, como sabemos, ao longo da Idade Média foi
negado ao trabalhador, tal como ao escravo e ao servo, qualquer estatuto de dignidade. Trabalhar
foi por isso, durante muitos séculos, encarado como algo execrável e estigmatizante. Era o tempo
em que o «ócio» era apanágio das elites e o trabalho era relegado para escravos, servos ou
indigentes.
A era do «negócio» – do latim nec (não) e otium (ócio) – é portanto recente. Emergiu com a
modernidade e a ascensão da burguesia. Foi nomeadamente com a ajuda do calvinismo e do
protestantismo que se reconheceu, ao trabalho e à actividade económica (ao negócio), um novo
sentido ético, positivo, libertador e até salvífico. Mas, mesmo após a máquina a vapor e a
expulsão dos camponeses (factores decisivos da Revolução Industrial), a contradição manteve-se:
o homo faber é aquele que se realiza no trabalho e pelo trabalho, manipulando a técnica – um
prolongamento do homo sapiens. Seja como for, o trabalho assalariado assumiu-se, desde o
século
XIX,
como o principal meio de ligação entre o indivíduo e a sociedade, processo que tem
na sua origem a emergência do capitalismo moderno.
O problema do desemprego é, atualmente, o maior problema do nosso futuro coletivo, em
especial das gerações mais jovens e mais bem apetrechadas de recursos e competências. Nessa
medida, ao apontar o desemprego como oportunidade, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho1
1
As afirmaçoes de Passos Coelho foram: «Despedir-se ou ser despedido não tem de ser um estigma, tem de
representar também uma oportunidade para mudar de vida, tem de representar uma livre escolha também, uma
mobilidade da própria sociedade»; e tiveram lugar no ato de tomada de posse do Conselho para o Empreendedorismo
e a Inovação, no Centro Cultural de Belem em Lisboa, no dia 11 de maio de 2012.
1
revelou, por um lado, a sua incompreensão sobre o significado do emprego e do trabalho
assalariado na coesão da sociedade; e mostrou, por outro lado, a sua insensibilidade social,
desprezando as dificuldades e o sofrimento daqueles que, durante anos, procuram emprego sem o
conseguir e são, ainda por cima, objeto de segregação pelos setores incluídos da sociedade.
Acresce que esse «apelo» é sobretudo revelador do pano de fundo ideológico em que se inscreve
o pensamento do primeiro-ministro e do seu governo. Trata-se de uma linha de pensamento que
pode desdobrar-se em duas dimensões: uma de origem mais ampla e abstrata, que se prende com
uma certa visão da economia e do funcionamento do mercado; e outra de âmbito doméstico, que
se prende com as particularidades históricas e culturais – umas mais recentes, outras mais antigas
– do nosso país e da própria geração de Passos Coelho, produto de uma certa trajetória e das
condições em que cresceu, do ponto de vista político e pessoal.
O trabalho-mercadoria
Os conceitos de «trabalho» ou de «emprego» evoluíram ao longo dos tempos. E o modo como
hoje se encara o trabalho assalariado – e, portanto, o desemprego – é revelador da perspetiva que
se possuiu sobre o ser humano que trabalha para outrem e sobre a função do emprego no conjunto
da sociedade. A influência da ética protestante e do calvinismo na economia contribuíram para
que o «trabalho» se tornasse merecedor de algum respeito (estatuto), salientando a dimensão ética
e de prazer que se lhe associam. Contudo, a partir de finais do século
XVIII,
com a Revolução
Industrial e a consolidação do capitalismo moderno, reforçou-se o seu papel enquanto atividade e
energia transformadora, justificando a teoria do valor-trabalho que mostrou como, na sociedade
capitalista, a força de trabalho constitui uma mercadoria.
Porém, não foi apenas o trabalho assalariado nem a economia de mercado que emergiram. Com
elas, surgiu também a classe trabalhadora, que se afirmou como protagonista decisiva das grandes
transformações sociais no mundo ocidental. De facto, só quem não conheça a história social e
ignore o papel do movimento operário nas conquistas democráticas do Ocidente e na edificação
do Estado de direito pode desconhecer o papel do trabalho assalariado na coesão e no equilíbrio
das sociedades democráticas. Por isso mesmo, a relação capital-trabalho constituiu o centro do
conflito estrutural e da luta de classes, sem os quais a história das sociedades industriais teria sido
outra. É ainda por essa razão que a noção de trabalho assalariado permaneceu até hoje tão
controversa. Ora é sinónimo de oportunidade e de reconhecimento, ora de um mundo opressivo e
2
alienante, como o retratado em filmes célebres como Metropolis (Fritz Lang, 1925) ou Tempos
Modernos (Charlie Chaplin, 1936). Na verdade, foi a confluência entre o progresso técnico, o
mercado livre e o trabalho assalariado que estimulou, num mesmo passo, as maiores conquistas
civilizacionais e as formas mais desumanas de dominação e exploração. E se no século
XX
se
assistiu (sobretudo na Europa ocidental) ao triunfo de uma sociedade de bem-estar, com
crescimento económico, oportunidades e mobilidade social – isto é, com importantes direitos
reconhecidos aos trabalhadores – foi porque a profissão e o emprego se tornaram fator de
realização e de progresso, assegurados pelo Estado providência e pelo direito do trabalho (um
instrumento fundamental de libertação dos trabalhadores e uma das suas principais conquistas ao
longo do século XX).
Mesmo reconhecendo que esse modelo não poderia perpetuar-se, e que a opção keynesiana de
uma economia de «pleno emprego» teria sempre de sofrer «ajustamentos», o que importa é
recordar que, por um lado, o progresso e o bem-estar das classes trabalhadoras se ofereceram
como resposta emancipatória, primeiro, perante a barbárie do capitalismo selvagem do século XIX
e, depois, perante os conflitos bélicos e as experiências totalitárias do século
XX.
Se pensarmos
que a mudança social no Ocidente assenta na relação tensa entre mercado, Estado e comunidade e
– sobretudo desde o século XIX – na relação capital-trabalho, então facilmente se conclui que só o
Estado pode assegurar o equilíbrio entre democracia e capitalismo.
Porém, a experiência europeia da segunda metade do século
XX
terá de ser entendida à luz do
clima de guerra fria e do modelo de «socialismo» soviético, que se apresentava como uma real
ameaça junto dos Estados ocidentais e como um modelo concorrente com a social-democracia
junto dos trabalhadores e seus sindicatos. Como refere Boaventura de Sousa Santos, «se, por um
lado, o Estado garante a consolidação do sistema capitalista, por outro lado, obriga os principais
atores do sistema a alterarem o seu cálculo estratégico: os empresários são levados a trocar o
curto prazo pelo médio prazo e os trabalhadores são levados a trocar um futuro radioso e incerto
por um presente e um futuro próximo com alguma dignidade»2.
Daí que, olhando para as tendências mais recentes da economia na Europa e no mundo, se assista
– mesmo muito antes da atual crise financeira – a uma pressão crescente sobre os direitos laborais
e, consequentemente, sobre o Estado social. A implosão do campo soviético e a emergência dos
2
Santos, Boaventura de Sousa (2012), «O Estado social, Estado providência e de bem-estar», jornal Diário de
Notícias, 29/12/2012.
3
EUA como a economia liderante no mundo, associado à revolução tecnológica e comunicacional,
abriram um novo ciclo de competitividade e empurraram o mundo para a era da globalização
neoliberal. Pode dizer-se que, nas últimas três décadas, o modelo laboral foi evoluindo de um
fordismo fundado no compromisso e no diálogo entre sindicatos e empresários para um modelo
toyotista, marcado pela profunda flexibilização da organização empresarial, com a crescente
multiplicação de vínculos e fórmulas de assalariamento cada vez mais instáveis, precárias e
individualizadas3.
Por seu turno, a abertura das fronteiras ao comércio mundial – com o apoio decisivo dos grandes
grupos da alta finança, das oligarquias ligadas às maiores redes bancárias apoiadas em offshores e
nas economias de casino em diversos pontos do globo – estimulou as novas elites económicas a
optarem por formas mais expeditas de multiplicar a acumulação de riqueza, deslocalizando a
indústria e estimulando a entrada massiva, no Ocidente, de produtos asiáticos a baixo custo4.
Foi neste contexto que, a coberto de um discurso que exaltava o papel do mercado, o
individualismo competitivo, as tecnologias e redes informáticas, cresceu a ilusão da «aldeia
global» e se fortaleceu o pano de fundo ideológico que permitiu desferir, golpe após golpe, os
maiores ataques ao campo laboral e ao Estado social.
O trabalho assalariado perdeu estabilidade, centralidade e viu-se despojado de muitos dos direitos
a ele associados. Porém, à medida que tal tendência se acentuou, foi-se percebendo que não era
tanto «o trabalho» per se que perdia importância. Havia, sim, uma necessidade sistémica de
estimular a competitividade com base na redução dos custos salariais, ou seja, uma resposta do
capitalismo global, que procurava aperfeiçoar o seu metabolismo no sentido de assegurar novas
atividades lucrativas, baseadas na especulação, à custa da desvalorização da economia produtiva,
da destruição generalizada dos direitos laborais e do regresso a novas formas de servilismo e de
escravatura dos trabalhadores.
Neste quadro, como referiu Tony Judt, «o desemprego em massa – dantes encarado como uma
patologia das economias mal geridas – começa a parecer uma característica endémica das
sociedades avançadas. Podemos no máximo ter esperança no subemprego – em que se trabalha a
3
Ao mesmo tempo que a mobilidade do capital se foi ampliando para a escala global e os investimentos produtivos
foram sendo substituídos pela economia financeira.
4
Enquanto o apetite consumista das classes médias parecia infindável e o acesso ao crédito permitia satisfazer a
voracidade dos especuladores.
4
tempo parcial, aceita-se ocupações abaixo das qualificações, ou então trabalho não qualificado do
género tradicionalmente atribuído a imigrantes e jovens»5. Na verdade a desvalorização do
trabalho e o aumento do desemprego evidenciam hoje o triunfo do mercantilismo sobre a
democracia, ou, se quisermos, da barbárie sobre a civilização.
Vale pois a pena recordar o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da
Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948: «Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e em direitos.» Este princípio inscreve-se na batalha promovida pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) em torno de reformas emancipatórias e pelo
reconhecimento do «trabalho digno» e constitui um lema amplamente celebrado pelo
«capitalismo ético» que permitiu à Europa ocidental, no pós-guerra, viver os seus 30 anos
gloriosos, de progresso, de crescimento e de desenvolvimento. Como foi, ao mesmo tempo, o
resultado de um compromisso histórico entre o trabalho e o capital, que era suposto
consubstanciar a Declaração de Filadélfia (sobre os fins e objetivos da OIT), segundo a qual «o
trabalho não é uma mercadoria».
Mas, recorde-se, este quadro de compromissos só foi possível enquanto os mecanismos de
regulação institucionais não se vergaram às forças do mercado. Com esta espiral socialmente
regressiva que se vive na Europa, e que tem na sua génese uma conceção de trabalho assalariado
que voltou a considerá-lo como um mero número ou um indicador abstrato, representado num
gráfico em folha de Excel, regressa de novo um conceito de trabalho como simples instrumento
para servir os objetivos de uma economia desumanizada e submetida à ditadura dos mercados.
O processo histórico e o 25 de Abril
Portugal é o terceiro país da UE onde se trabalha mais horas por ano e também um dos países
europeus onde os custos do trabalho são mais baixos. Sendo embora a produtividade dos
trabalhadores portugueses muito inferior à média europeia, a descoincidência entre os índices de
produtividade do nosso país por comparação com a vizinha Espanha ou com a Alemanha, por
exemplo, é bem menor do que as diferenças de custos salariais6. As estatísticas de desemprego,
5
Judt, Tony (2010), Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos. Lisboa: Ediçoes 70, p. 169.
Para além disso, no sector industrial, a produtividade média dos portugueses equivale a de cerca de 70 por cento da
Espanha e 72,6 por cento da Alemanha, enquanto o custo/hora do trabalho assalariado é de apenas cerca de 47 por
cento da Espanha e 30 por cento da Alemanha (Cf. Rosa, Eugénio, Custos do Trabalho e Produtividade em Portugal
e nos Países da UE. Working paper, 18 de março de 2012). Paralelamente, o peso das mulheres no mercado de
6
5
por seu turno, apresentam-nos ao longo dos últimos anos, a cada trimestre, um quadro cada vez
mais negativo, ao ponto de nos colocar neste momento nos 17,6 por cento de desemprego (dados
de janeiro de 2013) e nos 40 por cento de desemprego jovem7. Isto além de indicadores como as
desigualdades salariais, o abandono escolar precoce ou a percentagem da população em risco de
pobreza, entre outros, que comprovam a situação estruturalmente débil da nossa economia e os
níveis de atraso em que se encontra o país no seu conjunto (sem esquecer, no entanto, o enorme
progresso que foi conseguido em quatro décadas que levamos de democracia).
Pode mesmo dizer-se que as conquistas mais importantes do país são uma «herança do 25 de
Abril» e resultaram, em larga medida, do projeto de democratização e de construção do nosso
Estado providência. A revolução de 1974 tinha-as no horizonte como lemas incontornáveis a
perseguir e foi por elas que muitas lutas sociais se desencadearam nesse período. A educação, a
saúde, a ciência, a cultura, as infraestruturas em geral são áreas cujos indicadores comprovam,
todos eles, o enorme avanço que ocorreu em Portugal ao longo deste período e que lhe emprestou
uma imagem de modernidade, em absoluto contraste com o país atrasado e praticamente
analfabeto que o salazarismo e o Estado Novo nos legaram após cerca de meio século de
ditadura. É fundamental lembrá-lo porque o atual discurso dominante tende a confundir o
combate ao «despesismo» com as mais importantes conquistas democráticas e com o papel
decisivo do Estado social nessas conquistas.
Ao longo de oito séculos de história, Portugal foi dirigido por elites poderosas, incluindo uma
aristocracia e um clero que obedeceram mais fielmente aos interesses alheios do que aos da
população portuguesa. A Igreja católica, quase sempre em íntimo conúbio com esses poderes,
contribuiu para legitimar um sistema autoritário e conservador (como o de Salazar) que nos
trabalho é dos mais elevados da Europa, apesar de a discriminação salarial e de oportunidades em relação ao sexo
feminino ser particularmente acentuada em Portugal, sendo o salário das mulheres 21 por cento inferior ao dos
homens, e no caso dos licenciados 30 por cento inferior (in Casaca, Sara Falcão (org.) (2012), Mudanças Laborais e
Relações de Género: Novos vetores de (des)igualdade. Lisboa/Coimbra: Almedina.
7
De acordo com dados da OCDE, de Julho de 2011, Portugal encontrava-se nessa altura em sexto lugar entre os 34
países que integram a organização, com uma taxa de desemprego de 12,2 por cento. Um ano depois, Portugal saltou
para o quarto lugar da lista, ficando atrás da Espanha, da Grécia e da Irlanda. Na União Europeia, a taxa de
desemprego passou de 9,3 para 10,2 por cento no terceiro trimestre de 2012, enquanto na Zona Euro a evolução foi
mais negativa, com a taxa de desemprego a aumentar de 9,7 para 11 por cento. No terceiro trimestre de 2012 a taxa
de desemprego jovem (entre os 15 e os 24 anos) atingiu um novo recorde, de 39 por cento. Segundo o INE, o
universo de jovens desempregados nesta faixa etária passou de 138 mil para 175 mil entre o primeiro e o terceiro
trimestre do ano de 2012. Em janeiro de 2013 a taxa de desemprego em Portugal atingiu um novo recorde, chegando
ao 17,6 por cento (dados do Eurostat, divulgados no dia 01/03/2013).
6
amarrou ao passado e a uma cultura de servilismo, de resignação e de reverência perante os ricos
e poderosos. De facto, as estruturas sociais portuguesas criaram ao longo dos séculos
poderosíssimas barreiras de classe, dotadas de uma impressionante capacidade de resiliência e
que, apesar da abertura e dos progressos que atrás referi, continuam a perpetuar-se e são hoje
veiculadas precisamente pelo discurso dominante que finge que elas não existem.
É por isso importante olhar a história para perceber que um país, uma nação, um povo é muito
mais do que um amontoado de indivíduos, como parece crer o grupo hoje instalado no poder em
Portugal. Há um legado histórico fundamental que vem do passado e que se inscreve no «código
genético» da cultura de uma sociedade.
Conclusão
A formulação veiculada pelo atual Governo – «o desemprego é uma oportunidade!» –, para além
de exprimir a ideia distorcida de uma imaginária «escolha racional», segundo a qual o destino e
as condições vida de cada um dependem apenas da vontade individual, reflete também uma visão
imediatista e a-histórica da realidade (que é, aliás, um dos ingredientes mais arreigados da
perspetiva neoliberal, com as suas conceções próprias acerca do trabalho, da sociedade e do
Estado). Assim, nem a história, a cultura ou as estruturas socioeconómicas fazem parte desse
clichê, porque tudo dependeria da vontade de cada um: «Sejam empreendedores! Não sejam
piegas!» É como se a sociedade não existisse, mas apenas um aglomerado de indivíduos, em que
uns merecem e outros não merecem ter uma condição digna.
Ora, a mentalidade veiculada por Passos Coelho revela uma perspetiva segundo a qual a
sociedade se divide entre dois tipos de gente: uns que são criativos, diligentes, disciplinados e
portanto «produtivos»; e outros que são por natureza indolentes, incapazes e apáticos, ou que se
escudam num coletivismo defensivo e ressentido contra os empreendedores bem-sucedidos. Uma
perspetiva que radica, portanto, numa visão «ideológica», no sentido em que é uma distorção da
realidade, muito conveniente, aliás, uma vez que se destina a justificar os interesses do poder
económico e seus servidores8.
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Esta visão dicotómica foi bem sintetizada por Pacheco Pereira, numa formulação que vale a pena recordar: «Na luta
de classes entre os ‘descomplexados competitivos’ e os ‘preguiçosos autocentrados’, a ordem dos pares é
interessante, quer na parte social, quer na do psicologismo vulgar. Os ‘preguiçosos’ são primeiro preguiçosos e só
depois são ‘autocentrados’, e os ‘competitivos’ são primeiro ‘descomplexados’ e é por isso que são ‘competitivos’.
Os pares têm, por isso, uma ordem invertida: nos ‘preguiçosos’, avulta a condição social, nos ‘descomplexados’, a
7
Para desmontar esta narrativa, importa lembrar os ensinamentos da psicologia social, segundo os
quais as ideias ou visões de cada indivíduo têm sempre origens mais profundas, assentes em
mapas cognitivos ou «representações sociais», construídos sob a influência marcante do meio
sociocultural em que nascemos e daqueles em que fomos socializados ao longo da vida. O
pensamento e o próprio discurso não são criação exclusiva dos seus emissores. Este «guião»
transporta uma visão que concebe o trabalho e a relação salarial como objeto de regulação
civilista (fazendo tábua rasa do direito do trabalho), que trata como partes iguais aquilo que é
diferente e «esquece» o princípio da assimetria de poder que subjaz a toda a prestação de trabalho
assalariado em economias de mercado.
Na verdade, é bem clara a estratégia do atual Governo, cujo desígnio parece ser a punição dos
portugueses e o seu empobrecimento generalizado, como se essa fosse de facto a condição
necessária e suficiente, uma espécie de password de acesso ao paraíso da competitividade. A
visão da economia pretensamente neutra e «pura» tornou-se sinónimo de contabilidade e
disciplina orçamental, enquanto as pessoas e o próprio trabalho são empurrados, no plano dos
direitos, para padrões idênticos aos do século
XVIII.
Se não é vingança intencional, é
objetivamente uma punição pelos «excessos» de há quatro décadas e pelos «abusos» e
«privilégios» do Estado social. Por outras palavras, uma versão institucional do famoso dito
popular «vai trabalhar, malandro!».
psicologia domina. (…) Este dualismo revela aquilo que os sociólogos chamam as background assumptions do seu
autor. Os que estão presos na sua condição social, deixam soçobrar a sua psicologia no egoísmo; os dinâmicos
psicologistas ultrapassam a sua condição social pelo êxito no mercado.» (José Pacheco Pereira, Público, 10/02/2012)
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