Cinema O mundo das imagens Lui z Carlo s M el lo E m 1980, iniciei com a Dra. Nise da Silveira a realização de quinze documentários que sintetizam as principais pesquisas realizadas por ela e seus colaboradores. Abordando histórias de vida dos frequentadores dos ateliers de pintura e modelagem e temas de interesse psicológico, os documentários possibilitam uma maior divulgação desses conhecimentos científicos, não disponíveis nos currículos acadêmicos. Esse conjunto de documentários deu origem ao curso O Mundo das Imagens que reúne mais de 1.500 imagens, a maioria pertencente ao acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. Na realização desses documentários, participaram grandes fotógrafos, importantes artistas brasileiros, nas narrações e na interpretação de personagens; sua realização envolveu toda equipe do Museu de Imagens do Inconsciente em diversas etapas, entre as quais destaco a montagem realizada por Eurípedes Júnior. Começou a trabalhar como colaborador de Nise da Silveira em 1974. Desde essa época vem desenvolvendo, organizando e divulgando o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente e as pesquisas ali realizadas. Como diretor e curador organizou diversas exposições no Brasil e no exterior. Dirigiu quinze documentários audiovisuais que sintetizam algumas das principais pesquisas realizadas no museu. 273 Luiz Carlos Mello Este trabalho vem sendo, ao longo dos anos, apresentado em universidades e instituições culturais no Brasil. Pelo caráter universal dos temas abordados, está aberto a estudantes e profissionais de diversas áreas do conhecimento: Psicologia, Psiquiatria, Arte, História, Educação, Antropologia, e a todos os interessados no estudo da alma humana. Estes documentários permitem um mergulho nas camadas mais profundas da psiquê, onde se encontram emoções que se tornam visíveis através das imagens. Estudando os subterrâneos do ser humano, Nise da Silveira transformou sua visão da Psiquiatria: “Foi observando-os [os pintores do atelier do museu] e às imagens que configuravam, que aprendi a respeitá-los como pessoas, e desaprendi muito do que havia aprendido na Psiquiatria tradicional. Minha escola foram esses ateliers.” As pesquisas do museu demonstram a permanência viva da afetividade nos chamados esquizofrênicos, contrariando um dos chavões da Psiquiatria que frisa o embotamento afetivo com o avanço da doença. No documentário Isaac: Paixão e Morte de um Homem, a série de imagens apresentada permite o acompanhamento da paixão de um homem, durante 36 anos, até o exato momento de sua morte. O seu conflito girava em torno da traição da esposa, que o levou a internação no hospital psiquiátrico. Permaneceu aí por 16 anos, quando passou a frequentar a Seção de Terapêutica Ocupacional. No atelier de pintura, ambiente favorável e pleno de afeto, pôde retratar mais de 1.000 imagens da mulher amada (Fig. 1). Certa manhã, ele iniciou mais um retrato, pintura que ficou inacabada: Isaac morreu com o pincel na mão, vítima de um infarto do miocárdio. Segundo Nise da Silveira, essa pintura “é a volta da imagem da mulher ainda e sempre, configurada na intensidade da última visão. E a face contraída da mulher exprime a grande dor que Isaac estava decerto sentindo naquele exato e último momento” (Fig. 2 ). Como a Medicina, essa ciência conservadora e impermeável, pode chamar um indivíduo assim de embotado afetivamente? 274 O mundo das imagens Figura 1. Isaac Liberato – óleo sobre tela – 1954. Figura 2. Isaac Liberato – óleo sobre papel – 1966. 275 Luiz Carlos Mello Um dos primeiros desafios de Nise da Silveira para a compreensão dos símbolos que surgiam espontaneamente no atelier de pintura foram as formas circulares. Segundo a Psiquiatria dominante, a cisão das diferentes funções psíquicas é uma das características mais importantes da esquizofrenia. Como indivíduos assim rotulados iriam configurar o símbolo da unidade? A analogia era extraordinariamente próxima de mandalas em textos referentes às religiões orientais (Fig. 3). Para esclarecer essas dúvidas teóricas, ela escreveu uma carta ao psiquiatra suíço Carl Gustav Jung acompanhada de fotografias. Perguntava se aquelas imagens eram mandalas e o motivo de seu aparecimento em grande quantidade na pintura dos frequentadores do atelier. A resposta imediata confirmava sua indagação. Essas imagens são expressão das forças autocurativas da psiquê. Este contato abriu as portas da Psicologia junguiana na América Latina. C. G. Jung estudava a psiquê de uma cultura altamente desenvolvida e Nise da Silveira, de pessoas de Terceiro Mundo internadas em hospital público. As imagens que surgiam lá eram as mesmas que apareciam aqui. Esta semelhança fascinou Jung que a convidou a frequentar o Instituto Jung, em Zurique, e participar, com uma exposição, no II Congresso Mundial de Psiquiatria, em 1957. Figura 3. Carlos Pertuis – Óleo sobre papel – Década de 1940. 276 O mundo das imagens Para este tema, foi feito o documentário Dissociação, Ordenação: Mandala que também faz amplificações sobre este símbolo na cultura do homem: na Arquitetura com os planejamentos de cidades, na História das religiões, da Arte etc. Para definir as dilacerantes vivências do esquizofrênico, Nise da Silveira escolheu a expressão criada pelo escritor e teatrólogo Antonin Artaud, extraída de um comentário sobre uma pintura do surrealista Victor Brauner: “O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos.” Artaud conhecia por experiência própria essas vivências: descarrilamentos da direção lógica do pensar, desmembramentos e metamorfoses do corpo, perda dos limites da própria personalidade, estreitamentos angustiantes ou ampliações espantosas do espaço, caos, vazio e muitas outras condições que a pintura dos frequentadores do atelier de pintura também revelavam. Nise nos diz: “Creio que, antes de Artaud, nunca alguém conseguiu, por meio da palavra, exprimir com tanta força essas dilacerantes vivências. Pela imagem, sim, que é a direta forma de expressão dos processos inconscientes profundos, muitos o fizeram e fazem todos os dias, usando lápis e pincéis. Pela palavra não. Pois a linguagem verbal é por excelência o instrumento do pensamento lógico, das elaborações do raciocínio. E essas experiências, às quais Artaud dá forma por meio de palavras, passam-se a mil léguas da esfera racional.” A luta de Nise da Silveira contra o eletrochoque, que perdurou por toda a sua vida, foi o principal tratamento empregado no escritor que dizia com a veemência que o caracteriza: “O eletrochoque me desespera, apaga a minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca do seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar.” Esta expressão – Os Inumeráveis Estados do Ser – serviu de título para um novo documentário onde Nise revela sua indignação contra a Psiquiatria asilar e seus tratamentos violentos. Narrado pelo ator Rúbens Corrêa, que já 277 Luiz Carlos Mello havia aceitado, anos antes, o desafio de Nise da Silveira para criar e encenar a inesquecível peça de teatro “Artaud!”. Mas essas vivências também trazem à luz o lado luminoso da psiquê e as mais profundas experiências espirituais. Foi o que aconteceu a Carlos Pertuis. Nove anos após ter sido internado, começou a frequentar o atelier de pintura e intitulou um de seus primeiros trabalhos O planetário de Deus (Fig. 4). A imagem é uma espantosa mandala macrocósmica com uma flor de ouro no centro, símbolo do Sol e da divindade. Antes de sua internação, teve uma experiência extraordinária, quando raios de Sol incidindo sobre o pequeno espelho de seu quarto despertou nele uma visão cósmica que ele identificou como “o planetário de Deus”. No último período de sua vida, seus trabalhos giraram em torno do deus solar Mithra. Muitas de suas pinturas eram visualizações dos relatos das experiências místicas de adeptos de Mithra, ele, um humilde sapateiro que jamais poderia ter tido conhecimento desses assuntos. Uma delas diz: “– Eu sou uma estrela vagando contigo e brilhando na profundeza”(Fig. 5). Essas imagens fazem parte Figura 4. Carlos Pertuis – Óleo sobre papel – Década de 1940. 278 O mundo das imagens Figura 5. Carlos Pertuis – Lápis cera sobre papel – 1975. do documentário Arqueologia da Psiquê; trata-se de um estudo comparado entre imagens espontâneas e atuais, produzidas nos ateliers de pintura e modelagem, e imagens que constituem achados arqueológicos em diferentes épocas e diferentes regiões do mundo, bem como imagens históricas nas religiões, na Arte e na Alquimia. A emergência em nossos dias de conteúdos e símbolos que fazem parte da História humana, em diferentes épocas e locais, comprova a historicidade e a atemporalidade da psiquê. Cito apenas alguns exemplos de imagens que compõem um trabalho desenvolvido durante 15 anos movido pela paixão que permitem compreender, mesmo que, por pequenas frestas, os intrincados labirintos da psiquê que habitam o íntimo de todos nós. 279