Para Mudar o Futuro da Cidade

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Para Mudar o Futuro da Cidade
Carlos Fortuna
C
imento e mais cimento. No instante que segue a ter sido declarada terminada, talvez mesmo perfeita, a
cidade fica entregue à devastação e à usura. Cada momento, cada acto, cada história, cada vontade
acrescenta, altera, recompõe, imagina, usa e desusa a cidade. O que acontece então à cidade original
quando entregue às mãos sucessivas dos seus novos construtores? Exaure-se. “Er lasst sich nicht lesen!” Não se
deixa ler! Torna-se palimpsesto. Enganosa, parece ser feita só de superfícies. De tantos tempos sobrepostos, só se
lhe imagina o seu futuro. O seu presente torna-se invisível e o seu futuro impuro, contaminado pelo acumular de
múltiplos passados. Não é real, mas só imaginada… desenhada pela gramática fantasiosa dos Marco Polos de agora
que, perante o príncipe, a narram com coloridos arremessos de espessos projectos e finas fantasias.
I
ndómitos, continuamos a construir o futuro desta cidade. Não o conhecemos, mas gostamos dele. Em tempos
de crise, sabemos, isso sim, das incertezas da cidade de amanhã. Como o “Anjo da História”, viajamos de
costas para a modernidade. Declaramo-nos horrorizados e extenuados pelo que vemos ir ficando para trás.
Vertiginosamente. Da futuridade da cidade, conhecemos, a fundo, apenas o caos e a incúria que a antecedem.
Queremos fazer melhor. Queremos alcançar o caminho do futuro da cidade. Não o conhecemos com exatidão –
não se deixa ler – apenas o queremos mudar.
M
udar! Como podemos mudar o futuro da cidade? Escavando o seu passado! Buscando as dobras do
tempo e misturando-as com os espaços da urbanidade vivida. O tempo e o espaço da cidade são
relações tensas em contínua evolução. As dobras do tempo-espaço são a possibilidade da crítica à
noção de fronteira como entidade fixa que separa e à visão de espaço como inerte vazio a preencher.
As dobras do tempo empurram a nossa escavação para o seio do fluxo e do devir contínuo da cidade. Impelem-nos
para a inabalável revelação das deformações dos objectos e dos limites das configurações sociais permanentes.
E
m sucessivas escavações e por meio de exaltantes imagens a cidade vai sendo revelada. E, com elas, o
futuro que ambicionamos mudar. A cidade-fóssil que é a cidade dos eternos arranjos sociopolíticos e
espaciais, tornados indeléveis marcas de superfície. A cidade-fetiche, ou a desmascaração da promessa de
um progresso imparável. A cidade-desejo que é o texto da colisão das várias cidades e das várias
sensibilidades dentro da cidade. A cidade-ruína, enfim, esse híbrido da estética urbana que reafirma a
transitoriedade e a finitude da dobra entre a lembrança e o esquecimento que invadem a cidade e o seu futuro.
Que havemos de resgatar para a nossa construção do futuro? Que havemos de esquecer? Uma Carta
Constitucional de Cidade inerte? Uma Capital Nacional de Cultura sem vestígios? Um Sousa Bastos esventrado?
N
uma cidade, quantas cidades há? Todas as que a nossa urbanidade distópica for capaz de enunciar. A
tirania e a liberdade, como enunciara Dante, são os seus limites. Mais prosaicamente, dentro da cidade e
da urbanidade futurante que estamos a construir cabem todas as cidades que confirmam o “espectáculo
ao mesmo tempo repugnante e maravilhoso”. Uma cidade “alta” e uma cidade “baixa”? Talvez! E outros
mil fragmentos, realidades vividas, signos, mitos e fantasias dos passados inegociados? Não sabemos ainda! A
cidade que estamos a construir é um mundo de comoções e de estímulos. O seu futuro comanda o seu passado.
Havemos de reescrevê-los a todos.
T
udo o que une, separa? Como a ponte e a porta? Também o cimento? As cidades não são apenas um
fenómeno físico. São também lugares de expressividade e tensão humanas. O futuro da cidade que
queremos mudar está nos espaços do meio. Naqueles que unem e ligam. Está entre os edifícios… nas ruas,
nos largos e nas praças. Ali se mostra a teatralidade da cidade. É preciso olhar com atenção os complexos
sistemas de passagem para ali chegar. Pontos de encontro social e de intersecção, vias e vielas, subterrâneas ou
aéreas, travessas, becos, escadarias… Mas também é preciso olhar para os espaços “vazios” e os territórios “à
margem”. Enfim, o lado do avesso da terra nullius que dizem ser disfuncional. É em todos esses lugares que a
cidade sente, respira e se mostra humana, a um tempo relapsa e submissa. É aí que a cidade vê e se revê. Se
desdobra. É aí que ela cheira. Que escuta e fala de si e do seu passado. É aí que ela grita o seu futuro. Alguém está
a ouvir?
O
s tempos que se cruzam na cidade são tempos de turbulência. Instáveis prenúncios de acalmia. Grandes
ou pequenas, vilas urbanas ou metrópoles, as cidades são objectos do nosso amor. Este quer-se eterno
enquanto dure, como sugere o poeta. Estamos a tentar construir (ou a desenhar?) um futuro urbano que
dure para sempre. Fantasia. Um futuro urbano construído com a dignidade de sabermos “viver juntos na
diferença”. Resgatando do passado os patrimónios urbanos com futuro e apenas esses. Alguns nobres, outros
singelos. Gosto de pensar que, a essa construção urbana, havemos de chamar um dia democracidade. Se não, se
fracassarmos e deixarmos a cidade continuar a perder a sua alma, que ao menos saibamos planear (desenhar?) a
sua decadência. Com coragem e dignidade. Democraticamente.
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