entre corpos negros e a lesbianidade na narrativa new york

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
ENTRE CORPOS NEGROS E A LESBIANIDADE NA NARRATIVA NEW
YORK, DE MIRIAM ALVES.
Camila Sodré de O. Dias1
Paulo César Garcia2
"Nós sabemos que, quando damos as mãos na mesa de nossa diferença, a diversidade nos
dá poder. Quando pudermos nos armar com a força e a visão de nossas diversas
comunidades, então iremos, de verdade, todos nós, ser LIVRES finalmente!".
Audre Lorde (escritora e ativista lésbica negra)
RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade trazer as primeiras impressões sobre a pesquisa que desenvolvo,
financiada pela CNPq – Entre corpos negros, o amor entre iguais – em que trago um novo olhar a respeito da literatura
afro-brasileira, nas produções da escritora Miriam Alves na coletânea Cadernos Negros (CN). Em primeira instância,
repensando a construção da mulher negra e heterossexual, perceptível na grande maioria na literatura brasileira, procuro
analisar, na narrativa de Miriam Alves, o lugar de fala da lesbianidade no espaço literário afro-brasileiro, questionando
os discursos hegemônicos e centralizadores versus a homossexualidade feminina. Trata-se de uma escrita que visualiza
a sexualidade feminina e a natureza dicotômica heterossexual como forma de enaltecer os constructos a respeito da
mulher negra e lésbica. Objetivo deste trabalho é estudar o conto New York, presente no volume 24 CN, visando
debater a sexualidade lésbica e os desejos que movem as identidades sexuais das personagens femininas da literatura da
autora.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura afro-brasileira, mulher negra, lesbianidade
1
INTRODUÇÃO
Para iniciar a discussão, é necessário refletir sobre a importância de pesquisar e escrever
sobre determinado tema. Partindo de constructos homoafetivos entre mulheres, o objetivo é
manifestar a cultura de gênero e da diversidade sexual que, envolve os tabus com relação à
1
Graduanda do 7° semestre do curso de Letras vernáculas, campus II. Bolsista da CNPq. ([email protected])
Orientador da pesquisa, financiada pela CNPq, Paulo César Garcia é Professor-Doutor, vinculado à Universidade do
Estado da Bahia, vinculado ao Curso de Mestrado em Crítica Cultural. Coordenador do GT ANPOLL Homocultura e
Linguagens ([email protected])
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homossexualidade, os preconceitos, sobressaindo uma postura marcante do sujeito do desejo, em se
tratando de gênero, lesbianidade e raça, presentes nos contos de Miriam Alves.
Na literatura canônica, foi criada uma imagem sexualizada e animalizada dessa figura de
mulher negra, formando um estereótipo que refletiu na literatura brasileira, reforçando discursos
preconceituosos, como se essas mulheres só fossem dotadas ou só tivesse o valor sexual se fossem
apenas heterossexuais. Quando direciono a discussão para questões raciais, o foco é quebrar o
paradigma da mulher negra em sua forma “essencializada”, por discursos centralizadores, como se a
mesma só tivesse um único significado e constituição identitária, ser negra; esquecendo o fator
referente à sexualidade. Por isso, é necessário pensar a diferença como reconstrutora de sentidos a
despeito da raça, de gênero e sexualidade do feminino.
Nos parágrafos seguintes, levantarei
algumas considerações sobre o processo de construção cultural da mulher negra.
A construção da mulher negra se deu, no inicio do período escravocrata, entre meados dos
séculos XV e XVI, em que essas mulheres eram violentadas por senhores de engenho, trabalhavam
nas lavouras, nas cozinhas da casa grande durante o dia, e a noite, serviam seus patrões de outras
maneiras. Miriam Alves, no texto feminismo negro, diz:
Enquanto as sinhazinhas brancas tinham como imposição manter a virgindade como um
dos pressupostos da pureza, as mulheres negras vivenciavam a violência sexual cometida
pelo senhor de escravo e pelo capataz, tanto no espaço doméstico como no campo, ou seja,
no local destinado à execução de tarefas na época em que reinava no Brasil o escravismo
como forma de divisão de trabalho. (ALVES, 2010, p.62)
Essa violação sexual resultou também na hierarquização de gênero e raça, presentes em
nossa sociedade, utilizando de um recorte do artigo – Enegrecer o feminismo: a situação da mulher
negra na américa latina a partir de uma perspectiva de gênero – Sueli Carneiro, cita que: “O papel
da mulher negra é negado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres
é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres negras foi convertida em um romance”
(CARNEIRO, 2003, p.49)
Baseando-se na perspectiva Foucaultiana, a mulher negra ganha forma, a partir daquilo que
Foucault se refere: o ser se constitui como sujeito do discurso e de poder a ele atribuído. A
formação discursiva, se dar, partindo de um conjunto de enunciados relacionados a um sistema
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arbitrário, historicamente determinado. Para Foucault, as coisas só passam a existir quando são
construídas pela sociedade, através do discurso. Partindo desse pressuposto a identidade da mulher
negra, passa a constituir-se pela construção discursiva, que coloca a mesma a margem da sociedade,
como inferior e subalterna. E na literatura brasileira não foi diferente. De acordo com Stuart Hall, a
narrativa da nação pode ser contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e
na cultura popular. A imagem que temos da mulher negra na literatura canônica, é da escrava,
heterossexual e disposta a satisfazer os desejos sexuais do homem branco.
Por muito tempo, vários discursos literários construíram uma nuvem de estereótipos
estigmatizando a mulher negra, construído como objeto de desejo. Guacira Lopes Louro (2010), no
livro Gênero, sexualidade e Educação, traz AvtarBrah (1992), estudiosa de gênero raça e etnia,
chama atenção para o fato de que o termo “negro” não pode ser tomado de um modo essencialista,
como se tivesse um único significado, imediatamente reconhecido por todos\as; “negro” adquire
diferentes sentidos políticos e culturais em diferentes contextos. Desta maneira, podemos pensar na
mulher negra, marcada por um triplo preconceito ser mulher, negra e lésbica. Essas categorias de
gênero, raça e sexualidade não devem ser tratadas como variáveis independentes, por que a
opressão de cada uma está inscrita no interior da outra 3.
2 O LUGAR DA PERSONAGEM LÉSBICA NEGRA NA LITERATURA
Antes de adentrarmos na questão “personagem lésbica” e tendo ciência que autora e obra
aqui analisada faz o que chamamos de literatura afro-brasileira, é interessante pensar o papel da
literatura negro-brasileira na sociedade, definida pelo ensaísta e escritor Cuti:
A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e
de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a
palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não
se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como
um todo a receber daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar
de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à
sua gênese social ativa. O que há de manifestações reivindicatórias apoia-se na palavra
“negro”. (CUTI, 2010, p. 44)
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Brah, A. Difference, diversity and differentiation. In: DONALD, J. & RATTANSI, A. (ed.). Race,
Cultureanddifference. Londres: Sage, 1992.
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A pertinência da leitura do conto New York é válida para acompanharmos um eu
enunciador negro revelador de espaços de convivência, movido por desejo, medo, amor; distante
das descrições estereotipadas apresentadas no cânone literário nacional, principalmente por conter
um olhar sensível à experiência da mulher negra lésbica. De acordo com a escritora e ensaísta
Miriam Alves:
A produção textual das mulheres negras é relevante, pois põe a descoberto muitos aspectos
de nossa vivência e condição que não estão presentes nas definições dominantes de
realidade e das pesquisas históricas. Partindo de um outro olhar, debatendo-se contra as
amarras ideológicas e as imposições históricas, propicia uma reflexão revelando a face de
um BrasilAfro (destaque no original) feminino, diferente do que se padronizou,
humanizando esta mulher negra, imprimindo um rosto, um corpo e um sentir mulher com
características próprias (ALVES, 2010, p. 67).
Percebo que algumas leituras realizadas sobre a literatura que configura a mulher negra
não retrata a homossexualidade, expressando apenas o viés da heteronormatividade. A Miriam
Alves, escritora negra e poeta – integrante do Quilombhoje Literatura – têm publicado desde 1997,
a respeito do amor e dos desejos entre mulheres negras; exemplo o conto Abajur, ainda assinado
com o nome original da autora. Num breve contato que mantive com a escritora, ela me explica o
porquê de usar o heterônimo, Zula Gibi, em que assina os contos lésbicos seguintes. Diálogo logo
abaixo:
Miriam Alves: Abajur foi o meu primeiro conto com temática lésbica assinado por mim.
Depois devido alguns problemas que tive com um leitor que quis me bater com o livro
comecei assinar com o heterônimo que ficou em segredo por quase 6 anos agora os
pesquisadores descobriram que a Zula sou eu. Espero que hoje ninguém venha me bater
com minhas próprias palavras. (12:37h)
Entrevistante: E porque ocultou a identidade de Zula Gibi? Se sentia mais a vontade
falando sobre lesbianidade como Zula? Conte-me mais. (12:40h)
Miriam Alves: Explico mais. Preservação da minha integridade física. Como na época o
meu público leitor era bem próximo a maioria do Movimento Negro e existia um tabu com
relação a homoafetividade. Um militante leu abajur e apareceu no meu serviço para tomar
satisfação e disse que ia me bater com o livro. Ele estava muito nervoso eu tive que acalmalo. Daí para frente comecei assinar como Zula e ela Zula passou a ser um heterônimo como
profissão, nome, quase vida própria. Só os organizadores de Cadernos sabiam que era eu.
(12:45h)
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Em uma entrevista, intitulada “Empunhando bandeira diálogo de poeta”, no livro A escrita
de Adé – perspectivas teóricas dos estudos gays e lésbicos no Brasil (2002), há uma discussão sobre
a tematização das relações homossexuais na literatura negra, como a de Miriam Alves que dialoga
com o seu heterônimo Zula Gibi, que propôs o debate que condiciona ver o negro e a sexualidade,
assim, ela revela:
Z- [...] poucos, que se atreviam a falar da sexualidade humana, ou melhor, a sexualidade
entre negros... Eram tratados com invisibilidade, ou com uma assexualidade, à qual o
poema não se propunha. (In: ALVES, 2002, p. 156).
Foi na segunda metade do século XIX que o personagem do homossexual começou a ser
cercado e definido nas e pelas práticas medicinais. As sexualidades perversas passavam assim a ser
objeto de responsabilidade da medicina, que, por sua vez, reivindicava constantemente seu direito
em se pronunciar sobre os anormais. Para além, foi na e pela medicina que o homossexual enquanto
indivíduo de personalidade psíquica e somática desviante passou a existir na sociedade. A transição
do personagem do sodomita ao homossexual reflete e diz respeito a diversas e complexas mudanças
sociais, dentre as quais a emergência da medicina enquanto importante instituição de controle social
é uma das mais evidentes 4. A sodomia, até então vista como pecado ou crime, passa a ser
compreendida como uma perversão. Para Foucault:
O homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma história, uma
infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia
indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas,
escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas,
já que ele é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na
sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não
tanto como pecado habitual, porém como natureza singular. (FOUCAULT, 1988, p. 50).
A relação homossexual masculina, sempre foi muito presente nas discussões medicas,
havendo assim uma ausência da homossexualidade lésbica. O sexo entre mulheres era simplesmente
ignorado, considerado inimaginável, para sociedade. A origem dessa invisibilidade pode estar
localizada na vinculação entre o desejo e o símbolo que melhor o traduz, o falo. Enquanto o homem
4
MACHADO, Leonardo Diogo C. M. Patologização do desejo: o homossexualismo masculino nos manuais de
medicina legal do brasil das décadas de 1940 e 1950. CURITIBA, 2010. Disponível em:
http://www.generos.ufpr.br/files/eb90-monografia_leonardo.pdf. Acesso em: 25 mai.2013
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gay deve se deslocar de uma imagem negativa e homofóbica, a mulher lésbica luta por algum tipo
de representação que transcenda o imaginário sexual. Segundo Judith Butler, em o Falo lésbico e o
imaginário morfológico, afirma que o falo lésbico determina o desaparecimento do pênis,
instaurando assim, a diferença sexual e anatômica como o local daquilo que ela chama de
“ressignificações proliferativas” (BUTLER, APUD SALI, 2012, p. 116).
Utilizando do termo ressignificação, vale ressaltar a teórica Gayatri spivak (2010), no que
se refere à relação homossexual entre mulheres, refletindo por ser sujeito subalternizado, um
sujeito de fala. O sujeito subalterno para Spivak é aquele pertencente às camadas mais baixas da
sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão da sociedade, da representação política
e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante. Enquanto a
relação da situação de marginalidade do subalterno é mais arduamente imposta ao gênero feminino,
posto que a mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta sua voz não é ouvida. Para
tanto, se o subalterno, neste caso, subalterna, é justamente aquela que não fala, e atualmente muitas
escritoras negras, tem batalhado para conseguir seu espaço literário, Spivak nos diz (2010), com
estas escritoras, seus relatos, fragmentos compondo uma sintaxe, devemos também pensar em um
processo de construção de uma subalternidade em oposição a sua naturalização, devemos, portanto,
pensar em subalternização e, nessa teia, verificar, os modos de fala, de escrita, de escape deste teto
patriarcal prescrito. (p.15).
No final da década de 90, Século XX, no Brasil mulheres começam a sentir necessidade de
dizer seus amores, embutidos no silêncio, de uma sociedade machista, sexista e heteronormativa.
Por conseguinte, temos aqui, neste artigo, uma escritora negra que se desloca do local de subalterna,
fazendo-se ouvir seus discursos, com a produção de textos envolventes, cheios de sentimentos a
respeito de mulheres que se amam. As vozes das mulheres negras são, portanto, as vozes, agora
audíveis, não somente a própria voz, mas as vozes ancestrais silenciadas por séculos de exclusão.
As mulheres negras se posicionam e constituem uma resistência contra os preconceitos5. Desta
maneira, podemos pensar na literatura como um discurso que desempenha um papel de ressignificar
práticas vigentes em nossa sociedade, dando oportunidade de se fazer ouvir o avesso dos discursos
hegemônicos e centralizadores. Segundo Facco (2004), essas narrativas não dão espaço à
camuflagem, muito pelo contrário “Busca-se deixar bem claro um modelo de identificação, buscar5
FIGUEIREDO, 2009, p.105
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se dar voz ao que antes era dito somente por um silêncio imposto. Busca-se a visibilidade, a
obviedade. As lésbicas não querem mais sussurros, elas querem mesmo é gritar” (p.89).
Sabendo que o discurso lésbico, está engajado no discurso feminista, a professora doutora
Luciana Helena de Oliveira, abordando a poética feminista afirma que:
Para teoria feminista de base pós-estruturalista, a linguagem não é a expressão apenas de
uma individualidade, mas o lugar de construção da subjetividade. [...] a linguagem é o lugar
onde atuais e posssíveis formas de organização e seus respectivos desdobramentos políticos
são definidos e contestados. [...] Penso que poética feminista se deva entender toda
discursividade produzida pelo sujeito feminino que, assumidamente ou não, contribua para
o desenvolvimento e a manifestação da consciência feminina, consciência esta que é sem
dúvida de natureza política (o pessoal é político), já que consigna para as mulheres a
possibilidade de construir conhecimento sobre si mesmas e sobre os outros de sua
subjetividade, voltada esta para o compromisso estabelecido com a linguagem em relação
ao papel afirmativo do gênero feminino em suas intervenções no mundo público.
Consciência com relação aos mecanismos culturais de unificação, de estereotipia e
exclusão. E ainda, a consciência sobre a necessidade de participar conjuntamente com as
demais formas de gênero (classe, sexo, raça) dos processos de construção de uma nova
ordem que inclua todos os diferentes, sem exclusões. Poética feminista é poética
empenhada, é discurso interessado. É política. (VIANNA, 2002, p.1-2)
Desta forma, o conto New York apresenta a perspectiva de efetuar a análise, situando uma
poética que traz discursos empenhados com uma política, que mostra o desejo entre mulheres,
apresenta um locus que possibilita a mulher o exercício de sua subjetividade, deixando de lado a
posição de objeto passivo ao qual sempre foi limitada dentro do sistema dominante patriarcal.
Assim , a lesbianidade na narrativa de Zula Gibi pode ser percebida como uma crítica às relações
heterossexuais hierárquicas. Como afirma Barcellos (2006), o homoerotismo pode ser analisado ―
como transgressão social, demolição das barreiras entre classes, portanto libertação do indivíduo
(FERNANDEZ citado por BARCELLOS, 2006, p. 135). É o que iremos analisar daqui por diante
na narrativa, da escritora Miriam Alves, o caráter transgressor, libertário e ao mesmo tempo
repressivo, por constituições sociais, nas relações lésbicas, vivenciadas pelas personagens.
3 ENTRE ELAS: O DESEJO LÉSBICO DESPERTO EM NEW YORK
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No conto New York, publicado em 2001, em edição especial, dos cadernos negros, de
número 24 publicado nos Estados Unidos America (EUA). É formado por um quebra-cabeça de
cenas, ao contar a história da protagonista Carol, mulher negra que está envolta por lembranças da
primeira vez em que esteve em New York. Trabalhando como baby-sitter na casa de família de um
diplomata brasileiro, mesma época em que havia perdido sua mãe vai dando mostras de um
ambiente complexo. A narradora registra o ponto que desencadeou o despertar da sexualidade de
Carol. “Sempre disfarçou essa sua predileção por mulheres. Teve algumas sigilosas experiências.
Havia despertado no dia em que passeara na noite fria. O triste enterro de sua mãe no Brasil” (GIBI,
2001, p.112).
Esta cena é deslocada “grande casa dos patrões”. Compadecida de sua dor, Dona Laura,
alta, loira, esposa do diplomata, amparou com palavras tranquilizadoras, abraços ternos,
conduzindo-a até seu quarto. Onde ocorreu a primeira relação sexual de Carol “Apesar de virgem,
sabia o que significa a experiência daquela noite” (GIBI, 2001, p. 115).
Sentadas à beira da cama de solteiro, abraçadas. Carol escorada em suas aflições. Uma cena
íntima. O perfume de Laura entorpecia. Apoiada naqueles seios firmes e bem tratados, com
algumas sardas que sobressaíam na entrada do colo, Carol, Sem nenhuma explicação ou
pedido, acaricio-os como criança que, ao ser amamentada, alisa inocentemente os seios
maternos. Laura se arrepiou inteira, mas não interrompeu. [...] Carol acalmava-se naquele
gesto. Enfiou a mão por dentro da camisola rendada e retirou um dos seios. Admirou-se
com o mamilo de um rosa quase purpúreo, colocou-o em sua boca e começou a mamar.
(GIBI, 2001, p.113)
Aos poucos a sensualidade foi tomando conta. Laura tocou aqueles seios negros jovens
dentro da blusa. Tirou-os para fora do agasalho, observou o contraste de sua mão branca
contra aquela pele sedosa. [...] entregou-se ao desejo, que tomara de assalto. Desajeitada,
atirou-se aos lábios de Laura e beijou-a, terna, sôfrega, urgente. Renderam-se, lavraram-se
das roupas. Os corpos misturando-se, a princípio atabalhoados, depois num ritmo
sincronizado. (GIBI, 2001, p.113-114)
Com base nos trechos citados acima, podemos perceber em primeira instância uma estética
poética homoerótica, construída pelo desejo sexual entre essas duas mulheres. Barcellos em seu
artigo - Literatura e homoerotismo masculino: perspectiva teórico-metodológicas e práticas
críticas – conceitua o homoerotismo pensando em suas diferentes formas de abordagens:
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[...] é um conceito abrangente que procura dar conta das diferentes formas de
relacionamento erótico entre homens (ou mulheres, claro), independentemente das
configurações histórico-culturais que assumem e das percepções pessoais e sociais que
geram, bem como da presença ou ausência de elementos genitais, emocionais ou
identitários específicos. (BARCELLOS, 2002, p. 21)
No entanto, há um ponto crucial da narrativa da autora Zula Gibi, o incesto. No qual Freud
chama de Catexia de objeto6, inicialmente o bebê deseja um dos seus progenitores, mãe ou pai,
designa as catexias objetais primitivas, mas o tabu contra o incesto impede que esses desejos sejam
efetivados, havendo assim um abandono.
Em “Luto e melancolia” Freud faz uma distinção entre luto que é a reação a uma perda real,
em geral a morte de alguém amado, e melancolia. Uma vez que o melancólico nem sempre
sabe o que perdeu e, na verdade, as vezes nem se quer sabe que perdeu alguma coisa, Freud
considera essa uma condição patológica que se assemelha a depressão. Ele argumenta que,
em vez de “superar” e aceitar a perda a resposta melancólica consiste em internalizar o
objeto perdido no ego, identificando-se com ele. (SALIH, 2012, p.75-76)
Carol, ao que aparenta, enxerga em Laura a figura de sua mãe, primeiro ao encontrar
naquela mulher o “colo e ternura de mãe”, ao sentir-se só e abandonada no mundo. Segundo quando
narradora ao invés de utilizar o verbo chupar os seios, na relação sexual, utiliza o verbo mamar,
como vimos nos primeiros fragmentos do conto, aqui destacados. Terceiro o momento do sexo, a
protagonista lembra-se da mãe.
Carol murmurava “mamãe, mamãe”. Choramingando, misturava lembranças. Estremeceu,
quando Laura alisou com a ponta dos dedos a púbis de pelos encaracolados: “Ah, estas
doces cócegas que seus pêlos fazem e minhas mãos...” Carol não aguentava mais a
sensação, rebolava, remexia-se. Carol agarrou-se aos longos cabelos loiros, experimentava
sensação próxima à morte.
[...] Experimentava o prazer do perfume, agora misturado com o odor do suor, o calor
agasalhador daquela mulher de quarenta anos, a idade de sua mãe. (GIBI, 2001, p.114)
Ao analisar esses dois recortes, ainda movida por duas experiências fortes, primeiro a
perda da mãe, e em seguida a perda da virgindade com uma pessoa do mesmo sexo, a narradora,
nos leva a refletir a fragilidade da protagonista, perante a primeira perda, superada na segunda
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O desejo por um objeto; neste caso a mãe.
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perda. No segundo fragmento acima, podemos perceber novamente, a associação narrada entre
Laura e a mãe de Carol, na questão da idade. Segundo Salih (2012) ao discorrer sobre teoria
freudiana, justifica que se nosso desejo primitivo é pela mãe, iremos introjetar a sua figura e
estabelecer uma identificação com ela, substituindo nossa catexia objetal proibida por uma
identificação com ela. Freud não sabe com certeza o que determina a catexia objetal primitiva, mas
ele contorna esse problema atribuindo a direção do desejo do bebê ao que chama de disposições 7.
Então, se o desejo pelo sexo oposto é desperto pela protagonista no momento da morte de sua mãe,
evidencia a inclinação a desejar, a partir do nascimento, pessoas do sexo oposto. Isso poderia
explicar, o possível incesto, ocorrido na narrativa. Quando bebê a catexia objetal, da protagonista,
era pela mãe, o que faz surgir no momento do falecimento maternal, a identificação8 entre a mãe e
Dona Laura, gerando o envolvimento entre elas. Esses argumentos apresentados é a primeira parte
de uma nova pesquisa que estou desenvolvendo.
Continuando, como vimos até aqui, a narrativa de Zula Gibi é uma explosão de desejos,
perdas e descobertas, vivenciadas pelas personagens. Em Carol, temos uma moça de 20 anos, em
sua primeira experiência sexual/homossexual, “Nunca havia feito isso, no entanto deixava-se levar
pelos instintos” (p.114). Em contrapartida, Laura conduzia o sexo, o que pode ser marcado no conto
com os verbos utilizados para descrever suas ações “[...] Laura segurou as mãos de Carol e colocouas em seus seios, incentivando-a a percorrer lhe as formas. [...] Laura ajudava, colocando suas
mãos sobre as dela, encorajando-a ir em frente, seguindo seus impulsos” (p.115). “Laura guiava a
menina com leves meneios de nádegas e, segurando pela cabeça, impunha o ritmo do seu prazer.
Explodiu em gozo, jogou a cabeça para trás. Carol percebeu naquele momento que tinha o poder. O
de fazer Laura desfalecer. Gostou.” (p.115) No decorrer da história, fica explícito que a diferença de
idade das duas personagens, evidencia o amadurecimento de Laura perante a inexperiência de
Carol. E ao mesmo tempo Carol desperta em Laura o amor, nunca antes vivenciado.
Laura ensinava a Carol, os segredos de seu mundo. Carol dava a Laura a oportunidade de
conhecer os segredos do amor entre iguais. Conversavam. Riam e liam juntas. Um mundo
de encantamento abriu-se para Carol. Antes, Laura reclamava das constantes ausências de
7
Disposições: a inclinação a desejar, a partir do nascimento, pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto.
Identificação: o processo pelo qual alguém vem a se identificar com alguém ou com algo; neste caso, o objeto que
tinha sido perdido.
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César, agora pediam a Deus que ele se afastasse o maior tempo possível. (GIBI, 2001,
p.116)
Em momento de descobertas sexuais, de prazer e de amor, Carol percebeu que sua vida
mudaria pensou “Quais seriam as consequências?” (GIBI, 2001, p.115), começou a sentir o peso do
padrão heterossexista presente na sociedade. Logo mais adiante, no conto, em um de seus
momentos de prazer, César flagra as duas nuas, amando-se, exigiu participação no sexo, mas Laura
como uma fera “protegia” Carol.
Não permitiu. Não dividira Carol com ele. Não mesmo! E se insistisse, faria um escândalo.
César a ofendeu com palavras duras, preconceituosas. Exigiu que Carol fosse mandada
embora. Carol viu-se de novo desamparada. Chorava, Não queria separar-se de Laura.
Amava-a, ela era a irmã que nunca tivera, a amiga e mãe que lhe faltara havia três anos.
César ameaçava Laura, no entanto não poderia separar-se por sua profissão, que o obrigava
a ter uma família feliz: mulher e filhos sorridentes. (GIBI, 2001, p.117)
Podemos perceber a dominação masculina ao reprimir o desejo entre as duas, para César o
que existia ali era o objeto para o seu próprio prazer, não via a completude do sexo lésbico, o sexo,
pela ausência do falo, ou melhor, do pênis. Laura ameaça-o dizendo que faria um “escândalo” se o
marido tentasse algo, que para a sociedade na qual faziam parte, de diplomatas e etc, seria o fim da
carreira de César. Há uma necessidade por parte do marido, de prestar contas à sociedade, com o
seu “matrimônio estável”, Laura e César estavam presos aos padrões ideais do sistema
patriarcalista. A ameaça de Laura em fazer o escândalo, mesmo perdendo sua vida de madame,
demonstra que o deixaria para continuar com sua “doce menina”. Entretanto, seu marido não daria o
divórcio, pois tinha uma profissão a zelar. Esse pseudo zelo familiar, está condicionado aos padrões
do cristianismo, que segundo Foucault (1984) desenvolveu códigos morais e interdições universais
cada vez mais centradas na verdade do sexo.
Temos na figura de Laura, uma mulher branca, de 40 anos, dona de casa, e mãe, um sujeito
feminino que transgrede os padrões e os discursos sociais, com relação à mulher e sua sexualidade,
mas ao mesmo tempo aparenta-se presa ao sistema dominante, que silencia o diferente.
“Inconformado com a situação de ter chifres impostos por uma negrinha á toa, César transferiu-se
para a Áustria, levando a família” (GIBI, 2001, p.117). Neste contexto, o termo negrinha soa
pejorativo e racista, já que para um diplomata a traição havia sido algo revoltante, não só pelo fato
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da esposa lhe trair com uma mulher, e não permitir que ele participasse do sexo, mas por essa
mulher ser negra. A figura de César representa a sociedade homofóbica e racista.
Essa experiência homoafetiva, vivenciada por essas duas mulheres, faz com que Carol se
desloque do entre-lugar – articulado por sua nacionalidade e sexualidade, em um momento de
trânsito (sexualidade heterossexual versus sexualidade lésbica) – de estrangeira em New York, e
retorne ao seu país de origem, o Brasil. Ao retornar para a cidade de New York, depois de algum
tempo, as lembranças ocupam sua mente, temperando o enredo movimentado por momentos
nostálgicos da personagem, que desliza na narrativa, transitando por espaços diferentes (Brasil –
New York / New York – Brasil). No final do conto, a narradora traz mais dois personagens, Nat o
novo amor de Carol, a qual fugia para defender-se dos seus sentimentos homoafetivos “Aprendera a
se defender dos seus próprios sentimentos. Por isso fugia de Nat. [...] Prometera a si mesma não se
entregar a amores. Mas Nat não saia de sua cabeça” (GIBI, 2001, p.117-118); e outro personagem é
Gerson que possivelmente teria algum tipo de envolvimento com a personagem, este recorte, a
seguir, nos leva a essa intepretação “Teria de voltar para São Paulo, Gerson a esperava ansioso pelo
serviço. E por outros motivos” (GIBI, 2001, p.118). A noite de Carol é marcada pelo desejo de
pertencimento, de encontro, e ao mesmo tempo de conflitos e aflições.
Sua última noite nos Estados Unidos foi povoada por sonhos difusos. Laura, Nat, trazendoa como se a oferecesse. As duas envoltas num sorriso. Nuas, completamente nuas. Gerson e
Cesar estapeavam-se ao fundo. Acordou assustada. (GIBI, 2001, p.118)
Carol se intimida com a onda de preconceitos sociais, com os conceitos heteronormativos e
discursos xenofóbicos; ao racionalmente esquivar-se do envolvimento real com Nat que perturbava
lhe os desejos, em seu presente. Por medo, Carol foge de suas lembranças e desejos com volta para
o Brasil. Carol pode ser neste conto a representação de muitas vidas, censuradas e reprimidas pelas
perspectivas dos paradigmas sociais impostos violentamente sobre o sujeito e o seu desejo. Ela é
também a representação do diferente que se camufla numa identidade desenhada pela sociedade, à
identidade do “normal”. Este voo pode simbolizar a saída do espaço físico e também do social, ao
passo que ela vai ao encontro de Gerson que a aguardava com segundas intenções, ao que parece,
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transitando do espaço conflituoso das dúvidas e desejos para o espaço das concepções
heteronormativas cristalizadas, onde provavelmente seus desejos serão silenciados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desse artigo, refletimos a questão da construção identitária da mulher negra, que
a essencializou apenas como indivíduo heterossexual, e por discursos que reforçavam a
desvalorização deste sujeito, nas narrativas literárias canonizadas. Sobre o que retratei nas primeiras
parte do texto, Alves nos diz (2010) a mulher negra sempre foi vista por uma lente que a associava a
uma suposta essência escrava, à promiscuidade, à sujeira, ao objeto sexual, muito mais ao trabalho
doméstico bruto do que a mulher branca, por vezes tratada como sinhazinha. Para tanto, meu desejo
aqui exposto, foi de dar visibilidade, ao texto literário de Zula Gibi – Miriam Alves – ao abordar o
tema da homoafetividade entre mulheres, sendo uma delas negra. Em que essas vozes foram
silenciadas, durante séculos na literatura, e que hoje podem ser ouvidas, vozes que carregam em si
os ecos de outras mulheres negras, oprimidas e excluídas pelo gênero, raça e sexualidade.
Assim sendo, este conto possibilita um espaço de reflexão sobre as questões do amor entre
mulheres, movidas por desejos e impulsos, ao mostrar na escrita de Alves e entre quatro paredes –
no quarto de Carol – o que foi descriminalizado e mal visto durante séculos de exclusão, ao tratar da
sexualidade lésbica; a noção de ser negra e lésbica emaranhado na narrativa, permite ao leitor,
viver, sentir e refletir as tensões vivenciadas por sujeitos femininos lésbicos, a partir das
personagens, permitindo além de um espaço de identificação, um espaço de desconstrução das
ideologias heteronormativas.
Explicitei neste trabalho os múltiplos discursos minimizadores – contra a mulher negra e
branca, envolvidas por um desejo homossexual, em que centrei a discussão em Carol, personagem
negra e lésbica – que ainda se conservam na sociedade hegemônica, em que ainda como é traduzido
no conto, a relação entre duas mulheres é vista como objeto do desejo masculino, objeto do homem,
para seu uso e desuso. Mas, Zula Gibi traz na narrativa um discurso de resistência a esta
“coisificação” da relação entre mulheres, quando Laura resiste à proposta do marido de participação
naqueles sexos; a mulher, diz não, este “não” pode representar uma proposta de reconstrução da
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ideia de uma relação homoafetiva, era como se dissesse, este momento é de amor verdadeiro, e não
de promiscuidade, cabe a dois, ou melhor, a duas.
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